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A AGENDA ICARUS / Parte III
30
Passavam dez minutos de uma hora da madrugada e a exaustão pairava como círculos de neblina densa e parada por toda a casa em Mesa Verde. O agente da CIA, com olheiras de fadiga, entrou na varanda envidraçada,
onde Evan e Khalehla sentavam-se no sofá de couro, em diagonal a Manny, na sua espreguiçadeira. As três enfermeiras haviam se retirado para seus quartos, cada uma dispensada do serviço pelo resto da noite;
a presença de guardas armados patrulhando o terreno lá fora deixara-as com os nervos tensos. O paciente sobreviveria ao sono sem precisar que alguém o examinasse a cada meia hora, garantira o Dr. Lyons.
- Washington está ansiosa - anunciou o esgotado agente. - O programa foi um pouco antecipado e por isso vou ao aeroporto agora para buscar o furgão. O avião deve chegar dentro de uma hora, o que significa
que não temos muito tempo. Querem que o pássaro pouse e parta logo em seguida.
- A torre de lá não opera durante a noite inteira, a menos que se tenha combinado antes - informou Kendrick. - Pensou nisso?
- Há horas, a tempo para o seu voo procedente das Baamas. A Força Aérea enviou uma equipe de controle de Colorado Springs. A cobertura é uma manobra de treinamento da FA, passando por seu gabinete. Ninguém
protesta, ninguém faz perguntas.
- Como é possível?
- Porque o senhor é o senhor.
- Há alguma coisa que possamos fazer aqui? - Khalehla apressou-se a perguntar, antes que Evan pudesse fazer qualquer comentário.
- Há, sim - respondeu o homem da CIA. - Se não se importarem, eu preferia não encontrar ninguém de pé ao voltar. Temos os movimentos calculados em números, até em frações; assim, quanto menos distrações,
melhor.
- Como vai cuidar daqueles caubóis do parque lá fora? - perguntou Weingrass, fazendo uma careta, mas obviamente não da indagação. - Estiquei a cabeça pela porta algumas vezes, antes desses dois chegarem,
e eles correram para mim como se eu fosse um urso fugido.
- Eles foram informados de que um VIP estrangeiro está chegando para visitar o deputado... e esse é o motivo para estarem aqui. E como o encontro é altamente confidencial... e em deferência ao visitante,
que quer mantê-lo assim, todas as patrulhas permanecerão fora de vista. Eles ficarão nos lados da casa e no mirante lá embaixo.
- Eles engoliram esse absurdo? - indagou Weingrass.
- Não têm motivo para duvidar.
- Porque ele é ele - concordou Manny, acenando com a cabeça.
- E porque cada um está ganhando trezentos dólares para perder uma noite de sono.
- Muito profissional, meu caro. É melhor do que eu pensava.
- Tenho de ser... Bom, se eu não tornar a vê-lo, foi um prazer conhecê-lo, deputado. Algum dia contarei a meus filhos sobre isto... Não, por favor, senhor, não precisa se levantar. Tenho pressa. Também
não precisa, senhorita representante, como diria o senhor Weingrass... E você, Manny, quero que saiba que foi uma experiência e tanto. Acho que estou contente por me encontrar do seu lado.
- E deve mesmo estar, pois precisa de toda ajuda que puder obter... Ciao, meu jovem. Tenha um bom trabalho e se as chances forem apenas de cinco para um contra você, sei que vencerá.
- Obrigado, Manny, é o que tenciono. - O agente virou-se por um instante para Evan e Khalehla, sentados no sofá. - E falo sério. Ouvi a referência a Fairfax no carro e deixei passar, mas não foi fácil.
Sou o único por aqui que sabe o que aconteceu; e foi por isso que insisti em comandar esta unidade. O filho de minha irmã mais velha, meu sobrinho, a quem levei para a Agência, integrava aquela unidade.
Quero ter a melhor caçada de minha vida.
O homem da CIA retirou-se, apressado.
Para começar, senhor, os terroristas fazem questão de matar pessoas inocentes. Homens e mulheres comuns que por acaso estejam presentes, garotos com mochilas, empregados... tanto jovens como velhos...
apenas fazendo o seu trabalho. Qual é o seu caso, senhor?
- É terrível para ele - comentou Khalehla. - Deve sentir uma dor profunda, um enorme sentimento de culpa.
- Quem de nós não sente? - indagou Kendrick, a voz trêmula interrompida subitamente por uma aspiração forte e forçada de ar.
- Não pode se culpar pelo que aconteceu - insistiu Khalehla.
- Pelo que continua acontecendo! - exclamou Kendrick. - Como é que essas pessoas entraram no país? Quem as deixou passar? Onde estão nossas supostamente brilhantes medidas de segurança, capazes de agarrar
agentes soviéticos de quinta categoria para trocá-los por repórteres incriminados em Moscou porque isso é bom para as relações públicas, mas não conseguem deter uma dúzia de assassinos que chegam aqui
para matar? Quem torna isso possível?
- Estamos tentando descobrir.
- Pois estão um pouco atrasados, não é mesmo?
- Pare com isso! - ordenou Weingrass, inclinando-se para a frente e espetando o ar com o indicador. - Esta garota não tem nada a ver com o que você está falando, e eu também não!
- Sei disso! - Kendrick pegou a mão de Khalehla. - E ela sabe que eu sei. Mas tudo parece uma loucura tão grande... Eu me sinto carente, muito assustado. Quantos outros ainda serão mortos? Não podemos
deter esses homens! São maníacos e estão à solta, nunca os encontraremos!
Evan baixou a voz, os olhos revelando uma angústia intensa fixados na agente do Cairo.
- Assim como não encontramos os miseráveis que roubaram aquele arquivo de Oman "à prova de roubo" e me expuseram ao mundo inteiro. Há quanto tempo foi isso?... oito, dez semanas? Não estamos mais próximos
do que no primeiro momento. Só que agora, pelo menos, sabemos por que fizeram isso. Não foi para me transformar em herói nem promover minha carreira política até ser concorrente a só Deus sabe o quê...
Foi tudo encenado, preparando a execução! Uma "morte de vingança", acho que é assim que os árabes dizem. E a verdade é que não estamos chegando a parte alguma!
- Preste atenção - disse Khalehla, num tom suave. - Vou lhe dizer uma coisa que provavelmente não deveria, mas às vezes violamos uma regra porque a esperança também é importante... Aconteceram outras coisas
que você não sabe... Estão acontecendo... e cada nova informação é um passo a mais no caminho da verdade sobre essa horrível confusão.
- Está sendo muito enigmática, mocinha.
- Tente compreender, Manny. Evan compreende, porque temos um acordo. Ele sabe que há ocasiões em que não posso explicar as coisas.
- Um velho que já foi residente no seu território uma ou duas vezes pode perguntar por quê?
- Se está se referindo ao seu trabalho com o Mossad, não deveria perguntar... perdoe-me por ser tão brusca... A base é um imperativo quem-precisa-saber, porque ninguém pode revelar o que não sabe.
- Por causa dos amitais e pentotais? - indagou Weingrass. - Nos velhos tempos, a escopolamina? Ora, minha bela jovem, não estamos nas ruas escuras de Marrakech ou nas montanhas de Ashot Yaakov. Quem usaria
agentes químicos contra nós aqui?
- Tenho certeza de que o jovem prisioneiro que Evan identificou, o que se encontra a caminho de uma clínica na Virginia, também pensou a mesma coisa. Dentro de 24 horas toda a vida dele estará gravada.
- Não se aplica ao nosso caso - insistiu Weingrass.
- Talvez não, mas existe algo mais. Há cerca de seis horas temos uma pista... uma pista possível... que pode nos levar a alguém mais alto neste governo do que qualquer de nós deseja. Se estivermos enganados,
o deputado Kendrick do Colorado não pode ter qualquer participação nisso; em termos mais simples, ele não pode saber. Deve estar em condições de negar tudo. Em decorrência, você também não pode saber,
Manny.
- Aquela transmissão pelo rádio no avião... - disse Evan, olhando duro para Khalehla. - Não era o chefe do posto no Cairo, concorda?
Khalehla deu de ombros, largando a mão dele e inclinando-se para pegar seu drinque na mesinha à frente do sofá.
- Muito bem, nada de específico - continuou Kendrick. - Mas vamos falar sobre a verdade... esqueça as condições de negar, às quais não dou a menor importância. Que espécie de verdade vocês estão procurando?
Dê-me uma visão global... cansei de ouvir essa expressão em Washington. Que tipo de pessoas estão fazendo o quê e com quem? Quem quer que sejam, eles mataram meus amigos... nossos amigos. Tenho o direito
de saber.
- De fato, tem - respondeu Khalehla pausadamente, empertigando-se no sofá e olhando para Evan e Weingrass. - Você mesmo falou, levantou a questão... em pelo menos parte da verdade. Alguém deixou aqueles
assassinos entrarem e permitiu que eles matassem. Foram fornecidos passaportes sem restrições e, como posso imaginar suas aparências sem qualquer dificuldade, porque sou um deles, esses documentos falsos
tinham de ser muito bons para passarem pelos peritos antiterroristas que nós e nossos aliados temos em cada ponto de imigração, aqui e no exterior, inclusive os soviéticos, posso garantir. Além desses
documentos, há os problemas de logística, linhas de suprimentos sem o que os terroristas não podem operar. Armas, munição, dinheiro, carteiras de motorista e veículos alugados com antecedência; locações
em que eles pudessem se esconder e se preparar, até as roupas mais modernas fabricadas no país para o caso de serem presos e interrogados. E há ainda coisas como reservas de trem e avião, as passagens
entregues antes de entrarem num terminal, exceto quando chegam a uma plataforma ou sala de espera de aeroporto no último momento. Nada é irrelevante para essas pessoas; tudo é vital, até o último detalhe,
para o sucesso de qualquer missão assumida. - Khalehla fez uma pausa, olhando de um para outro. - Alguém tomou todas essas providências, e quem quer que ele seja, ou que eles sejam, não deveriam estar
onde se encontram neste governo, não deveriam ter os acessos para fazê-lo. Descobri-los é muito mais importante do que se poderia imaginar.
- Refere-se às pessoas que roubaram o arquivo de Oman.
- E você acha que agora continuam sendo as mesmas pessoas.
- E não são? Para mim é bem óbvio.
- Mas não para mim.
- A organização. Explicaria uma morte por vingança. A minha.
- Não podemos supor que as duas coisas estejam separadas? - insistiu Khalehla. - Uma gerando a outra? Decorreram dez semanas, lembra-se? O ímpeto para matá-lo no calor da vingança, que é intrínseco ao
jaremat thaár, já passou.
- Acaba de expor todos os detalhes que precisam ser providenciados. Isso leva tempo.
- Se eles dispõem dos recursos para fazer o que fizeram em dez semanas, poderiam fazer isso em dez dias, Evan.
Emmanuel Weingrass levantou a mão, a palma virada para a frente; era uma ordem de silêncio e esperava ser obedecido.
- Está nos dizendo agora que, em vez de um inimigo, meu filho tem dois? Os árabes do Vale Baaka e mais alguém por aqui, que trabalha com eles ou contra eles? Acha que está fazendo sentido, minha linda
criança?
- Duas forças, ambas esquivas, uma inimiga mortal, sem dúvida... a outra simplesmente não sei. Só sei o que sinto e não estou sendo evasiva. Quando não tem as respostas, MJ culpa o que chama de "lacunas".
Acho que é esse o meu problema agora. Há lacunas demais.
Weingrass tornou a fazer uma careta, um arroto silencioso estufando suas faces encovadas.
- Aceito suas percepções - ele declarou. - Se Mitchell algum dia a despedir, poderei conseguir-lhe um bom emprego com o Mossad, evitando um certo contador que a deixaria morrer de fome.
O velho arquiteto respirou fundo e recostou-se.
- O que foi, Manny? - indagou Khalehla, fazendo com que Kendrick voltasse a cabeça, alarmado.
- Está se sentindo bem? - perguntou Evan.
- Estou pronto para as Olimpíadas - respondeu Weingrass. - Só que num momento estou com frio, no seguinte sinto calor. É de ficar correndo pelo bosque como um garoto. Lyons disse que minha pressão estava
muito alta, ou talvez tenha dito alguma outra coisa, que eu estava com algumas equimoses que não deveria ter... Eu disse a ele que andei brigando com touros. Tenho de descansar estes ossos, crianças. -
O velho levantou-se. - Pode acreditar, Khalehla, que não sou mais um garoto?
- Acho que não é apenas jovem, mas também admirável.
- Extraordinário, na verdade, é mais apropriado - sugeriu Manny. - Mas neste momento sinto os efeitos do meu virtuosismo. Vou para a cama.
- Chamarei uma das enfermeiras - disse Kendrick, começando a se levantar.
- Para quê? Para ela se aproveitar de mim, me devastar? Quero descansar, menino!... E deixe que elas descansem, Evan. Passaram por muita coisa e nem mesmo sabem o que foi. Estou bem, apenas cansado. Experimente
correr nas Olimpíadas quando tiver sessenta anos.
- Sessenta?
- Cale-se, filho. Ainda posso vencê-lo numa corrida por dinheiro em disputa dessa garota adorável.
- Poderia ser alguma coisa que o médico lhe deu? - perguntou Khalehla, sorrindo afetuosamente pelo elogio.
- O que é que ele me deu? Nada. Apenas tirou um pouco de sangue para seu laboratório de maluco e me ofereceu algumas pílulas, que eu lhe disse que podia jogar na latrina. Provavelmente eram amostras que
ele recebe de graça e depois cobra o bastante para construir uma nova ala na sua casa de luxo... Ciao, meus jovens.
Os dois ficaram observando o velho passar pela arcada de pedra para a sala de estar, cada passo plantado com firmeza à frente do outro, como se estivesse simulando uma força que não sentia. Depois de Weingrass
desaparecer, Evan perguntou:
- Acha que ele está bem?
- Acho que está exausto - respondeu Khalehla. - Experimente fazer o que ele fez esta noite... não aos sessenta ou oitenta anos, mas amanhã.
- Darei uma olhada nele de vez em quando.
- Vamos nos revezar. Assim ambos nos sentiremos melhor, sem acordar as enfermeiras.
- O que é outra maneira de dizer que elas continuarão dormindo e longe das janelas.
- Tem razão - admitiu Rashad. - Mas nos sentiremos melhor pelas duas coisas.
- Quer outro drinque?
- Não, obrigada...
- Eu quero.
Kendrick levantou-se.
- Ainda não acabei de falar.
- Então fale.
Evan virou-se para Khalehla, postada à sua frente no sofá.
- Não quero um drinque... mas quero você.
Em silêncio, Kendrick fitou-a, os olhos errantes por seu rosto até se fixarem nos olhos firmes da mulher.
- Por compaixão? Ser misericordiosa com o homem confuso e angustiado?
- Não terá compaixão vinda de mim, e já lhe disse isso. Respeito-o demais, também já lhe disse. Quanto ao pobre homem confuso e angustiado, quem está com pena de quem?
- Não era isso o que eu pretendia dizer...
- Sei que não. Apenas não tenho certeza do que era.
- Já lhe disse antes. Não estou procurando uma aventura rápida, não com você. Se isso for tudo o que pudermos ter, aceitarei, mas não é o que procuro.
- Você fala demais, Evan.
- E você se esquiva demais. Disse a Manny que não era evasiva, mas está sendo. Por pelo menos seis semanas tentei chegar perto de você, tentei persuadi-la a conversar sobre nós, tentei romper a barreira
de vidro que você ergueu, mas não houve a menor possibilidade.
- Porque estou apavorada!
- Com o quê?
- Com nós dois!
- Agora é você quem está falando demais!
- E você ficou mudo ontem à noite. Pensa que não o ouvi? Andando de um lado para outro, como um macaco numa jaula, diante da minha porta?
- Por que não a abriu?
- Por que não a arrombou? - Os dois riram e se abraçaram, Khalehla acrescentou: - Quer um drinque?
- Não... quero você.
Não houve o frenesi de Bahrain. Havia urgência, é claro, mas era a urgência de amantes, não de dois estranhos desesperados ansiando por alívio num mundo enlouquecido. O mundo em que se encontravam agora
não era sadio - sabiam disso muito bem -, mas havia um arremedo de ordem entre os dois, a descoberta foi esplêndida e satisfatória para ambos, agora contendo promessas, quando antes existia apenas um vazio
mútuo povoado de incerteza...
Era como se ambos estivessem insaciáveis. O clímax foi seguido por uma conversa tranquila, e, se revezando, iam dar uma olhada em Emmanuel Weingrass, depois mais conversa, os corpos juntos, encaminhando-se
de novo para a realização do prazer pelo qual ansiavam. Nenhum deles podia conter o outro, e puxavam, ondulavam, rolavam, até se esgotarem... e ainda assim só conseguiram renunciar um ao outro quando o
sono os exauriu.
O raiar do sol inaugurou o dia no Colorado. Exausto, mas estranhamente em paz na caverna aconchegante e temporária que haviam encontrado para si mesmos, Evan procurou por Khalehla, mas ela não estava mais
ali. Abriu os olhos. Soergueu-se, o cotovelo apoiado no travesseiro; viu as roupas da mulher penduradas numa cadeira e tomou a respirar. Observou que as portas para o banheiro e o closet estavam abertas,
depois lembrou-se e riu baixinho, um tanto pesaroso. O herói de Oman e a hábil agente secreta do Cairo tinham viajado para as Baamas com as suas valises; na precipitação dos acontecimentos, haviam-nas
deixado num carro da polícia de Nassau ou num F-106 da Força Aérea. Nenhum dos dois notara a perda até correrem para o quarto, quando Khalehla comentara, com um ar de sonho:
- Comprei uma camisola escandalosa para a viagem, mais na esperança do que numa expectativa realista, e agora acho que vou vesti-la.
Eles se fitaram nesse instante, as bocas entreabertas, os olhos arregalados.
- Oh, não! - ela exclamara. - Onde será que as deixamos? As duas valises!
- Havia alguma coisa perigosa na sua?
- Só a camisola... não combinava com Rebecca de Sunnybrook Farm... Oh, Senhor! Que dupla de profissionais nós somos!
- Nunca aleguei que era...
- E você tinha...
- Meias sujas e um manual sexual... mais na esperança do que numa expectativa realista.
Os dois se abraçaram, a comicidade da situação revelando uma nova faceta sobre si mesmos.
- Você usaria aquela camisola mais ou menos por cinco segundos, antes que eu a rasgasse, depois teria de cobrar ao governo pela perda de propriedade pessoal. Poupei aos contribuintes pelo menos seis dólares...
Venha comigo.
Um deles verificara como estava Manny; nenhum dos dois pudera se lembrar qual.
Kendrick saiu da cama e foi para o closet. Tinha dois roupões; um desaparecera e ele foi até o banheiro a fim de se fazer apresentável. Depois de fazer a barba e tomar um banho de chuveiro, aplicou colônia
demais, mas refletiu que não o prejudicara quase vinte anos antes, na universidade, com uma animadora de torcida de cabeça oca. Fazia tanto tempo assim que essas impressões lhe importavam? Ele pôs o segundo
roupão, saiu do quarto e desceu pelo corredor de pedra até a arcada. Khalehla estava junto à mesa de pinho com o tampo de couro preto na sala de estar, falando ao telefone em voz baixa. Viu-o e sorriu
por um instante, voltando a se concentrar na pessoa com quem falava.
- Está tudo claro - ela disse, quando Evan se aproximou. - Ficarei em contato. Até mais tarde.
Khalehla levantou-se, o roupão grande deslizou revelando as formas do seu corpo. Puxou as dobras do tecido e adiantou-se, estendendo as mãos subitamente e pondo-as nos ombros de Evan.
- Beije-me, Kendrick - ela ordenou, gentilmente.
- Não sou eu quem deveria dizer isso?
Beijaram-se, até que Khalehla compreendeu que, mais um momento e voltariam ao quarto.
- Chega, chega, King Kong. Tenho coisas a lhe dizer.
- King Kong?
- Eu queria que arrombasse uma porta, está lembrado?... Esquece as coisas depressa.
- Posso ser incompetente, mas espero não ser inadequado.
- Provavelmente está certo no primeiro ponto, mas não tem nada de inadequado, meu amor.
- Pode imaginar o quanto gosto de ouvi-la dizer isso?
- O quê?
- Meu amor...
- É só uma expressão, Evan.
- Neste momento, acho que eu mataria se pensasse que a usa com outro.
- Por favor.
- Já usou? Usa?
- Está me perguntando se eu gosto de dormir acompanhada de vez em quando, não é mesmo? - murmurou Khalehla, retirando os braços.
- Não, claro que não.
- Já que estamos falando a respeito, e pensei muito na situação, vamos ser objetivos. Já tive ligações, da mesma forma que você, chamei a vários de "amor", mas se quer saber a verdade, seu insuportável
egocêntrico, nunca chamei ninguém de "meu amor". Isto respondeu à sua pergunta, seu rato?
- Serve - respondeu Evan, sorrindo e estendendo as mãos para ela.
- Não, por favor, Evan. Conversar é mais seguro.
- Pensei que tinha me dado uma ordem para beijá-la. O que mudou?
- Você tinha de falar e eu precisava recomeçar a pensar... E acho que não estou pronta para você.
- Por que não?
- Porque sou uma profissional e tenho trabalho a fazer; se ficar trepando não poderei realizá-lo.
- Outra vez, por que não?
- Porque, seu idiota, estou bem próxima de me apaixonar por você.
- Isso é tudo o que lhe peço. Porque eu a amo.
- Essas palavras são muito fáceis. Mas não no meu negócio, não no mundo em que vivo. Surge o aviso: Fulano deve morrer, o que resolverá uma porção de problemas... E o que aconteceria se tivesse de ser
você... meu amor? E você, seria capaz, se fosse eu?
- A situação pode mesmo chegar a esse ponto?
- Pode, sim. É o que se chama de omissão da terceira parte, como no que eu sei, mas eles sabem que permitirei. Você é um ser humano... maravilhoso ou desprezível, dependendo do ponto de vista... e ao entregá-lo
podemos salvar duzentas ou quatrocentas pessoas num avião, porque eles não poderiam pegá-lo de outra forma, a não ser que o entregássemos antes do voo... Meu pequeno mundo é repleto de moralidade negligenciada,
porque só lidamos com imoralidade maligna.
- E por que continuar? Por que não sair dele?
Khalehla fez uma pausa, fitando-o, os olhos inabaláveis.
- Porque salvamos vidas - respondeu finalmente. - E de tempos em tempos alguma coisa acontece que reduz o mal, mostrando-o tal qual é, e é mais um passo em favor da paz. E geralmente nós fazemos parte
desse processo.
- No entanto, você deve ter também a sua vida.
- Terei um dia, porque um dia não serei mais útil, pelo menos não onde quero estar. Serei um artigo conhecido... Primeiro a pessoa se torna suspeita, depois fica demasiado exposta e se torna inútil, e
esse é o momento em que deve cair fora. Meus superiores tentarão me convencer de que posso ser valiosa em outros postos; balançarão à minha frente a isca de uma pensão e uma escolha do setor, mas acho
que não a morderei.
- De acordo com o roteiro, o que faria?
- Falo seis línguas com fluência, leio e escrevo quatro. Tudo isso, e mais os meus antecedentes, eu diria que são qualificações amplas para diversos empregos.
- Parece razoável, exceto por uma coisa. Falta aí um ingrediente.
- Qual? Do que está falando?
- Eu... É do que estou falando.
- Ora, Evan, deixe disso.
- Não - respondeu Kendrick, sacudindo a cabeça. - Nada mais de "Deixe disso, Evan" ou "Por favor, Evan". Não é o suficiente para mim. Sei o que sinto e acho que sei o que você sente; ignorar esses sentimentos
é ao mesmo tempo uma estupidez e um desperdício.
- Já lhe disse, ainda não estou pronta...
- Nunca pensei que eu poderia algum dia estar - interrompeu Kendrick, a voz suave mas incisiva. - Também andei pensando e fui bastante rigoroso comigo mesmo. Tenho sido egoísta durante a maior parte da
minha vida. Sempre amei a liberdade que tenho de ir para onde quiser, fazer o que bem me agradar... mal ou bem, não tinha muita diferença, desde que eu fosse livre. Autossuficiente, creio que é esse o
termo. E de repente você aparece, e explode todo o meu castelo. Mostra-me o que eu não tenho e no processo me faz sentir um idiota... Não tenho ninguém com quem partilhar coisa alguma, simplesmente. Ninguém
com quem eu me importe o bastante para dizer "Escute, fiz isso" ou mesmo "Desculpe, não fiz isso"... Claro, existe Manny, quando está presente, mas ele não é imortal, apesar da sua opinião a respeito.
Você disse ontem à noite que estava apavorada... pois agora quem está apavorado sou eu, e acima de qualquer medo que já experimentei. É o medo de perdê-la. Não sou muito bom em suplicar ou rastejar, mas
suplicarei e rastejarei, farei qualquer coisa que você quiser; por favor... por favor... não me deixe.
- Oh, Santo Deus! - balbuciou Khalehla, fechando os olhos, as lágrimas escorrendo pelas faces, uma a uma, lentamente. - Seu filho da puta...
- Já é um começo.
- Eu amo você! - Ela correu para os braços de Evan. - Não deveria! Não deveria!
- Você pode mudar de ideia... daqui a uns vinte ou trinta anos.
- Arruinou minha vida...
- Você não tornou a minha mais fácil.
- Mas que lindo! - gritou uma voz sonora vindo da arcada de pedra.
- Manny! - gritou Khalehla, desvencilhando-se de Evan e olhando por cima do ombro dele.
- Há quanto tempo você está aí? - perguntou Kendrick bruscamente, virando a cabeça.
- Cheguei no ponto de suplicar e rastejar - respondeu Weingrass, que usava um roupão vermelho. - Sempre dá certo, menino. O expediente do homem forte que fica de joelhos. Nunca falha.
- Você é insuportável! - gritou Evan.
- Ele é adorável.
- Sou as duas coisas, mas falem baixo ou acordarão o covil das bruxas... O que estão fazendo aqui a esta hora?
- São oito horas em Washington - respondeu Khalehla. - Como está se sentindo?
- Assim, assim... - murmurou o velho, balançando a mão direita enquanto entrava na sala. - Dormi mas não dormi, entendem? E vocês, seus palhaços, não ajudaram, abrindo a porta a cada cinco minutos e também
devem entender isso.
- Não foi a cada cinco minutos - protestou Khalehla.
- Você tem seu relógio, eu tenho o meu... O que disse meu amigo Mitchell? É isso o que significa oito horas em Washington, se não estou enganado.
- Não, não está - concordou a agente baseada no Cairo. - Eu já ia explicar...
- E que explicação! Os violinos estavam em pleno vibrato.
- Manny!
- Cale a boca. Deixe-a falar.
- Tenho de partir... por um dia, talvez dois.
- Para onde vai? - perguntou Kendrick.
- Não posso lhe dizer... meu amor.
31
Sejam bem-vindos ao aeroporto Stapleton em Denver, senhoras e senhores. Se precisarem de informações sobre os voos de conexão, nossos funcionários terão o maior prazer em ajudá-los, dentro do terminal.
Aqui no Colorado passam cinco minutos de três horas da tarde.
Entre os passageiros que desembarcavam, derramando-se pela rampa de saída, havia cinco padres, cujas feições eram caucasianas, mas com a pele mais escura do que a maioria dos ocidentais. Mantinham-se juntos
e conversavam em voz baixa, num inglês afetado mas compreensível. Podiam ser de uma diocese do sul da Europa, da Grécia ou das ilhas do Egeu, talvez Sicília ou Egito. Podiam ser, mas não eram. Eram palestinos
e não eram padres. Do fato, eram assassinos, do ramo mais radical da jihad islâmica. Cada um deles carregava uma pequena valise preta de pano; entraram juntos no terminal e seguiram para uma banca de jornais.
- La! - exclamou baixinho um dos árabes mais jovens, enquanto pegava um jornal e verificava as manchetes. - Laish!
- Iskut! - sussurrou um companheiro mais velho, puxando o jovem e dizendo-lhe para ficar quieto. - Se quiser falar, fale em inglês.
- Não noticia nada! Eles ainda não publicaram nada! Alguma coisa parece errada!
- Sabemos que alguma coisa está errada, seu idiota - disse o líder, conhecido por todo o mundo terrorista como Ahbyahd, o nome significando "o de cabeça branca", embora os cabelos curtos fossem mais grisalhos,
e prematuramente, do que brancos. - É por isso que estamos aqui... Pegue minha valise e leve os outros para o portão número doze. Eu os encontrarei lá daqui a pouco. E não se esqueça: se alguém os detiver,
é você quem fala. Explique que os outros não falam inglês, mas não entre em pormenores.
- Eu lhes darei uma bênção cristã com o sangue de Alá derramado em suas gargantas.
- Guarde a língua e a faca para si mesmo. Nada mais de Washingtons!
Ahbyahd continuou a atravessar o terminal, olhando ao redor enquanto andava. Avistou o que procurava e encaminhou-se para uma mesa de recepção aos viajantes. Uma mulher de meia-idade fitou-o, sorrindo
amavelmente ante a sua expressão aturdida.
- Posso ajudá-lo, padre?
- Creio que este é o lugar que me disseram para procurar - respondeu o terrorista, humildemente. - Não temos acomodações tão boas na ilha de Lyndos.
- Aqui tentamos ajudar os outros.
- Talvez tenha um... um aviso para mim... novas instruções, infelizmente. O nome é Demopolis.
- Ah, sim! - A mulher abriu a gaveta superior, no lado direito da escrivaninha. - Padre Demopolis. Está um bocado longe da sua terra.
- O retiro franciscano, a oportunidade de uma vida inteira para visitar seu esplêndido país.
- Aqui está. - A mulher passou um envelope branco ao árabe. - Foi-nos entregue mais ou menos ao meio-dia, por um homem encantador que fez uma contribuição das mais generosas para o nosso serviço da ajuda
aos viajantes.
- Talvez eu possa acrescentar minha gratidão - disse Ahbyahd, sentindo o objeto pequeno e duro no centro do envelope, enquanto pegava sua carteira.
- Oh, não, não posso aceitar! Já fomos muito bem pagos por um serviço tão insignificante como guardar uma carta para um homem do clero.
- É muito gentil, madame. Que o Senhor a abençoe.
- Obrigada, padre. Eu agradeço.
Ahbyahd afastou-se, acelerando os passos, desviando-se para um canto apinhado do terminal do aeroporto. Abriu o envelope. Presa com uma fita adesiva num cartão em branco havia uma chave de um armário de
aluguel em Cortez, Colorado. As armas e explosivos tinham sido entregues de acordo com o previsto, assim como o dinheiro, roupas, um carro alugado indiretamente, passaportes alternativos de origem israelense
para nove sacerdotes maronitas e passagens de avião para Riohacha, na Colômbia, onde já haviam sido tomadas as providências necessárias para levá-los em outro avião até Baracoa, em Cuba. O ponto de encontro
para o início da viagem de volta à sua terra - o lar mas não o lar, não o Baaka! - era um motel à beira da estrada, perto do aeroporto em Cortez; um voo na manhã seguinte os levaria a Los Angeles, onde
nove homens do clero embarcariam num voo da Avianca para Riohacha. Tudo transcorrera de acordo com a programação - uma programação definida às pressas, depois que a espantosa oferta chegara ao Vale Baaka,
no Líbano: Encontrem-no. Matem-no. Restabeleçam a honra da Sua causa. Nós lhes daremos tudo que precisarem, mas nunca revelaremos nossas identidades. Contudo, aquela programação precisa, os presentes tão
generosos, haviam produzido frutos? Ahbyahd não sabia; não podia saber e fora por isso que ligara para um telefone de apoio em Vancouver, no Canadá, exigindo que suprimentos novos e letais fossem incluídos
na entrega em Cortez. Haviam passado quase 24 horas desde o ataque à casa em Fairfax, Virginia, e perto de dezoito horas da investida contra a casa do odiado inimigo no Colorado. A missão fora concebida
como um ataque simultâneo que abalaria o mundo ocidental com sangue e morte, vingando os irmãos que haviam sucumbido e provando que a segurança máxima ordenada pelo Presidente dos Estados Unidos para um
único homem não era obstáculo para a competência e empenho de um povo esbulhado. A Operação Azra exigia a vida de um proclamado herói americano, um impostor que alegara ser um deles, que partilhara pão
e pesar com eles, e ao final os traíra. Aquele homem tinha de morrer, junto com os que o cercavam e protegiam. Era preciso dar-lhes uma lição!
O mais abominável dos inimigos não fora encontrado em Fairfax; presumira-se que a unidade de Yosef o encontraria e mataria em sua casa nas montanhas do oeste. Contudo, não houvera qualquer notícia, absolutamente
nada! Os cinco do Comando Um esperaram em seus quartos de hotel adjacentes - esperaram e esperaram que o telefone tocasse e as palavras soassem: A Operação Azra foi completada. O porco odiado está morto!...
Nada. E, o mais estranho, não havia manchetes nos jornais, nem homens ou mulheres chocados e angustiados na televisão revelando mais um triunfo da causa santa. O que acontecera?
Ahbyahd repassara cada detalhe da missão e não conseguira encontrar qualquer falha. Todos os problemas concebíveis, à exceção de um, haviam sido previstos e soluções encontradas de antemão, através de
desvios da corrupção oficial em Washington ou com a tecnologia sofisticada, pelo suborno e chantagem de técnicos das companhias telefônicas na Virginia e Colorado. O único problema imprevisto e imprevisível
fora um assessor do político desprezível subitamente desconfiado, que tivera de ser morto rapidamente. Ahbyahd enviara um "padre" da sua pequena brigada, um homem que não estivera em Oman, ao gabinete
de Kendrick, no final da tarde de quarta-feira, antes do ataque a Fairfax. O objetivo era confirmar as últimas informações sobre a presença do deputado americano na capital. A cobertura do "padre" era
impecável; seus documentos - religiosos e oficiais - estavam em ordem, ele levava "cumprimentos" de numerosos "velhos amigos", pessoas ainda vivas do passado de Kendrick.
O "padre" fora surpreendido a ler a agenda na mesa de uma secretária, enquanto esperava que o assessor viesse à sala deserta. O assessor voltara apressado à outra sala; o "padre" abrira a porta sem fazer
barulho e ouvira o jovem ao telefone, chamando a Segurança do Congresso. Tinha de morrer. De maneira rápida e eficiente, levado sob a mira de uma arma para os porões do enorme Capitólio, foi logo despachado.
Contudo, nem mesmo essa morte se tornara pública.
O que acontecera? O que estaria acontecendo? Os mártires da santa missão não voltariam - não podiam voltar - ao Vale Baaka sem o troféu da vingança, que tão desesperadamente procuravam e tanto mereciam.
Seria inadmissível! Se não houvesse o encontro em Cortez, correria sangue sobre sangue num lugar chamado Mesa Verde. O terrorista guardou a chave no bolso, largou o cartão em branco e o envelope no chão
do terminal e encaminhou-se para o portão 12.
- Queridinho! - gritou Ardis Vanvlanderen entrando no living do escritório que montara para si mesma, numa suíte do Westlake Hotel, em San Diego.
- O que é, meu bem? - perguntou o marido, sentado numa poltrona de veludo diante de um aparelho de televisão.
- Seus problemas acabaram. Aqueles zilhões de milhões estão seguros pelos próximos cinco anos! Pode continuar a construir seus mísseis e não sei mais o quê, até as vacas cagarem urânio... Falo sério, amor,
suas preocupações acabaram!
- Sei disso, meu bem - respondeu Andrew Vanvlanderen, sem desviar os olhos da tela. - Verei e ouvirei a qualquer momento agora.
- Mas do que está falando?
Ela parou e ficou imóvel, olhando para o marido.
- Terão de liberar a notícia em breve. Não podem continuar a abafá-la por mais tempo... Afinal, já se passaram quase 24 horas!
- Não tenho a menor ideia do que essa sua mente confusa está tramando, mas posso lhe garantir que Emmanuel Weingrass se encontra a caminho do fim. Descobri um certo médico venal. Ele injetou...
- Weingrass já saiu de cena. E Kendrick também.
- O quê?
- Não pude esperar por você, amor... nenhum de nós podia. Haveria maneiras melhores, mais lógicas... caminhos previstos.
- Mas o que foi que você fez?
- Ofereci a um povo ressentido a oportunidade de se vingar de alguém que o sacaneou no inferno e voltou. Descobri os sobreviventes. Sabia onde procurar.
- Andy-boy - murmurou Ardis, sentando-se diante do marido, os olhos verdes e grandes dirigidos para o seu rosto distraído. - Repito: o que foi que você fez?
- Removi um obstáculo que teria enfraquecido a força militar deste país a um ponto inaceitável... Seria capaz de transformar o mais poderoso gigante do mundo livre num anão inerme. Fazer isso me custou
pessoalmente em torno de oitocentos milhões de dólares... e ao nosso grupo custou bilhões!
- Oh, Deus... Você não pôde esperar... não pôde esperar! Fez contato com os árabes.
- Senhor presidente, preciso desses poucos dias - suplicou Mitchell Payton, inclinando-se para a frente, numa cadeira de encosto reto, nos aposentos residenciais que ficavam no andar superior da Casa Branca.
Faltavam cinco minutos para as duas horas da madrugada. Langford Jennings estava sentado no canto do sofá, vestindo pijama e chambre, as pernas cruzadas, um chinelo pendendo de um pé, o olhar firme e inquisitivo
não se desviando por um momento sequer do rosto do diretor da CIA.
- Sei que ao procurá-lo diretamente violei várias centenas de restrições válidas, mas estou alarmado como nunca estive em toda a minha vida profissional. Há muitos anos um jovem disse a seu comandante
que havia um câncer crescendo na presidência. Aqui está um homem muito mais velho dizendo essencialmente a mesma coisa, só que neste caso qualquer conhecimento da doença... se existe de fato, como estou
convencido... lhe foi ocultado.
- Está aqui, doutor Payton - disse Jennings, a voz sonante sem qualquer inflexão, com um medo inequívoco. - Isso mesmo, doutor Payton, tive de aprender algumas coisas bem depressa... porque Sam Winters
deixou bem claro que se você dissesse que estava alarmado, a maioria dos outros deveria estar em choque. E pelo que você me contou, entendo o que ele quis dizer. Estou aturdido.
- Fico grato pela interferência de um velho conhecido. Tinha certeza de que ele se lembraria de mim; mas não se me levaria a sério.
- Ele o levou a sério... Está certo de que me contou tudo? Toda a podridão?
- Tudo o que sei, senhor, tudo o que conseguimos descobrir, admitindo, é claro, que não haja uma "arma fumegante".
- Esta não é uma das expressões prediletas por aqui.
- Com toda a franqueza, senhor presidente, eu não estaria aqui se pensasse que tais palavras têm alguma aplicação neste local.
- Agradeço sua sinceridade. - Jennings baixou a cabeça, piscou, depois levantou-a, franzindo o rosto, pensativo. - Tem razão, não há aplicação, mas por que tanta certeza? Meus adversários me atribuem todas
as fraudes. Não está contagiado? Porque olhando para você, e sabendo o que sei a seu respeito, não posso acreditar que seja meu partidário fervoroso.
- Não preciso concordar com tudo em que um homem acredita para julgá-lo decente.
- O que significa que sou um homem decente, mas não votaria em mim, não é mesmo?
- Outra vez, posso usar de franqueza, senhor? O voto secreto é sagrado, afinal de contas.
- Use toda a franqueza, senhor - disse o presidente, um sorriso lento insinuando-se em seus lábios.
- Não, eu não votaria no senhor - respondeu Payton, devolvendo o sorriso.
- Problema de QI?
- Claro que não! A história nos mostra que uma mente demasiado envolvida no Gabinete Oval pode ser consumida por uma infinidade de detalhes. Acima de um determinado nível, um intelecto imenso é irrelevante
e muitas vezes perigoso. Um homem cuja cabeça está estourando com fatos e suas contrapartidas, teorias e antiteorias, tende a um debate interminável consigo mesmo, longe do ponto em que as decisões são
indispensáveis... Não, senhor, não tenho qualquer problema com o seu QI, que tem sido mais do que suficiente até hoje.
- Então é a minha filosofia?
- Franqueza?
- Franqueza. Afinal, tenho de saber neste momento se votarei por você, e isso nada tem a ver com qualquer retribuição.
- Acho que compreendo - disse Payton, balançando a cabeça. - Muito bem, eu diria que sua retórica às vezes me incomoda. Parece-me que reduz algumas questões muito complicadas a... a...
- A uma coisa simplista? - sugeriu Jennings.
- O mundo de hoje é tão complexo e tumultuado quanto o próprio ato da Criação, como quer que tenha ocorrido. Basta um pequeno erro e voltamos ao ponto de partida, uma estéril bola de fogo disparada pela
galáxia. Não há mais respostas fáceis, senhor presidente... Pediu-me franqueza.
- Claro que pedi. - Jennings riu suavemente, descruzou as pernas e inclinou-se para a frente, os cotovelos apoiados nos joelhos. - Mas deixe-me dizer-lhe uma coisa, doutor. Tente expor esses problemas
complicados e tumultuosos durante uma campanha eleitoral e nunca terá condições de procurar as soluções complexas. Termina torcendo da arquibancada, não entra no time... nem mesmo participa do jogo.
- Eu gostaria de acreditar no contrário, senhor.
- Eu também, mas não posso. Já vi muitos homens eruditos e brilhantes caírem porque descreveram o mundo como o conheciam para eleitorados que não queriam ouvir.
- Está sugerindo que eram os homens errados, senhor presidente. Erudição e atração política não se excluem mutuamente. Algum dia uma nova raça de políticos enfrentará um eleitorado diferente que aceitará
as realidades, essas descrições duras a que se referiu.
- Bravo! - murmurou Jennings, recostando-se no sofá. - Acaba de descrever o motivo pelo qual eu sou quem eu sou... e faço o que faço, e o que já fiz... Todo governo, doutor Payton, desde que os primeiros
conselhos tribais elaboraram a linguagem junto às fogueiras em suas cavernas, tem sido um processo de transição, até mesmo os marxistas concordam com isso. Não há Utopia; no fundo da sua mente, Thomas
More sabia disso, porque nada é como era... na semana passada, no ano passado, no século passado. É por isso que usei a palavra "Utopia"... um lugar que não existe... Estou certo para o meu tempo, o meu
momento na mudança das coisas... e peço a Deus que seja a mudança que você imagina. Se sou a ponte que nos conduz vivos por essa travessia, irei para a sepultura muito feliz e meus críticos podem ir para
o inferno.
Silêncio.
O ex-professor Mitchell Jarvis Payton observava o homem mais poderoso do mundo com os olhos traindo algum espanto.
- É uma declaração extremamente erudita - ele murmurou.
- Não deixe que a notícia se espalhe; meu mandato desapareceria, pois precisa dessas críticas... Esqueça. Está aprovado, MJ. Voto por você.
- MJ?
- Eu lhe disse: precisei obter informações rápidas e fazer uma interpretação ainda mais rápida.
- Por que estou "aprovado", senhor presidente? É uma pergunta pessoal, além de profissional, se me permite.
- Porque não vacilou.
- Não compreendi ainda.
- Não estava falando com Lang Jennings, um fazendeiro de Iowa, cuja família ganhou algum dinheiro porque seu pai por acaso comprou 48 mil acres nas montanhas, pelos quais os especuladores imobiliários
venderam suas almas. Estava falando com o sujeito mais poderoso do mundo ocidental, o homem que poderia levar este planeta de volta à bola de fogo. Se eu estivesse no seu lugar, ficaria assustado ao me
confrontar com esse homem. Assustado e cauteloso.
- Estou tentando não ser as duas coisas, e nem mesmo sabia dos 48 mil acres.
- Provavelmente não.
- Acha que um homem relativamente pobre poderia chegar à presidência?
- Provavelmente nunca. O poder é para os ricos ou os quase falidos, que não têm nada a perder e muita influência a conquistar... Seja como for, doutor Payton, entrou aqui pela porta dos fundos com uma
pretensão absurda, pedindo-me para sancionar atividades internas secretas de uma agência que está proibida por lei de operar internamente. Além disso, e no processo, quer que eu permita a supressão de
informações extraordinárias envolvendo uma tragédia nacional, um massacre terrorista que visava liquidar um homem a quem o país muito deve. Em suma, está me pedindo para violar diversas regras vitais e
constantes do meu juramento. Estou certo até este ponto?
- Já expus meus motivos, senhor presidente. Há uma teia de circunstâncias que se espalha de Oman à California, e é tão clara que tem de ser algo mais do que uma coincidência. Esses fanáticos, esses terroristas,
matam por um propósito que prevalece sobre todas as outras motivações. Querem focalizar a atenção em si mesmos, exigem manchetes chegando ao extremo do suicídio. Nossa única esperança de apanhá-los e às
pessoas que estão por trás deles é evitar essas manchetes... Semeando o caos e a frustração, alguém pode cometer um erro no calor da ira, procurar alguém que não deveria, rompendo a corrente de sigilo...
e não pode deixar de haver uma corrente, senhor. Os assassinos chegaram aqui, o que, para começar, exigiu ligações muito poderosas. Estão circulando de um lado ao outro do país, com armas; não é um feito
simples, levando-se em consideração os nossos sistemas de segurança... Tenho uma agente do Cairo seguindo para San Diego e nosso melhor homem em Beirute a caminho do Vale Baaka. Ambos sabem o que procuram.
- Por Deus! - gritou Jennings, levantando-se num salto e começando a andar de um lado para outro, o chinelo caindo-lhe do pé. - Não posso acreditar que Orson tenha qualquer participação nessa história!
Ele não é meu companheiro predileto, mas também não é louco... e nem suicida!
- Ele pode não ter uma participação, senhor. O poder, até mesmo o poder de um vice-presidente, atrai os poderosos em potencial.
- Basta! - gritou o presidente, encaminhando-se para uma escrivaninha Queen Anne em que estavam espalhados alguns papéis. - Não, espere um momento. - Jennings virou-se. - Em suas palavras, essa teia de
circunstâncias estende-se de alguma forma da crise de Oman por todo o mundo até San Diego. Diz que tem de ser mais do que coincidência, mas isso é tudo o que pode apresentar. Não possui a famosa pistola
fumegante, apenas duas pessoas que se conheceram há anos no Oriente Médio e uma que aparece de repente onde não se podia esperar.
- A mulher em questão tem uma história de manipulações financeiras escusas por apostas muito altas. Dificilmente seria atraída por uma obscura posição política que está a anos-luz de suas compensações
normais... a menos que houvesse outras considerações.
- Andy-boy - murmurou o presidente, como se falasse para si mesmo. - O efusivo Andy... Não sabia de nada a respeito de Ardis, é claro. Pensei que ela fosse uma executiva de banco ou alguém que ele tivesse
conhecido na Inglaterra. Por que Vanvlanderen haveria de querer trabalhar para Orson, em primeiro lugar?
- No meu julgamento, senhor, é tudo parte da teia, da corrente. - Payton levantou-se. - Preciso da sua resposta, senhor presidente.
- "Senhor presidente" - repetiu Jennings, sacudindo a cabeça, como se não pudesse aceitar o título. - Fico imaginando se as palavras não ficam presas na sua garganta.
- Como, senhor?
- Sabe muito bem o que eu quis dizer, doutor. Aparece aqui à uma hora da madrugada com esse roteiro paranoico, pedindo-me para cometer violações abomináveis. Depois, quando faço algumas perguntas, me diz:
A) Não votaria em mim. B) Sou simplista. C) Na melhor das hipóteses, sou um antecessor de homens melhores. D) Não sou capaz de diferenciar entre coincidência e provas circunstanciais válidas...
- Nunca disse isso, senhor presidente.
- Insinuou.
- Pediu franqueza, senhor. Se eu achasse...
- Ora, pare com isso. - Jennings virou-se para a escrivaninha antiga com os papéis espalhados por cima. - Sabia que não existe uma única pessoa em todo o estafe de mais de mil na Casa Branca que seja capaz
de me dizer essas coisas? Isso não inclui minha esposa e filha, mas afinal elas não pertencem à equipe oficial e são mais duras do que você, diga-se de passagem.
- Se o ofendi, peço desculpas...
- Não, por favor. Eu lhe disse que foi aprovado e não gostaria de retirar a nota. Também não permitiria que qualquer outro que não fosse alguém como você me pedisse o que acaba de me pedir. Simplesmente
não confiaria... Tem o sinal verde, doutor. Vá para onde o trem o levar, quero apenas que me mantenha informado. Eu lhe darei um telefone sacrossanto, que só minha família possui.
- Preciso de uma autorização presidencial de sigilo. Já a preparei.
- Para proteger seu rabo?
- Claro que não, senhor. Eu a assinarei, assumindo plena responsabilidade pela pretensão.
- Então por quê?
- Para proteger os que estão abaixo de mim e se encontram envolvidos, mas não têm ideia do motivo. - Payton enfiou a mão no bolso do paletó e tirou uma folha de papel dobrada. - Isso deixa claro que sua
assessoria não foi consultada.
- Muito obrigado. Portanto, só nós dois ficamos no espeto.
- Não, senhor presidente. Apenas eu. A não revelação está baseada nos dispositivos da lei de 1947 no Congresso que institucionalizou a CIA. Permite a ação extraordinária da Agência em momentos de crise
nacional.
- Essa decisão precisaria ter um limite de prazo.
- E tem, senhor. É por um período de cinco dias.
- Está certo, vou assinar. - Jennings pegou o papel e inclinou-se para alcançar outro na escrivaninha Queen Anne. - E enquanto eu assino, quero que leia isto... Na verdade, não precisa ler. Como a maioria
dos impressos computadorizados, demora muito. Recebi esta tarde.
- O que é?
- A análise de uma campanha para introduzir o deputado Evan Kendrick na chapa do partido, em junho próximo. - O presidente fez uma pausa. - Como candidato à vice-presidência.
- Posso ver isso, por favor? - pediu Payton, adiantando-se, com a mão estendida.
- Achei que poderia querer. - Jennings entregou o relatório ao diretor de Projetos Especiais. - Especulei se o levaria tão a sério quanto Sam Winters levou você.
- Eu levo, senhor - respondeu Payton, já examinando rapidamente o impresso de computador, que tanto irritava os olhos.
- Se há alguma procedência nessa sua paranoia, pode encontrar uma base aí - disse o presidente, observando com atenção o seu inesperado visitante. - Meu pessoal de imprensa diz que pode levantar voo...
depressa e alto. A partir da próxima semana, sete respeitáveis jornais do Meio-Oeste farão mais do que divulgar o nome de Kendrick, praticamente vão endossá-lo em editoriais. Três desses jornais possuem
emissoras de rádio e televisão em áreas concentradas ao norte e ao sul... e por falar em coincidências, gravações dos aparecimentos do deputado na televisão foram fornecidas a todos.
- Por quem? Não consigo encontrar aqui.
- E não vai encontrar. Há apenas um comitê idiota em Denver de que ninguém jamais ouviu falar antes e seus membros de nada sabem. Tudo é passado para Chicago.
- Incrível!
- Nem tanto - discordou Jennings. - O deputado pode ser um candidato dos mais atraentes. Há alguma eletricidade em torno dele. Ele projeta confiança e força. Pode pegar... depressa e alto, como diz meu
estafe. O pessoal de Orson Bollinger, que é também meu pessoal, pode estar sofrendo um acesso coletivo.
- Não era sobre esse aspecto incrível que eu estava falando, senhor presidente. Quando deparo com uma ligação tão óbvia, até mesmo eu tenho de recuar. É muito simples, óbvio demais. Não posso acreditar
que o pessoal de Bollinger seja tão estúpido. É incriminador demais, perigoso demais.
- Está me confundindo, doutor. Pensei que ia dizer algo como "Ah, meu caro Watson, aqui está a prova". Mas não está, não é mesmo?
- Não, senhor.
- Se vou assinar este maldito documento, acho que tenho o direito de saber por quê.
- Porque é realmente óbvio demais. O pessoal de Bollinger descobre que Evan Kendrick está prestes a ser lançado em campanha nacional para substituir seu vice-presidente e por isso contrata terroristas
palestinos para matá-lo? Apenas um maníaco poderia inventar esse roteiro. Uma falha entre mil e uma medidas, um assassino capturado vivo... o que conseguimos, diga-se de passagem... e eles poderiam ser
descobertos... Serão descobertos, se o senhor assinar este papel.
- Quem é que você descobrirá então? O que vai descobrir?
- Não sei, senhor. Talvez tenhamos de começar por esse comitê em Denver. Há meses que Kendrick vem sendo manobrado para uma projeção política que jamais procurou... ao contrário, até fugia dela. Agora,
à véspera da verdadeira pressão, há o horror em Fairfax e o ataque frustrado a Mesa Verde, abortado por um velho que aparentemente não deixa a idade interferir nas suas ações. Ele matou três terroristas.
- Quero conhecê-lo, por falar nisso - interrompeu Jennings.
- Vou providenciar, mas pode se arrepender.
- Qual é a sua posição?
- Há duas facções, dois lados, nenhum dos dois é desprovido de sofisticação. Contudo, ao que parece, um dos lados pode ter cometido um erro crasso, que não faz sentido.
- Está me deixando confuso outra vez...
- Eu também estou confuso, senhor presidente... Vai assinar o documento? Vai me conceder cinco dias?
- Vou, sim, doutor Payton, mas por que tenho o pressentimento de que estou prestes a enfrentar uma guilhotina?
- Projeção errada, senhor. O público nunca permitiria que sua cabeça fosse cortada.
- O público pode estar redondamente enganado - disse o presidente dos Estados Unidos, inclinando-se sobre a escrivaninha Queen Anne e assinando o documento. - Isso também é parte da história, professor.
Os lampiões ao longo da Lake Shore Drive, em Chicago, piscavam em meio à neve caindo, criando pequenas erupções de luz no teto do quarto no Drake Hotel. Passava de duas horas da madrugada e o louro musculoso
estava adormecido em sua cama, a respiração profunda e firme, como se o autocontrole nunca o deixasse. Mas a respiração foi interrompida subitamente quando a estridente campainha do telefone começou a
tocar. Ele sentou-se na cama, estendeu as pernas para o chão por baixo das cobertas e tirou o fone do gancho.
- Alô? - disse Milos Varak, sem qualquer vestígio de sono na voz.
- Temos um problema - disse Samuel Winters de seu estúdio em Cynwid Hollow, Maryland.
- Pode falar a respeito, senhor?
- Não vejo por que não, pelo menos sumariamente e com abreviações. Meu telefone está limpo e não posso imaginar alguém grampeando o seu.
- Abreviações, por favor.
- Há cerca de sete horas aconteceu uma coisa horrível numa comunidade suburbana da Virginia...
- Uma tempestade? - indagou o tcheco.
- Se bem o compreendo, foi isso mesmo, uma terrível tempestade, com uma enorme perda.
- Icarus? - Varak quase gritou.
- Ele não estava lá. Também não se encontrava nas montanhas, onde houve uma tentativa similar, mas frustrada.
- Emmanuel Weingrass! - sussurrou o tcheco. - Ele era o alvo! Eu sabia que aconteceria!
- Não parecia, mas por que diz isso?
- Mas tarde, senhor... Saí de Evanston por volta de meia-noite e meia...
- Eu sabia que você estava fora. Comecei a ligar há horas, mas não deixei recado, é claro. Está tudo correndo de acordo com o previsto?
- Estamos até antecipados, mas não era sobre isso que eu falava. Não houve qualquer notícia no rádio sobre nenhum dos acontecimentos, o que é um tanto espantoso, não acha?
- Se as coisas continuarem como espero - respondeu Winters -, não haverá nada pelo menos por vários dias, se é que alguma coisa será divulgada mesmo depois.
- Isso é ainda mais espantoso. Como sabe, senhor?
- Porque tenho a impressão de que já providenciei isso. Um homem em que eu confio foi particularmente a Mil e Seiscentos, graças à minha interferência. Ele está lá agora. Se quiser ter alguma esperança
de pegar os responsáveis, ele precisa do blecaute.
Com um alívio enorme, Milos Varak compreendeu no mesmo instante que Samuel Winters não era o traidor em Inver Brass. Quem quer que fosse o informante, nunca prolongaria a caçada aos assassinos, se tivessem
sido enviados por San Diego. Além dessa verdade, desse alívio, o coordenador tcheco tinha alguém em quem podia confiar.
- Senhor, peço por favor que me escute com toda atenção. É imperativo... eu repito, é imperativo... que convoque uma reunião para amanhã, o mais cedo possível. Deve ser durante o dia, não à noite, senhor.
Cada hora será importante, em cada um dos fusos horários.
- É um pedido surpreendente.
- Chame de emergência. E é de fato uma emergência, senhor... E, de alguma forma, devo encontrar outra emergência. Devo forçar alguém a fazer um movimento.
- Sem especificar, não pode me dar um motivo?
- Posso, sim. A única coisa que nunca pensamos que pudesse ocorrer dentro do grupo, aconteceu. Há alguém que não deveria estar lá.
- Santo Deus!... Tem certeza?
- Tenho, sim. Há segundos eliminei-o como uma possibilidade.
Eram 4:25 da madrugada, horário da California; 7:25 no leste dos Estados Unidos. Andrew Vanvlanderen estava sentado em sua poltrona de veludo, o corpo volumoso tremendo, revoltos os ondulados cabelos brancos.
Num acesso de frenesi, jogou o copo de uísque de base espessa para o ar, contra o aparelho de televisão; bateu no armário de mogno e caiu, inofensivo, no tapete branco. Em fúria, apanhou um cinzeiro de
mármore e arremessou-o contra a tela do programa noticioso que ficava no ar 24 horas por dia. O vidro convexo espatifou-se e o aparelho implodiu, com um estampido alto, uma fumaça negra escapando das entranhas
eletrônicas. Vanvlanderen rugiu incoerente para nada e para tudo, os lábios trêmulos tentando formar palavras que não podia encontrar. A esposa veio correndo do quarto, em segundos.
- O que está fazendo? - gritou ela.
- Nada, absolutamente nada! - ele berrou, a voz truncada, o pescoço e o rosto vermelhos, as veias na garganta e na testa distendidas. - Porra nenhuma! O que aconteceu? O que está havendo? Eles não podem
fazer isso! Paguei dois milhões!
E depois, sem aviso ou a menor indicação de qualquer outra coisa que não estar dominado por um acesso de raiva, Vanvlanderen projetou-se da poltrona, as mãos tremendo violentamente, pressionando uma parede
de ar que não podia ver através dos olhos esbugalhados, e tombou para a frente, esparramando-se no chão. Enquanto o rosto se chocava contra o tapete, um grito furioso e gutural foi o último som que saiu
da sua garganta.
A quarta esposa, Ardis Wojak Montreaux Frazier-Pyke Vanvlanderen, dei vários passos à frente, o rosto branco, a pele esticada como o pergaminho de uma máscara, os olhos grandes cravados no marido morto.
- Seu filho da puta! - ela sussurrou. - Como pode me deixar, com esta confusão que nem sei bem o que é? O que é que você fez?
32
Ahbyahd reuniu seus quatro "padres" no quarto do motel que partilhava com o jovem membro da missão que falava um inglês fluente e nunca estivera em Oman. Eram 5:43 da manhã, horário do Colorado. A longa
vigília acabara. Não haveria um encontro. O Comando Dois não fizera contato, o que significava que Yosef e seus homens estavam mortos; não havia outra explicação. O calejado veterano, que era meio judeu,
mas que tinha um ódio intenso por todas as coisas ocidentais e israelenses, nunca permitiria que um único membro da sua equipe fosse capturado vivo. Por isso ele exigira que o garoto manco e de lábio leporino
permanecesse a seu lado em todas as ocasiões.
Ao primeiro sinal de uma possível captura, meto uma bala na sua cabeça, criança. Está me entendendo?
Farei isso primeiro, velho. Procuro a morte gloriosa muito mais do que a vida miserável.
Acredito em você, seu jovem tolo. Mas, por favor, lembre-se das palavras de Azra. Vivo você pode lutar, morto não pode.
O martirizado Azra estava certo, pensou Ahbyahd. Contudo, Azra não definira o supremo sacrifício procurado por todos os que acreditavam realmente. O de morrer lutando. Era por isso que a jihad se tornara
imune a armadilhas, até mesmo à morte. E o silêncio clamoroso que resultara do ataque à casa na Virginia, e a ausência de Yosef e seus homens, só podiam ser uma armadilha. Era a maneira ocidental de pensar:
Negue o feito, não reconheça coisa alguma; obrigue os caçadores a procurarem mais e leve-os a uma armadilha. Isso não tinha sentido. Se a armadilha visava liquidar o inimigo, e naquele caso a possibilidade
de exterminar um grande inimigo, que importância tinha a morte? No martírio encontrariam uma exultação de felicidade desconhecida na vida que levavam na terra. Não havia glória maior para o crente do que
caminhar nas nuvens aprazíveis do paraíso de Alá, com o sangue de seus inimigos nas mãos, derramado numa guerra justa.
Esse raciocínio confundia Ahbyahd. Os cristãos não falavam sempre em cair nos braços de Cristo pelas causas de Cristo, travando guerras em seu nome? Os judeus não exaltavam sua posição de eleitos do Deus
de Abraão, com a exclusão de todos os outros, lutando por libertação como fizeram os macabeus, morrendo por suas crenças no topo de Massada? Alá seria julgado indigno nessa companhia? Quem determinava
isso? Os cristãos e os judeus? Ahbyahd não era um estudioso, na verdade mal conhecia esses assuntos difíceis, mas eram lições ensinadas pelos mais velhos, homens que conheciam profundamente o santo Corão.
Os ensinamentos eram claros: os inimigos eram rápidos em inventar e lutar por seus agravos, mas ainda mais rápidos em negar a dor dos outros. Os cristãos e os judeus estavam livres para invocar seus Todo-poderosos
em qualquer conflito que os ameaçasse e certamente continuariam a negar a causa justa dos humildes palestinos, mas não podiam negar seu martírio. Não o fariam num lugar distante chamado Mesa Verde, a milhares
de quilômetros de Meca.
- Meus irmãos - começou o de cabeça branca, fitando os quatro homens do seu comando no pequeno e miserável quarto de motel. - Nosso momento chegou e nos aproximamos em êxtase, sabendo que um mundo melhor
se estende à nossa frente, um paraíso em que seremos livres, nem escravos nem peões dos outros como aqui na terra. Se pela graça de Alá sobrevivermos novamente à luta, levaremos de volta para nossos irmãos
e irmãs a santa morte da vingança que nos pertence por justiça. E o mundo saberá o que fizemos, saberá que cinco homens de valor penetraram e destruíram todos dentro de duas fortalezas construídas pelo
grande inimigo para nos deter... Agora devemos nos preparar. Primeiro com orações e depois com as aplicações mais práticas para a nossa causa. Dependendo do que descobrirmos, atacaremos quando eles menos
esperarem um ataque... não com a cobertura da noite, mas à luz do sol. Ao anoitecer, estaremos na hora santa de Salat el Maghreb ou nos braços de Alá.
Passava um pouco de meio-dia quando Khalehla desembarcou do avião e ingressou no terminal do aeroporto internacional de San Diego. Percebeu logo que estava sendo observada, principalmente porque o observador
não tentou disfarçar. Era um homem gordo, sem qualquer característica destacada, num terno de gabardine malfeito e amarrotado, comendo pipoca de uma caixa de papelão branco. Acenou com a cabeça uma vez,
voltou-se e começou a andar pelo corredor largo e apinhado que levava ao principal salão do terminal. Era um sinal. Num instante Rashad alcançou-o, diminuindo os passos para ficar a seu lado.
- Aposto que você não estava esperando só para me cantar - ela murmurou, sem fitá-lo.
- Se estivesse, você agora estaria de joelhos, suplicando que a levasse para casa, o que provavelmente eu teria de fazer.
- Sua modéstia é tão irresistível quanto você.
- É o que minha mulher sempre diz, só que ela acrescenta "beleza".
- O que aconteceu?
- Ligue para Langley. Tenho a impressão de que reina a maior confusão por lá, mas ligue de um daqueles telefones, não da minha casa, se é para minha casa que vamos. Esperarei lá na frente; se formamos
uma dupla, basta acenar com a cabeça e me seguir... a uma distância respeitosa, é claro.
- Acho que eu gostaria de um nome. Qualquer coisa.
- Experimente Shapoff.
- Pão-de-gengibre? - murmurou Khalehla, lançando um olhar rápido para o agente, tão bem considerado que praticamente se tornara um mito na Agência. - Berlim Oriental? Praga? Viena...
- Na verdade - interrompeu o homem no terno de gabardine amarrotado -, sou um periodontista canhoto de Cleveland.
- Acho que eu tinha uma imagem diferente de você.
- É por isso que sou "Pão-de-gengibre"... um nome estúpido. Faça sua ligação.
Rashad entrou na primeira cabine telefônica. Ansiosa e pouco familiarizada com os métodos mais modernos, apertou o botão de telefonista e, simulando um aturdido sotaque francês, pediu uma ligação a cobrar
para um número que há muito gravara na memória.
- Alô? - disse Mitchell Payton, no outro lado da linha.
- Sou eu, MJ. O que aconteceu?
- Andrew Vanvlanderen morreu esta madrugada.
- Morreu?
- Um derrame; já confirmamos isso. Havia muito álcool no seu sangue e ele estava em péssimo estado... barba por fazer, olhos injetados, recendendo a suor e a coisa pior ainda... mas foi mesmo um derrame.
- Que droga!
- Houve também um interessante conjunto de circunstâncias... sempre circunstâncias, nada definido. Ele passara horas a fio sentado diante de um aparelho de televisão e obviamente rebentou-o com um cinzeiro
de mármore.
- Triste, triste - murmurou a agente do Cairo. - O que diz a mulher?
- Entre lágrimas exageradas e súplicas de reclusão, a estoica viúva diz que ele estava deprimido por grandes prejuízos no mercado em vários investimentos. Sobre os quais, é claro, ela insiste nada saber...
o que obviamente não é verdade. Aquele casamento só podia ser consumado com base num acordo financeiro por baixo do colchão.
- Verificou a informação dela?
- Claro. A carteira do marido poderia sustentar várias pequenas nações. Dois dos seus cavalos até ganharam em Santa Anita na semana passada, e com mais alguns outros estão galopando para obter milhões
em prêmios.
- Então ela estava mentindo.
- Estava mesmo.
- Mas não necessariamente sobre a depressão.
- Vamos tentar substituir por outra palavra. Talvez raiva. Uma raiva maníaca, somada ao medo histérico.
- Alguma coisa que não aconteceu? - sugeriu Khalehla.
- Alguma coisa que não se tornou público embora tenha acontecido. Talvez sim, talvez não... Talvez, o que poderia ser o gatilho, talvez vários dos assassinos tivessem sido capturados vivos, como de fato
aconteceu com um em Mesa Verde.
- E pessoas capturadas podem ser levadas a falar muito.
- Exatamente. Tudo o que se precisa é de uma fonte que possa descrever um local, um método, um contato. Temos essa fonte, essa pessoa. Há complicações demais para se esconder tudo. Quem quer que esteja
por trás das mortes deve compreender isso, ou pelo menos desconfiar. É o que podia estar na mente de Andrew Vanvlanderen.
- Como estão as coisas com o prisioneiro?
- Ele está dominado agora ou, como dizem os médicos, está sendo tratado. É um maníaco. Tentou tudo, da autoasfixia a engolir a língua. Em consequência, tiveram de injetar tranquilizantes antes de aplicar
os soros, retardando um pouco o processo. Os médicos informam que devemos ter os primeiros relatórios dentro de uma hora, mais ou menos.
- O que faço eu agora, MJ? Não posso abordar uma viúva pesarosa...
- Ao contrário, minha cara - interrompeu Payton. - É justamente o que vai fazer. Vamos converter o caso circunstancial numa vantagem. Quando uma pessoa como a senhora Vanvlanderen aceita uma posição envolvendo
ligações estreitas com o sucessor em potencial do presidente dos Estados Unidos, as considerações pessoais se tornam secundárias... Peça muitas desculpas, é claro, mas depois cumpra o roteiro que combinamos.
- Quando se pensa bem a respeito, tendo em vista as circunstâncias, a oportunidade não poderia ser melhor - comentou Khalehla. - Sou a última pessoa que ela pode esperar, e isso a deixará abalada.
- Fico contente que concorde. Lembre-se, pode demonstrar compaixão, mas os interesses frios da segurança nacional estão em primeiro lugar.
- E o que me diz de Shapoff? Trabalhamos em dupla?
- Apenas se precisar dele. Nós o emprestamos ao serviço naval, como consultor; fico contente que ele esteja aí, mas preferia que você começasse sozinha. Prossiga de acordo com o roteiro.
- Aposto que ele não foi informado.
- Não foi mesmo. Apenas recebeu a instrução de ajudá-la em qualquer coisa que venha a pedir.
- Certo.
- Adrienne... - murmurou o diretor de Projetos Especiais. - Há mais uma coisa que você deve saber. Talvez estejamos um passo mais perto do nosso louro europeu e de tudo o que ele representa.
- Quem é ele? O que descobriu?
- Não sabemos quem ele é, mas eu diria que trabalha para pessoas que querem ver Evan na Casa Branca... ou pelo menos mais próximo de lá.
- Mas ele não aceitaria nem em mil anos! Quem são essas pessoas?
- Muito ricas e hábeis, eu diria. - Payton relatou em poucas palavras a iminente campanha nacional para lançar Kendrick como candidato à vice-presidência. - Jennings disse que seu pessoal está convencido
de que ele pode voar... "depressa e alto", foram as suas palavras. E, ao que me pareceu, não faz a menor objeção.
- Tudo certo, até a reação do presidente - comentou Khalehla, a voz suave flutuando na cabine telefônica. - Cada passo, cada movimento, tudo foi pensado e analisado. Menos uma coisa.
- Como assim?
- A reação de Evan, MJ. Ele nunca aceitaria.
- Talvez seja esse o sapato que não foi tirado.
- Teria de ser uma bota de ferro do tamanho do pé da Esfinge... Então há dois grupos, um empurrando nosso deputado herói para a chapa nacional, o outro se empenhando ao máximo para mantê-lo de fora.
- Cheguei à mesma conclusão e foi o que disse ao presidente. Vá trabalhar, agente Rashad. Ligue-me depois que estiver instalada no hotel. Posso ter notícias dos médicos a esta altura.
- Acho que eu não deveria entrar em contato com meus avós, não é mesmo? Eles moram aqui perto.
- Estou falando com uma garota de doze anos? Definitivamente não!
- Entendido.
Eram três horas na tarde de inverno, horário do Leste, as limusines estavam estacionadas no caminho da propriedade em Cynwid Hollow. Os motoristas fumavam e conversavam em voz baixa. Lá dentro, a reunião
começara.
- Esta será uma reunião breve - disse Milos Varak, dirigindo-se aos membros de Inver Brass em suas cadeiras, o clarão dos abajures iluminando os rostos no estúdio grande e na semiescuridão. - Mas a informação
era tão vital que fiz um apelo ao doutor Winters. Achei que era indispensável vocês serem informados.
- Isso é óbvio - disse Eric Sundstrom, irritado. - Deixei um laboratório inteiro à espera de instruções minhas.
- Você me tirou do tribunal, Milos - acrescentou Margaret Lowell. - Presumo que está certo, como geralmente acontece.
- Voltei de avião de Nassau - disse Gideon Logan, rindo baixinho -, mas também não estava fazendo outra coisa além de pescar, até que o maldito telefone no barco tocou. Ainda por cima, não tinha pescado
nada.
- Acho que devemos continuar - interveio Samuel Winters, a voz diferente, em parte por impaciência, em parte por mais alguma coisa, talvez raiva. - A informação é arrasadora.
Margaret Lowell olhou para o historiador de cabeça branca.
- Claro que vamos continuar, Sam. Estamos apenas recuperando o fôlego.
- Posso ter falado em pescaria - disse Gideon Logan -, mas minha mente não estava nos peixes, Samuel.
O porta-voz de Inver Brass acenou com a cabeça, forçando um sorriso em vão.
- Perdoem-me se pareço irritado. A verdade é que estou assustado e vocês também ficarão.
- Então não há nada tão importante nos meus laboratórios quanto a minha presença aqui neste momento - comentou Sundstrom, gentilmente, como se aceitasse uma censura. - Por favor, Milos, continue.
Observe cada rosto, cada par de olhos. Estude os músculos das mandíbulas, em torno dos olhos. Procure pela reação involuntária de engolir em seco, veias saltadas no pescoço. Uma dessas quatro pessoas tão
perto de mim conhece a verdade. Uma está nos traindo.
- Terroristas palestinos atacaram as casas do deputado Kendrick na Virginia e no Colorado. Houve considerável perda de vidas.
Uma espécie de pandemônio controlado irrompeu na sala extraordinária, dentro da propriedade na baía de Chesapeake. Os ocupantes recostaram-se nas cadeiras ou inclinaram-se para a frente, em choque; gritos
guturais saíram de lábios comprimidos, olhos se arregalaram em horror ou se contraíram em incredulidade, as perguntas foram lançadas contra Varak como estampidos de vários tiros de rifle.
- Kendrick foi morto?
- Quando aconteceu?
- Não ouvi nenhuma notícia a respeito!
- Alguém foi capturado vivo?
Está última pergunta, o autor no mesmo instante sendo examinado por Milos Varak, foi de Gideon Logan; seu rosto escuro tinha uma expressão de fúria... ou seria frenesi... ou medo?
- Responderei a tudo que puder - declarou o tcheco coordenador de Inver Brass -, mas devo destacar que não estou adequadamente informado. A notícia é de que Kendrick sobreviveu e se encontra sob custódia
protetora. Os ataques ocorreram ao final da tarde de ontem ou possivelmente no início da noite...
- Possivelmente? - gritou Margaret Lowell. - Ontem? Por que você não sabe... por que nós não sabemos, por que o país não sabe?
- Há um blecaute total, aparentemente solicitado pelos serviços de informações e autorizado pelo presidente.
- Obviamente visando descobrir os árabes - comentou Mandel. - Eles matam por publicidade e, se não conseguem, ficam ainda mais loucos do que já são. Pessoas loucas se destacam...
- E se estão vivos, eles têm de sair do país - acrescentou Sundstrom. - Podem sair, Varak?
- Dependeria da sofisticação de seus arranjos, senhor. De quem tornou possível que eles entrassem.
- Algum dos palestinos foi capturado vivo? - insistiu Gideon Logan.
- Só posso especular - respondeu o tcheco, os olhos neutros, mas procurando intensamente por trás dessa neutralidade. - Tive a sorte de descobrir o que consegui antes que o blecaute se tornasse total.
- Quais são as suas especulações? - indagou Sundstrom.
- Na melhor das hipóteses, há apenas de dez a quinze por cento de possibilidade de um dos atacantes ter sido capturado... vivo. A estimativa está baseada em estatísticas do Oriente Médio. É normal as equipes
terroristas levarem cápsulas de cianureto costuradas nas lapelas, lâminas e seringas escondidas em diversas partes do corpo, qualquer coisa que facilite o suicídio, a fim de não revelarem informações através
de tortura ou de drogas. Lembrem-se: exceto pela capacidade de matar os inimigos, a morte não é sacrifício para essas pessoas. É antes um ritual de passagem para uma vida posterior repleta de alegria,
algo que eles não têm em abundância por aqui.
- Então é possível que um, dois ou mais tenham sido capturados vivos - insistiu Logan, fazendo uma declaração.
- É possível, dependendo de quantos estavam envolvidos. Sempre é uma prioridade, quando se pode realizá-la.
- Por que é tão importante, Gideon? - perguntou Samuel Winters.
- Porque todos estamos a par das medidas extraordinárias para proteger Kendrick e acho que é indispensável saber como esses fanáticos ignorantes penetraram na segurança - respondeu o empresário preto,
estudando o rosto de Varak. - Tem alguma coisa a dizer sobre isso, Milos?
- Tenho, sim. Não é nada oficial, mas creio que é apenas uma questão de dias para que as unidades federais cheguem à mesma ligação.
- E que ligação é essa? - gritou Margaret Lowell, a voz muito alta e estridente.
- Presumo que todos já sabem de Andrew Vanvlanderen...
- Não sei de nada - declarou Lowell.
- O que houve com ele? - perguntou Gideon Logan.
- Deveríamos saber? - acrescentou Mandel.
- Ele morreu - disse Eric Sundstrom, recostando-se em sua cadeira.
- Aconteceu esta madrugada na California, tarde demais para os jornais do leste - explicou Winters. - A causa da morte foi indicada como ataque cardíaco. Ouvi pelo rádio.
- Eu também - acrescentou Sundstrom.
- Não escutei rádio.
Margaret Lowell.
- Eu estava num barco e depois num avião.
Gideon Logan.
- Eu estava num jogo de basquete.
Jacob Mandel, com uma insinuação de culpa.
- Não é a maior notícia do dia - continuou Sundstrom, inclinando-se para a frente. - As últimas edições do Post publicaram na página quatro ou cinco, eu acho, Vanvlanderen era pelo menos conhecido nesta
cidade. Fora daqui e de Palm Springs, não são muitas as pessoas que já ouviram seu nome.
- Qual é a ligação com os palestinos? - perguntou Logan, os olhos escuros fixados em Varak.
- O suposto ataque cardíaco é questionável, senhor.
Cada rosto em torno da mesa era como granito - duro, imóvel. Lentamente, cada um olhou para os outros, a enormidade da implicação envolvendo-os como uma onda poderosa.
- É uma declaração extraordinária, senhor Varak - disse Winters. - Quer fazer o favor de explicar, como fez para mim?
- Os homens em torno do vice-presidente Bollinger, de um modo geral os maiores contribuintes do partido, com muitos interesses a defender, estão brigando entre si. Fui informado de que há várias facções.
Uma quer substituir o vice-presidente por um candidato específico, outra quer mantê-lo e uma terceira insiste em esperar até que a paisagem política se torne mais clara.
- E daí? - entoou Jacob Mandel, tirando os óculos de aros de prata.
- A única pessoa obviamente inaceitável para todos é Evan Kendrick.
- E daí, Milos? - murmurou Margaret Lowell.
- Tudo o que fazemos acarreta um grau de risco, conselheira - respondeu Varak. - Jamais tentei atenuar isso, apesar de fazer tudo para garantir o anonimato de vocês. Mesmo assim, para lançar a campanha
do deputado Kendrick, tivemos de criar um comitê político, para através dele canalizar material e recursos consideráveis, sem que ficássemos em evidência. Levou várias semanas, e é possível que a notícia
tenha chegado a San Diego... Não é difícil imaginar a reação do pessoal de Bollinger, especialmente a facção mais propensa a seu favor. Kendrick é um autêntico herói americano, um candidato viável que
poderia ser incluído na chapa com uma onda de popularidade, como nós projetamos. Aquelas pessoas podem ter entrado em pânico e procurado soluções rápidas e finais... Entre elas estariam os Vanvlanderens;
e a senhora Vanvlanderen, chefe da assessoria do vice-presidente, tem muitos contatos na Europa e Oriente Médio.
- Santo Deus! - exclamou Sundstrom. - Está sugerindo que o vice-presidente Bollinger é responsável por esses ataques terroristas, por essas mortes?
- Não diretamente, senhor. Pode ter sido mais como os comentários do rei Henrique na corte sobre Thomas Becket. "Ninguém vai me livrar desse sacerdote turbulento?" O rei não deu nenhuma ordem, não houve
instruções, apenas fez uma pergunta incisiva, provavelmente rindo, mas seus cavaleiros não deixaram passar. E o fato neste caso é que pessoas poderosas foram fundamentais para trazer os assassinos ao país
e supri-los de tudo o que era necessário depois que chegaram aqui.
- É incrível! - disse Mandel, segurando os óculos, a voz um mero sussurro.
- Espere um pouco - interveio Gideon Logan, a cabeça grande inclinada para o lado, os olhos ainda colados no tcheco. - Também sugeriu que o ataque cardíaco de Vanvlanderen pode ter sido outra coisa. O
que leva a desconfiar dessa possibilidade e, se está certo, como se relaciona com os palestinos?
- Minhas suspeitas iniciais sobre o ataque cardíaco surgiram quando descobri que uma hora depois da chegada do corpo à capela mortuária a senhora Vanvlanderen deu ordem para a cremação imediata, alegando
que tinham um pacto mútuo para esse procedimento.
- O referido procedimento elimina qualquer possibilidade de uma autópsia. - A advogada Lowell balançou a cabeça, esclarecendo o óbvio. - Qual é a ligação palestina, Milos?
- Para começar, o momento. Um saudável esportista, sem qualquer história de hipertensão, morre subitamente, menos de 24 horas depois dos ataques às casas de Kendrick. E depois, é claro, as novas informações
que obtive sobre os amplos contatos da senhora Vanvlanderen no Oriente Médio, o que foi estimulado por nossa breve discussão sobre ela, na última reunião. São coisas que os investigadores federais vão
juntar numa questão de dias e, se forem válidas, descobrir uma causa provável para relacioná-las com os massacres.
- Mas se Vanvlanderen estava lidando com os terroristas, por que ele foi morto? - perguntou Sundstrom, atônito. - Era ele quem manipulava os cordões.
- Posso lhe responder, Eric - interveio Margaret Lowell. - A melhor maneira de tornar uma prova inacessível é destruí-la. O mensageiro é morto, não aquele que envia a mensagem. Dessa maneira, o responsável
não pode ser descoberto.
- É demais! É demais! - exclamou Jacob Mandel. - Será possível que haja tanto lixo nos mais altos escalões do nosso governo?
- Sabemos que é possível, meu amigo - respondeu Samuel Winters. - Se não fosse por isso, não estaríamos fazendo o que fazemos.
- A tragédia de tudo isso - murmurou o financista, sacudindo a cabeça em sinal de pesar. - Uma nação de tanta promessa e devastada por dentro. Eles mudarão todas as regras, todas as leis. E para quê?
- Em benefício próprio - respondeu Gideon Logan.
- O que acha que vai acontecer, Milos? - perguntou Margaret Lowell.
- Se houver alguma procedência nas minhas especulações e o blecaute esgotar seu curso, creio que será criada uma história de cobertura, omitindo completamente qualquer referência a altas autoridades do
governo fazendo contato com os terroristas. Bodes expiatórios, mortos, serão encontrados. Washington não pode permitir outra coisa; a política exterior ficaria em frangalhos.
- E Bollinger?
Sundstrom tornou a se recostar na cadeira.
- Oficialmente, se os bodes expiatórios forem bastante convincentes, ele pode sair do espeto, como se diz por aqui... Isso oficialmente, não em relação a nós.
- É uma declaração interessante, embora não muito esclarecedora, senhor Varak - disse Winters. - Importa-se de elucidar?
- Absolutamente, senhor. Embora eu deva voltar a Chicago, combinei com algumas pessoas na companhia telefônica de San Diego o fornecimento de registros de todas as ligações para a residência de Bollinger,
para seu escritório e para cada membro da sua assessoria. Vão me dar os números de origem e, às vezes, inclusive telefones públicos e suas localizações. A menos que eu esteja enganado, teremos munição
suficiente, embora apenas circunstancial, para persuadir o vice-presidente a renunciar de bom grado à reeleição.
A última limusine partiu, enquanto Samuel Winters desligava o telefone na sala de estar ornamentada e cheia de tapeçarias, e se juntava a Varak na janela da frente.
- Qual deles será? - murmurou o tcheco, olhando para o último veículo a desaparecer.
- Acho que você saberá antes do amanhecer na California. O helicóptero estará aqui dentro de poucos minutos. O jato poderá decolar de Easton às quatro e meia.
- Obrigado, senhor. Espero que não tenhamos feito tudo isso por nada.
- Fez uma apresentação convincente, Milos. Quem quer que seja, não se atreverá a telefonar. Ele ou ela terá de ir pessoalmente. Está tudo acertado no hotel?
- Está, sim. Meu motorista no aeroporto em San Diego terá as chaves da entrada de serviço e da suíte. Usarei o elevador de carga.
- Gostaria que me dissesse uma coisa - pediu o aristocrático historiador de cabeça branca. - É possível que o roteiro que nos apresentou esta tarde esteja certo? Andrew Vanvlanderen pode mesmo ter feito
contato com os palestinos?
- Não, senhor, não é possível. A esposa nunca permitiria. Ela o mataria, se ele tentasse. Esses arranjos complicados podem ser descobertos, com alguma dificuldade, é claro. Ela jamais correria o risco.
É muito profissional para isso.
A distância, sobre as águas da baía de Chesapeake, podia-se ouvir os sons de um helicóptero. Que se tornaram cada vez mais altos.
Khalehla largou a bolsa no chão, jogou as duas caixas e as três sacolas de compras na cama, empurrando as sacolas para o lado, enquanto a cabeça pousava nos travesseiros. Pedira a Shapoff para deixá-la
numa loja de departamentos, a fim de poder comprar algumas roupas, já que as suas se encontravam no Cairo, em Fairfax, num carro da polícia das Baamas ou num jato da Força Aérea dos Estados Unidos.
- Mas que tolice! - ela disse, numa imitação cansada de Scarlet O’Hara, olhando para o teto. - Eu gostaria de pensar em tudo amanhã, mas não posso!
Sentou-se na cama, estendeu a mão para o telefone do hotel e discou os números certos para entrar em contato com Payton, em Langley, Virginia.
- Alô?
- Nunca vai para casa, MJ?
- E você está em casa, minha cara?
- Não sei mais onde é minha casa, mas vou lhe revelar um segredo, tio Mitch.
- Tio...? Você deve estar querendo um pônei de presente. Qual é o segredo?
- Minha casa pode terminar sendo a de um certo amigo comum.
- Quer dizer que fez progressos?
- Não, foi ele quem fez. Até falou nos próximos vinte ou trinta anos.
- Em relação ao quê?
- Não sei. Uma casa de verdade, filhos, coisa assim, eu acho.
- Então vamos tirá-lo vivo da situação, Adrienne.
Khalehla sacudiu a cabeça, não em negativa, mas para voltar à realidade imediata.
- O "Adrienne" foi suficiente, MJ. Desculpe.
- Não se desculpe. Temos direito a nossos vislumbres de felicidade e sabe que quero tudo de bom para você.
- Mas nunca aconteceu com você, não é mesmo?
- Foi minha opção, agente Rashad.
- Entendido, companheiro... ou devo dizer senhor?
- Diga o que quiser, mas preste atenção. A primeira notícia é da clínica... sobre o prisioneiro. Ao que tudo indica, eles viajam como padres, sacerdotes maronitas com passaportes israelenses. O garoto
não sabe muito; é secundário e só lhe permitiram participar da missão por causa de Kendrick. Ficou aleijado quando esteve com o nosso deputado em Oman.
- Sei disso. Evan me contou. Estavam num caminhão da polícia, seguindo para o Jabal Sham. Para serem executados, todos pensavam.
- As coisas ficam confusas a partir desse ponto... O garoto foi informado de bem pouca coisa, o que é compreensível, já que é completamente inseguro. Pelo que nossos químicos puderam definir, no entanto,
as duas equipes deveriam fazer contato perto de um aeroporto... "Comando Um" se reunindo com o "Comando Dois", o que presumivelmente significa que a turma de Fairfax lá se encontraria com o pessoal do
Colorado.
- É muito arranjo, MJ, muita quilometragem. Eles contam com um experiente profissional de viagens trabalhando em seus itinerários.
- Experiente e oculto. Quase que se pode dizer burocraticamente obscurecido.
- Por falar nisso, estou dois andares acima da viúva desconsolada.
- O gabinete dela foi alertado. E ela foi avisada para aguardar que você chamasse.
- Então vou me aprontar e partir para o trabalho. Por falar nisso, tive de comprar algumas coisas para representar o papel, e não quero pagá-las. Digamos que não têm nada a ver comigo; são um tanto austeras.
- Pensei, considerando as anteriores associações da Sra. Vanvlanderen, que poderia apresentar-se um pouco mais chique.
- Bem, não são tão austeras assim.
- Não pensei que fossem. Ligue-me assim que terminar.
Khalehla desligou, olhou para o telefone por um momento, depois pegou a bolsa no chão. Abriu-a e tirou o papel em que anotara o telefone de Kendrick em Mesa Verde. Estava discando poucos segundos depois.
- Residência Kendrick - disse uma voz de mulher, que Khalehla reconheceu como sendo de uma das enfermeiras.
- Posso falar com o deputado, por favor? Aqui é a senhorita Adrienne, do Departamento de Estado.
- Claro, meu bem, mas terá de esperar um pouco, enquanto eu vou chamá-lo. Ele está lá fora, despedindo-se daquele jovem e simpático grego.
- Quem?
- Acho que ele é grego. Conhece uma porção de pessoas que o deputado conheceu na Arábia ou onde quer que ele tenha morado.
- Mas do que está falando?
- Do padre. É um jovem padre de...
- Tire Evan de lá! - gritou Khalehla, levantando-se. - Chame os guardas! Os outros estão lá fora! Querem matar Evan!
33
Fora tão simples, pensou Ahbyahd, observando do bosque, no outro lado da estrada, em frente à enorme casa do desprezado inimigo. Um jovem padre sincero e simpático, cujos papéis estavam em ordem e que
não carregava armas, levando saudações de amigos do grande homem. Quem podia recusar uma breve audiência àquele inocente religioso de uma terra distante, alheio às formalidade inevitáveis das visitas aos
grandes homens? A repulsa inicial fora anulada pelo próprio inimigo; o resto dependia de um crente bastante inventivo. E o final dependia de todos eles. Não falhariam.
O jovem camarada estava saindo da casa! Trocava um aperto de mão com o abominável "Amal Bahrudi", sob os olhares vigilantes dos guardas de terno e com armas automáticas. Os crentes só podiam estimar as
dimensões da guarda; havia um mínimo de doze homens, possivelmente mais lá dentro. Com o amor de Alá, a primeira investida removeria uma boa parte, matando a maioria e ferindo gravemente os restantes.
O camarada estava sendo escoltado pelo caminho circular até o automóvel, cortesmente estacionado na estrada, além da alta sebe. Só mais alguns momentos agora. E o amado Alá os contemplaria de maneira favorável!
Mais três guardas apareceram, elevando o total na frente da casa para sete. Faça o seu trabalho, irmão! Guie com precisão absoluta!
O camarada alcançou o automóvel; inclinou a cabeça polidamente, fazendo o sinal da cruz, mais uma vez trocou um aperto de mão, agora com o único guarda que o escoltara, oculto dos outros pela sebe. Depois
abriu a porta e tossiu por um instante, apoiando-se no encosto do assento, enquanto o braço direito se estendia por baixo do pano. Subitamente, com a rapidez e segurança de um verdadeiro crente, ele voltou-se
empunhando uma faca de gume duplo e cravou-a na garganta do guarda, antes que o homem do governo pudesse compreender o que estava acontecendo. O sangue esguichando, o guarda caiu; o terrorista segurou
a arma e o corpo ao mesmo tempo, arrastando o cadáver pela estrada, para os arbustos à beira do bosque. Ele olhou na direção de Ahbyahd, acenou com a cabeça e voltou correndo para o carro. Ahbyahd, por
sua vez, estalou os dedos e fez sinal para os irmãos escondidos por trás dele, entre as árvores. Os três homens se adiantaram, vestidos, como o cabeça branca, em uniformes paramilitares e empunhando submetralhadoras,
com granadas presas nas túnicas de combate.
O assassino que falava inglês, ao volante do veículo, ligou o motor, engrenou e partiu lentamente, na direção da entrada esquerda do caminho circular. E depois, abruptamente, com o motor acelerado ao máximo,
ele virou o carro para a direita e avançou pela entrada enquanto estendia a mão por baixo do painel e puxava uma alavanca. Abrindo a porta, apontou o veículo para o amplo gramado na direção dos guardas
reunidos que falavam com o deputado, depois pulou para o cascalho. Ao bater no chão, ouviu os gritos de uma mulher, através da cacofonia do motor trovejando e dos berros dos guardas. Uma das enfermeiras
saíra correndo pela porta da frente, gritando frases incoerentes; à visão do carro que avançava sem motorista, ela voltou-se e gritou de novo, desta vez para Kendrick, que se encontrava mais próximo da
entrada de pedra.
- Saia daí! - berrou ela, repetindo palavras que obviamente ouvira poucos momentos antes. - Eles querem matá-lo!
O deputado correu para a pesada porta, segurando a mulher pelo braço e empurrando-a à sua frente, enquanto os guardas abriam fogo contra o monstro de metal vazio, que arremetia sem controle, desviando-se
agora para o lado da casa, na direção das portas corrediças de vidro da varanda. Lá dentro, Evan jogou o ombro contra a portada, fechando-a. Essa ação e o painel grosso da entrada, reforçado com aço, salvaram
suas vidas.
As explosões ocorreram como trovejantes combustões sucessivas de alguma fornalha maciça, espatifando janelas e paredes, incendiando cortinas e móveis. Na frente da casa, os sete guardas da CIA caíram,
perfurados por fragmentos de vidro e metal postos a voar por quarenta quilos de dinamite presos ao chassi, sob o motor do automóvel. Quatro estavam mortos, cabeças e corpos crivados de estilhaços; dois
continuavam vivos por um fio, o sangue escorrendo dos seus olhos e peitos. Um, a mão esquerda não mais que um coto sangrento, reunira toda a sua raiva na arma em fogo automático, enquanto avançava pelo
gramado na direção do terrorista vestido de padre, que ria insanamente, a submetralhadora disparando. Os dois se mataram no frio do Colorado, sob o sol ofuscante do Colorado.
Kendrick jogou-se contra a parede de pedra no corredor, comprimindo-se contra os blocos estufados. Olhou para a enfermeira.
- Fique onde está! - ele ordenou, enquanto se aproximava do canto da sala de estar.
A fumaça turbilhonava por toda parte, tangida pela brisa que entrava pelas janelas espatifadas. Ele ouviu gritos lá fora; os guardas nos flancos da casa convergiam, profissionais cobrindo-se mutuamente,
enquanto assumiam novas posições. E depois houve quatro detonações, uma depois da outra - granadas! Foram seguidas por outras vozes, gritando em árabe:
- Morte aos nossos inimigos! Morte ao grande inimigo! O sangue será respondido com sangue!
Rajadas repetidas de armas automáticas irromperam de diferentes direções. Duas outras granadas explodiram, uma arremessada pelas janelas espatifadas diretamente para o living, demolindo a parede do outro
lado. Evan procurou a proteção da pedra, depois gritou, enquanto os escombros se assentavam:
- Manny! Manny! Onde está você? Responda!
Não houve resposta, apenas a campainha incessante do telefone, uma incongruência naquela situação. O tiroteio lá fora alcançara proporções ensurdecedoras, uma rajada após a outra, balas ricocheteando em
pedra, cravando-se em madeira, zunindo pelo ar. Manny estivera antes na varanda, a varanda envidraçada! Kendrick tinha de chegar até lá. De qualquer maneira! Correu para a fumaça e o fogo da sala de estar,
protegendo os olhos e as narinas, quando subitamente um vulto voou pelas janelas espatifadas, lançando-se contra os fragmentos de vidro. O homem rolou pelo chão e levantou-se num pulo.
- Ahbyahd! - gritou Evan, paralisado.
- Você! - rugiu o palestino, a arma levantada. - Minha vida será de glória! Glória! Amado Alá, seja louvado! Você me traz grande felicidade!
- Eu valho tudo isso para você? Tantos mortos? Tantos chacinados? Será que realmente valho isso? Seu Alá exige tanta morte?
- E você pode falar em morte? - berrou o terrorista. - Azra morto! Yaakov morto! Zaya morta por judeus que vieram dos céus sobre o Baaka! Todos os outros... centenas, milhares... mortos! E agora, Amal
Bahrudi, traidor esperto, vou levá-lo para o inferno!
- Ainda não! - disse uma voz, meio sussurrada, meio gritada, da arcada que levava à varanda.
As palavras foram acompanhadas por dois estampidos altos reverberantes que por um momento abafaram o rápido tiroteio fora da casa. Ahbyahd, o de cabeça branca, arqueou-se para trás sob o impacto da arma
potente, uma parte do crânio arrancada. Emmanuel Weingrass, o rosto e a camisa encharcados de sangue, o ombro esquerdo comprimido contra o interior da arcada, resvalou para o chão.
- Manny! - berrou Kendrick, correndo para o velho arquiteto, Ajoelhou-se e amparou a parte superior do corpo, afastando-o do chão duro. - Onde é que você foi atingido?
- Onde é que não fui? - respondeu Weingrass, a voz rouca, com dificuldade. - Veja como estão as duas garotas! Quando... tudo começou, elas foram para as janelas... Tentei impedi-las... Vá ver logo como
elas estão!
Evan olhou para os dois corpos na varanda. Mais adiante, as portas corrediças não passavam de molduras, margeadas por fragmentos pontiagudos de vidro grosso. O carro-bomba fizera seu trabalho; pouco restava
dos dois seres humanos alem de pele retalhada e sangue.
- Não há nada para ver, Manny. Sinto muito.
- E você se intitula um Deus na porra do seu paraíso? - berrou Weingrass, as lágrimas assomando-lhe aos olhos. - O que mais você quer, seu impostor?
O velho mergulhou na inconsciência. Lá fora, o tiroteio cessou. Kendrick preparou-se para o pior, tirando a Magnum 357 da mão de Manny, por um instante especulando quem o teria dado e deduzindo no mesmo
instante que só poderia ser González-González. Baixou gentilmente o corpo de Weingrass e levantou-se. Avançou cauteloso pela sala fumegante e súbito foi envolvido pelo cheiro de fumaça úmida - a água estava
jorrando dos sprinklers no teto.
Um tiro! Kendrick jogou-se no chão, os olhos disparando em todas as direções, acompanhados pela arma.
- Quatro! - gritou uma voz além das janelas espatifadas. - Conto quatro!
- Um deles entrou! - gritou outra voz. - Aproximem-se e disparem contra qualquer coisa que se mexer! Por Deus, deixemos por ora a contagem de corpos! E não quero que nenhum desses filhos da puta escape
vivo! Entendido?
- Entendido!
- O árabe está morto! - berrou Evan com a voz que lhe restava. - Mas há outro, um homem ferido! Vivo, mas gravemente ferido; é um dos nossos!
- Deputado! Está aí, senhor Kendrick?
- Estou, sim, e nunca mais quero ouvir esse título!
O telefone recomeçou a tocar. Evan levantou-se e avançou exausto para a escrivaninha de pinho chamuscada, encharcada pelos jatos dos sprinklers. Subitamente, viu a enfermeira que salvara sua vida aproximar-se
hesitante da arcada de pedra, vindo do corredor.
- Vá-se embora - ele disse. - Não quero que veja o que há por aqui.
- Eu o ouvi dizer que havia um ferido, senhor. É para isso que fui treinada.
O telefone continuava a tocar.
- Dele sim, você pode cuidar. Mas não dos outros. Não quero que veja os outros!
- Não sou criança, deputado. Enfrentei três turnos de serviço no Vietnam.
- Mas elas eram suas amigas!
- Incontáveis outros também eram - disse a enfermeira, sem alterar a voz. - É Manny?
- Sim, é ele.
O telefone continuava a tocar.
- Depois de atender, chame o doutor Lyons, por favor.
Kendrick tirou o fone do gancho.
- Alô?
- Evan, graças a Deus! Sou eu, MJ! Acabei de saber por Adrienne...
- Vá se foder - disse Kendrick, desligando e discando logo em seguida para Informações.
A princípio a sala girou, depois a trovoada distante se tornou mais forte e relâmpagos espocaram em sua mente.
- Pode repetir isso, por favor, telefonista, para que eu tenha certeza absoluta do que acabou de dizer?
- Pois não, senhor, Não há nenhum doutor Lyons registrado em Cortez ou no distrito de Mesa Verde. Na verdade, não há ninguém chamado Lyons... L-y-o-n-s... na área.
- Era esse mesmo o nome dele! Eu vi na autorização do Departamento de Estado!
- Como?
- Nada... Nada!
Evan bateu o telefone e no mesmo instante a campainha tornou a tocar.
- Alô?
- Meu querido! Você está bem?
- A porra do seu MJ estourou tudo! Não sei quantos estão mortos e Manny está cheio de furos como um porco abatido! Ele está meio morto e nem mesmo tem um médico!
- Chame Lyons.
- Lyons não existe!... Como soube o que estava acontecendo aqui?
- Falei com a enfermeira. Ela disse que um padre estava aí... Preste atenção, querido! Descobrimos há poucos minutos que eles estavam viajando disfarçados de padres! Falei com MJ e ele ficou fora de si!
Mandou metade do Colorado para Mesa Verde, todos federais que juraram manter sigilo!
- Acabei de mandar ele se foder.
- MJ não é seu inimigo, Evan.
- E quem é?
- Pelo amor de Deus, estamos tentando descobrir!
- Pois estão indo muito devagar.
- E eles são muito rápidos. O que mais posso lhe dizer?
Kendrick, os cabelos e o corpo encharcados pelos sprinklers, olhou para a enfermeira que cuidava de Weingrass. Os olhos dela estavam marejados de lágrimas, a garganta reprimindo a histeria provocada pela
visão das amigas na varanda. Evan falou suavemente ao aparelho:
- Diga que está voltando para mim. Diga que tudo isso vai acabar. Diga que não estou enlouquecendo.
- Posso lhe dizer todas essas coisas, mas você tem de acreditar nelas. Continua vivo e isso é tudo o que me importa neste momento.
- E o que me diz dos outros que não estão vivos? E Manny? Eles não contam?
- Manny disse uma coisa ontem à noite que me impressionou muito. Estávamos falando sobre os Hassans, Sabri e Kashi. Ele disse que nos lembraremos e os lamentaremos sempre... mas que isso devia ser deixado
para depois. Para alguns pode parecer frieza, mas não para mim. Ele esteve onde eu também estive, meu querido, sei de onde ele vem. Ninguém será esquecido, mas no momento devemos pensar somente no que
temos de fazer. Isso faz sentido para você... meu querido?
- Tentarei encontrar algum sentido. Quando é que você vai voltar?
- Saberei dentro de duas horas. E ligarei para você.
Evan desligou, enquanto múltiplos sons de sirenes e helicópteros se tornavam mais altos, todos convergindo para um ponto minúsculo do mundo chamado Mesa Verde, no Colorado.
- É um lindo apartamento - comentou Khalehla, passando pelo vestíbulo de mármore para a sala de estar mais baixa da suíte Vanvlanderen.
- É conveniente - respondeu a viúva recente, um lenço na mão, enquanto fechava a porta e se juntava à agente do Cairo. - O vice-presidente pode ser muito exigente, e era isto ou ter de cuidar de outra
casa quando ele está na California. Duas casas são demais... a dele e a minha. Sente-se.
- Todas as suítes são assim? - perguntou Khalehla, sentando na poltrona indicada por Ardis Vanvlanderen. Ficava na frente do sofá grande e imponente de brocado; a dona da casa era rápida em determinar
a ordem das posições.
- Não. Meu marido mandou reformar esta a nosso gosto. - A viúva levou o lenço ao rosto por um instante e depois acrescentou, enquanto arriava o corpo no sofá, com uma expressão triste: - Acho que devo
me acostumar a dizer "meu falecido marido".
- Lamento profundamente e, repetindo o que já disse, peço desculpas por aparecer num momento como este. É um absurdo e deixei isso bem claro para os meus superiores, mas eles insistiram.
- E estavam certos. Os negócios de estado devem continuar, senhorita Rashad. Eu compreendo.
- Pois eu não tenho certeza se compreendo. Esta entrevista poderia ser adiada pelo menos para amanhã cedo, na minha opinião. Mas outros pensam de maneira diferente.
- É isso que me fascina - disse Ardis, alisando a seda preta do vestido Balenciaga. - O que pode ser de importância tão vital?
- Para começar, o que falamos deve permanecer entre nós - respondeu Khalehla, cruzando as pernas e removendo uma ruga do costume cinza-escuro adquirido na Robinson’s de San Diego. - Não queremos que o
vice-presidente Bollinger fique desnecessariamente alarmado.
A agente do Cairo tirou um bloco de anotações da bolsa preta e ajeitou os cabelos escuros, penteados para trás e presos num coque austero.
- Como já a informaram, sirvo no exterior. Chamaram-me de volta para esta missão.
- Fui informada de que é uma especialista em assuntos do Oriente Médio.
- É um eufemismo para atividades terroristas. Sou meio árabe.
- Dá para perceber. É muito bonita.
- Também é muito bonita, senhora Vanvlanderen.
- Dá para o gasto, desde que eu não me lembre dos anos.
- Tenho certeza de que estamos próximas na idade.
- Não vamos pensar nisso agora... Qual é o problema? Por que era tão urgente que me falasse?
- Nosso pessoal que trabalha no Vale Baaka, no Líbano, descobriu informações surpreendentes... e alarmantes. Sabe o que é um "grupo de eliminação", senhora Vanvlanderen?
- Quem não sabe? - respondeu a viúva, estendendo a mão para um maço de cigarros na mesinha. Tirou um e empalmou um isqueiro de mármore branco. - É um grupo de homens... geralmente homens... enviado para
matar alguém. - Acendeu o cigarro; a mão direita tremia de maneira quase imperceptível. - Mas deixemos de definições. O que tem isso a ver com o vice-presidente?
- Trata-se das ameaças que foram feitas contra ele, motivo para a unidade que solicitou ao FBI.
- Isso já acabou - disse Ardis, tragando fundo. - Era apenas um maluco psicótico, provavelmente nem mesmo tinha uma arma. Mas quando aquelas cartas sórdidas e os telefonemas obscenos começaram, achei que
não podíamos correr risco. Está tudo no relatório; nós o perseguimos através de uma dúzia de cidades, até que ele embarcou num avião em Toronto. Para Cuba, ao que me consta, o que é bem merecido.
- Talvez não fosse um maluco, senhora Vanvlanderen.
- Como assim?
- Nunca o descobriram, não é mesmo?
- O FBI traçou um perfil bastante completo, senhorita Rashad. Concluiu-se que se tratava de alguém com distúrbios mentais, um caso clássico de esquizofrenia com complexo de Capitão Vingador ou qualquer
outra figura igualmente ridícula. Ele era essencialmente inofensivo. É um caso encerrado.
- Gostaríamos de reabri-lo.
- Por quê?
- A informação do Vale Baaka é que dois ou mais grupos de eliminação foram enviados para cá, provavelmente para assassinar o vice-presidente Bollinger. Seu maluco pode ter sido somente a vanguarda, voluntária
ou involuntária, mas apenas a vanguarda.
- A "vanguarda"? Afinal, do que está falando? Não consigo sequer entender a sua linguagem, exceto que parece absurda.
- Mas não é - disse Khalehla, calmamente. - Os terroristas operam no princípio de exposição máxima. Muitas vezes anunciam um objetivo, um alvo, antes da execução. Fazem isso de muitas maneiras, existem
muitas variações.
- Por que os terroristas haveriam de querer matar Orson... o vice-presidente Bollinger?
- Por que achou que as ameaças contra ele deviam ser levadas a sério?
- Porque me pareceram sérias. Eu não poderia assumir outra atitude.
- E estava certa - concordou Khalehla, observando a viúva esmagar o cigarro, pegar outro e acendê-lo. - Mas, para responder à sua pergunta: se o vice-presidente fosse assassinado haveria não apenas um
vazio na chapa política que tem a reeleição garantida, mas também uma considerável desestabilização.
- Com que propósito?
- Exposição máxima. Seria um assassinato espetacular, não é mesmo? Sobretudo porque os registros mostrariam que o FBI fora alertado e depois se retirara, enganado por uma estratégia superior.
- Estratégia? - repetiu Ardis Vanvlanderen. - Que estratégia?
- Um maluco psicótico que não era absolutamente um maluco, mas uma diversão estratégica. Desvie a atenção para um maluco inofensivo e depois feche o livro, enquanto os verdadeiros assassinos entram em
ação.
- Isso é uma loucura!
- A manobra já foi repetida muitas vezes. Na mente árabe, tudo progride geometricamente, em estágios. Um passo leva a outro, o primeiro não necessariamente relacionado com o terceiro, mas a ligação aparece,
se for procurada. Por falar em casos clássicos, essa diversão se enquadra rigorosamente.
- Não era "diversão"! Os telefonemas existiram e os números de origem foram localizados em cidades diferentes, as cartas tinham letras recortadas e coladas, com uma linguagem obscena!
- Clássico - repetiu Khalehla, enquanto escrevia.
- O que está fazendo?
- Reabrindo o livro... e registrando suas convicções. Posso lhe fazer uma pergunta?
- Claro - respondeu a viúva, a voz controlada mas tensa.
- Entre os muitos partidários do vice-presidente Bollinger... muitos amigos, eu diria... aqui na California, consegue pensar em alguém que poderia não ser qualquer das duas coisas?
- O quê?
- Não é segredo que o vice-presidente frequenta círculos ricos. Existe alguma pessoa com quem ele tenha divergência... ou mais do que uma pessoa, talvez um grupo em particular? Por questões de política
ou contratos do governo?
- Por Deus, do que está falando?
- Chegamos à última linha, senhora Vanvlanderen, ao motivo da minha presença aqui. Existem pessoas na California que prefeririam ter outro candidato na chapa? Falando francamente, outro vice-presidente?
- Não posso acreditar no que estou ouvindo! Como se atreve?
- Não sou eu quem está se atrevendo, senhora Vanvlanderen. É alguém mais. As comunicações internacionais, não importa quão encobertas, podem ser determinadas. Talvez não, no princípio, a um indivíduo ou
indivíduos específicos, mas a um setor, um local... Há uma terceira pessoa ou pessoas envolvidas nesta coisa terrível, e estão aqui, no sul da California. Nosso pessoal no Baaka descobriu que os telegramas
iniciais foram enviados através de Beirute, vindo de Zurich, Suíça... e originários de San Diego.
- San Diego...? Zurich?
- Dinheiro. Uma convergência de interesses. Uma parte quer um assassinato espetacular com exposição máxima, enquanto a outra quer o alvo espetacular removido, mas deve permanecer tão longe quanto possível
da eliminação. Os dois objetivos exigem muito dinheiro. "Siga o dinheiro" é uma máxima em nosso trabalho. É o que estamos fazendo agora. Seguindo o dinheiro.
- Seguindo?
- Será apenas uma questão de dias. Os bancos suíços são cooperativos em tudo que envolve terrorismo e drogas. E nossos agentes no Baaka estão fornecendo descrições dos grupos. Já os detivemos antes e vamos
detê-los agora. Encontraremos a conexão de San Diego. Mas pensamos que poderia ter algumas ideias.
- Ideias? - gritou a aturdida viúva, esmagando o cigarro. - Não posso sequer pensar, é tudo incrível demais! Tem certeza de que não foi cometido algum erro enorme, extraordinário?
- Não cometemos erros nesses assuntos.
- Pois eu acho que essa é uma atitude absurda - declarou Ardis, o sotaque de Monongahela predominando sobre o britânico refinado. - Afinal, senhorita Rashad, vocês não são infalíveis.
- Em alguns casos, temos de ser; não podemos deixar de ser.
- Ora, isso é burrice!... Quero dizer... se esses grupos de eliminação existem, e se há comunicações para Zurich e Beirute de... da área de San Diego, qualquer pessoa poderia fazê-las, dando o nome que
desejasse! Poderia até usar o meu nome!
- Descartaríamos prontamente qualquer coisa assim. - Khalehla respondeu à pergunta não formulada sobre o que aconteceria então, enquanto guardava o bloco de anotações na bolsa. - Seria uma armadilha muito
óbvia para ser levada a sério.
- Era o que eu estava querendo dizer, uma armadilha! Não seria possível alguém estar tentando incriminar um dos amigos de Orson?
- Com o propósito de assassinar o vice-presidente?
- Talvez o... como foi mesmo que o chamou?... o alvo seja outra pessoa. Isso não seria possível?
- Outra pessoa? - repetiu Khalehla quase estremecendo, enquanto a viúva pegava mais um cigarro.
- Isso mesmo. E enviando telegramas da área de San Diego estaria incriminando um inocente partidário de Bollinger! É perfeitamente possível, senhorita Rashad.
- É muito interessante, senhora Vanvlanderen. Transmitirei suas ideias a meus superiores. Teremos de considerar a possibilidade. Uma omissão dupla, com uma falsa inserção.
- Como?
A voz rouca da viúva saía diretamente dos saloons há muito desaparecidos de Pittsburgh.
- Jargão profissional - disse Khalehla, levantando-se. - Significa apenas disfarçar o alvo, omitir a fonte e fornecer uma falsa identidade.
- Vocês falam de uma maneira muito engraçada.
- Serve a um propósito... Manteremos contato permanente com a senhora e acompanharemos a agenda do vice-presidente. Nosso pessoal, uma equipe de especialistas em contra terrorismo, complementará discretamente
as forças de segurança do senhor Bollinger em cada local.
- Ahn... está certo.
A senhora Vanvlanderen, o cigarro na mão, o lenço esquecido no sofá de brocado, acompanhou Rashad da sala de estar até a porta da suíte.
- Sobre aquela teoria da omissão dupla e inserção... - acrescentou a agente do Cairo, no vestíbulo de mármore. - É muito interessante e vamos usá-la para pressionar os bancos suíços a uma ação rápida,
mas não creio que contenha água.
- Como?
- Todas as contas numeradas suíças têm códigos lacrados... e por isso são invioláveis... levando a pontos de origem. São muitas vezes autênticos labirintos, mas é possível traçá-los. Até mesmo o mais ganancioso
chefão da Máfia ou mercador de armas saudita sabe que é mortal. Não vai deixar milhões para os gnomos de Zurich... Boa noite e, mais uma vez, minhas profundas condolências.
Khalehla parou à porta fechada da suíte Vanvlanderen. Pôde ouvir um abafado grito de pânico, acompanhado por palavrões. A solitária ocupante do apartamento reformado estava perdendo o controle. O roteiro
dera certo. MJ tinha razão. As circunstâncias negativas da morte de Andrew Vanvlanderen haviam sido invertidas. O que fora antes uma desvantagem tornava-se um trunfo agora. A viúva do grande contribuinte
começava a desmoronar.
Milos Varak estava numa entrada de loja às escuras, trinta metros à esquerda do Westlake Hotel, a dez metros da esquina em que se localizava a entrada de serviço, na rua transversal. Eram 7:35 da noite,
horário da California; ele pesquisara todos os voos comerciais através do país, procedentes de Washington, Maryland e Virginia. A equipe de limpeza da gerência - uma gerência genuinamente preocupada com
o pesar da desconsolada viúva - incluía uma nova empregada, experiente e instruída pelo tcheco. Microfones espiões haviam sido instalados em todos os cômodos; não haveria nenhuma conversa que não fosse
gravada pelos equipamentos de Varak na suíte vizinha, acionados pelo som da voz.
Táxis paravam diante do hotel, numa média de um a cada três minutos, Milos estudava cada pessoa que partia. Observara de vinte a trinta, perdendo a contagem, mas não a concentração. E de repente teve consciência
de algo fora do comum: um carro parou à sua esquerda, no outro lado da rua transversal, pelo menos a trinta metros de distância. Um homem saltou e Varak recuou ainda mais para o recesso escuro da loja.
"Ouvi pelo rádio."
"Eu também."
"Aquela mulher é uma cadela!"
"Se eles estão vivos, têm de sair do país. Podem sair...?"
"Quais são as suas conclusões?"
"Não é a maior notícia do dia."
"E Bollinger?"
O homem de sobretudo, a lapela erguida cobrindo o rosto, atravessou apressado a rua, a caminho da entrada do hotel. Passou a três metros do coordenador de Inver Brass. O traidor, Eric Sundstrom, estava
em pânico.
34
Ardis Vanvlanderen soltou um grito sufocado.
- Santo Deus, o que está fazendo aqui? - Literalmente, ela puxou o rotundo Sundstrom para dentro e bateu a porta. - Perdeu o juízo?
- O meu continua no lugar, mas o seu deve estar longe... Que tremenda estupidez! O que é que você e o idiota do seu marido pensam que estão fazendo?
- Está falando dos árabes? Dos grupos de eliminação?
- Exatamente! Imbecis...
- É tudo um absurdo! - berrou a viúva. - Uma horrível confusão! Por que nós... por que Andy haveria de querer que Bollinger fosse morto?
- Bollinger...? É Kendrick, sua idiota! Terroristas palestinos atacaram as casas dele na Virginia e no Colorado. Há um blecaute sobre as notícias e muitas pessoas foram mortas... mas não o garoto de ouro.
- Kendrick? - balbuciou Ardis, o pânico nos olhos verdes. - Oh, meu Deus... e eles pensam que os assassinos estão vindo para cá com a intenção de matar Bollinger! Entenderam tudo errado!
- Eles? - Sundstrom estava paralisado, o rosto pálido. - Do que está falando?
- É melhor sentarmos.
A senhora Vanvlanderen deixou o vestíbulo e desceu para o living, onde estavam o sofá e seus cigarros. O pálido cientista seguiu-a, mas desviou-se para um bar onde havia garrafas, copos e um balde de gelo.
Sem olhar para os rótulos, apanhou uma garrafa ao acaso e serviu-se de um drinque.
- Quem são eles? - perguntou Sundstrom, suave mas veemente, observando Ardis acender um cigarro sentada no sofá.
- Ela saiu há cerca de uma hora e meia...
- Ela? Quem?
- Uma mulher chamada Rashad, especialista em contraterrorismo. Está com uma unidade conjunta da CIA e do Departamento de Estado. Ela não falou em Kendrick!
- Oh, não, eles tiraram suas conclusões! Varak disse que acabariam descobrindo e foi o que aconteceu!
- Quem é Varak?
- Nós o chamamos de nosso coordenador. Ele disse que descobririam sobre os seus interesses no Oriente Médio.
- Meus o quê? - gritou a viúva, o rosto contorcido, a boca escancarada.
- Aquela companhia Off Shore...
- Off Shore Investments - completou Ardis, outra vez perplexa. - Foram oito meses de minha vida, mas não passou disso!
- E como você tem contatos por toda a região...
- Não tenho nenhum contato! - bradou a senhora Vanvlanderen. - Saí de lá há mais de dez anos e nunca voltei! Os únicos árabes que conheço são uns poucos milionários que encontrei em Londres e Divonne.
- Na cama ou nas mesas?
- As duas coisas, se quer mesmo saber, grande amante!... Por que eles pensariam isso?
- Porque você lhes deu um bom motivo para começarem a procurar quando mandou cremar aquele filho da puta esta manhã!
- Andy?
- Havia mais alguém por aqui que também caiu morto de repente? Ou talvez tenha sido envenenado? Para encobrir tudo!
- Mas do que está falando, afinal?
- O corpo do seu quarto ou quinto marido, é disso que estou falando. Mal chega à capela mortuária e você dá ordem por telefone para a cremação imediata. Pensa que isso não vai levar as pessoas a especularem...
pessoas que são pagas para investigarem coisas assim? Não há autópsia, apenas cinzas espalhadas por algum lugar do Pacífico.
- Nunca dei esse telefonema! - protestou Ardis, levantando-se de chofre do sofá. - Nunca dei essa ordem!
- Deu, sim! - berrou Sundstrom. - Disse que você e Andy tinham um pacto.
- Não disse e não tínhamos nenhum pacto!
- Varak não nos fornece informações erradas - declarou firmemente o perito em tecnologia de ponta.
- Então alguém mentiu para ele. - A viúva baixou a voz abruptamente. - Ou ele estava mentindo.
- Por que faria isso? Ele nunca mentiu antes.
- Não sei - respondeu Ardis, sentando-se e esmagando o cigarro. Levantou os olhos para o traidor de Inver Brass. - Eric, por que você veio até aqui me dizer isso? Por que não se limitou a telefonar? Tem
os nossos números particulares.
- Varak outra vez. Ninguém sabe realmente como ele conseguiu fazer o que faz... apesar disso, ele faz. Está em Chicago, mas tomou providências para ser informado sobre os números dos telefones de cada
ligação para o escritório e residência de Bollinger, assim como o escritório e residência de cada membro de sua assessoria. Nessas condições, eu não podia telefonar.
- No seu caso, poderia ser difícil explicar àquele conselho de lunáticos senis a que pertence. E os únicos telefonemas que recebi foram do escritório e de amigos, apresentando condolências. E da mulher
Rashad. Tenho certeza de que nenhum deles interessaria ao senhor Varak ou à sua benevolente sociedade de ricos desajustados.
- A mulher Rashad. Disse que ela não mencionou os ataques às casas de Kendrick. Presumindo que Varak está enganado e as unidades de investigação não juntaram certos fatos e chegaram a você e talvez uns
poucos outros por aqui, por que ela não disse nada? Devia saber!
Ardis Vanvlanderen pegou outro cigarro, os olhos traindo agora um desamparo inesperado.
- Pode haver vários motivos - ela disse, sem muita convicção, aproximando a chama do isqueiro. - Para começar, o vice-presidente é muitas vezes ignorado quando há autorizações para blecautes de segurança...
Truman nunca tinha ouvido falar do Projeto Manhattan. E há também o problema de evitar o pânico, se esses ataques ocorreram... e ainda não estou disposta a admitir que ocorreram. Seu Varak foi apanhado
numa mentira; é capaz de outra. Seja como for, se toda a extensão dos danos na Virginia e Colorado forem conhecidos, podemos perder o controle do pessoal. Ninguém gosta de pensar que pode ser morto por
terroristas suicidas... Finalmente, volto aos ataques propriamente ditos. Não acredito que tenham ocorrido.
Sundstrom estava imóvel, segurando o copo com as duas mãos, enquanto fitava sua antiga amante.
- Ele o fez, não é mesmo, Ardis? - murmurou Sundstrom. - Aquele megalomaníaco financeiro não podia suportar a possibilidade de um pequeno grupo de "desajustados benevolentes" substituir seu homem por outro
que poderia cortar o seu acesso a milhões e provavelmente o faria.
A viúva arriou no sofá, o longo pescoço arqueado, os olhos cerrados.
- Oitocentos milhões - ela murmurou. - Foi o que Andy disse. Oitocentos milhões só para ele, bilhões para o resto de vocês.
- Ele nunca lhe contou o que estava fazendo... o que já fizera?
- Por Deus, claro que não! Eu meteria uma bala na cabeça dele e chamaria um de vocês para jogá-lo no México.
- Acredito em você.
- Os outros também acreditarão?
Ardis empertigou-se no sofá, com uma expressão suplicante.
- Acho que sim. Eles a conhecem.
- Juro para você, Eric, eu não sabia de nada!
- Já disse que acredito.
- A mulher Rashad me disse que eles estavam investigando o dinheiro que Andy mandou através de Zurich. Podem fazer isso?
- Se eu conhecia mesmo Andrew, levariam meses nisso. Suas fontes codificadas iam da África do Sul ao Báltico. Meses, talvez um ano.
- Os outros saberão disso?
- Veremos o que dizem.
- Como?... Eric!
- Liguei para Grinell do aeroporto em Baltimore. Ele não faz parte do grupo de Bollinger e Deus sabe que se mantém em segundo plano... mas se temos um presidente do conselho, todos concordam que é ele.
- O que está me dizendo, Eric?
- Grinell estará aqui dentro de poucos minutos. Concordamos em ter uma conversa. Eu queria algum tempo a sós com você, mas ele já deve estar chegando.
Sundstrom olhou para o relógio.
- Você está com aquele olhar vidrado, amor - disse Ardis, levantando-se lentamente.
- É verdade - concordou o cientista. - O olhar de que você sempre ria quando eu não podia... desempenhar, digamos assim.
- Sua mente estava comumente ligada em outras coisas. É um homem brilhante.
- Sei disso. Você comentou uma ocasião que sempre sabia quando eu estava resolvendo um problema. Ficava broxa.
- Eu amava sua mente. E ainda amo.
- Como podia? Se você não tem uma, então não podia saber.
- Eric, Grinell me assusta.
- Não assusta a mim. Ele tem uma mente.
Nesse instante tocou o carrilhão na porta da frente da suíte Vanvlanderen.
Kendrick estava sentado numa pequena cadeira de lona ao lado da maca, na cabine do jato que os levava para Denver. Emmanuel Weingrass, a hemorragia dos ferimentos estancada pela enfermeira sobrevivente
em Mesa Verde, não parava de piscar os olhos escuros, agora parecendo ainda mais escuros por causa da carne branca que os cercava.
- Estive pensando - disse Manny com dificuldade, meio tossindo as palavras.
- Não fale - interrompeu Evan. - Poupe suas forças. Por favor.
- Ora, deixe disso - respondeu o velho. - O que me restava? Mais vinte anos sem fazer nada?
- Quer parar?
- Não, não vou parar. Não vejo você há cinco anos, tornamos a nos encontrar, e o que acontece? Fica afeiçoado... a mim! O que é você, um feygele[10] com atração por velhos?... Não responda a isso, Khalehla
fará tudo por você. Os dois devem ter se machucado ontem à noite.
- Por que nunca fala como uma pessoa normal?
- Porque a normalidade me aborrece, assim como você está começando a me aborrecer... Não sabe ainda o que é toda essa merda que está acontecendo? Criei um palerma? Não pode imaginar?
- Não, não posso imaginar, está bem?
- Aquela bela garota estava por dentro. Alguém quer torná-lo muito importante neste país e outro alguém está com dor de barriga ante a perspectiva. Não pode perceber isso?
- Estou começando a perceber e torço para que os outros caras ganhem. Não quero ser importante.
- Talvez devesse ser. Talvez mereça o lugar.
- Quem acha isso? Quem tem essa ideia?
- As pessoas que não o querem... pense nisso. Khalehla nos disse que aqueles maníacos miseráveis que vieram aqui para matá-lo não embarcaram tranquilamente num avião em Paris nem chegaram num navio de
cruzeiro. Tiveram ajuda, e ajuda influente. Como foi mesmo que ela disse?... Passaportes, armas, dinheiro... até mesmo carteiras de motorista, roupas e esconderijos. Tais coisas, especialmente os documentos,
não estão à venda na Walgreen’s. Exigem contato com o poder nos altos escalões e as pessoas que podem puxar esses cordões são os filhos da puta que querem você morto... Por quê? O honesto deputado representa
uma ameaça para eles?
- Como posso ser uma ameaça? Estou caindo fora.
- Eles não sabem disso. Tudo o que veem é um político maluco que diz o que pensa, e quando abre a boca todo mundo em Washington se cala e ouve.
- Não falo muito, e por isso a escuta é mínima, praticamente nula.
- O fato é que eles se calam quando você fala. Possui o que chamo de credenciais de escuta. Como eu, fala francamente.
Weingrass tossiu, levando uma mão trêmula à boca. Evan inclinou-se sobre ele, preocupado.
- Calma, Manny.
- Cale-se - ordenou o velho. - Escute o que tenho a dizer... Aqueles filhos da puta veem um autêntico herói americano, que recebeu uma grande medalha do presidente e foi incluído em importantes comitês
no Congresso...
- Os comitês aconteceram antes da medalha...
- Não me interrompa. Depois de alguns meses, a sequência das coisas fica meio indistinta... Além do mais, você só a tornou ainda mais forte. Esse herói desanca os figurões do Pentágono na televisão nacional
antes de ser um herói e quase indicia todo o bando, assim como aqueles grandes complexos industriais que alimentam a máquina. O que é que ele faz, então? Exige responsabilidade. Uma palavra terrível, "responsabilidade"...
todos os filhos da puta a odeiam. Tinham que começar a suar, garoto. E começam a pensar que aquele sarcástico herói talvez se torne mais poderoso, talvez acabe presidindo um daqueles comitês, talvez seja
até eleito para o Senado, onde poderia causar danos maiores.
- Está exagerando.
- Sua namorada não estava! - reagiu Weingrass, elevando a voz e fitando Kendrick nos olhos. - Ela nos disse que seu grupo de elite talvez tenha descoberto um centro nervoso nos altos escalões do governo,
muito mais altos do que gostariam de pensar... Isso tudo não lhe mostra uma planta definida, embora eu reconheça que você nunca foi o melhor cara para ler uma planta?
- Claro que sim - respondeu Evan, acenando com a cabeça. - Não há nação no mundo que não tenha seus corruptos, e duvido que jamais venha a haver.
- Corrupção? - repetiu Manny, revirando os olhos, como se a palavra fosse parte de um canto talmúdico. - Como um cara roubando clipes do escritório no valor de um dólar e outro aceitando um milhão para
concordar com um sobrepreço... é disso que você está falando?
- Basicamente, sim. Ou dez milhões, se quiser.
- Ninharia insignificante! - gritou Weingrass. - Essas pessoas não negociam com terroristas palestinos a milhares de quilômetros de distância com o propósito exclusivo de se livrarem de um aperto. Nem
saberiam como! Além disso, você não observou os olhos daquela linda garota ou talvez não saiba o que procurar. Nunca esteve lá.
- Ela diz que sabe de onde você veio porque já esteve lá. Muito bem, eu não estive. Quer me explicar isso?
- Estar lá é ficar apavorado - disse o velho. - Você se encaminha para uma cortina preta que vai abrir. Está excitado; a curiosidade o domina e também o medo. Todas essas coisas. Esforça-se para reprimi-las,
até para escondê-las de si mesmo, é parte da coisa porque não pode perder um grama de controle. Mas está tudo lá. Porque depois que a cortina for aberta, você sabe que estará vendo uma coisa tão doida
que se pergunta se alguém poderia acreditar.
- Viu tudo isso nos olhos dela?
- O bastante.
- E então?
- Ela está se aproximando da beira, garoto.
- Por quê?
- Porque não estamos lidando... ela não está lidando... com uma simples corrupção, nem mesmo uma tremenda corrupção. O que há por trás dessa cortina preta é um governo dentro de um governo, um bando de
servos controlando a casa do amo.
O velho arquiteto entrou subitamente numa crise de tosse, o corpo inteiro tremendo, os olhos fechados. Kendrick segurou-lhe os braços; a convulsão passou em poucos momentos e Manny tornou a piscar, respirando
fundo.
- Preste atenção, meu filho estúpido - ele murmurou. - Ajude-a, ajude-a de verdade... e ajude Payton. Encontre os filhos da puta e acabe com eles!
- Claro que o farei, e você sabe disso.
- Eu os odeio! Aquele garoto tomando os produtos químicos, aquele Ahbyahd que você conheceu em Mascate... poderíamos ser amigos, em outro tempo. Mas esse tempo não vai chegar enquanto houver filhos da
puta que nos jogam uns contra os outros, porque ganham bilhões com o ódio.
- Não é tão simples, Manny...
- É uma parcela muito maior do que você imagina! Já fui testemunha!... "Eles têm mais do que vocês, por isso venderemos a vocês mais do que eles têm"... esse é um dos engodos. Ou então: "Eles matarão vocês,
a menos que os matem primeiro, por isso aqui está o poder de fogo... por um preço." E a coisa vai numa escalada: "Eles gastaram vinte milhões num míssil, nós gastaremos quarenta milhões!" Queremos mesmo
explodir a porra do planeta? Ou todos ficarão dando ouvidos aos lunáticos que dão ouvidos aos homens que vendem o ódio e negociam o medo?
- Nesse nível, é mesmo muito simples - comentou Evan, sorrindo. - Posso até já ter mencionado isso.
- Continue a mencionar, garoto. Não se afaste daquele palanque de que falamos... principalmente no que se relaciona com um certo Herbert Dennison, de quem também já falamos, e que você deixou se cagando.
Não se esqueça: tem credenciais de escuta, como eu. Use-as.
- Terei de pensar a respeito, Manny.
- Enquanto pensa - tossiu Weingrass, a mão direita no peito -, por que não aproveita e pensa também no motivo pelo qual tinha de me mentir? Você e aqueles médicos.
- Como assim?
- Está de volta, Evan. Está de volta e pior, porque nunca se afastou.
- O que está de volta?
- "O grande C", acho que é a expressão gentil. O câncer tornou-se furioso.
- Não tem mais nada, Manny. Nós o submetemos a uma dúzia de testes meticulosos. Eles o tiraram... você está limpo.
- Diga isso às células que estão me tirando o ar.
- Não sou médico, Manny, mas não creio que seja um sintoma. Durante as últimas 36 horas você travou duas guerras. É de admirar que ainda consiga respirar um pouco.
- Tem razão. Mas enquanto estiverem me emendando no hospital, mande os médicos fazerem um daqueles pequenos exames e não minta para mim. Há algumas pessoas em Paris de quem tenho de cuidar, algumas coisas
que guardei e preciso resolver. Não minta para mim, está bem?
- Não mentirei - prometeu Kendrick, enquanto o avião iniciava a descida em Denver.
Crayton Grinell era um homem esguio, de estatura mediana e um rosto perpetuamente pálido que as feições proeminentes tornavam proeminente. Quando cumprimentava alguém, pela primeira ou centésima vez, quer
fosse um garçom ou o presidente do conselho de uma grande corporação, o advogado de 48 anos, especializado em direito internacional, exibia um sorriso tímido que irradiava simpatia. A simpatia e a modéstia
eram a realidade aceita até que se fitava os olhos de Grinell. Não que fossem frios, pois não eram; mas também não eram particularmente amigáveis e sim inexpressivos, neutros, os olhos de um gato cautelosamente
curioso.
- Ardis, minha cara Ardis - disse o advogado, entrando no vestíbulo e abraçando a viúva, afagando gentilmente seu ombro, como alguém a consolar uma tia vagamente antipática que perdera um marido muito
mais simpático. - O que posso dizer? O que pode alguém dizer? Uma grande perda para todos nós, mas muito mais para você.
- Foi súbito, Cray. Súbito demais.
- Claro que foi, mas todos devemos procurar algo positivo em nossos pesares, não é mesmo? Você e ele foram poupados de uma doença prolongada e consuntiva. Como o fim é inevitável, é melhor que seja rápido,
não acha?
- Creio que tem razão. Obrigado por me lembrar.
- De nada.
Desvencilhando-se, Grinell olhou para Sundstrom, que estava parado no living em nível mais baixo.
- Eric, é bom tornar a vê-lo - ele disse solenemente, atravessando o vestíbulo e descendo os degraus de mármore para apertar a mão do cientista. - De certa forma, nada mais adequado do que estarmos com
Ardis num momento como este. De passagem, meus homens estão lá fora, no corredor.
- Uma grande filha da puta! - murmurou Sundstrom, enquanto a senhora Vanvlanderen fechava a porta, o som de seus saltos no mármore encobrindo as palavras do ex-amante.
- Aceita um drinque, Cray?
- Não, obrigado.
- Acho que eu vou querer - disse Ardis, encaminhando-se para o bar.
- Creio que deve mesmo - concordou o advogado. - Há alguma coisa que eu possa fazer? No aspecto legal ou outros arranjos?
- Imagino que vai cuidar de tudo... isto é, do aspecto legal. Andy-boy tinha advogado por toda parte, mas acho que você era o principal.
- Era, sim, e todos estivemos em contato durante o dia inteiro. Nova York, Washington, Londres, Paris, Marselha, Oslo, Estocolmo, Berna, Zurich, Berlim Ocidental... estou tratando de tudo pessoalmente,
é claro.
A viúva ficou imóvel, uma garrafa de cristal a meio caminho do copo, olhando fixamente para Grinell.
- Quando falei "por toda parte", não pensei que fosse tanto assim.
- Ele tinha muitos interesses.
- Zurich...? - murmurou Ardis, como se o nome da cidade lhe escapasse involuntariamente.
- Fica na Suíça! - interveio Sundstrom, asperamente. - E vamos deixar de tolices!
- Eric, por favor...
- Nada de "Eric, por favor", Cray. Aquele idiota fez o que não devia. Contratou os palestinos e pagou-os de Zurich... Lembra de Zurich, queridinha!... Eu lhe disse em Baltimore, Cray. Foi ele!
- Não consegui obter uma confirmação dos ataques em Fairfax e Colorado - comentou Grinell calmamente.
- Porque nunca aconteceram! - gritou a viúva, a mão direita tremendo, enquanto se servia de um drinque do pesado decantador de cristal.
- Eu não disse isso, Ardis - protestou o advogado placidamente. - Disse apenas que não pude obter uma confirmação. Contudo, recebi um telefonema mais tarde, sem dúvida dado por um bêbado bem pago a quem
entregaram o fone depois do número discado, eliminando assim a identidade da fonte. As palavras que ele obviamente repetiu são bastante familiares. "Eles estão seguindo o dinheiro", disse o homem.
- Oh, Deus! - esclamou a senhora Vanvlanderen.
- Portanto, temos agora duas crises - continuou Grinell, encaminhando-se para um telefone branco numa mesinha de mármore com veios vermelhos encostada numa parede. - Nosso fraco e ativo secretário de Estado
está a caminho de Chipre para assinar um acordo que pode abalar a indústria da defesa, e um dos nossos está ligado a terroristas palestinos... De certo modo, eu gostaria de saber como Andrew agiu. Podemos
ser ainda mais desajeitados.
Ele discou, enquanto a viúva e o cientista observavam.
- A passagem de Plano Seis para Plano Doze, Mediterrâneo, está confirmada - disse Grinell ao telefone. - E preparem a unidade médica, por favor.
35
Varak dobrou a esquina correndo, passou pela entrada de serviço e tomou o elevador de carga para o seu andar. Seguiu rápido para a suíte, abriu a porta e adiantou-se para o sofisticado equipamento de gravação
encostado na parede. Ficou um pouco surpreso ao constatar que boa parte da fita já fora rodada. Atribuiu isso a diversos telefonemas recebidos por Ardis Vanvlanderen. Levantou a alavanca que permitia a
transmissão dupla, fita e áudio direto, pôs os fones nos ouvidos e sentou-se para escutar.
Ela saiu há cerca de uma hora e meia.
Ela? Quem?
Uma mulher chamada Rashad, especialista em contraterrorismo. Está com uma unidade conjunta...
O tcheco olhou para o rolo de fita. Havia pelo menos 25 minutos de conversa gravada! O que a antiga agente de operações do Cairo estaria procurando em San Diego? Não fazia sentido para Milos. Ela se demitira
da Agência; Milos confirmara a informação. O aviso discreto mas oficial do Cairo e de Washington fora o de que ela se tornara "exposta". Ele presumira que era por causa da operação de Oman e aceitara sem
questionar a sua saída de cena. Ela tinha mesmo de desaparecer... Mas não desaparecera! Milos concentrou-se na escuta da conversa que ocorria na suíte Vanvlanderen. Sundstrom estava falando.
Ele o fez, não é mesmo, Ardis? Aquele megalomaníaco financeiro não podia suportar a possibilidade de um pequeno grupo de "desajustados benevolentes" substituir seu homem por outro que poderia cortar seu
acesso a milhões e provavelmente o faria.
Ardis Vanvlanderen:
Oitocentos milhões. Foi o que Andy disse. Oitocentos milhões só para ele, bilhões para o resto de vocês... Eu não sabia de nada!
Varak estava atordoado. Cometera dois tremendos erros! O primeiro fora sobre as atividades secretas de Adrienne Khalehla Rashad; por mais difícil que lhe fosse admitir aceitar esse erro, ainda podia fazê-lo,
pois se tratava de uma hábil agente. O segundo é que não podia aceitar! O roteiro falso que apresentara a Inver Brass era verdadeiro! Nunca lhe ocorrera que Andrew Vanvlanderen pudesse agir independente
da esposa. Como seria possível? O deles era um casamento tipo La Rochefoucauld, de conveniência, para benefício mútuo, certamente não de afeição, jamais de amor. Andy-boy violara as regras. Um touro no
cio financeiro arrombara os portões do seu curral e correra para o matadouro. Varak escutou.
Outra voz, outro nome. Um homem chamado Crayton Grinell. A fita rolava, enquanto o tcheco se concentrava nas palavras que eram pronunciadas. Finalmente:
Portanto, temos agora duas crises. Nosso fraco e ativo secretário de Estado está a caminho de Chipre para assinar um acordo que pode abalar a indústria da defesa... A passagem de Plano Seis para Plano
Doze... está confirmada.
Varak tirou os fones dos ouvidos. O que restasse para ouvir na suíte Vanvlanderen seria gravado. Tinha de agir depressa. Levantou-se e correu para o telefone no outro lado da sala. Pegou-o e apertou os
números para Cynwid Hollow, Maryland.
- Alô?
- Sou eu, senhor, Varak.
- O que é, Milos? O que descobriu?
- É Sundstrom...
- O quê?
- Isso pode esperar, doutor Winters, há outra coisa que não pode. O secretário de Estado está voando para Chipre. Pode descobrir quando?
- Não preciso descobrir, porque já sei. E também sabe todo mundo que vê televisão ou escuta rádio. É uma oportunidade extraordinária...
- Quando, senhor?
- Ele deixou Londres há cerca de uma hora. Houve a declaração habitual sobre levar o mundo para mais perto da paz, esse tipo de coisa...
- No Mediterrâneo! - interrompeu Varak, controlando a voz. - Acontecerá no Mediterrâneo.
- O quê?
- Não sei. Uma estratégia chamada Plano Doze, isso é tudo o que ouvi. Acontecerá em terra ou no ar. Eles querem detê-lo.
- Quem?
- Os homens que contribuem para a campanha. Um homem chamado Grinell, Crayton Grinell. Se eu tentasse entrar para descobrir, eles poderiam me pegar. Há guardas no corredor e não posso arriscar o grupo.
Claro que nunca revelaria voluntariamente a informação, mas há drogas...
- Sei disso.
- Procure Frank Swann, no Departamento de Estado. Diga à telefonista para localizá-lo onde quer que se encontre e use a expressão "contenção da crise".
- Por que Swann?
- Ele é um especialista, senhor. Dirigiu a operação de Oman para o Departamento de Estado.
- Sei disso, mas talvez eu tenha de dizer a ele mais do que gostaria... Pode haver um caminho melhor, Milos. Fique na linha. Vou transferi-lo para um tronco de espera.
Cada dez segundos pareciam minutos para Varak e depois eram minutos mesmo que corriam! O que estaria Winters fazendo? Não tinham minutos a desperdiçar! Finalmente o porta-voz de Inver Brass voltou ao telefone.
- Vou fazer uma ligação coletiva, Milos. Outra pessoa participará da conversa, mas fica entendido que nenhum dos dois é obrigado a se identificar. Confio totalmente nesse homem e ele aceita a condição.
Também está no que você chama de "contenção de crise" e dispõe de muito mais recurso do que Swann.
Houve dois estalidos na linha e Winters acrescentou:
- Podem falar, cavalheiros. Senhor A, este é o senhor B.
- Soube que tem alguma coisa a me dizer, senhor A.
- Tenho, sim - respondeu Varak. - As circunstâncias não são relevantes, mas a informação está confirmada. O secretário de Estado se encontra em perigo iminente. Há pessoas que não querem que ele compareça
à conferência em Chipre e tencionam detê-lo. Estão empregando uma tática chamada "Plano Doze, Mediterrâneo". O indivíduo que deu a ordem chama-se Grinell, um tal de Crayton Grinell, de San Diego. Nada
sei a seu respeito.
- Entendo... Deixe-me formular a pergunta tão delicadamente quanto possível, senhor A. Está em condições de nos informar o paradeiro atual desse Grinell?
- Não tenho opção, senhor B. Westlake Hotel. Suíte três C. Não tenho ideia de quanto tempo mais ele ficará lá. Depressa, e mande poder de fogo. Ele está protegido.
- Pode me fazer a cortesia, senhor A, de permanecer na linha por alguns momentos?
- A fim de levantar a origem desta parte da ligação?
- Eu não faria isso. Dei a minha palavra.
- E ele a cumprirá - interveio Samuel Winters.
- É difícil para mim - disse o tcheco.
- Serei rápido.
Houve um único estalido e Winters disse:
- Você não tinha mesmo opção, Milos. O secretário é o homem mais sadio na administração.
- Sei disso, senhor.
- Não consigo entender Sundstrom! Por quê?
- Sem dúvida uma combinação de motivos, inclusive suas patentes na tecnologia espacial. Outros podem construir os armamentos, mas o governo é comprador primário. O espaço é agora sinônimo de defesa.
- Ele não pode querer mais dinheiro! E distribui a maior parte do que recebe!
- Mas se o mercado encolher, o mesmo acontece com a produção e, por conseguinte, com as experiências... e estas são uma paixão para ele.
Outro estalido.
- Estou de volta, senhor A - disse a terceira pessoa. - Todos já foram alertados sobre o Mediterrâneo e tomadas as providências para agarrar Grinell em San Diego, o mais discretamente possível, é claro.
- Por que era necessário que eu permanecesse na linha?
- Porque, falando francamente, se eu não conseguisse tomar as providências em San Diego - explicou Mitchell Payton -, apelaria ao seu patriotismo por uma ajuda adicional.
- Que tipo de ajuda?
- Nada que pudesse comprometer nosso acordo em relação a este telefonema. Apenas para seguir Grinell, caso ele deixasse o hotel, e transmitir a informação ao nosso intermediário.
- O que o fez pensar que me encontro em condições de prestar tal ajuda?
- Não pensei. Só podia torcer, e havia várias coisas que precisavam ser feitas depressa, principalmente sobre o Mediterrâneo.
- Para sua informação, não tenho condições para isso - mentiu Varak. - Não estou sequer perto do hotel.
- Então posso ter cometido dois erros. Falei em "patriotismo", mas pela maneira como se expressa talvez este não seja o seu país.
- É meu país agora - declarou o tcheco.
- Então lhe deve muito.
- Tenho de ir.
Varak desligou e voltou apressado para o gravador. Sentou-se e pôs os fones na cabeça, os olhos se desviando para o rolo de fita. Parara de rodar. Ele escutou. Nada! Silêncio! Em desespero, acionou diversas
alavancas, para cima e para baixo, para a direita e a esquerda. Não houve qualquer reação... nenhum som. Se o gravador ativado pela voz não funcionava era porque a suíte Vanvlanderen estava vazia! Tinha
de fazer alguma coisa! Acima de tudo, precisava encontrar Sundstrom! Por Inver Brass, o traidor devia morrer.
Khalehla desceu pelo largo corredor na direção dos elevadores. Ligara para MJ e, depois de discutir o horror de Mesa Verde, transmitiu-lhe toda a conversa com Ardis Vanvlanderen, que gravara no equipamento
miniaturizado oculto dentro do bloco de anotações. Os dois ficaram satisfeitos; a viúva desconsolada deixara o pesar para trás num mar de histeria. Era evidente para ambos que a senhora Vanvlanderen não
tivera conhecimento prévio do contato do falecido marido com os terroristas, só ficando a par disso depois. O súbito aparecimento de uma agente do Cairo com informações inversas fora suficiente para fazer
Ardis a manipuladora perder o controle. Tio Mitch acertara em cheio.
- Descanse um pouco, agente Rashad.
- Eu gostaria de tomar um banho de chuveiro e comer alguma coisa. Acho que não ponho nada no estômago desde as Baamas.
- Peça o serviço de quarto. Aceitaremos uma de suas contas absurdas. Você mereceu.
- Eu detesto o serviço de quarto. Todos os garçons que servem a comida a uma mulher sozinha se pavoneiam como se fossem a resposta para as fantasias sexuais dela. Se não posso ter uma das refeições de
minha avó...
- Não pode.
- Está bem. Conheço alguns bons restaurantes...
- Pode ir. Por volta da meia-noite terei uma relação de todos os números para os quais a viúva consternada ligou. Coma bem, minha cara. Acumule energia. Pode ter de trabalhar a noite inteira.
- Está sendo muito generoso. Posso ligar para Evan, que com alguma sorte talvez acabe sendo o meu prometido?
- Pode, mas não conseguirá encontrá-lo. Colorado Springs mandou um jato para levar a ele e a Emmanuel até o hospital em Denver. Ambos estão no ar.
- Obrigada de novo.
- Não há de quê, Rashad.
- É muito gentil, senhor.
Khalehla apertou o botão do elevador, ouvindo o ronco no estômago. Nada comia desde a refeição no jato da Força Aérea e esse alimento já fora praticamente destruído pelas enzimas nervosas produzidas pelo
estado de Evan - o vômito e tudo o que significava... Querido Evan, inteligente e estúpido. Um homem que assumia riscos com mais moral do que seria apropriado para a maneira como encarava a vida; ela especulou
por um momento se Evan teria a mesma integridade no caso de um fracasso. Era uma questão em aberto; ele era um homem compulsivamente competitivo, que olhava com alguma arrogância do alto de sua posição
de não ter fracassado. E não era difícil compreender como ele caíra sob o encanto de Ardis Montreaux na Arábia Saudita, há dez ou doze anos. Aquela mulher devia ter sido uma sensação, exuberante e ambiciosa,
com um rosto e um corpo que aumentavam a vertigem. Contudo, ele escapara da aranha - esse era o seu Evan.
Ela ouviu o som da campainha e as portas do elevador se abriram. Por sorte, estava vazio; Khalehla entrou e apertou o botão para o vestíbulo. As portas se fecharam e o elevador começou a descer, para reduzir
a velocidade no próximo instante. Ela olhou para o número aceso por cima das portas; o elevador ia parar no terceiro andar. Era apenas uma coincidência, pensou Khalehla. MJ tinha certeza de que Ardis Vanvlanderen,
proprietária da suíte 3C, não ousaria deixar o hotel.
As portas se abriram e Khalehla, os olhos desinteressados fitando em frente, ficou aliviada ao perceber perifericamente que o passageiro era um homem solitário, de cabelos claros e ombros que pareciam
imensos, estufando o paletó a ponto de quase esticarem o tecido. Mas havia nele alguma coisa estranha, refletiu. Como costuma acontecer quando se está a sós com um único outro ser humano num espaço fechado
e pequeno, ela pôde sentir um alto nível de energia emanando do companheiro desconhecido. Havia um clima de raiva ou ansiedade que parecia impregnar o elevador. Depois, percebeu o homem a observá-la, não
da maneira como os homens a costumavam avaliar - furtivamente, com olhares breves; estava habituada a isso - mas fitando-a atentamente, os olhos entrevistos firmes e determinados.
As portas se fecharam de novo enquanto ela fazia uma careta despreocupada para si mesma; era a expressão de alguém que podia ter esquecido alguma coisa. Outra vez casual, ela abriu a bolsa, como se quisesse
verificar se esquecera algo. Suspirou alto, o rosto relaxou; o objeto estava ali. Sua arma. O elevador recomeçou a descer, enquanto ela olhava para o estranho.
E ficou paralisada! Os olhos do homem eram duas órbitas de controlado calor branco, os cabelos curtos e penteados de forma impecável eram louros. Não podia ser mais ninguém! O louro europeu... era um deles!
Khalehla atirou-se para o painel, enquanto sacava a automática, deixando a bolsa cair e apertando o botão de emergência. Além das portas, o alarme soou, enquanto o elevador parava com um solavanco e o
louro se adiantava.
Khalehla disparou, a explosão ensurdecedora no espaço confinado, a bala passando por cima da cabeça do estranho, como ela tencionara.
- Fique onde está! - ela ordenou. - Se sabe alguma coisa a meu respeito, sabe também que meu próximo tiro será bem na sua testa.
- Você é a mulher Rashad - disse o louro, sotaque acentuado, voz tensa.
- Não sei quem você é, mas sei o que é. A escória, isso é o que você é! Evan estava certo. Todos aqueles meses, todas aquelas notícias a seu respeito, os comitês no Congresso, a cobertura no mundo inteiro.
Era tudo um preparativo para a ação dos palestinos! Nada mais que isso!
- Está enganada, completamente enganada! - protestou o europeu, enquanto a campainha de alarme continuava a soar. - E não deve me deter agora! Uma coisa terrível está prestes a acontecer e estive em contato
com seu pessoal em Washington!
- Quem? Com quem falou em Washington?
- Não demos nomes...
- É mentira!
- Por favor, senhorita Rashad! Um homem está escapando!
- Não você, lourinho...
Khalehla nunca saberia de onde os golpes vieram e como foram desfechados com tanta rapidez. Por um instante, houve um movimento indistinto à sua esquerda, depois uma mão arremetendo, mais rápida do que
qualquer outra mão humana que ela já vira, atingindo seu braço direito, seguindo-se uma torção da mão direita, a arma lhe sendo arrancada. Podia esperar que o pulso estivesse fraturado, mas apenas ardia,
como se escaldado por um salpico de água fervente. O europeu estava parado diante dela, empunhando a arma.
- Não tive a intenção de machucá-la - ele disse.
- É muito bom, vagabundo, não posso deixar de admitir.
- Não somos inimigos, senhorita Rashad.
- Acho difícil acreditar nisso. - O telefone do elevador começou a tocar dentro da caixa por baixo do painel, a campainha ecoando pelas quatro paredes do espaço mínimo. Khalehla acrescentou: - Não vai
sair daqui.
- Espere um pouco! - disse o louro, enquanto a campainha continuava a tocar. - Esteve com a senhora Vanvlanderen.
- Ela lhe contou. E daí?
- Não poderia me contar. Nunca a encontrei pessoalmente, mas gravei suas conversas. Ela recebeu visitantes depois. Falaram a seu respeito... Ela e dois outros homens, um deles chamado Grinell.
- Nunca ouvi falar.
- Ambos são traidores, inimigos do seu governo, do seu país, para ser mais preciso, de como seu país foi concebido.
A insistente campainha do telefone ainda não parara.
- Fala muito bem, senhor Sem Nome.
- Chega de conversa! - exclamou o louro, enfiando a mão por baixo do paletó e tirando uma automática preta, longa e fina. Virou as duas armas, segurando-as pelos canos, estendendo as coronhas para Khalehla.
- Aqui está. Pegue-as. Dê-me uma chance, senhorita Rashad!
Atônita, Khalehla segurou as armas e fitou os olhos do europeu. Já vira aquela súplica em muitos olhos antes. Não era a expressão de um homem com medo de morrer por uma causa, mas furioso pela perspectiva
de não viver para prossegui-la.
- Está bem - ela murmurou. - Posso ou não posso dar a chance. Vire-se, as mãos na parede! Chegue mais para perto, apoiando o peso do corpo nas mãos!
O telefone parecia agora ensurdecedor, enquanto a agente do Cairo passava os dedos pelo corpo do louro, concentrando-se nas axilas, a depressão na cintura e os tornozelos. Ele não tinha outras armas.
- Continue assim - ela ordenou, enquanto estendia a mão e tirava o fone da caixa, pelo qual disse: - Não estávamos conseguindo abrir o painel para atender o telefone!
- Nosso mecânico já está a caminho, madame. Ele foi jantar, mas já o localizamos. Pedimos muitas desculpas. Contudo, nossos indicadores não apontam sinais de incêndio ou...
- Acho que nós é que devemos pedir desculpas - interrompeu Khalehla. - Foi tudo um equívoco... um engano meu. Apertei o botão errado. Se me explicar como fazer para o elevador funcionar de novo, estaremos
bem.
- Como? Claro, claro - disse a voz de homem, reprimindo a irritação. - Há uma alavanca na caixa do telefone...
As portas se abriram para o saguão e o europeu falou imediatamente com o gerente, que os aguardava.
- Eu devia me encontrar aqui há algum tempo com um associado em negócios. Infelizmente, dormi demais... um voo longo e cansativo de Paris. O nome dele é Grinell. Sabe dele, por acaso?
- O senhor Grinell e a desolada senhora Vanvlanderen saíram há poucos minutos com seus visitantes, senhor. Presumo que foram a um serviço memorial por seu marido, um excelente cavalheiro.
- Ele também era meu associado. Deveríamos comparecer ao serviço, mas não nos forneceram o endereço. Sabe onde é?
- Não senhor.
- Alguém saberia? O porteiro não teria ouvido as instruções para um táxi?
- O senhor Grinell veio em sua limusine... limusines, para ser mais preciso.
- Vamos embora - murmurou Khalehla, pegando o braço do louro. Enquanto se encaminhavam para a entrada da frente, ela acrescentou: - Você está se tornando um pouco óbvio demais.
- Talvez eu tenha fracassado, o que é muito mais importante.
- Qual é o seu nome?
- Milos. Chame-me apenas por Milos.
- Quero mais do que isso. Estou com o poder de fogo... ou já esqueceu?
- Se pudermos chegar a um acordo aceitável, eu lhe contarei mais.
- Vai me contar muito mais, senhor Milos, e não haverá outra daquelas suas manobras rápidas. Sua arma está na bolsa e a minha por baixo do casaco, apontada para seu peito.
- O que fazemos agora, madame Supostamente Aposentada Agente da CIA no Egito?
- Vamos comer, seu miserável bisbilhoteiro... mas farei toda a refeição com a mão esquerda. Se fizer um movimento errado através da mesa, nunca mais poderá ter filho... e não apenas por estar morto. Falei
claro?
- Deve ser muito boa na pontaria.
- Bastante boa, senhor Milos, bastante boa. Sou meio árabe, não se esqueça disso.
Sentaram frente a frente num grande reservado circular escolhido por Khalehla, num restaurante italiano, dois quarteirões ao norte do hotel. Varak relatou tudo o que ouvira pelos fones na suíte Vanvlanderen.
- Fiquei chocado. Nunca imaginei, por um instante sequer, que Andrew Vanvlanderen pudesse agir de maneira independente.
- Está querendo dizer sem a mulher lhe meter "uma bala na cabeça" e chamar um dos outros para levá-lo até o México?
- Exatamente. Ela teria feito isso. Ele foi estúpido.
- Discordo. Ele foi brilhante, levando-se em consideração o seu propósito. Tudo o que foi feito por e contra Evan Kendrick levava a uma lógica jaremat thaár, a expressão árabe para morte por vingança.
Permitiu isso, senhor Milos, a partir do momento em que se encontrou com Frank Swann no Departamento de Estado.
- Nunca com essa intenção, eu lhe garanto. Nunca pensei que fosse sequer remotamente possível.
- Estava enganado.
- Tem razão.
- Vamos voltar a esse primeiro momento... melhor ainda, vamos voltar ao início de toda a história!
- Não há nada para repassar. Não falei nada de essencial.
- Mas sabemos muito mais do que imagina. Tivemos de decifrar a charada, como diz meu superior... Um relutante deputado em seu primeiro mandato é manipulado para entrar em importantes comitês do Congresso,
posições pelas quais outros venderiam as próprias filhas. E de repente, por causa da ausência misteriosa dos presidentes dos comitês, ele aparece na televisão nacional, o que leva a mais exposição, tudo
cumulado pela história explosiva e internacional sobre suas ações secretas em Oman e terminando com o presidente lhe concedendo a mais alta condecoração que um civil pode obter. Não acha que a agenda está
bastante clara?
- Foi muito bem organizada, na minha opinião.
- E agora está prestes a ser lançada uma campanha nacional para incluí-lo na chapa do partido... para torná-lo o próximo vice-presidente dos Estados Unidos.
- Sabe sobre isso?
- Sei e posso garantir que não é um ato espontâneo dos políticos do partido.
- Mas espero que assim pareça.
- De onde você vem? - indagou Khalehla, inclinando-se para pegar o prato de vitela com a mão esquerda, enquanto a direita permanecia fora de vista, sob a mesa.
- Devo lhe dizer, senhorita Rashad, que me aflige vê-la comer de maneira tão desajeitada. Não sou uma ameaça para você e não vou fugir.
- Como posso ter certeza de qualquer das duas coisas? Que não é uma ameaça e que não vai fugir?
- Porque, em determinadas áreas, nossos interesses são os mesmos e estou disposto a trabalhar com você, numa base limitada.
- Por Deus, quanta arrogância! Sua Eminência poderia fazer a gentileza de descrever essas áreas e os limites de sua generosa ajuda?
- Claro. Para começar, a segurança do secretário de Estado e a denúncia daqueles que o queriam matar, além de descobrir o porquê, embora eu ache que não é difícil presumir o motivo. Depois, a captura dos
terroristas que atacaram as casas do deputado Kendrick, com considerável perda de vidas, e a confirmação da ligação de Vanvlanderen...
- Sabe de Fairfax e Mesa Verde? - Varak acenou com a cabeça e Khalehla acrescentou: - O blecaute é total.
- O que nos leva aos limites da minha participação. Devo permanecer em segundo plano e não discutirei minhas atividades, exceto nos termos mais gerais. Contudo, se for necessário eu a encaminharei pelo
codinome a certas pessoas no governo que confirmarão minha confiabilidade em questões de segurança, aqui e no exterior.
- Não se tem em alta conta, não é mesmo?
Milos sorriu, cauteloso.
- Não tenho realmente uma opinião formada. Mas venho de uma terra cujo governo foi roubado do povo e tomei uma decisão, há muitos anos, sobre o que faria com a minha vida. Tenho confiança nos métodos que
desenvolvi. Se isso é arrogância, muito bem, peço desculpas, embora eu não pense assim.
Lentamente, Khalehla tirou a mão direita de baixo da mesa e com a esquerda pegou a bolsa a seu lado. Guardou a automática e recostou-se, sacudindo a mão para restaurar a circulação.
- Creio que podemos dispensar a ferramenta e você tem razão, é mesmo muito incômodo tentar cortar a carne com apenas uma das mãos.
- Eu ia sugerir que pedisse uma coisa mais simples, talvez um antepasto ou um prato que pudesse comer com os dedos, mas achei que não me cabia.
- Percebo um senso de humor por trás dessa expressão austera?
- Talvez uma tentativa, mas não sinto a menor propensão para o humor neste momento... e não sentirei até saber que o secretário de Estado chegou são e salvo a Chipre.
- Alertou as pessoas apropriadas; não há mais nada que possa fazer. Eles cuidarão de tudo.
- Conto com isso.
- Então vamos aos negócios, senhor Milos. - Khalehla voltou a comer, com vagar, os olhos fixados em Varak. - Por que Kendrick? Por que fez isso? Acima de tudo, como fez? Penetrou em fontes que eram supostamente
inacessíveis! Entrou onde ninguém deveria ser capaz e obteve segredos, roubou um arquivo à prova de roubo. Quem quer que lhe permitiu isso, deve ser exposto, a fim de saber como é não ter qualquer proteção,
estar nu, sem armas, nas ruas escuras de uma cidade hostil.
- A assistência que recebi foi prestada por uma fonte que confiava em mim, que sabia de onde eu vinha, como você disse.
- Mas por quê?
- Eu lhe darei uma resposta limitada, senhorita Rashad, e apenas em termos gerais.
- Parabéns para você. Pode falar.
- Este país precisa de mudanças inadiáveis na administração, que, indubitavelmente, será reeleita.
- Quem diz isso, além dos eleitores?
- Sem comentários, exceto que, em termos gerais... embora eu não devesse ter necessidade de explicar. Testemunhou isso pessoalmente.
Khalehla largou o garfo e fitou o europeu nos olhos.
- San Diego? Vanvlanderen? Grinell?
- San Diego, Vanvlanderen e Grinell - repetiu o tcheco, calmamente. - Para esclarecer ainda mais: recursos obviamente enviados através de Zurich e Beirute para o Vale Baaka, com o objetivo de eliminar
um adversário político... ou seja, o deputado Kendrick. E agora uma tentativa de deter um excepcional secretário de Estado, impedi-lo de comparecer a uma conferência de desarmamento, cujo propósito é reduzir
a proliferação... e a produção... de armas espaciais e nucleares.
- San Diego... - murmurou Khalehla, esquecendo a comida no prato. - Orson Bollinger?
- Um enigma - respondeu Varak. - O que sabe ele? O que não sabe? De qualquer forma, ele é o ponto de concentração, o funil para uma administração invencível. Ele tem de ser substituído, assim eliminando
as pessoas ao seu redor, que lhe ordenam que marche ao som de seus tambores.
- Mas por que Evan Kendrick?
- Porque ele é agora um concorrente invencível.
- Evan jamais aceitará; ele o mandará para o inferno. Não o conhece como eu.
- Um homem não precisa necessariamente querer o que deve fazer, senhorita Rashad. Mas ele fará, se forem bastante claros os motivos pelos quais deve agir assim.
- Acha que isso é suficiente?
- Não conheço o senhor Kendrick pessoalmente, é claro, mas não creio que haja outro ser humano que eu tenha estudado tanto. É um homem admirável, mas também realisticamente modesto sobre suas realizações.
Ganhou muito dinheiro na explosiva economia do Oriente Médio, depois abriu mão de milhões porque se sentia moralmente ofendido e emocionalmente transtornado. Ingressou na arena política sem qualquer outro
motivo que não o de substituir um... como foi mesmo que o chamou?... um vagabundo que estava enchendo os bolsos no Colorado. E finalmente foi para Oman sabendo que talvez não voltasse, por acreditar que
poderia ajudar numa crise. Não é um homem que se encare com indiferença. Ele pode fazer isso, mas os outros não.
- Ora essa! - exclamou Khalehla. - Estou ouvindo uma variação das minhas próprias palavras.
- Em apoio ao seu progresso político?
- Não. Para explicar por que ele não era um mentiroso. Mas devo lhe dizer que há outro motivo para o seu retorno a Oman. E que se enquadra na categoria não muito favorável da vingança. Ele estava convencido
de que sabia quem se encontrava por trás dos terroristas em Mascate: o mesmo monstro que fora responsável pela matança das setenta e oito pessoas que constituíam o Grupo Kendrick, inclusive mulheres e
crianças. E ele tinha razão; o homem foi executado de acordo com a lei árabe.
- Isso não chega a ser um aspecto negativo, senhorita Rashad.
- Não, não é, mas altera um pouco as circunstâncias.
- Prefiro pensar que acrescenta uma dimensão de justiça devida, o que confirma ainda mais a nossa escolha.
- Nossa?
- Sem comentários.
- Repito: ele vai recusar.
- Recusará se souber como foi manipulado. Pode não recusar se estiver convencido de que é necessário.
Khalehla tornou a se recostar, estudando o tcheco.
- Se estou entendendo direito, você sugere uma coisa que pode ser extremamente ofensiva para mim.
- Não deveria ser. - Varak inclinou-se para a frente. - Ninguém pode forçar um homem a aceitar um cargo eletivo, senhorita Rashad; ele tem de procurá-lo. Da mesma forma, ninguém pode forçar os principais
senadores e congressistas de um partido político a aceitarem um novo candidato; eles devem querê-lo... É verdade que foram criadas as circunstâncias para projetar esse homem, mas não podíamos criar o homem;
para começar, ele estava ali.
- Está me pedindo para não falar a ele sobre esta conversa, para não contar nada a seu respeito... Tem alguma ideia de quantas semanas estamos procurando por você?
- Tem alguma ideia de quantos meses procuramos por Evan Kendrick?
- Nem quero saber! Ele foi manipulado e sabe disso. Você não pode esconder, não vou deixar. Já o fez passar por pesadelos demais. Amigos queridos mortos, agora possivelmente um velho que durante quinze
anos foi um pai para ele. Todos os seus planos destruídos... foi demais!
- Não posso mudar o que aconteceu, apenas lamentar meus erros de julgamento e ninguém os lamentará mais do que eu, mas peço-lhe para pensar em seu país, também o meu país agora. Se ajudamos a produzir
uma força política, foi apenas porque a força já existia por legítimo direito, com seus próprios instintos. Sem ele, vários homens absolutamente decentes serão aceitáveis para a liderança do partido, porque
são familiares e cômodos, mas não serão uma força... Estou sendo bem claro?
- Segundo a história, um vice-presidente comentou certa ocasião que o cargo não valia "um balde de cuspe".
- Não hoje em dia e muito menos nas mãos de Evan Kendrick. Estava obviamente no Cairo quando ele apareceu na televisão aqui...
- É verdade, eu estava no Cairo, mas temos um canal americano... gravações, é claro. Eu o vi e depois tornei a vê-lo aqui, graças sem dúvida à sua... agenda. Ele foi muito inteligente e sedutor.
- Ele é único, senhorita Rashad. É incomprável, diz o que pensa e o país está encantado com ele.
- Por sua causa.
- Não, por causa dele próprio. Ele fez as coisas que fez, não foram inventadas; disse as coisas que disse, as palavras não foram fornecidas. O que mais posso dizer? Analisei mais de quatrocentas possibilidades,
usando computadores da última geração, e um homem se destacou: Evan Kendrick.
- E não querem nada dele?
- Diz que o conhece bem. Se quiséssemos, o que acha que ele faria?
- Entregaria vocês a algum comitê contra a corrupção e daria um jeito para que passassem uma temporada na cadeia.
- Exatamente.
Khalehla sacudiu a cabeça, os olhos fechados.
- Gostaria de tomar um copo de vinho, senhor Milos. Preciso pensar em algumas coisas.
Varak fez sinal para um garçom e pediu dois copos de Chablis gelado, deixando a escolha a critério do próprio garçom.
- Entre as minhas muitas deficiências - comentou o tcheco - está a falta de conhecimento dos vinhos que não são do meu país.
- Não acredito nisso de jeito nenhum. Provavelmente é um consumado sommelier.
- Não sou, não. Escuto amigos citarem adegas e safras específicas e fico maravilhado.
- Tem mesmo amigos? Penso mais em você como uma eminência parda.
- Je comprends, mas está enganada. Levo uma vida bastante normal. Meus amigos pensam que sou um tradutor autônomo trabalhando em casa.
- Bien - disse a agente do Cairo. - Foi assim que eu comecei.
- Não há escritório para fazer contato, apenas uma secretária eletrônica que posso alcançar de qualquer lugar em que esteja.
- É o meu caso também.
O vinho chegou, Khalehla tomou um gole e disse:
- Ele não pode voltar. - Era como se estivesse falando para si mesma, depois incluindo Varak e mesmo assim apenas parcialmente. - Pelo menos não por alguns anos. Assim que o blecaute for suspenso, haverá
muito sangue fervendo no Vale Baaka.
- Posso presumir que está falando do deputado?
- Exatamente. Os terroristas foram apanhados, por assim dizer... Houve um terceiro e definitivo ataque há algumas horas. Ocorreu em Mesa Verde e foi tão devastador quanto o de Fairfax.
- Algumas horas...? Kendrick estava lá?
- Estava.
- E o que aconteceu?
- Pelo que fui informada, ele escapou, por frações de segundo. Mas, como na Virginia, muitos dos nossos foram mortos.
- É triste... Weingrass foi gravemente ferido, eu presumo. Não era a ele que estava se referindo quando falou num velho?
- Era, sim. Está seguindo de avião para um hospital em Denver, acompanhado por Evan.
- E quanto aos terroristas, por favor - disse Varak, os olhos se cravando nos de Khalehla.
- No total eram nove. Oito morreram; um sobreviveu, o mais jovem.
- E quando o blecaute for levantado, como você diz, haverá sangue quente no Baaka. É por isso que Kendrick não pode voltar àquela parte do mundo.
- Ele não viveria quarenta e oito horas. Não haveria como protegê-lo daqueles loucos.
- Aqui há, e nenhum meio é melhor que o Serviço Secreto do governo. Nessas coisas, nada é perfeito, existe apenas o melhor.
- Sei disso.
Khalehla tomou outro gole de vinho.
- Compreende o que estou dizendo, não é mesmo senhorita Rashad?
- Acho que sim.
- Permita que os acontecimentos continuem seu curso normal. Há um comitê de ação política legítimo, dedicado a promover a candidatura do deputado Kendrick a um cargo superior. Deixe que trabalhem sem qualquer
estorvo e deixe o país reagir... de um jeito ou de outro. E se ambos estamos certos sobre os Vanvlanderens, os Grinells e as pessoas que eles representam, deixe Evan Kendrick tomar sua própria decisão.
Porque mesmo que os denunciemos e detenhamos, há centenas mais que ocuparão seus lugares... Uma força é necessária, uma voz é necessária.
Khalehla levantou os olhos do vinho. E acenou com a cabeça duas vezes.
36
Kendrick pela Seventeenth Street, em Denver, na direção do Brown Palace Hotel, mal percebia os diminutos blocos de neve que flutuavam caindo do céu noturno. Dissera ao motorista de táxi para deixá-lo a
vários quarteirões de distância; queria andar; precisava desanuviar a cabeça.
Os médicos do Denver General Hospital haviam remendado Manny, aliviando Evan ao informarem que os ferimentos, embora extensos, consistiam principalmente em fragmentos encravados de vidro e metal. A perda
de sangue fora considerável para um homem da sua idade, mas não crítica; o sangue seria substituído. A confusão começou quando Kendrick levou um dos médicos para um lado e lhe contou sobre a preocupação
de Weingrass com a possibilidade do câncer ter reincidido. Em vinte minutos todos os exames de Manny foram transmitidos eletronicamente de Washington e o chefe da oncologia conversou com o cirurgião que
operara o velho arquiteto na capital. Depois, mais ou menos na metade de sua estada de quatro horas no hospital, apareceu um técnico de laboratório e conferenciou com outro médico. Houve então alguma atividade
e Evan foi convidado a deixar o quarto, enquanto várias amostras eram tiradas do corpo de Manny. Uma hora mais tarde o chefe da patologia, um homem magro de olhos inquisidores, foi ao encontro de Kendrick
na sala de espera.
- Deputado, o senhor Weingrass esteve fora do país recentemente?
- Não durante o último ano.
- E onde ele esteve antes?
- França... Sudoeste Asiático.
O médico franziu as sobrancelhas.
- Minha geografia não é muito boa. Onde fica o Sudoeste Asiático?
- Isso é necessário?
- É, sim.
- Oman e Bahrain.
- Ele esteve lá junto com o senhor? Desculpe, mas suas façanhas são do conhecimento geral.
- Ele esteve comigo - respondeu Evan. - É uma das pessoas a quem não pude agradecer publicamente, porque não seria do interesse dele.
- Entendo. Não temos um serviço de imprensa.
- Obrigado. Mas por que pergunta?
- A menos que eu esteja enganado... e posso estar... ele foi infectado por um... vírus, digamos assim... que, segundo me consta, é natural da África Central.
- Isso não é possível.
- Então talvez eu esteja enganado. Nosso equipamento está entre os melhores do Oeste, mas há outros superiores. Estou enviando tecido do pulmão e amostras de sangue para o CCD em Atlanta.
- Para onde?
- Centro de Controle de Doenças.
- Doenças?
- É apenas uma precaução, senhor Kendrick.
- Mande de avião esta noite, doutor. Haverá um jato esperando no Aeroporto Stapleton dentro de uma hora. Avise a Atlanta para começar a trabalhar no minuto em que chegarem as amostras... pagarei qualquer
custo, mesmo que eles tenham de virar a noite.
- Farei o que puder...
- Se isso ajudar - disse Evan, sem ter certeza se estava blefando ou não -, pedirei à Casa Branca para falar com eles.
- Não creio que seja necessário.
Ao deixar o hospital, depois de se despedir de Manny já sob o efeito de sedativos, Evan lembrou-se do desaparecido Dr. Lyons, de Mesa Verde, o médico sem endereço ou telefone, mas com autorização do governo
para ser apresentada a um deputado e/ou sua assessoria. Que autorização? Por que seria necessária uma autorização?... Ou seria apenas um documento muito impressivo, um artifício para penetrar no mundo
particular de um certo Evan Kendrick? Resolveu não dizer nada a ninguém. Khalehla saberia melhor o que fazer.
Aproximou-se do Brown Palace e percebeu subitamente, através da neve caindo, as luzes coloridas das ornamentações de Natal na larga avenida, da estrutura antiga e clássica à nova torre no sul. E depois
ouviu os acordes de uma cantiga natalina espalhando-se pela rua. Tocam os sinos, tocam os sinos... Feliz Natal da legação de Mascate, pensou Evan.
- Por onde você andou? - gritou M. J. Payton, fazendo Khalehla afastar o fone do ouvido.
- Fui jantar.
- Ele está aí! Nosso louro europeu está no hotel!
- Eu sei. Jantei com ele.
- Você o quê?
- Para dizer a verdade, ele se encontra no meu quarto neste momento. Vamos repassar o que sabemos. Ele não é o que pensávamos.
- É demais, Adrienne! Diga a esse filho da puta que o senhor B gostaria de falar com o senhor A!
- Então era você?
- Pare com isso, Rashad! Ponha-o logo na linha!
- Não tenho certeza se ele vai concordar. - A agente do Cairo tornou a afastar o fone do ouvido e virou-se para Varak. - Um certo senhor B gostaria de falar com o senhor A.
- Eu devia esperar por isso.
O tcheco levantou-se e foi até o telefone na mesinha de cabeceira, enquanto Khalehla se afastava.
- Saudações novamente, senhor B. Nada mudou, espero que compreenda. Sem nomes, sem identidades.
- Como o chama minha sobrinha? Saiba que ela é minha sobrinha.
- Ela me chama pelo nome errado de Milos.
- Milos? Eslavo?
- Americano, senhor.
- Eu tinha esquecido, você deixou isso bem claro.
- O secretário de Estado, por favor?
- Ele chegou a Chipre.
- Fico aliviado.
- Todos ficamos, se de fato havia motivo de alarme.
- A informação foi acurada.
- Infelizmente, não pudemos confirmá-la pelo nosso lado. Grinell não se encontrava no hotel e não apareceu em sua casa.
- Ele está com a mulher Vanvlanderen.
- Sabemos disso. Segundo um recepcionista, havia vários outros homens com os dois. Alguma ideia?
- Os guardas de Grinell, segundo a informação que recebi. Mencionei que havia homens com ele, que devia estar preparado.
- É verdade, mencionou, sim. Trabalhamos juntos?
- A uma certa distância.
- O que tem a oferecer?
- Provas de certas coisas que contei à senhorita Rashad - respondeu Varak, pensando nas gravações editadas que forneceria à agente do Cairo... editadas para que Eric Sundstrom permanecesse um conspirador
anônimo; um morto não precisava de identidade. - Talvez nada mais além disso, mas é a essência do que precisa.
- Aceitarei agradecido.
- Mas há um preço, senhor B.
- Não faço pagamentos...
- Claro que faz - interrompeu o tcheco. - E faz a todo instante.
- O que deseja?
- Como minhas exigências precisam de uma explicação complicada, deixarei que a senhorita Rashad lhe conte com suas próprias palavras. Entrarei em contato com ela amanhã e nos comunicaremos por seu intermédio.
Se a resposta for positiva, providenciarei a entrega do material.
- E se não for?
- Então eu o aconselharia a avaliar as consequências, senhor B.
- Deixe-me falar com minha sobrinha, por favor.
- Está certo.
Varak virou-se para Khalehla e entregou-lhe o fone, voltando à sua poltrona.
- Estou aqui - disse Rashad.
- Responda apenas sim ou não, e se não puder responder fique em silêncio por um ou dois segundos. Certo?
- Sim.
- Está segura?
- Sim.
- O material dele nos ajudaria?
- Sim... enfaticamente.
- Apenas o "sim" é suficiente, agente Rashad... É claro que ele está hospedado no hotel... acha que vai permanecer aí?
- Não.
- Ele deu alguma informação sobre a maneira como obteve o arquivo de Oman?
- Não.
- Por último, podemos conviver com suas exigências?
- Nós vamos... Desculpe quebrar as regras.
- Entendo... - murmurou o atônito diretor de Projetos Especiais. - Vai me explicar essa declaração extraordinária e extraordinariamente insubordinada, não é mesmo?
- Conversaremos mais tarde. - Khalehla desligou e virou-se para Varak. - Meu superior está aborrecido.
- Com você ou comigo? Não foi difícil imaginar a substância das perguntas.
- Comigo e com o senhor.
- Ele é mesmo seu tio?
- Eu o conheço há mais de vinte anos e isso é suficiente em relação a ele. Vamos falar a seu respeito. Também não foi difícil imaginar algumas perguntas dele para você.
- Um momento, por favor - insistiu o tcheco. - Preciso ir embora.
- Disse a ele que Grinell estava com a mulher Vanvlanderen e que os outros eram guardas de Grinell.
- Isso mesmo.
- Mas me contou que havia dois homens na suíte Vanvlanderen e que os guardas estavam fora.
- É verdade.
- Quem era o outro homem e por que o está protegendo?
- Protegendo?... Creio que lhe disse também que ambos eram traidores. Ouvirá isso nas gravações, lerá nas transcrições que vou lhe entregar, se seu superior concordar com as minhas condições, como você
já concordou.
- Eu o convencerei.
- Então ouvirá pessoalmente.
- Mas você o conhece! Quem é ele?
Varak levantou-se, as mãos espalmadas para a frente.
- Mais uma vez, senhorita Rashad, sem comentários. Contudo, posso lhe dizer uma coisa. Ele é o motivo pelo qual preciso partir. É escória humana, quaisquer que sejam as palavras que queira usar... e ele
é meu. Vasculharei a cidade durante a noite inteira até encontrá-lo... e se não o descobrir hoje, sei onde estará amanhã ou no dia seguinte. Repito: ele é meu.
- Uma jaremat thaár, senhor Milos?
- Não falo árabe, senhorita Rashad.
- Mas sabe o que significa, pois eu já lhe disse.
- Boa noite - disse o tcheco, encaminhando-se para a porta.
- Meu tio quer saber como obteve o arquivo de Oman. Acho que não deixará de caçá-lo enquanto não descobrir.
- Todos temos nossas prioridades - disse Varak, virando-se, a mão na maçaneta. - Neste momento, as dele e as suas estão em San Diego, as minhas em outro lugar. Diga a seu tio que ele nada tem a temer da
minha fonte. Ele iria para o túmulo antes de trair um de vocês, um dos nossos.
- Mas ele já traiu! E traiu Evan Kendrick!
O telefone tocou; ambos voltaram a cabeça abruptamente naquela direção. Khalehla atendeu.
- Alô?
- Aconteceu! - gritou Payton, em Langley, Virginia. - Oh, meu Deus, eles conseguiram!
- O que aconteceu?
- O Hotel Larnaca, em Chipre! A ala oeste foi explodida; nada restou, apenas escombros. O secretário de Estado está morto, todos estão mortos!
- O hotel em Chipre - repetiu Khalehla, olhando para o tcheco, a voz um monótono assustado. - Foi explodido, o secretário está morto, todos estão mortos...
- Dê-me esse telefone! - berrou Varak, correndo pelo quarto e arrebatando-o. - Não verificaram os porões, os dutos de ar condicionado, as escoras da estrutura?
- As forças de segurança cipriotas garantiram que haviam verificado tudo...
- A segurança cipriota? - repetiu o furioso tcheco. - Mas está infiltrada de dezenas de elementos hostis! Idiotas, idiotas, idiotas!
- Quer o meu cargo, senhor A?
- Eu não o aceitaria - disse Varak, controlando a raiva, baixando a voz. E acrescentou, desdenhoso: - Não trabalho com amadores.
Ele desligou e tornou a se encaminhar para a porta. Virou-se antes de sair e disse a Khalehla:
- O que se tornava necessário aqui era o cérebro de Kendrick em Oman. Ele seria o primeiro a dizer a todos vocês o que fazer, o que procurar. E, provavelmente, vocês não o teriam escutado.
O tcheco abriu a porta, saiu e bateu-a. O telefone tocou de novo.
- Ele já foi - disse Rashad, atendendo e sabendo instintivamente quem estava na linha.
- Eu lhe ofereci meu cargo, mas ele deixou bem claro que não trabalhava com amadores... Estranho, não é mesmo? Um homem sem quaisquer credenciais nos alerta e mesmo assim fracassamos. E há um ano mandamos
Kendrick para Oman e ele fez o que quinhentos profissionais de pelo menos seis países não conseguiram. Faz a gente pensar... Estou ficando velho.
- De jeito nenhum, MJ! - gritou a agente do Cairo. - Acontece apenas que eles são brilhantes e tiveram muito sorte, isso é tudo. Você já fez mais do que eles jamais serão capazes de fazer!
- Eu gostaria de acreditar nisso, mas esta noite me sinto horrível por qualquer amor-próprio que me resta.
- E que deve ser muito!... Mas este é também um bom momento para explicar aquele comentário insubordinado que fiz há poucos minutos.
- Faça-o, por favor. Estou receptivo. Nem mesmo tenho certeza se ainda me resta algum fôlego.
- Quem quer que sejam as pessoas para as quais Milos trabalha, não querem nada de Evan. Quando insisti, ele ressaltou o óbvio. Se fizessem algumas exigências, Evan os atiraria aos lobos. E está certo,
Evan faria isso mesmo.
- Também concordo. Então, o que querem eles?
- Que recuemos e deixemos os acontecimentos seguirem o seu curso. Querem que deixemos a corrida continuar.
- Evan não vai correr...
- Pode correr, quando souber dos negros cavaleiros que estão controlando as coisas de San Diego. Mesmo que os detenhamos, há centenas mais esperando para tomar seus lugares. Milos tem razão, há necessidade
de uma voz.
- Mas o que diz você, sobrinha?
- Quero-o vivo, não morto. Não pode voltar ao emirados... É capaz de convencer a si mesmo que é possível, mas será morto no momento em que desembarcar do avião. E não pode vegetar em Mesa Verde, não com
a sua energia e imaginação... isso seria também uma forma de morte... O país pode tornar-se pior, MJ.
- Idiotas, idiotas! - sussurrou Varak consigo, discando o telefone, enquanto estudava uma planta da suíte Vanvlanderen em sua mão, com pequenos "X" vermelhos marcados em cada cômodo.
Segundos depois uma voz atendeu no outro lado da linha.
- Alô?
- Homem do som?
- Praga?
- Preciso de você.
- Sempre posso usar seu dinheiro. Vai alto.
- Pegue-me dentro de trinta minutos, na entrada de serviço. Explicarei o que quero que faça a caminho do seu estúdio... Não há mudanças na planta?
- Não. Encontrou a chave?
- Obrigado pelas duas coisas.
- Você pagou. Trinta minutos.
O tcheco desligou e olhou para o equipamento de gravação devidamente acondicionado junto da porta da frente. Escutara a entrevista de Rashad com Ardis Vanvlanderen, e apesar da raiva pela tragédia que
era a morte do secretário de Estado, não pôde deixar de sorrir - sombriamente, é verdade - pela ousada estratégia da agente do Cairo e seu superior. Baseados no que haviam descoberto, apostaram na verdade
presumida das ações de Andrew Vanvlanderen e converteram tudo numa mentira irresistível: grupos de eliminação palestinos, o alvo Bollinger, Kendrick jamais mencionado! Brilhante! O aparecimento de Eric
Sundstrom, duas horas depois da informação espantosa e distorcida de Rashad - um evento que visava revelar o traidor de Inver Brass e não se baseava em qualquer presunção da culpa de Vanvlanderen - fora
o acréscimo decisivo para as detonações combinadas que demoliram toda a estrutura consolidada de impostura em San Diego. Era preciso aproveitar as coisas onde se podia encontrá-las.
Varak foi até a porta, abriu-a cauteloso e saiu para o corredor. Seguiu rápido para a suíte Vanvlanderen no final do corredor e entrou, usando a chave fornecida pelo homem do som, a planta ainda na mão.
Em passos ágeis, foi de cômodo em cômodo removendo os pequenos microfones eletrônicos de seus recessos - por baixo de mesas e cadeiras, sob os armários de remédios nos diversos banheiros, dentro de dois
bicos de gás na cozinha. Deixou o escritório da viúva por último, contando os "X" vermelhos, conferindo até ali a remoção de todos os microfones. O escritório estava escuro; ele encontrou o abajur na mesa
e acendeu-o. Dez segundos depois embolsara os quatro microfones, três no escritório e um no pequeno banheiro anexo, virado para a mesa. Olhou para o relógio; a remoção dos microfones levara nove minutos,
deixando-lhe pelo menos quinze para inspecionar o santuário doméstico da senhora Vanvlanderen.
Começou pelas gavetas da escrivaninha, abrindo uma depois da outra, vasculhando papéis insignificantes, relativos ao trivial da vice-presidência - agendas, cartas de pessoas e instituições consideradas
merecedoras de uma resposta, relatórios da posição da Casa Branca, dos Departamentos de Estado e Defesa, e diversas outras agências administrativas, papéis que tinham de ser estudados a fim de serem explicados
a Orson Bollinger. Não havia nada de valor, absolutamente nada relacionado com as manipulações secretas que ocorriam no sul da California.
Varak correu os olhos pelo escritório revestido de madeira, observou as estantes, os elegantes móveis, as fotografias emolduradas nas paredes... Fotografias. Havia mais de vinte, espalhadas pela madeira
escura. Ele se adiantou e começou a examiná-las, acendendo outro abajur para ter mais claridade. Eram a coleção habitual de autoenaltecimento, mostrando o senhor e senhora Andrew Vanvlanderen na companhia
de grandes líderes políticos, do presidente para baixo, passando pelos escalões superiores da administração e do congresso. Na outra parede havia fotografias da viúva sozinha, sem o ex-marido. A julgar
pelas aparências, eram obviamente do passado de Ardis Vanvlanderen, um testemunho pessoal deixando claro que seu passado não fora irrelevante. Carros de luxo, iates, pistas de esqui e peles suntuosas predominavam.
Varak já ia abandonar essa mostra de ostentação quando seus olhos incidiram sobre um instantâneo ampliado, obviamente tirado em Lausanne, Suíça: a marina Leman, ao norte do lago Genebra. Milos estudou
o rosto do homem de pele escura parado junto ao exuberante centro de atração. Conhecia aquele rosto, mas não podia situá-lo. Depois, como se seguisse um faro, os olhos do tcheco baixaram para a direita,
para outro instantâneo ampliado, também de Lausanne, nos jardins do Palácio Beau-Rivage. Lá estava de novo o mesmo homem... quem era ele? E ao lado havia mais outro, agora em Amsterdam, no Rozengracht,
mostrando as mesmas duas pessoas. Quem seria aquele homem? Concentre-se! Imagens surgiram, fragmentos de impressões esquivas, mas sem qualquer nome. Riad... Medina, Arábia Saudita. Uma atormentada e furiosa
família saudita... uma execução programada, depois uma fuga. Milhões e milhões estavam envolvidos... há oito ou dez anos. Quem era ele? Varak pensou em levar uma das fotografias, depois compreendeu instintivamente
que não deveria fazê-lo. Quem quer que fosse o homem, representava outro aspecto revelador da máquina construída em torno de Orson Bollinger. Uma fotografia daquele rosto, desaparecida, poderia acionar
alarmes.
Milos apagou o abajur e voltou para a escrivaninha. Era o momento de partir, pegar o equipamento e encontrar-se com o homem do som na rua, ao lado da entrada de serviço. Estendeu a mão para o abajur na
escrivaninha quando ouviu subitamente a porta se abrindo no vestíbulo. Apagou a luz no mesmo instante e enveredou pela porta do escritório, fechando-a parcialmente, a fim de se esconder por trás e observar
através da abertura nas dobradiças.
O vulto alto entrou em seu campo de visão, um homem solitário avançando confiante por um ambiente familiar. Varak franziu o rosto por um instante; há semanas que não pensava no intruso. Era o agente ruivo
do FBI que encontrara em Mesa Verde, um membro da unidade designada para o vice-presidente a pedido de Ardis Vanvlanderen - o homem que o levara a San Diego. Milos ficou aturdido por um momento, mas apenas
por um momento. A unidade fora chamada de volta a Washington, mas um dos seus membros ficara para trás... Mais exatamente, um fora comprado antes que Varak o encontrasse em Mesa Verde.
O tcheco observou o ruivo circular pelo living, como se procurasse alguma coisa. Ele apanhou um copo por baixo de um abajur de marfim na mesinha à esquerda do sofá, a seguir passou pela porta da cozinha.
Voltou momentos depois com uma lata de spray na mão e uma toalha de pratos na outra. Foi até o bar, pegou garrafa por garrafa, acionando o spray, em seguida limpando-a com o pano. Limpou também meticulosamente
a borda de cobre no tampo do bar. Dali passou a se ocupar de todos os móveis na sala de estar, repetindo o processo de limpeza, como se estivesse purificando o ambiente. O que ele fazia era claro para
Varak: o agente eliminava a presença concreta de Eric Sundstrom, removendo do local as impressões digitais do cientista.
O homem largou a lata de spray e a toalha de pratos na mesinha diante do sofá, depois atravessou calmamente a sala... na direção do escritório! O tcheco afastou-se em silêncio e foi para o pequeno banheiro,
fechando a porta e deixando agora apenas um ou dois centímetros abertos entre a beira e o umbral. Como Milos fizera, o agente do FBI acendeu a luz na mesa, sentou-se na cadeira e abriu a gaveta inferior
do lado direito. Contudo, ele fez uma coisa que Varak não fizera: apertou um botão que o tcheco não vira. No mesmo instante a moldura vertical da mesa se abriu.
- Santo Deus! - exclamou o ruivo para si mesmo, a exclamação atordoada um sussurro, enquanto espiava o recesso obviamente vazio.
Sem desperdiçar qualquer movimento, estendeu a mão para o telefone na mesa, virtualmente arrancou o fone do gancho, discando. Falou em poucos segundos.
- Não está aqui! - Uma pausa, e acrescentou: - Não, tenho certeza! Não há nada... O que quer que eu faça? Segui suas instruções e estou dizendo que não encontrei nada!... O quê? Na rua, perto da sua casa?
Está bem, vou verificar e ligarei de novo.
O agente baixou o gancho, soltou-o e discou onze dígitos: interurbano.
- Base Cinco, aqui é Pássaro Preto, missão especial em San Diego, código seis-seis-zero. Confirme, por favor... Obrigado. Temos veículos em La Jolla de que eu não esteja informado?... Não temos... Não,
nada de urgente, provavelmente a imprensa. Devem ter descoberto que o VP vai comparecer a uma noitada de arte... entendeu direito, é mesmo noitada... com a turma dos delicados. Ele não saberia distinguir
um Rembrandt de um Al Capp, mas precisa fingir. Vou verificar o que é. Esqueça.
O ruivo magro cortou a ligação e tornou a discar, dizendo quase que no mesmo instante:
- Não há nada do nosso lado... Não, não há lei que diga que devemos ser informados... CIA? Seríamos os últimos a saber... Está certo, ligarei para o aeroporto. Quer que eu fale com seu piloto?... Como
quiser, depois vou embora. A CIA e o FBI não se misturam, nunca o fizemos.
O homem do FBI desligou, enquanto Varak saía do banheiro escuro, empunhando a automática preta e fina.
- Não vai sair daqui tão depressa - disse o coordenador de Inver Brass.
- Ei!
O agente ruivo lançou-se da cadeira contra Varak parado na porta, segurando o pulso direito do tcheco com a força de um animal em pânico, empurrando-o contra a parede por cima do vaso. A cabeça de Varak
bateu no belíssimo papel de parede. O tcheco apoiou-se no vaso, estendendo a perna esquerda em torno do tronco do homem e apertando, ao mesmo tempo que lhe levantava a mão direita e a arma, quase arrancando
o braço esquerdo do agente. Tudo acabou no mesmo instante; o ruivo arriou no chão, segurando o braço dolorido como se tivesse uma fratura.
- Levante-se - disse Varak, a arma baixada ao lado do corpo, sem se dar ao trabalho de apontá-la.
O ruivo fez um esforço para ficar de pé, estremecendo, apoiando-se na borda da pia de mármore.
- Volte para lá e sente-se - ordenou Milos, empurrando o agente pela porta, até a escrivaninha.
- Quem é você? - balbuciou o homem, desabando na cadeira, ainda a segurar o braço.
- Já nos encontramos, mas você não iria se lembrar. Uma estrada rural em Mesa Verde, a oeste da casa de um certo deputado.
- Foi você?
O agente lançou-se com raiva, apenas para ser empurrado de volta por Varak.
- Quando foi que se vendeu, federal?
O agente estudou Milos à luz suave da lâmpada na mesa.
- Se você é alguma espécie de fantasma naturalizado de uma unidade conjunta, é melhor entender uma coisa. Estou aqui em missão especial para o vice-presidente.
- Uma unidade conjunta? Vejo que andou falando com pessoas muito nervosas... Não há nenhuma unidade conjunta, e aqueles veículos em torno da casa de Grinell foram despachados de Washington...
- Não foram, não! Já verifiquei!
- Talvez o FBI não esteja informado, ou talvez você tenha mentido, não importa. Como todos os membros privilegiados das organizações de elite, tenho certeza de que poderá alegar que estava apenas cumprindo
ordens ao remover impressões digitais e procurar documentos escondidos sobre os quais nada sabia.
- Não fiz nada disso!
- Mas você se vendeu, e para mim isso é o que importa. Estava disposto a aceitar dinheiro e privilégios por serviços prestados em função oficial. Também está disposto a perder a vida por aquelas pessoas?
- Como?
- Agora é a sua vez de entender uma coisa - continuou Varak com calma, levantando a automática e comprimindo-a contra a testa do agente. - Se você vai viver ou morrer não significa absolutamente nada para
mim, mas há um homem que preciso encontrar. Esta noite.
- Não conheço Grinell...
- Grinell é irrelevante para mim, posso deixá-lo para os outros. O homem que eu quero é aquele cujas impressões digitais você removeu deste apartamento com tanto cuidado. Diga-me onde ele se encontra neste
momento ou seus miolos vão se espalhar por cima desta mesa e não me darei ao trabalho de limpar. A cena acrescentará mais uma nuance apropriada do mal, coerente com tudo o que vem acontecendo por aqui...
Onde está ele?
O corpo tremendo, a respiração ofegante, o ruivo balbuciou as palavras rapidamente.
- Não sei, e não estou mentindo! Recebi a ordem de encontrá-los numa rua transversal, perto da praia, em Coronado. Juro que não sei para onde eles iam!
- Acabou de telefonar.
- É um telefone móvel, de bateria.
- Quem estava em Coronado?
- Apenas Grinell e o outro cara, que me disse por onde tinha andado e tudo em que tocara aqui, na suíte Vanvlanderen.
- Onde estava ela!
- Não sei. Talvez estivesse enferma, talvez sofresse um acidente. Havia uma ambulância perto da limusine de Grinell.
- Mas você conhece o destino deles. Estava prestes a ligar para o aeroporto. Quais foram as suas instruções?
- Mandar a manutenção aprontar o aparelho para decolagem em uma hora.
- Onde está o avião?
- No Aeroporto Internacional de San Diego. A pista particular ao sul das pistas principais.
- Qual o destino?
- Só Grinell e seu piloto sabem. Ele nunca conta a ninguém.
- Ofereceu-se para falar com o piloto. Qual é o número dele?
- Não sei. Se Grinell pretendia que eu ligasse, teria me dito. Não disse.
- Dê-me o número do telefone celular. - O agente disse o número e o tcheco gravou-o na memória. - Tem certeza de que é isso mesmo?
- Pode experimentar.
Varak guardou a arma no coldre no ombro.
- Ouvi uma palavra esta noite que se ajusta a você, federal. Rebotalho, é isso o que você é. Mas, como eu disse, não tem a menor importância para mim e por isso vou deixá-lo partir. Talvez possa começar
a preparar sua defesa como um soldado que traiu seus superiores ou talvez seja melhor partir para o México e continuar dali para o sul. Não sei e não me importo. Mas se ligar para aquele telefone móvel,
pode se considerar um homem morto. Está me entendendo?
- Só quero sair daqui - disse o agente, levantando-se e correndo para o living rebaixado, na direção dos degraus de mármore e da porta da suíte.
- Eu também - sussurrou Milos para si mesmo.
Olhou para o relógio; estava atrasado para o homem do som. Não importava, pensou, o homem era eficiente e compreenderia logo o que ele queria das gravações e transcrições. Tomaria emprestado o carro do
homem do som e seguiria para o estacionamento do Aeroporto Internacional de San Diego. Ali, numa pista particular, ao sul das pistas principais, encontraria o traidor de Inver Brass. Encontraria e o mataria.
O telefone tocou, arrancando Kendrick de um sono irrequieto. Desorientado, os olhos focalizaram uma janela de hotel, a neve intensa turbilhonando em círculos lá fora, tangida pelo vento. O telefone tornou
a tocar; piscando, ele encontrou a fonte do ruído, acendeu o abajur na mesinha de cabeceira e atendeu, olhando para o relógio. Eram 5:20 da manhã. Khalehla?
- Alô?
- Atlanta trabalhou durante a noite inteira - disse o chefe de patologia do hospital. - Acabaram de me telefonar e achei que você gostaria de saber.
- Obrigado, doutor.
- Não é uma boa notícia. Infelizmente, todos os testes são positivos.
- Câncer? - indagou Evan, engolindo em seco.
- Não. Eu poderia dar o termo médico, mas nada significaria para você. Trata-se de uma espécie de salmonela, uma variedade de vírus que ataca os pulmões, coagulando o sangue até obstruir o suprimento de
oxigênio. Posso compreender por que o senhor Weingrass pensou que era câncer. Não é, mas isso não o ajuda nada.
- Tem cura? - perguntou Kendrick, apertando o fone.
Depois de um breve momento de silêncio, o patologista respondeu:
- Nenhuma conhecida. É irreversível. Nos distritos africanos de Kasai eles matam o gado e o queimam, arrasam aldeias inteiras e também as queimam.
- Não quero saber de gado nem de aldeias africanas!... Desculpe, não tive a intenção de gritar.
- Não se preocupe, isso faz parte do ofício. Verifiquei no mapa; ele deve ter comido num restaurante omanita que servia comida da África Central, talvez para trabalhadores importados. Pratos sujos, esse
tipo de gente. É assim que ocorre a transmissão.
- Não conhece Emmanuel Weingrass; esses são os últimos lugares em que ele comeria. Não, doutor, o mal não foi transmitido, foi implantado.
- O que disse?
- Bem, esqueça. Quanto tempo ele tem?
- O CCD diz que pode variar. Um a três meses, talvez quatro. Não mais do que seis.
- Posso dizer a ele que é possível prolongar para dois anos?
- Pode dizer o que quiser, ele perceberá sua mentira. A respiração não vai melhorar. Precisará de oxigênio sempre disponível.
- Não faltará, doutor.
- Lamento muito, senhor Kendrick.
Evan levantou-se e começou a andar pelo quarto, numa fúria crescente. Um médico fantasma, desconhecido em Mesa Verde, mas não desconhecido de certas autoridades do governo dos Estados Unidos. Um médico
simpático, que só queria tirar um pouco de sangue... e depois desapareceu. Súbito Evan gritou, a voz rouca, lágrimas deslizando pelo seu rosto:
- Lyons, onde está você? Vou encontrá-lo!
Em frenesi, bateu com o punho na janela mais próxima, espatifando o vidro e deixando o vento e a neve invadirem o quarto.
37
Varak aproximou-se do último dos hangares de manutenção na área particular do Aeroporto Internacional de San Diego. Agentes da polícia e da alfândega, em pequenos autos elétricos e motocicletas, circulavam
a todo instante pelas ruas estreitas do vasto complexo, vozes e estática irrompendo esporadicamente dos rádios dos veículos. As pessoas ricas e as corporações altamente lucrativas podiam evitar os problemas
das viagens aéreas comuns, mas não escapavam ao crivo das agências municipais e federais patrulhando o setor. Cada avião que se preparava para decolar precisava não apenas das autorizações usuais de plano
de voo e rota, mas era também submetido a inspeções rigorosas. Além disso, cada pessoa que embarcava tinha que se sujeitar a uma possível revista, por qualquer motivo plausível, quase como se fosse membro
da classe dos impuros. Certos ricos suspeitos não recebiam essa medida sem reclamar.
O tcheco entrara no confortável salão de espera, onde os passageiros de elite aguardavam pela decolagem. Num ambiente de luxo. Perguntara pelo avião de Grinell e a atraente recepcionista, por trás do balcão,
se mostrara mais cooperativa do que ele esperava.
- Faz parte do voo, senhor? - ela indagara, preparando-se para registrar o nome dele no computador.
- Não. Só devo entregar alguns documentos legais.
- Então sugiro que vá até o hangar sete. O senhor Grinell raramente passa por aqui, segue direto para o posto de alfândega e depois para o avião.
- Se pudesse me orientar...
- Pedirei um dos nossos carros para levá-lo.
- Prefiro andar, se não se importa. Gostaria de exercitar as pernas.
- Como quiser, mas permaneça visível no caminho. Nossa segurança é rigorosa e existem todos os tipos de alarmes.
- Seguirei direto de um lampião para outro - comentara Milos, sorrindo. - Está bem assim?
- Não é má ideia - respondera a moça. - Na semana passada um graúdo de Beverly Hills tomou um porre aqui e também quis andar. Pegou o caminho errado e acabou na cadeia em San Diego.
- Só por andar?
- Ele portava umas pílulas esquisitas...
- Não tenho nem mesmo aspirina.
- Ao sair, vire à direita na primeira rua, depois outra vez à direita. É o último hangar na margem da pista. O senhor Grinell tem a melhor localização. Eu gostaria que ele passasse por aqui com mais frequência.
- É uma pessoa muito particular.
- É invisível, isso sim.
Varak não parava de olhar em volta, acenando com a cabeça para os motoristas dos pequenos carros e os motociclistas que se aproximavam, das duas direções, alguns diminuindo a velocidade, outros acelerando.
Ele viu o que queria ver. Havia luzes entre a fileira de hangares à direita, fachos ligados de postes curtos e opostos fincados no chão, destinados a parecer demarcações - de quê?, especulou o tcheco.
Gramados entre casas de comunidades suburbanas do futuro, em que vizinho temia vizinho? No lado esquerdo da rua não havia nada, apenas uma extensão vazia de relva alta, que margeava uma pista auxiliar.
Seria a sua saída do setor particular do aeroporto, depois que concluísse a missão.
A recepcionista fora meticulosa, refletiu Milos, enquanto se aproximava das enormes portas abertas do último hangar. O avião de Grinell tinha mesmo a melhor localização. Depois de autorizado, o aparelho
podia sair para o campo pela porta oposta para decolagem iminente, sob o controle da torre, sem o desperdício de minutos para assumir posição. Certos ricos tinham mais regalias que outros.
Dois guardas de uniforme estavam parados dentro do hangar, à beira do caminho em que a pavimentação de asfalto se encontrava com o concreto interior. Além deles, via-se estacionado um jato Rockwell, vários
homens se espalhando pelas asas prateadas, um pássaro de metal que breve alçaria voo para o céu noturno. Milos estudou os uniformes dos guardas; não eram federais nem municipais; pertenciam a uma firma
particular de segurança. A constatação acarretou outro pensamento, enquanto ele notava que um dos homens era bastante alto e cheio na cintura e ombros. Nada perderia em tentar; alcançara sua posição para
fazê-lo, mas seria muito mais satisfatório liquidar um traidor de perto, confirmando a execução.
Varak avançou descontraído pelo asfalto, na direção da imponente entrada do hangar. Os dois guardas se adiantaram, um deles depois de esmagar um cigarro com o pé.
- O que quer aqui? - perguntou o homem grande, à direita do tcheco.
- Vim tratar de negócios - respondeu Varak, amavelmente. - E creio que são confidenciais.
- O que significa isso? - perguntou o guarda mais baixo, à esquerda.
- Terá de perguntar ao senhor Grinell. Sou apenas um mensageiro e fui instruído a falar com uma só pessoa, que deve transmitir a informação ao senhor Grinell, quando ele chegar.
- Lá vem merda de novo - comentou o guarda mais baixo para seu companheiro. - Se tem documentos ou dinheiro, precisa obter a autorização. Se eles encontram no avião coisa que não foi declarada e não permitem
a decolagem, o senhor Grinell vai explodir, está me entendendo?
- E muito bem, meu amigo. Só trago palavras, que devem ser repetidas rigorosamente. Você está me entendendo?
- Então fale.
- Só a uma pessoa... e escolho ele.
Varak apontou para o grandalhão.
- Ele é muito estúpido. Fale comigo.
- Fui instruído sobre quem devo escolher.
- Merda!
- Por favor, venha comigo - disse o tcheco, gesticulando para a direita, além das luzes. - Vou gravar nossa conversa, mas sem que ninguém mais escute.
- Por que não fala ao próprio chefe? - protestou o guarda ignorado, à esquerda. - Ele estará aqui dentro de poucos minutos.
- Porque nunca devemos nos encontrar frente a frente... em nenhum lugar. Quer perguntar a ele?
- Mais merda.
Depois que entraram pela esquina do hangar, Varak levantou a mão esquerda erh concha.
- Pode fazer o favor de falar diretamente para isto? - ele pediu, sempre amável.
- Pois não.
Foram as últimas palavras de que o guarda se lembraria. O tcheco acertou com a base dura da mão direita na omoplata do homem, depois desferiu três cuteladas na garganta e arrematou com um golpe com os
nós de dois dedos nas pálpebras. O guarda caiu e Varak no mesmo instante começo a a tirar suas roupas. Um minuto e vinte segundos depois tinha vestido o uniforme de segurança particular; levantou as pernas
da calça e puxou os punhos da túnica sobre os pulsos. Estava pronto.
Passados quarenta segundos, uma limusine preta aproximou-se pela rua e parou à entrada do hangar. O tcheco saiu das sombras e avançou vagarosamente pela semiescuridão. Um homem saltou; Milos nunca o vira
antes, mas não teve a menor dúvida de que era Crayton Grinell.
- Oi, chefe! - gritou o guarda à esquerda do hangar, enquanto o vulto de sobretudo, rosto pálido, avançava rápido e irritado pelo asfalto. - Recebemos sua mensagem. Benny está gravando alguma coisa...
- Por que a droga do avião não está na pista? - berrou Grinell. - Já temos autorização para a partida, seus idiotas!
- Foi Benny quem se entendeu com eles, chefe, não fui eu! E falaram com ele há cinco ou dez minutos! Seria diferente se eu estivesse ao telefone! Merda! Comigo não tem merda, entende, chefe? Deveria ter
dito ao cara para falar comigo e não com Benny...
- Cale a boca! Chame meu motorista e diga-lhe para pôr essa porra do avião em movimento! Se eles não conseguem fazer isso, ele pode cuidar de tudo!
- Claro, chefe. Qualquer coisa que mandar, chefe... Já estão ligando os jatos!
Enquanto o guarda começava a gritar pelo motorista da limusine, o tcheco meteu-se no meio dos outros e correu para o carro enorme.
- Obrigado! - gritou o motorista ao passar, vendo o uniforme de Varak. - Ele só vai embarcar no último minuto.
Milos deu a volta por trás da limusine, avançou para o lado da rua, abriu a porta traseira e entrou, sentando-se num banco lateral. Ficou rígido, fitando o rosto balofo do atônito Eric Sundstrom.
- Olá, professor - ele disse suavemente.
- Era uma armadilha... você me armou uma armadilha! - berrou o cientista, nas sombras do interior do carro, enquanto o rugido dos jatos se espalhava pela noite. Você não sabe o que está fazendo, Varak!
Estamos à beira de uma grande descoberta no espaço! Tantas coisas maravilhosas para aprender! Estávamos enganados... Inver Brass se engana! Devemos continuar!
- Mesmo que isso signifique explodir a metade do planeta?
- Não seja idiota! - gritou Sundstrom, suplicante. - Ninguém vai explodir nada! Somos civilizados, ambas as partes, civilizados e receosos! Quanto mais construímos, mais o medo aumenta... Não entende que
essa é a maior proteção do mundo?
- Chama a isso de civilização?
- Chamo de progresso. Progresso científico! Você não compreenderia, mas quanto mais construímos, mais aprendemos.
- Através de armas de destruição?
- Armas? Você é lamentavelmente ingênuo! "Armas" é apenas um rótulo. Como "peixes" ou "legumes". É o pretexto que usamos para financiar o avanço científico numa escala que de outra forma seria proibitiva!
A teoria da "grande explosão" está obsoleta... já temos capacidade para a maior explosão que poderíamos precisar. Tudo se concentra agora nos sistemas de distribuição... orientação orbital e controle remoto,
raios laser direcionais que possam ser refratados no espaço para localizar um ponto a milhares de quilômetros de distância.
- E lançar uma bomba?
- Só se alguém tentar nos deter - respondeu o cientista, a voz tensa, como se a mera perspectiva fosse suficiente para despertar sua fúria. Que no próximo instante foi desencadeada. As feições de querubim
se transformaram nos componentes grotescos de uma gárgula monstruosa. E ele gritou, a voz esganiçada como os guinchos de um porco desvairado: - Pesquisa, pesquisa, pesquisa! Que ninguém se atreva a nos
deter! Estamos nos encaminhando para um mundo novo, em que a ciência vai predominar em toda a civilização! Vocês estão se intrometendo com uma facção política que compreende as nossas necessidades! Não
podem ser tolerados! Kendrick é perigoso! Você o viu e ouviu... ele realiza audiências, faz perguntas estúpidas, obstrui nosso progresso!
- Era o que eu esperava que dissesse. - Lentamente, Varak estendeu a mão por baixo da dobra de seu paletó. - Sabe qual é a penalidade universal para a traição, doutor?
- Mas do que está falando? - As mãos trêmulas, o corpo grande a arfar, o suor escorrendo pelo rosto, Sundstrom olhou para a porta. - Não traí ninguém... só estou tentando impedir um terrível erro, um engano
lamentável, de fanáticos desorientados! Vocês têm de ser detidos, todos vocês! Não podem interferir com a maior máquina científica que o mundo já conheceu!
Nas sombras, Varak sacou a automática; um reflexo de luz irradiou-se do cano para os olhos de Sundstrom.
- Teve meses para dizer isso, mas permaneceu em silêncio, os outros confiando em você. Por sua traição vidas se perderam, corpos foram mutilados... É um homem asqueroso, professor.
- Não! - berrou Sundstrom, deslizando na direção da porta, os dedos frementes segurando a maçaneta.
A porta se abriu e o corpo rotundo do cientista, num pânico frenético, jogou-se para fora. Milos disparou; a bala se alojou na parte inferior da espinha de Sundstrom, enquanto o traidor caía no asfalto,
gritando:
- Socorro! Socorro! Ele está tentando me matar! Oh, Deus, ele me acertou!... Matem-no! Matem-no!
Varak disparou outra vez, a mira agora firme, a bala certeira. A parte posterior do crânio do cientista esfacelou-se.
Imediatamente, em meio aos gritos de confusão, atiraram em resposta do hangar. O tcheco foi atingido em pleno peito e no ombro esquerdo. Escapou da limusine pela porta que dava para a rua, rolou pelo chão
até alcançar o meio-fio oposto. Com uma dor intensa, engatinhou para a escuridão do mato que margeava uma pista auxiliar. Quase não conseguiu chegar lá; de todas as direções soavam sirenes e partiam veículos
em disparada. A força de segurança do aeroporto convergia para o hangar sete, enquanto do outro lado da rua o guarda e o motorista de Grinell disparavam suas armas repetidamente. Varak foi atingido de
novo. Um ricochete a esmo, um tiro ao acaso, penetrou na sua barriga. Tinha de escapar! Sua missão ainda não estava concluída!
Voltou-se e começou a correr pelo mato alto, arrancando primeiro a túnica do uniforme, depois parando um instante para se desfazer da calça. O sangue se espalhava por sua camisa, as pernas agora estavam
trôpegas. Precisava conservar as forças! Tinha de atravessar o campo e alcançar uma estrada, encontrar um telefone. De qualquer maneira!
Refletores. De uma torre por trás dele! Estava de volta à Tchecoslováquia, numa prisão, correndo para uma cerca e a liberdade. Um facho de luz aproximou-se e, como fizera na prisão dos arredores de Praga,
Varak jogou-se no chão e ficou imóvel, até que o carro passasse. Fez um esforço para levantar, sentindo que ficava cada vez mais fraco, mas não podia parar. A distância brilhavam outras luzes - lampiões!
E havia outra cerca! Liberdade, liberdade...
Contraindo cada músculo, pouco a pouco, ele escalou a cerca e viu-se confrontado, no alto, com um cinto de arame farpado. Não importava. Com o que parecia ser o seu último resquício de força, ele impeliu-se
por cima, rasgando as roupas e a carne, mas caindo ao chão no outro lado. Ali ficou estendido, respirando fundo, comprimindo alternadamente a barriga e o peito. Continue! Agora!
Alcançou a estrada, um desses caminhos mal conservados que muitas vezes cercam aeroportos, sem qualquer construção nas proximidades por causa do barulho. Mesmo assim, alguns carros passavam; aqueles atalhos
eram conhecidos por moradores locais. Inseguro, trôpego, Varak avançou para o meio da estrada, acenando com as mãos para um carro que se aproximava. O motorista, ignorou-o. Desviou-se para a esquerda e
passou em disparada. Momentos depois um segundo carro se aproximou pela direita; Varak se manteve tão empertigado quanto podia e levantou a mão, um gesto civilizado de aflição. O carro diminuiu a marcha
e parou, enquanto o tcheco estendia a mão para a arma no coldre.
- Qual é o problema? - perguntou o homem uniformizado ao volante, as asas douradas indicando que era um piloto.
- Sofri um acidente - respondeu Varak. - Meu carro saiu da estrada a cerca de um quilômetro daqui e ninguém parou até agora para me ajudar.
- Está bastante machucado, companheiro... Entre e o levarei ao hospital. Ei, quanto sangue! Vou ajudá-lo.
- Não se incomode, ainda posso andar. - Varak contornou o carro pela frente, abriu a porta e entrou. - Se sujar seu carro, terei o maior prazer em pagar...
- Não vamos nos preocupar com isso.
O aviador engrenou e partiu, enquanto o tcheco tornava a guardar no coldre a arma invisível.
- É muito gentil - murmurou Varak. Tirando um pedaço de papel do bolso, escreveu com a caneta palavras e números no escuro.
- Está bastante ferido, amigo. Aguente firme.
- Por favor, preciso encontrar um telefone.
- A porra do seguro pode esperar, companheiro.
- Não é seguro - balbuciou Varak. - Minha mulher. Ela me esperava há horas... Tem problemas psicológicos.
- Todas elas têm - comentou o piloto. - Quer que eu dê o telefonema?
- Não, obrigado. Ela interpretaria a interferência como uma crise pior do que é.
O tcheco dobrou-se para trás no banco, fazendo uma careta.
- Há uma loja de frutas a cerca de quilômetro e meio. Conheço o dono; ele tem um telefone.
- Não tenho palavras para lhe agradecer.
- Pague um jantar quando sair do hospital.
O perplexo dono da loja de frutas estendeu o telefone para Varak, enquanto o oficial observava, preocupado com seu passageiro ferido. Milos discou para o Westlake Hotel.
- Quarto cinquenta e um, por favor.
- Alô? - gritou Khalehla, saindo de um sono profundo.
- Tem uma resposta para mim?
- Milos?
- Sim.
- Qual é o problema?
- Não estou muito bem, senhorita Rashad. Tem uma resposta?
- Está ferido?
- A resposta!
- Luz verde. Payton pagará o preço. Se Evan for escolhido para candidato, o problema é dele. A corrida começou.
- Ele é mais necessário do que você jamais poderá imaginar.
- Não sei se ele concordará.
- Tem de concordar! Mantenha a linha desocupada. Tornarei a ligar daqui a pouco.
- Você está ferido!
O tcheco apertou a barra do telefone e tornou a discar no mesmo instante.
- Alô?
- Homem do som?
- Praga?
- Como está indo?
- Acabaremos dentro de duas horas. A datilógrafa pôs os fones nos ouvidos e está batendo... Ela cobra alto pelo serviço noturno.
- Qualquer que seja o custo, está... coberto.
- O que há com você? Mal consigo ouvi-lo.
- Um pequeno resfriado... Encontrará dez mil na caixa de correspondência do seu estúdio.
- Não sou um ladrão.
- Já esqueceu que jogo alto?
- Não parece muito bem, Praga.
- Pela manhã, leve tudo para o Westlake, quarto cinquenta e um. O nome da mulher é Rashad. Só entregue a ela.
- Rashad. Quarto cinquenta e um. Certo.
- Obrigado.
- Se você está com algum problema, gostaria que me avisasse. Se eu puder fazer qualquer coisa...
- Seu carro está no aeroporto, em algum lugar da seção C - disse o tcheco, desligando em seguida.
Ele tornou a levantar o fone pela última vez e discou de novo.
- Quarto cinquenta e um.
- Alô?
- Vai receber... tudo... pela manhã.
- Onde está você? Deixe-me mandar ajuda!
- Pela... manhã. Mande para o senhor B!
- Mas que droga, Milos, onde é que você está?
- Não importa... Fale com Kendrick. Ele pode saber.
- Saber o quê?
- Fotografias, a mulher Vanvlanderen... Lausanne, Marina Leman. O Beau-Rivage... os jardins. Depois Amsterdam, o Rozengracht. No hotel... o estúdio dela. Fale com ele! O homem é um saudita e coisas aconteceram
com ele... milhões, milhões! - Milos mal conseguia falar; restava-lhe pouquíssimo fôlego. Continue... continue! - Fuga... milhões!
- Não sei do que está falando.
- Ele pode ser a chave! Não deixe que ninguém tire as fotografias... Fale com Kendrick! Ele pode lembrar!
O tcheco perdeu o controle dos movimentos; largou o fone no balcão, tentou alcançar o disco, depois caiu no chão da casa de frutas de uma estrada secundária próxima ao aeroporto de San Diego. Milos Varak
estava morto.
38
As manchetes e os artigos relacionados dos jornais da manhã ofuscaram todas as outras notícias. O secretário de Estado e toda a sua delegação tinham sido brutalmente assassinados num hotel em Chipre. A
Sexta Esquadra seguia para a ilha, todas as suas armas e aviões de prontidão. A nação estava paralisada, furiosa e muito assustada. O horror de uma incontrolável força do mal surgia no horizonte, empurrando
o país no sentido da confrontação total, levando o governo a reagir com igual horror e brutalidade. Contudo, num golpe de raro gênio geopolítico intuitivo, o presidente Langford Jennings controlou a tempestade.
Fez contato com Moscou e o resultado desse diálogo foi uma condenação conjunta ao atentado pelas duas superpotências. O monstruoso acontecimento em Chipre foi classificado como um ato isolado de terrorismo,
enfurecendo o mundo inteiro. Palavras de louvor e pesar por um grande homem partiram de todas as capitais do mundo, tanto de aliados quanto de adversários.
E nas páginas 2, 7 e 45, respectivamente, do San Diego Union, e nas páginas 4, 50 e 51 do Los Angeles Times, saíram as seguintes notícias menos importantes:
San Diego, 22 de dezembro - A Sra. Ardis Vanvlanderen, chefe da assessoria do vice-presidente Orson Bollinger, cujo marido, Andrew Vanvlanderen, morreu ontem de hemorragia cerebral, cometeu suicídio esta
madrugada, em seu pesar evidente. O corpo foi levado pela maré para a praia em Coronado, sendo a morte atribuída a afogamento. A caminho do aeroporto, seu advogado, Sr. Crayton Grinell, deixou-a na agência
funerária para ver o marido pela última vez. Segundo fontes da funerária, a viúva estava sob grande tensão e quase incoerente. Embora uma limusine a esperasse, ela saiu por uma porta lateral e, ao que
tudo indica, pegou um táxi para a praia em Coronado...
Cidade do México, 22 de dezembro - Eric Sundstrom, um dos mais eminentes cientistas americanos, um dos criadores da tecnologia espacial altamente complexa, morreu de hemorragia cerebral quando se encontrava
de férias em Puerto Vallarta. Poucos detalhes são disponíveis neste momento. Um relato completo de sua vida e obra será publicado nas edições de amanhã.
San Diego, 22 de dezembro - Um homem não identificado, sem documentos, mas portando uma pistola, morreu de ferimentos a bala numa estrada secundária ao sul do aeroporto internacional. O comandante John
Demartin, piloto de caça da Marinha dos Estados Unidos, apanhou-o na estrada e contou à polícia que o homem alegara ter sofrido um acidente de automóvel. Devido à proximidade do campo de pouso particular,
adjacente ao aeroporto, as autoridades suspeitam que a morte pode estar relacionada com o tráfico de tóxicos...
Evan viajou para San Diego no primeiro voo matutino de Denver. Insistiu em ver Manny às seis horas da manhã e não admitiu uma negativa.
- Você vai ficar ficar bom - ele mentiu.
- E você é um artista de merda - respondeu Weingrass. - Para onde está indo?
- ... Khalehla. San Diego. Ela precisa de mim.
- Pois então saia correndo daqui! Não quero mais ver sua cara feia um segundo sequer! Vá se encontrar com ela, ajude-a! Pegue aqueles miseráveis!
O percurso de táxi do aeroporto ao hotel, no tráfego do início da manhã, parecia interminável, a situação agravada pelo motorista, que reconheceu Kendrick e manteve um fluxo de conversa vazia, entremeada
de invectivas contra todos os árabes ao longo de muitas gerações.
- Cada um deles deveria ser preso e fuzilado, certo?
- As mulheres e crianças também, é claro.
- Certo! As crianças crescem e as mulheres produzem mais crianças!
- É uma solução e tanto. Poderia até chamá-la de solução final.
- É a única maneira, certo?
- Errado. Considerando os números e o preço da munição, o custo seria muito alto. Os impostos seriam aumentados.
- Fala sério? Merda, já pago demais. Tem de haver outro jeito.
- Tenho certeza de que encontrará um jeito... E agora, se me dá licença, preciso ler umas coisas.
Kendrick voltou ao seu exemplar do Denver Post e à terrível notícia de Chipre. O motorista, porque estava irritado ou se sentindo repelido, ligou o rádio. Como nos jornais, a cobertura da reportagem era
quase que exclusivamente sobre o abominável ato de terrorismo no Mediterrâneo, com gravações no local e entrevistas de líderes mundiais, traduzidas de várias línguas, condenando o bárbaro ato. E como se
a morte tivesse de seguir a morte, um aturdido Evan ouviu o locutor anunciar:
- Aqui em San Diego ocorreu outra tragédia. A senhora Ardis Vanvlanderen, chefe da assessoria do vice-presidente Bollinger, foi encontrada morta no início desta manhã, na praia em Coronado. Suspeita-se
de suicídio...
Kendrick inclinou-se para a frente no mesmo instante... Ardis? Ardis Vanvlanderen...? Ardis Montreaux! As Baamas... Um participante menor e dissoluto da Off Shore Investments dissera que Ardis Montreaux
se havia casado com um rico californiano! Santo Deus! Fora por isso que Khalehla voara para San Diego. Mitchell Payton encontrara a "prostituta do dinheiro" - e ela era a chefe da assessoria de Bollinger!
O locutor continuou a especular sobre o pesar da viúva recente, uma teorização que Kendrick achou suspeita.
Pagou a corrida, atravessou o saguão do hotel e pegou o elevador para o quinto andar. Olhando os números nas portas, foi seguindo pelo corredor na direção do quarto de Khalehla, ao mesmo tempo ansioso
e deprimido - ansioso por vê-la e abraçá-la, deprimido por Manny, pela carnificina em Chipre, enfim por muitas coisas, mas principalmente por Emmanuel Weingrass, marcado para ser outra vítima de assassinato.
Ao chegar à porta, bateu quatro vezes, ouvindo passos lá dentro antes de baixar a mão. A porta foi aberta e Khalehla aninhou-se em seus braços.
- Oh, Deus, como eu amo você! - Evan sussurrou com os lábios nos cabelos escuros, em palavras apressadas. - E este mundo é tão podre, tão horrivelmente podre!
- Entre depressa. - Khalehla fechou a porta e voltou-se para ele, segurando seu rosto entre as mãos. - E Manny?
- Ele tem entre três e seis meses de vida - respondeu Evan, a voz sem qualquer inflexão. - Está morrendo de um vírus que só poderia ter adquirido através de uma injeção.
- O inexistente doutor Lyons - murmurou Rashad.
- Eu o encontrarei, nem que leve vinte anos.
- Terá toda a ajuda que Washington puder lhe oferecer.
- As notícias são horríveis por toda parte. Chipre, o melhor homem na administração, morto...
- O caso está ligado a San Diego, Evan.
- Como?
Khalehla recuou e pegou sua mão, levando-o através do quarto para um canto em que havia duas cadeiras separadas por uma mesinha redonda.
- Sente-se, querido. Tenho muita coisa para contar que não lhe podia contar antes. E depois há uma coisa que você tem de fazer... por isso pedi que viesse para cá.
- Creio que já sei uma das coisas que vai me contar - disse Kendrick, sentando. - Ardis Montreaux, a viúva Vanvlanderen. Ouvi pelo rádio; disseram que ela cometeu suicídio.
- Ela fez isso ao casar com o falecido marido.
- Veio procurá-la, não é mesmo?
- É verdade. - Rashad acenou com a cabeça, enquanto sentava também. - Você ouvirá e lerá tudo. Há gravações e transcrições que me foram entregues há cerca de uma hora.
- Qual é a ligação com Chipre?
- A ordem foi dada daqui. Por um homem chamado Grinell.
- Nunca ouvi falar.
- Poucas pessoas o conhecem... Evan, é pior do que qualquer coisa que podíamos imaginar.
- Soube disso por intermédio de Ardis?... Bem, em outro tempo ela era Ardis e eu, Evan.
- Eu já sabia. Não, não foi por intermédio dela; com ela só percebemos os contornos e já eram bastante assustadores. Nossa principal fonte é um homem que mataram ontem à noite nas proximidades do aeroporto.
- Quem?
- O louro europeu, querido.
- O quê?
Kendrick arriou na cadeira, o rosto afogueado.
- Ele gravou não apenas a minha entrevista, mas também uma conversa posterior que revelou tudo. À exceção de Grinell, não temos nomes, mas podemos juntar as peças, como num quebra-cabeças com figuras indistintas,
e o quadro é terrível.
- Um governo dentro do governo - murmurou Evan. - Essas foram as palavras de Manny. Os servos controlando a casa do amo.
- Como sempre, Manny está certo.
Kendrick levantou-se e foi até uma janela, apoiou-se no peitoril e olhou para fora.
- Quem era o louro?
- Nunca descobrimos; mas, quem quer fosse, morreu ao nos transmitir a informação.
- Como ele obteve o arquivo de Oman?
- Ele só me disse que a fonte era uma boa pessoa, que apoiava a sua candidatura a um cargo político mais alto.
- Isso não me explica nada! - gritou Evan, virando-se bruscamente. - Tem de haver mais!
- Não há.
- Ele tinha alguma ideia do que eles fizeram? As vidas perdidas, a carnificina?
- Ele disse que lamentava os erros de julgamentos mais do que qualquer outra pessoa. Não sabia que seu arrependimento só duraria outras duas horas.
- Oh, Senhor! - gritou Kendrick para as paredes do quarto. - E esse tal de Grinell? Já o pegaram?
- Desapareceu. Seu avião deixou San Diego rumo a Tucson. Ninguém sabia até esta manhã. O avião ficou em Tucson cerca de uma hora, depois tornou a decolar sem apresentar um plano de voo... Foi o que descobrimos.
- Desse jeito, aviões podem até colidir.
- Não, se conhecerem o tráfego aéreo mexicano, no outro lado da fronteira. MJ acha que a segurança de Grinell pode ter reconhecido os veículos federais que estavam à espera perto da sua casa em La Jolla.
Evan voltou à mesa e sentou-se - um homem exausto, abatido.
- Para onde vamos agora?
- Para a suíte Vanvlanderen, aqui mesmo no hotel. Nosso europeu queria que você olhasse uma coisa... fotografias, para ser mais exata. Não sei por quê, mas ele disse que o homem era um saudita e que você
poderia se lembrar. Algo sobre milhões e uma fuga. Já isolamos a suíte. Pelas regras de segurança nacional, ninguém entra nem sai; ela era a chefe da assessoria de Bollinger e pode haver documentos confidenciais
lá dentro.
- Muito bem, vamos logo.
Desceram no elevador para o terceiro andar e se aproximaram da porta da suíte Vanvlanderen. Os dois policiais uniformizados acenaram com a cabeça. O homem à esquerda fez meia-volta, inseriu uma chave e
franqueou a porta.
- É uma honra conhecê-lo, deputado - disse o guarda à direita, estendendo a mão num súbito impulso.
- Também tenho prazer em conhecê-lo - murmurou Kendrick, apertando a mão do guarda e entrando em seguida.
Depois de fechar a porta, Khalehla disse:
- Qual a sensação de ser uma celebridade?
- Não é agradável nem gratificante - respondeu Evan, enquanto atravessavam o vestíbulo de mármore e desciam para o living rebaixado. - Onde estão as fotografias?
- Ele não foi específico... falou apenas que estavam no escritório de Ardis e que você devia encontrar as que foram tiradas em Lausanne e Amsterdam.
- É ali - disse Kendrick, avistando uma luz de abajur acesa num cômodo à esquerda. - Vamos logo.
Atravessaram a sala acarpetada em direção ao estúdio. Evan ajustou os olhos à pouca claridade, depois foi acender uma lâmpada. As fotografias ficaram iluminadas.
- Enfim, como começamos? - indagou Khalehla.
- Devagar e com todo cuidado - respondeu Kendrick, logo descartando a coleção à esquerda e concentrando-se na parede da direita. - Isto é a Europa... e aqui está Lausanne. - Seus olhos focalizaram duas
pessoas no instantâneo ampliado, com a Marina Leman ao fundo. - É Ardis e... não, não pode ser.
- O que não pode ser?
- Espere um instante. - Evan moveu-se para a direita, concentrando-se em outra ampliação emoldurada, os rostos mais nítidos. - Lausanne de novo. São os jardins do Beau-Rivage... Será mesmo possível?
- O quê? O louro falou em Beau-Rivage. E também em Amsterdam, o Rozen...
- O Rozengracht. Aqui está. - Kendrick apontou para uma fotografia em que os rostos das duas pessoas estavam ainda mais definidos. - Por Deus, é ele mesmo!
- Ele quem?
- Abdel Hamendi. Eu o conheci há alguns anos, em Riad. Era ministro dos sauditas, até que a família real o surpreendeu a trabalhar por conta própria, ganhando milhões com arrendamentos falsos e contratos
irregulares. Ia ser publicamente executado, mas fugiu do país... Dizem que construiu uma verdadeira fortaleza em algum lugar dos Alpes, perto de Divonne, e passou a operar num novo negócio. Armamentos.
Pelo que me contaram, tornou-se o mais poderoso mercador de armas do mundo, e o mais discreto.
- Ardis Vanvlanderen mencionou Divonne na segunda gravação. Foi uma referência rápida, mas agora faz sentido.
Evan recuou e olhou para Khalehla.
- Os instintos do nosso europeu morto estavam certos. Ele não se lembrou dos detalhes, mas viu o sangue em Hamendi tão bem como se escorresse da fotografia... Um governo dentro do governo, operando como
uma corretora global de todas as armas ilícitas do mundo. - Kendrick franziu o rosto subitamente, a expressão aturdida. - Tudo isso está ligado a Bollinger?
- O europeu disse que não havia como determinar. Afinal, que é que ele sabe ou não sabe? Só existe uma coisa certa: Bollinger é o ponto de concentração dos maiores contribuintes para as campanhas políticas
do país.
- Eles estão bem entrincheirados...
- Há mais uma coisa que você deve saber. O marido de Ardis Vanvlanderen foi o homem que fez contato com os terroristas. Preparou os ataques às suas casas.
- Santo Deus! - gritou Kendrick. - Por quê!
- Por sua causa - respondeu Khalehla calmamente. - Você era o alvo; ele o queria morto. Agiu sozinho... e por isso sua mulher foi assassinada, quando os outros descobriram; para cortar todos os vínculos...
pois eles têm medo de você. A partir da semana que vem, será lançada uma campanha nacional que vai incluí-lo na chapa, substituindo Bollinger, para vice-presidente.
- O pessoal do europeu louro?
- Isso mesmo. E os homens em torno de Bollinger não podem admitir que isso aconteça. Acham que você os apertará, vai acabar com a influência que exercem.
- Farei mais do que isso - disse Evan. - Não vou apertá-los, mas sim liquidá-los... Chipre, Fairfax, Mesa Verde... filhos da puta! Quem são eles? Existe uma lista?
- Podemos compilar uma lista com muitos nomes, mas não sabemos exatamente quem está envolvido e quem não está.
- Pois vamos descobrir.
- Como?
- Entrarei no campo de Bollinger. Eles conhecerão um novo deputado Kendrick... aquele que pode ser subornado para desistir de uma chapa nacional.
Mitchell Jarvis Payton olhava pela janela de sua mesa, em Langley, Virginia. Tinha tanto em que pensar que não podia pensar no Natal, o que era uma pequena bênção. Não se arrependia da vida que escolhera,
mas o Natal sempre lhe parecera um tanto penoso. Tinha duas irmãs casadas no Meio-Oeste e um sortimento de sobrinhos, aos quais mandava presentes comprados por sua secretária de muitos anos, mas não tinha
o menor desejo de se juntar à família para os feriados. Não tinham muito assunto para conversar; ele passara tempo demais no outro lado do mundo para dialogar sobre uma serraria e uma corretora de seguros,
e é claro que não podia dizer coisa alguma sobre o seu trabalho. Além disso, os sobrinhos, quase todos crescidos, nada tinham de extraordinário, não havia um só que fosse estudioso, eram persistentes ha
busca coletiva dos objetivos paternos de uma vida boa e tranquila, com segurança financeira. Era melhor estar sozinho. Fora provavelmente por isso que se sentira atraído pela falsa sobrinha, Adrienne Rashad
- era melhor acostumar-se a chamá-la Khalehla, refletiu. Ela era parte do seu mundo, não por escolha dele, mas certamente era parte, e das mais destacadas. Por um momento, Payton desejou que todos estivessem
de volta ao Cairo. Lá os Rashads insistiam pela sua participação na ceia de Natal, sempre perfeita, com a árvore brilhantemente ornamentada e gravações de um coral mórmon entoando cantigas alusivas à festa.
- É isso mesmo, MJ - diria a mulher de Rashad. - Já esqueceu que sou da California? Tenho a pele clara!
Para onde teriam desaparecido aqueles dias? Poderiam voltar? Claro que não. Ele ceava sozinho no Natal.
O telefone vermelho tocou e Payton estendeu a mão para atender.
- Alô?
- Está doido! - gritou Adrienne-Khalehla. - Totalmente doido, MJ!
- Ele a rejeitou?
- Pare com isso! Ele quer se encontrar com Bollinger!
- Sob que pretexto?
- Para se fingir de traidor! Pode imaginar uma coisa dessas?
- Talvez possa, se você for um pouco mais objetiva...
Percebeu uma óbvia disputa pelo aparelho e ouviu várias pragas lançadas de um lado para outro.
- Mitch, aqui é Evan.
- Eu estava adivinhando.
- Vou aderir.
- Ao círculo de Bollinger?
- Lógico. Fiz a mesma coisa em Mascate.
- Pode ganhar uma e depois perder outra, meu jovem. Uma vez bem-sucedido, duas queimado. Aquele pessoal joga duro.
- E eu também. Quero pegá-los. E vou conseguir.
- Vamos acompanhá-lo...
- Não! Tem de ser um solo. Eles possuem o que vocês chamam de equipamento... olhos por toda parte. Tenho de jogar sozinho, partindo do princípio de que posso ser persuadido a abandonar a política.
- É uma contradição grande demais pelo que eles já viram e ouviram de você. Não daria certo, Kendrick.
- Dará, se eu lhes contar parte da verdade... uma parte bastante essencial.
- E o que é?
- Que tudo o que fiz em Oman foi estritamente por interesse pessoal. Estava voltando para recolher os fragmentos, recuperar o dinheiro que deixara para trás. É uma coisa que eles podem compreender.
- Não é suficiente. Eles farão muitas perguntas e vão confirmar as respostas.
- Não há nenhuma pergunta que eu não possa responder - garantiu Kendrick. - Tudo fazendo parte da verdade, tudo facilmente confirmado. Eu estava convencido de que sabia quem se encontrava por trás dos
palestinos e por quê... Ele usara a mesma tática na minha companhia: a verdade. Eu tinha ligações com os homens mais poderosos do sultanato e total proteção do governo. Eles podem confirmar com o jovem
Ahmat, que adoraria esclarecer tudo; seu nariz ainda não voltou ao lugar. Outra vez a verdade, mesmo quando estive na prisão, onde fui observado durante todo o tempo pela polícia... Meu objetivo era apenas
obter informações que sabia existirem, a fim de descobrir um maníaco que se intitulava Mahdi. A verdade.
- Tenho certeza de que há falhas que podem derrubá-lo - insistiu Payton, tomando anotações que mais tarde destruiria.
- Nada de que eu possa me lembrar, e isso é tudo o que importa. Ouvi a gravação do europeu; eles têm bilhões em jogo nos próximos cinco anos e não podem permitir que sua posição fique enfraquecida, por
menos que seja. Não importa que estejam enganados, mas me encaram como uma ameaça, o que eu bem poderia ser em circunstâncias diferentes...
- Que circunstâncias poderiam ser essas, Evan? - interrompeu o homem mais velho em Langley.
- Bem... Se eu ficasse em Washington, por exemplo. Poria na linha cada filho da puta pródigo com os cofres do governo e certo de que pode burlar a lei por alguns milhões aqui e ali.
- Um autêntico Savonarola.
- Sem fanatismo, MJ, apenas um contribuinte irritado que se cansou de ver as táticas desonestas destinadas a sugar os contribuintes por lucros extorsivos... Onde estava eu?
- Sendo uma ameaça para eles.
- Exato. Eles querem me tirar do caminho e os convencerei de que estou pronto a me afastar, que nada tenho a ver com essa campanha para me incluir na chapa... mas que enfrento um problema.
- Posso presumir que esse é o toque mágico?
- Sou, em primeiro lugar e acima de tudo, um homem de negócios, um engenheiro e empreiteiro por treinamento e profissão, e o cargo de vice-presidente me proporcionaria uma projeção que nunca teria de outra
forma. Sou relativamente jovem; dentro de cinco anos ainda estarei na casa dos quarenta. Como ex-vice-presidente, contaria com apoio financeiro e influência no mundo inteiro. É uma perspectiva das mais
tentadoras para um empreiteiro internacional que tenciona voltar ao setor particular... Na sua opinião, MJ, qual seria a reação de Bollinger e seus conselheiros?
- Quer saber? - disse o diretor de Projetos Especiais. - Está copiando as ideias deles, com o mesmo jeito insidioso. Vão lhe oferecer um atalho de cinco anos, com todos os recursos financeiros de que precisar.
- É o que eu imaginava que você diria; e é o que eles vão pensar. Mas como qualquer negociador competente que já ganhou um bom dinheiro, tenho outro problema.
- Estou ansioso por ouvi-lo, meu jovem.
- Preciso de provas, e preciso depressa, a fim de rejeitar o comitê político de Denver que vai se instalar também em Chicago na próxima semana. E rejeitá-lo antes que alce voo e escape ao controle.
- E a prova que exige é uma espécie de compromisso geral?
- Sou um homem de negócios.
- Eles também são. Nada lhe darão por escrito.
- Isso é negociável entre homens de boa vontade. Quero uma reunião com averbamento de intenções de todos os elementos importantes. Apresentarei meus planos, embora vagos, e eles poderão responder. Se conseguirem
me convencer de que são merecedores de confiança. Agirei de acordo... E creio que eles serão muito convincentes, mas a essa altura não fará a menor diferença.
- Porque terá o principal - concordou Payton, sorrindo. - Saberá quem eles são. Devo dizer, Evan, que tudo parece viável, e muito.
- Apenas uma prática consolidada no mundo dos negócios, MJ.
- Mas eu tenho um problema. Para começar, eles nunca acreditarão que você vai mesmo voltar para lá. Acharão que está mentindo. O Oriente Médio se encontra instável demais.
- Eu não disse que voltaria na próxima semana; disse "um dia", e Deus sabe que não mencionaria o Mediterrâneo. Mas falarei sobre os emirados e Bahrain, Kuwait e Qatar, até mesmo Oman e Arábia Saudita,
todos os lugares dos golfos em que o Grupo Kendrick operou. Estão tão normais quanto podem estar, e quando a OPEP tornar a uni-los para uma ação conjunta, haverá negócios e lucros, como antes. Como todas
as empreiteiras da Europa Ocidental, quero uma parcela desses negócios e tenho de me preparar para isso, já que estou de volta ao setor particular...
- Por Deus, você é mesmo bastante persuasivo.
- Apenas um bom negociante... Tenho o bom senso necessário, Mitch. Vou entrar.
- Quando?
- Ligarei para Bollinger dentro de poucos minutos. Não creio que ele se recuse a me atender.
- Não acho fácil. Langford Jennings lhe passaria uma descompostura.
- Quero dar a ele algumas horas para reunir seu rebanho, pelo menos os poucos que contam. Pedirei uma reunião para o final da tarde.
- Marque para o início da noite - sugeriu o executivo da CIA. - Depois do expediente comercial, e seja explícito. Diga que quer uma entrada particular, longe de seus assessores e da imprensa. Tornará sua
mensagem mais convincente.
- Boa ideia, MJ.
- Parece uma boa prática de negócios, deputado.
O comandante John Demartin, da Marinha dos Estados Unidos, estava de jeans e camiseta, aplicando porções generosas de fluido de limpeza no estofamento do banco da frente de seu carro, tentando com um sucesso
mínimo remover as manchas de sangue. Exigiria o trabalho de um profissional, concluiu ele; até que isso fosse feito, diria às crianças que derramara um pouco de soda de cereja no banco, ao voltar da base.
Mas, de qualquer forma, quanto mais reduzisse as manchas, menos custaria... ele confiava.
Demartin lera a notícia na edição matutina do Union, identificando-o pelo nome e declarando que as autoridades suspeitavam que o carona estava ligado ao tráfico de tóxicos; o piloto, contudo não estava
convencido. Não mantinha relações com qualquer traficante de tóxicos, lhe parecia, mas não podia imaginar que fossem tão polidos a ponto de se oferecerem para pagar a limpeza de um assento sujo. Presumia
que tais homens, se feridos, ficariam em pânico, nunca tão controlados nem tão corteses.
Pressionando, Demartin tornou a esfregar o encosto do banco. Seus dedos encontraram alguma coisa flexível. Era um papel. Ele tirou-o e leu, por baixo das manchas de sangue:
Urgente. Seg. Máx. Transmitir contato 3016211133 S-elim
As últimas letras eram rabiscadas, como se quase não restassem forças a quem as escrevera. O oficial saiu do carro e ficou parado, estudando o bilhete, depois subiu pelo caminho de pedra para a porta da
frente de sua casa. Entrou, dirigiu-se à sala de estar e pegou o telefone; sabia para quem ligar. Momentos depois uma secretária o pôs em contato com o chefe do serviço de informações da base.
- Jim, sou eu, John Demartin...
- Ei, li sobre aquele incidente maluco ontem à noite. O que vocês, aviadores, não são capazes de fazer por um pouco de erva... Vai me convidar para a pescaria do sábado?
- Não. Estou ligando exatamente para falar sobre o que aconteceu ontem à noite.
- É mesmo? Qual é o problema?
- Jim, não sei quem ou o que era aquele cara, mas não creio que tivesse ligação com tóxicos. E há poucos minutos encontrei uma mensagem no lugar em que ele estava sentado. Ficou meio ensanguentada, mas
deixe-me ler para você.
- Pode falar. Tenho um lápis pronto para anotar.
O comandante leu com alguma hesitação as letras e números, e perguntou ao acabar:
- Faz algum sentido?
- Pode fazer - respondeu o chefe do serviço de informações, falando devagar, obviamente relendo o que escrevera. - Pode me descrever tudo o que aconteceu, John? A notícia no jornal era bastante imprecisa.
Demartin fez o relato, começando pelo comentário de que o louro falava um excelente inglês, mas tinha um sotaque estrangeiro. E concluiu com o colapso do carona na loja de frutas.
- É isso aí.
- Acha que ele sabia que estava gravemente ferido?
- Se ele não sabia, eu sabia. Tentei não parar para o telefonema, mas ele insistiu... mais do que isso, Jim, ele suplicou. Não tanto em palavras, mas com os olhos... Não os esquecerei por muito tempo.
- Mas não teve qualquer dúvida de que ele voltaria para o carro.
- Absolutamente nenhuma. Creio que ele queria dar um último telefonema; mesmo caindo, tentou discar o telefone no balcão; mas não deu mais.
- Não saia daí. Ligarei para você daqui a pouco.
O piloto desligou e foi até uma janela dando para um pátio e uma pequena piscina. Os dois filhos brincavam na água, gritando um para o outro, enquanto a mulher permanecia reclinada numa espreguiçadeira
lendo o Wall Street Journal, um hábito pelo qual ele se sentia grato. Graças a ela, podiam viver um pouco melhor do que lhe permitia o seu salário. O telefone tocou; ele voltou para atender.
- Jim?
- Correto. John, serei tão claro quanto posso, e não será muito. Há um sujeito aqui que foi mandado por Washington e conhece mais essas coisas do que eu. Ele quer que você faça uma coisa... É demais!
- O que é, Jim? Diga logo!
- Quer que queime o bilhete e esqueça.
O agente da CIA, no terno amarrotado, estendeu a mão para o pequeno pacote amarelo de balas, mantendo o telefone preso no ouvido esquerdo.
- Pegou tudo? - perguntou Shapoff, também conhecido como Pão-de-gengibre.
- Peguei - respondeu M. J. Payton, prolongando a palavra, como se a informação fosse ao mesmo tempo confusa e surpreendente.
- Pelo que interpreta, esse cara, quem quer que ele fosse, combinou "urgente" com "segurança máxima", calculando que, se não o fizesse, o tal oficial da marinha poderia não ter o bom senso de ligar para
a segurança da base, procurando antes a polícia.
- Foi exatamente o que ele pensou - concordou MJ.
- A segurança passaria então a mensagem para o "contato de transmissão".
- A mensagem sendo a de que alguém com o codinome S foi eliminado.
- Temos uma operação com um código S?
- Não.
- Talvez seja o pessoal do Tesouro.
- Duvido muito - respondeu Payton.
- Por quê?
- Porque nesse caso o contato de transmissão é o ponto final. A mensagem não seguiria adiante.
- Como sabe?
- Código de área três-zero-um é Maryland e, infelizmente, posso reconhecer o número. Não consta da lista telefônica e é muito particular.
Payton recostou-se na cadeira, compreendendo por um instante como os alcoólatras e sentem ao pensarem que não podem sobreviver mais uma hora sem um trago, o que representava um passo para longe da realidade.
Como era absurda e ilogicamente lógico! A voz ouvida pelos ouvidos de presidentes, um homem que os líderes na nação sabiam ter os interesses da nação sempre em primeiro lugar no seu pensamento mais íntimo,
sem medo, sem concessão, a objetividade nele uma constante... Escolhera o futuro. Selecionara um deputado pouco conhecido mas extraordinário, com uma história para contar que fascinaria o país. Guiara
seu príncipe ungido pelo labirinto político, até que o novato emergira à luz dos refletores da mídia, não mais um novato mas um veterano que já não se podia ignorar. E depois, de maneira súbita e ousada,
a história fora revelada e a nação - mais do que isso, uma grande parte do mundo - ficara impressionada. Uma onda gigantesca fora posta em ação, levando o príncipe para uma terra de que jamais cogitara,
uma terra de poder, uma casa real de tremenda responsabilidade. A Casa Branca. Samuel Winters violara as regras e, muito pior, ao custo da perda de muitas vidas. O senhor A não caíra do céu num momento
de crise. O europeu louro trabalhava exclusivamente para o augusto Samuel Winters.
O diretor de Projetos Especiais pegou o telefone e gentilmente tocou os números no painel.
- Doutor Winters - ele disse, em resposta ao único "Alô?" no outro lado da linha -, aqui é Payton.
- Foi um dia terrível, não é mesmo, doutor?
- Não uso mais esse título. Abandonei-o há anos.
- Uma pena. Era um excelente especialista.
- Teve notícias do senhor A desde a noite passada?
- Não... Embora sua informação fosse tragicamente profética, não haveria motivo para ele tornar a me procurar. Como eu lhe expliquei, Mitchell, o homem que o emprega, um conhecido muito mais distante do
que você, sugeriu que ele falasse comigo... como aconteceu com você. Minha reputação supera minha presumida influência.
- Mas por seu intermédio eu falei com o presidente - comentou Payton, fechando os olhos às mentiras do velho.
- É verdade. As notícias que me trouxe eram terríveis, da mesma forma que a informação do senhor A. No seu caso, é claro, pensei em você. Não tinha certeza se Langford ou seus assessores possuíam a sua
experiência...
- Obviamente, eu não possuía tanta experiência assim - interrompeu MJ.
- Tenho certeza que fez tudo o que podia.
- Vamos voltar ao senhor A, doutor Winters.
- O que tem ele?
- Está morto.
A exclamação de espanto foi como um choque elétrico transmitido pela linha. Vários segundos passaram antes que Winters falasse; e quando o fez, foi com a voz trêmula.
- O que disse?
- Ele está morto. E alguém que você conhece por S foi eliminado.
- Oh, meu Deus! - sussurrou o porta-voz de Inver Brass, o sussurro um trêmulo eco de si mesmo. - Como obteve essa... informação?
- Lamento, mas é confidencial, não posso revelar nem mesmo a você.
- Mas eu o levei a Jennings! Ao presidente dos Estados Unidos!
- Mas não me explicou o motivo, doutor. Nunca me disse que sua maior preocupação, seu supremo interesse, era o homem que escolheu. Evan Kendrick.
- Não! - protestou Winters, tão perto de um grito de negação quanto era capaz. - Não deve se intrometer nessas questões, não são da sua conta! Nenhuma lei foi violada!
- Eu gostaria de pensar que acredita mesmo nisso, mas, se é verdade, então está completamente enganado. Quando contrata os talentos de alguém como o seu europeu, não pode se divorciar dos métodos que ele
usa... Como já constatamos, incluíram a extorsão política através de chantagem, a corrupção do processo legislativo, o roubo de documentos de segurança máxima e a causa indireta da morte e mutilação de
numerosos agentes do governo... e finalmente assassinato. O codinome 5 foi eliminado.
- Oh, Cristo...!
- Era o que você estava bancando...
- Não compreende, Mitchell, não foi assim que as coisas aconteceram!
- Errado, senhor, foi exatamente assim.
- Nada sei sobre essas coisas e deve acreditar em mim.
- Acredito porque contratou um profissional eficiente pelos resultados, não para lhe dar explicações.
- "Contratou" é um termo simplista demais! Ele era um homem dedicado, tinha uma missão na vida.
- Foi o que me disseram - interrompeu Payton. - Ele veio de um país cujo governo foi roubado do povo.
- E o que acha você que está acontecendo aqui? - perguntou o líder de Inver Brass, as palavras agora controladas, mas a profundeza do significado permanecendo clara.
MJ levou algum tempo para responder, com os olhos fechados outra vez.
- Eu já sei - ele murmurou. - Estamos cuidando disso também.
- Eles mataram o secretário de Estado e toda a delegação em Chipre. Não têm consciência, não têm lealdade a qualquer coisa, a não ser à sua riqueza e poder sempre em expansão... Eu não quero nada, nós
não queremos nada!
- Sei disso. Nada conseguiria, mesmo que quisesse.
- É por isso que ele foi escolhido, Mitchell. Descobrimos o homem extraordinário. Ele é perceptivo demais para ser enganado e decente demais para ser comprado. Além disso, possui os requisitos pessoais
para atrair atenções.
- Não posso condenar sua escolha, doutor Winters.
- Então, onde estamos?
- Num dilema - respondeu Payton. - Mas, por enquanto, é meu e não seu.
San Diego, 7:25 da noite. Eles estavam enlaçados; Khalehla inclinou-se para trás, tocando os cabelos de Kendrick e fitando-o.
- Querido, acha que pode conseguir?
- Está esquecendo, ya anisa, que passei a maior parte da minha vida profissional enfrentando a tendência árabe para negociar.
- Isso era negociar... um pouco exagerado, é claro... não mentir, não sustentar uma mentira na presença de pessoas que desconfiarão de qualquer coisa que você disser.
- Eles vão querer desesperadamente acreditar em mim; são dois pontos para o nosso lado. Além disso, depois que os conhecer não me interessa mais o que possam acreditar.
- Eu não o aconselharia a pensar assim, Evan - disse Rashad, baixando a mão e recuando. - Até os pegarmos, o que inclui provas concretas, eles continuarão operando como sempre... com golpes baixos e sujos.
Se pensarem por um momento sequer que é uma armadilha, seu corpo pode ser encontrado morto na praia, ou talvez nunca seja encontrado, depois de o jogarem em algum lugar do Pacífico.
- Como nos baixios infestados de tubarões de Qatar. - Kendrick balançou a cabeça, recordando Bahrain e o Mahdi. - Entendo o que quer dizer. Posso lhe assegurar que meu gabinete sabe onde estou esta noite.
- Não aconteceria esta noite, querido. Golpe baixo e sujo não significa estupidez. Haverá uma mistura presente... alguns assessores legítimos e provavelmente um punhado de representantes do gabinete secreto
de Bollinger. Velhos amigos que atuam como seus conselheiros... são os homens em que você deve se concentrar. Use todo o seu controle e frieza, e seja convincente. Não deixe que nada o desequilibre.
O telefone tiniu e Evan estendeu a mão para atender, dizendo:
- Deve ser a limusine. Cinza, com janelas escuras, como convém à residência do vice-presidente nas colinas.
San Diego, 8:07 da noite. O homem esguio avançou apressado pelo terminal do Aeroporto Internacional de San Diego, uma maleta negra de médico na mão esquerda, uma valise na direita. As portas de vidro automáticas
para a área de táxis se abriram no momento em que ele chegou ao pavimento de concreto. Saiu e parou por um momento, depois encaminhou-se para o primeiro táxi na fila à espera de passageiros. Abriu a porta,
enquanto o motorista baixava um jornal tabloide.
- Presumo que está disponível - disse o homem bruscamente ao motorista, enquanto jogava a valise no banco e sentava, pondo a maleta de médico no chão.
- Não tenho nenhuma corrida há mais de uma hora. Logo mais encerro o expediente para a noite.
- Então pode me levar.
- Para onde?
- Para o alto das colinas. Conheço o caminho. Direi para onde deve ir.
- Tem que me dar um endereço. É a lei.
- Que tal a residência na California do vice-presidente dos Estados Unidos? - perguntou o passageiro, irritado.
- É um endereço - respondeu o motorista, imperturbável.
O táxi partiu com um solavanco proposital e maldoso, o homem conhecido por um breve instante no Colorado como Dr. Eugene Lyons foi projetado contra o encosto. Mas não se deu conta do insulto, a raiva obscurecendo
suas percepções normais. Era um homem a quem deviam alguma coisa, um homem que fora enganado!
39
As apresentações foram breves e Kendrick teve a nítida impressão de que nem todos os nomes ou títulos eram inteiramente corretos. Por isso, ele estudou cada rosto como se estivesse prestes a gravá-lo numa
tela que era incapaz de pintar. Khalehla tinha razão, o conselho de sete homens era mesmo uma mistura, mas não tão difícil de discernir quanto ela imaginara. Um empregado ganhando trinta a quarenta mil
dólares por ano não se vestia nem se comportava como alguém que gastava tais importâncias numa visita de fim de semana a Paris... ou Divonne. Ele calculou que os empregados se encontravam em minoria: três
assessores oficiais contra quatro conselheiros externos - o gabinete secreto da California.
O vice-presidente Orson Bollinger era um homem de estatura média e compleição média. Estava na meia-idade, e o afligia uma voz estridente também média, que se situava entre os estreitos parâmetros de ser
duvidoso e convincente. Em suma, ele era... médio, o ideal para o segundo no comando, desde que o Número Um desfrutasse de boa saúde e muito vigor. Era vagamente considerado um adulador que talvez pudesse
mostrar-se à altura da ocasião, mas apenas talvez. Não era uma ameaça nem um ser estúpido. Era um sobrevivente político, porque compreendia as regras tácitas dos que não figuram entre os primeiros. Cumprimentou
o deputado Kendrick efusivamente e levou-o para sua impressiva biblioteca particular, onde seu "pessoal" estava reunido, todos sentados em poltronas e sofás cobertos de couro escuro.
- Cancelamos as festividades de Natal - disse Bollinger, sentando na poltrona mais proeminente e indicando que Evan devia se instalar a seu lado -, em deferência aos queridos Ardis e Andrew. Uma tragédia
terrível, dois excepcionais patriotas. Ela não podia viver sem ele. Você teria de vê-los juntos para compreender.
Acenos de cabeça e grunhidos impacientes de concordância partiram de todos os lados da sala.
- Eu compreendo, senhor vice-presidente - interveio Kendrick, com ar triste. - Como talvez saiba, conheci a senhora Vanvlanderen há alguns anos, na Arábia Saudita. Era uma mulher admirável, muito sensível.
- Eu não sabia disso, deputado.
- É irrelevante, mas não para mim, é claro. Nunca a esquecerei. Ela era admirável, extraordinária.
- Como também é o seu pedido para uma reunião esta noite - disse um dos dois assessores oficiais sentados num sofá. - Todos estamos a par do movimento de Chicago para contestar o vice-presidente, e fomos
informados de que não tem o seu endosso. É verdade, deputado?
- Como expliquei ao vice-presidente à tarde, eu não sabia de nada até uma semana atrás... Mas é verdade, não tem o meu endosso. Cogito de outros planos, e estes não envolvem novas buscas políticas.
- Então por que não declara simplesmente que não é candidato? - indagou um segundo assessor, do mesmo sofá.
- As coisas nunca são tão simples como gostaríamos, não é mesmo? Eu não seria franco se dissesse que não me senti lisonjeado pela proposta, e nos últimos cinco dias minha assessoria fez uma pesquisa ampla,
regionalmente e junto à liderança do partido. Concluíram que minha candidatura é uma perspectiva viável.
- Mas acabou de dizer que tinha outros planos - interveio um homem corpulento, de calça de flanela cinza e um blazer azul-marinho com botões dourados... que não era um assessor.
- Creio que disse que cogito de outros planos, outras buscas. Não há nada decidido ainda.
- Onde está querendo chegar, deputado? - perguntou o mesmo assessor que sugerira a Evan para se declarar não candidato.
- Isso pode ficar entre o vice-presidente e mim, não é mesmo?
- Este é o meu pessoal - declarou Bollinger, insinuante, com um sorriso afável.
- Sei disso, senhor, mas meu pessoal não está aqui... para me orientar.
- Não parece nem fala como alguém que precisa de muita orientação - declarou um conselheiro-contribuinte baixo e atarracado, de uma poltrona enorme para sua pequena estatura. - Já o vi na televisão. Tem
opiniões muito firmes.
- Eu não poderia mudá-las, assim como uma zebra não pode mudar suas listras, mas pode haver circunstâncias atenuantes para que permaneçam convicções particulares, em vez de expressas publicamente.
- Está tentando negociar? - perguntou um terceiro contribuinte, alto e magro, camisa aberta, rosto bronzeado.
- Não estou negociando nada - protestou Kendrick, com alguma veemência. - Tento explicar uma situação que não foi esclarecida e acho que precisa ser.
- Não deve se irritar, meu jovem - disse Bollinger, preocupado, franzindo o cenho para seu conselheiro de rosto bronzeado. - Não é uma escolha de palavras aviltante. "Negociar" é um aspecto intrínseco
do nosso grande contrato democrático. E agora me diga: qual a situação que precisa ser esclarecida?
- A crise de Oman... Mascate e Bahrain. O motivo básico pelo qual fui escolhido para um cargo político superior.
Subitamente, ficou claro que todos os homens do vice-presidente pensavam que poderiam receber informações para acabar com o mito de Oman, anulando o apelo mais forte do candidato em potencial. Todos os
olhos se fixaram em Evan, que continuou:
- Fui a Mascate porque sabia quem estava por trás dos terroristas palestinos. Ele usou a mesma tática comigo, afastando minha companhia dos negócios e me roubando milhões.
- Quer dizer que queria vingança? - sugeriu o corpulento conselheiro no blazer de botões dourados.
- Vingança coisa nenhuma! Eu queria minha companhia de volta... e ainda quero. O momento oportuno chegará muito breve e quero voltar para recolher os pedaços, compensar todos os lucros que deixei para
trás.
O quarto contribuinte, homem de rosto corado com um nítido sotaque de Boston, inclinou-se para a frente.
- Pretende voltar ao Oriente Médio?
- Não para os Estados do golfo Pérsico... Há uma diferença. Os emirados, Bahrain, Qatar, Dubai, não são o Líbano, a Síria ou a Líbia de Khadafi. A notícia que vem da Europa é de que as obras recomeçam
por toda parte e tenciono estar lá.
- Vendeu sua companhia - comentou o contribuinte alto e bronzeado de camisa aberta, a fala lacônica mas precisa.
- Uma venda forçada. Valia cinco vezes o que me pagaram. Mas isso não constitui um grande problema para mim. Contra capitais alemães ocidentais, franceses e japoneses, posso ter alguns problemas no início,
mas meus contatos são tão amplos ou mais ainda que os de outros. Além disso...
Kendrick desfiou seu roteiro com uma convicção tácita, mencionando suas relações com as casas reais e ministros de Oman, Bahrain, Abu Dabi e Dubai, falando de proteção e ajuda, inclusive transporte particular,
oferecidas pelos governos de Oman e Bahrain durante a crise de Mascate. E depois ele parou, tão subitamente quanto começara. Projetara um quadro suficiente para atiçar as imaginações de todos; mais, poderia
ser contraproducente.
Os homens na biblioteca olharam uns para os outros. Depois, com um aceno de cabeça quase imperceptível do vice-presidente, o assessor corpulento de blazer azul-marinho falou:
- Parece-me que seus planos estão bem consolidados. Por que haveria de querer um emprego que paga cento e cinquenta mil dólares por ano e muitos jantares de galinha? Afinal, você não é um político.
- Considerando a minha idade, o fator tempo poderia ser atraente. Daqui a cinco anos ainda estarei na casa dos quarenta. A meu ver, mesmo que começasse amanhã a trabalhar por lá, levaria dois anos, talvez
três, para alcançar uma plena operação, com mais um ano de fracos resultados... não há garantias. Mas se seguir pelo outro rumo e procurar ativamente a indicação, poderia até consegui-la... o que não seria
um detrimento para sua pessoa, senhor vice-presidente. É apenas o resultado do tratamento que os meios de comunicação me concederam.
Quando vários outros começaram a falar ao mesmo tempo, Bollinger levantou a mão, apenas poucos centímetros acima do braço da poltrona. Foi o suficiente para silenciar todos.
- E que mais, deputado?
- Acho que é bastante óbvio. Ninguém tem a menor dúvida de que Jennings ganhará a eleição, embora ele possa ter problemas com o Senado. Se eu fosse bastante feliz para entrar na chapa, passaria da Câmara
à vice-presidência, ficaria algum tempo no cargo e sairia com mais influência internacional... e, para ser franco, recursos... do que jamais poderia esperar de outra forma.
- Isso, deputado - gritou um furioso e jovem terceiro assessor, de uma cadeira de espaldar reto, ao lado dos colegas no sofá -, seria usar clamorosamente a confiança do cargo público em proveito próprio!
Houve um desvio geral dos olhos dos contribuintes.
- Se eu não soubesse que falou dessa maneira errada e impetuosa porque não compreende - disse Evan calmamente -, ficaria muito ofendido. Estou declarando um fato óbvio porque quero mostrar uma franqueza
absoluta com o vice-presidente Bollinger, um homem a quem respeito profundamente. O que mencionei é a verdade; acompanha a função. Mas em hipótese alguma essa verdade diminui o empenho que eu daria ao
cargo enquanto estivesse a serviço da nação. Quaisquer que sejam as recompensas que podem derivar de tal posição, quer seja na publicação de livros, participação em conselhos de administração de corporações
ou torneiros de golfe, não seriam concedidas a um homem que tratasse levianamente as suas responsabilidades. Como o vice-presidente Bollinger, eu não poderia fazer isso.
- Muito bem dito, Evan - comentou o vice-presidente com placidez, enquanto lançava um olhar duro para o impulsivo assessor. - Você merece desculpas.
- Peço desculpas - disse o jovem. - Tem toda razão, é claro. Essas coisas são inerentes ao cargo.
- Não precisa exagerar - advertiu Kendrick, sorrindo. - A lealdade a um chefe não é uma coisa de que alguém se deva arrepender. - Voltou-se para Bollinger, acrescentando: - Se ele é faixa-preta, quero
sair daqui o mais depressa possível.
A tensão momentânea dissolveu-se em risos.
- Ele joga pingue-pongue, e muito mal - comentou o assessor mais velho, à esquerda no sofá.
- Ele é muito criativo na contagem - acrescentou o assessor à direita. - Ele rouba.
- Seja como for - continuou Evan, depois de esperar que os sorrisos, quase todos forçados, deixassem os rostos reunidos -, falei sério quando disse que queria ser absolutamente franco, senhor vice-presidente.
São as coisas em que preciso pensar. Perdi quatro anos, quase cinco, de uma carreira... um negócio... que trabalhei muito para desenvolver. Fui interrompido por um assassino louco e forçado a vender porque
as pessoas tinham medo de trabalhar para mim. Ele morreu e as coisas mudaram; estão voltando ao normal, mas a competição europeia é intensa. Posso conseguir sozinho ou devo fazer uma campanha ativa para
entrar na chapa e, se der certo, contar com certas garantias que resultam da ocupação do cargo? Por outro lado, quero realmente consumir os anos adicionais e as enormes quantidades de tempo e energia que
são inerentes à função?... Essas questões somente eu posso responder, senhor. Espero que compreenda.
E foi então que Kendrick ouviu as palavras que esperava ouvir além de qualquer esperança - uma esperança, nesse caso, muito mais significativa do que sua declaração para Bollinger.
- Sei que é tarde para sua assessoria, Orson - disse o homem alto e magro, de camisa aberta e pele bronzeada -, mas eu gostaria de conversar um pouco mais.
- Claro, claro - concordou o vice-presidente, virando-se para seus assessores. - Esses pobres coitados estão de pé desde o amanhecer, amargando as terríveis notícias sobre Ardis e tudo mais. Podem ir para
casa, rapazes, passem o Natal com suas famílias... Eu trouxe todas as esposas e filhos para cá, Evan, no Força Aérea Dois, a fim de que pudessem ficar juntos.
- Uma boa ideia, senhor. Muito atencioso.
- Atencioso coisa nenhuma. Talvez todos sejam faixas-pretas... Estão dispensados, rapazes. Amanhã é véspera de Natal, e se me lembro corretamente, o dia seguinte será Natal. Assim, a menos que os russos
expludam Washington, só tornarei a vê-los dentro de três dias.
- Obrigado, senhor vice-presidente.
- É muito generoso, senhor.
- Podemos ficar, se quiser - disse o mais velho, enquanto os outros se levantavam.
- E deixar que você seja desancado por seus dois colegas? - indagou Bollinger, sorrindo das expressões dos demais. - Eu não poderia aceitar. Na saída, digam ao mordomo que venha aqui. Podemos muito bem
tomar um conhaque enquanto resolvemos todos os problemas do mundo.
Não-veja, Não-fale e Não-ouça deixaram a sala, robôs programados reagindo a uma marcha familiar. O homem de blazer azul-marinho e botões dourados inclinou-se para a frente, um movimento dificultado pela
barriga.
- Quer falar francamente, deputado? Ser realmente franco e realmente honesto? Pois é o que vamos fazer.
- Não compreendo, senhor... Desculpe, mas não me lembro do seu nome.
- Vamos parar com essa merda! - interveio o bostoniano vermelho. - Já ouvi conversa-mole melhor de chefes políticos do Sul.
- Pode enganar os políticos em Washington, Kendrick - acrescentou o homenzinho na poltrona grande demais para ele -, mas nós também somos homens de negócios. Você tem alguma coisa a oferecer e talvez...
apenas talvez... nós tenhamos alguma coisa a oferecer também.
- Está gostando do sul da California, deputado? - o homem forte de camisa aberta e pernas estendidas falou alto, enquanto o mordomo entrava na sala.
- Não queremos nada! - exclamou Bollinger para o servidor de smoking. - Pode se retirar.
- Desculpe, senhor, mas tenho um recado - disse o mordomo, estendendo um bilhete para o vice-presidente.
Bollinger leu-o; seu rosto ficou vermelho a princípio, depois empalideceu rapidamente.
- Diga a ele para esperar. - O mordomo retirou-se e Bollinger acrescentou: - Onde estávamos?
- Em um preço - disse o homem de Boston. - Não era disso que estávamos falando, deputado?
- É um tanto brusco - respondeu Evan. - Mas o termo está no reino das possibilidades.
- Deve saber que passou por dois potentes detectores separados - disse o homenzinho de rosto murcho. - Pode ficar afetado por raios-X, mas não está com qualquer aparelho de gravação.
- Seria a última coisa que eu poderia trazer.
- Ótimo! - disse o homem alto, levantando-se, como se quisesse impressionar os outros por sua altura e imagem, um iatista bronzeado e rude ou qualquer outra coisa que ele fosse; força era a sua mensagem.
Dirigiu-se até a lareira... O Grande Duelo na Cidade da Corrupção, pensou Kendrick. - Percebemos sua insinuação a respeito de capitais alemães, franceses e japoneses deixando-o à deriva. Até que ponto
as ondas são turbulentas em mar aberto?
- Infelizmente não sou um marujo. Terá de ser mais claro.
- O que está enfrentando?
- Em termos financeiros? - Evan fez uma pausa, depois sacudiu a cabeça como se descartasse o assunto. - Nada que eu não possa cuidar. Estou em condições de aplicar entre sete e dez milhões se for necessário,
e minhas linhas de crédito são amplas... mas é claro que existe o problema das taxas de juros.
- E se as linhas de crédito fossem abertas sem esses tipos de ônus? - indagou o homem de Boston.
- Com licença, senhores - interrompeu Bollinger, em tom ríspido, levantando-se, no que foi acompanhado pelos outros em deferência à sua saída sem dúvida iminente. - Tenho de resolver um problema agora
mesmo. Se precisarem de alguma coisa, podem pedir à vontade.
- Não vamos demorar muito, senhor vice-presidente - afirmou Kendrick, sabendo por que Bollinger precisava se distanciar da conversa prestes a ocorrer, qualquer que fosse; a capacidade de negar era imprescindível.
- Como já disse, trata-se de um problema que somente eu poderei resolver da melhor maneira. Apenas queria ser franco sobre a situação.
- E fico grato por isso, Evan. Procure-me antes de sair. Estarei no meu escritório.
O vice-presidente dos Estados Unidos deixou a biblioteca; os contribuintes, como chacais convergindo para a presa, voltaram-se para o representante do Colorado.
- Vamos falar aberto agora, filho - disse o iatista de mais de um metro e noventa, o braço apoiado no consolo da lareira.
- Não sou seu parente e me ressinto com a familiaridade.
- Big Tom sempre fala assim - explicou o bostoniano. - Não quis ofender.
- A ofensa está em sua presunção com um membro da Câmara dos Deputados.
- Ora, deputado, deixe disso! - interveio o homem obeso com o blazer azul-marinho.
- Vamos todos relaxar - disse o homenzinho na poltrona grande. - Estamos aqui com o mesmo propósito e, pondo as cortesias de lado, vamos tratar logo do assunto... Queremos que caia fora, Kendrick. Precisamos
ser mais claros?
- Já que está tão inflexível, acho que seria melhor.
- Está certo - continuou o miúdo conselheiro, os pés mal tocando no chão acarpetado. - Como alguém disse, vamos ser honestos... não custa nada... Representamos uma filosofia política tão legítima quanto
pensa que é a sua; mas porque é a nossa, achamos, como não podia deixar de ser, que é mais realista para os tempos em que vivemos. Basicamente, acreditamos muito mais do que você num sistema de prioridades
orientado para a defesa do país.
- Também creio na necessidade de uma defesa forte - declarou Evan. - Mas não mutilando o orçamento, com sistemas excessivamente ofensivos nos quais quarenta por cento dos gastos resultam em desperdício
e ineficácia.
- Uma boa posição - concordou o homenzinho. - Mas essas áreas de desperdício serão corrigidas pelo mercado.
- Mas não antes que se gastem bilhões.
- Naturalmente. Se fosse de outra forma, estaria falando de um sistema de governo diferente, que não permite a lei malthusiana do fracasso econômico. As forças do mercado livre corrigirão os excessos.
Competição, deputado Kendrick, competição.
- Não se estiverem instaladas no Pentágono ou nos conselhos de administração em que participam muitos antigos chefes do Departamento de Defesa.
- Que se danem todos eles! - exclamou o iatista, de perto da lareira. - Se são tão óbvios, que se enforquem com sua própria corda!
- Big Tom tem razão - comentou o bostoniano. - Há muita coisa em jogo, e de qualquer maneira esses coronéis e generais baratos não passam do lubrificante. Livre-se deles se quiser, mas, pelo amor de Deus,
não pare a engrenagem!
- Está entendendo? - indagou o blazer azul de botões dourados. - Não pare até que sejamos tão fortes que nenhum líder soviético sequer pense num ataque.
- Por que acha que um deles poderia pensar em explodir uma grande parte do mundo civilizado?
- Porque eles são marxistas fanáticos! - gritou o iatista, empertigado diante da lareira, as mãos nos quadris.
- Porque são estúpidos - corrigiu o homenzinho da poltrona, calmamente. - A estupidez é o caminho básico para a tragédia global, o que significa que os mais fortes e mais inteligentes sobreviverão... Podemos
cuidar dos nossos críticos no Senado e na Câmara, deputado, mas não na administração. A eles não podemos tolerar. Estou sendo bem claro?
- Acha mesmo que sou uma ameaça para vocês?
- Claro que é. Sobe num palanque e as pessoas escutam o que diz... de maneira muito convincente, posso acrescentar... Não é do nosso interesse.
- Pensei que tinha o maior respeito pelo mercado.
- E tenho, a longo prazo, mas a curto prazo a fiscalização e regulamentos excessivos podem mutilar a defesa do país com atrasos. Este não é o momento para omissões.
- Nem para esquecer os lucros.
- São inerentes à função, como tão bem explicou em relação ao cargo de vice-presidente... Siga o seu caminho, deputado. Reconstitua sua carreira abortada no Sudoeste Asiático.
- Com o quê? - perguntou Evan.
- Vamos começar com uma linha de crédito de cinquenta milhões de dólares no Gemeinschaft Bank, em Zurich, Suíça.
- É muito convincente, mas apenas palavras. Quem oferece a garantia?
- O Gemeinschaft sabe. Você não precisa saber.
Era tudo o que Kendrick precisava ouvir. Todo o peso do governo dos Estados Unidos aplicado sobre um banco de Zurich, cujas relações com homens ligados aos terroristas do Vale Baaka a Chipre eram conhecidas,
seria suficiente para romper os códigos suíços de sigilo e silêncio.
- Confirmarei a linha de crédito em Zurich dentro de 36 horas - ele disse, levantando-se. - Isso lhes dará tempo suficiente?
- Mas do que suficiente - respondeu o homenzinho na poltrona enorme. - E quando tiver a confirmação, fará a cortesia ao vice-presidente Bollinger de enviar-lhe uma cópia do seu telegrama para Chicago,
retirando o seu nome, em caráter irrevogável, de qualquer consideração para a chapa nacional.
Kendrick acenou com a cabeça, olhando por alto para os outros três contribuintes.
- Boa noite, senhores - ele murmurou, encaminhando-se em seguida para a porta da biblioteca.
Lá fora, no corredor, um homem musculoso, cabelos pretos, bem-apessoado, com o ponto verde do Serviço Secreto na lapela, levantou-se de uma cadeira ao lado de uma porta dupla.
- Boa noite, deputado - disse ele, amavelmente, dando um passo à frente. - Seria uma honra apertar sua mão, senhor.
- O prazer é meu.
- Sei que não devemos dizer quem aparece por aqui - acrescentou o membro do destacamento do Departamento do Tesouro, apertando a mão de Evan -, mas posso violar essa regra por minha mãe em Nova York. Talvez
pareça uma loucura, mas ela acha que o senhor deveria ser o papa.
- A cúria pode achar que me faltam qualificações... O vice-presidente me pediu para procurá-lo antes de ir embora. Disse que estaria em seu escritório.
- Claro. E posso lhe garantir que ele ficará satisfeito com a interrupção. Está com um homem irritado e de pavio tão curto que não confiei nos detectores e o revistei meticulosamente. E não o deixei entrar
com sua parafernália.
Pela primeira vez, Kendrick reparou na valise que estava no chão, à esquerda da porta dupla. Ao lado havia uma pasta preta, comumente usada como maleta médica. Evan ficou olhando; já a vira antes. A tela
interior da sua mente foi sacudida, fragmentos de imagens se substituindo como sucessivas explosões. Paredes de pedra em outro corredor, outra porta; um homem alto e esguio, com um sorriso fácil - fácil
demais, insinuante demais para um estranho numa casa estranha - um médico anunciando, muito à vontade e jovial, que se limitaria a auscultar um peito, tirar uma amostra de sangue para análise.
- Se não se importa - murmurou Kendrick, compreendendo de alguma forma, através da neblina, que mal podia ser ouvido -, gostaria que abrisse a porta, por favor.
- Tenho de bater primeiro, deputado...
- Não, por favor!... Faça o que estou lhe pedindo, por favor.
- O vice-presidente não gostaria, senhor. Temos sempre de bater primeiro.
- Abra essa porta! - ordenou Evan, a voz áspera apenas um sussurro, os olhos arregalados fixando-se por um momento no agente do Serviço Secreto. - Assumirei plena responsabilidade.
- Está bem, está bem. Se alguém tem o direito de fazer isso, acho que é o senhor.
A pesada folha direita da porta foi aberta sem barulho e se pôde ouvir claramente as palavras sibiladas por Bollinger:
- O que está dizendo é um absurdo, uma insanidade!... Pois não é isso?
Kendrick avançou pelo espaço e fitou o rosto aterrorizado, em pânico, do "Dr. Eugene Lyons".
- Você! - berrou Evan, o mundo isolado dentro da sua cabeça enlouquecendo, enquanto ele corria pela sala, as mãos estendidas com as garras de um animal maníaco concentrado apenas em matar. - Ele vai morrer
por sua causa... por causa de vocês todos!
Num turbilhão de violência, braços agarraram-no; mãos golpearam sua cabeça, joelhos explodiram em sua virilha e barriga, os olhos foram atingidos por dedos experientes. Apesar da dor cruciante, ele ouviu
os gritos abafados... um depois de outro.
- Eu o acertei! Ele não vai se mexer mais!
- Feche a porta!
- Pegue a minha maleta!
- Mantenha todos fora daqui!
- Oh, Deus, ele sabe de tudo!
- O que vamos fazer?
- ... Conheço pessoas que podem cuidar disso.
- Quem é você?
- Alguém que deve se apresentar... Víbora.
- Já ouvi esse nome! É um insulto! Quem é você?
- No momento, estou no comando e isso basta.
- Oh, Cristo!
Escuridão - o esquecimento que ocorre com o choque mais profundo. Tudo estava negro; nada.
40
Sentiu o vento e os borrifos primeiro, depois o movimento do mar, e finalmente as largas tiras de pano que o imobilizavam, prendendo-o à cadeira de metal aparafusada no convés do barco a ondular. Abriu
os olhos na escuridão oscilante; estava na popa, a esteira de espuma recuando à sua frente, súbito percebeu as luzes da cabine por trás. Virou-se, esticando a cabeça para ver, para compreender. Viu diante
dele o moreno agente do Serviço Secreto, de cabelos escuros, cuja mãe em Nova York achava que ele deveria ser o papa... e cuja voz ouvira a se proclamar no comando. O homem sentava-se numa cadeira de pescaria
em mar profundo, ao lado da sua, com uma única tira rodeando sua cintura.
- Despertando, deputado? - perguntou polidamente.
- O que é que você fez comigo? - berrou Kendrick, tentando rebentar as tiras que o prendiam.
- Peço desculpas por amarrá-lo, mas não queríamos que caísse na água. O mar está um pouco revolto; nossa intenção foi apenas protegê-lo enquanto respira um pouco de ar fresco.
- Proteger...? Mas vocês me drogaram, seus miseráveis, tiraram-me de lá contra a minha vontade! Vocês me sequestraram! Meu escritório sabe para onde fui esta noite! Vai pegar vinte anos de prisão por isso...
todos vocês! Aquele filho da puta do Bollinger será afastado do cargo...
- Calma, calma - interrompeu o agente, levantando as mãos. - Entendeu mal, deputado. Ninguém o drogou, apenas foi posto sob o efeito de sedativos. Enlouqueceu dentro daquela casa. Atacou um hóspede do
vice-presidente, poderia tê-lo matado...
- Poderia mesmo e ainda vou matá-lo! Onde está aquele médico? Onde está o filho da puta?
- Que médico?
- Seu merda mentiroso! - gritou Kendrick para o vento, sempre fazendo força contra as tiras de pano. Um pensamento súbito ocorreu-lhe. - Minha limusine! O motorista! Ele sabe que eu não fui embora!
- Acontece que foi. Não estava se sentindo muito bem, por isso quase não falou e permaneceu de óculos escuros, mas foi muito generoso com a gorjeta.
Enquanto o barco balançava na água, Evan baixou os olhos de repente para as roupas que usava, à tênue claridade que vinha da cabine por trás. A calça era de um tecido canelado, grosso, e a camisa de brim,
preta... não as suas roupas.
- Filhos da puta! - ele berrou de novo, antes que outro pensamento lhe ocorresse. - Então me viram sair do hotel!
- Lamento, mas não foi para o hotel. Praticamente a única coisa que disse ao motorista foi para deixá-lo no Balboa Park, onde ia se encontrar com alguém e depois apanharia outro táxi para voltar ao hotel.
- Vocês se disfarçaram vestindo as minhas roupas! Não passam de lixo, assassinos de aluguel!
- Continua a pensar da maneira errada, deputado. Estamos dando cobertura a você, não a qualquer outra pessoa. Não sabíamos o que andou fungando ou injetando nas veias, mas o vimos, como diria meu excitado
avô, ficar pazzo, meio maluco... entende o que estou querendo dizer?
- Sei exatamente o que está querendo dizer.
- Assim sendo, é claro que não podíamos permitir que fosse visto em público naquele estado... Pode compreender, não é mesmo?
- Va bene, vagabundo da Máfia. Eu o ouvi... "estou no comando", você disse. "Conheço pessoas que podem cuidar disso", você também disse.
- Sabe, deputado, embora o admire muito, fico bastante ofendido com suas generalizações anti-italianas.
- Diga isso ao promotor federal em Nova York - respondeu Kendrick, enquanto o barco mergulhava e depois subia numa grande onda. - Giuliani está encanando vocês em massa.
- É verdade. E por falar em coisas que se chocam à noite, o que não aconteceu conosco, mas bem que poderia, com este mar, diversas pessoas no Balboa Park viram um homem que pode muito bem se ajustar à
sua descrição... isto é, da maneira como estava vestido quando deixou o hotel e embarcou na limusine... entrar no Balthazar.
- Entrar no quê?
- É um café no Balboa. Temos muitos estudantes por aqui; vêm de toda parte e há um grande contingente do Mediterrâneo. Garotos de famílias que vivem no Irã, Arábia Saudita e Egito... até mesmo no que alguns
ainda chamam de Palestina, eu acho. Às vezes o café escapa ao controle... em termos políticos, é claro... e a polícia precisa acalmar a situação, confiscando coisas como revólveres e facas. Aquelas pessoas
são muito emocionais.
- E fui visto lá dentro, muitos vão confirmar que estive no café.
- Sua coragem nunca foi questionada, deputado. Costuma ir aos lugares mais perigosos em busca de soluções, não é mesmo? Oman, Bahrain... até mesmo a casa do vice-presidente dos Estados Unidos.
- Acrescente suborno à sua lista, vagabundo.
- Ei, espere um pouco! Quero que entenda que nada tenho a ver com o motivo da sua visita a Víbora. Estou apenas prestando um serviço além dos meus deveres normais, entendeu?
- Porque você "conhece pessoas que podem cuidar disso", como alguém vestindo minhas roupas, usando meu carro e entrando no Balboa Park. E talvez mais algumas que puderam me tirar da casa de Bollinger sem
que ninguém me reconhecesse.
- Um serviço de ambulância particular é bastante conveniente e discreto quando hóspedes passam mal ou exageram na bebida.
- E, sem dúvida, mais uma ou duas pessoas para desviar a imprensa ou empregados que possam estar por perto.
- Meus associados fora do governo estão sempre de prontidão para emergências, senhor. E ficamos felizes em prestar ajuda quando podemos.
- Por um preço, é claro.
- Exatamente... Eles pagam, deputado. E pagam de muitas maneiras, agora mais do que nunca.
- Incluindo até um barco veloz e um comandante experiente?
- Oh, não, não podemos aceitar um crédito a que não temos direito - protestou o homem da Máfia, divertido. - Este equipamento é deles, assim como o comandante. Apenas há algumas coisas que as pessoas fazem
melhor sozinhas, especialmente se uma delas vai entrar nas águas muito patrulhadas entre os Estados Unidos e o México. Há influências de diversos tipos, se entende o que estou pretendendo dizer.
Kendrick sentiu uma terceira presença, voltou-se na cadeira mas não viu mais ninguém no convés da embarcação de passeio. Depois levantou os olhos para a amurada de popa da ponte de comando. Um vulto recuou
para as sombras, mas não bastante depressa. Era o contribuinte muito alto e bronzeado da biblioteca de Bollinger e seu rosto estava contraído em raiva.
- Todos os convidados do vice-presidente estão a bordo? - perguntou Evan, percebendo que o mafioso acompanhara seu olhar.
- Que convidados?
- Você é muito esperto, Luigi.
- Há um comandante e um tripulante. Nunca vi nenhum dos dois antes.
- Para onde estamos indo?
- É um cruzeiro.
O barco diminuiu de velocidade e o facho de um potente refletor apareceu na ponte. O soldado da Máfia ergueu-se da cadeira, atravessou o convés e entrou na cabine inferior. Evan pôde ouvi-lo no interfone,
mas não conseguiu entender as palavras devido ao barulho do vento e das ondas. O homem voltou momentos depois; empunhava uma arma, uma automática Colt 45, do tipo comum. Reprimindo o pânico, Kendrick pensou
nos tubarões de Qatar e especulou se um novo Mahdi, no outro lado do mundo, estava prestes a executar a sentença de morte pronunciada em Bahrain. Se assim fosse, Evan faria a mesma decisão que fizera em
Bahrain: lutaria até o fim. Melhor uma bala rápida e misericordiosa na cabeça do que a perspectiva de morrer afogado ou ser devorado pelos tubarões do Pacífico.
- Chegamos, deputado - disse o mafioso, cortesmente.
- Chegamos aonde?
- Não tenho a menor ideia. Parece que é uma ilha.
Kendrick fechou os olhos, dando graças a quem quer que resolvesse aceitá-las, recomeçando a respirar sem tremer. O herói de Oman era uma fraude, ele refletiu. Não queria morrer e, pondo o medo de lado,
havia Khalehla. Encontrara o amor que lhe fugira durante toda a vida, e cada minuto adicional que lhe permitissem viver era mais um minuto de esperança.
- Pela sua aparência, acho que não precisa disso - comentou Evan, acenando com a cabeça para a arma.
- Está bem - respondeu o agente do Serviço Secreto infiltrado pela Máfia. - Vou soltá-lo, mas se fizer qualquer movimento inesperado não pisará em terra, capisce?
- Molto bene.
- Não me culpe, recebi instruções. Quando se presta um serviço, deve-se cumprir as ordens.
Evan ouviu os estalos e sentiu que as largas tiras de pano se afrouxavam em seus braços e pernas.
- Já lhe ocorreu que se cumprir essas ordens talvez nunca mais volte a San Diego?
- Claro - respondeu o mafioso, sossegadamente. - É por isso que temos Víbora num aperto... "Víbora num aperto"... não acha que é uma boa imagem?
- Não conheço essas coisas. Sou um engenheiro, não um poeta.
- E eu tenho uma arma na mão, o que significa que também não sou um poeta. Portanto, deputado, trate de se comportar.
- Presumo que "Víbora" é o vice-presidente.
- Exatamente. Ele disse que já ouvira o nome e considerava um insulto. Pode imaginar uma coisa dessas? Aqueles filhos da puta tiveram a torpeza moral de manter escutas na nossa unidade!
- É lamentável - murmurou Kendrick, levantando-se desajeitado e sacudindo pernas e braços a fim de restaurar a circulação.
- Devagar! - gritou o agente do Serviço Secreto, dando um pulo para trás e apontando a 45 para a cabeça de Evan.
- Experimente sentar na porra da cadeira por tanto tempo quanto eu e veja se consegue andar em linha reta!
- Está bem, está bem. Pode andar em ziguezague para o lado deste rebocador de luxo, até os degraus, por onde vai desembarcar.
O iate contornou o que parecia ser uma enseada e depois, aos arrancos, em avanços e recuos, encostou num atracadouro com cerca de trinta metros de comprimento, onde se encontravam três outras embarcações,
menores, mais rápidas, mais potentes, balançando lado a lado. Lâmpadas protegidas por telas de arame iluminavam o cais. Dois vultos vieram correndo da escuridão, postando-se junto aos postes designados.
Enquanto o barco era habilmente manobrado para a atracação, dois cabos foram jogados da proa e popa, um pelo mafioso, que tinha a arma na mão esquerda, o outro pelo único tripulante.
- Saia! - gritou o mafioso para Kendrick, enquanto o iate batia gentilmente nos pneus do cais.
- Eu gostaria de agradecer ao comandante por uma viagem segura e agradável...
- Muito engraçado, mas deixe isso para os filmes e saia de uma vez - disse o agente do Serviço Secreto. - Não vai ver ninguém.
- Quer apostar, Luigi?
- Quer ver seus colhões caídos no convés? E meu nome não é Luigi.
- Que tal "Reginald"?
- Saia!
Evan percorreu o atracadouro da ilha, na direção de um caminho de pedra ascendente, vindo o mafioso logo atrás. Passou entre duas placas pintadas a mão: letras brancas sobre madeira marrom manchada, feitas
com bom gosto, profissionalmente. A placa da esquerda era em espanhol, a da direita em vernáculo.
PASAJE A CHINA
PROPRIEDADE PRIVADA
ALARMAS
PASSAGEM PARA A CHINA
PROPRIEDADE PARTICULAR
ALARMES
- Pare aí - ordenou o agente do Serviço Secreto. - Não se volte. Olhe direto para a frente.
Kendrick ouviu o barulho de pés correndo no cais, depois vozes baixas, as palavras com sotaque hispânico. Instruções estavam sendo dadas.
- Muito bem - acrescentou o mafioso. - Continue a subir e vire à direta... Não olhe para trás!
Evan obedeceu, embora subisse com dificuldade pelo caminho íngreme; a longa viagem no iate, amarrado na cadeira, deixara suas pernas entorpecidas. Tentou estudar o local na semiescuridão, as luzes no cais
mal ajudando as pequenas lâmpadas de cor âmbar ao longo do caminho de pedra. A folhagem era viçosa, densa e úmida; árvores por toda parte elevavam-se a seis, sete e até dez metros, com grossas trepadeiras
que pareciam saltar de um tronco a outro, braços envolvendo braços e corpos. Moitas e relva alta haviam sido aparadas com precisão, formando paredes até a cintura, idênticas, nos lados do caminho. A ordem
fora imposta à mata. Depois a visão de Kendrick foi consideravelmente atenuada pela subida quase a prumo e a escuridão crescente à medida que se afastava do cais, os sons se tornando o foco principal.
O que atingiu seus ouvidos não era muito diferente do som das corredeiras durante suas expedições, mas este tinha um ritmo próprio, uma pulsação particular que controlava a trovoada... Ondas, é claro.
Ondas chocando-se contra rochedos não muito longe ou talvez o ruído ampliado pelos ecos ricocheteando na rocha e reverberando pela mata.
As luzes âmbar ao nível do chão dividiram-se em dois conjuntos de linhas paralelas, um seguindo reto em frente, subindo, outro virando à direita; Kendrick tomou o segundo. A trilha nivelou-se a uma passagem
aberta na colina, houve de repente um aumento enorme na visibilidade. Hastes pretas e sombras densas transformaram-se em troncos escuros e moitas de um azul esverdeado. Bem à frente havia uma cabana, luzes
brilhando através de duas janelas, flanqueando uma porta central. Mas não era uma cabana comum e a princípio Evan não entendeu por que pensava assim. Só compreendeu ao chegar mais perto. A diferença estava
nas janelas; ele nunca vira nada igual. Explicavam a profusão de luz, quando a fonte parecia ser mínima. O vidro biselado tinha pelo menos dez centímetros de espessura, como dois enormes prismas retangulares,
ampliando muitas vezes a luz interior. E havia algo mais, acompanhando essa ideia fantasiosa. As janelas eram impenetráveis... pelos dois lados.
- Esta é a sua suíte, deputado - disse o agente do Serviço Secreto que prestava serviços extras. - "Sua própria villa" não seria uma descrição melhor?
- Não posso aceitar acomodações tão generosas. Por que não me arruma algo menos pretensioso?
- É um comediante regular... Pode ir até lá e abrir a porta. Não tem chave.
- Não tem chave?
- Isso o surpreende, não é mesmo? - O mafioso soltou uma risada. - A mim também surpreendeu, até que o guarda me explicou. É tudo electronica. Tenho um pequeno instrumento, como um controle remoto de abrir
garagem, basta apertar um botão e duas barras de aço saem do batente e franqueiam ou cerram a porta. Funciona também por dentro.
- Com um pouco de tempo eu poderia perceber isso pessoalmente.
- É muito esperto, deputado.
- Não tanto quanto eu deveria ter sido.
Kendrick foi abrir a porta. Seus olhos foram recebidos pelo esplendor rústico de um refúgio nas montanhas da Nova Inglaterra, bem decorado, que em nada lembrava o sul da California ou o norte do México.
As paredes eram formadas por toras cimentadas, havia duas janelas em cada uma das quatro paredes, uma abertura no meio da parte dos fundos, obviamente para um banheiro. Todas as necessidades eram atendidas:
uma área de cozinha à direita, completa, inclusive com um bar espelhado; à esquerda uma cama enorme, tendo na frente um aparelho de televisão grande e diversas poltronas. O construtor Evan concluiu que
a pequena habitação pertencia mais a um lugar como Vermont, com muita neve, do que às águas em algum lugar ao sul e oeste de Tijuana. Ainda assim, possuía um encanto bucólico e ele não teve a menor dúvida
de que muitos hóspedes da ilha já haviam desfrutado seu aconchego. Mas a cabana tinha outro propósito. Era também uma cela de prisão.
- Muito agradável - comentou o guarda de Bollinger, avançando pelo cômodo único, a arma sempre apontada para Kendrick, discretamente. Ele se encaminhou para o bar espelhado, acrescentando: - Que tal um
drinque, deputado? Não sei quanto a você, mas eu bem que estou precisando.
- Por que não? - respondeu Evan, correndo os olhos pelo cômodo projetado para um clima do norte.
- O que prefere?
- Uísque canadense e gelo, mais nada.
Kendrick circulou lentamente de uma área para outra, examinando o interior da cabana, os olhos experientes procurando falhas que pudessem permitir uma fuga. Não havia nenhuma; o lugar era à prova de fuga.
Os caixilhos das janelas estavam presos, não com pregos de magnésio embutidos, mas com trancas cobertas por reboco; a porta da frente tinha dobradiças internas, impossíveis de alcançar sem uma furadeira
potente; e, finalmente, entrando no banheiro, ele constatou que não tinha nenhuma janela, só duas pequenas aberturas de ventilação gradeadas, com dez centímetros de largura.
- Um grande esconderijo, não acha? - disse o mafioso, saudando Evan com seu copo quando ele saiu do banheiro.
- Desde que a pessoa não goste de apreciar um panorama - respondeu Kendrick, os olhos vagando a esmo pela área da cozinha.
Alguma coisa parecia estranha, ele pensou, mas de novo nada lhe ocorreu de específico. Consciente da arma do guarda, ele passou pelo bar espelhado e foi até uma mesa oval de carvalho escuro, onde presumivelmente
as refeições eram servidas. Estava a cerca de dois metros de um comprido balcão, no meio do qual fora instalado um fogão, sob uma fileira de armários. A pia e a geladeira, separadas por outro balcão, estavam
encostadas na parede da direita. O que o estaria incomodando? Em seguida ele viu um pequeno forno de micro-ondas, embutido sob o último armário da esquerda; tornou a olhar para o fogão. Era isso.
Elétrico. Tudo era elétrico, esse era o fato estranho. Na grande maioria das cabanas rústicas o gás propano era canalizado de botijões portáteis que ficavam fora, a fim de eliminar a necessidade de eletricidade
para utensílios como fogões e fornos. O objetivo era manter o consumo reduzido ao mínimo, não tanto pela despesa, mas por uma questão de conveniência, para o caso de interrupções no fornecimento de energia.
Evan pensou nas lâmpadas do atracadouro e nas luzes cor de âmbar no chão, ao longo dos caminhos. Eletricidade. Uma abundância de eletricidade numa ilha a pelo menos trinta quilômetros do continente - ou
seria a oitenta? Não tinha certeza do que isso significava, mas era algo em que deveria pensar.
Ele deixou a área da cozinha e foi para a área do living. Olhou para o aparelho de televisão e especulou que tipo de antena seria necessário para captar sinais através de tantos quilômetros de mar aberto.
Evan sentou-se, agora sem pensar na escolta armada, a mente empenhada em muitas outras coisas, inclusive - e com alguma angústia - em Khalehla, no hotel. Ela aguardava sua volta há várias horas. O que
estaria fazendo? O que poderia fazer? Evan levantou o copo e tomou vários goles do uísque, agradecido pela sensação de calor que se espalhou depressa pelo corpo. Olhou para o guarda de Bollinger, que estava
de pé, descontraído, ao lado da mesa de carvalho toda manchada, a arma confiantemente em cima do tampo, mas na beira, perto da sua mão direita livre.
- À sua saúde - disse o homem da Máfia, levantando o copo na mão esquerda.
- Por que não?
Sem retribuir à cortesia, Kendrick bebeu, sentindo outra vez os efeitos quentes e confortantes do uísque... Não! O efeito era muito rápido, quente demais, não estava esquentando, mas queimando! Os objetos
na sala começaram a pulsar, entrando e saindo de foco; ele tentou se erguer, mas não conseguiu controlar as pernas e os braços! Olhou para o mafioso que sorria descaradamente e começou a gritar, mas nenhum
som saiu da sua garganta. Ouviu o copo se espatifar no chão duro de madeira e sentiu um peso terrível a empurrá-lo para baixo. Pela segunda vez naquela noite, a escuridão o envolveu enquanto caía por um
infinito vazio de espaço negro.
O agente do Serviço Secreto aproximou-se de um painel de intercomunicação embutido na parede, ao lado do bar espelhado. O rosto franzido em pensamentos, apertou três botões, os números que lhe haviam fornecido
no barco.
- Pois não, Cabana - disse uma suave voz de homem.
- Seu menino está dormindo de novo.
- Ótimo. Estamos prontos para ele.
- Tenho de fazer uma pergunta - disse o capo bem-falante. - Em primeiro lugar, por que o trouxemos para cá?
- Para um procedimento médico, embora isso não seja da sua conta.
- Eu não tomaria essa atitude, se estivesse no seu lugar. Temos um crédito e vocês são os devedores.
- Está certo. Sem uma história médica, há limites aceitáveis e inaceitáveis da dosagem.
- Duas aplicações moderadas, em vez de uma única excessiva?
- Mais ou menos isso. Nosso médico é muito experiente nessas coisas.
- Se é o mesmo, mantenha-o fora de vista. Ele está na lista de mortos de Kendrick... E mande os seus hispânicos até aqui, porque não fui contratado para carregar corpos.
- Claro. E não se preocupe com aquele médico. Ele também estava na lista de outros.
- MJ, ele ainda não voltou e já são três e quinze da madrugada! - gritou Khalehla ao telefone. - Descobriu alguma coisa?
- Nada que faça sentido - respondeu o diretor de Projetos Especiais, a voz cansada. - Não liguei antes porque pensei que você estivesse descansando um pouco.
- Não minta para mim, tio Mitch. Nunca teve qualquer escrúpulo em me pedir para trabalhar a noite inteira. E é Evan quem está desaparecido!
- Eu sei, eu sei... Ele disse alguma coisa a você sobre um encontro com alguém no Balboa Park?
- Não. Acho que ele nem sabe onde fica ou o que é.
- E você sabe?
- Claro. Já esqueceu de que meus avós vivem aqui?
- Conhece um lugar chamado Balthazar?
- É um café frequentado por jovens impetuosos, árabes para ser mais precisa, quase todos estudantes. Estive lá uma vez e nunca mais voltei. Por que pergunta?
- Depois do seu telefonema, há várias horas, entramos em contato com a casa de Bollinger... como se fôssemos do gabinete de Kendrick, é claro... dizendo que tínhamos uma mensagem urgente para ele. Fomos
informados de que ele saíra de lá cerca das nove horas, o que contradizia a sua informação de que ainda não voltara às onze horas; na pior das hipóteses, é uma viagem de meia hora da casa do vice-presidente
até o hotel. Procurei Pão-de-gengibre... Shapoff... que é muito eficaz nessas situações. Ele descobriu tudo, inclusive o motorista da limusine de Evan. Nosso deputado pediu para ser deixado no Balboa Park.
Pão-de-gengibre fez o que devia e "rondou pela vizinhança", para repetir suas palavras. O que ele descobriu pode ser formulado em duas conclusões enigmáticas. Uma: um homem que se ajusta à descrição de
Evan foi visto andando pelo Balboa Park. Duas: diversas pessoas dentro do Balthazar declararam que esse mesmo homem, usando óculos escuros, entrou lá e ficou algum tempo junto às máquinas de café de cardamomo,
depois sentou-se a uma mesa.
- Mitch! - exclamou Khalehla. - Estou olhando para os óculos escuros de Evan neste momento! Estão em cima da cômoda. Ele os usa às vezes durante o dia, a fim de não ser reconhecido, mas nunca à noite.
Diz que à noite, atraem a atenção, e está certo. O tal homem não era Evan. Tudo não passou de uma encenação. Ele está prisioneiro em algum lugar!
- Jogo duro - murmurou Payton. - Teremos de agir do mesmo jeito.
Kendrick abriu os olhos como uma pessoa insegura do lugar em que se encontra ou do estado em que está, sem mesmo saber se despertara ou se continuava dormindo. Havia apenas perplexidade, nuvens de confusão
turbilhonando na sua cabeça, uma dormência causada pela assustadora incerteza. Uma luz estava acesa em algum lugar, a claridade se espalhando pelo teto de vigas. Ele mexeu a mão, levantando o braço direito
da cama desconhecida, no quarto desconhecido. Estudou a mão e o braço; depois, subitamente, bem depressa, levantou o braço esquerdo. O que acontecera? Sacudiu as pernas e pôs os pés no chão, levantou-se
trôpego, dominado por partes iguais de terror e curiosidade. A calça de tecido canelado e a camisa preta de brim haviam desaparecido. Estava vestido novamente em suas próprias roupas! No terno azul-marinho,
o terno da Câmara, como com frequência o chamava ironicamente, o terno que usara ao ir para a casa de Bollinger! E também a camisa branca e a gravata listrada, tudo recentemente lavado e passado! O que
acontecera? Onde estava? Onde estava a cabana rústica e bem decorada, com aqueles aparelhos elétricos e o bar espelhado? Viu-se num quarto grande em que nunca estivera antes.
Devagar, recuperando o equilíbrio, circulou pelo ambiente estranho, uma parte da sua mente especulando se vivia um sonho ou se acabara de sair de um. Avistou um par de portas de vidro, altas e estreitas;
adiantou-se apressado e abriu-as. Davam para uma varanda pequena, mas com espaço suficiente para um casal tomar café, embora não mais do que isso - uma mesinha redonda e duas cadeiras de ferro batido se
encontravam ali provavelmente para esse ritual. Kendrick parou diante da grade que lhe chegava à cintura e correu os olhos pelo terreno às escuras, um negrume em que as únicas fontes de luz eram a lua
muito pálida e as linhas de iluminação âmbar correndo por várias direções... e mais alguma coisa. Ao longe, sob a luz de refletores, percebeu uma área cercada, não muito diferente de uma enorme gaiola
de arame. No interior da gaiola havia o que pareciam ser blocos de máquinas maciças, algumas pretas e brilhantes, outras cromadas e prateadas, igualmente tremeluzindo ao luar fraco e encoberto por nuvens.
Evan concentrou-se naquela vista, depois virou a cabeça para escutar; ouviu um zumbido firme, ininterrupto, e compreendeu que encontrara a resposta para o problema que o confundira. Não precisava ver os
avisos que diziam PERIGO - Alta Voltagem; sabia que estavam lá. Os equipamentos cercados eram componentes de um imenso conjunto gerador, indubitavelmente abastecido por gigantescos tanques de combustível
subterrâneos e campos de células fotovoltaicas, para alternadamente captarem a energia do sol tropical.
Por baixo da varanda havia um pátio de lajotas rebaixado, a uma distância de sete metros ou mais, o que significava um tornozelo torcido ou uma perna quebrada se alguém tentasse escapar por ali. Kendrick
estudou as paredes externas; o cano de drenagem mais próximo ficava no canto da estrutura, fora de alcance, não havia trepadeiras em que se pudesse apoiar, apenas estuque puro... Cobertores? Lençóis! Amarrados
uns aos outros com firmeza, poderiam lhe permitir uma descida de quatro ou cinco metros! Tinha de se apressar... Mas subitamente suspendeu todo movimento, interrompeu o pensamento de correr até a cama,
ao divisar um vulto que parecia andar por um caminho de luzes fracas, com um rifle pendurado no ombro. Ele levantou o braço, um sinal. Evan olhou para a esquerda; um segundo homem respondia ao sinal; eram
sentinelas se comunicando. Kendrick levantou o relógio até os olhos, tentando ver o ponteiro dos segundos na semiescuridão da noite. Se pudesse calcular as coordenadas das sentinelas e deixar tudo preparado...
Mas outra vez foi obrigado a interromper os planos gerados por seu desespero. A porta do quarto se abriu e ele teve de enfrentar a realidade.
- Pareceu-me ouvi-lo andar - disse o mafioso do Serviço Secreto.
- E eu deveria saber que havia microfones no quarto - respondeu Evan, vindo da varanda.
- Continua a ver as coisas da maneira errada, deputado. Este é um quarto de hóspedes, na casa principal. Acha que pessoas de classe ouviriam as conversas particulares de seus hóspedes ou suas intimidades
perfeitamente naturais?
- Acho que são capazes de qualquer coisa. Se não fosse assim, como poderia você saber que eu estava acordado?
- Muito fácil - disse o mafioso, indo até a cômoda na parede da direita e apanhando um objeto pequeno e achatado que ali se encontrava. - Por isto aqui. São usados por pessoas com filhos pequenos. Minha
irmã que mora em Nova Jersey não vai a lugar algum sem isto... São vendidos aos pares. Um fica ligado num quarto e o segundo em outro, e pode-se ouvir a criança chorando. E os meus sobrinhos gritam que
não é brincadeira. Pode-se ouvi-los em Manhattan.
- Muito esclarecedor. Quando recebi minhas roupas de volta?
- Não sei. Os hispânicos cuidaram de você, não eu. Talvez tenha sido estuprado e não saiba.
- Mais uma vez, muito esclarecedor... Tem alguma ideia do que fez, da confusão em que se envolveu? Sequestrou alguém não desconhecido e que ocupa um cargo público, um membro da Câmara dos Deputados.
- Por Deus, você dá a impressão de que foi o sequestro do maître do Pasta Palace do Vinnie.
- Não está sendo nada engraçado...
- Mas você está - interrompeu o guarda, tirando a automática do coldre no ombro. - E também está sendo chamado, deputado. Esperam-no lá embaixo.
- E se eu recusar o convite?
- Nesse caso abro um buraco na sua barriga e empurro um cadáver pela escada. O que quer que seja, não me importo. Estou sendo pago por um serviço, não por uma entrega garantida. Faça sua opção, herói.
A sala era o pesadelo de um naturalista. As cabeças de animais abatidos estavam penduradas nas paredes brancas, os olhos artificiais e ansiosos refletindo o pânico da morte iminente. Peles de leopardo,
tigre e elefante eram os estofamentos, bem esticadas as presas com tachões sobre poltronas e sofás. Ali estava uma afirmação do poder da bala de um homem sobre a inocente vida selvagem imponente e triste,
tão triste quanto os vazios triunfos dos vencedores.
O guarda do Serviço Secreto abrira a porta, gesticulara para Kendrick entrar e depois a fechara, permanecendo no corredor. Depois que o efeito inicial da sala passou, Evan percebeu um homem sentado a uma
escrivaninha grande, apenas a parte posterior da cabeça visível. Só algum tempo depois que a porta foi fechada, como se quisesse ter certeza de que estavam a sós, o homem se voltou na cadeira giratória.
- Nunca nos encontramos, deputado - disse Crayton Grinell, no seu ritmo suave e agradável de advogado -, e por mais descortês que possa parecer, prefiro permanecer anônimo... Sente-se, por favor. Não há
motivo para ficar mais desconfortável do que o necessário. Por isso mesmo as suas roupas lhe foram devolvidas.
- Aposto que serviram ao seu propósito num lugar chamado Balboa Park.
Kendrick sentou-se numa cadeira na frente da escrivaninha; o assento estava coberto por uma pele de leopardo.
- Isso mesmo, o que nos proporciona opções - comentou Grinell.
- Entendo... - Evan reconheceu subitamente a voz característica que sabia já ter ouvido antes. Estava na gravação do louro europeu. O homem à sua frente era o desaparecido Crayton Grinell, o advogado responsável
pela carnificina em Chipre. O assassino do secretário de Estado. - Mas como não quer que eu saiba quem você é, devo deduzir que uma dessas opções pode me levar de volta a San Diego?
- É possível, mas devo enfatizar a parte questionável. Estou sendo franco com você.
- O que já aconteceu com seus amigos na casa de Bollinger.
- Tenho certeza de que eles foram francos e você também.
- Tinham de agir assim?
- Agir como?
- Matar um velho.
- Não tivemos nada a ver com isso. Além do mais, ele não morreu.
- Mas vai morrer.
- E o mesmo acontecerá um dia a todos nós... Foi um ato gratuito e estúpido, tão estúpido quanto as incríveis manipulações dó marido de Ardis através de Zurich. Podemos fazer muitas coisas, deputado, mas
não somos estúpidos. Contudo, estamos perdendo tempo. Os Vanvlanderens morreram, e qualquer coisa que aconteceu está sepultada com eles. O suposto "Dr. Lyons" nunca mais será visto...
- Eu o quero! - exclamou Kendrick.
- Nós já o pegamos e ele recebeu a pena máxima que um tribunal pode aplicar.
- Como posso ter certeza?
- Como pode duvidar? O vice-presidente ou qualquer um de nós poderia tolerar tal associação?... Lamentamos profundamente o que aconteceu com o senhor Weingrass, mas não contribuímos para isso. Repito,
o doutor e os Vanvlanderens já não existem mais. Eles são um livro fechado. Pode aceitar essa afirmação?
- Era necessário me drogar, me trazendo até aqui para me convencer?
- Não podíamos deixá-lo em San Diego falando aquelas coisas.
- Então, do que estamos falando agora?
- De outro livro - respondeu Grinell, inclinando-se para a frente. - Nós o queremos de volta e em troca você recupera a liberdade. Será devolvido ao hotel com suas próprias roupas, nada terá mudado. Agora
é manhã em Zurich; uma linha de crédito no valor de cinquenta milhões de dólares foi aberta em seu nome.
Aturdido, Evan tentou não deixar transparecer sua surpresa.
- Outro livro?... Não tenho certeza se entendo.
- Varak roubou-o.
- Quem?
- Milos Varak.
- O europeu...?
O súbito reconhecimento do nome escapou involuntariamente. Era Milos.
- O lacaio muito profissional e morto de Inver Brass!
- Inver o quê?
- Seus promotores em potencial, deputado. Não pensa que chegou onde está por si mesmo, não é?
- Eu sabia que alguém estava me empurrando...
- Empurrando? "Catapultando" seria mais apropriado... Lunáticos intrometidos! Não sabiam que um deles era também um dos nossos.
- O que o faz pensar que o europeu... que esse Varak está morto? - perguntou Evan, pelo menos para ganhar algum tempo e se ajustar às revelações que surgiam depressa demais.
- Saiu no jornal... sem o nome, é claro, mas inequívoco. Mas antes de morrer ele esteve em algum outro lugar, com alguém que trabalhava para nós. Só pode ter sido isso, caso contrário ele não chegaria
ao aeroporto... E então roubou.
- Esse outro livro? - indagou Kendrick, hesitante.
- Um livro-razão codificado que não faz sentido para ninguém, exceto umas poucas pessoas selecionadas.
- E acha que estou com esse livro.
Uma declaração.
- Acho que sabe onde está.
- Por quê?
- Porque Varak em seu zelo teria erroneamente acreditado que devia ficar nas suas mãos. Não podia mais confiar em Inver Brass.
- Resultado de ter descoberto que um deles também era um de vocês.
- Essencialmente, sim. Estou teorizando, é claro. Trata-se de um hábito profissional, mas que me serviu muito bem ao longo dos anos.
- Não desta vez. Não sei coisa alguma a respeito.
- Eu não mentiria se estivesse no seu lugar, deputado. De qualquer forma, seria inútil. Há muitos meios de afrouxar mentes e bocas hoje em dia.
Não podia submeter-se ao uso de drogas! Sob os efeitos, revelaria tudo, assinando a sentença de morte de Khalehla, além de fornecer a eles todas as informações de que precisavam para montar suas cortinas
de fumaça individuais ou, em outros casos, desaparecer. O agonizante Manny merecia mais do que isso! Se alguma vez precisava de credibilidade, era agora. Estava de volta a uma prisão, não em Mascate, mas
numa ilha em águas do México. Tinha de ser tão convincente quanto fora entre os terroristas, pois aqueles homens, aqueles homens dos conselhos de administração das corporações, não eram menos brutais do
que os próprios terroristas.
- Quero que me escute - disse Evan, a voz firme, recostando-se e cruzando as pernas, os olhos fixados em Grinell. - Pode pensar o que lhe aprouver, mas não quero a vice-presidência, quero apenas uma linha
de crédito de cinquenta milhões de dólares em Zurich. Estou sendo claro?
- Claro e gravado, naturalmente.
- Muito bem! Faça uma sessão inteira comigo e grave-a em videoteipe...
- Já está sendo feito - interrompeu o advogado.
- Ótimo! Então estamos no mesmo barco, não é?
- O mesmo barco, deputado. Onde está o livro?
- Não tenho a menor ideia, mas se Varak o mandou para mim, sei como você pode obtê-lo... Ligarei para meu gabinete em Washington e direi à minha secretária, Annie O’Reilly, para remetê-lo imediatamente
ao lugar que você indicar.
Os dois negociadores se fitaram, nenhum deles vacilando por um instante sequer.
- É uma solução justa - declarou Grinell, depois de algum tempo.
- Se pode pensar numa melhor, use-a.
- Isso é ainda mais justo.
- Estou a bordo?
- A bordo e a caminho de Zurich - respondeu Grinell, sorrindo. - Depois que acertar alguns pontos na nossa agenda, como Chicago.
- O telegrama será enviado pela manhã. Mandarei que O’Reilly o despache do gabinete.
- Com uma cópia para nosso estimado vice-presidente, é claro.
- Sem a menor dúvida.
O presidente do conselho dos contribuintes deixou escapar um suspiro audível, satisfeito.
- Ah, como todos nós somos venais... - ele murmurou. - Você, por exemplo, deputado, é um monte de contradições. Sua personalidade pública nunca aceitaria nosso acordo.
- Se isso é para o seu videoteipe, deixe-me fazer uma declaração. Fui queimado e fiz o melhor possível para apagar o incêndio em Oman porque eles me levaram a isso matando uma porção de amigos. Não vejo
onde estão as contradições.
- Está no registro, deputado Kendrick.
Subitamente, sem qualquer indicação prévia, a tranquila conferência foi rompida por uma combinação de sinais. Uma brilhante luz vermelha começou a piscar no painel do radiotelefone na mesa, uma sirene
abafada soou em algum lugar das paredes, provavelmente da boca de um animal morto. A porta foi aberta de chofre e o vulto alto e bronzeado que comandara o barco, o lacônico e irado conselheiro da Cidade
da Corrupção, avançou pela sala.
- O que está fazendo? - berrou Grinell.
- Tire esse filho da puta daqui! - berrou o iatista. - Achei que ele era uma armadilha desde o início e estava certo! Há homens do governo despachados de Washington por toda a casa de Bollinger à procura
dele, interrogando todo mundo, como se estivessem numa delegacia!
- O quê?
- Estamos cuidando disso, mas temos um problema maior. O livro! Bollinger recebeu um telefonema. Está com o advogado da cadela!
- Cale-se! - ordenou Grinell.
- Fala em dez milhões, o que ela lhe disse que seu Andy-boy prometera. E agora ele quer o dinheiro!
- Eu mandei você calar a boca!... Que história é essa de agentes federais interrogando todo mundo?
- Exatamente o que eu disse. Não apenas estão interrogando, mas também obtiveram mandatos de busca. Não encontrarão nada, mas não será por falta de tentativas.
- Na casa do vice-presidente? Mas isso é inédito!
- Bancam os espertos. Disseram a Bollinger que o estão protegendo de seus subordinados. Mas ninguém vai me convencer. - O iatista virou-se para Kendrick. - Este filho da puta foi enviado para nos fazer
cair numa armadilha! A palavra do herói contra a de todo mundo!
Grinell fitou Kendrick atentamente.
- Não pode haver uma palavra de herói se não houver herói... Adiós, deputado.
Grinell apertou um botão no lado da mesa e a enorme porta da sala dos animais mortos tornou a se abrir. A automática do mafioso oscilou de um lado para outro enquanto ele entrava, cauteloso.
- Leve-o daqui - ordenou o advogado. - Os mexicanos lhe dirão para onde... Consegui realmente me enganar, deputado. Não esquecerei a lição. Tome cuidado com esse persuasivo filósofo vira-casaca.
O som das ondas chocando-se contra a costa rochosa da ilha tornou-se mais alto à medida que desciam pelo caminho de âmbar. Mais à frente, as luzes no chão terminavam abruptamente; havia uma cancela branca
na extremidade, a claridade âmbar iluminando as duas placas penduradas. A da esquerda estava em espanhol, a da direita em vernáculo.
- ¡Peligro! - Perigo!
Além da barreira havia um promontório avançando pelo mar, as ondas revoltas espumando ao luar, o barulho agora ensurdecedor. Kendrick estava sendo levado para a sua execução.
41
Jatos de vapor turbilhonante eram projetados dos rochedos do promotório por cima do Pacífico. Evan reprimiu o pânico, lembrou-se do acordo consigo mesmo: não morreria passivamente; não seria morto sem
luta, por mais inútil que fosse. Contudo, até mesmo esforços finais e desesperados presumiam a possibilidade de sobrevivência, e ele passara toda a sua vida adulta estudando as complexidades dos aspectos
específicos. Trepadeiras tropicais cresciam por toda parte ao redor, grossas e fortes devido à umidade e aos ventos que investiam constantemente contra os troncos. Havia um mato alto e denso nos lados
da fieira de lâmpadas cor de âmbar, terra solta e úmida na folhagem entrelaçada, uma lama que jamais conhecera um momento seco. O mexicano que orientara o mafioso até o local da execução era um parceiro
relutante no assassinato. Sua voz tornou-se mais fraca ao se aproximarem com passos derradeiros para a barreira branca.
- ¡Al frente, al frente! - gritou, muito nervoso. - ¡Adelante!
- Passe por cima ou dê a volta, deputado - disse o homem do Serviço Secreto em tom frio, um profissional realizando um serviço de sua especialidade, alguém para quem vida e morte nada significavam.
- Não posso - respondeu Kendrick. - É muito alta para passar por cima e há uma espécie de arame farpado estendendo-se dos lados.
- Onde?
- Ali.
Kendrick apontou para o mato escuro.
- Não vejo...
Agora!, gritou a voz silenciosa dentro da garganta de Evan. Ele deu meia-volta, as mãos estendidas para a arma grande e terrível, agarrando-a e empurrando-a para longe, enquanto dobrava o pulso do mafioso
para trás e batia com o ombro no seu peito, impelindo o braço para a frente com desespero, com toda a força, jogando o guarda desequilibrado no mato sobre a terra úmida. A arma disparou, o estampido se
fundindo com o som das ondas estrepitosas. Kendrick empurrou a arma para a terra macia, libertou a mão direita e, agarrando um punhado de lama, meteu-o na cara do mafioso, comprimindo-o contra os seus
olhos.
O guarda gritou palavras truncadas de fúria, tentando ao mesmo tempo limpar os olhos e apanhar a arma na terra, além de se livrar das mãos de Evan. Continuando sobre o assassino a se debater, Kendrick
repetidamente batia com o joelho na sua virilha e enfiava mais lama na boca e nos olhos do inimigo. Seus dedos encontraram um objeto duro e irregular... uma pedra! Era quase grande demais para a extensão
de seus dedos em pânico, mas nada podia detê-lo, nada o deteria! Exigindo o máximo de músculos que não exercitava há meses, há anos, contendo os ataques convulsivos por baixo do seu corpo, Evan arrancou
a pedra pesada da lama, levantou-a e bateu com toda a força na cabeça do seu carrasco potencial. O guarda-assassino ficou inerte, o corpo arriado no mato úmido e na terra mole.
Evan pegou a automática e levantou os olhos para o mexicano, que aguardava ansioso para saber quem viveria, quem morreria, agachado a poucos metros de distância, no meio da escura e úmida folhagem; ele
recuou para cima de uma lâmpada, espatifando-a com o pé. Vendo quem era o sobrevivente, voltou-se, pronto para correr pela trilha.
- Pare! - berrou Kendrick, ofegante, levantando-se de um pulo e avançando. - Pare ou eu o matarei! E sei que está me entendendo!
O mexicano parou e lentamente pousou os olhos em Evan, à luz difusa.
- Não tenho nada a ver com essas coisas, señor - ele disse numa linguagem supreendentemente perfeita.
- Ou seja, você não puxa o gatilho, mas indica onde eles devem puxar!
- Nada tenho a ver com isso - repetiu o homem. - Sou apenas um pescador, mas pouco se ganha com isso hoje em dia. Aqui recebo alguns pesos e volto para minha casa e minha família, em El Descanso.
- Quer ver sua família de novo?
- Quero muito - respondeu o hispânico, lábios e mãos trêmulos. - Se é aqui que acontecem coisas assim, nunca mais voltarei.
- Está me dizendo que nunca aconteceu antes?
- Nunca, señor.
- Então como conhecia o caminho? - gritou Kendrick, contra o som do vento e das ondas ruidosas.
Estava recuperando o fôlego, aos poucos se apercebendo da lama que o cobria e da dor espalhada por todo o corpo.
- Somos trazidos para cá e nos dão mapas da ilha, que devemos conhecer bem em dois dias ou nos mandam embora.
- Para quê? Para execuções múltiplas?
- Já disse que não, señor. Estas são águas por onde passam narcóticos, muito perigosas. Patrulhas mexicanas e americanas podem ser chamadas às pressas, mas ainda assim é preciso vigiar a ilha.
- Chamadas às pressas?
- O dono é um homem poderoso.
- O nome dele é Grinell?
- Não sei, señor. Bem, eu só conheço a ilha.
- Fala um inglês fluente. Por que não falou em inglês antes? - Evan gesticulou para o mafioso morto. - Com ele?
- Não queria ter nada a ver com esta história, señor. Recebi instruções sobre o lugar para onde deveria levar os dois, e só ao nos aproximarmos comecei a compreender... Não quero me envolver, señor. Mas
tenho família em El Descanso e os homens que vêm para cá são muito poderosos.
Evan ficou olhando para o homem, indeciso. Seria fácil, muito fácil, matá-lo e eliminar um risco, mas havia também um vislumbre de oportunidade de o mexicano não ser um mentiroso. Kendrick sabia que estava
negociando por sua própria vida, mas havia no caso outra vida também, o que tornava a negociação mais fácil. Aproximando-se do homem, ele disse, alteando a voz para ser ouvido com clareza:
- Deve compreender que se voltar para a casa sem ele, ou se encontrarem seu corpo aqui ou nos rochedos, você será morto. Sabe disso, não é mesmo?
O mexicano acenou com a cabeça duas vezes.
- Sí.
- Mas se eu não matar você, terá uma chance de escapar, certo? - Evan levantou a arma do mafioso. O mexicano fechou os olhos e acenou com a cabeça uma vez. - Assim, a melhor coisa para você e sua família
em El Descanso é se juntar a mim, compreende?
- Sí. - O mexicano abriu os olhos. - Juntar em quê?
- Para sair daqui... e ir o mais longe possível. Há um barco lá embaixo, no cais, perto de um tanque de combustível. É bastante forte para aguentar a viagem.
- Eles têm outros barcos - interrompeu o guia do executor. - São mais velozes do que as lanchas de patrulha, há ainda um helicóptero com potentes faróis.
- Onde?
- Perto da praia, no outro lado da ilha. Existe um campo de pouso cimentado... É piloto, señor!
- Eu bem que gostaria de ser. Qual é o seu nome?
- Emilio.
- Vem comigo?
- Não tenho alternativa. Se sair daqui, vou voltar para minha família e me mudar para uma cidade nas montanhas. Caso contrário, eu morro e eles passam fome.
- Quero lhe avisar: se me der algum motivo para pensar que está mentindo, nunca mais verá El Descanso nem sua família.
- Já entendi isso.
- Fique junto de mim... Primeiro, quero ver como está meu carrasco.
- Seu o quê, señor?
- O homem que ia me matar. Vamos logo! Temos muita coisa para fazer e quase não há tempo.
- Para o barco?
- Ainda não - respondeu Kendrick, um plano vago e fragmentado surgindo meio abstrato. - Vamos desmantelar esta ilha miserável... Existe algum depósito de ferramentas, um lugar em que guardam pás, picaretas,
tesouras para sebe, coisas assim?
- O mantenimiento - respondeu Emilio. - Para os jardineiros, embora muitas vezes sejamos obrigados a ajudá-los.
- Faremos uma coisa primeiro, depois você me levará até lá - disse Evan, correndo de volta para o mafioso morto, meio desastrado e sentindo muita dor. - Vamos logo!
- Devemos tomar cuidado, señor!
- Já sei, tem os guardas. Quantos são?
- Dois em cada uma das quatro passagens para as praias e no cais. Dez em cada turno. Todos levam rádios que acionam sirenes... muito altas.
- Quanto tempo dura cada turno? - perguntou Kendrick inclinando-se para o cadáver do agente do Serviço Secreto.
- Doze horas. São vinte guardas e quatro jardineiros. Os que não estão de serviço ficam nos alojamentos. É um prédio comprido, ao norte da casa principal.
- Onde estão as ferramentas?
- Numa garagem de metal, cinquenta metros ao sul do generador.
- O gerador?
- Sí.
- Ótimo.
Evan tirou a carteira e a identificação do mafioso encapada em plástico preto, revistou os bolsos enlameados, encontrando mais de mil dólares, que sem dúvida não vinham dos cofres federais. Finalmente
tirou a pequena "chave" eletrônica que soltava as trancas e abria a porta da cabana-cela no bosque.
- Vamos embora - ele repetiu, levantando-se com dificuldade da terra úmida e do mato baixo.
Começaram a descer pelo caminho entre as luzes.
- ¡Un momento! - sussurrou Emilio. - As luzes. Chute-as, senõr. Quanto mais escuro, melhor para nós.
- Boa ideia - concordou Kendrick.
Ele voltou com o mexicano para a barreira branca, passando a quebrar cada lâmpada que encontrava, nos dois lados. Alcançaram o caminho principal da ilha, que à esquerda descia para o cais e os barcos,
à direita subia para a casa principal, no alto da colina, com um desvio levando à cabana rústica à prova de fuga. Evan e o mexicano corriam de uma lâmpada para outra, destruindo-as, até chegarem à trilha
da cabana.
- Por aqui! - ordenou Kendrick, correndo na frente para a direita. - Esqueça as luzes. Vamos apagá-las na volta.
- ¿La cabana?
- Depressa!
Mais uma vez, a luz surpreendentemente ampliada pelas grossas janelas biseladas iluminava a clareira na frente da casa pequena e sólida. Evan aproximou-se da porta e apertou um botão verde na chave eletrônica.
Ouviu as trancas se retraírem para os umbrais; girou a maçaneta e entrou.
- Venha até aqui - ele disse a Emilio.
O mexicano obedeceu e Evan fechou a porta, apertando o botão vermelho para trancá-la.
A seguir correu para a área da cozinha, abriu gavetas e armários, pegando objetos que lhe pareceram úteis: uma lanterna, um facão e outras facas menores, três pequenas latas de Sterno, uma caixa de fósforos
revestidos de parafina que podiam ser riscados em qualquer superfície dura, e uma pilha de toalhas de prato dobradas. Pondo tudo na mesa de carvalho oval, ele olhou para Emilio, que o observava. Pegou
uma faca pela lâmina, estendendo o cabo para o mexicano.
- Espero que não tenha de usar isso... mas se precisar, não erre.
- Há homens que eu não poderia matar a sangue-frio, pois estão tão desesperados quanto eu por emprego. Mas há outros, que estão aqui há mais tempo, com os quais eu não teria tais escrúpulos.
- Não pode ter nenhum escrúpulo! Se houver algum alarme...
- Meus amigos não acionarão nenhum alarme, señor, não se souberem que sou eu, Emilio. Além do mais, a maioria está dormindo nos alojamentos. Usam os veteranos para as patrulha noturnas; eles têm medo dos
barcos à noite.
- É melhor você estar certo.
- Quero voltar para casa, señor, não tenha a menor dúvida sobre isso.
- Leve algumas toalhas, uma lata de Sterno e um punhado de fósforos. Depressa!
Recolhendo os objetos restantes e guardando-os nos bolsos, Kendrick deixou o facão por último. Finalmente pegou-o, foi até o painel de intercomunicação na parede e, postando-se ao lado, enfiou a lâmina
grossa por trás do equipamento, arrancando-o de seu recesso.
- Quebre aquelas duas lâmpadas - ele disse ao mexicano. - Eu cuidarei da luz do fogão e do abajur no outro lado da sala.
Menos de um minuto depois, os dois voltaram ao caminho, a clareira antes iluminada na frente da cabana agora totalmente escura.
- As ferramentas... as ferramentas dos jardineiros. Leve-me até lá.
- ¡Con mucho cuidado! Devemos ser cautelosos ao contornar a casa grande. Só apagaremos as luzes no caminho até onde eu disser. Do segundo andar da casa poderão ver que não estão acesas e darão o alarme.
Se encontrarmos patrulhas, deixe-me estudá-las primeiro.
- Vamos logo. Eles estão com problemas, mas não deve demorar muito para que alguém comece a especular onde está o meu carrasco. Temos de nos apressar.
Quebraram as lâmpadas até uma crista em que o terreno se nivelava, no acesso à enorme mansão - a casa grande, pensou Evan, lembrando-se dos trópicos e das casas-grandes do Caribe. De repente o mexicano
segurou o braço de Kendrick e puxou-o para a folhagem à beira do caminho, forçando-o a se abaixar. A mensagem era clara: Agache-se e fique quieto. Um guarda passou por eles, seguindo na direção oposta,
rifle pendurado no ombro.
- Depressa agora, señor! Não há mais ninguém até a galeria dos fundos, onde eles tomam vinho e comem peixe defumado!
Um pátio grande com uma churrasqueira, pensou Evan, seguindo Emilio pelas moitas densas, desejando ter um facão de mato para cortar os obstáculos, mas agradecido pelo som sempre presente do vento e das
ondas se esboroando nas rochas. Deram uma volta contornando a casa, e outro som se intrometeu. Era o enorme gerador com seu zumbido constante, um rumor abafado e impressivo. O engenheiro em Kendrick tentou
calcular a potência que gerava, o combustível que consumia e a entrada auxiliar do necessário campo de células fotovoltaicas - era espetacular. Havia instalado geradores de Bahrain nos desertos a oeste
da Arábia Saudita, mas eram temporários, usados apenas enquanto a energia elétrica não chegasse ao local pelos cabos de transmissão; nada como aquilo.
O mexicano tornou a apertar o ombro de Evan, agora com mais força, a mão trêmula, e outra vez eles se agacharam no mato, por trás da comprida parede de arbustos aparados. Kendrick levantou os olhos e compreendeu,
com um medo súbito. Lá na frente, à esquerda, acima da borda parecida com uma sebe da trilha, um guarda vira ou ouvira alguma coisa. A parte superior do seu corpo era claramente visível à luz âmbar; ele
se adiantou apressado, tirando o rifle do ombro e apontando-o para a frente. Avançou direto para cima deles, a poucos passos de distância catucou as moitas com o cano do rifle.
- ¿Quién es? - gritou o guarda.
Subitamente, saltando como um gato furioso, Emilio agarrou o rifle e puxou o guarda pela folhagem. Houve uma abrupta interrupção de um grito iniciado; o homem caiu no mato, a base da garganta uma massa
ensanguentada. A faca estava na mão direita de Emilio.
- Santo Deus! - sussurrou Evan, enquanto ajudava o mexicano a arrastar o corpo mato adentro.
- Não tive problema com este perro! - disse Emilio. - O cão esmigalhou a cabeça de um garoto, um jovem jardineiro que não quis satisfazê-lo, se pode me entender, señor.
- Eu entendo e também sei que acabou de salvar nossas vidas... Ei, espere um instante! O rifle, o quepe! Podemos ganhar tempo! Não há uniformes aqui, apenas as roupas de trabalho... a arma é o uniforme.
Ponha o quepe e pendure o rifle no ombro. Depois saia andando e permanecerei tão perto de você quanto possível. Se for mais rápido para mim continuar pela trilha, você saberá que o caminho está livre!
- Bueno - disse o mexicano, agarrando o quepe e a arma. - Se for detido, direi que este perro me obrigou a substituí-lo por uma hora. Os outros vão rir, mas ninguém irá duvidar... Pronto, continuemos.
Fique perto, e quando eu avisar pode sair das moitas e andar ao meu lado. Não à frente nem atrás, mas ao lado. Fala espanhol?
- Não o suficiente para manter uma conversa.
- Então não diga nada. Limite-se a ficar perto.
Emilio passou pela sebe à beira do caminho, com o rifle no ombro, e começou a descer. Atrapalhado pela vegetação escura e emaranhada, Kendrick esforçou-se ao máximo para acompanhar seu ritmo, de vez em
quando sussurrando para o mexicano reduzir a marcha. Numa área particularmente densa, Evan tirou do cinto o facão de cozinha e golpeou uma massa de trepadeiras tropicais, mas logo ouviu Emilio murmurar:
- ¡Silencio! - Logo seguiu-se outra ordem: - Agora, señor! Saia e ande comigo! Depressa!
Kendrick assim fez, forçando a passagem pelas moitas para se juntar ao mexicano, que no mesmo instante começou a acelerar as passadas pelo caminho.
- Ir tão depressa será uma boa ideia? - indagou Evan, ofegante. - Se formos vistos, alguém pode pensar que estamos querendo escapar ao serviço.
- Temos de chegar aos fundos da casa principal - respondeu Emilio, continuando a correr. - Não há ninguém aqui a esta hora, exceto dois guardas em caminhos diferentes; eles se encontram na galeria de pedra,
depois tornam a subir pela colina e descem para as praias. Levam muitos minutos, e acabaram de partir. Podemos passar correndo pela galeria e subir pelo caminho do outro lado, atravessar o bosque até o
mantenimiento... as ferramentas, señor.
Chegaram a um pátio de lajotas rebaixadas, o mesmo pátio que Kendrick estudara da pequena varanda do quarto de hóspedes no alto. Lembrou-se de dois guardas trocando sinais, das bases de caminhos diferentes.
O mexicano, que se encontrava agora no comando, segurou o braço de Evan e acenou com a cabeça para a esquerda, pondo-se a correr. Desceram pelo pátio, que era muito maior do que Kendrick imaginara; alcançava
toda a extensão da casa e na área central havia móveis brancos, de ferro batido, à frente de uma churrasqueira. Passaram ao lado da casa, sob as varandas, subiram pelo caminho iluminado ao sul, até uma
área plana cercada de mato alto, um outeiro dando para o mar e duas praias separadas por um trecho rochoso, talvez uns duzentos metros abaixo. As luzes de cor âmbar estavam agora por trás deles, à sua
frente uma trilha de terra descendo.
Dali de cima podia-se avistar uma grande parte da ilha à luz do luar inconstante. À direita, a uns trezentos metros, iluminado pelos refletores, estava o enorme gerador. Além da área cercada podia-se perceber
os contornos indistintos de um prédio baixo e comprido - os alojamentos a que Emilio se referira, pensou Evan. E logo a seguir, um pouco antes da praia, o concreto branco se destacando como um farol fosco,
estava o heliporto com um enorme helicóptero militar pintado em cores civis e com identificação mexicana, mas inconfundivelmente um aparelho militar dos Estados Unidos.
- Vamos! - sussurrou Emilio. - E não diga nada, pois as vozes são muito audíveis neste lado da ilha.
O mexicano começou a descer pelo caminho escuro, sem iluminação, aberto através do bosque, uma trilha usada apenas durante o dia. E de repente, pensando nas palavras de Emilio, Kendrick percebeu o que
faltava. O som do vento e das ondas praticamente desaparecera - as vozes seriam ouvidas longe naquela calmaria, e um helicóptero poderia manobrar sem maiores dificuldades.
A "garagem" de metal era exatamente como Emilio a descrevera, apenas muito maior do que qualquer garagem que Evan já conhecera, à exceção das enormes estruturas que alojavam as várias limusines de uma
família real árabe. O lugar era uma massa horrenda de alumínio corrugado, com diversos tratores, cortadores de grama funcionando a gasolina, serras elétricas e máquinas para podar; nada daquilo seria útil,
por causa do barulho que fariam. Na parede lateral e no chão, no entanto, havia objetos mais práticos. Incluíam uma fileira de latões de gasolina e por cima, em ganchos, estavam pendurados machados, facões,
foices, alicates de cabo longo e podadores de árvores - todas as ferramentas necessárias para conter a vegetação tropical, impedir a sua conquista incrivelmente rápida do solo.
As decisões eram mais fáceis, instintivas e simples. O facão de cozinha foi trocado por um de mato e uma machadinha - para Evan e Emilio. Levaram também alicates de cortar arame, uma lata cheia de gasolina
e um podador com um cabo de três metros. Todas as outras ferramentas que traziam da cabana permaneceram em seus bolsos.
- O helicóptero! - murmurou Kendrick.
- Há uma trilha entre as estradas do norte e do sul, abaixo do generador. Vamos depressa! Os guardas chegaram às praias e daqui a pouco começarão a voltar.
Saíram correndo da garagem dos jardineiros e chegaram à primeira estrada, de terra, as ferramentas precariamente seguras nos cintos, nos bolsos, nas mãos e sob os braços cerrados. Indo Emilio na frente,
atravessaram o alto mato da margem e seguiram pela trilha estreita na encosta da colina.
- ¡Cigarrillo! - sussurrou o mexicano, empurrando Evan de volta ao mato.
Um cigarro aceso em movimento apareceu, enquanto o guarda subia a colina e passava a pouco mais de dois metros deles.
- Vamos! - murmurou Emilio quando o guarda chegou a um outeiro distante.
Abaixados, correram para a estrada do norte; não havia sinal do segundo guarda, por isso iniciaram a descida para o heliporto de concreto.
O enorme aparelho militar repintado parecia um monstro silencioso prestes a atacar um inimigo que somente ele podia perceber à noite. Grossas correntes estiradas, presas no concreto, enlaçavam a base do
helicóptero; uma súbita tempestade marinha não poderia deslocar o aparelho, a menos que arrebentasse as correntes. Kendrick aproximou-se da máquina enorme, enquanto Emilio permanecia no mato, à beira da
estrada, atento ao retorno do guarda, pronto para alertar seu companheiro americano. Evan estudou o aparelho, com um único pensamento: imobilizá-lo, sem fazer qualquer barulho que pudesse ser ouvido naquela
parte tranquila da ilha. Também não podia usar a lanterna; na escuridão, o facho seria avistado de longe... Cabos. Em cima, sob os rotores, e na montagem da cauda. Segurando primeiro a alça de uma porta,
depois a moldura de uma janela, Kendrick alcançou a frente da cabine, o alicate de cabo comprido projetando-se da calça. Em segundos rastejou sobre o para-brisa curvo do piloto até o alto da fuselagem;
sem muita firmeza, cauteloso, foi avançando de gatinhas para a base das engrenagens do rotor. Agarrou o alicate, ergueu-se, e três minutos depois estavam cortados os cabos que conseguira ver no escuro.
Houve um assobio forte e curto! Era o sinal de Emilio. O guarda chegara à crista da colina e alcançaria o heliporto em poucos minutos. O engenheiro em Kendrick não estava satisfeito. Imobilizara o aparelho
ou apenas o deixara um pouco avariado? Precisava alcançar as engrenagens da cauda; era o sistema secundário de apoio naquela fase mecânica em que cada máquina que alçava voo precisava de sistemas secundários,
para a eventualidade de defeitos no ar. Ele rastejou pela fuselagem tão depressa quanto era possível sem se arriscar a perder o equilíbrio e cair seis metros até o concreto branco. Alcançou a cauda e nada
viu exposto: as engrenagens estavam embutidas em metal... Mas não, nem tudo! A cavaleiro sobre a fuselagem, Evan inclinou-se e divisou dois cabos grossos, quase como cordas, que se projetavam para o aileron
da direita. Trabalhando freneticamente, o suor pingando do seu rosto e escorrendo pelo metal brilhante, ele sentia o alicate executando seu trabalho, enquanto sucessivos fios do cabo de cima se soltavam.
Subitamente houve um estalar alto - alto demais, na noite silenciosa - e uma parte do aileron caiu para uma posição vertical. Ele conseguira; estava seguro. Passos correndo! Gritos lá de baixo!
- ¿Qué cosa? ¡Quédese!
Por baixo da cauda, o guarda estava parado no concreto. Tinha o rifle apontado para Evan com o braço direito, enquanto a mão esquerda se estendia para o alarme de rádio preso no cinto.
42
Aquilo não podia acontecer! Como se de repente perdesse todo o equilíbrio, todo o controle, Kendrick levantou os braços e escorregou pela fuselagem, o alicate caindo e se chocando com a coronha do rifle.
Nesse instante o guarda começou a gritar de dor, enquanto a arma era arrancada do seu braço e jogada no chão; antes que o grito pudesse alcançar um volume maior, no entanto, Emilio estava em cima do guarda,
batendo com o lado cego da machadinha no seu crânio.
- Pode andar? - o mexicano perguntou a Evan, num sussurro. - Temos de sair daqui! E depressa! O outro guarda virá correndo para este lado!
Contorcendo-se no concreto, Evan acenou com a cabeça e fez um esforço para se levantar. Em seguida apanhou o alicate e o rifle.
- Tire-o daqui - ele disse.
Compreendeu no mesmo instante que não precisava dar a ordem; Emilio já arrastava o homem inconsciente pelo heliporto, atirando-o no mato alto. Claudicando, o tornozelo esquerdo e o joelho direito doloridos,
Kendrick foi atrás do amigo.
- Cometi um erro - disse o mexicano, balançando a cabeça e sempre sussurrando. - Só temos uma chance... Observei você enquanto andava. Nunca conseguiremos alcançar o cais e os barcos sem sermos vistos
antes que o outro guarda perceba que já não tem um compañero. - Emilio apontou para seu patrício inconsciente. - No escuro posso passar por ele e me aproximar o máximo antes que o outro perceba quem eu
sou.
- Ele certamente vai gritar e perguntar o que aconteceu. O que vai dizer?
- Entrei no mato para me aliviar e na pressa esbarrei numa pedra grande e pontuda. Vou mancar como você e lhe pedirei que venha ver o ferimento.
- E acha que pode dar certo?
- Rezarei à Virgem para que dê, caso contrário ambos morreremos. - O mexicano levantou-se e pendurou o rifle no ombro. - Devo fazer-lhe um pedido. Este guarda não é um homem mau, tem família em El Suazal,
onde não há trabalho. Amarre suas pernas e braços, encha-lhe a boca com suas próprias roupas. Não posso matá-lo.
- Sabe quem é o outro guarda? - perguntou Evan, em tom ríspido.
- Não.
- E se também não puder matá-lo?
- Por que criar um problema? Sou um pescador forte em El Descanso quando há barcos que me contratem. Posso dominá-lo sozinho... ou trazer outro compañero para nós.
A segunda opção não haveria de se consumar. Mal o claudicante Emilio chegou à estrada de terra ao lado do heliporto, o guarda do sul se aproximou correndo. Houve um breve diálogo em espanhol, depois uma
súbita erupção vocal de um dos dois e não foi do pescador de El Descanso. Seguiu-se o silêncio e Emilio voltou momentos depois.
- Sem compañero - disse Kendrick, sem fazer uma pergunta.
- Aquele rato furioso diria que a própria mãe é uma puta se lhe pagassem bem!
- Diria?
- No comprendo.
- Ele está morto?
- Morto, señor, e no mato. Temos menos de trinta minutos antes que a claridade comece a surgir ao leste.
- Então vamos embora... Seu amigo está amarrado.
- Para o cais? Para os barcos?
- Ainda não, amigo. Temos de fazer uma coisa antes.
- Estou dizendo que haverá claridade daqui a pouco!
- Se eu fizer tudo certo, haverá claridade muito antes. Pegue a lata de gasolina e o podador de árvores. Não consigo carregar mais do que já estou levando.
Passo a passo dolorido, Evan subiu pela estreita estrada de terra atrás do mexicano, até alcançarem o enorme gerador da ilha. Estava todo cercado, e seu zumbido firme entrava pelos ouvidos, provocando
vibrações dolorosas. Havia avisos de ¡Peligro! - Perigo! por toda parte, e o único portão para o interior estava cerrado por duas grandes fechaduras que aparentemente exigiam a inserção simultânea das
chaves. Capengando pelas sombras entre os refletores, Kendrick dava ordens, enquanto Emilio operava o alicate.
- Comece por aqui, espero que seja mesmo tão forte quanto diz. O arame desta cerca é bem grosso. Faça uma abertura, creio que um metro é suficiente.
- E o señor?
- Tenho que dar uma olhada ao redor.
Kendrick acabou descobrindo. Três discos de ferro aparafusados no concreto, separados por uma distância de dez metros, três tanques enormes, cisternas de combustível complementando os bancos de células
fotovoltaicas em algum lugar, que não interessava onde fosse. Abrir um disco exigia uma chave de porca hexagonal, as barras superiores eram bastante compridas para dois homens fortes segurarem, um em cada
lado. Mas havia outro jeito, e ele o conhecia bem, dos tanques no deserto da Arábia Saudita - um procedimento de emergência para as caravanas de caminhões-tanques que esqueciam alguma ferramenta, o que
não era incomum nos desertos do Jabal. Cada disco supostamente impenetrável tinha quatorze arestas, não muito diferentes das tampas de bueiros na maioria das cidades grandes, embora bem menores. Marteladas
devagar, no sentido contrário ao dos ponteiros de um relógio, as tampas se soltavam, até que mãos e dedos podiam penetrar pelos lados e desatarraxá-las.
Kendrick voltou para junto de Emilio e do gerador que quase os ensurdecia. O mexicano cortara duas linhas verticais paralelas e começava a fazer uma abertura embaixo.
- Venha comigo! - disse Evan, gritando no ouvido de Emilio. - Está com a machadinha?
- Pues sí.
- Eu também.
Kendrick levou o mexicano para o primeiro disco de ferro e instruiu-o sobre a maneira de usar as toalhas trazidas da cabana eletrônica para abafar os golpes desferidos com o lado cego das machadinhas.
- Devagar! - ele gritou. - Uma faísca pode atear fogo nos vapores, comprende?
- Não, señor.
- É melhor não compreender mesmo. Vá com calma! Uma batida de cada vez. Não com tanta força!... Está se mexendo!
- Com mais força agora?
- Não! Calma, amigo. Como se estivesse lapidando um diamante...
- Nunca tive o prazer...
- Terá, se sairmos daqui... Pronto! Soltou-se! Desatarraxe a tampa e leve para lá. Dê-me suas toalhas.
- Para quê, señor?
- Explicarei assim que me deixar passar pela abertura que está fazendo na cerca.
- Vai levar algum tempo...
- Tem mais uns dois minutos, amigo!
- Madre de Dios!
- Onde pôs a gasolina? - perguntou Kendrick, inclinando-se para ser ouvido.
- Ali! - respondeu o mexicano, apontando para a esquerda da "porta" que estava abrindo.
Agachando-se nas sombras, sentindo alguma dor, Evan amarrou as toalhas, puxando cada nó para certificar-se de que estava bem preso, até ter uma única extensão de pano com três metros. O corpo doendo a
cada movimento, ele desatarraxou a tampa da lata de gasolina e encharcou a corda feita de toalhas, espremendo em seguida. Em poucos minutos tinha um pavio de três metros. Reunindo toda a força, levantou
a tampa de ferro, enfiou o pavio de toalhas encharcadas pela abertura e afastou um pouco o disco, a fim de que um fluxo de ar circulasse pelo depósito profundo. Voltando, comprimiu cada toalha no solo,
espalhando terra por cima, mas apenas "salpicando", a fim de retardar a velocidade da chama que chegaria até o contato gasoso.
A última toalha no lugar, ele se levantou - especulando por um instante quanto tempo conseguiria ficar de pé - e claudicou para junto de Emilio. O mexicano estava puxando o pedaço cortado da cerca, dobrando-o
para permitir o acesso aos equipamentos maciços e brilhantes que, pelo processo eletrodinâmico, convertiam energia mecânica em eletricidade.
- Já basta - disse Kendrick, inclinando-se para falar junto ao ouvido de Emilio. - E agora preste atenção, me peça para repetir se não entender. Daqui por diante, tudo será uma questão de tempo... uma
coisa acontece e fazemos outra. Comprende?
- Sí. Vamos para outros lugares.
- Mais ou menos isso. - Evan enfiou a mão no bolso do paletó enlameado e tirou a lanterna. Acenando com a cabeça para o buraco na cerca, ele continuou: - Segure isto. Vou entrar aí e espero saber o que
estou fazendo... Estas coisas mudaram um pouco desde o tempo em que eu as instalava... mas no mínimo eu as poderei desativar. Pode haver muito barulho e enormes centelhas...
- Cómo?
- Pequenos relâmpagos e... ruídos muito semelhantes a estática no rádio, está me entendendo?
- É suficiente...
- Não, não é suficiente! Não chegue perto da cerca... não a toque, e ao primeiro estalo dê meia-volta e feche os olhos... Com um pouco de sorte, todas as luzes se apagarão; quando isso acontecer, acenda
a lanterna e aponte o facho para a abertura na cerca, está certo?
- Está.
- Assim que eu passar para este lado, vire a lanterna para ali. - Kendrick apontou a última das toalhas enroladas, emergindo da terra. - Fique com seu rifle no ombro e segure o outro para mim... Está com
o quepe do primeiro guarda? Se estiver, passe para cá.
- Sí. Aqui está.
Emilio tirou o quepe do bolso e entregou-o a Evan, que o pôs na cabeça.
- Quando eu atravessar a cerca, irei até ali, riscarei um fósforo, pondo fogo nas toalhas. No mesmo instante temos de sair daqui, correr para o outro lado da estrada. Comprende?
- Sim, señor. No mato, no outro lado da estrada. Vamos nos esconder.
- Isso mesmo. Subimos a encosta pelo mato e quando todo mundo começar a correr nós corremos juntos.
- Cómo?
- Vinte e tantas pessoas - disse Kendrick, tateando os bolsos e removendo duas latas de Sterno, guardando-as na calça, depois tirando o paletó e a gravata. - Seremos apenas mais dois no escuro, mas passaremos
pela colina e desceremos para o cais. Com dois rifles e uma Colt 45.
- Entendo.
- Lá vamos nós - murmurou Evan, enquanto se abaixava, meio sem jeito, dolorido, pegando o podador de árvores com cabo de borracha e um facão.
Rastejou pela abertura feita por Emilio e ergueu-se do outro lado, estudando os equipamentos que não paravam de zumbir, e eram uma ameaça à vida. Algumas coisas não mudavam, nunca mudariam. Por cima, à
esquerda, aparafusado num poste de cinco metros de altura coberto de alcatrão, estava o transformador principal, os fios de derivação levando a carga bruta de energia para os vários ramais, os cabos envoltos
por condutos de borracha com pelo menos cinco centímetros de diâmetro, a fim de impedir o vazamento de água, chuva e umidade que provocaria um curto-circuito. A três metros de distância, no chão, diagonalmente
opostas aos dois dínamos principais, estavam as placas de acumulador, girando incessantemente sobre os volantes, mudando um campo de energia para outro, protegidas por uma grossa tela de arame e esfriadas
pelo ar, que tinha acesso livre. Evan gostaria de estudar mais os equipamentos mas agora não havia tempo.
Uma coisa de cada vez, ele pensou, deslocando-se para a esquerda e levantando o podador de árvores em toda a sua altura. Lá em cima, à luz dos refletores, as garras denteadas do longo instrumento seguraram
o cabo de derivação superior; como já fizera com o alicate na cauda do helicóptero, Evan trabalhou freneticamente, até que o instinto profissional lhe disse que estava a milímetros da primeira camada de
cobre. Gentilmente, encostou a vara de metal na cerca e virou-se para o primeiro dos dois dínamos principais.
Se fosse apenas uma questão de provocar um curto-circuito no sistema de eletricidade da ilha, ele poderia simplesmente continuar cortando o conduto do transformador, isolado pelas alças de borracha, e
deixado o curto ocorrer ao encostar a haste de metal na cerca de metal assim que alcançasse o cabo de cobre. Haveria uma breve explosão elétrica e toda a energia cessaria. Contudo, havia mais em jogo;
tinha de encarar a probabilidade de nem ele nem Emilio sobreviverem, e um cabo de transformador avariado podia ser consertado em questão de minutos. Precisava infligir mais do que uma mera avaria; tinha
de danificar todo o sistema. Não podia saber o que estava acontecendo em San Diego, mas precisava dar tempo às forças de Payton, danificando o conjunto a tal ponto que levaria dias para substituir, não
para reparar. O conjunto daquela ilha, sede de um governo dentro de um governo, devia ser imobilizado, ficar isolado, sem meios de comunicação ou fuga. O transformador, no fundo, era seu sistema de apoio
secundário, sua opção menos desejável, mas era preciso aprontar tudo para a execução. O tempo agora era tudo!
Aproximou-se do dínamo, estudando cauteloso o enorme volante. Havia um espaço horizontal, que devia ter pouco mais de um centímetro, separando as telas inferior e superior, que impediam o acesso de objetos
estranhos ao interior ruidoso daquela máquina. Esse espaço era o que ele esperava encontrar, por isso levara o facão. Todos os geradores esfriados a ar tinham aberturas de dimensões extremamente reduzidas,
verticais e horizontais; era a sua chance. Ou então a sua morte, pois qualquer erro acarretaria a eletrocução instantânea; e mesmo que evitasse a morte, poderia ficar cego com os relâmpagos da luz elétrica
se não se voltasse a tempo, mantendo os olhos bem fechados. Se conseguisse, porém, o gerador da ilha ficaria fora de uso. Tempo... o tempo podia muito bem ser o último presente que tinha a oferecer.
Evan tirou o facão do cinto, o suor lhe correndo pelo rosto apesar da aragem causada pelo volante, e aproximou a lâmina do espaço horizontal... Tremendo, puxou o facão de volta; tinha de firmar as mãos!
Não podia encostar em qualquer beira do estreito espaço! Tentou de novo, inserindo dois centímetros, depois três e quatro... e empurrou finalmente a pesada lâmina, afastando as mãos antes que a ponta do
facão fizesse contato e jogando-se no chão atrás dele, cobrindo o rosto e os olhos com os braços. As detonações elétricas foram ensurdecedoras e, apesar dos olhos fechados, o branco clarão ofuscante atravessou
a escuridão. O volante não tinha parado! Continuava a mastigar a lâmina do facão, enquanto expelia relâmpagos de carga elétrica.
Kendrick levantou-se num pulo, e protegendo os olhos, passo a passo, cauteloso, recuou para o podador de árvores cujas garras denteadas ainda estavam cravadas no conduto do transformador. Segurou as alças
de borracha e, em desespero, manejou-as para a frente e para trás, até que um solavanco o derrubou. Atingira o cabo de cobre, e o metal do podador encostou na cerca. Todo o complexo do gerador pareceu
enlouquecer, como se os habitantes elétricos estivessem enfurecidos pela interferência do homem em suas invenções superiores. Luzes se apagaram por toda parte, mas ainda havia relâmpagos elétricos ofuscantes
e letais na área cercada. Ele tinha que sair dali!
Rastejando no chão, os braços e pernas impelindo-o como uma aranha em disparada, Evan alcançou o buraco na cerca, orientado pelo facho da lanterna. Ao se levantar, Emilio pôs o rifle em suas mãos.
- Fósforos! - berrou Evan, sem forças para pegar os seus.
O mexicano entregou-lhe um punhado, ao mesmo tempo que desviava o facho da lanterna para a última toalha. Kendrick correu, manquejando, até o pavio e riscou vários fósforos numa pedra. Ao se acenderem,
jogou-os na toalha; a chama ergueu-se no mesmo instante e iniciou sua lenta e implacável jornada mortal, não mais que um brilho sobre a terra.
- Depressa! - gritou Emilio, ajudando Evan a se levantar e levando-o, não pela trilha de volta à estrada, mas em direção ao mato alto. - Muitos saíram da casa e estão correndo para cá! Pronto, señor!
Eles correram, literalmente mergulhando pelo mato alto, enquanto um enxame de homens em pânico, a maioria com rifles, aproximava-se do ofuscante gerador em erupção, protegendo os olhos e gritando uns para
os outros. Durante o caos, Kendrick e seu companheiro mexicano rastejaram pelo mato abaixo da multidão aterrorizada. Alcançaram a estrada no momento em que outro bando de homens igualmente aturdidos saía
correndo do prédio baixo e branco no qual ficavam os alojamentos dos empregados. A maioria estava apenas parcialmente vestida, muitos só de cueca, vários exibindo efeitos do excesso de álcool.
- Preste atenção! - sussurrou Evan no ouvido de Emilio. - Vamos sair daqui com os nossos rifles e subir a estrada... Não pare de gritar em espanhol, como se estivesse cumprindo ordens de alguém. Agora!
- ¡Traenos agua! - berrou um mexicano, enquanto os dois deixavam o mato e se juntavam ao bando atordoado que saía gritando dos alojamentos. - ¡Agua!... ¡Traenos agua!
Eles atravessaram a massa de corpos excitados e acabaram se confrontando com o contingente em pânico da casa principal, a metade descendo cautelosamente pelo caminho na direção dos equipamentos agonizantes
e enfumaçados que haviam sido a fonte de energia da ilha. A assustadora escuridão era agravada pelas vozes frenéticas gritando por toda parte ao luar pálido e intermitente. Um momento depois, fachos de
lanternas partiram da casa lá em cima.
- O caminho! - gritou Kendrick. - Siga para o caminho principal do cais! Pelo amor de Deus, depressa! O tanque vai explodir a qualquer momento e haverá uma debandada para os barcos!
- Fica logo em frente. Temos de passar pela galeria.
- Eles estarão nas janelas, nas varandas!
- Não há outro caminho, nenhum mais rápido.
- Então vamos embora!
A estrada acabou, substituída por uma trilha que poucos minutos antes era margeada por fileiras paralelas de lâmpadas de cor âmbar. Eles correram, Kendrick sentindo uma dor imensa, desceram para o pátio,
avançaram para os degraus que levavam ao caminho principal.
- Parem! - berrou uma voz profunda, enquanto o facho de uma potente lanterna os iluminava. - Para onde estão... Santo Deus, é você!
Evan olhou para o alto. Parado na pequena varanda em que ele estivera menos de uma hora antes estava o iatista alto. Tinha uma arma na mão, que começou a levantar, apontando para Kendrick. Evan disparou
seu rifle no instante mesmo em que a arma do iatista explodiu. Sentiu a bala quente penetrar em seu ombro esquerdo, jogando-o para trás. Disparou outra vez e mais outra, enquanto o gigante lá em cima comprimia
a barriga com as mãos, ao mesmo tempo que gritava:
- É ele! É Kendrick!... Detenham o filho da puta! Ele está descendo para os barcos!
Kendrick mirou melhor e disparou um último tiro. O iatista levou a mão à garganta, arqueou o corpo, depois tombou para a frente, por cima da grade, caindo no pátio de lajotas. Os olhos de Evan começaram
a se fechar, uma névoa turbilhonando na sua cabeça.
- Não, señor! Precisa correr! Levante-se!
Kendrick sentiu que seus braços eram puxados, quase arrancados das articulações, o rosto sendo esbofeteado vários vezes, com toda a força.
- Tem de vir comigo ou morrerá, e eu não quero morrer com o señor! Tenho minha família em El Descanso...
- O quê? - gritou Evan, sem saber o que dizia mas respondendo a tudo, enquanto uma parte da névoa no seu cérebro se dissipava.
O ombro em fogo, o sangue encharcando a camisa, ele se levantou e cambaleou para os degraus; lembrando-se da Colt 45 em algum recesso profundo da mente, arrancou-a do bolso de trás, rasgando o pano tenso
ao puxar a arma grande demais para o bolso em que ficara guardada.
- Estou com você! - ele gritou para Emilio.
- Sei disso - respondeu o mexicano, diminuindo as passadas e se voltando. - Quem o ajudou a subir os degraus, señor?... Está ferido e o caminho é escuro, por isso tenho de usar a lanterna.
Subitamente a terra explodiu, sacudindo o chão com o impacto de um enorme meteoro, espatifando as janelas por toda a casa principal no topo da colina, lançando uma língua de fogo pelo céu noturno. O tanque
de combustível do gerador explodira e os dois fugitivos agora desciam correndo pelo caminho, Kendrick a cambalear, tentando desesperadamente seguir a luz oscilante da lanterna, o joelho e o tornozelo ardendo
em dor.
Tiros! Balas zumbiram por cima e em torno deles, levantando terra à sua frente. Emilio apagou a lanterna e segurou a mão de Evan.
- Agora não falta muito. Conheço o caminho e não o deixarei.
- Se conseguirmos sair daqui, você terá o maior barco de pesca de El Descanso!
- Nada disso, señor. Vou me mudar para as montanhas. Estes homens irão atrás de mim, atrás de meus niños.
- Que tal um rancho?
A lua surgiu subitamente por trás das baixas nuvens em disparada, revelando o cais da ilha a sessenta ou setenta metros de distância. Os tiros haviam cessado; recomeçaram um momento depois, mas de novo
a terra aparentemente se rompeu, uma massa galática isolada em frenesi.
- Aconteceu! - gritou Kendrick, enquanto se aproximavam da base do atracadouro.
- O quê, señor? - berrou o mexicano, apavorado com a inesperada detonação ensurdecedora, em pânico com a bola de fumaça e fogo que se elevou além da casa na colina. - Esta ilha vai afundar! O que houve?
- O segundo tanque explodiu! Eu não tinha certeza se ia acontecer! O segundo tanque explodiu!
Um único tiro. Disparado do cais. Emilio foi atingido. Ele se dobrou, segurando a parte superior da coxa, enquanto o sangue se espalhava pela calça. Um homem segurando seu rifle surgiu das sombras ao luar,
a quinze metros de distância, aproximando um walkie-talkie da boca. Evan agachou-se, todo o corpo dolorido tremendo agora, levantou a mão esquerda para firmar a direita e a automática Colt. Disparou duas
vezes, um ou ambos os tiros atingindo o alvo. O guarda cambaleou, largando o rifle e o rádio; caiu sobre as tábuas do ancoradouro e ficou imóvel.
- Vamos, amigo! - gritou Kendrick, segurando o ombro de Emilio.
- Não posso me mexer! Não tenho perna!
- Pois eu não vou morrer com você, seu miserável! Também tenho pessoas que amo no outro lado do mar! Trate de andar ou nade de volta para El Descanso e seus niños!
- Cómo disse? - protestou o mexicano, furioso, enquanto fazia um esforço para se levantar.
- É melhor assim! Fique com raiva! Temos muitos motivos agora para sentir raiva!
Passando o braço pela cintura de Emilio, o ombro quase inútil e as pernas sustentando o mexicano, os dois avançaram pelo cais escuro.
- O barco grande à direita! - gritou Evan, grato porque a lua sumira por trás das nuvens. - Entende alguma coisa de barcos, amigo?
- Sou um pescador!
- Barcos como este? - perguntou Kendrick, empurrando Emilio para o convés e largando a automática 45 na amurada.
- Não se pega peixes neste barco, só serve para turistas...
- Há outra definição.
- Es igual... Ainda assim, já dirigi muitos deles. Posso tentar... E os outros barcos, señor? Eles virão atrás de nós e nos alcançarão, pois os outros são muito mais velozes do que este barco bonito!
- Algum deles poderia chegar ao continente?
- Nunca. Não aguentam ondas muito grandes e queimam combustível depressa demais. Trinta ou quarenta quilômetros e precisam voltar. Este é o barco para nós.
- Dê-me a sua lata de Sterno! - ordenou Kendrick, ouvindo gritos no caminho principal.
O mexicano tirou sua lata do bolso direito da calça, enquanto Kendrick segurava as duas que trouxera e as abria com uma faca.
- Abra a sua, se puder!
- Já abri. Tome aqui, señor. Vou subir para a ponte de comando.
- Pode fazer isso?
- Tenho que subir... El Descanso!
- Oh, Deus! Uma chave! Para o motor!
- Nestas docas particulares é costume deixar as chaves a bordo, para o caso de tempestades ou ventos fortes tornarem necessária uma partida repentina...
- E se não deixaram?
- Todos os pescadores saem com muitos comandantes bêbados. Há sempre painéis que se pode abrir e fios para ligar. Cuide do resto, señor.
- Dois ranchos - disse Evan, enquanto Emilio cambaleava para a escada da ponte de comando.
Kendrick virou-se, pegando a automática Colt na amurada, e tirando o combustível sólido da Sterno com os dedos. Correu pelo atracadouro, jogando punhados sobre as lonas de cada lancha, jogando as latas
vazias nas embarcações. Ao chegar ao último barco, enfiou a mão no bolso e tirou um punhado de fósforos, agachando-se por causa da dor e riscando freneticamente um fósforo depois do outro nas tábuas do
atracadouro, lançando-os nas massas de geleia espalhadas, até as chamas se elevarem de todas as cobertas. Diante de cada lancha, ele disparava a automática no casco, perto da linha d’água, a arma potente
abrindo enormes buracos na leve liga que se usava nas embarcações de grande velocidade.
Emilio conseguira! O ronco profundo dos motores do iate agitou a água... Gritos! Homens desciam correndo pela trilha íngreme que vinha da casa principal, o fogo ao longe tinha agora um brilho firme.
- Señor! Depressa... solte os cabos!
As cordas nas estacas! Kendrick correu para o poste da direita e lutou com o cabo; conseguiu desprendê-lo e o largou na água. Cambaleou e, mal conseguindo se manter de pé, foi até o segundo poste e puxou
em pânico até arrancar a outra corda.
- Detenham-nos! Matem-nos!
Era a voz frenética de Crayton Grinell, presidente do conselho de administração do governo dentro do governo. Homens alcançaram o cais da ilha, as armas subitamente abrindo fogo, a fuzilaria devastadora.
Evan jogou-se do atracadouro e caiu na popa do iate, enquanto Emilio virava o barco para a esquerda, os motores a toda potência, fazendo uma curva pela enseada em direção ao mar escuro.
Uma terceira e última explosão ocorreu sobre a colina além da casa principal. O distante céu noturno tornou-se uma nuvem amarela, por onde se intrometeram listras irregulares de branco e vermelho; o último
tanque de combustível explodira. A ilha do governo assassino dentro de outro governo estava estática, isolada, incomunicável. Ninguém podia sair. Estavam inermes!
- Señor! - gritou Emilio, da ponte de comando.
- O que é? - berrou Kendrick rolando no convés, tentando levantar-se sem conseguir, o corpo vibrando por toda parte em tormento, o sangue dos ferimentos formando bolsões de líquido flutuante dentro da
camisa.
- Tem de subir até aqui!
- Não posso!
- Mas deve! Fui baleando! No peito!
- Foi na perna!
- Não! Agora... do cais. Estou caindo, señor. Não posso segurar a roda do leme.
- Aguente um pouco!
Evan puxou a camisa fora da calça, o sangue se espalhando no convés. Rastejou para a escada e, recorrendo às últimas reservas de energia, que não acreditava que existiam, subiu degrau por degrau. Alcançou
o convés superior e olhou para o mexicano. Emilio segurava a roda do leme, mas o corpo arriara abaixo das janelas. Kendrick segurou-se na amurada e se pôs de pé, mal conseguindo se firmar. Cambaleou para
a roda, apavorado com a escuridão e as ondas que sacudiam o barco. Emilio caiu no chão, as mãos soltando a roda do leme.
- O que devo fazer? - gritou Evan.
- O... rádio - balbuciou o mexicano. - Recolho redes, não sou um comandante, mas já ouvi que quando o tempo é ruim... Há um canal para urgencia, numero dieciseis!
- Onde está o rádio?
- À direita da roda. O controle fica à esquerda. Pronto!
- Como posso chamá-los?
- Tire o microfone e aperte o botão. Diga primeiro de mayo!
- May Day?
- Sí... Madre de Dios...
Emilio desabou no convés da ponte de comando, inconsciente ou morto.
Kendrick pegou o microfone, ligou o rádio e estudou o mostrador digital por baixo do painel. Incapaz de pensar, o barco sacudido pelas ondas, ele ficou apertando o teclado até que o número 16 apareceu,
depois apertou o botão.
- Aqui é o deputado Evan Kendrick! - gritou. - Estou fazendo contato com alguém?
Evan soltou o botão.
- Aqui é a Guarda Costeira, San Diego - veio a resposta.
- Pode me fazer uma ligação telefônica com o Westlake Hotel? É uma emergência!
- Qualquer um pode dizer qualquer coisa, senhor. Não somos um serviço telefônico.
- Repito! Sou o deputado Evan Kendrick do Nono Distrito do Colorado e é uma emergência! Estou perdido no mar em algum lugar a oeste ou ao sul de Tijuana!
- São águas mexicanas...
- Chame a Casa Branca! Repita o que acabei de dizer... Kendrick do Colorado!
- Você é o cara que foi a Oman...?
- Peça ordens à Casa Branca!
- Mantenha seu rádio ligado, vou verificar suas coordenadas para o CDR...
- Não tenho tempo e não sei do que está falando!
- Contato direcional pelo rádio...
- Pelo amor de Deus, Guarda Costeira, ligue-me com o Westlake e peça as ordens! Tenho de falar com o hotel!
- Pois não, comando Kendrick!
- Alguma coisa funciona - murmurou Evan para si mesmo, enquanto os sons saíam do alto-falante em tons diferentes, até que houve o ruído de uma campainha de telefone. A telefonista atendeu.
- Quarto cinquenta e um! Depressa, por favor!
- Alô? - gritou a voz tensa de Khalehla.
- Sou eu! - berrou Kendrick, apertando o botão para transmissão, e soltando-o no instante seguinte.
- Pelo amor de Deus, onde você está?
- Em algum lugar do mar, mas esqueça! Há um advogado, um advogado que Ardis usava pessoalmente, ele tem um livro que explica tudo! Descubra-o! Obtenha o livro!
- Está certo. Falarei com MJ imediatamente. Mas, e você? Está...
Outra voz entrou na transmissão, o tom profundo, autoritário e inconfundível:
- Aqui é o presidente dos Estados Unidos. Encontrem esse barco, descubram esse homem, ou vão se ver comigo!
As ondas sacudiam o barco como se fosse uma migalha insignificante no mar agitado. Evan não pôde mais aguentar a roda do leme. A neblina voltou e o deputado desabou sobre o corpo do pescador de El Descanso.
43
Sentiu a ausência de peso, depois um balanço violento; sentiu que mãos o seguravam e um vento forte a fustigá-lo, e finalmente um barulho ensurdecedor que vinha de cima. Abriu os olhos para vultos indistintos
que faziam movimentos frenéticos ao redor, desafivelando correias... Depois uma picada na carne, no braço. Tentou se levantar mas foi contido, enquanto homens o carregavam para uma superfície plana e acolchoada,
dentro de uma enorme gaiola de metal vibrante.
- Calma, deputado! - gritou a voz de alguém que vestia um uniforme branco da Marinha, que gradativamente entrou em foco. - Sou médico e você está ferido. Não torne as coisas mais difíceis para mim, porque
o presidente prometeu presidir meu julgamento em corte marcial se eu não fizer meu trabalho.
Outra picada. Ele não podia suportar mais nenhuma dor.
- Onde estou?
- Uma pergunta lógica - respondeu o oficial-médico, esvaziando uma seringa no ombro de Kendrick. - Está num helicóptero, 150 quilômetros ao largo da costa do México. Estava a caminho da China, senhor,
e aquele mar está sempre agitado.
- É isso!
Evan tentou elevar a voz, mas mal conseguiu se ouvir.
- Isso o quê?
O médico inclinou-se, e o deputado viu que um marujo por cima dele segurava um frasco de plasma.
- Passagem para a China... uma ilha chamada Passagem para a China! É preciso capturá-la!
- Sou um médico, não...
- Faça o que estou dizendo!... Chame San Diego pelo rádio, mandem lanchas e aviões para lá! Prendam todos!
- Ei, não sou um perito, mas estas águas são mexicanas...
- Chame a Casa Branca!... Não! Fale com um homem chamado Payton na CIA... Mitchell Payton, CIA! Diga a ele o que acabei de lhe informar! E cite o nome Grinell!
- A coisa não parece brincadeira - murmurou o jovem médico olhando para um terceiro homem ao pé da maca de Kendrick. - Ouviu o congressista, tenente. Vá falar com o piloto. Uma ilha chamada Passagem para
a China e um homem chamado Payton em Langley, e outro chamado Grinell. Depressa, pois o deputado é um homem do presidente... Ei, trata-se de alguma coisa parecida com o que você fez com os árabes?
- Emilio? - indagou Evan, ignorando a pergunta. - Como está ele?
- O mexicano?
- Meu amigo... o homem que salvou minha vida.
- Pior do que você... muito pior. Na melhor das hipóteses deputado, sessenta a quarenta contra ele. Estamos voando para o hospital da base o mais depressa possível.
Kendrick soergueu-se, apoiado num cotovelo, olhou para o corpo do inconsciente Emilio, menos de um metro distante dele. O braço do mexicano estava no convés do helicóptero, o rosto pálido, quase uma máscara
mortuária.
- Dê-me a mão dele! - ordenou Evan. - Depressa!
- Pois não, senhor - murmurou o médico, pegando a mão de Emilio e levantando-a para que Evan pudesse segurá-la.
- El Descanso! - gritou Evan. - El Descanso e sua família... sua mulher e os niños! Não morra por mim, seu filho da puta! Seu pescador de merda que não sabe de porra nenhuma, você tem de viver!
- Cómo disse?
A cabeça do mexicano balançou de um lado para outro, enquanto Kendrick apertava sua mão com mais força.
- Assim é melhor, amigo. Lembre-se de que estamos com raiva! E continuamos com raiva! Aguente firme, seu filho da puta, ou vou matá-lo pessoalmente! ¿Comprende?
A cabeça virando para Evan, Emilio abriu um pouco os olhos, os lábios se contraindo num sorriso.
- Acha que pode matar este pescador forte?
- Não me tente!... Bom, talvez eu não pudesse, mas sempre posso arrumar um barco grande pará você.
- Está loco, señor? - O mexicano tossiu. - ... Mas ainda há El Descanso...
- Três ranchos - murmurou Kendrick, soltando a mão do outro, sob o efeito da injeção aplicada pelo médico naval.
Uma a uma, as elegantes limusines atravessavam as ruas escuras de Cynwid Hollow em direção à propriedade à beira da baía de Chesapeake. Enquanto nas ocasiões anteriores houvera quatro veículos, naquela
noite havia apenas três. Faltava um; pertencia a uma companhia fundada por Eric Sundstrom, o traidor de Inver Brass.
Os membros sentaram-se em torno da grande mesa redonda, na biblioteca, um abajur de latão na frente de cada personagem. Todos os abajures estavam acesos, à exceção de um, na frente de uma quinta cadeira,
vazia. Quatro poças de luz na madeira envernizada; a quinta fonte estava extinta, insinuando que não havia honra na morte - em vez disso, talvez, um lembrete da fragilidade humana num mundo humano demais.
Naquela noite não havia conversa jovial, nenhum gracejo para lembrá-los de que eram mortais e não estavam acima de fraquezas, apesar da sua tremenda fortuna e influência. A cadeira vazia era suficiente.
- Vocês têm os fatos - disse Samuel Winters, as feições aquilinas iluminadas. - Agora peço os seus comentários.
- Só tenho um - declarou Gideon Logan, a voz firme, a enorme cabeça preta nas sombras. - Não podemos parar, a alternativa é terrível demais. Os lobos à solta tomarão o governo... o que ainda não usurparam.
- Mas não há nada para parar, Gid - corrigiu Margaret Lowell. - O pobre Milos já pôs tudo em movimento em Chicago.
- Ele não tinha acabado, Margaret - interveio Jacob Mandel, o rosto e corpo esqueléticos na sua cadeira habitual, ao lado de Winters. - Há o próprio Kendrick. Ele deve aceitar a indicação, ficar convencido
que não há outro jeito. Se está lembrada, o assunto foi levantado por Eric e agora me pergunto por que ele fez isso. Poderia se omitir, pois o problema talvez se tornasse nosso calcanhar de aquiles.
- Sundstrom, como sempre, estava consumido por sua insaciável curiosidade - comentou Winters, tristemente. - A mesma curiosidade que, aplicada à tecnologia espacial, levou-o a nos trair. Dizer isso, no
entanto, não responde à pergunta de Jacob. Nosso deputado pode desistir de vez.
- Não tenho certeza se Milos achava que esse problema era grave, Jacob - refletiu a advogada Lowell, inclinando-se para a frente, o cotovelo na mesa, os dedos estendidos sobre a têmpora direita. - Se ele
de fato disse isso ou não, é irrelevante, mas sem dúvida insinuou que Kendrick era um homem de muita moral, e até fora de moda. Detestava a corrupção e por isso entrou na política para expulsar um corrupto.
- E foi para Oman porque acreditava que poderia ajudar com a sua experiência - acrescentou Gideon Logan -, sem pensar em qualquer recompensa para si mesmo... o que pudemos comprovar.
- E foi isso que nos convenceu a aceitá-lo - disse Mandel acenando com a cabeça. - Tudo se ajusta. O homem extraordinário numa arena bastante ordinária de candidatos políticos. Mas será suficiente? Ele
concordará ante o movimento nacional crescente tão bem orquestrado por Milos?
- A suposição foi de que ele atenderia ao chamado se fosse genuíno - interveio Winters. - Mas será uma suposição exata?
- Creio que é - respondeu Margaret Lowell.
- Eu também creio. - Logan balançou a cabeçorra e inclinou-se para a poça de luz refletida na mesa. - Mesmo assim, o que Jacob diz tem alguma procedência. Não podemos ter absoluta certeza, e se estivermos
enganados será Bollinger e o resto, como sempre. E os lobos assumirão em janeiro.
- E se Kendrick for confrontado com a alternativa dos seus lobos, com provas da sua venalidade, do seu poder entrincheirado nos bastidores que impregnou toda a estrutura de Washington? - indagou Winters,
a voz não mais monótona, mas muito animada. - Nessas circunstâncias, acham que ele atenderá ao chamado?
O imenso empresário preto recostou-se na cadeira, nas sombras, contraindo os olhos grandes.
- Por tudo o que sabemos... sim, acho que sim.
- E qual é sua opinião, Margaret?
- Concordo com Gid. Ele é um homem excepcional... com uma consciência política, eu acho.
- Jacob?
- Claro, Samuel, mas como podemos fazer isso? Não temos documentação nem registros oficiais... Até queimamos nossas próprias anotações. Assim, além do fato de que ele não teria motivos para acreditar em
nós, não podemos nos revelar, e Varak não existe mais.
- Tenho outro para tomar o lugar dele. Um homem que, se necessário, pode fazer com que Kendrick saiba da verdade. Toda a verdade - se é que ele já não a conhece.
Aturdidos, os olhos de todos fixaram-se no porta-voz de Inver Brass.
- O que está dizendo, Sam? - gritou Margaret Lowell.
- Varak deixou instruções para o caso da sua morte e dei-lhe minha palavra de que não as abriria, a menos que ele sucumbisse. Cumpri a palavra porque, com toda a sinceridade, não desejava saber as coisas
que ele poderia me dizer... Só as abri ontem à noite, depois do telefonema de Mitchell Payton.
- Como cuidará de Payton? - perguntou Lowell subitamente, a voz ansiosa.
- Vamos nos reunir amanhã. Nenhum de vocês tem qualquer coisa a temer; ele nada sabe a respeito de vocês. Chegaremos a um acordo ou não chegaremos. Se não chegarmos... levei uma vida longa e produtiva,
não será nenhum sacrifício.
- Desculpe, Samuel - disse Gideon Logan, impaciente -, mas todos nós enfrentamos essas decisões... Não estaríamos diante desta mesa se não fosse assim. Quais foram as instruções de Varak?
- Entrar em contato com o único homem que nos pode manter... individualmente ou como grupo... total e oficialmente informados. O homem que foi o informante de Varak desde o início, sem o qual Milos nunca
poderia fazer o que fez. Quando descobriu a discrepância nos registros do Departamento de Estado há dezesseis meses, o assentamento que punha Kendrick entrando no prédio mas sem indicação da sua saída,
nosso tcheco soube onde procurar. O que descobriu não foi apenas um informante disposto, mas principalmente dedicado... Milos, sem dúvida, é insubstituível, mas nestes tempos de alta tecnologia nosso novo
coordenador figura entre os jovens profissionais de mais rápida ascensão no governo. Não há um grande departamento ou agência de Washington que não esteja disputando seus serviços, e o setor particular
já lhe ofereceu contratos reservados a ex-presidentes e secretários de Estado com pelo menos o dobro da sua idade.
- Ele deve ser um advogado extraordinário ou o mais jovem especialista em relações internacionais - comentou Margaret Lowell.
- Não é nenhuma das duas coisas - revelou o porta-voz de cabeça branca de Inver Brass. - É considerado o mais eminente tecnólogo da ciência de computadores do país, talvez do Ocidente. Felizmente para
nós, ele vem de uma família consideravelmente rica e não se sente tentado pela indústria privada. À sua maneira, está tão empenhado quanto Milos Varak na busca do melhor para a Nação... Em suma, ele se
tornou um de nós quando compreendeu seus talentos. - Winters inclinou-se para a frente sobre a mesa e apertou um botão de marfim. - Quer entrar, por favor?
A pesada porta da extraordinária biblioteca abriu-se e surgiu um jovem ainda na casa dos vinte anos. O que o distinguia da maioria dos outros de sua idade era a aparência notável; parecia ter saído de
um anúncio de moda masculina numa revista de luxo. Contudo, as roupas eram discretas, nem impressionantes nem vulgares - apenas impecáveis. Surpreendente também era o rosto bem delineado, quase o ideal
grego.
- Ele deveria esquecer os computadores - murmurou Jacob Mandel. - Tenho amigos na agência William Morris. Eles lhe conseguirão uma série na TV.
- Entre, por favor - interveio Winters, pondo a mão no braço de Mandel. - E, se assim desejar, apresente-se.
O jovem avançou confiante, mas sem arrogância, para a extremidade oeste da mesa, por baixo do cilindro preto que se transformava numa tela ao ser baixado. Parou por um momento, olhando as poças de luz
na mesa.
- É uma honra para mim estar aqui - ele disse, amável. - Meu nome é Gerald Bryce e no momento sou diretor de OGC do Departamento de Estado.
- OGC? - repetiu Mandel. - O que significa?
- Operações Globais de Computador, senhor.
O sol da California entrava pelas janelas do quarto de hospital enquanto Khalehla, os braços enlaçando Evan, gradativamente o soltava. Ela sentou-se na cama, ao lado dele, e sorriu, os olhos brilhando
com resíduos de lágrimas, a pele azeitonada muito pálida.
- Seja bem-vindo à terra dos vivos - murmurou, apertando a mão de Evan.
- É um prazer estar aqui - balbuciou Kendrick, fitando-a. - Quando abri os olhos, não tinha certeza se era você ou se eu estava... se eles me pregavam mais algum truque.
- Truque?
- Tiraram minhas roupas... eu vestia uma calça jeans velha... e depois estava de novo com meu terno... o terno azul...
- Seu uniforme do Congresso, assim você o chamava - interrompeu Khalehla, gentilmente. - Terá de providenciar outro terno, querido. O que restou da calça, depois que a cortaram, nenhum alfaiate conseguiria
reparar.
- Mas que garota extravagante... Oh, Senhor, tem alguma ideia do quanto é bom ver você? Nunca pensei que tornaria a vê-la... o que me deixou furioso.
- Sei como é bom ver você. O tapete do hotel ficou desgastado... Mas descanse agora; conversaremos mais tarde. Acaba de despertar e os médicos disseram...
- Ora... Os médicos que se danem, quero saber tudo o que aconteceu. Como está Emilio?
- Vai sobreviver; perdeu um pulmão e teve a bacia estilhaçada. Nunca mais andará direito, mas está vivo.
- Ele não precisa andar, basta sentar-se numa cadeira de comandante.
- Como?
- Esqueça... A ilha! Chama-se Passagem para a China...
- Já sabemos. Como você é tão teimoso, pelo menos deixe que eu fale... O que você e Carallo fizeram foi incrível...
- Carallo?... Emilio?
- Exatamente. Vi fotografias... que confusão! O fogo espalhou-se por toda parte, principalmente pelo lado leste da ilha. A casa, os jardins, até mesmo o cais em que os outros barcos explodiram... tudo
desapareceu. Quando os helicópteros da Marinha chegaram com os fuzileiros, todos na ilha estavam apavorados, esperando nas praias do lado oeste. E saudaram nossos homens como se fossem libertadores.
- Então pegaram Grinell.
Khalehla fitou Evan nos olhos, fez uma pausa, depois sacudiu a cabeça.
- Não. Lamento muito, querido.
- Mas como...? - Kendrick começou a se erguer, estremecendo com a dor no ombro suturado e enfaixado. Carinhosamente, Khalehla conteve-o, fazendo-o voltar ao travesseiro. - Ele não podia escapar! Não devem
ter procurado direito!
- Não precisaram procurar. Os mexicanos contaram o que aconteceu.
- E o que foi?
- Um hidroavião foi buscar o patrón.
- Não entendo! Todas as comunicações estavam cortadas!
- Nem todas. O que você não sabia, não podia saber, era que Grinell tinha pequenos geradores auxiliares no porão da casa principal, com potência suficiente para fazer contato com seu pessoal num aeroporto
em San Felipe... Descobrimos isso por intermédio das autoridades mexicanas de controle de transmissões. Ele pode fugir e até desaparecer, mas não conseguirá se esconder para sempre; acabaremos encontrando
uma pista.
- Parece até o meu carrasco...
- Como?
- Esqueça.
- Eu gostaria que deixasse de dizer isso.
- Desculpe. Já encontraram o advogado de Ardis e o tal livro?
- Mais uma vez, estamos perto, porém ainda não o descobrimos. Ele viajou para algum lugar, mas ninguém sabe onde. Todos os seus telefones estão grampeados e mais cedo ou mais tarde ele terá de entrar em
contato com alguém. Vamos pegá-lo quando isso acontecer.
- Ele pode saber que vocês estão à sua procura?
- Essa é a grande dúvida. Grinell conseguiu fazer contato com o continente e através de San Felipe pode ter enviado um aviso ao advogado de Ardis. Simplesmente não sabemos.
- E Manny? - indagou Evan, hesitante. - Mas você não deve ter tido tempo...
- Errado. Não tive outra coisa além de tempo... e um tempo de desespero, para ser mais exata. Liguei para o hospital em Denver ontem à noite, e tudo o que a enfermeira do andar pôde me dizer foi que ele
se encontrava estável... e, posso apostar, incomodando todo mundo.
- A revelação da semana. - Kendrick fechou os olhos e sacudiu a cabeça lentamente. - Ele está morrendo, Khalehla... está morrendo e não há nada que alguém possa fazer.
- Todos estamos morrendo, Evan. Cada dia é menos um dia de vida. Saber não ajuda muito, mas Manny já passou dos oitenta anos e o veredito ainda não foi consumado.
- Sei disso - murmurou Kendrick, olhando para as mãos entrelaçadas dos dois e depois para o rosto de Khalehla. - Você é uma linda mulher, não é mesmo?
- Não me preocupo muito com isso, mas creio que dá para passar. E você não é nenhum Quasímodo.
- Não, não sou, apenas ando como ele... Não é ser muito modesto, mas nossos filhos têm uma boa chance de terem uma aparência razoável.
- Concordo inteiramente com a primeira parte, mas tenho minhas dúvidas quanto à segunda.
- Compreende que acaba de concordar em casar comigo, não é mesmo?
- Tente escapar de mim e descobrirá como sou realmente boa com uma arma.
- Isso é ótimo... "Ah, senhora Jones, já conhece minha mulher, a pistoleira? Se alguém tentar penetrar na sua festa, ela o acertará bem entre os olhos".
- Também sou faixa-preta, para o caso de uma arma fazer barulho demais.
- Mas que beleza! Agora ninguém vai me intimidar. Se puxarem uma briga comigo, eu a soltarei da coleira.
- Grrr - rosnou Khalehla, exibindo os dentes perfeitos, depois voltando a ficar séria e baixando os olhos, como se o estudasse. - Eu amo você. Só Deus sabe o que nós, dois desajustados, pensamos estar
fazendo, mas acho que vamos tentar.
- Não, não será uma tentativa - murmurou Evan, segurando a mão direita de Khalehla. - Será uma vida inteira.
Ela inclinou-se e beijou-o, e eles se abraçaram como duas pessoas que quase haviam perdido uma à outra. E o telefone tocou.
- Mas que droga! - exclamou Khalehla, levantando-se depressa.
- Sou tão irresistível assim?
- Não é você. O telefone não devia tocar, foram minhas instruções! - Ela atendeu e falou bruscamente: - Alô, e quem quer que você seja, eu gostaria de uma explicação. Como conseguiu falar com este quarto?
- A explicação é simples, agente Rashad - disse Mitchell Payton, de Langley, Virginia. - Revoguei a ordem de uma subordinada.
- Você não viu este homem, MJ! Ele está todo estourado!
- Para uma mulher adulta, Adrienne, que já admitiu na minha presença que tem mais de trinta anos, você ainda possui o mau hábito de muitas vezes falar como uma adolescente... E eu conversei antes com os
médicos. Evan precisa de algum repouso, deve manter o tornozelo enfaixado e a perna imobilizada por um dia ou dois, e o ombro está sendo periodicamente examinado, mas fora essas pequenas inconveniências
ele pode voltar ao campo.
- Você é demais, tio Mitch! Ele mal consegue falar!
- Então por que você está conversando com ele?
- Como soube?...
- Eu não sabia. Você acaba de me dizer... E agora, minha cara, podemos tratar de realidades?
- O que é Evan? Irreal?
- Dê-me o telefone - disse Kendrick, tirando o aparelho da mão de Khalehla, meio desajeitado. - Sou eu, Mitch. O que está acontecendo?
- Como está, Evan?... Acho que é uma pergunta tola.
- E muito. Responda à minha.
- O advogado de Ardis Vanvlanderen está em sua casa de veraneio nas montanhas de San Jacinto. Ligou para o escritório dele à procura de recados e pudemos determinar a origem. Uma unidade se encontra a
caminho de lá neste momento para avaliação. Deve chegar em poucos minutos.
- Avaliação? Mas o que significa avaliação? Ele está com o livro! Tratem de pegá-lo! Explica a estrutura global deles, cada nojento negociante de armas com que têm contato no mundo inteiro! Grinell pode
correr e se esconder com qualquer um deles! Consiga o livro!
- Você esquece o instinto de sobrevivência de Grinell. Presumo que Adrienne... Khalehla já lhe contou.
- Já, sim. Um hidroavião tirou-o da ilha. E daí?
- Ele quer o livro tanto quanto nós, e a esta altura sem dúvida já fez contato com o advogado da senhora Vanvlanderen. Grinell não se arriscará a aparecer pessoalmente, enviará alguém de confiança. Se
souber que estamos fechando o cerco... e para isso é preciso apenas outro par de olhos vigiando a casa do advogado... que instruções você acha que ele daria ao mensageiro de confiança que terá de lhe levar
o livro para o México?
- ... Onde ele poderia ser detido na fronteira ou num aeroporto...
- E nós estaremos lá. O que acha que Grinell diria a essa pessoa?
- Queime a porcaria do livro - murmurou Kendrick.
- Exatamente.
- Espero que seus homens sejam bons no que fazem.
- Dois homens, e um é o melhor que temos. Seu nome é Pão-de-gengibre; pergunte à sua amiga quem é ele.
- Pão-de-gengibre? Que nome idiota é esse?
- Mais tarde, Evan. Tenho outra coisa para lhe dizer. Voarei para San Diego esta tarde e precisamos conversar. Espero que você esteja de pé, porque é urgente.
- Estarei de pé, mas por que não pode falar agora?
- Porque eu não saberia o que dizer... Não tenho certeza se saberei mais tarde, mas pelo menos descobrirei mais alguma coisa. Vou me encontrar com um homem dentro de uma hora, um homem influente que está
muito interessado em você... há cerca de um ano.
Kendrick fechou os olhos, sentindo-se fraco, enquanto arriava para os travesseiros. E disse:
- Ele integra um grupo ou comitê que se intitula... Inver Brass.
- Quer dizer que você sabe?
- Apenas isso. Não tenho a menor ideia de quem são ou o que são, sei apenas que arruinaram minha vida.
O sedã castanho, com placas do governo codificadas indicando que era da CIA, passou pelos imponentes portões da propriedade à margem da baia de Chesapeake e subiu pelo caminho circular até os degraus de
pedra da entrada. O homem alto, de capa aberta, deixando à mostra um terno e camisa amarrotados, evidência de uso contínuo por quase 72 horas, saltou do banco traseiro e subiu os degraus, cansado, em direção
à enorme porta da frente. Estremeceu por um instante ao ar frio da manhã do dia nublado, que prometia neve... neve para o Natal, refletiu Payton. Era véspera de Natal, apenas mais uma jornada para o diretor
de Projetos Especiais, mas um dia que ele detestava, pois agora era iminente o encontro que vinha protelando por vários anos de sua vida. Ao longo da sua carreira tinha feito muitas coisas que lhe levaram
a bile a irromper no estômago, mas nenhuma pior do que a destruição de homens honestos, de elevada moral. Destruiria um homem assim naquela manhã e se execrava por isso, embora não tivesse alternativa.
Pois havia um bem maior, uma moral superior, que se encontrava nas leis sensatas de uma nação de pessoas decentes. Abusar dessas leis era negar a decência; a responsabilidade era a constante. Ele tocou
a campainha.
Uma criada conduziu Payton por uma enorme sala de estar, com vista para a baía de Chesapeake, até outra porta imponente. Ela a abriu e o diretor entrou na belíssima biblioteca, tentando absorver tudo que
seus olhos viam. O consolo enorme ocupava toda uma parede à esquerda, com sua panóplia de monitores de televisão e outros controles, além de equipamentos de projeção; a tela estava abaixada à direita e
a estufa Franklin acesa num canto próximo; viu as enormes janelas à frente e a grande mesa redonda. Samuel Winters levantou-se da cadeira sob a parede de sofisticada tecnologia e adiantou-se com a mão
estendida.
- Já faz muito tempo, MJ... posso chamá-lo assim? - disse o historiador de renome internacional. - Pelo que me recordo, todos o chamavam de MJ.
- Claro, doutor Winters.
Trocaram um aperto de mão e o historiador septuagenário acenou com o braço, abrangendo a sala inteira.
- Queria que você visse tudo. Para saber que temos os dedos na pulsação do mundo... Mas não por proveito pessoal, deve compreender isso.
- E compreendo. Quem são os outros?
- Sente-se, por favor. - Winters gesticulou para a cadeira em frente à sua, no outro lado da mesa. - E tire o casaco. Quando se chega à minha idade, todos os cômodos precisam estar bem aquecidos.
- Se não se importa, prefiro ficar de casaco. A reunião não será muito longa.
- Tem certeza?
- Absoluta - respondeu Payton, sentando-se.
- Bom, é a inteligência excepcional que escolhe sua atitude, sem considerar os parâmetros da discussão - comentou Winters placidamente, mas com ênfase, enquanto se encaminhava para sua cadeira. - E você
possui uma inteligência excepcional, MJ.
- Obrigado por seu elogio generoso, embora um tanto condescendente.
- Não acha que está sendo um pouco hostil?
- Não mais do que você ao decidir pelo país quem deve concorrer e ser eleito para um cargo nacional.
- Ele é o homem certo, no momento certo, por todas as razões certas.
- Não posso deixar de concordar. O problema é a maneira como você agiu. Quando alguém solta uma força incontrolável para alcançar um objetivo, jamais pode conhecer as consequências.
- Outros conhecem. E estão agindo neste momento.
- Isso não lhe dá nenhum direito. Denuncie-os, se puder... e com seus recursos, tenho certeza que pode... mas não os imite.
- Isso é um sofisma! Vivemos num mundo animal, um mundo politicamente orientado, dominado por predadores!
- Não precisamos nos tornar predadores para combatê-los... Denúncia, jamais imitação.
- Quando a notícia vazar, quando uns poucos compreenderem o que aconteceu, hordas brutais terão avançado, pisoteando-nos. Eles mudam as regras, alteram as leis. São intocáveis.
- Respeitosamente, doutor Winters, eu discordo.
- Lembre-se do Terceiro Reich!
- E veja o que aconteceu com ele. Pense em Runimedes e na Magna Carta, nas tiranias da corte francesa dos Luíses, nas brutalidades dos czares... pelo amor de Deus, pense em Philadelphia em 1787! A Constituição,
doutor! O povo reage muito depressa à opressão!
- Diga isso aos cidadãos da União Soviética.
- Xeque-mate. Mas não tente explicar isso aos dissidentes que todos os dias denunciam ao mundo os sombrios recessos da política do Kremlin. Eles estão estabelecendo uma diferença, doutor.
- Excessos! - gritou Winters. - Por toda parte, neste pobre a malfadado planeta, há excessos. E vão nos destruir.
- Não se pessoas sensatas denunciaram os excessos e não aderirem à histeria. Sua causa podia ser certa, mas em seu excesso você violou as leis... escritas e tácitas... e causou a morte de homens e mulheres
inocentes, porque se considerou acima das leis da terra. Em vez de revelar ao país o que sabia, resolveu manipular tais conhecimentos.
- Essa é a sua determinação?
- É, sim. Quem são os outros de Inver Brass?
- Conhece esse nome?
- Acabei de dizê-lo. Quem são eles?
- Nunca saberá por meu intermédio.
- Acabaremos por descobri-los... Mas, para satisfazer minha curiosidade, onde começou a organização? Se não quiser responder, não tem importância.
- Mas eu quero responder! - disse o velho historiador, as mãos finas tremendo tanto que teve de juntá-las sobre a mesa. - Há algumas décadas Inver Brass nasceu no caos, quando a nação estava sendo dilacerada,
à beira da autodestruição. Era o auge da grande depressão; o país parara e a violência irrompia por toda parte. Pessoas famintas pouco se importavam com slogans vazios e promessas ainda mais vazias; pessoas
produtivas, que haviam perdido o orgulho sem qualquer culpa, estavam reduzidas a uma fúria intensa... Inver Brass foi formada por um pequeno grupo e homens imensamente ricos e influentes, que seguiram
os conselhos de gente como Baruch e não foram afetados pelo colapso econômico. Também eram homens de consciência social e empenharam seus recursos de maneira prática, abafando motins e violências, não
apenas por injeções maciças de capital e suprimentos nas áreas incendiadas, mas também promovendo discretamente no Congresso leis que ajudaram a atenuar a crise. É essa a tradição que seguimos.
- É mesmo? - indagou Payton, suavemente, os olhos frios, estudando o velho.
- É, sim - declarou Winters, enfático.
- Inver Brass... O que significa?
- É o nome de um lago pantanoso, nas Terras Altas da Escócia, que não figura em qualquer mapa. Foi criado pelo primeiro porta-voz, um banqueiro descendente de escoceses, que compreendia que o grupo tinha
de agir em segredo.
- Ou seja, sem responsabilidade.
- Repito: não queremos nada para nós mesmos!
- Então, por que o sigilo?
- É necessário; nossas decisões são tomadas objetivamente, para o bem do país, mas nem sempre são agradáveis, ou, aos olhos de muitos, sequer defensáveis. Contudo, sempre visam ao bem da nação.
- "Sequer defensáveis"? - repetiu Payton, atônito com o que ouvia.
- Eu lhe darei um exemplo. Há vários anos, nossos antecessores imediatos se defrontaram com um governo tirânico, que tinha pretensões de reformular as leis do país. Um homem chamado John Edgar Hoover,
um gigante que se tornou obcecado na velhice, esquecendo os limites da razão, chantageou presidentes e senadores, homens decentes, com seus arquivos repletos de rumores e insinuações. Inver Brass teve
de eliminá-lo, antes que ele deixasse de joelhos o executivo e o legislativo, em suma, o governo. E depois surgiu um jovem escritor chamado Peter Chancellor e chegou muito perto da verdade. Ele e seu intolerável
manuscrito causaram o fim de Inver Brass na ocasião... mas não puderam impedir sua ressurreição.
- Oh, Deus! - murmurou o diretor de Projetos Especiais. - O bem e o mal uma decisão exclusiva de vocês, sentenças pronunciadas apenas por vocês. Um mito de arrogância.
- Isso é injusto! Não havia outra solução! Você está errado!
- Essa é a verdade. - Payton levantou-se, empurrando a cadeira para trás. - Não tenho mais nada a dizer, doutor Winters. Vou embora agora.
- O que vai fazer?
- O que deve ser feito. Apresentarei um relatório ao presidente, ao procurador-geral e aos comitês de informações do Congresso. Essa é a lei. E não precisa se dar ao trabalho de me acompanhar até a porta.
Encontrarei a saída.
Payton avançou para a manhã fria e cinzenta. Respirou fundo, tentando encher os pulmões, mas não foi capaz. Estava cansado demais, muita coisa era triste e ofensiva... naquela véspera de Natal. Chegou
aos degraus e começou a descer em direção ao seu carro quando subitamente, deslocando o ar, soou Um estrondo alto... um tiro. O motorista de Payton saltou do carro, agachando-se no passeio, a arma firmada
pelas duas mãos.
MJ sacudiu a cabeça lentamente e continuou a se encaminhar para a porta traseira do carro. Estava esgotado. Não tinha mais reservas de força; sua exaustão era completa. E também não havia mais a urgência
de voar para a California. Inver Brass acabara, seu líder morto pelas próprias mãos. Sem a estatura e autoridade de Samuel Winters, estava desbaratada, e a maneira como ele morrera transmitiria a mensagem
do colapso aos que restavam... Evan Kendrick? Ele tinha de ser informado de toda a história, de todos os aspectos, a fim de tomar sua decisão. Mas podia esperar... pelo menos um dia. Tudo em que MJ podia
pensar agora, enquanto o motorista lhe abria a porta do carro, era chegar em casa, tomar vários drinques em excesso e dormir.
- Sr. Payton, há uma mensagem de rádio Código Cinco.
- Qual é?
- Entrar em contato com San Jacinto. Urgente.
- Leve-me de volta a Langley, por favor.
- Pois não, senhor.
- Ah, caso eu tenha esquecido... Feliz Natal.
- Obrigado, senhor.
44
- Daremos uma olhada nele pelo menos uma vez por hora, senhorita Rashad - disse a enfermeira da Marinha por trás do balcão. - Pode ficar tranquila... Sabia que o próprio presidente ligou para o deputado
esta tarde?
- Sabia, sim. Eu estava lá. E por falar em telefonemas, não deve haver nenhuma ligação para o quarto.
- Compreendemos perfeitamente. Aqui está o recado; é uma cópia do que cada telefonista tem na mesa. Todas as ligações lhe devem ser encaminhadas para o Westlake Hotel.
- Isso mesmo. Muito obrigada.
- Não é uma pena? É véspera de Natal, e em vez de estar com os amigos, cantando melodias natalinas ou qualquer coisa assim, o deputado se encontra enfaixado num hospital e você fica retida num quarto de
hotel.
- Vou lhe dizer uma coisa, enfermeira. O fato de ele estar aqui e vivo faz com que este seja o melhor Natal que eu podia esperar.
- Sei disso, minha cara. Já vi vocês dois juntos.
- Cuide bem dele. Se eu não dormir um pouco, ele não vai me considerar um grande presente pela manhã.
- O deputado é nosso paciente número um. E pode descansar, mocinha. Está muito abatida, e considere isso uma opinião médica.
- Estou horrível, isso sim.
- Nos meus melhores dias, eu gostaria de estar horrível como você.
- Acho-a maravilhosa - murmurou Khalehla, dando palmadinhas no braço da enfermeira. - Boa noite. Até manhã.
- Feliz Natal, minha cara.
- Não poderia ser mais feliz. Para você também.
Rashad desceu pelo corredor branco até os elevadores e apertou o botão. Falara sério sobre a necessidade de dormir; exceto por uns breves vinte minutos, quando ela e Evan haviam cochilado, não fechava
os olhos há quase 48 horas. Um banho de chuveiro quente, uma refeição no quarto e a cama, era a pedida da noite. Pela manhã faria compras numa daquelas lojas que permanecem abertas no Natal em benefício
dos que tenham esquecido alguém, levaria alguns presentes para seu... namorado? Por Deus!, ela pensou. Para meu noivo! Era demais.
Era curioso, porém, como o Natal inegavelmente despertava os aspectos mais gentis e generosos da natureza humana - independente de raça, credo, ou da ausência de ambos. A enfermeira, por exemplo. Era meiga,
provavelmente uma mulher um tanto solitária, com um corpo muito grande e um rosto rechonchudo, que dificilmente seria escolhida para um cartaz de recrutamento. Contudo, tentara se mostrar afetuosa e gentil.
Dissera que sabia como a namorada do deputado se sentia, porque já os vira juntos. Não vira. Khalehla se lembrava de todas as pessoas que haviam entrado no quarto de Evan e a enfermeira não fora uma delas.
Bondade... afinal, era Natal. E seu homem estava salvo. A porta do elevador abriu, ela entrou e começou a descer, sentindo-se segura, satisfeita e generosa.
Kendrick abriu os olhos para a escuridão. Alguma coisa o despertara... o que seria? A porta do quarto?... Sem dúvida fora a porta. Khalehla lhe dissera que as enfermeiras apareceriam para ver como ele
estava durante a noite inteira. Para onde pensava ela que ele poderia ir? A um baile? Arriou no travesseiro, respirando fundo, sem qualquer força, toda energia se esgotando... Não! Não fora a porta. Sentiu
uma presença. Havia mais alguém no quarto!
Lentamente, centímetro a centímetro, Evan foi virando a cabeça no travesseiro. Havia uma indistinta mancha branca no escuro, sem extensões superiores ou inferiores, apenas um indefinido espaço branco na
escuridão.
- Quem está aí? - ele perguntou, constatando que sua voz era quase inaudível. - Quem é?
Silêncio.
- Quem é você, afinal? O que quer aqui?
Nesse instante, com uma investida impetuosa, a massa branca avançou do escuro na sua direção e chocou-se contra o seu rosto. Um travesseiro! Não conseguia respirar! Levantou a mão direita, empurrando um
braço musculoso, deslizou para um rosto, um rosto macio, subiu... e eram os cabelos de uma mulher! Puxou-os com toda a força de que ainda era capaz, rolando para o lado na estreita cama do hospital, puxando
a atacante para o chão junto com ele. Soltou os cabelos e golpeou o rosto por baixo, o ombro em tormento, as suturas rompidas, o sangue espalhando-se pelas ataduras. Tentou gritar, mas tudo o que alcançou
foi um gemido gutural. A pesada mulher agarrou-o pelo pescoço, as unhas afiadas, as pontas rasgando a pele... e subiram para seus olhos, cravando-se nas pálpebras, arranhando a testa. A dor era terrível.
Evan conseguiu se levantar, desvencilhou-se, ficando fora de alcance, e bateu na parede. Cambaleou a caminho da porta, mas a mulher saiu atrás dele, jogando-o para o lado da cama. A mão de Evan bateu na
garrafa de água sobre a mesinha de cabeceira; ele agarrou-a, torceu o corpo e a acertou na cabeça, no rosto maníaco acima dele. A mulher ficou atordoada; Evan se projetou para a frente, batendo com o ombro
direito no pesado corpo, lançando-o contra a parede, depois avançou para a porta e abriu-a. O corredor branco, cheirando a antisséptico estava banhado por uma pálida claridade cinzenta, mas havia uma lâmpada
brilhante por trás do balcão que ficava na metade do corredor. Ele tentou gritar outra vez.
- Ei...! Socorro!
Suas palavras se perderam; apenas sons guturais e abafados saíam da sua boca. Evan pôs-se a claudicar, o tornozelo inchado e a perna ferida mal conseguindo sustentá-lo. Onde estava todo o pessoal? Não
havia ninguém ali... ninguém por trás do balcão! Logo, porém, duas enfermeiras passaram casualmente por uma porta na outra extremidade do corredor, Evan levantou a mão direita, acenando, frenético, as
palavras acabaram soando:
- Socorro! Socorro!
- Oh, meu Deus! - gritou uma das mulheres, e as duas correram para ele.
Kendrick ouviu outro par de pés correndo. Virou-se para observar, impotente, a enfermeira pesada e musculosa sair correndo do seu quarto e descer pelo corredor para uma porta com um aviso em letras vermelhas:
SAÍDA. Ela abriu a porta e desapareceu.
- Chame o médico de emergência! - gritou a enfermeira que o alcançou primeiro. - Depressa! Ele está cheio de sangue!
- É melhor eu chamar também a moça Rashad - disse a segunda enfermeira, encaminhando-se para o balcão. - Ela pediu para ser avisada se acontecesse alguma coisa.
- Não! - berrou Evan, a voz finalmente um rugido claro, embora ofegante. - Deixe-a em paz!
- Mas, deputado...
- Por favor, faça o que estou dizendo. Não a chame. Ela não dorme há dois ou três dias. Basta chamar o médico e me ajudar a voltar para o quarto... E a seguir preciso dar um telefonema.
Decorridos 45 minutos, o ombro ressuturado, o rosto e o pescoço limpos, Kendrick sentou-se na cama com o telefone no colo e discou o número de Washington que gravara na memória. Contrariando protestos
veementes, ordenara ao médico e às enfermeiras que não chamassem a polícia naval e nem mesmo a segurança do hospital. Tinham verificado que ninguém no andar conhecia a mulher corpulenta senão por um nome,
certamente falso, segundo documentos de transferência do hospital da base em Pensacola, Florida, apresentados naquela tarde. Enfermeiras experientes, com um posto elevado, eram auxiliares bem recebidos
por qualquer equipe; ninguém questionara sua chegada e ninguém pudera impedir sua fuga precipitada. E até que toda a situação se tornasse mais clara, não deveria haver investigações oficiais, levando a
notícias nos meios de comunicação. O blecaute continuava em vigor.
- Lamento acordá-lo, Mitch...
- Evan?
- É melhor você saber logo o que aconteceu. - Kendrick descreveu todo o pesadelo que vivera, inclusive sua decisão de evitar a chegada da polícia, civil ou militar. - Talvez eu esteja enganado, mas calculei
que não haveria muita possibilidade de alcançá-la depois que ela correu pela porta de saída e a polícia nada descobriria pelos documentos, certamente falsos.
- Pensou certo - concordou Payton, falando muito depressa. - Ela era uma arma de aluguel...
- Uma travesseiro - corrigiu Evan.
- Poderia ser igualmente letal, se você não estivesse acordado. Seja como for, os assassinos profissionais costumam planejar tudo, geralmente com vários caminhos de fuga e igual número de mudas de roupa.
Você fez o que tinha de fazer.
- Quem a teria contratado, Mitch?
- Eu diria que é bastante óbvio. Foi Grinell. Ele tem se mostrado bem ativo desde que escapou daquela ilha.
- Como assim? Khalehla não me disse nada.
- Khalehla, como você a chama, ainda não sabe. Já tem problemas demais nas mãos, tomando conta de você. Como reagiu ela ao que aconteceu esta noite?
- Não foi informada. Não deixei que a chamassem.
- Ela vai ficar furiosa.
- Pelo menos dormirá um pouco. O que é que Grinell andou fazendo?
- O advogado de Ardis Vanvlanderen está morto e o livro não foi encontrado em parte alguma. O pessoal de Grinell chegou a San Jacinto primeiro.
- Oh, não! - exclamou Kendrick, a voz rouca. - Nós perdemos!
- É o que parece, mas há uma coisa que não combina... Lembra que eu comentei que Grinell só precisava de alguém vigiando a casa do advogado para saber se estávamos fechando o cerco?
- Claro que lembro.
- Pão-de-gengibre o descobriu.
- É daí?
- Se eles se tivessem apoderado do livro, por que postar um vigia depois disso? Por que correr esse risco?
- Obrigue o vigia a contar tudo! Drogue-o! Já fez isso antes.
- Pão-de-gengibre acha que não.
- E por que não?
- Por dois motivos. Primeiro, o homem pode ser vigia pertencente aos escalões inferiores, e não saber de nada; e segundo, Pão-de-gengibre quer segui-lo.
- Você quer dizer que Pão-de-gengibre encontrou o vigia, mas o vigia não sabe disso?
- Eu disse a você que ele era muito bom. O homem de Grinell nem mesmo sabe que encontramos o advogado morto. Tudo o que ele viu foi um caminhão da companhia e dois jardineiros de macacão que foram aparar
o gramado.
- Mas se o vigia é dos escalões inferiores, o que Pão-de-gengibre... que nome estúpido!... vai descobrir seguindo-o?
- Eu disse que ele pode ser dos escalões inferiores e dispor apenas de um número de telefone para o qual liga periodicamente, o que não nos levaria a nada. Em contrapartida, se for um elemento mais categorizado,
pode nos conduzir aos outros.
- Pelo amor de Deus, Mitch, drogue-o e descubra de uma vez!
- Não está me acompanhando, Evan. Um telefonema é chamado periodicamente... em horários específicos. Se a programação for rompida, teremos transmitido a mensagem errada a Grinell.
- Vocês são enrolados demais - comentou um Kendrick exausto e exasperado.
- Não temos outro jeito... Mandarei uns guardas para ficarem na sua porta. Procure descansar um pouco.
- E você? Disse que não poderia voar até aqui e agora compreendo o motivo, mas ainda está no escritório, não é mesmo?
- Estou, sim, esperando notícias de Pão-de-gengibre. Daqui posso trabalhar mais depressa.
- Não quer falar sobre ontem cedo... sobre o seu encontro com o tal sujeito de Inver Brass?
- Talvez amanhã. Não é mais urgente. Sem ele, não há Inver Brass.
- Sem ele?
- Ele se matou... Feliz Natal, deputado.
Khalehla Rashad largou os pacotes que tinha nos braços e gritou, correndo para a cama:
- O que aconteceu?
- A previdência social é um lixo - respondeu Evan.
- Não acho nada engraçado!... Os guardas na sua porta e a maneira como examinaram minha identificação lá embaixo, quando eu disse que vinha visitá-lo... O que aconteceu?
Ele contou, omitindo as partes sobre os pontos que se abriram e o sangue no corredor.
- Mitch concorda com o que eu fiz.
- Vou arrancar a cabeça dele! - gritou Khalehla. - Devia ter-me avisado!
- E você não estaria tão adorável quanto agora. Suas olheiras já não estão tão acentuadas. Conseguiu dormir.
- Doze horas - admitiu Khalehla, sentando-se na beira da cama. - Foi aquela doce enfermeira gorducha? Não dá para acreditar!
- Eu bem que poderia ter aproveitado um pouco do seu treinamento de faixa-preta. Não costumo brigar com frequência, muito menos com mulheres... exceto com as vigaristas que cobram acima da tabela.
- O que me lembra que nunca devo deixá-lo pagar... Oh, Evan, eu devia ter insistido num quarto maior, com duas camas, para ficar com você!
- Não leve essa rotina protetora longe demais, menina. Sou o homem da casa, está lembrada?
- E você não se esqueça que, se algum dia formos assaltados, deixe que eu cuido de tudo, está bem?
- Lá se vai todo o meu orgulho masculino... Fique à vontade, basta me servir alguns bombons e champanhe, enquanto desanca os filhos da mãe.
- Só um homem poderia gracejar assim - disse Rashad inclinando-se e beijando-o. - Eu o amo demais, esse é o meu problema.
- Não o meu. - Eles tornaram a se beijar e, como era de esperar, o telefone tocou nesse instante. - Não grite, querida. Provavelmente é Mitch.
Era mesmo.
- Conseguimos! - exclamou o diretor de Projetos Especiais, falando de Langley, Virginia. - Evan já lhe contou? Sobre Grinell?
- Não. Ainda não me disse nada.
- Ponha-o na linha. Ele vai lhe explicar tudo depois...
- Por que não me chamou ontem à noite... esta madrugada?
- Ponha-o na linha!
- Pois não, senhor.
- O que é, Mitch?
- A abertura de que precisávamos... conseguimos!
- Pão-de-gengibre?
- Por mais estranho que possa parecer, não. De outra fonte. Procura-se coisas absurdas neste negócio e às vezes se encontra. Numa tentativa sem muita esperança, enviamos um homem ao escritório do advogado
da senhora Vanvlanderen, com um documento falso, autorizando o acesso às pastas da falecida chefe da assessoria do vice-presidente. Na ausência do patrão, a secretária não queria deixar que ninguém mexesse
nos arquivos. Ligou para a casa em San Jacinto. Sabendo que ela não teria uma resposta, nosso homem permaneceu lá por duas horas, bancando o furioso funcionário de Washington com uma ordem do Conselho
de Segurança Nacional, enquanto ela tentava falar com o advogado. Ao que parece, estava genuinamente transtornada; o advogado dissera que passaria o dia inteiro na casa, em conferência com clientes importantes...
Quer tenha sido por frustração ou autodefesa, não sabemos e não nos importa, o fato é que ela acabou comentando que nosso homem provavelmente queria os documentos confidenciais que xerocara, mas acrescentou
que ele não poderia obtê-los, pois se encontravam num cofre do banco.
- Bingo! - murmurou Evan, gritando interiormente.
- Sem dúvida. Ela até descreveu o livro... Nosso astuto advogado estava disposto a vender o livro a Grinell e depois passar a chantageá-lo com a cópia. O vigia de Grinell se encontrava em San Jacinto por
pura curiosidade, nada mais. O livro estará em nosso poder dentro de uma hora.
- Pegue-o, Mitch, e destrua toda essa gente. Procure por um homem chamado Hamendi... Abdel Hamendi.
- O mercador de armas - disse Payton, confirmando a informação. - Adrienne me contou. As fotografias no apartamento de Vanvlanderen... Lausanne, Amsterdam.
- Esse mesmo. Usarão um codinome para ele, é claro, mas investigue o dinheiro, as transferências em Genebra e Zurich... o Gemeinschaft Bank, em Zurich.
- Claro.
- Há mais uma coisa, Mitch. Vamos limpar a casa o máximo possível. Um homem como Hamendi fornece armas aos muitos grupos dissidentes de fanáticos que pode encontrar, cada facção matando a outra com o que
ele vende. Depois Hamendi procura outros assassinos, os que usam ternos de mil dólares e ocupam escritórios luxuosos, cuja única causa é o dinheiro, atraindo-os para a sua rede... A produção aumenta dez
vezes, a seguir vinte, há mais mortes, mais causas a vender, mais fanáticos a suprir... Vamos pegá-lo, Mitch. Vamos dar a uma parte deste mundo louco uma chance de respirar... sem os seus suprimentos.
- Não é pouca coisa, Evan.
- Dê-me algumas semanas para ser remendado e depois me envie de volta a Oman.
- O quê?
- Farei a maior compra de armas que Hamendi jamais sonhou.
Dezesseis dias se passaram, o Natal tornou-se uma lembrança angustiosa, o Ano-novo foi saudado com cautela, com suspeita. No quarto dia Evan visitara Emilio Carallo e lhe entregara uma fotografia de um
excelente barco pesqueiro, novo, junto com os documentos de propriedade, um curso já pago para tirar a licença de comandante e um talão de cheques e uma garantia de que ninguém da ilha de Passagem para
a China jamais o incomodaria em El Descanso. Era a verdade; da seleta irmandade do governo interior que costumava conferenciar na ilha, ninguém admitira coisa alguma. Todos se entrincheiraram por trás
de batalhões de advogados e vários fugiram do país. Não se preocupavam com um pescador aleijado em El Descanso. Estavam interessados apenas em salvar suas vidas e fortunas.
No oitavo dia, a enorme onda partiu de Chicago e se espalhou por todo o Meio-Oeste. Começou com quatro jornais independentes, situados num raio de cem quilômetros, propondo em editoriais a candidatura
do deputado Evan Kendrick à indicação para vice-presidente. Num prazo de 72 horas, mais três jornais engrossaram a onda, além de seis emissoras de televisão, propriedades de cinco dos jornais. As propostas
se tornaram compromissos, e as vozes jornalísticas se espalharam por toda parte. De Nova York a Los Angeles, Bismarck a Houston, Boston a Miami, a confraria dos gigantes dos meios de comunicação começou
a estudar a ideia, e os editores de Time e Newsweek convocaram reuniões de emergência. Kendrick foi transferido para uma ala isolada do hospital da base e seu nome retirado da lista de pacientes. Em Washington,
Annie Mulcahy O’Reilly e o resto da assessoria informaram a centenas de interlocutores que o representante do Colorado estava fora do país e não podia ser convocado para fazer comentários.
No décimo primeiro dia o deputado e sua namorada voltaram a Mesa Verde, onde encontraram, espantados, Emmanuel Weingrass de pé, com um pequeno cilindro de oxigênio ao lado para o caso de uma emergência
respiratória, supervisionando um exército de operários empenhados nos reparos da casa. O ritmo de Manny era mais lento e ele se sentava com frequência, mas a doença não tivera qualquer efeito na sua permanente
irritabilidade. Era uma constante; ele só baixava a voz em um decibel quando falava com Khalehla - sua "maravilhosa nova filha, que vale muito mais do que o vagabundo que está sempre perambulando por aí".
No décimo quinto dia Mitchell Payton, trabalhando com um jovem gênio em computador que tomara emprestado de Frank Swann do Departamento de Estado, decifrou os códigos do livro de Grinell, a bíblia do governo
interior. Trabalhando noite adentro com Gerald Bryce no teclado, os dois compilaram um relatório para o presidente Langford Jennings, que lhes determinou com exatidão a quantidade de cópias que deveriam
tirar. Um relatório extra saiu da editora de textos antes que o disco fosse destruído, mas MJ não soube disso.
Uma a uma, as limusines chegaram à noite, não a uma propriedade às escuras na baía de Chesapeake, mas ao pórtico sul da Casa Branca. Os passageiros fora escoltados por fuzileiros até o Gabinete Oval do
presidente dos Estados Unidos. Langford Jennings estava sentado por trás da sua mesa, os pés sobre o escabelo predileto à esquerda da cadeira, cumprimentando com um aceno de cabeça todos os que entravam
- exceto um. O vice-presidente Orson Bollinger mereceu apenas um olhar, sem qualquer cumprimento, e ainda desdenhoso. As cadeiras foram dispostas num semicírculo diante da mesa e do homem impressionante
por trás dela. Ali estavam, cada um deles segurando um único envelope pardo, os líderes da maioria e da minoria nas duas casas do Congresso, o secretário de Estado interino e o secretário da Defesa, os
diretores da CIA e da Agência de Segurança Nacional, os membros do Estado-maior Conjunto, o procurador-geral e Mitchell Jarvis Payton, de Projetos Especiais, CIA. Todos sentaram e ficaram esperando em
silêncio. A espera não foi longa.
- Estamos num mar de merda profundo - disse o presidente dos Estados Unidos. - Como aconteceu, não tenho a menor ideia, mas é melhor eu obter algumas respostas esta noite ou providenciarei para que diversas
pessoas nesta cidade passem vinte anos quebrando pedras. Falei claro?
Houve acenos de cabeça dispersos, e muitos protestaram, rostos e vozes irados se ressentindo com as insinuações do presidente.
- Calem-se! - acrescentou Jennings, silenciando os dissidentes. - Quero que as regras básicas sejam bem compreendidas. Cada um de vocês recebeu e presumivelmente leu o relatório preparado pelo senhor Payton.
Todos o trouxeram, e presumo que, de acordo com as instruções, não tiraram cópias. Essas declarações são exatas?... Por favor, respondam individualmente, começando pela minha esquerda, com o procurador-geral.
Cada membro do grupo repetiu o gesto e as palavras do principal responsável pela aplicação da lei no país, levantando o envelope pardo e dizendo:
- Sem cópias, senhor presidente.
- Ótimo. - Jennings tirou os pés do escabelo e inclinou-se para a frente, os antebraços na mesa. - Os envelopes são numerados, senhores, e limitados ao número de pessoas nesta sala. Além disso, ficarão
aqui quando os senhores se retirarem. Entendido?
Os acenos de cabeça e os murmúrios foram afirmativos. O presidente continuou:
- Muito bem... Não preciso lhes dizer que as informações contidas nestas páginas são tão devastadoras quanto incríveis. Descrevem uma rede de ladrões e assassinos, um lixo humano que contratava pistoleiros
e pagava pelos serviços de terroristas. Um terrível massacre em Fairfax, no Colorado e, terrível!, em Chipre, onde um homem que valia cinco de vocês, seus miseráveis, foi explodido com toda a sua delegação...
É uma litania de horrores, de diretorias de grandes corporações por todo o país em conluio constante, fixando preços com margens de lucro escorchantes, comprando influência em todos os setores do governo,
convertendo a indústria da defesa da nação numa fonte de riquezas ilegítimas. É também uma litania de fraudes, de transações ilegais com armamentos no mundo inteiro, mentiras ante os comitês de controle
de armas, compra de licenças de exportação, redirecionamento de remessas quando eram rejeitadas. Por Deus, é uma porra de uma confusão!... E não há nenhum dos presentes que não tenha sido afetado. Ouvi
algumas objeções?
- Senhor presidente...
- Senhor presidente...
- Passei trinta anos nas forças armadas e ninguém jamais se atreveu...
- Pois eu me atrevo! - berrou Jennings. - E quem é você para me dizer que não posso? Ou qualquer outro? Mais alguém quer falar?
- Eu quero, senhor presidente - respondeu o secretário da Defesa. - Para usar a sua linguagem, não sei de que porra está falando especificamente e protesto contra as suas insinuações.
- Especificamente? Insinuações? Vá se foder, Mac! Leia as cifras! Três milhões de dólares por um tanque cujo custo estimado de produção é um milhão e meio? Trinta milhões por uma caça tão sobrecarregado
de bugigangas do Pentágono que não pode ter um desempenho sequer razoável, volta às pranchetas e custa mais dez milhões por aparelho? Esqueça os vasos de latrina e as chaves de porca, você tem problemas
muito maiores.
- São apenas despesas miúdas em comparação com a totalidade dos gastos, senhor presidente.
- Como disse um amigo meu na televisão, explique isso ao pobre filho da puta que precisa equilibrar sua conta de gastos mensais. Talvez você esteja no carro errado, secretário. Informamos ao país que a
economia soviética está desorganizada e que a tecnologia deles se encontra anos-luz atrás da nossa, mas todos os anos, quando vocês apresentam o orçamento, o que dizem é que temos merda até o nariz, porque
a Rússia está nos superando em termos econômicos e tecnológicos. Não acha que há uma pequena contradição nisso?
- O senhor não compreende as complexidades...
- Nem preciso. Compreendo as contradições... E o que me diz de vocês, seus quatro gloriosos baluartes da Câmara e do Senado... membros do meu partido e da leal oposição? Nunca farejaram coisa alguma?
- O senhor é um presidente muito popular - disse o líder da oposição. - É politicamente difícil opor-se às suas posições.
- Mesmo quando o peixe está podre?
- Mesmo quando o peixe está podre, senhor.
- Então vocês também devem cair fora... E nossa astuta elite militar, nossos olímpicos membros do Estado-maior Conjunto. Quem está vigiando a despensa, ou será que vocês subiram tanto que esqueceram o
endereço do Pentágono? Coronéis, generais, almirantes, todos marcham em fileiras cerradas de Arlington para os fornecedores da defesa, traindo os contribuintes que pagam seus impostos.
- Eu protesto! - gritou o comandante do Estado-maior, por entre os dentes semicerrados. - Não é nossa função, senhor presidente, fiscalizar todos os empregos de oficiais no setor privado.
- Talvez não, mas a aprovação que fazem de recomendações permite que alguns alcancem os postos que tornam isso possível... E o que dizer dos superespiões do país, a CIA e a ASN? O senhor Payton aqui excluído...
e se algum de vocês tentar despachá-lo para a Sibéria, vai se entender comigo pelos próximos cinco anos... onde estavam vocês? Tentáculos estendidos por todo o Mediterrâneo e o golfo Pérsico... a lugares
que o Congresso e eu declaramos que estavam fora dos nossos limites! Não podiam perceber o tráfego? Quem estava no controle?
- Em diversos casos, senhor presidente - disse o diretor da CIA -, quando tínhamos motivos para questionar certas atividades, presumíamos que eram executadas com a sua autorização, pois refletiam as suas
posições políticas. Quando havia problemas legais, pensávamos que era assessorado pelo procurador-geral, como devia ser.
- Por isso fecharam os olhos e deixaram que outro segurasse a batata quente. Muito louvável para salvar suas peles, mas por que não me consultaram?
- Falando pela ASN - interveio o diretor da Agência de Segurança Nacional -, consultamos diversas vezes o chefe da sua assessoria e seu assessor para assuntos de segurança nacional sobre várias ocorrências
heterodoxas que chegaram ao nosso conhecimento. Seu assessor de segurança nacional insistiu que nada sabia sobre o que classificou de "rumores insidiosos" e o senhor Dennison alegou que eram... e posso
citá-lo acuradamente, senhor presidente... "um monte de merda espalhado por vagabundos ultraliberais para atingi-lo". Foram essas as palavras dele, senhor.
- Já devem ter notado que nenhum desses homens se encontra nesta sala - comentou Jennings, friamente. - Meu assessor de segurança nacional aposentou-se e o chefe da assessoria está deixando o cargo para
se dedicar aos seus negócios pessoais. Em defesa de Herb Dennison, ele pode ter comandado uma nave autocrática, mas sua navegação nem sempre foi acurada... Chegamos agora à nossa maior autoridade legal,
o responsável pela imposição da lei no país, o guardião do sistema jurídico da nação. Considerando as leis que foram violadas, tenho a impressão de que você saiu para almoçar há três anos e não voltou
mais. O que está acontecendo no Departamento de Justiça? Jogos de bingo ou jai alai? Por que estamos pagando a centenas de advogados para vigiarem as atividades criminosas contra o governo e nenhum dos
crimes mencionados neste relatório jamais foi descoberto?
- Não estavam na nossa jurisdição, senhor presidente. Temos nos concentrado...
- E que diabo significa uma jurisdição? A fixação de preços arbitrários pelas corporações e os excessos escorchantes não estão na sua jurisdição? Pois vou lhe dizer uma coisa: é melhor estarem!... Mas
você que se dane. Vamos passar agora ao meu estimado companheiro de chapa... o último, mas nem por isso o menor em termos de importância vital. Nosso abjeto e hipócrita instrumento de interesses muito
especiais é o grande homem! Todos eles são seus homens, Orson! Como pôde fazer isso?
- São seus homens também, senhor presidente! Levantaram o dinheiro para sua primeira campanha. Levantaram milhões mais do que a oposição, virtualmente garantindo sua eleição. Defenderam suas causas, apoiaram
seus clamores pela expansão livre do comércio e da indústria...
- Relativamente livre, sim - disse Jennings, as veias na testa saltadas -, mas não manipulada. Não corrompida por transações com traficantes de armas por toda a Europa e o Mediterrâneo, não por conluio,
extorsão e terrorismo de aluguel!
- Eu nada sabia sobre essas coisas! - gritou Bollinger, levantando-se num pulo.
- Não, provavelmente não sabia mesmo, senhor vice-presidente, porque era um otário fácil demais, traficando influência, para que eles se arriscassem a perdê-lo pelo pânico. Mas com certeza sabia que havia
muito mais gordura no fogo do que fumaça na cozinha. Apenas não queria saber o que estava queimando e cheirando tão mal. Sente-se! - Bollinger sentou-se e Jennings continuou: - Mas deve entender uma coisa,
Orson. Não está mais na chapa e não o quero nem perto da convenção. Está fora, acabado, e se eu algum dia souber que voltou a traficar influência ou a se sentar num conselho de administração que não seja
de caridade... bom, é melhor nem tentar.
- Senhor presidente - disse o comandante de rosto curtido do Estado-maior Conjunto, levantando-se. - À luz dos seus comentários e disposição muito óbvia, apresento meu pedido de demissão, a entrar em vigor
imediatamente!
A declaração foi acompanhada por meia dúzia de outras, todos de pé e enfáticos. Langford Jennings recostou-se na cadeira e falou calmamente, a voz fria:
- Oh, não, não vão escapar tão fácil assim, nenhum de vocês. Não haverá um massacre de sábado à noite nesta administração, nada de abandonar o navio e correr para as colinas. Continuarão onde estão e cuidarão
que voltemos ao curso... Compreendam uma coisa: não me importo com o que as pessoas pensem de mim, de vocês ou da casa que estou temporariamente ocupando, mas me importo com o país, e me importo profundamente.
Tão profundamente, na verdade, que este relatório preliminar... preliminar porque não está nem de longe concluído... permanecerá uma propriedade exclusiva deste presidente, pelos estatutos da não revelação
executiva, até que eu considere que chegou o momento certo para divulgá-lo... o que vai acontecer, podem estar certos. Divulgá-lo agora seria frustrar a presidência mais forte que esta nação teve em quarenta
anos e causar danos irreparáveis ao país, mas, repito, ainda será divulgado... Deixem-me explicar-lhes algo. Quando um homem... e espero que algum dia uma mulher... alcança este cargo, só lhe resta uma
coisa, que é deixar sua marca na história. Pois eu estarei me retirando desta corrida para a imortalidade nos próximos cinco anos, porque durante esse período o relatório completo, com todos os seus horrores,
será revelado ao público... Mas não antes que todos os erros cometidos no meu mandato sejam reparados, e cada crime seja punido. Se isso significa trabalhar noite e dia, então é o que todos vocês terão
de fazer... com exceção do meu alcoviteiro e sicofanta vice-presidente, que vai sair de cena, e com alguma sorte nos fará a graça de estourar os miolos... Uma última palavra, senhores. Caso algum de vocês
se sinta tentado a pular deste navio podre que todos criamos, por omissão e comissão, lembre-se por favor que sou o presidente dos Estados Unidos, com poderes incríveis. No sentido mais amplo, incluem
a vida e a morte... Esta é apenas a declaração de um fato, mas se quiserem encará-la como uma ameaça... muito bem, é um privilégio de vocês. E, agora, saiam daqui e comecem a pensar. Payton, você fica.
- Pois não, senhor presidente.
- Eles entenderam o recado, Mitch? - perguntou Jennings, servindo um drinque para si e outro para Payton no bar embutido na parede esquerda do Gabinete Oval.
- Vamos pôr as coisas da seguinte maneira - respondeu o diretor de Projetos Especiais. - Se eu não tomar este uísque dentro de alguns segundos, recomeçarei a tremer.
O presidente exibiu seu famoso sorriso, enquanto levava o drinque para Payton, que se encontrava junto da janela.
- Nada mau para um cara que supostamente tem o QI de um poste telefônico, não é mesmo?
- Foi um desempenho extraordinário, senhor.
- Infelizmente, o cargo foi em grande parte reduzido a isso.
- Não falei com essa intenção, senhor presidente.
- Claro que falou, e tem toda a razão. É por isso que o rei, com todas as suas roupas ou nu, precisa de um primeiro-ministro forte, que por sua vez cria sua própria família real... de ambos os partidos,
diga-se de passagem.
- Como assim?
- Kendrick. Eu o quero na chapa.
- Então terá de convencê-lo. Segundo minha sobrinha... eu a chamo de sobrinha, mas ela não é realmente...
- Sei de tudo a respeito, tudo - interrompeu Jennings. - O que diz ela?
- Que Evan está perfeitamente a par do que aconteceu... do que está acontecendo... mas ainda não tomou uma decisão. Seu maior amigo, Emmanuel Weingrass, está gravemente enfermo e não deve sobreviver.
- Sei disso também. Não usou o nome dele, mas está no seu relatório, lembra?
- Desculpe. Não tenho dormido muito ultimamente. Esqueço as coisas... Seja como for, Kendrick insiste em voltar a Oman e não posso dissuadi-lo. Está obcecado pelo negociante de armas Abdel Hamendi. Acredita
com razão que Hamendi está vendendo pelo menos oitenta por cento de todo o poder de fogo usado no Oriente Médio e Sudoeste Asiático, destruindo seus amados países árabes. À sua maneira, ele é como um Lawrence
moderno, tentando resgatar os amigos do desprezo internacional e da destruição suprema.
- O que, exatamente, ele acha que pode fazer?
- Pelo que ele me contou, é basicamente uma operação relâmpago. Não creio que já esteja muito claro para ele qual será o procedimento, mas apenas o objetivo. Que é o de denunciar Hamendi pelo que ele é,
um homem que ganha milhões e milhões vendendo a morte a quem queira comprá-la.
- O que leva Evan a acreditar que Hamendi se importa com o que os compradores possam pensar dele? Hamendi está no negócio de armas, não de evangelismo.
- Ele pode se preocupar, se mais da metade das armas que vendeu não funcionar, se os explosivos não explodirem e as armas não dispararem.
- Santo Deus! - murmurou o presidente, dando meia-volta lentamente e voltando para a sua mesa. Sentou-se, pôs o copo em cima de um bloco, olhou em silêncio para a parede do outro lado. Finalmente virou-se
na cadeira e fitou Payton na janela. - Deixe-o ir, Mitch. Ele nunca nos perdoaria se o detivéssemos. Dê-lhe tudo que precisar, mas cuide que ele volte... Eu o quero de volta. O país precisa que ele volte.
No outro lado do mundo, bolsões de neblina vinham do golfo Pérsico, espalhando-se pela estrada Tujjar, em Bahrain, criando halos invertidos sob os lampiões e obscurecendo o céu noturno. Eram exatamente
quatro e meia da madrugada quando uma limusine preta surgiu na área deserta do cais da cidade adormecida. Parou diante das portas de vidro do prédio conhecido como Sahalhuddin, até dezesseis meses antes
o palácio real do homem-monstro que se intitulava o Mahdi. Dois árabes em túnicas saíram das portas traseiras do imponente veículo e avançaram pela claridade opaca das luzes de neon que iluminavam a entrada;
a limusine partiu. O homem mais alto bateu de leve no vidro; o guarda na mesa da recepção olhou para o relógio no pulso, levantou-se e seguiu apressado para a porta. Abriu-a e fez uma mesura para os visitantes
da hora insólita.
- Tudo está preparado, grandes senhores - disse ele, a voz a princípio quase um sussurro. - Os guardas externos foram dispensados mais cedo; o turno da manhã só chega às seis horas.
- Precisaremos de menos da metade desse tempo - garantiu o visitante mais jovem e mais baixo, obviamente o líder. - O preparo bem remunerado inclui uma porta aberta lá em cima?
- Claro, grande senhor.
- E apenas um elevador em funcionamento? - indagou o árabe mais alto e mais velho.
- Isso mesmo, senhor.
- Nós o prenderemos lá em cima. - O homem mais baixo encaminhou-se para os elevadores à direita, seguido no mesmo instante por seu companheiro. E acrescentou, falando alto: - Se estou certo, subiremos
para o último andar pela escada. É isso mesmo?
- É, sim, grande senhor. Todos os alarmes foram desligados e a sala restaurada exatamente como era... antes daquela terrível madrugada. Além disso, conforme as instruções, o item que solicitou foi trazido;
estava nos porões. Talvez saiba, senhor, que as autoridades desmontaram a sala e depois a lacraram por muitos meses. Não compreendemos, grande senhor.
- Não era necessário que compreendessem... Alerte-nos se alguém tentar entrar no prédio ou sequer se aproximar das portas.
- Com os olhos de um gavião, grande senhor!
- Use o telefone, por favor.
Os dois chegaram aos elevadores e o subordinado mais alto apertou o botão; a porta abriu-se no mesmo instante. Eles entraram e a porta fechou.
- Esse homem é competente? - perguntou o árabe mais baixo, enquanto o elevador começava a subir, zumbindo.
- Ele faz o que lhe dizem, e o que lhe foi dito não é complicado... Por que a sala do Mahdi foi lacrada por tantos meses?
- Porque as autoridades procuravam homens como nós, esperavam homens como nós.
- Desmontaram a sala...? - murmurou o subordinado, hesitante, inquisitivo.
- Como em nosso caso, eles não sabiam onde procurar.
O elevador diminuiu a velocidade, depois parou, a porta abriu-se. Em passos rápidos, os dois se encaminharam para a escada que levava ao andar e antigo "templo" do Mahdi. Chegaram à porta da sala e o homem
mais baixo parou, com a mão na maçaneta.
- Esperei mais de um ano por este momento - ele disse, respirando fundo. - Agora que chegou, estou tremendo.
Dentro da sala imensa e estranha, parecendo uma mesquita, com o teto de domo alto, cheia de mosaicos em ladrilhos de cores brilhantes, os dois intrusos pararam em silêncio, como se estivessem na presença
de algum espírito formidável. Os móveis esparsos de madeira escura estavam nos lugares como estátuas antigas de soldados ameaçadores, guardando a tumba interior de um grande faraó; a mesa enorme era simbólica
do sarcófago de um reverenciado soberano morto. E junto da parede da direita estava um moderno andaime de metal, em gritante contradição, elevando-se por uma altura de dois metros e meio, barras laterais
permitindo o acesso ao topo. O árabe mais alto falou:
- Este poderia ser o local de repouso de Alá... seja feita a sua vontade.
- Não conheceu o Mahdi, meu inocente amigo - respondeu o companheiro superior. - Experimente o Midas frígio... Depressa, estamos perdendo tempo. Leve o andaime para o lugar que eu indicar, depois trate
de subir.
O subordinado encaminhou-se apressado para a plataforma alta e olhou seu companheiro, que disse:
- Para a esquerda. Um pouco depois da segunda fenda da janela.
- Não consigo entendê-lo - falou o homem alto, subindo para o topo do andaime.
- Há muitas coisas que não compreende e não há motivos para que deva compreender... Agora, conte para a esquerda, seis ladrilhos depois da janela, a seguir cinco para cima.
- Está bem, está bem... é uma boa distância para mim e não sou baixo.
- O Mahdi era muito mais alto, muito mais impressivo... mas não desprovido de defeitos.
- Como disse?
- Não importa... Pressione os quatro cantos do ladrilho, nas beiras, depois force a palma da mão com toda energia no centro. Agora!
O ladrilho literalmente se projetou do recesso; o árabe alto teve de fazer um grande esforço para não perder o equilíbrio.
- Louvado seja Alá! - ele exclamou.
- Uma simples questão de sucção, baseada na igualdade de pesos - disse o homem mais baixo. - Agora enfie a mão e retire os papéis; devem estar todos juntos.
O subordinado obedeceu, tirando folhas ligadas de um longo impresso de computador, preso por dois elásticos.
- Jogue para mim e ponha o ladrilho de volta no lugar exatamente como o retirou, começando pela pressão no centro - acrescentou o líder.
O árabe alto cumpriu as ordens, meio desajeitado, depois desceu do andaime. Aproximou-se do chefe, que desdobrara o impresso e o examinava atentamente.
- Era esse o tesouro de que falou? - perguntou com voz suave.
- Do golfo Pérsico às praias ocidentais do Mediterrâneo, não há maior - respondeu o homem mais jovem, os olhos disparando pelo impresso. - Executaram o Mahdi, mas não conseguiram destruir o que ele criou.
A retirada era necessária, o recuo indispensável... mas não a dispersão. As incontáveis ramificações da organização não foram destruídas, nem mesmo denunciadas. Apenas se soltaram e voltaram à terra, prontas
para se tornarem árvores quando chegar o momento.
- O que lhe dizem essas páginas de estranha aparência? - O superior balançou a cabeça, ainda lendo. - Em nome de Alá, o que dizem?
O homem mais baixo fitou o companheiro com uma expressão curiosa.
- Por que não? - ele resmungou, sorrindo. - Estas são as listas de cada homem e mulher, de cada firma, companhia e corporação, de cada contato e conduto para os terroristas utilizados pelo Mahdi. Levará
meses, talvez anos, para reunir tudo outra vez, mas será feito. Eles estão esperando. Pois, em última análise, o Mahdi estava certo: este é o nosso mundo. Não vamos entregá-lo a ninguém.
- A notícia vai se espalhar, meu amigo! - gritou o subordinado mais velho e mais alto. - Não é mesmo?
- Com muito cuidado - respondeu o jovem líder. Uma pausa, e ele acrescentou, enigmático: - Vivemos em tempos diferentes. O equipamento da semana passada é obsoleto.
- Não posso presumir que o entendo.
- Mais uma vez, não é necessário.
- De onde vem você? - perguntou o atônito subordinado. - Fomos instruídos a lhe obedecer, avisados de que sabe de coisas que os homens como eu não têm o privilégio de saber. Mas como? De onde?
- De milhares de quilômetros de distância, preparando-me por anos para este momento. Deixe-me agora. Depressa. Desça e diga ao guarda para levar o andaime de volta ao porão, depois chame o carro quando
passar pela rua. O motorista o levará para casa. Voltaremos a nos encontrar amanhã. À mesma hora, no mesmo lugar.
- Que Alá e o Mahdi estejam com você - disse o árabe alto, fazendo uma reverência. Correu para a porta, fechando-a depois de sair.
O jovem observou o companheiro que se retirava, depois enfiou a mão por baixo da túnica e tirou um pequeno rádio. Apertando um botão, falou:
- Ele sairá dentro de dois ou três minutos. Agarre-o e leve-o para os rochedos na costa sul. Depois de matá-lo tire suas roupas e jogue a arma no mar.
- A ordem será cumprida - disse o motorista da limusine, a várias ruas de distância.
O jovem líder guardou o rádio por baixo da túnica e encaminhou-se solene para a enorme escrivaninha de ébano. Tirou o ghotra, largando-o no chão ao se aproximar da cadeira que parecia um trono, depois
sentou. Abriu uma gaveta alta e larga no lado esquerdo inferior, tirou o turbante cravejado de pedras preciosas do Mahdi. Colocou-o na sua cabeça e murmurou para o teto de mosaico:
- Eu lhe agradeço, meu Pai - disse o herdeiro que tinha um doutorado em ciência de computador da Universidade de Chicago. - Ser o escolhido entre todos os seus filhos é ao mesmo tempo uma honra e um desafio.
Minha fraca mãe branca jamais compreenderá, mas como você sempre me deixou bem claro, ela não passava de um recipiente... Contudo, Pai, devo lhe dizer que as coisas estão diferentes agora. Sutileza e objetivos
a longo prazo estão na ordem do dia. Empregaremos seus métodos onde forem necessários... Matar não é problema para nós... mas queremos uma parte maior do globo do que você jamais sonhou. Teremos células
em toda a Europa e no Mediterrâneo, vamos nos comunicar por meios com que você nunca sonhou... secretamente, por satélite, a intercepção sendo impossível. O mundo não pertence mais a uma raça ou outra,
Pai. Pertence aos jovens, fortes e brilhantes, e nós somos eles.
O novo Mahdi deixou de sussurrar e baixou os olhos para o tampo da mesa. Muito em breve o que precisava estaria ali. O maior filho do grande Mahdi continuaria a marcha.
Devemos controlar.
Por toda parte.
Livro Três
45
Era o trigésimo segundo dia desde a partida desesperada da ilha Passagem para a China e Emmanuel Weingrass atravessou em passos lentos a varanda envidraçada da casa de Mesa Verde; suas palavras, no entanto,
foram rápidas:
- Onde está o vagabundo?
- Correndo lá pelo sul - respondeu Khalehla, sentada no sofá, depois de tomar o café da manhã e ler o jornal. - Ou lá nas montanhas a esta altura, quem sabe?
- São duas horas da tarde em Jerusalém - disse Manny.
- E quatro horas em Mascate - acrescentou Rashad. - Todos são muito espertos por lá.
- Minha filha, a espertinha.
- Sente-se, criança - disse Khalehla, apalpando a almofada a seu lado.
- Uma criança ainda mais espertinha - murmurou Weingrass, aproximando-se e tirando do lado o cilindro de oxigênio para se acomodar no sofá. Recostando-se, com a respiração ofegante, ele disse: - O vagabundo
parece estar muito bem.
- Até se pode pensar que ele está treinando para as Olimpíadas.
- Por falar nisso, você tem um cigarro?
- Não deveria fumar.
- Mas me dê um cigarro assim mesmo.
- Você é impossível. - Khalehla enfiou a mão no bolso do roupão, tirou um maço de cigarros e estendeu um, ao mesmo tempo que aproximava a outra mão de um isqueiro de cerâmica na mesinha. Acendeu o cigarro
de Weingrass e repetiu: - Você é impossível.
- E você é minha Madre Superiora árabe - disse Manny, tragando como uma criança que se deleita com uma terceira sobremesa proibida. - Como estão as coisas em Oman?
- Meu velho amigo, o sultão, está um pouco confuso, mas minha amiga mais jovem, sua esposa, vai endireitar tudo... De passagem, Ahmat lhe manda lembranças.
- É bom que ele não se esqueça de mim. Deve-me sua aprovação em Harvard e nunca me pagou pelas mulheres que lhe arrumei em Los Angeles.
- De alguma forma, você sempre vai ao fundo das coisas... Como estão todos em Jerusalém?
- Por falar em lembranças, Ben-Ami manda as suas para você.
- Benny? - Rashad inclinou-se para a frente. - Há anos que não pensava nele! Benny ainda usa aquela calça jeans esquisita e prende a arma na traseira?
- Provavelmente sempre usará e cobrará em dobro ao Mossad pelas duas coisas.
- Ele é um bom sujeito e um dos melhores agentes de controle que Israel já teve. Trabalhamos juntos em Damasco; é nanico e um tanto cético, mas um bom homem para se ter ao lado. Duro como pedra, na verdade.
- Como seu vagabundo diria, "Sei muito bem". Estávamos cercando o hotel em Bahrain e tudo o que ele fazia era me passar sermões pelo rádio.
- Ele se juntará a nós em Mascate?
- A vocês, mulher não muito simpática que me excluiu.
- Ora, Manny...
- Já sei, já sei. Sou um fardo.
- O que você acha?
- Está bem, sou um fardo... mas até mesmo os fardos devem ser informados.
- Pelo menos duas vezes por dia. Onde Ben-Ami vai se encontrar conosco? E como? Não posso imaginar que o Mossad queira participar nesta operação.
- Depois da turbulência iraniana, a lua ficou muito perto, especialmente com a intervenção da CIA e dos bancos suíços. Ben deixará um número de telefone na mesa do palácio para uma certa senhorita Adrienne...
É ideia minha. E estará com mais alguém.
- Quem?
- Um lunático.
- Isso ajuda. Ele tem um nome?
- O único que eu conheci era código Azul.
- Azra!
- Não. Esse era o outro.
- Sei disso, mas os israelenses mataram Azra, o Azul árabe. Evan me disse que isso o deixou angustiado, ver dois garotos com tanto ódio.
- É ainda mais terrível com os garotos. Em vez de bastões de beisebol, eles carregam rifles de repetição e granadas... Payton já acertou o transporte de vocês?
- Ele combinou tudo conosco ontem. Um cargueiro da Força Aérea para Frankfurt e de lá para o Cairo, onde embarcamos em segredo num pequeno aparelho para o Kuwait e Dubai, sendo a última etapa de helicóptero.
Chegaremos a Oman à noite, pousando no Jabal Sham, onde um dos carros sem identificação de Ahmat estará à espera para nos levar ao palácio.
- É de fato uma viagem sigilosa - comentou Weingrass, acenando com a cabeça, impressionado.
- Não pode deixar de ser. Evan tem de desaparecer, enquanto são plantadas histórias de que ele foi visto no Havaí e se encontra supostamente refugiado numa propriedade em Maui. Estão preparando algumas
fotos em que ele aparece lá, e serão encaminhadas aos jornais.
- A imaginação de Mitchell está melhorando.
- Não há nenhuma melhor, Manny.
- Talvez ele devesse dirigir a Agência.
- De jeito nenhum. Ele detesta o trabalho administrativo e é um péssimo político. Se não gosta de alguém ou alguma coisa, todo mundo logo sabe. É melhor ele continuar onde está.
O barulho da porta da frente abrindo e fechando exerceu um efeito imediato sobre Weingrass.
- Oy! - ele gritou, enfiando o cigarro na boca da surpresa Khalehla e soprando a fumaça por cima, abanando com as mãos para orientar a evidência incriminadora na direção de Rashad, enquanto murmurava:
- Mas que shiksa[11] levada! Fumando na minha presença!
- Impossível! - sussurrou Khalehla, pegando o cigarro e esmagando-o no cinzeiro, enquanto Kendrick atravessava a sala de estar e entrava na varanda.
- Ela nunca fumaria tão perto de você - declarou Evan, vestindo um training azul, o suor lhe escorrendo pelo rosto.
- Você agora tem os ouvidos de um doberman?
- E você tem o cérebro de um vermelho fisgado.
- Um peixe muito esperto.
- Desculpe - disse Rashad, calmamente. - Ele pode ser terrivelmente ríspido.
- Sei muito bem.
- O que é que eu acabei de dizer? - gritou Weingrass. - Ele está sempre falando isso. É o sinal de um complexo de superioridade altamente desenvolvido e improcedente, muito irritante para os intelectos
realmente superiores... Fez um bom exercício, palerma?
Kendrick sorriu e encaminhou-se para o bar, onde havia um jarro com suco de laranja.
- Já passo dos trinta minutos, e num ritmo forte - ele respondeu, servindo-se de um copo de suco.
- Isso seria ótimo se você fosse um cavalo de vaqueiro num rodeio.
- Ele está sempre dizendo coisas assim - protestou Kendrick. - É terrível.
- Sei muito bem - murmurou Khalehla, tomando um gole de café.
- Algum telefonema? - perguntou Evan.
- Mal passa das sete horas, querido.
- Não em Zurich. Lá, já passa de uma da tarde. Falei com eles antes de sair.
- Eles quem? - perguntou Rashad.
- Principalmente com o diretor do Gemeinschaft Bank. Mitch deixou-o apavorado com a nossa informação e ele está tentando cooperar... Ei, espere um pouco! Alguém verificou o telex no estúdio?
- Não, mas ouvi aquela porcaria batendo há uns vinte minutos - respondeu Weingrass.
Kendrick largou o copo, saiu da varanda apressado e atravessou a sala de estar a caminho de uma porta no final do corredor de pedra. Khalehla e Manny observaram-no, depois se fitaram e deram de ombros.
O deputado voltou momentos depois, segurando uma folha de telex, a expressão revelando todo o seu excitamento.
- Eles fizeram! - exclamou Evan.
- Quem fez o quê? - perguntou Weingrass.
- O banco. Lembra-se da linha de crédito de cinquenta milhões que Grinell e seu consórcio de ladrões na California abriram para me comprar?
- Não é possível! - exclamou Khalehla. - Eles não podem ter deixado a ordem em vigor!
- E é claro que não deixaram. Foi cancelada no instante em que Grinell escapou da ilha.
- E então? - indagou Manny.
- Nesta era de telecomunicações complicadas, os erros de computador aparecem de vez em quando, e foi o que aconteceu agora. Não há registro de que tenham recebido o cancelamento. O crédito continua em
vigor; apenas foi transferido para um banco associado em Berna, com uma nova conta numerada. Está tudo lá.
- Eles nunca pagarão! - garantiu Weingrass, enfático.
- Será cobrado contra suas reservas, que são dez vezes mais do que cinquenta milhões.
- Eles vão lutar, Evan - insistiu Khalehla, tão enfática quanto o velho.
- E se apresentarem nos tribunais suíços? Duvido muito.
O helicóptero Cobra sem qualquer identificação sobrevoava o deserto a uma altitude inferior a 150 metros. Evan e Khalehla, exaustos de quase 26 horas no ar e seguindo para contatos secretos em terra, sentavam
lado a lado, a cabeça de Rashad no ombro de Kendrick, a dele pendendo para o peito; ambos dormiam. Um homem de macacão cáqui sem insígnias saiu da cabine de comando e avançou pela fuselagem. Sacudiu o
braço de Evan na semipenumbra.
- Estaremos no alvo em cerca de quinze minutos, senhor.
- Ahn? - Kendrick levantou a cabeça bruscamente, piscou e arregalou bem os olhos, a fim de livrá-los do sono. - Obrigado. Acordarei minha amiga. Elas sempre se preparam antes de chegarem a qualquer lugar,
não é mesmo?
- Não esta "elas" - disse Khalehla, sem se mexer. - Eu durmo até o último minuto.
- Pois então me perdoe, mas não é o meu caso. Não posso. A necessidade me chama.
- Ah, os homens... - murmurou a agente do Cairo, retirando a cabeça do ombro de Kendrick e transferindo-a para o outro lado do banco, encostada no anteparo. Os olhos ainda fechados, ela acrescentou: -
Não têm o menor controle.
- Nós os manteremos informados - disse o oficial da Força Aérea, rindo e voltando à cabine de comando.
Dezesseis minutos passaram e o comandante avisou pelo sistema de intercomunicação:
- Um sinal avistado em frente. Afivelem o cinto para o pouso, por favor.
O helicóptero desacelerou e pairou sobre o chão, onde os faróis de dois automóveis, um de frente para o outro, constituíam o sinal. Lentamente, o helicóptero desceu.
- Saiam o mais depressa possível, por favor - pediu o piloto. - Temos de partir depressa, se podem me entender.
Mal eles desceram a escada de metal para o chão e o Cobra, os rotores trovejando, elevou-se pelo céu noturno; fez a volta ao luar, levantando alguma areia do deserto e seguiu para o norte, acelerado, o
barulho se desvanecendo na escuridão. O jovem sultão de Oman surgiu diante dos faróis de um carro. Usava uma calça esporte e camisa branca aberta no peito substituindo o blusão dos Patriots da Nova Inglaterra
que vestia na noite em que se encontrara com Evan no deserto, dezesseis meses antes.
- Vamos conversar primeiro, está bem? - ele disse, enquanto Kendrick e Rashad se aproximavam.
- Está - respondeu Kendrick.
- As primeiras reações podem não ser muito inteligentes, concorda?
- Concordo - disse Evan.
- Mas eu deveria ser inteligente, certo?
- Certo.
- Ainda assim, a coerência é o produto das mentes pequenas, não é mesmo?
- Dentro de limites razoáveis.
- Não qualifique.
- Não banque o advogado. Em matéria de banca, você só tem as que frequentou com Manny nos bares de Los Angeles.
- Ora, aquele israelense hipócrita e maluco...
- Pelo menos não disse judeu.
- Nem diria. Não gosto do som, assim como também não me agrada o som de "árabe sujo"... Seja como for, Manny e eu não entramos em tantos bares assim de Los Angeles.
- Onde está querendo chegar, Ahmat?
O jovem soberano respirou fundo e falou depressa:
- Agora conheço toda a história e me sinto um idiota.
- Toda a história?
- Tudo. Aquela turma de Inver Brass, os bandidos dos armamentos de Bollinger, aquele filho da puta do Hamendi, que meus reais irmãos sauditas deveriam ter executado no momento em que o pegaram em Riad...
a história inteira. E eu deveria saber que você não faria o que pensei que fez. "Comando Kendrick" contra os árabes sujos não é você, nunca foi... Desculpe, Evan.
Ahmat adiantou-se e abraçou o deputado do Nono Distrito.
- Vão acabar me fazendo chorar - disse Khalehla, sorrindo da cena.
- Você, sua tigresa do Cairo! - gritou o sultão, soltando Kendrick e abraçando Khalehla. - Tivemos uma garota, você já sabe. Meio americana, meio omanita. Parece familiar?
- Eu sabia mas não tinha permissão para entrar em contato com vocês...
- Nós compreendemos.
- Fiquei comovida. Deu-lhe nome de Khalehla.
- Se não fosse por você, Khalehla Um, não haveria Khalehla Dois... Vamos embora. - Enquanto se encaminhavam para a limusine, Ahmat virou-se para Evan. - Você parece muito bem para alguém que passou por
tanta coisa.
- Eu me curo depressa para um velho - disse Kendrick. - Quem lhe contou toda a história, Ahmat?
- Um homem chamado Payton... Mitchell Payton, da CIA. Seu presidente Jennings me telefonou e disse para esperar uma ligação desse Payton, pediu que eu atendesse, por favor, era urgente. Ei, esse Jennings
é um cara muito simpático, não é mesmo?... Embora eu não tenha certeza de que ele sabia tudo o que Payton me contou.
- Por que diz isso?
- Não sei, foi apenas uma impressão. - O jovem sultão parou ao lado da porta do carro e fitou Kendrick. - Se conseguir o que quer, meu amigo, fará mais pelo Oriente Médio e por nós no Golfo do que todos
os diplomatas em dez Nações Unidas.
- Vamos conseguir... Mas somente com a sua ajuda.
- Pode contar com isso.
Ben-Ami e código Azul desceram pela rua estreita para o bazar de Al Kabir, procurando o café ao ar livre que ficava aberto durante a noite. Vestiam impecáveis ternos escuros, como convinha a seus vistos
bahrainianos, que os davam como executivos do Banco da Inglaterra em Manamah. Avistaram o café, esgueiraram-se entre a multidão e os estandes, e sentaram na mesa vazia mais próxima da rua, conforme a instrução.
Três minutos depois um homem alto, de túnica branca e turbante árabe, juntou-se a eles.
- Já pediram café? - perguntou Kendrick.
- Ninguém ainda nos atendeu - respondeu Ben-Ami. - É uma noite movimentada. Como está, deputado?
- Vamos tentar "Evan" ou, melhor ainda, "Amal". Estou aqui, o que de certa forma responde à sua pergunta.
- E Weingrass?
- Não está muito bem, infelizmente... Olá, Azul.
- Olá - disse o jovem, fitando Kendrick.
- Parece muito executivo, sem nada de militar, com essas roupas. Não tenho certeza se o reconheceria se não soubesse que estaria aqui.
- Não sou mais um militar. Tive de deixar a Brigada.
- Vai sentir sua falta.
- E eu já sinto saudade, mas os ferimentos não curaram direito... vários tendões, eles me disseram... Azra era um bom guerreiro, um bom comando.
- Ainda o ódio?
- Não há ódio na minha voz. Desgosto, é claro, por muitas coisas, mas não ódio pelo homem que tive de matar.
- O que faz agora?
- Trabalho para o governo.
- Ele trabalha para nós - interveio Ben-Ami. - Para o Mossad.
- Por falar nisso, Ahmat pede desculpas por não receber vocês no palácio...
- Ele está louco? Só lhe faltava receber agentes do Mossad em sua casa. E também para nós seria mau se alguém descobrisse.
- O que foi que Manny lhe contou?
- Com sua boca grande, o que ele não me contou? E ainda ligou depois que você deixou os Estados Unidos, com mais informações, que Azul pôde aproveitar.
- Como assim, Azul?... De passagem, você agora tem outro nome?
- Com todo o respeito, senhor, não para um americano. Em consideração a nós dois.
- Está bem, aceito isso. O que disse Weingrass que pôde aproveitar, e como?
O jovem inclinou-se sobre a mesa; as três cabeças estavam próximas.
- Ele nos deu a cifra de cinquenta milhões...
- Uma brilhante manipulação! - disse Ben-Ami. - E não acredito por um momento sequer que tenha sido ideia de Manny.
- O quê...? Ora, pode ter sido. Na verdade, o banco não tinha alternativa. Washington fez muita pressão. Mas o que têm os cinquenta milhões?
- Iêmen do Sul - respondeu Azul.
- Não estou entendendo.
- Cinquenta milhões é uma quantia considerável - disse o antigo líder da Brigada Massada -, mas há quantias ainda maiores, especialmente no sentido cumulativo. Irã, Iraque, et cetera. Assim, devemos nos
igualar às pessoas com a bolsa aberta. Portanto, Iêmen do Sul. É terrorista e pobre, mas sua localização distante e quase inacessível, espremido entre o golfo de Aden e o mar Vermelho, torna-o estrategicamente
importante para outras organizações terroristas, apoiadas por fontes muito mais ricas. Eles procuram terras constantemente, campos de treinamento secretos para desenvolver suas forças e espalhar seu veneno.
O Baaka é sistematicamente infiltrado e ninguém está querendo negociar com Khadafi. Ele é louco e não merece confiança, pode ser derrubado qualquer dia destes.
Ben-Ami tornou a intervir:
- Devo dizer que Azul se tornou um dos nossos mais competentes especialistas em contraterrorismo.
- Estou começando a perceber isso. Continue, meu jovem.
- Não é tão mais velho do que eu.
- Calcule uns vinte anos, por aí. Continue.
- Sua ideia, pelo que compreendo, é promover remessas aéreas de armamentos de todos os fornecedores de Hamendi na Europa e América, passando por Mascate, onde supostamente autoridades corruptas fecham
os olhos e os deixam seguir de avião para o Líbano e o vale Baaka. Correto?
- Correto. À medida que cada avião chegar, os danos serão infligidos por guardas do sultão apresentando-se como palestinos a verificarem os suprimentos pelos quais pagaram a Hamendi, enquanto os tripulantes
ficam de quarentena. Digamos que cada avião contenha sessenta a setenta caixotes; serão abertos por equipes de dez homens para cada avião, o conteúdo saturado com um ácido corrosivo. O processo não levará
mais que quinze a vinte minutos por avião; o prazo é aceitável e mantemos um controle total. A guarnição de Mascate isolará a área e somente nosso pessoal terá permissão para entrar.
- Louvável - disse Azul -, mas acho que o processo seria muito precipitado e por demais sujeito a riscos. Os pilotos não gostam de deixar seus aviões nesta parte do mundo e os tripulantes, de um modo geral
vagabundos musculosos e de cabeça oca, causarão problemas se forem afastados por estranhos; pode estar certo de que resistirão à burocracia... Em vez disso, por que não convencer os mais destacados líderes
no vale Baaka a irem para o Iêmen do Sul com suas tropas veteranas? Diga que é um novo movimento provisório, financiado pelos inimigos de Israel, como há muitos por aí. Diga-lhes que há uma oferta inicial
de cinquenta milhões em armas e equipamentos para treinamento avançado, assim como para mandar forças de ataque a Gaza e às colinas de Golan... e mais será fornecido, conforme o necessário. Vai ser irresistível
para aqueles maníacos... E em vez de muitas remessas de avião, apenas um navio, carregado de Bahrain, contornando o Golfo aqui e seguindo para o sul, ao longo da costa, a caminho do porto de Nishtun, no
Iêmen do Sul.
- Onde irá acontecer alguma coisa? - perguntou Kendrick.
- Eu diria que nas águas a oeste de Ra’s al Hadd.
- E o que acontece?
- Piratas - respondeu Azul, um sorriso ligeiro a lhe contrair os lábios. - Uma vez no controle do navio, eles teriam dois dias no mar para fazer o que deve ser feito de maneira mais sutil e meticulosa
do que seria possível na área de carga de um aeroporto, onde Hamendi poderia postar seus próprios homens.
Um garçom aflito aproximou-se da mesa, balbuciando desculpas e xingando a multidão. Ben-Ami pediu café de cardamomo, enquanto Kendrick estudava o jovem contraterrorista israelense.
- Falou em "uma vez no controle" - disse Kendrick. - E se isso não acontecer? Suponhamos que alguma coisa saia errada... nossos sequestradores não conseguem capturar o navio ou apenas uma mensagem é radiografada
para Bahrain... apenas uma palavra, "Piratas". Então não haverá qualquer controle. As armas intactas passarão e Hamendi escapará impune, com mais alguns milhões no bolso. Estaríamos arriscando demais por
muito pouco.
- Arrisca-se muito mais no aeroporto em Mascate - argumentou Azul, num sussurro enfático. - Tem de me escutar. Voltou para cá por apenas uns poucos dias, há um ano e meio. Passou anos longe daqui, não
sabe em que os aeroportos se transformaram. São viveiros de corrupção!... Quem está trazendo o quê? Quem foi subornado e como posso chantageá-lo? Por que há uma mudança nos procedimentos? Diga-me, meu
astiga árabe ou meu bom freund hebreu! São demais! Nada escapa aos olhos dos chacais ansiosos por dinheiro e muito se paga por tais informações... Pode estar certo de que capturar um navio no mar é menos
arriscado e proporciona um benefício maior.
- Está sendo convincente.
- Ele tem razão - disse Ben-Ami, enquanto o café chegava. - Shukren.
O agente controlador do Mossad agradeceu e pagou ao garçom, que se afastou apressado para atender outra mesa.
- Seja como for, Amal Bahrudi, a decisão é toda sua, é claro.
- Onde encontramos esses piratas? - perguntou Evan. - Se for possível encontrá-los e se forem aceitáveis?
- Como estava convencido das minhas projeções - respondeu Azul, os olhos fixados no rosto de Kendrick, que entrava e saía das sombras criadas pela passagem da multidão -, aventei a possibilidade de uma
missão assim com meus antigos companheiros na Unidade Massada. Tive mais voluntários do que podia contar. Como você detestava o Mahdi, também odiamos Abdel Hamendi, que fornece as balas que matam nossa
gente. Escolhi seis homens.
- Apenas seis?
- Esta não deve ser uma operação exclusivamente israelense. Fiz contato com outros seis homens que conheço na margem Ocidental... palestinos que estão tão fartos dos Hamendis deste mundo quanto eu. Juntos,
formaremos uma unidade, mas ainda não é suficiente. Precisamos de mais seis.
- De onde?
- Do país árabe que está disposto, deliberadamente, a acabar com Abdel Hamendi. Seu sultão poderia nos fornecer seis homens da sua guarda pessoal?
- Quase todos são parentes dele... primos, se não me engano.
- Isso ajuda.
A aquisição ilegal de armamentos no mercado internacional é um procedimento relativamente simples, o que explica por que pessoas relativamente simples, de Washington a Beirute, podem dominá-lo. Basicamente,
há três requisitos. O primeiro é o acesso imediato a recursos secretos. O segundo é o nome de um intermediário, geralmente fornecido durante um almoço - jamais pelo telefone - por qualquer executivo de
uma indústria bélica ou um membro subornável de uma organização de informações. Esse intermediário deve ser capaz de fazer contato com o intermediário primário, o homem que coordenará a encomenda e providenciará
o processamento dos certificados de usuário final. Nos Estados Unidos, esse aspecto significa simplesmente a concessão de licenças de exportação para armamentos destinados a nações amigas; as rotas mudam
durante a viagem. O terceiro requisito deveria ser o mais fácil, mas quase sempre é o mais difícil, por causa da extraordinária variedade e complexidade da mercadoria. É o preparo da lista de armas e equipamentos
auxiliares que se deseja adquirir. Aparentemente, não há cinco compradores que possam concordar sobre a capacidade letal e a eficácia de um inventário de armas; não foram poucas as vidas que já se perderam
durante acalorados debates sobre tais decisões, os compradores propensos a explosões de histeria.
Por isso é que os talentos executivos do jovem código Azul se tornaram oportunos em termos de tempo e especificidade. Os agentes do Mossad no vale Baaka forneceram uma lista das mercadorias prediletas
no momento, incluindo os habituais caixotes de armas de repetição, granadas de mão, explosivos com mecanismo de tempo, lanchas de desembarque de PVC preto, tanques submarinos de longo alcance e equipamentos
de demolição, além de apetrechos variados de treinamento e ataque, como garateias de abordagem, cordas e escadas de cordas, binóculos infravermelhos, morteiros eletrônicos, lança-chamas e mísseis antiaéreos.
Era um inventário impressivo, que consumiu cerca de dezoito milhões dos estimados vinte e seis milhões que se podia comprar de um negociante de armas por cinquenta milhões de dólares americanos - as taxas
de câmbio oscilando, sempre a favor do negociante. Azul acrescentou três pequenos tanques chineses sob a classificação técnica de "defesa local" e a lista ficou completa - não apenas completa, mas perfeitamente
crível.
O desconhecido agente controlador Ben-Ami, nunca registrado e que jamais seria reconhecido, usando agora a sua calça jeans Ralph Lauren predileta, operava da casa segura do Mossad perto do cemitério português
no Jabal Sa’ali. Para sua fúria, o intermediário de Abdel Hamendi era um israelense de Bet Shemesh. Ele ocultou seu desprezo e negociou a vultosa aquisição, pensando que haveria uma morte em Bet Shemesh
se e quando todos sobrevivessem.
As duas unidades de seis comandos chegaram, uma depois da outra, à noite, no deserto de Jabal Sham, os dois helicópteros orientados por luzes no solo. O sultão de Oman recebeu os voluntários e apresentou-se
a seus camaradas, seis guardas pessoais extremamente competentes da guarnição de Mascate. Dezoito homens - palestinos, israelenses e omanitas - estavam de mãos dadas num objetivo comum. A morte para o
mercador da morte.
O treinamento começou na manhã seguinte, nos baixios de Al Ashkarah, no mar Arábico.
Morte ao mercador da morte.
Adrienne Khalehla Rashad entrou no escritório de Ahmat com a criança chamada Khalehla nos braços. Junto dela estava a mãe da criança, Roberta Yamenni, de New Bedford, Massachusetts, conhecida por Bobbie
entre a elite de Oman.
- Ela é linda! - exclamou a agente do Cairo.
- Não podia deixar de ser - comentou o pai, por trás da escrivaninha, Evan Kendrick sentado numa cadeira a seu lado. - Tem de corresponder ao nome.
- Ora, não diga bobagem.
- Não é bobagem vista do lugar em que estou sentado - disse o deputado americano.
- Você não conta, porque é supersexuado.
- Além disso, estou de partida esta noite.
- Eu também - acrescentou o sultão de Oman.
- Você não pode...
- Você não pode!
As vozes femininas soaram em uníssono. E a esposa do sultão acrescentou:
- O que pensa que está fazendo?
- Estou fazendo o que eu quero - respondeu o sultão, calmamente. - Nas áreas de prerrogativa real não preciso consultar ninguém.
- Isso é besteira! - protestou a esposa e mãe.
- Eu sei, mas funciona.
O treinamento foi concluído em sete dias, e no oitavo vinte e dois passageiros embarcaram numa traineira ao largo da costa de Ra’s al Hadd, os equipamentos guardados sob as amuradas. No nono dia, ao pôr
do sol no mar Arábico, o navio cargueiro saído de Bahrain foi captado no radar. Quando a escuridão baixou, a traineira partiu para o sul, a caminho das coordenadas de interceptação.
Morte ao mercador da morte.
46
O navio cargueiro era uma massa balançando nas ondas do mar brumoso, a proa subindo e descendo como um predador furioso empenhado em se alimentar. A traineira de Ra’s al Hadd parou a menos de um quilômetro
a boreste do navio que se aproximava. Dois grandes botes de PVC foram baixados, o primeiro com doze homens, o outro com dez homens e uma mulher. Khalehla Rashad estava entre Evan Kendrick e o jovem sultão
de Oman.
Todos vestiam trajes de mergulho, os rostos escurecidos mal visíveis entre as dobras da borracha preta. Além das mochilas de lona nas costas e das armas em invólucros à prova d’água presas nos cintos,
cada um usava enormes taças de sucção presas nos joelhos e antebraços. Os dois botes ondulavam lado a lado na água, enquanto o cargueiro continuava a avançar. Quando a grande muralha negra do navio apareceu,
os botes encostaram na sua quilha, os motores suaves abafados pelo barulho das ondas. Um a um, os "piratas" prenderam as taças de sucção no costado, cada um verificando o companheiro da esquerda para se
certificar de que estava seguro. Todos estavam.
Lentamente, como formigas subindo por uma lata de lixo, a força de Oman alcançou o topo do casco, a amurada, onde as taças de sucção foram soltas e atiradas no mar.
- Você está bem? - sussurrou Khalehla ao lado de Evan.
- Se estou bem? - murmurou Kendrick. - Meus braços estão me matando e eu acho que as pernas ficaram na água em algum lugar, lá embaixo, que não tenciono olhar!
- Ótimo, então você está bem.
- Costuma fazer coisas como estas para ganhar a vida?
- Não com muita frequência - respondeu a agente do Cairo. - Por outro lado, já fiz pior.
- Vocês todos são uns maníacos.
- Eu nunca entrei numa prisão cheia de terroristas. Isso é que é loucura.
- Psiu! - ordenou Ahmat Yamenni, sultão de Oman, à direita de Rashad. - Os homens vão entrar em ação agora. Fiquem quietos.
Os palestinos capturaram os sonolentos vigias na proa, no centro do navio e na popa, enquanto os israelenses subiam para um convés superior e prendiam cinco marinheiros que estavam sentados diante de um
anteparo, tomando vinho. De acordo com o combinado, uma vez que navegavam em águas do golfo de Oman, os omanitas subiram para a cabine de comando e comunicaram formalmente ao comandante que o navio se
encontrava sob seu controle por decreto real e que o curso previsto devia ser mantido. A tripulação foi reunida e revistada, sendo confiscadas todas as armas. Depois os tripulantes foram confinados aos
alojamentos, sob uma guarda rotativa de três homens: um omanita, um palestino e um israelense. O comandante, um fatalista esquelético com a barba espinhando, aceitou as circunstâncias com um dar de ombros,
não oferecendo resistência nem protestos. Permaneceu à roda do leme, pedindo apenas que o primeiro e o segundo imediatos o substituíssem em momentos determinados. A solicitação foi atendida e seu comentário
seguinte resumiu a reação filosófica:
- Árabes e judeus são agora piratas de alto-mar. O mundo está um pouco mais louco do que eu pensava.
O operador de rádio, no entanto, causou a maior surpresa. Aproximaram-se da sala de comunicações cautelosamente, Khalehla conduzindo dois membros da Brigada Massada e Evan Kendrick. A um sinal dela, a
porta foi arrombada e as armas apontadas para o operador. O homem tirou uma bandeirinha israelense do bolso e sorriu, indagando:
- Como está Manny Weingrass?
- Ora essa! - foi a única resposta do deputado americano.
- Era de esperar - comentou Khalehla.
Durante dois dias no mar, a caminho do porto de Nishtun, a força de Oman trabalhou em turnos, 24 horas por dia, no porão de carga do navio. Foram meticulosos, pois cada homem sabia com que armamento lidava
e o destruiu com eficiência. Os caixotes foram novamente fechados, sem deixar marcas da sabotagem; ali estavam armas e equipamentos acondicionados com perfeição, como se tivessem acabado de sair das linhas
de montagem no mundo inteiro e reunidos por Abdel Hamendi, vendedor da morte. Ao amanhecer do terceiro dia, o navio entrou no porto de Nishtun, Iêmen do Sul. Os "piratas" da Margem Ocidental, Oman e Brigada
Massada, assim como a agente do Cairo e o deputado americano, vestiram as roupas que haviam trazido nas mochilas. Meio árabes, meio ocidentais, usavam os trajes amarrotados de marujos mercantes em trabalho
irregular, lutando pela sobrevivência num mundo injusto. Cinco palestinos, apresentando-se como carregadores bahrainianos, postaram-se junto da prancha que dentro de alguns momentos seria baixada. O resto
ficou observando, impassível, do convés inferior, enquanto a multidão se reunia num enorme pier, no centro do complexo portuário. A histeria pairava no ar; e estava por toda parte. O navio era um símbolo
de libertação, pois pessoas ricas e poderosas, em algum lugar, achavam que os orgulhosos e sofredores guerreiros do Iêmen do Sul eram importantes. Era um carnaval de vingança com a qual eles talvez não
concordassem coletivamente, mas bocas frenéticas sob olhos desvairados soltavam gritos de violência. O navio atracou e o frenesi no cais foi ensurdecedor.
Tripulantes escolhidos com todo cuidado, sob os olhos vigilantes e as armas da força omanita, foram postos a trabalhar nas engrenagens, iniciando-se o maciço processo de descarga. Os caixotes eram levantados
do porão por guindastes e baixados no cais sob aclamações delirantes. Duas horas depois a descarga terminou, com a descida dos três pequenos tanques chineses; se os caixotes haviam levado a multidão ao
frenesi, os tanques levaram-na a entrar em órbita. Soldados em uniformes maltrapilhos tiveram de impedir seus compatriotas de enxamearem sobre os veículos blindados; eram símbolos de grande importância,
de imenso reconhecimento - de algum lugar.
- Santo Deus! - exclamou Kendrick de repente, segurando o braço de Ahmat e olhando para a base do cais. - Olhe ali!
- Onde?
- Estou vendo! - interveio Khalehla, metida numa calça de homem, os cabelos escondidos sob um chapéu de pescador grego. - Não posso acreditar! Mas é ele mesmo, não é?
- Quem? - indagou irritado o jovem sultão.
- Hamendi! - respondeu Evan, apontando para um homem que trajava um terno branco de seda, cercado por outros em uniformes e túnicas.
A procissão avançou pelo cais, os soldados na frente abrindo caminho entre a multidão.
- Ele está usando o mesmo terno branco que vestia numa das fotografias que estavam no apartamento dos Vanvlanderens - acrescentou Rashad.
- Tenho certeza de que ele possui dúzias de ternos assim - explicou Kendrick. - E também tenho certeza de que ele pensa que o fazem parecer puro como um deus... Mas uma coisa devo reconhecer: ele é muito
corajoso por deixar sua fortaleza nos Alpes e vir até aqui, a poucas horas de Riad pelo ar.
- Por quê? - disse Ahmat. - Ele está bem protegido; os sauditas não se atreveriam a inflamar esses fanáticos tomando qualquer iniciativa além da sua fronteira.
- Por outro lado - acrescentou Khalehla -, Hamendi fareja mais milhões vindos do lugar de onde veio este navio. Está garantindo seus lucros e com um risco menor.
- Eu sei o que ele está fazendo - disse Evan, falando para Khalehla, mas olhando para o jovem sultão. - Os sauditas não se atreveriam. Os omanitas também não se atreveriam...
- Existem motivos bem sólidos para não se envolver com os fanáticos e deixar que afundem em seus próprios atoleiros - respondeu o sultão, na defensiva.
- Não é essa a questão.
- Qual é então?
- Estamos contando com o fato de que essas pessoas, especialmente os lideres do vale Baaka, ao descobrirem que a maior parte do que pagaram não passa de um monte de bagulho imprestável, passarão a chamar
Hamendi de ladrão de cinquenta milhões de dólares. Ele se torna então um pária, um árabe que trai árabes por dinheiro.
- A notícia se espalhará como falcões ao vento, como meu povo costumava dizer apenas duas décadas atrás - concordou o sultão. - Pelo que sei do Baaka, grupos de eliminação serão despachados às dezenas
para matá-lo, não apenas por causa do dinheiro, mas também pela traição.
- Seria o ideal - disse Kendrick. - É o que esperamos, mas ele tem milhões no mundo inteiro e há milhares de lugares em que pode se esconder.
- Onde está querendo chegar, Evan? - indagou Khalehla.
- Talvez possamos antecipar a agenda, e com um pouco de sorte atingir o ideal imediatamente.
- Seja mais claro e objetivo - insistiu a agente do Cairo.
- O que há lá embaixo é um circo. Os soldados mal conseguem conter a multidão. Basta desencadear um movimento, pessoas gritando em coro, cantando até suas vozes sacudirem a cidade... Farjunna! Farjunna!
Farjunna!
- Queremos ver! - traduziu Ahmat.
- Um ou dois caixotes abertos, rifles levantados em triunfo... e depois as munições encontradas e distribuídas.
- E as armas disparadas por lunáticos para o alto... só que elas não disparam - arrematou Khalehla.
- E depois novos caixotes são abertos - continuou o sultão, contagiado pelo entusiasmo dos outros. - Equipamentos inúteis, botes furados, lança-chamas falhando. E Hamendi está bem aqui!... Mas como podemos
descer até lá?
- Você não pode, nenhum de vocês pode - disse Kendrick, com firmeza.
Depois fez sinal para um membro da Brigada Massada. O homem veio correndo e Evan falou depressa, sem dar oportunidade de interferência aos aturdidos Ahmat e Rashad.
- Sabe quem eu sou, não é mesmo? - ele perguntou ao israelense.
- Não deveria, mas é claro que sei.
- Sou considerado o líder desta unidade, certo?
- Certo, mas fico satisfeito por haver outros...
- Irrelevante. Eu sou o líder.
- Está bem, você é o líder.
- Quero que estes dois sejam levados imediatamente para uma cabine, onde ficarão detidos.
Os protestos do sultão e de Khalehla foram abafados pela reação do israelense.
- Perdeu o juízo? Este homem é...
- Pouco me importa se ele é Maomé e ela, Cleópatra! Prenda-os imediatamente!
E Evan saiu correndo em direção à prancha e à multidão histérica no cais.
Kendrick encontrou o primeiro dos cinco "carregadores" palestinos e afastou-o de um grupo de soldados e civis reverentes, que gritavam sem parar em torno de um dos tanques chineses. Falou rapidamente junto
ao ouvido do homem; o árabe acenou com a cabeça e apontou para um dos seus companheiros na multidão, gesticulando que avisaria aos outros.
Cada homem correu pelo cais, de um grupo frenético para outro, berrando a plenos pulmões, repetindo a mensagem várias vezes, até que o brado febril se tornou uma ordem. Como uma enorme onda rolando por
um mar humano, o grito se avolumou, mil vozes diversas lentamente entrando em concerto.
- Farjunna! Farjunna! Farjunna! Farjunna...!
A multidão convergiu em massa para a área de carga e a pequena procissão de elite, em que Abdel Hamendi era o centro de atração, foi literalmente empurrada para um lado. Desculpas foram gritadas e aceitas
com uma falsa cortesia pelo negociante de armas, que parecia ter vindo à parte errada da cidade e estar ansioso por sair, não fossem as recompensas que poderia colher com sua permanência.
- Por aqui! - gritou uma voz que Evan conhecia muito bem.
Era Khalehla! E a seu lado estava Ahmat, no meio de uma multidão turbulenta e frenética.
- O que estão fazendo aqui? - gritou Kendrick, juntando-se a eles naquela confusão de corpos abalroando uns aos outros.
- Senhor deputado - disse o sultão de Oman imperiosamente -, o senhor pode ser o líder da unidade, o que é bastante discutível, mas eu comando o navio! Meus homens o tomaram!
- Sabe o que acontecerá se ela perder o chapéu ou a camisa e esses lunáticos descobrirem que é uma mulher? E tem alguma ideia da recepção que espera você, se alguém tiver a menor pista de quem...
- Vocês parem com isso! - gritou Rashad, dando uma ordem, não fazendo um pedido. - Depressa! Os soldados podem perder o controle a qualquer momento e temos de cuidar para que aconteça como queremos!
- Como? - gritou Evan.
- Os caixotes! - respondeu Khalehla. - As pilhas na esquerda, com marcas vermelhas! Vá na minha frente, pois não conseguirei passar sozinha. Vou segurar seu braço.
- É uma concessão e tanto. Vamos!
Os três avançaram pela compacta multidão em constante movimento, abrindo caminho até uma pilha de caixotes com três metros de altura, presos por largas tiras de metal negro. Um cordão de isolamento formado
por soldados quase em pânico, bem poucos para trançarem os braços, mas de mãos dadas, cercava a perigosa mercadoria, contendo os homens cada vez mais impacientes, cada vez mais furiosos, que agora exigiam
Farjunna! Farjunna! - Queriam ver aqueles equipamentos que os tornavam tão importantes.
- Aqui estão as armas e todos sabem disso! - gritou Kendrick no ouvido de Rashad. - Eles vão enlouquecer!
- Claro que todos sabem disso, e também é claro que vão enlouquecer. Olhe para as marcas.
Em todos os caixotes de madeira repetiam-se as mesmas insígnias: um círculo vermelho dentro de outro círculo vermelho dentro de um terceiro círculo vermelho.
Khalehla explicou:
- O símbolo universal de um alvo. E alvos significam armas; foi ideia de Azul. Ele deduziu que os terroristas só vivem pelas armas e portanto correriam para elas.
- Ele conhece bem o seu novo ofício...
- Onde está a munição? - perguntou Ahmat, tirando dois instrumentos do bolso.
- Os palestinos estão cuidando disso - respondeu Rashad, agachando-se sob a investida de braços agitados ao redor. - Os caixotes não têm marcas, mas eles sabem quais são e vão abri-los. Só esperam por
nós!
- Pois então vamos logo! - gritou o jovem sultão, entregando a Evan um dos instrumentos que tirara do bolso.
- O que...?
- Alicates! Será preciso partir o máximo de presilhas para os caixotes se abrirem!
- Eles as rebentariam de qualquer maneira... mas não importa! Temos de empurrar esse bando de fanáticos para a frente e romper o círculo. Vamos em frente, Ahmat. - Olhando para a agente do Cairo, Kendrick
acrescentou: - E você, fique atrás de nós!
Depois de uma pausa, esquivando-se de braços, punhos, joelhos e pés furiosos que se agitavam de todas as direções, Evan gritou para o sultão de Oman:
- Quando eu acenar com a cabeça, arremeta contra a linha como se tivesse sido contratado pelos Patriots!
- Não, ya Shaikh! - berrou Ahmat. - Como se tivesse sido contratado por Oman... debaixo de fogo, como deve ser. Eles são os inimigos do meu povo!
- Agora! - bradou Evan.
Ombros e braços estendidos, o deputado e o jovem e musculoso soberano arremeteram contra os corpos à sua frente, empurrando os terroristas que gritavam para o círculo de soldados. A linha rompeu-se! A
investida à dupla pilha de caixotes com três metros de altura foi total. Evan e Ahmat avançaram com a multidão até os caixotes, e as presilhas de metal foram se abrindo sob a ação dos alicates trabalhando
furiosamente. Os caixotes caíram, como se explodissem por dentro, o peso e a força de uma centena de atacantes precipitando essa queda violenta. As tábuas se soltaram ou foram arrancadas por mãos ansiosas.
Depois, como gafanhotos famintos atacando tenras folhas de árvores, os terroristas do Iêmen do Sul e do vale Baaka se atiraram sobre os caixotes, arrancando as armas dos invólucros plásticos e jogando-as
para os companheiros, enquanto gritavam e trepavam nos caixotes que agora, vazios, assumiam a aparência de grotescos ataúdes.
Simultaneamente, o grupo de palestinos da Margem Ocidental distribuiu com fartura caixas de munição, tirando-as da montanha de madeira desfeita, armamento fornecido pelo vendedor da morte Abdel Hamendi.
Armas variadas, de todos os tipos e tamanhos, eram extraídas com fúria de seus recessos. Muitos não sabiam que balas carregar em que armas, mas outros, principalmente os do Baaka, conheciam muito bem essa
arte e instruíram seus irmãos menos sofisticados do Iêmen do Sul.
A primeira metralhadora disparada em triunfo do alto da pirâmide da morte explodiu no rosto do homem que puxara o gatilho. Em meio a estampidos por toda parte, outras armas foram disparadas; houve centenas
de cliques inúteis, mas também dezenas de explosões, em que cabeças, braços e mãos foram atingidos.
A histeria se somou à histeria. Muitos terroristas largaram as armas com horror, enquanto outros ainda usavam as mãos e quaisquer instrumentos que pudessem encontrar para abrir novos caixotes sem marcas.
Aconteceu como o jovem sultão de Oman previra. Equipamentos foram espalhados por todo o cais, arrancados de caixotes e de invólucros plásticos - e exibidos para todos verem. À medida que cada peça era
examinada, a multidão se tornava mais e mais delirante, agora já não em triunfo, mas tomada por uma fúria animal. Entre as peças desencaixotadas havia binóculos infravermelhos com as lentes quebradas,
ganchos de abordagem sem as pontas, escadas de corda com os degraus cortados, tanques de oxigênio para natação submarina perfurados; lança-chamas com bocais obstruídos, garantindo a incineração instantânea
de quem os operasse e de qualquer outra pessoa num raio de trinta metros; lançadores de foguetes sem as cápsulas de detonação; e ainda, como Ahmat projetara, botes de desembarque rasgados. A multidão maníaca
entrou em paroxismos de raiva ante a traição.
Em meio ao caos, Evan esgueirou-se entre as pessoas desvairadas em direção ao armazém do enorme cais; comprimindo-se contra a parede, foi avançando até chegar junto às imensas portas. Lá dentro, Hamendi
gritava em árabe, prometendo que tudo seria substituído; seus inimigos, que eram também os inimigos deles nos depósitos em Bahrain, pagariam com a vida até o último! Os protestos atraíam apenas olhares
desconfiados dos árabes a quem ele falava.
Nesse instante surgiu um homem de terno escuro e listrado, contornando o canto do armazém. Kendrick ficou gelado. Era Crayton Grinell, advogado e presidente do conselho do governo dentro do governo. Depois
do choque inicial, Evan especulou que não havia razão para estar atônito, nem mesmo surpreso. Para onde mais Grinell poderia ir, senão para o núcleo da rede internacional de traficantes de armas? Era o
seu último e único refúgio seguro. O advogado falou rapidamente com Hamendi, e este no mesmo instante traduziu suas palavras, explicando que seu associado já fizera contato com Bahrain e descobrira o que
acontecera. Os culpados eram os judeus! Terroristas israelenses tinham atacado um depósito, matando todos os homens da guarda e fazendo aqueles estragos terríveis.
- Como foi possível? - perguntou um homem corpulento que trajava o único uniforme revolucionário engomado, no qual havia pelo menos uma dúzia de medalhas. - Todos os suprimentos estavam nos caixotes originais,
os invólucros intactos. Como conseguiram fazer isso?
- Os judeus podem ser muito engenhosos! - gritou Hamendi. - Sabe disso tão bem quanto eu! Voarei de volta imediatamente, para substituir toda a encomenda e confirmar a verdade!
- E o que faremos enquanto isso? - perguntou o óbvio líder do regime revolucionário do Iêmen do Sul. - O que direi aos nossos irmãos do vale Baaka? Estamos desgraçados!
- Terão sua vingança, assim como suas armas, pode estar certo.
Grinell tornou a falar com o mercador da morte e Hamendi traduziu outra vez:
- Estou sendo informado por meu sócio que nossa autorização de pouso só vigora por mais três horas, a um custo pessoal extremamente alto, posso acrescentar, e devemos partir agora.
- Restaure a nossa dignidade, irmão árabe, ou vamos encontrá-lo onde estiver e perderá sua vida.
- Tem a minha garantia de que a primeira coisa irá acontecer e não haverá necessidade da segunda. E agora, até breve.
Eles iam escapar!, pensou Kendrick. Oh, Deus, eles iam escapar! Grinell fornecera adequadas palavras insinuantes a Hamendi, e os dois deixariam aquele ninho de insanidade e continuariam em suas atividades
mortíferas! Ele tinha que detê-los! Precisava fazer alguma coisa!
Enquanto os dois traficantes de armas saíam apressados pelas portas do armazém e contornavam o canto do prédio, Evan passou correndo pela abertura - como mais um terrorista histérico - e avançou para os
dois homens bem vestidos através da multidão frenética no cais. Estava a poucos metros da Crayton Grinell, depois chegou a centímetros dele. Tirou da bainha presa no cinto a faca de lâmina comprida e atacou,
passando o braço esquerdo pelo pescoço do americano, forçando-o a se virar, a confrontá-lo.
- Você! - berrou Grinell.
- Isto é por um velho que está morrendo e por milhares de outros que você matou!
A faca mergulhou na barriga do advogado e a seguir Kendrick fê-la subir até o peito. Grinell caiu no chão do cais, em meio à paranoica multidão de terroristas, que não tinham a menor ideia de que outro
terrorista fora morto e jazia a seus pés.
Hamendi! Ele correra para a frente, esquecendo o sócio, determinado a alcançar o carro que o levaria ao avião com trânsito livre para sair do Iêmen do Sul e atravessar fronteiras hostis. Não devia chegar
ao veículo! O mercador da morte tinha que ser impedido de vender a morte! Evan abriu caminho à força por entre os homens que corriam e gritavam no cais. Havia uma larga faixa de concreto subindo para uma
estrada de terra, onde uma limusine Zia russa esperava, os vapores do cano de descarga indicando que o motor estava ligado, aguardando os passageiros em fuga. Hamendi, o paletó branco enfunado pela corrida,
estava a poucos metros da fuga! Kendrick recorreu a forças interiores que desafiavam a imaginação e subiu em disparada pela faixa de cimento, as pernas prestes a ruírem, até que ele caiu, a seis metros
apenas da Zia, enquanto Hamendi se aproximava da porta. Deitado, mal conseguindo firmar a arma com as mãos trêmulas, disparou várias vezes.
Abdel Hamendi, o rei da corte dos traficantes internacionais de armas, levou a mão à garganta e tombou no chão de concreto.
Ainda não é o fim!, gritou uma voz na mente de Kendrick. Havia mais uma coisa a fazer! Ele rastejou pela faixa de cimento, enfiando a mão no bolso para pegar o mapa que código Azul fornecera a todos para
o caso de uma separação e possível fuga. Rasgou um pedaço, tirou um pequeno lápis de outro bolso e escreveu o seguinte, em árabe:
Hamendi, o mentiroso, está morto. Breve todos os mercadores morrerão, pois em toda parte a traição começou, como testemunharam pessoalmente hoje. Por toda parte eles foram pagos por Israel e pelo Grande
Satã, a América, para nos vender armas defeituosas. Por toda parte. Entrem em contato com nossos irmãos por toda parte e repitam o que estou dizendo e o que viram hoje. Deste dia em diante, não se pode
confiar em nenhuma arma. Assinado: Um amigo silencioso que sabe.
Penosamente, como se os ferimentos da ilha no México se abrissem de novo, Evan levantou-se e seguiu tão depressa quanto podia no meio da multidão irada e uivante, encaminhando-se para as portas do armazém.
Simulando súplicas histéricas a Alá pela morte de um irmão, ele caiu prostrado na frente do pequeno grupo de líderes, que agora incluía o do vale Baaka, no Líbano. Quando várias mãos se abaixaram para
oferecer conforto, ele empurrou-lhes o papel, levantou-se em seguida e, gritando, correu para fora do armazém. Logo desapareceu no meio da multidão agora em lamentos, ajoelhando-se ao lado de corpos mutilados
que havia por toda parte. Assustado, ouviu os apitos do cargueiro - sinais de partida! Abriu caminho para o outro lado do cais, onde avistou Khalehla e Ahmat parados na prancha, gritando para os homens
no convés, mais em pânico do que ele próprio, se é que isso era possível.
- Onde você se meteu? - gritou Rashad, os olhos furiosos.
- Eles estavam escapando! - gritou Kendrick de volta, enquanto Ahmat empurrava os dois pela prancha, que, a um sinal dele, começou a ser recolhida.
- Hamendi? - indagou Khalehla.
- E Grinell...
- Grinell? - repetiu a agente do Cairo, enquanto os três cambaleavam para a frente. - Mas é claro! Onde mais...
- Você é um idiota, deputado! - bradou o jovem sultão de Oman, ainda empurrando-os, agora no convés do navio que já flutuava a certa distância do cais. - Mais trinta segundos e teria que ficar para trás.
A qualquer momento a multidão se voltaria contra nós e eu não podia arriscar as vidas destes homens!
- Você tornou-se mesmo adulto.
- Todos fazemos o que temos de fazer quando chega a nossa vez... O que aconteceu com Hamendi e com esse... outro?
- Eu os matei.
- Parece muito simples - murmurou Ahmat, ofegante, mas calmo.
- Todos fazemos o que temos de fazer quando chega a nossa vez, alteza.
Gerald Bryce entrou no estúdio computadorizado de sua casa em Georgetown e foi direto para a editora de textos. Sentou-se na frente dela e ligou-a; enquanto a tela se iluminava, ele bateu um código. No
mesmo instante as letras verdes responderam.
Segurança Ultramáxima
Não Há Intercepções
Prossiga
O jovem e excepcionalmente belo especialista sorriu e continuou a datilografar:
Li agora todas as informações confidenciais recebidas pela CIA e codificadas apenas para o módulo de M. J. Payton. Numa palavra, todo o relatório é incrível, e seus efeitos já podem ser observados. Até
agora, apenas duas semanas depois dos acontecimentos no Iêmen do Sul, sete dos mais destacados mercadores de armas foram assassinados e calcula-se que o fluxo de equipamento bélico para o Oriente Médio
foi reduzido em sessenta por cento. Nosso homem é invencível. Mais importante, porém, combinando com as informações anteriores que possuímos, é que a Casa Branca deve - repito, deve - nos dar atenção no
caso de querermos que a nossa voz seja ouvida. Claro que exerceremos essa prerrogativa com a máxima discrição, mas de qualquer forma podemos exercê-la. Pois independente do resultado, positivo ou negativo,
leis nacionais e internacionais foram violadas, a administração associou-se direta e indiretamente a assassinato, terrorismo, corrupção e chegou perto de crimes contra a humanidade que acarretariam uma
condenação total. Como concordamos, deve sempre haver um poder benevolente e altruísta acima da Casa Branca, a fim de lhe oferecer orientação; e o meio para alcançar esse poder é conhecer os mais íntimos
segredos de qualquer administração. Sob esse aspecto, estamos obtendo sucesso de uma maneira que jamais foi sonhada pelos que vieram antes de nós. Se há um Deus, conceda Ele que nós e nossos sucessores
sejamos sinceros em nossas convicções. Ocorre-me que o som e a cadência parcial de Inver Brass não estão muito distantes de um termo médico: intravenoso. É bastante apropriado, na minha opinião. Finalmente,
estou trabalhando em diversos outros projetos e os manterei informados.
Num barco ao largo de Glorious Cay, nas Baamas, um homem preto estava sentado na frente da luxuosa cabine de seu iate Bertram, estudando uma tela de computador. Sorriu às palavras que viu. Inver Brass
estava em mãos jovens e capazes, uma inteligência excepcional somando-se à decência e desejo de perfeição. Gideon Logan, que consumira grande parte da sua vida adulta e rica beneficiando seu povo - ao
ponto de desaparecer por três anos como o silencioso e invisível ombudsman da Rodésia, durante sua transição para Zimbabwe -, sentiu o alívio que deriva de uma sucessão eminente e consumada com base em
princípios. O tempo estava terminando para ele, assim como para Margaret Lowell e Jacob Mandel. A mortalidade determinava que tinham de ser substituídos; e aquele jovem, aquele gênio atraente e honrado,
escolheria seus sucessores. A nação e o mundo seriam melhores por eles.
O tempo estava terminando.
Gerald Bryce tomou um gole do copo de Madeira e voltou ao seu equipamento. Sentia-se exultante por muitos motivos, entre os quais, especialmente, estava o que classificava de "fraternidade do talento".
E o mais extraordinário era a segurança da sua inevitabilidade. A confraria era predeterminada, inescapável, suas origens encontradas na mais comum das ocorrências: o encontro de pessoas com interesses
similares, as regiões avançadas desses interesses exigindo inteligências superiores - e, para ser realista, pouca paciência com uma sociedade governada pela mediocridade. Uma coisa sempre levava a outra,
sempre indiretamente, mas mesmo assim era inevitável.
Quando o tempo permitia, Bryce fazia conferências e participava de seminários, um líder muito procurado no campo da ciência de computadores que tomava o cuidado de não explorar publicamente os limites
exteriores de seus conhecimentos. Mas de vez em quando surgia a pessoa extraordinária capaz de perceber para onde ele se encaminhava. Em Londres, Estocolmo, Paris, Los Angeles e Chicago - a Universidade
de Chicago. Essas poucas pessoas eram investigadas acima de qualquer coisa que suas imaginações podiam conceber, e até aquele momento quatro haviam sido contatadas de novo... e de novo. Outro Inver Brass
já tinha um contorno tênue e definido no horizonte. O mais extraordinário daqueles quatro seria agora procurado novamente.
Bryce registrou seu código, batendo as teclas para Adendo, e leu as letras na tela.
Transmissão de satélite. Módulo-Sahalhuddin. Bahrain.
Prossiga.
47
Emmanuel Weingrass confundiu os especialistas médicos, especialmente no Centro de Controle de Doenças, em Atlanta. Não que estivesse se recuperando, pois tal não acontecia, não havia mudança na posição
terminal da infecção virótica. Contudo, ele não estava piorando de maneira muito evidente; seu índice de deterioração era bem mais lento do que o previsto. Os médicos não diriam em hipótese alguma que
o avanço da doença fora detido; apenas estavam confusos. O patologista de Denver explicou:
- Digamos que numa escala de menos um a menos dez... menos dez sendo o momento final... o velho está pairando em menos seis e não desce.
- Mas o vírus ainda existe - disse Kendrick, enquanto passeava junto com o médico e Khalehla pelos jardins da casa no Colorado, longe dos ouvidos de Manny.
- É exuberante. Apenas não o está incapacitando como deveria ocorrer.
- Provavelmente é o cigarro que ele contrabandeia, e o uísque que rouba - declarou Rashad.
- Não é possível, ele não faz isso! - exclamou o patologista, surpreso e cada vez mais aturdido.
Evan e Khalehla acenaram com a cabeça numa confirmação resignada.
- Ele é um sobrevivente belicoso - explicou Kendrick -, com mais sabedoria e malandragem na cabeça do que qualquer outra pessoa que já conheci. Além disso, como o prognóstico era severo em termos de tempo,
não mantivemos os olhos muito abertos minuto a minuto.
- Quero que compreenda, por favor, deputado, que não posso lhe dar falsas esperanças. Ele é um velho muito doente e tem 86 anos...
- Oitenta e seis? - repetiu Evan.
- Não sabia?
- Não. Ele disse que tinha 81 anos.
- Tenho certeza que ele acredita nisso ou pelo menos se convenceu. É o tipo de homem que ao chegar aos 60 comemora o aniversário seguinte como sendo o de 55 anos. Nada de errado com isso, diga-se de passagem,
mas queríamos uma história médica completa e por isso voltamos aos seus dias na cidade de Nova York. Sabia que ele já estava na terceira esposa ao completar 32 anos?
- Tenho certeza de que ainda estão procurando por ele.
- Oh, não! Elas já morreram. Atlanta queria também as histórias delas... para possíveis complicações latentes de transmissão sexual, essas coisas.
- Verificaram Los Angeles, Paris, Roma, Tel Aviv, Riad e todos os emirados? - indagou Khalehla, secamente.
- Extraordinário! - murmurou o patologista, suave mas com alguma ênfase, sua mente médica aparentemente ponderando, talvez até invejando. - Bom, tenho de partir agora, pois devo estar em Denver por volta
do meio-dia. E obrigado pelo jato particular, deputado. Poupou-me muito tempo.
- Eu não poderia fazer menos, doutor. Agradeço tudo o que está fazendo, tudo o que já fez.
O patologista fez uma pausa, fitando Evan.
- Acabei de dizer "deputado", senhor Kendrick. Talvez devesse dizer "senhor vice-presidente", como eu e a maior parte do país acreditamos que deve ser. Na verdade, se não estiver concorrendo, não tenciono
votar... e posso garantir que falo pela maioria dos meus amigos e colegas.
- Não é uma posição viável, doutor. Além do mais, essa questão ainda não foi resolvida... Vou acompanhá-lo até o carro. Khalehla, pode ver como está nosso adolescente sibarita, para impedir que ele tome
um banho de uísque?
- Se isso estiver acontecendo, acha que eu entraria lá?... Está bem, vou ver como ele está. - Rashad apertou a mão do patologista de Denver. - Obrigada por tudo.
- Gostaria que convencesse este jovem que deve ser realmente nosso próximo vice-presidente.
- Repito - disse Kendrick, levando o médico pelo gramado, na direção do caminho circular. - Essa questão ainda não está resolvida, doutor.
- A questão deve ser resolvida! - gritou Emmanuel Weingrass da sua espreguiçadeira na varanda envidraçada, o deputado e Khalehla em suas posições habituais, no sofá, a fim de que o velho pudesse fitá-los
em sua fúria. - O que é que você pensa? Que está tudo acabado? Que Bollinger e seus ladrões fascistas saíram de cena e ninguém mais vai tomar o lugar deles? É tão estúpido assim?
- Pare com isso, Manny - disse Evan. - Há muitas áreas em que Langford Jennings e eu divergimos para que um presidente se sinta à vontade com alguém como eu, que poderia sucedê-lo... e essa perspectiva
me deixa apavorado.
- Lang sabe de tudo isso! - gritou Weingrass.
- Lang?
O arquiteto deu de ombros.
- Você descobrirá em breve...
- O que descobrirei em breve?
- Jennings mais ou menos se convidou para almoçar aqui há algumas semanas... O que é que eu podia fazer? Dizer ao presidente dos Estados Unidos que não viesse comer nesta casa?
- Merda! - explodiu Kendrick.
- Controle-se, querido - interveio Khalehla. - Estou fascinada... e muito!
- Continue, Manny! - berrou Evan.
- Discutimos muitas coisas... ele não é um intelectual, admito, mas é esperto e percebe o quadro maior; nisso ele é bom, você sabe.
- Não sei de nada, e como se atreve a falar por mim?
- Porque sou seu pai, seu idiota ingrato. O único pai que já conheceu! Sem a minha ajuda, ainda estaria erguendo uns poucos prédios para os sauditas e especulando se poderia cobrir os custos. E não fale
que eu me atrevi... teve sorte de eu me atrever... fale de suas obrigações com os outros... Está bem, está bem, não poderíamos fazer o que fizemos sem a sua coragem, sem a sua força, mas eu estava lá e
agora tem de me escutar.
Exasperado, Kendrick fechou os olhos e recostou-se no sofá. Khalehla percebeu de repente que Weingrass lhe sinalizava discretamente, os lábios em movimento exagerado; as palavras silenciosas podiam ser
lidas sem muita dificuldade. É uma encenação. Sei o que estou fazendo. Ela só podia responder fitando o velho, surpresa.
- Está certo, Manny - disse Evan, abrindo os olhos e fitando o teto. - Pode falar. Estou escutando.
- Assim é melhor. - Weingrass piscou para a agente do Cairo e continuou: - Você pode se afastar e ninguém tem o direito de dizer ou pensar qualquer coisa ruim a seu respeito, porque todos lhe devem e você
não deve nada a ninguém. Mas eu o conheço, meu amigo, e o homem que conheço possui uma capacidade de indignação da qual tenta escapar, mas jamais consegue, porque é parte dele. Em poucas palavras, você
não gosta de gente podre... exceto a companhia mais velha aqui presente... e é uma boa coisa para este mundo miserável a existência de pessoas como você, pois há demais do outro tipo... Mesmo assim, vejo
um problema: nem todos os que são como você podem fazer muita coisa, porque quase ninguém os ouve. E por que se deveria? Quem são eles? Encrenqueiros? Alarmistas? Agitadores insignificantes?... De qualquer
forma, não é difícil livrar-se deles. Empregos são perdidos, promoções negadas. Se são mesmo sérios, acabam nos tribunais, onde suas vidas são maculadas... por uma lama que nada tem a ver com o que são,
atirada por advogados de luxo que têm mais truques do que Houdini... e se acabam apenas com uma pequena aposentadoria e geralmente sem mulher nem filhos, podem se considerar afortunados. Talvez possam
descobrir-se sob um caminhão ou nos trilhos do metrô num momento inoportuno... Você, por outro lado, é alguém que todo mundo escuta... veja as pesquisas; é o principal cardeal do país, considerando-se
Langford Jennings como o Papa... e não há um único rábula que possa levá-lo aos tribunais, muito menos o Congresso. Pelo que vejo, você tem a chance de falar do alto para uma porção de pessoas miúdas que
não podiam ouvir. Lang o porá a par de tudo...
- Lang de novo - murmurou Kendrick.
- Não é culpa minha! - exclamou Weingrass, estendendo as mãos. - Comecei direito com um "senhor presidente", pergunte às enfermeiras que foram todas para o banheiro no momento em que ele chegou... o homem
não é fácil. Depois de um drinque, que ele próprio me serviu do bar assim que as meninas saíram, o homem me disse que eu era revigorante, e que devia chamá-lo de Lang e esquecer todas as formalidades.
- Manny - interveio Khalehla -, por que o presidente disse que você era "revigorante"?
- No início da conversa, comentei que o novo prédio que estão fazendo em alguma avenida... a notícia saiu no New York Times... não era tão perfeito assim, e ele não deveria ter dado os parabéns ao idiota
do arquiteto na televisão. A coisa parece uma mistura de neoclássico e art deco, uma combinação que não funciona. Além do mais, o que pode um presidente saber sobre custos de metro quadrado de construção,
que podem ficar em um terço do que foi projetado? Lang prometeu examinar o caso.
- Merda! - repetiu Evan, com desânimo na voz.
- Voltemos ao que estou querendo dizer. - O rosto de Weingrass tornou-se subitamente muito sério ao fitar Kendrick, e houve uma pausa prolongada em que ele respirou fundo várias vezes. - Talvez você já
tenha feito o suficiente, talvez devesse ir embora e viver feliz para sempre com minha filha árabe aqui presente, ganhando muito dinheiro. Já conquistou o respeito do país, até mesmo do mundo. Mas talvez
você deva também pensar. Pode fazer o que não muitos outros têm condições de fazer. Em vez de agir depois das pessoas podres, quando já terá havido muita corrupção e perda de vidas, talvez possa impedi-las
antes que comecem seu jogo sujo... pelo menos algumas, talvez mais do que algumas... do alto da montanha. Tudo o que lhe peço é que escute Jennings. Ouça o que ele tem a lhe dizer.
Os olhos de ambos se encontraram, pai e filho se reconhecendo um ao outro no nível mais profundo do relacionamento.
- Ligarei para ele e pedirei uma reunião, está bem?
- Isso não é necessário - respondeu Manny. - Já está tudo acertado.
- Como?
- Ele estará amanhã em Los Angeles, no Century Plaza, para um jantar de levantamento de fundos para bolsas de estudo em homenagem ao falecido secretário de Estado. Reservou algum tempo antes disso e o
espera no hotel às sete horas. E você também, minha cara; ele exige a sua presença.
Os dois agentes do Serviço Secreto no corredor, diante da suíte presidencial, reconheceram o deputado ao vê-lo. Acenaram com a cabeça para ele e Khalehla, o homem da direita virou-se e apertou a campainha.
Momentos depois Langford Jennings abriu a porta, o rosto pálido e abatido, com olheiras de exaustão. Fez uma breve tentativa de exibir o famoso sorriso, mas não foi capaz de mantê-lo. Em vez disso, limitou-se
a sorrir brevemente e estendeu a mão.
- Olá, senhorita Rashad. É um prazer e um privilégio conhecê-la. Entrem, por favor.
- Obrigada, senhor presidente.
- É um prazer tornar a vê-lo, Evan.
- É bom vê-lo, senhor - disse Kendrick, pensando enquanto entrava que Jennings parecia mais velho do que em qualquer outra ocasião anterior.
- Sentem-se, por favor.
O presidente precedeu os convidados, levando-os ao living da suíte, na direção de dois sofás frente a frente, uma mesinha redonda com tampo de vidro no meio.
- Por favor - ele disse, gesticulando para o sofá à direita, enquanto se encaminhava para o da esquerda. - Gosto de olhar pessoas atraentes. Suponho que meus detratores diriam que é outro sinal da minha
superficialidade, mas Harry Truman comentou certa ocasião: "Prefiro olhar a cabeça de um cavalo, em vez do rabo." É o meu caso... Perdoe-me a linguagem, minha jovem.
- Não ouvi nada que precisasse perdoar, senhor.
- Como está Manny?
- Ele não pode vencer, mas não desistirá da luta - respondeu Evan. - Soube que o visitou há algumas semanas.
- Acha que foi errado da minha parte?
- Claro que não, mas foi errado da parte dele não me contar.
- A ideia foi minha. Eu queria nos dar, a você e a mim, tempo para pensar. No meu caso, precisava também saber mais a seu respeito, mais do que estava escrito em várias centenas de páginas de jargão governamental.
Por isso fui à fonte que fazia sentido para mim. E sugeri que ele nada comentasse até ontem. Peço desculpas.
- Não há necessidade, senhor.
- Weingrass é um homem de coragem. Sabe que está morrendo... seu diagnóstico é errado, mas ele sabe que está morrendo... e finge tratar a morte iminente como uma estatística numa proposta de construção.
Não espero chegar aos 81 anos, mas se isso acontecer gostaria que fosse com a coragem que ele possui.
- Oitenta e seis - disse Kendrick. - Também pensei que ele estava com 81, mas descobrimos ontem que tem 86 anos.
Langford Jennings olhou duro para Kendrick e depois, como se o deputado tivesse acabado de contar uma piada muito engraçada, recostou-se no sofá, o pescoço arqueado, e riu, placidamente mas com satisfação.
- O que é tão engraçado? - perguntou Kendrick. - Eu o conheço há vinte anos e ele nunca declarou a verdade sobre quantos anos tinha, nem mesmo nos passaportes.
- Combina com uma coisa que ele me disse - explicou o presidente, falando através do riso a se desvanecer. - Não vou aborrecê-los com detalhes, mas ele me destacou uma coisa... e estava absolutamente certo...
Por isso lhe ofereci um cargo. E ele respondeu: "Desculpe, Lang, mas não posso aceitar. Não poderia sobrecarregá-lo com meu enxerto."
- Ele é uma peça original, senhor presidente - comentou Khalehla.
- E quebraram o molde depois... - A expressão de Jennings tornou-se séria, ele fitou Rashad. - Seu tio Mitch manda lembranças.
- Como?
- Payton saiu daqui há uma hora. Infelizmente, teve de voltar a Washington, mas conversamos ontem e ele insistiu em voar até aqui para me ver, antes do encontro com o deputado Kendrick.
- Por quê? - indagou Evan, perturbado.
- Ele me contou finalmente toda a história de Inver Brass. Isto é, nem tudo, é claro, porque não sabemos de tudo. Com Winters e Varak mortos, provavelmente nunca saberemos quem forneceu o arquivo de Oman,
mas isso não tem importância agora. Inver Brass acabou.
- Ele não tinha contato antes?
Kendrick estava atônito, mas lembrou-se do comentário de Ahmat, de que não tinha certeza se Jennings sabia de tudo o que Payton lhe contara.
- Ele foi franco a respeito, apresentando seu pedido de demissão, que prontamente rejeitei... Disse que se eu conhecesse toda a história, talvez acabasse com o movimento para tornar você meu companheiro
de chapa. Não sei, mas é bem possível. Com toda certeza, eu ficaria furioso. Mas isso agora é irrelevante. Descobri o que queria saber e você não apenas já deu a partida, deputado, como tem um lugar garantido
na chapa nacional.
- Senhor presidente - protestou Evan -, é uma manobra artificial...
- O que Sam Winters pensou que estava fazendo? - interrompeu Jennings, não deixando Kendrick continuar. - Não me importa que os seus motivos fossem os mais puros. Winters esqueceu uma lição da história
que justamente ele, acima de todos os outros, deveria lembrar. Sempre que um grupo seleto de elitistas benevolentes se considera acima da vontade do povo e se põe a manipular essa vontade em segredo, sem
responsabilidade, aciona uma engrenagem das mais perigosas. Porque basta que um ou dois desses seres superiores com ideias diferentes e não tão puras convençam, substituam ou sobrevivam aos outros, para
liquidar uma república. A pretensiosa Inver Brass de Sam Winters não era melhor do que a tribo de bandidos de Bollinger. As duas organizações queriam que as coisas fossem feitas de uma maneira determinada...
a sua maneira.
Evan inclinou-se para a frente.
- É exatamente por esses motivos...
A campainha da suíte presidencial soou, quatro toque curtos, cada um com apenas meio segundo. Jennings levantou a mão e olhou para Khalehla.
- Vai gostar de saber disso, senhorita Rashad. O que acabou de ouvir é um código.
- Um o quê?
- Não é dos mais sofisticados, mas funciona. Diz quem está na porta e o "quem" neste caso é um dos mais valiosos assessores da Casa Branca... Entre!
A porta foi aberta e Gerald Bryce entrou, fechando-a depois de passar.
- Lamento interrompê-lo, senhor presidente, mas acabei de receber o aviso de Beijing e sabia que gostaria de ser informado imediatamente.
- Pode esperar, Gerry. Deixe-me apresentá-lo...
- Joe...?
O nome escapuliu da boca de Kendrick à lembrança de um jato militar para a Sardenha, um jovem e bonito especialista do Departamento de Estado entrando em foco.
- Olá, deputado - disse Bryce, aproximando-se do sofá e apertando a mão de Evan, enquanto acenava com a cabeça para Khalehla. - Senhorita Rashad.
- É isso mesmo - interveio Jennings. - Gerry me contou que lhe passou as instruções no avião em que você voou para Oman... Não farei elogios na sua presença, mas Mitch Payton roubou-o de Frank Swann no
Departamento de Estado e eu o roubei de Mitch. Ele é absolutamente sensacional em matéria de comunicações por computador e de como mantê-las secretas. Se alguém puder conter as secretárias, ele terá um
grande futuro.
- Está sendo embaraçosamente generoso, senhor - disse Bryce, o eficiente profissional. - Quanto a Beijing, senhor presidente, a resposta dele é afirmativa. Devo confirmar sua oferta?
- Esse é outro código - explicou Jennings, sorrindo. - Eu disse que pressionaria nossos principais banqueiros para não se tornarem gananciosos demais em Hong Kong e dificultarem as coisas para os bancos
chineses quando ocorrer a transição em 97. É claro que, em troca...
- Senhor presidente! - interrompeu Bryce, com a devida cortesia, mas não sem um tom de cautela.
- Oh, desculpe, Gerry, sei que é ultrassecreto, apenas para os especialistas e todas essas coisas, mas espero que muito em breve nada seja oculto do deputado.
- Por falar nisso, senhor - disse o perito em comunicações da Casa Branca, olhando para Kendrick com um breve sorriso -, na ausência da sua assessoria política aqui em Washington aprovei a declaração de
desistência para se reeleger que o vice-presidente Bollinger fará esta noite. Está de acordo com o seu pensamento.
- Você quer dizer que ele vai dar um tiro na cabeça diante das câmeras de televisão?
- Não chega a isso, senhor presidente. Mas ele diz que tenciona dedicar sua vida a melhorar a sorte dos famintos do mundo.
- Se eu descobrir o filho da mãe roubando uma barra de chocolate, ele passará o resto da vida em Leavenworth.
- Beijing, senhor. Devo enviar a confirmação?
- Claro que sim, e acrescente meus agradecimentos aos ladrões.
Bryce acenou com a cabeça para Kendrick e Khalehla e se retirou, fechando a porta.
- Onde estávamos? - indagou Jennings.
- Inver Brass - respondeu Evan. - Eles me criaram e artificialmente me impingiram ao público como alguém que não sou. Nessas condições, minha indicação não poderia ser considerada a vontade do povo. É
uma farsa.
- Você é uma farsa? - perguntou Jennings.
- Sabe do que estou falando. Eu não procurei e não queria isso. Como tão bem o senhor ressaltou, fui manipulado para a disputa e empurrado pela goela de todos. Não venci nem mereci vencer no processo político.
Langford Jennings estudou Kendrick; seu silêncio era ao mesmo tempo pensativo e tenso.
- Está enganado, Evan - disse o presidente por fim. - Você venceu e mereceu. Não estou falando sobre Oman e Bahrain, nem mesmo sobre o Iêmen do Sul... Tais eventos foram apenas atos de coragem pessoal
e de sacrifício, aproveitados para atrair as atenções sobre você. Não é diferente de um homem que foi herói de guerra ou astronauta, e é um trampolim perfeitamente legítimo para projetá-lo. Tenho objeções
à maneira como isso foi feito, tanto quanto você, porque foi feito secretamente e por homens que violaram leis e inconscientemente desperdiçaram vidas, que se esconderam por trás de uma cortina de influência.
Mas não foi você quem fez isso, eles não eram você... Venceu porque disse coisas que precisavam ser ditas e o país escutou. Ninguém inventou aqueles aparecimentos na televisão e ninguém pôs as palavras
na sua boca. E o que fez nos bastidores, naquelas audiências fechadas de informações, deixou muita gente pensando. Formulou perguntas para as quais não havia respostas legítimas, e uma porção de burocratas
que costumavam impor sua vontade ainda não sabem o que os atingiu, exceto que seria melhor revisarem seus atos. Por último, o que diz respeito diretamente a mim, Lang Jennings, de Idaho. Salvou a nação
dos contribuintes mais fervorosos da minha campanha... verdadeiros fanáticos. Teriam nos levado por um caminho em que prefiro nem pensar.
- Acabaria descobrindo por si mesmo. Em algum momento, em algum lugar, um deles o pressionaria longe demais, e o senhor reagiria e descobriria todos os outros. Vi um homem tentar pressioná-lo no Gabinete
Oval e descobrir que uma árvore estava prestes a cair em cima dele.
- Ah, Herb Dennison e a história da Medalha da Liberdade. - O famoso sorriso do presidente aflorou por um instante. - Herb era duro, mas inofensivo, contudo fazia muitas coisas que eu não gosto de fazer.
Ele já saiu; o Gabinete Oval foi demais para ele. Recebeu um chamado de uma daquelas velhas firmas de Wall Street, do tipo em que todos são sócios de algum clube exclusivo em que ninguém pode entrar e
você e eu não gostaríamos de frequentar, por isso voltou para a turma do dinheiro. Herb finalmente conquistou as divisas de coronel que sempre desejou.
- Como? - murmurou Kendrick.
- Nada, nada. Esqueça. Segurança nacional, segredo de Estado e todas essas coisas.
- Pois então permita que eu deixe bem claro o que ambos sabemos, senhor presidente. Não estou qualificado.
- Qualificado? E quem você pensa que está qualificado para o meu cargo? Ninguém, absolutamente ninguém!
- Não estou falando sobre o seu cargo...
- Poderia estar - interrompeu Jennings.
- Nesse caso, encontro-me a anos-luz de estar pronto. E nunca ficaria.
- Já está.
- Como?
- Preste muita atenção, Evan. Não costumo enganar a mim mesmo. Sei muito bem que não tenho a imaginação nem a capacidade intelectual de um Jefferson, os dois Adams, um Madison, um Lincoln, um Wilson, um
Hoover... isso mesmo, eu disse Hoover, aquele homem brilhante e tão denegrido... ou um FDR, um Truman, um Nixon... isso mesmo, Nixon, cujo defeito era no caráter, não na visão geopolítica... ou um Kennedy,
até mesmo o brilhante Carter, que tinha células demais no cérebro para o seu bem político. Nós entramos agora numa era diferente. Esqueça Aquarius e ponha Telerius... a era da televisão plenamente desenvolvida,
da comunicação imediata, instantânea. O que tenho é a confiança do povo, porque ele vê e ouve o homem. Vi um país se espojar na autocompaixão e derrota e fiquei furioso. Churchill disse uma vez que a democracia
pode ter muitos defeitos, mas é o melhor sistema que o homem já inventou. Acredito nisso e acredito em todos aqueles clichês sobre a América ser a maior, a mais forte e a mais benevolente nação do mundo.
Chamam-me de Senhor Simplista, mas eu acredito. É isso que as pessoas veem e ouvem, e não estamos pior por isso... Todos reconhecemos nossos reflexos nos outros e eu o observei, ouvi, li tudo que havia
a seu respeito e conversei longamente com meu amigo Emmanuel Weingrass. Em meu julgamento muito cético, esse é o cargo que você deve assumir... quer queira ou não.
- Senhor presidente, agradeço tudo o que tem feito pela nação, mas, com toda a sinceridade, há divergências entre nós. Tem defendido certas políticas que eu não poderia apoiar.
- E não estou lhe pedindo!... Claro que, na superfície, eu agradeceria se ficasse de boca fechada até discutir os problemas comigo. Confio em você, Evan, e não vou me fechar. Convença-me. Diga-me onde
estou errado, sem medo ou favor, é isso o que este cargo precisa! Posso me deixar levar em algumas coisas e sei que devo ser contido. Pergunte à minha mulher. Depois da última entrevista coletiva, há dois
meses, subi para a nossa cozinha na Casa Branca e acho que esperava receber os parabéns. Em vez disso, fui recebido com "Quem você pensa que é? Luís XIV com seus decretos reais? Fez tanto sentido quanto
o Coelho Pernalonga!" E minha filha, que nos visitava, comentou que me daria uma gramática como presente de aniversário... Conheço minhas limitações, Evan, mas também conheço o que posso fazer quando conto
com as melhores pessoas para me assessorar. Você nos livrou do lixo. Agora ocupe o lugar que ficou vago.
- Repito, não estou preparado.
- As pessoas acham que está, eu acho que está. É por isso que a indicação para a chapa é sua. Não se engane: pode ter sido forçado a entrar na chapa, mas a recusa seria uma afronta a milhões de eleitores,
o pessoal de RP deixou isso bem claro.
- RP? Relações Públicas? Isso é tudo?
- Muito mais do que qualquer de nós gostaria, mas é, sim, uma grande parte de tudo o que existe hoje em dia. Dizer o contrário seria negar a realidade. E é melhor pessoas como você e eu do que um Gêngis
Khan ou um Adolf Hitler. Por trás de nossas divergências, queremos salvar, não destruir.
Foi a vez de Kendrick estudar o presidente dos Estados Unidos.
- Por Deus, consegue enfeitiçar qualquer um!
- É o instrumento do meu ofício, senhor vice-presidente - disse Jennings, sorrindo. - Isso e umas poucas convicções mantidas com honestidade.
- Não sei, simplesmente não sei...
- Pois eu sei - interveio Khalehla, pegando a mão de Kendrick. - Acho que a agente Rashad deve mesmo pedir demissão.
- E mais uma coisa - declarou o presidente Langford Jennings, franzindo as sobrancelhas. - Vocês devem casar. Seria inadmissível meu companheiro de chapa viver em pecado. Podem imaginar o que fariam todos
aqueles evangélicos com tantos votos se o seu estado atual fosse revelado? Não pode ser parte da minha imagem.
- Dá licença, senhor presidente?
- O que é, senhor vice-presidente?
- Cale-se.
- Com todo prazer, senhor. Mas devo acrescentar uma nota de esclarecimento para o registro... e pelo amor de Deus, não conte à minha mulher que eu falei. Depois do divórcio de ambos, vivemos juntos por
doze anos e tivemos dois filhos. Amarramos o nó proverbial no México três semanas antes da convenção e pré-datamos o casamento. E não se esqueça de que isso é realmente um segredo de Estado.
- Jamais contarei, senhor presidente.
- Sei disso. Confio em você, preciso de você. E nossa nação será melhor por nós dois... bem possivelmente por sua causa.
- Duvido muito, senhor - disse Evan Kendrick.
- Eu não... senhor presidente.
A campainha da suíte presidencial tocou mais uma vez. Quatro toques curtos, de meio segundo.
[1] Bolacha em forma de rosca. Pronuncia-se bêiguel. (N. do T.)
[2] Iídiche: significa "gente". (N. do T.)
[3] Iídiche: sinagoga. (N. do T.)
[4] Iídiche: grande sabichão! (N. do T.)
[5] Iídiche: maluco! (N. do T.)
[6] Iídiche: vovozinha. (N. do T.)
[7] Iídiche: larápio. (N. do T.)
[8] Iídiche: mentecapta. (N. do T.)
[9] Hebraico: adepto de um Movimento de natureza religiosa e social. (N. do T.)
[10] Iídiche: passarinho. Pronuncia-se fêiguele. (N. do T.)
[11] Iídiche: gentia. (N. do T.)
Robert Ludlum
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