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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A AGUIA DE SANGUE / Simon Scarrow
A AGUIA DE SANGUE / Simon Scarrow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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- Ainda falta muito para o campo? - Perguntou o grego, voltando a espreitar sobre o ombro. - Vamos conseguir lá chegar antes que escureça?
Antes de responder, o decurião que comandava a pequena escolta montada cuspiu uma semente da maçã que roía, e engoliu a polpa ácida.
- Vamos. Não se preocupe, senhor. Mais uns oito ou nove quilómetros, acho eu, e estamos lá.
- Não podemos ir um bocado mais depressa?
O homem ainda olhava por cima do ombro, e o decurião não conseguiu resistir à tentação de espreitar também para o caminho que já tinham percorrido. Mas não havia nada para ver. Lá atrás, a estrada estava vazia, pelo menos até ao ponto em que passava entre duas colinas densamente arborizadas, cuja imagem tremeluzia por causa do calor. Eram os únicos viajantes a percorrê-la, e assim fora desde que tinham deixado o posto avançado, por volta do meio-dia. Desde essa altura que o decurião, os dez homens da escolta montada que comandava e o grego com os seus dois guarda-costas pessoais seguiam pelo caminho que levava ao enorme acampamento do general Pláucio. Nele se concentravam três legiões e uma dúzia de unidades auxiliares, com o objectivo de desferir um golpe decisivo no exército dos bretões, comandado por Carátaco, e que agrupava membros das já poucas tribos que ainda enfrentavam abertamente Roma.
Que assunto teria aquele grego a discutir com o general? Esta pergunta despertava no decurião uma insaciável curiosidade. Assim que o dia nascera, tinha recebido ordens do prefeito da coorte de cavalaria para escolher os melhores homens do seu esquadrão e escoltar o grego até à presença do general. Fizera aquilo que lhe tinha sido ordenado, sem levantar qualquer questão. Mas agora, enquanto observava dissimuladamente o grego, estava curioso.
O homem cheirava a dinheiro e vida refinada, embora envergasse apenas uma túnica vermelha e uma capa leve, ambas sem enfeites. As unhas estavam muito bem cuidadas, reparou o decurião, não escondendo o desprezo que tal facto lhe provocava; do esparso cabelo escuro e da barba soltava-se um aroma que denunciava o uso de um creme dispendioso. As mãos não ostentavam qualquer peça de joalharia, mas as marcas esbranquiçadas visíveis nos dedos revelavam que ao grego não era estranho o uso de anéis, que seriam provavelmente do género vistoso. Com um torcer de lábios, o decurião identificou-o como sendo um daqueles libertos que tinham furado e intrigado até se estabelecerem no coração da burocracia imperial. O facto de agora se encontrar na Britânia, e de tentar tão obviamente passar despercebido, só podia significar que estava a desempenhar uma missão de grande importância, e que provavelmente transportava alguma mensagem para o general, do género que não convinha confiar ao sistema de correios imperiais.

 

 

 

 

 

 

O decurião passou a dirigir a sua atenção subrreptícia para os dois guarda-costas que cavalgavam imediatamente atrás do grego. Tal como ele, vestiam-se de forma simples e despretensiosa, mas por baixo das capas levavam espadas curtas, presas em cintos de aspecto militar. Não eram com certeza ex-gladiadores, como os guarda-costas que os mais ricos homens de Roma preferiam empregar. As espadas e a forma como se comportavam denunciavam-nos claramente, e o decurião já tinha compreendido a sua origem: guardas pretorianos, a tentar - e a falhar - passar despercebidos. Eram também a prova conclusiva de que o grego se encontrava numa missão para o palácio.
O funcionário imperial voltou a olhar para trás.
- Sente a falta de alguém? - Quis saber o decurião.
O grego olhou em volta, e depois suprimiu a expressão de ansiedade que exibira momentos antes, mostrando um breve sorriso.
- Sim, não os vejo, mas também não fazem cá falta nenhuma.
- Alguém sobre quem eu deveria ter sido informado?
O homem fitou-o durante alguns instantes, e depois voltou a sorrir.
- Não.
O decurião ficou à espera que o outro desenvolvesse a resposta, mas o grego deu por terminada a conversa, e olhou em frente. Dando mais uma dentada na maçã, o decurião
encolheu os ombros e deixou que a vista se espraiasse pela paisagem em redor. A sul, o curso superior do Tamisa ondulava por entre colinas. Bosques primevos ocupavam
as cristas das elevações, enquanto nas encostas se podiam ver os pequenos povoados e quintas dos dobunios - uma das primeiras tribos a prestar tributo a Roma quando
as legiões tinham desembarcado na ilha, há mais de um ano atrás.
Seria um belo local para passar os anos da velhice, matutou o decurião. Depois de servir os seus vinte e cinco anos, ser-lhe-ia concedida a cidadania romana e um
pequeno prémio, que usaria para adquirir uma pequena quinta numa colónia de veteranos, onde poderia passar em paz os últimos anos da vida. Talvez até se casasse
com aquela nativa que conhecera em Camaloduno. Criaria alguns cachopos, e beberia até cair para o lado.
A sua veia sonhadora foi abruptamente interrompida quando o grego fez estacar a montada e se pôs a perscrutar a estrada que tinham acabado de percorrer, os olhos
castanhos semicerrados sob as sobrancelhas franzidas. Lançando uma imprecação silenciosa, o decurião pôs o braço no ar, dando indicação à coluna para se deter; dirigiu-se
então ao seu nervoso protegido.
- O que se passa?
- Ali! - O grego apontou. - Olha para ali!
Sem grande vontade, o decurião torceu-se na sela, fazendo gemer o cabedal. A princípio nada viu; depois, à medida que o olhar acompanhava o declive da estrada até
ao topo da colina, apercebeu-se das escuras silhuetas dos cavaleiros que abandonavam a sombra do arvoredo. Depressa ficaram bem à vista, sob o Sol, galopando velozmente
em direcção ao grupo.
- Porra, quem são aqueles tipos? - Indagou.
- Não faço ideia - retorquiu o grego - mas parece-me que sei bem quem os enviou e ao que vêm.
O decurião lançou-lhe um olhar irritado.
- Hostis?
- Muito.
O oficial avaliou os perseguidores com um olhar experimentado: encontravam-se a bem mais de um quilómetro e meio e eram oito, deitados sobre as montadas, com longas
capas castanhas e negras que flutuavam ao vento enquanto os homens incitavam os cavalos. Oito contra treze - sem contar com o grego. Boas probabilidades, reflectiu
o decurião.
- Já vimos o suficiente. - O grego virou as costas aos cavaleiros distantes e cravou os calcanhares no flanco do cavalo. - Vamos.
- Em frente! - Depois de ouvir a ordem emitida pelo decurião, a escolta lançou-se a galope atrás do grego e dos seus guarda-costas.
O decurião estava furioso. Não havia nenhuma necessidade de se lançarem naquela galopada. A vantagem era sua, podiam muito bem manter os cavalos frescos e esperar
que os perseguidores cansassem os deles ao tentarem aproximar-se. Depois, o combate seria rápido. Por outro lado, podia acontecer que um dos atacantes, num golpe
de sorte, conseguisse atingir o grego. As ordens do prefeito tinham sido bem explícitas; nada
podia acontecer àquele homem. A sua vida tinha que ser protegida a qualquer preço. Assim sendo, por estúpido que fosse, o melhor a fazer era mesmo evitar qualquer
problema, admitiu o decurião. Tinham quase dois quilómetros de avanço, e com certeza alcançariam o campo do general muito antes de os perseguidores conseguirem reduzir
a distância que os separava a ponto de lançarem um ataque efectivo.
Quando voltou a olhar sobre o ombro, o oficial ficou surpreso ao verificar que essa distância tinha diminuído de forma acentuada. As montadas dos perseguidores deviam
ser de excepcional qualidade, concluiu. O seu cavalo, e os dos seus homens, eram dos melhores ao dispor da coorte, mas os que se aproximavam eram claramente de outra
categoria. E além disso, os perseguidores deviam ser extraordinários cavaleiros, capazes de extrair o máximo dos animais que montavam.
Pela primeira vez, o decurião sentiu a dúvida a aguilhoá-lo. Os que lá vinham não eram por certo meros assaltantes de estrada. E também não eram nativos, a julgar
pelos cabelos e tons de pele morenos, e pelas túnicas e capas que envergavam. Além disso, os celtas tendiam a atacar os romanos somente quando tinham pelo seu lado
uma esmagadora superioridade numérica. Por outro lado, o grego parecia saber quem eles eram. Mesmo dando o desconto à cobardia típica da sua raça, não havia como
desmentir o terror que o homem sentia. Ia aos pulos em cima do cavalo, mal sentado e num equilíbrio sempre precário, mesmo à frente do decurião, enquanto dos dois
lados os seus guarda-costas cavalgavam com estilo e confiança. Os lábios do oficial torceram-se num trejeito de desprezo, enquanto rangia os dentes. O homem podia
dar-se muito bem nos corredores do palácio, mas não tinha jeito para cavaleiro.
Não demorou muito a ocorrer o inevitável. Com um grito estridente, o grego deixou-se descair em demasia para um dos lados e, apesar de um puxão desesperado nas rédeas,
o ímpeto forçou-o a cair da sela. Lançando Uma imprecação, o decurião desviou o cavalo para o lado, mesmo a tempo de evitar o homem no solo.
- Alto!
Com um coro de pragas dos homens e relinchos assustados dos cavalos, a escolta deteve-se ém redor do grego, tombado de costas sobre a poeira do caminho.
- Espero que o sacana não se tenha morto. - Vociferou o decurião, enquanto deslizava da sela. Os dois guarda-costas juntaram-se-lhe imediatamente, debruçando-se
sobre o homem cuja vida tinham por missão defender.
- Vivo? - Inquiriu um deles.
- Sim. Pelo menos respira.
Os olhos do grego entreabriram-se, mas logo se voltaram a cerrar devido ao brilho do Sol.
- O que... o que foi? - Perguntou, e desmaiou.
- Levantem-no! - Incitou o decurião. - Ponham-no no cavalo.
Os pretorianos içaram o homem e sentaram-no na sela, antes de
voltarem também a montar. Enquanto um o sustentava com uma mão firme no ombro, o outro empunhou as rédeas.
O decurião apontou para a estrada.
- Levem-no daqui para fora!
Enquanto os três homens seguiam a caminho da segurança do campo do general, o oficial saltou de novo para cima do cavalo e virou-se para os perseguidores.
Estavam já muito mais próximos, a não mais de trezentos passos, e começavam a adoptar uma formação em cunha, carregando sobre a escolta imobilizada. Dardos ligeiros
tinham sido retirados dos seus alforges e estavam já erguidos, prontos a serem lançados.
- Formem uma linha de combate! - Berrou o decurião.
Os homens acalmaram os cavalos e separaram-se, cobrindo toda a largura da estrada; prepararam-se para enfrentar os atacantes, cada um protegendo o corpo atrás do
escudo e usando a outra mão para apontar a sua lança directamente contra um dos cavaleiros que se aproximavam. O decurião lamentou não ter ordenado aos homens para
trazerem dardos pesados, mas tinha esperado apenas cumprir um passeio calmo até à guarnição do general, e nunca enfrentar um combate renhido. Assim sendo, teriam
que suportar uma chuva de dardos dos adversários antes de os terem ao alcance e poderem usar as armas de que dispunham.
- Atenção! - O decurião avisou os seus homens de que ia ordenar o ataque. - À minha ordem... Carregar!
Lançando gritos selvagens e impelindo freneticamente as montadas, os soldados da cavalaria auxiliar romana avançaram, ganhando velocidade e reduzindo rapidamente
a distância que separava as duas linhas.
Os cavaleiros inimigos não mostraram intenções de abrandar; pelo contrário, continuaram a progredir, decididos. Por momentos, o decurião esteve certo de que chocariam
uns contra os outros a toda a velocidade, e preparou-se para o impacto. O receio do embate propagou-se pela linha, que diminuiu a velocidade.
O decurião depressa recuperou o bom senso e gritou para os lados:
- Continuem! Mais depressa!
As expressões individuais dos atacantes já eram perceptíveis, e eram todas semelhantes: decididas, silenciosas, impiedosas. As túnicas e
capas a esvoaçar não revelavam nenhuma espécie de armadura sob elas, o que fez com que o decurião quase os lamentasse, dada a disparidade de equipamento de protecção.
No combate corpo a corpo não teriam grandes possibilidades de prevalecer contra os auxiliares, mesmo sendo as suas
montadas de melhor qualidade.
No último momento, e sem necessidade de ordens, os cavaleiros
inimigos mudaram de direcção, passando na perpendicular pela frente da carga dos romanos. Na mesma altura, os braços que empunhavam os dardos foram levados atrás.
- Cuidado! - Gritou um dos homens do decurião, quando os dardos iniciaram a sua trajectória, quase paralela ao solo, na direcção da escolta. Não se tratava de nenhum
arremesso desesperado - cada atacante tinha escolhido criteriosamente o seu alvo - e as pontas de ferro penetraram facilmente os peitos e flancos das montadas dos
auxiliares. Só um dos dardos tinha sido lançado contra um homem, colhendo-o no estômago, mesmo acima da sela. O decurião percebeu imediatamente que o ataque aos
cavalos fora deliberado. Alguns empinaram-se, tentando alcançar as feridas com os cascos, enquanto outros tombavam sobre os flancos, com grandes relinchos de terror.
Os cavaleiros viram-se forçados a abandonar a carga e a preocupar-se em manter o controlo sobre as suas montadas; dois deles foram projectados das selas e embateram
pesadamente no solo seco, de cabeça.
Mais dardos atravessaram o ar. O cavalo do decurião foi atingido no ombro direito, e sofreu uma convulsão. Por instinto, o oficial apertou as pernas contra a sela
e murmurou ao ouvido do animal, tentando acalmá-lo; o cavalo acabou por se imobilizar, a cabeça a oscilar e a espumar, espalhando partículas que a luz do Sol fazia
refulgir. Em redor, a escolta estava num caos, os animais feridos e os homens desmontados a tentarem desviar-se dos cavalos em pânico.
A curta distância, o inimigo tinha esgotado os dardos, e cada um dos atacantes tinha passado a empunhar uma espada de longa lâmina, igual à que era equipamento padrão
da cavalaria romana. Mas, entretanto, as possibilidades tinham sido invertidas, e agora era a escolta que enfrentava a destruição.
- Vão carregar! - Gritou uma voz aterrorizada, junto ao decurião. - Fujam!
- Não! Mantenham-se juntos! - Avisou o decurião, saltando do dorso do seu cavalo ferido. - Se se puserem a fugir, estão fodidos! Agrupem-se! Juntem -se a mim.
Era uma ordem inútil. Com metade dos homens a pé, muitos ainda tontos das quedas que tinham dado, e a outra metade a tentar controlar os
cavalos, organizar uma defesa era completamente impossível. Seria, portanto, cada um por si. O decurião deu alguns passos de forma a colocar-se numa área livre,
onde tivesse espaço para manejar a lança, e encarou os inimigos que se aproximavam a trote, as espadas erguidas com intuitos assassinos.
Nesse momento ouviu-se uma ordem em latim:
- Deixem-nos!
Os oito cavaleiros voltaram a embainhar as espadas e, puxando as rédeas, fizeram os seus animais rodear o que restava da escolta romana, para depois ganharem de
novo velocidade e se dirigirem para o distante campo das legiões.
- Porra! - Suspirou alguém, incapaz de disfarçar o alívio. - Foi por pouco. Julguei que iam dar cabo de nós em menos tempo do que leva a dizê-lo.
O decurião não podia estar mais de acordo, mas depressa as suas entranhas lhe deram sinal de que a ameaça não terminara.
- O grego... Eles querem o grego.
E iam com certeza apanhá-lo. Apesar do avanço que ele e os seus pretorianos levavam, o homem ainda não devia estar completamente refeito do trambolhão, e isso atrasá-los-ia;
seriam alcançados e mortos muito antes de atingirem a segurança do campo do exército do general Pláucio.
O decurião amaldiçoou o grego e a sua pouca sorte por ter sido encarregue da protecção de tal personagem. Agarrou as rédeas do cavalo do legionário ferido, que ainda
tentava arrancar o dardo que lhe trespassara o ventre.
- Desce daí!
Com a face distorcida pela agonia, o homem não deu sinal de ter escutado a ordem, pelo que o oficial o puxou para baixo e saltou para a sela. Ouviu-se um grito de
dor quando o corpo embateu no solo e a haste do dardo se quebrou.
- Todos os que tiverem um cavalo, sigam-me! - Gritou o decurião, fazendo rodar a montada e lançando-se atrás dos atacantes. - Sigam-me!
Encolheu-se por trás da crina do cavalo, a qual lhe chicoteou a face quando o animal se agitou, resfolegando e esperneando, mas acabando por obedecer às selváticas
ordens do seu novo cavaleiro. Este olhou em volta e contou quatro homens que se tinham separado da confusão e cavalgavam a seu lado. Cinco contra oito. As perspectivas
não eram muito animadoras. Mas pelo menos já não teriam que enfrentar dardos, e o escudo e a lança davam-lhes vantagem no confronto contra homens armados apenas
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de espadas. Assim, com o coração repleto do desejo de vingança contra aqueles desconhecidos, o decurião deu-lhes caça, enquanto o pensamento se centrava na necessidade
imperiosa de proteger o grego, precisamente o homem que tinha provocado aquela calamidade.
A estrada descia num declive suave, e ele avistou os inimigos, que cavalgavam uns trezentos passos adiante. Mais algumas centenas de metros à frente seguiam o grego
e os guarda-costas pretorianos, ainda a debaterem-se para tentarem manter o corpo inanimado em cima do cavalo.
- Vamos!-Gritou o decurião por cima do ombro.-Mantenham-se junto a mim!
Os três grupos de cavaleiros cruzaram o chão do vale e começaram a subir a encosta do outro lado. O cansaço dos cavalos dos atacantes começou a tornar-se aparente,
e a distância que os separava do decurião diminuiu. Entusiasmado perante o triunfo iminente, deu com os calcanhares no flanco da montada, gritando-lhe um encorajamento
ao ouvido:
- Força! Vá, rapariga! Mais um esforço!
O espaço que os separava estava já reduzido a metade quando os inimigos ultrapassaram a crista seguinte e, por momentos, ficaram escondidos. O decurião estava já
certo de que os alcançariam antes que eles apanhassem o grego e os seus pretorianos. Deu uma espreitadela ao que se passava atrás e ficou contente por ver os seus
homens muito próximos; não iria enfrentar o inimigo sozinho.
Quando a estrada voltou a descer, tornou-se possível avistar, a uns cinco quilómetros de distância, o gigantesco campo do exército do general Pláucio. Uma intrincada
grelha de minúsculas tendas ocupava o vasto espaço contido por baluartes e muralhas. Três legiões e várias coortes auxiliares, num total de cerca de vinte e cinco
mil homens, tinham-se ali reunido para localizar e avançar sobre o exército britânico comandado por Carátaco, numa tentativa de o destroçar por completo. O espectáculo
deslumbrou o decurião, mas o efeito depressa se perdeu quando reparou nos cavaleiros que subiam a estrada, carregando sobre ele. Não havia tempo para refrear a montada
e esperar pelos seus homens, pelo que o oficial levantou o escudo oval e baixou a ponta da lança, apontando-a ao centro do peito do adversário mais próximo.
No instante seguinte, estava rodeado pelos inimigos, e a ferocidade do impacto forçou-lhe o braço para trás, torcendo-lhe o ombro. O cabo da lança foi-lhe arrancado
das mãos, e ouviu o grunhido do homem que tinha atingido, ao passar pelo meio da confusão de capas e caudas de cavalos a esvoaçar. Uma espada atingiu-lhe o escudo,
resvalando na bossa e deslizando até o atingir na barriga da perna. Já do outro lado, livre de adversários, o decurião desembainhou a espada e puxou as rédeas. Ao
mesmo tempo,
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o som de gritos e de choques metálicos anunciou-lhe a entrada dos seus homens no combate.
Com a espada bem erguida, o decurião lançou-se para o coração da refrega. Os seus homens lutavam desesperadamente, numa proporção de um contra dois. Enquanto anulavam
um ataque, tornavam-se vulneráveis a outro, e quando o comandante se lhes juntou, já dois jaziam pelo solo, sangrando, perto do homem que o decurião derrubara.
Apercebeu-se de um movimento à sua esquerda e baixou a cabeça no instante em que o gume de uma espada lhe atingia a orla metálica do escudo. Puxou-o para o lado,
tentando arrancar a lâmina das mãos do adversário, enquanto ao mesmo tempo fazia a sua espada descrever um arco e se torcia para enfrentar o outro homem. A lâmina
faiscou no ar e os olhos do homem arregalaram-se ao perceber o perigo; dobrou-se todo para trás, o que fez com que a ponta da espada lhe rasgasse a túnica e se limitasse
a aflorar a pele.
- Merda! - Vociferou o decurião, dando com os calcanhares para fazer com que a sua montada avançasse e lhe permitisse desferir outro golpe no inimigo. O desejo de
matar fê-lo esquecer o perigo que surgia de outra direcção, e por isso nem chegou a ver o vulto desmontado que correu direito a si e lhe cravou a espada. Sentiu
o golpe, como se fosse um murro, mas quando se virou já o homem se tinha afastado, com a espada tingida de escarlate. O decurião compreendeu que o que dava cor à
lâmina era o seu sangue, mas não tinha tempo para verificar a gravidade da ferida. Um relance permitiu-lhe verificar que era o último dos auxiliares ainda em condições
de combater. Os seus homens estavam todos mortos ou moribundos, e as baixas inimigas reduziam-se a dois daqueles homens estranhos e calados, que combatiam como se
tivessem nascido apenas para esse fim.
Sentiu mãos a agarrarem-lhe o braço que empunhava o escudo, e no momento seguinte foi arrastado da sela e atirado para o chão rijo do caminho, sentindo o ar fugir-lhe
dos pulmões. Enquanto jazia de costas, sem fôlego e a olhar para o brilhante azul do céu, uma silhueta escura interpôs-se entre ele e o Sol. Soube que era o fim,
mas recusou-se a fechar os olhos.
Os lábios curvaram-se num desafio.
- Vá, filho da puta, acaba com isto de uma vez!
Mas nenhum golpe de misericórdia o atingiu. O outro voltourlhe as costas e desapareceu. Escutou a seguir sons de roupas a raspar em selas, cavalos a relinchar, cascos
a percutirem a terra e a afastarem-se rapidamente, deixando apenas os estranhamente serenos sons típicos de uma tarde de Verão. O monótono zumbir dos insectos só
era perturbado pelos gemidos de um homem que agonizava algures pela relva. O decurião estava atónito por ainda estar vivo, por o inimigo o ter poupado quando se
apresentava
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indefeso no solo. Lutou por respirar e soergueu-se até conseguir sentar-se.
Os seis cavaleiros sobreviventes tinham retomado a perseguição ao grego, e uma raiva amarga tomou conta do decurião. Tinha falhado. Apesar do sacrifício da escolta,
os estranhos iam ainda assim alcançar o grego, e até já conseguia imaginar a reprimenda e castigo que o esperavam quando regressasse com o que restava da escolta
ao aquartelamento da sua coorte.
Sentiu-se repentinamente tonto e com náuseas, e teve que apoiar uma mão no solo para se aguentar sem cair. Ao tacto, a terra pareceu-lhe molhada e pegajosa. Olhou
para baixo, e reparou então que estava sentado num charco de sangue. Com amargura, apercebeu-se de que era seu. E notou de novo a ferida que lhe rasgara a virilha.
O golpe tinha atingido uma artéria, e o sangue escuro jorrava sobre a relva em golfadas. Colocou imediatamente a mão a fazer pressão sobre o lanho, mas o fluxo quente
forçou a passagem, e escapou-se pelos espaços entre os dedos. Sentia frio, e um sorriso triste aflorou-lhe aos lábios, ao compreender que já não corria qualquer
risco de ser desancado pelo prefeito da coorte. Pelo menos, não naquela vida. O decurião ergueu o olhar e tentou focar a vista nas diminutas figuras do grego e dos
seus guarda-costas, que se afastavam velozmente na esperança de salvarem as vidas.
A situação difícil em que se encontravam já nada dizia ao decurião. Não passavam de sombras, quase imperceptíveis no limite dos sentidos que se lhe esvaíam. Caiu
de costas sobre a relva, e admirou o céu azul e límpido. Todos os ruídos da escaramuça tinham desaparecido; só se escutava já o som rotineiro dos insectos. O decurião
cerrou os olhos e deixou que o calor da tarde de Verão o engolisse, enquanto a sua consciência se apagava gradualmente.

II
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- Acorde! - O pretoriano sacudia os ombros do grego. - Narciso! Vá lá, homem!
- Estás a perder o teu tempo. - Disse-lhe o companheiro, do outro lado do vulto inanimado. - Este não acorda tão cedo.
Olharam para a escaramuça que se desenrolava a alguma distância no caminho, ao cimo da colina.
- Se o sacana não despertar, estamos feitos. Não me parece que os nossos ali atrás aguentem muito mais tempo.
- Pois não. - O outro homem esforçou a vista. - Aliás, aquilo já está despachado. Temos que nos pôr a andar.
O grego gemeu e levantou a cabeça, com uma expressão de dor.
- O que é... que se passa?
- Senhor, estamos em sarilhos. Temos que continuar, e depressa.
Narciso abanou a cabeça, tentando afastar a névoa que lhe toldava
a mente.
- Onde é que estão os outros?
- Mortos, senhor. Temos que partir.
Narciso anuiu, pegou nas rédeas e animou a sua montada. Esta deu um salto repentino quando o pretoriano a incitou com um leve toque da espada, e lançou-se a galope
pelo caminho.
- Calma aí! - Irritou-se o grego.
- Desculpe, senhor. Não temos tempo a perder.
- Olha lá! - Narciso virou-se para relembrar ao pretoriano com quem estava a falar. Mas nesse instante, a distância, viu como os seus atacantes liquidavam os últimos
elementos da escolta que o acompanhara e renovavam a perseguição.
- Pronto, já percebi. - Concedeu, em voz baixa. - Vamos embora.
Enquanto os três homens esporeavam os cavalos, Narciso dirigiu
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o olhar para o distante campo militar, e rezou para que algum dos homens que estavam de vigia estivesse suficientemente alerta para se aperceber da aproximação dos
dois grupos de cavaleiros, e desse o alarme. Se nenhum auxílio viesse do campo do general, podia não chegar la vivo. A miríade de reflexos que se avistava, vinda
das armas e couraças polidas, podia muito bem ser o tremeluzir das estrelas longínquas, já que parecia tão fria, distante
e inalcançável como elas.
Nas suas costas, a poucas centenas de metros, troavam os cascos das montadas dos perseguidores. Tinha a certeza de que não poderia esperar qualquer misericórdia
da parte daqueles homens. Fazer prisioneiros não estava nos seus planos. Eram assassinos, nada mais, e a sua missão era matar o secretário imperial antes que este
contactasse o general Áulio Pláucio. A questão que atormentava Narciso era saber quem os teria contratado. Se a situação se invertesse e um deles caísse nas suas
mãos, aproveitaria os especialistas que existiam entre o pessoal do general; sabia-os bem capazes de quebrarem a vontade do mais resoluto dos homens. Mas suspeitava
que, mesmo assim, a informação obtida pouca utilidade teria. Os seus inimigos, que eram os do Imperador, seu senhor, eram suficientemente astutos para terem contratado
os assassinos através de intermediários anónimos e facilmente dispensáveis.
A missão em que se tinha embrenhado era supostamente secreta. Tanto quanto sabia, só o próprio Imperador e uns poucos oficiais da absoluta confiança de Cláudio tinham
tido conhecimento de que o braço-direito do Imperador se deslocara à Britânia para se encontrar com o general Pláucio. A última vez que o encontrara fora há um ano
e, nessa altura, Narciso estava integrado no séquito imperial, quando Cláudio visitara as legiões mesmo a tempo de assistir à derrota do exército nativo às portas
de Camaloduno e de reclamar para si próprio a vitória e a glória que a acompanhava. O séquito era numeroso, milhares de pessoas, e nenhum luxo ou medida de segurança
tinha sido dispensada para satisfazer o Imperador e o seu homem de confiança. Mas desta vez a discrição era fundamental, e o secretário, viajando em segredo, sem
nenhum dos seus queridos adornos, tinha solicitado ao prefeito da Guarda Pretoriana que lhe cedesse os dois melhores homens da sua unidade de elite. E assim abandonara
o palácio, através de uma discreta saída nas traseiras, na companhia de Marcelo e Rufo.
Porém, de alguma forma, a notícia tinha-se tornado conhecida. Assim que saíra de Roma, Narciso não conseguira evitar a sensação de que alguém os vigiava e seguia.
A estrada que seguiam nunca ficava completamente vazia, havia sempre uma solitária e diminuta figura lá longe, no caminho que tinham já feito. É claro que essas
figuras (se não era sempre a mesma) podiam ser perfeitamente inocentes, mas Narciso vivia obcecado
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pelo receio dos seus inimigos. E isso levava-o a tomar todas as precauções que estavam ao seu alcance, o que lhe tinha permitido sobreviver no perigoso mundo do
palácio imperial mais tempo do que a maior parte dos seus antecessores. Um homem que jogava para as mais altas recompensas, como era o caso do secretário imperial,
tinha que possuir olhos nas costas, ver tudo o que se passava ao seu redor: todas as acções, todos os gestos, o simples inclinar da cabeça de um aristocrata quando
trocava sussurros com um par num banquete no palácio.
O que o fazia sempre pensar em Jano, o deus das duas faces, guardião de Roma, constantemente alerta aos perigos vindos de ambas as direcções. Trabalhar no palácio
imperial forçava um homem a exibir duas caras: a de um serviçal ansioso por agradar aos seus senhores, quer políticos quer sociais; e a de um implacável decisor,
disposto a esquecer todos os escrúpulos para levar a sua avante. Os seus verdadeiros pensamentos só podiam revelar-se quando confrontava homens que tinha feito condenar
à morte, e nessas alturas obtinha grande satisfação ao revelar-lhes o desprezo e raiva que tinha por eles.
Parecia, porém, que desta vez poderia ser ele o destinado ao extermínio. Embora a ideia da morte iminente o aterrorizasse, Narciso estava consumido pela necessidade
de saber quem, de entre as legiões de inimigos que coleccionara, teria planeado aquele ataque. Já tinham ocorrido duas tentativas, a primeira numa estalagem de Nórico,
quando algumas bebidas entornadas tinham dado origem a uma briga que depressa progredira para uma luta generalizada. Narciso e os seus guarda-costas observavam,
da segurança de um cubículo privado, quando uma faca voara através da sala, direita a ele. Marcelo apercebera-se do projéctil, e forçara-lhe a cabeça para baixo,
contra a tigela do guisado. No instante seguinte, a lâmina cravara-se na madeira por trás dele.
Na segunda ocasião, um grupo de cavaleiros surgira na estrada atrás deles, quando se aproximavam do porto de Gesoríaco. Para não correr qualquer risco, tinham imediatamente
lançado as montadas a galope mantendo-se fora do alcance do grupo perseguidor, e chegando ao porto com os cavalos estourados, levados ao limite da sua resistência.
O cais estava repleto de mercadorias; os abastecimentos para as legiões de Pláucio eram carregados em navios destinados à Britânia, enquanto os que tinham regressado
da ilha descarregavam os prisioneiros de guerra que se destinavam agora aos mercados de escravos do Império. Narciso reservou acomodações no primeiro navio que zarpava
para a Britânia. Quando a embarcação se afastava do caótico cais, Marcelo tinha-lhe tocado no braço e assinalado um grupo de oito homens que observavam em silêncio
a partida do navio. Sem dúvida os mesmos que agora os perseguiam.
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Narciso espreitou sobre o ombro e sofreu um choque, ao verificar como os outros se tinham aproximado velozmente. O campo, pelo contrário, parecia estar sempre à
mesma distância.
- Estão a apanhar-nos! - Gritou aos guarda-costas. - Façam
qualquer coisa!
Marcelo lançou um rápido olhar na direcção do companheiro; os
dois homens pareceram considerar a situação.
- Que dizes? - Lançou Rufo. - Salvamo-nos?
- Porque não? Raios me partam se vou morrer por um grego.
Encolheram-se por trás dos pescoços dos cavalos e incitaram-nos
com gritos ferozes.
Enquanto se afastavam, Narciso gritou em pânico:
- Não me abandonem! Não façam isso!
O secretário imperial cravou os calcanhares no flanco da montada, que acelerou e pouco a pouco se juntou às outras duas. O odor acre do cavalo suado enchia-lhe as
narinas, cada passada que o animal dava ameaçava lançá-lo para o solo que passava a uma velocidade aterradora, e Narciso cerrou os dentes, aterrorizado. Nunca na
sua vida se sentira tão assustado, e prometeu a si mesmo que nunca mais se poria em cima de uma daquelas bestas. A partir daquele momento, nunca mais viajaria em
nada que não fosse tão confortável ou lento como uma liteira. Quando finalmente alcançou os guarda-costas, Marcelo piscou-lhe o olho.
- Às vezes é preciso espicaçar as pessoas, senhor... Estamos quase
lá!
Os três prosseguiram a grande velocidade, com o vento a rugir-lhes aos ouvidos, mas de cada vez que Narciso ou um dos guarda-costas deitava uma olhadela ao que se
passava lá atrás, os atacantes estavam mais perto. À medida que se aproximavam do campo, os cavalos tanto de perseguidos como de perseguidores começaram a mostrar
sinais de exaustão, e os cavaleiros notavam os movimentos espasmódicos do peito dos animais, que lutavam para manter o fôlego. O galope alucinante transformou-se
numa cavalgada de ritmo errático, à medida que, de forma cada vez mais selvagem, os homens tentavam extrair das montadas as últimas gotas de esforço.
Quando a estrada passou por outro ponto elevado, Narciso apercebeu-se de que estariam a pouco mais de três quilómetros do campo, e de que havia numerosos grupos
de homens no exterior do mesmo, a treinar ou a recolher abastecimentos. Seguramente que alguém já se teria apercebido da aproximação dos dois grupos de cavaleiros.
Naquele momento o alarme já devia ter sido dado, e devia estar a ser preparada uma força para proceder a uma investigação do assunto. Mas o que os três homens avistavam
era uma cena imperturbável e repleta de serenidade, enquanto
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continuavam a esporear as suas montadas exauridas. E a sua vantagem sobre os perseguidores diminuía sempre, com tenebrosa regularidade.
- Foda-se, estes tipos devem ser cegos! - Gritou Rufo, furioso, enquanto agitava o braço no ar. - Aqui, seus sacanas cus-de-chumbo! Olhem para aqui!
A estrada voltava a mergulhar na direcção de um riacho que banhava a orla de um bosque de carvalhos antigos. A tranquila superfície da água como que explodiu quando
Narciso e os seus guarda-costas atravessaram o vau e saíram na outra margem, reluzentes com a água que os cobria. Os perseguidores não estavam a mais de duzentos
passos quando as presas começaram a percorrer o trilho que passava pelo meio dos carvalhos. O caminho estava bem marcado pela passagem de vagões, e por isso foram
forçados a seguir pela beira, tentando impedir que algum cavalo partisse uma pata. O mato ali existente não deixou de cobrar o seu preço, rasgando as vestes e arranhando
a carne de Narciso, que cavalgava furiosamente, de cabeça baixa, para evitar ser atingido por algum ramo que se projectasse sobre a estrada. À distância ouviu-se
o som de um chapinhar violento, sinal de que os perseguidores atravessavam o ribeiro.
- Estamos quase! - Berrou Marcelo. - Continuem!
O caminho serpenteava entre as árvores, e a luz do Sol salpicava o solo nos locais em que conseguia atravessar o dossel verde que cobria os três cavaleiros. Então
o horizonte voltou a alargar-se, quando emergiram do bosque e avistaram à distância o torreão que protegia a entrada do forte. Narciso sentiu um novo ânimo, ao aperceber-se
de que, afinal, a salvação era possível.
A pingar água e suor, os cavalos galopavam agora pela estrada batida pelo Sol.
- Vocês aí! - Chamou uma voz. - Alto! Alto!
Narciso avistou um grupo de homens que descansava à sombra, na orla do bosque. Em redor viam-se pilhas de lenha recém-cortada, e animais de carga que pastavam calmamente.
As lanças dos homens estavam ensarilhadas e prontas a serem empunhadas, tal como os escudos, apoiados nas bases curvas e preparados para o uso imediato.
Marcelo torceu as rédeas selvaticamente, e o cavalo respondeu, dirigindo-se ao destacamento de legionários. Inspirou profundamente, e depois lançou um apelo:
- Às armas! Às armas!
Os homens reagiram de imediato, pondo-se de pé e correndo para as armas, enquanto os três cavaleiros se aproximavam. O optio que comandava o destacamento adiantou-se,
empunhando a espada de forma defensiva.
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- Olha là, pá, por quem te tomas?
Os cavaleiros não refrearam as montadas antes de se verem no meio dos legionários. Marcelo deixou-se escorregar pela garupa do cavalo e apontou firmemente na direcção
da estrada.
- Vêm atrás de nós! Têm que os deter!
- Quem é que vem atrás de vocês? - Inquiriu o optio, irritado.
- Do que é que estás a falar?
- Estamos a ser perseguidos. Querem liquidar-nos.
- Não fazes sentido nenhum! Acalma-te lá, homem. Explica-te.
Quem são vocês?
Com um dedo, Marcelo apontou Narciso, ainda dobrado sobre a
sela, a tentar recuperar o fôlego.
- Enviado especial do Imperador. Fomos atacados. A escolta foi completamente dizimada. Estavam mesmo nas nossas costas.
- Quem? - Voltou o optio a perguntar.
- Não faço ideia. - Admitiu Marcelo. - Mas vão chegar aqui a qualquer momento. Forma os teus homens!
O optio lançou-lhe um olhar de suspeita, mas depois deu ordem aos homens para formarem. A maior parte deles já se tinha armado, e rapidamente ocuparam os lugares
habituais, dardo numa mão e escudo noutra. Os olhos de todos estavam postos na abertura entre as árvores por onde emergia a estrada, abandonando as sombras e prosseguindo
depois pela planície relvada até ao campo fortificado. Enquanto esperavam que surgissem os cavaleiros, o silêncio tomou conta da atmosfera. Mas nada sucedeu. Nem
ruído de cascos, nem gritos de guerra, nada. Os carvalhos vigiavam, imponentes e silenciosos, mas nenhum sinal de vida provinha da estrada que percorria o bosque.
Enquanto os legionários e os três recém-chegados esperavam, tensos, um pombo arrulhou ruidosamente num ramo de uma árvore próxima.
O optio deixou passar mais uns momentos, antes de se dirigir aos estranhos que tinham interrompido a sua pausa na dura tarefa de recolha de lenha.
- Bom, então?
Narciso desviou o olhar da estrada, e encolheu os ombros.
- Devem ter desistido assim que perceberam que tínhamos conseguido alcançar um local seguro.
- Partindo do princípio de que vinha mesmo alguém a perseguir-vos, claro. - O optio franziu o sobrolho. - Portanto, alguém quer fazer o obséquio de me explicar o
que raios se passa aqui?
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IIII

- Não me parece que essa barba te fique bem.
Narciso encolheu os ombros.
- Tem a sua utilidade.
- E que tal foi a viagem? - Inquiriu o general, tentando mostrar-se acolhedor.
- Que tal? Para lá de ter passado todas as noites deste último mês enfiado em espeluncas infestadas de pulgas, para lá de ter tido que emborcar aquela mistela indescritível
que passa por "comida" no seio das classes mais reles de viajantes, para lá de ter sido perseguido por um bando de assassinos a soldo mesmo à porta deste teu domínio...
- Pois. Para lá disso tudo, - o general não disfarçou um sorriso
- que tal foi a viagem?
- Rápida. - Narciso encolheu os ombros e sorveu mais um gole de água aromatizada com limão. O secretário imperial e o general estavam sentados sob um toldo, colocado
no cimo de um montículo, à margem das filas de tendas que constituíam o quartel-general do exército. Uma pequena mesa com tampo de mármore separava as cadeiras em
que se sentavam, e sobre ela um escravo tinha discretamente deixado um jarro ornado, com a água perfumada, e dois copos, para se refrescarem. Narciso tinha-se libertado
das roupas suadas que envergara
durante a cavalgada, e usava agora uma leve túnica de linho. A transpiração fazia reluzir a pele dos dois homens, e o ar irrespirável pesava sobre o ambiente enquanto
o sol de fim de tarde refulgia ainda no céu límpido.
O campo militar estendia-se à sua volta, em todas as direcções. Narciso, que estava habituado aos acampamentos de muito menores dimensões que as coortes da Guarda
Pretoriana estabeleciam em Roma, estava impressionado. Não era a primeira vez que via todo reunido o exército constituído para a campanha bretã. De facto, tinha
estado presente quando, no ano anterior, as quatro legiões e uma série de unidades auxiliares tinham
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esmagado as forças de Carátaco. Mas havia algo de reconfortante nas fileiras ordenadas de tendas. Cada uma delas testemunhava silenciosamente a presença de oito
homens; alguns estavam a treinar, algures no interior do campo, outros dedicavam-se a afiar as lâminas das
armas, outros ainda regressavam de expedições de recolha de abastecimentos, carregados com cestos de cereais ou guiando animais que tinham sido confiscados nas quintas
em redor. Tudo denunciava a ordem e o poder irresistível de Roma. Com uma tamanha força tão bem treinada a ocupar o terreno, era difícil acreditar que algo se pudesse
opor à vontade do Imperador, que era a de adicionar aquele território e as tribos que nele habitavam ao vasto inventário do Império.
Esse pensamento estava bem presente na mente de Narciso, e era a razão fundamental para que tivesse sido enviado em segredo pelo palácio a este longínquo acampamento
militar, na margem setentrional do rio Tamisa.
- Quanto tempo vais ficar connosco? - Inquiriu o general.
- Quanto tempo? - Narciso pareceu divertido com a pergunta.
- Ainda nem quiseste saber porque estou aqui.
- Suponho que seja para saber como decorre a campanha.
- Em parte, sim. - Admitiu o outro. - E então, general, como vão as coisas?
- Deves sabê-lo bem, partindo do princípio que lês os despachos que envio regularmente para o palácio.
- Ah, sim. Muito detalhados e informativos. Escreves num belo estilo, se me permites que o diga. Algo reminiscente dos comentários de César. Comandar um exército
tão vasto está apenas ao alcance de alguns eleitos...
Pláucio conhecia Narciso há tempo suficiente para ser imune aos costumeiros elogios viscosos do grego. E também reconhecia facilmente a ameaça implícita no último
comentário do secretário imperial, bem ao estilo de um servidor do palácio.
- Sinto-me evidentemente lisonjeado pela comparação com o divino Júlio. Mas não possuo o mesmo apetite pelo poder.
Narciso sorriu.
- Ora, general, seguramente que um homem na tua posição, com um tão formidável exército às suas ordens, tem ocasião para desenvolver um certo gosto pela ambição.
E tal não seria mal visto, nem sequer indesejado. Roma aprecia generais ambiciosos.
- Roma, talvez. Mas duvido que o Imperador os aprecie também.
- Roma e o Imperador são uma e a mesma coisa. - Retorquiu calmamente o grego. - Alguns poderiam considerar a sugestão de que isso
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não corresponde à realidade como uma afirmação ligeiramente sediciosa
- Sediciosa? - Pláucio arqueou as sobrancelhas. - Estás a brincar. As coisas estão assim tão más por lá?
Narciso tomou mais um gole, propositadamente longo. Observou Cuidadosamente o general sobre a borda do copo, antes de o voltar a pousar.
- Pláucio, a situação é muito pior do que podes imaginar. Há quanto tempo não vais a Roma?
- Quatro anos. Mas não me faz falta. Se te recordas, por esses tempos era Gaio Calígula quem imperava. Já me disseram que Cláudio é muito diferente, e que muitas
coisas melhoraram.
Narciso anuiu.
- Para muitos, sem dúvida. O problema é que o Imperador tem mostrado uma certa tendência para confiar demasiado nas pessoas erradas.
- Presumo, claro, que não te incluis nesse grupo.
- Evidentemente. - Narciso franziu o sobrolho. - Já agora, essa não tem nem um traço de piada. Sirvo o Imperador com toda a lealdade. Podes até dizer que me empenhei
a fundo para assegurar o seu sucesso.
- Os meus amigos em Roma informam-me que as tuas finanças têm atravessado um período extremamente próspero, nestes últimos anos...
- E então? Será errado que um homem se veja recompensado pelos seus leais serviços? De qualquer maneira, não vim até aqui para discutir as minhas finanças.
- Isso já percebi. - E agradecia que os teus amigos meditassem longa e seriamente antes de repetirem comentários do género. Essas conversas adquirem vida própria,
e podem virar-se contra os seus autores, se me estás a perceber... É um aviso de amigo.
- Será transmitido.
- Óptimo. Bom, como eu dizia, nos últimos meses, o julgamento do Imperador tem sido afectado. Especialmente desde que pôs a vista, para não falar de outros órgãos,
naquela putéfia da Messalina.
- Também já ouvi falar dela.
- Devias vê-la. - Adiantou Narciso, com um sorriso. - A sério. Nunca conheci ninguém assim. No momento em que entra numa sala e faz aqueles olhinhos de merda aos
homens, caem-lhe aos pés como cachorrinhos. Isso enoja-me. E Cláudio não é assim tão velho que não possa ser tentado pela beleza e pela juventude. Oh, e além disso
ela é esperta. Só Júpiter sabe quantos mete na cama, ali mesmo no palácio imperial, mas Cláudio
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está firmemente convencido de que ela está caidinha por ele, e que é incapaz de fazer asneiras.
- E os actos dela são maliciosos?
- Não tenho a certeza. Talvez não o sejam intencionalmente. É claro que o seu comportamento escandaloso prejudica a reputação do Imperador, e fá-lo parecer um tolo.
Porém, se alberga desígnios mais sinistros... Ainda não tenho provas disso. Só suspeitas. E depois, ainda há aqueles filhos da puta dos Libertadores.
- Pensei que tinhas arrumado esse assunto no ano passado.
- Apanhámos a maior parte deles depois do motim em Gesoríaco. Mas ainda sobraram os suficientes para organizar alguns envios de armas para os bretões no Verão passado.
Os meus agentes ouviram rumores de que pode estar a ser preparada alguma coisa em grande. Mas não terão hipóteses, pelo menos enquanto a Guarda Pretoriana e as legiões
estiverem do nosso lado.
- Achas portanto necessário avaliar a minha lealdade? - Pláucio observou atentamente o seu interlocutor.
- Que outra razão teria para vir até aqui? E porquê de forma tão discreta?
- Não sentirão a tua falta lá em Roma?
- Bem, é evidente que alguém soube da minha missão. Só me resta esperar que a notícia não se ponha a circular. O palácio espalhou que eu estou para as bandas de
Capri, a recuperar de uma maleita recente. Gostava de estar de volta a Roma antes que a minha presença aqui fosse comunicada pelos espiões dos meus adversários que
estão infiltrados entre a tua guarnição.
- Espiões inimigos na minha guarnição? - Pláucio fez um ar de indignação fingida. - Imagine-se! O que mais haverá por aí? Espiões imperiais, às tantas!
- Registo a tua ironia, Pláucio. Mas não te deves sentir ressentido pela presença dos meus homens. A sua tarefa tem tanto a ver com a tua protecção como com a recolha
de informações sobre todos os que poderiam tornar-se uma ameaça contra o Imperador.
- E de quem preciso eu de ser protegido?
Narciso sorriu.
- Ora, meu caro Plaúcio, de ti mesmo, claro. A presença dos meus homens lembrar-te-á que o palácio imperial tudo vê e tudo escuta. E isso costuma acalmar as línguas
e as ambições de alguns dos nossos comandantes menos conscientes da situação política.
E pensas que eu preciso de ser desencorajado?
- Não estou seguro. - Narciso cofiou a barba. - Precisas?
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Os dois homens entreolharam-se em silêncio durante alguns momentos; depois, o general Pláucio baixou o olhar para o copo que fazia girar interminavelmente entre
os dedos. Narciso soltou uma risada.
- Bem me parecia que não. O que me leva à questão seguinte. Se não és desleal, por que razão te empenhas tanto em sabotar a causa do Imperador?
O general pousou bruscamente o copo vazio na mesa, e cruzou os
braços.
- Não percebo o que queres dizer com isso.
- Bem, deixa-me então pôr a pergunta noutros termos, menos acusatórios. Porque fazes tão pouco para contribuir para o triunfo do Imperador? Pelo que consigo avaliar,
o teu exército pouco mais fez do que consolidar os ganhos do ano passado. O único avanço digno de nota tem sido efectuado pelo legado Vespasiano com a sua Segunda
Legião, no sudoeste. Ainda não conseguiste forçar Carátaco a dar-te batalha, apesar de as tuas forças serem superiores em número, e mesmo com metade das tribos desta
terra bendita a passarem-se para o nosso lado. Não consigo imaginar circunstâncias mais favoráveis para forçar o avanço, derrotar o inimigo e pôr fim a esta campanha
que nos sai cara.
- Ah, então é o custo que te preocupa? - Pláucio mostrou-se desdenhoso. - Há coisas neste mundo que não têm preço.
- Errado! - Narciso interrompeu-o bruscamente, quando o general se preparava para exercer a retórica numa tirada grandiloqüente sobre o destino manifesto de Roma
e sobre o dever de cada geração de contribuir para o crescimento da glória do Império. - Não existe nada neste mundo que não tenha um preço. Nada! Por vezes o preço
tem que ser pago em ouro, por vezes em sangue. Mas, seja como for, é pago. O Imperador necessita da vitória na Britânia, para reforçar a sua posição. Isso custará
a Roma as vidas de muitos milhares dos seus melhores soldados. Lamentável, é um facto. Mas recuperável. Há-de haver sempre mais homens. Não podemos permitir-nos
é a perda de outro imperador. O assassinato de Calígula quase destruiu o Império. Se a causa de Cláudio não tivesse sido apoiada pela Guarda Pretoriana, teríamos
tido outra guerra civil - e generais ambiciosos destroçariam as legiões em busca de glória e poder. Em breve o Império não passaria de mais um capítulo encerrado
na história das potências desaparecidas. E que espécie de homem desejaria que tal desgraça assolasse o nosso mundo?
- Bonito discurso. Muito elegante, mesmo. - Troçou Pláucio.
- Mas o que tem isso tudo a ver comigo?
Narciso suspirou, pacientemente.
- O teu progresso lento está a ter um preço elevado. A reputação.
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Já passou quase um ano desde que ele celebrou a vitória com um triunfo público. No entanto, continuo a receber pedidos de reforços. Mais tropas, mais equipamentos,
mais provisões.
- Só estamos a terminar a limpeza.
- Não. Isso é o que se faz depois de derrotar o inimigo. O que estás a fazer é a sugar os nossos recursos. Esta ilha até parece uma esponja. Sempre a absorver homens,
dinheiro, capital político. Por quanto tempo
mais, meu caro general?
- Como mencionei nos meus relatórios, estamos a fazer progressos. Lentos, mas seguros. Temos obrigado Carátaco a recuar, pouco a pouco. Em breve será forçado a enfrentar-nos.
- O que queres dizer com "em breve", general? Mais um mês? Mais um ano? Mais do que isso?
- De facto, creio que será uma questão de dias.
- Dias? - A dúvida era evidente na expressão de Narciso. - Explica-me lá isso, por favor.
- Com todo o prazer. Carátaco e o seu exército estão acampados a menos de vinte quilómetros daqui. - Pláucio acenou na direcção do poente. - Sabe muito bem da nossa
presença, como sabe que nós esperamos que, quando decidirmos avançar, ele recue mais uma vez, como tem feito sempre. Porém, quando realizarmos o nosso próximo avanço,
o plano dele consiste em atravessar o rio numa série de vaus que existem nesta região, rodear as nossas forças e atacar os territórios de todas as tribos que já
submetemos a sul do Tamisa. É provável até que esteja a pensar em ganhar-nos o avanço suficiente para atacar os depósitos de abastecimento em Londínio. É um plano
bem gizado.
- De facto. E como é que chegou ao teu conhecimento?
- Um dos chefes mais importantes é pago por mim.
- A sério? É a primeira vez que ouço essa.
- Há informações que são demasiado preciosas para serem postas por escrito. - Justificou-se Pláucio, com ar superior. - Nunca se sabe em que mãos acabam os relatórios.
Posso continuar?
- Por favor.
- O que ele não sabe é que a Segunda Legião deixou Caleba e foi colocada a guarnecer os locais de travessia. Carátaco será apanhado entre o rio e o meu exército.
Desta vez não terá para onde fugir. Terá que fazer meia-volta e enfrentar-me, e será esmagado. E então, Narciso, tu e o Imperador terão a vossa vitória na Britânia.
Não restarão mais do que alguns rebeldes naquela região montanhosa do Ocidente, para lá daqueles selvagens da Caledónia. A esses, o mais provável é que nem sequer
valha a pena tentar subjugá-los; nesse caso, precisaremos apenas de uma barreira
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defensiva para os impedir de realizar incursões na nossa nova província.
- Barreira? De que género?
- Um fosso, uma muralha, talvez um canal.
- Isso soa-me a despesas.
- Uma revolta sairia mais cara. Mas isso é trabalho para o futuro, de qualquer maneira. Por agora, devemos concentrar-nos em derrotar Carátaco e acabar com a vontade
de resistir que algumas tribos ainda exibem. Suponho que quererás assistir à batalha?
- Com toda a certeza. Mal posso esperar. Por ela e pelo momento de a narrar ao próprio Imperador. Vais acabar por te safar bem no meio desta história, Pláucio. Tu
e todos nós.
- Nesse caso, proponho um brinde. - Pláucio voltou a encher os copos, e ergueu o seu. - Que os inimigos do Imperador vejam os seus intentos frustrados, e... a uma
vitória esmagadora sobre os bárbaros!
- À vitória! - Narciso sorriu, e vazou o copo de um trago.
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IV

Os centuriões da Segunda Legião espalhavam-se pelas fileiras de bancos que ocupavam o pavilhão do comando, à espera que o legado iniciasse a reunião. O dia tinha
sido longo e ocupado com as preparações para a marcha rápida que a legião iniciaria na manhã seguinte. Ninguém sabia ao certo qual o destino da unidade, à excepção
do próprio legado, Vespasiano, e este nada tinha dito ao pessoal do seu estado-maior. O Sol tinha acabado de se pôr, e o ar parecia vivo, tal o número de moscardos
que nele se agitavam. Formavam enxames em redor das bruxuleantes chamas amarelas das lamparinas de óleo, e de vez em quando escutava-se o som de uma pequena explosão,
sempre que um dos insectos se mostrava imprudente e se aproximava demasiado de uma chama. Numa das extremidades da tenda via-se um enorme mapa desenhado sobre pele
e emoldurado em madeira, que mostrava uma secção do Tamisa.
Na terceira fileira de bancos sentavam-se os seis centuriões da Terceira Coorte. Mesmo na ponta do grupo via-se um jovem alto, claramente desajustado no meio das
faces bem vincadas e experientes dos outros centuriões sentados à sua beira. De facto, mal parecia ter idade suficiente para prestar serviço nas legiões. Uns olhos
castanhos brilhavam numa face esguia, sob uma cascata de caracóis de tom escuro. A sua constituição magra era evidente por baixo da túnica, cota de malha e armadura,
e os braços e pernas nus não eram musculosos, pelo contrário, pareciam finos e frágeis. Apesar do uniforme e das duas imaculadas medalhas presas à armadura, não
parecia mais do que um miúdo a brincar aos soldados, e os olhares que deitava à sua volta denunciavam claramente a sua falta de à-vontade com a situação.
- Cato! Porra, vê lá se estás quieto! - Vociferou o centurião que se sentava ao lado do jovem. - Pareces uma pulga numa chapa aquecida.
- Desculpe, é deste calor. Faz-me sentir esquisito.
- Bem, não deves ser o único. Não consigo perceber o que se passa
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com a merda desta ilha. Quando não está húmido e a chover por todos os lados, caem-nos em cima uns dias de caloraça. Podia decidir-se de uma vez por todas. Digo-to
outra vez, nunca nos devíamos ter enfiado nesta estrumeira. E afinal, o que é que estamos cá a fazer?
- Macro, estamos cá porque estamos cá. - O jovem mostrou um sorriso. - Parece que me lembro de alguém me ter dito que a resposta era sempre essa.
O outro centurião cuspiu no chão, entre as botas.
- Ora, tento ajudar-te, e só desconversas. Nem sei para que me dou ao trabalho.
Cato sorriu de novo, desta vez de forma espontânea. Ainda há poucos meses servia como optio de Macro, na centúria que este comandava. Quase tudo o que sabia sobre
a vida militar, tinha-o aprendido nos dois últimos anos, e tinha sido Macro quem lho ensinara. Desde que lhe fora entregue o seu primeiro comando, há apenas dez
dias, tinha tido enormes dificuldades em lidar com as responsabilidades do seu novo posto, e tinha apresentado constantemente um ar duro e rígido em frente dos oitenta
homens da sua centúria, lançando constantes preces para que estes não se apercebessem da verdade sob a máscara, e vissem a alma atormentada e ansiosa que lá se ocultava.
Quando isso sucedesse, a sua autoridade desapareceria, seria incapaz de continuar a comandar os homens, e vivia no temor desse momento. O tempo de que dispunha para
lhes conquistar a lealdade era muito curto. E a tarefa era complicada, já que ainda mal tinha decorado os nomes dos homens que comandava, e estava muito longe de
lhes conhecer as peculiaridades de carácter. Tinha-os treinado de forma dura, mais do que era normal os centuriões fazerem, mas sabia perfeitamente que, até que
o vissem em combate, não o aceitariam completamente como seu comandante.
Era diferente para Macro, considerou com um traço de amargura. Este tinha cumprido mais de dez anos de serviço antes de chegar a centurião, e a patente servia-lhe
como uma segunda pele. Não tinha nada a provar, e as cicatrizes que lhe cobriam o corpo testemunhavam a sua coragem em combate. Além disso, o centurião mais velho
era baixo e de constituição sólida, precisamente o oposto do amigo. A qualquer legionário bastava um olhar a Macro para perceber que, se dava valor aos dentes, não
era boa política irritá-lo.
- Porra, que esta merda de reunião nunca mais começa! - Resmungou Macro, enquanto esmagava um mosquito que lhe pousara na perna.
- De pé! - Bramou o prefeito do acampamento, na frente dos oficiais. - Chegou o legado!
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Os centuriões levantaram-se imediatamente e colocaram-se em sentido enquanto uma cortina na entrada da tenda era afastada por uma das sentinelas, e o comandante
da Segunda Legião fazia a sua aparição. Era um homem forte, com uma face larga e enrugada. Embora não fosse bonito, havia algo na sua aparência que deixava os outros
homens à vontade na sua presença. Não exibia aquele distanciamento tão característico dos aristocratas, pouco dados a contactos de índole social com aqueles que
consideravam inferiores. De facto, a sua família só recentemente tinha sido promovida na escala social, e o seu avô tinha servido como centurião no exército de Pompeu,
o Grande. Assim, Vespasiano não se sentia muito distante dos homens que comandava. E isso notava-se na forma como os homens o estimavam, reflectindo-se ainda na
forma como a Segunda Legião tinha combatido sob o seu comando, obtendo um quinhão desproporcionado da glória associada às vitórias alcançadas ao longo daquela campanha.
- À vontade, senhores. Por favor, sentem-se.
Vespasiano aguardou que a tenda regressasse ao silêncio. Quando todos sossegaram e os únicos sons que se escutavam eram os da actividade normal do campo, para lá
das paredes do pavilhão, colocou-se a um dos lados do mapa e limpou a garganta.
- Senhores, estamos a um dia da conclusão desta campanha. O exército de Carátaco dirige-se a uma armadilha que provocará a sua inevitável destruição. E com o seu
chefe máximo em nosso poder, nenhuma tribo terá ainda vontade de se opor a nós.
- Era bom, era. - Sussurrou Macro. - Quantas vezes é que já ouvi esta história?
- Chiu. - Cato deu-lhe um toque.
O legado tinha conseguido prender a atenção da sua audiência; com uma vara, apontou para o mapa suspenso.
- Estamos acampados neste ponto, a curta distância do Tamisa. Os nossos batedores atrébates dizem que esta área se chama Três Vaus, e as razões para tal são óbvias.
- O legado indicou a região a norte do rio.
- Carátaco recua sob a pressão do general Pláucio, e já deve ter alcançado este ponto, mesmo acima dos vaus. Até agora, tem-se limitado a ceder terreno de cada vez
que o general faz avançar as suas legiões. E, tanto quanto ele imagina, é isso que nós devemos estar à espera que ele faça. E é por isso que está a planear, desta
vez, algo de completamente diferente. Em vez de recuar, Carátaco pretende atravessar estes vaus e rodear as nossas forças. Dessa forma ameaçará as nossas linhas
de abastecimento, e cortará o acesso ao depósito em Londínio. Mesmo que obtenha sucesso nesta manobra, não sairá vitorioso, mas conseguirá atrasar-nos mais uns meses.
Porém, como decerto alguns de vocês já se aperceberam ao olhar
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para o mapa, ele vai assumir grandes riscos. As travessias situam-se nesta grande curva do Tamisa. Se ele não conseguir utilizar os vaus e as forças do general ocuparem
o corredor de entrada na área, ficará encurralado contra o rio. Não haverá forma de escapar. Terá que se render ou dar batalha.
- Amanhã, ao alvorecer, a Segunda Legião marchará para ocupar posições nos três vaus. Armadilharemos o fundo do rio, e estabeleceremos defesas sólidas no nosso lado
de cada uma das travessias. As forças inimigas concentrar-se-ão nestas duas passagens, aqui e aqui. São ambas muito largas, pelo que teremos que empregar a maior
parte do efectivo na sua defesa. Assim sendo, as Primeira, Segunda, Quarta e Quinta Coortes ficarão sob o meu comando no vau mais a jusante. As Sexta, Sétima, Oitava,
Nona e Décima Coortes, sob o comando do prefeito Sexto, defenderão o vau seguinte, ao subir o rio.
Vespasiano mudou de posição sob o mapa, e usou a vara para mostrar o que pretendia.
- É pouco provável que Carátaco use o outro vau. É estreito, e a corrente é muito forte naquele local. Ainda assim, é possível que o aproveite para tentar colocar
algumas unidades ligeiras nesta margem, e teremos que o impedir. Essa tarefa caberá à Terceira Coorte. Máximo, achas que os teus rapazes conseguem dar conta do recado?
As cabeças viraram-se para a outra ponta do banco em que Cato se sentava, e o centurião de rosto magro e nariz comprido que lá se encontrava, o comandante da coorte
em que se inseriam Macro e Cato, cerrou os lábios e anuiu.
- Senhor, pode confiar na Terceira. Não o deixaremos mal.
- Conto com isso. - Sorriu Vespasiano. - Por isso é que vos escolhi para esta missão. - Nada que um antigo oficial da Guarda Pretoriana não consiga resolver. Lembrem-se,
nem um dos inimigos pode passar para este lado do rio. Se queremos acabar com esta campanha, de vez e depressa, temos que conseguir uma vitória absoluta, impiedosa...
Bom, e agora resta-me perguntar se alguém tem questões a pôr.
Cato olhou em volta, esperançado em que mais alguém tivesse levantado o braço. Quando viu que os outros centuriões se mantinham impassíveis, engoliu em seco, e ergueu
a mão.
- Senhor?
- Sim, centurião Cato?
- O que acontecerá se o inimigo conseguir forçar a passagem nalgum dos vaus, senhor? Como é que os outros destacamentos serão avisados?
- Coloquei dois dos nossos esquadrões montados sob o meu comando, e atribuí um a cada um dos outros destacamentos, o do Sexto e o
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do Máximo. Se algo correr mal, poderemos alertar os outros e, se for necessário, a legião poderá recuar para esta posição sob a capa da escuridão.
- Mas vamos tratar de nos assegurar que isso não acontece. Preparem bem as vossas posições defensivas, e extraiam o melhor dos vossos homens. A vantagem está do
nosso lado. Temos o elemento da surpresa, e, pela primeira vez a pressa com que eles se deslocam pelo terreno jogará a nosso favor, quando eles se lançarem para
os vaus. Se todos fizermos o nosso trabalho como deve ser, a nova província do Império estará conquistada, e só nos restará limpar alguns escassos ninhos de resistência.
E depois, teremos um imenso espólio para dividir.
Ao último comentário seguiu-se um murmúrio de aprovação, e Cato viu como os olhos dos homens mais próximos se acendiam perante a perspectiva do saque. Como centuriões,
tinham direito a um apreciável quinhão da receita resultante da venda, como escravos, dos homens que tinham feito prisioneiros ao longo do ano que passara. Todas
as terras confiscadas tinham passado para as mãos do secretariado imperial, cujos agentes se preparavam para fazer fortunas com as comissões que conseguiriam na
venda das mesmas. O sistema de divisão dos ganhos era uma fonte de duras discussões entre os homens das legiões sempre que se sentavam a beber, e o facto de legionários
e centuriões terem direito a partes desiguais assegurava que a muito maior desigualdade entre soldados e agentes imperiais fosse ignorada.
- Mais alguma questão? - Inquiriu Vespasiano. Todos se mantiveram imóveis, pelo que o legado se voltou para o prefeito do acampamento. - Muito bem. Sexto, podes
dispensá-los.
Os centuriões levantaram-se e puseram-se em sentido. Depois de o legado abandonar a tenda, o prefeito mandou-os sentar de novo, e lembrou-lhes que, antes de abandonarem
o quartel-general, deviam pedir aos escrivães as ordens escritas. Quando os oficiais da Terceira Coorte se voltaram a levantar, Máximo levantou o braço para lhes
chamar a atenção.
- Mais devagar, rapazes. Quero conversar convosco na minha tenda, assim que tiverem tratado da distribuição dos turnos de sentinela para esta noite.
Macro e Cato trocaram um olhar, o que foi imediatamente detectado por Máximo.
- Estou seguro de que os meus novos centuriões ficarão aliviados por saber que não lhes ocuparei muito do seu precioso tempo.
Cato corou.
Máximo deitou-lhe um olhar frio durante um bom momento, antes de permitir que um sorriso lhe moldasse o rosto.
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- Tratem é de estar ambos na minha tenda antes que soe o sinal para a primeira mudança de turno.
- Sim, senhor. - Retorquiram Cato e Macro.
Máximo aquiesceu com um movimento brusco da cabeça, girou sobre os calcanhares e saiu da tenda num passo rígido.
Os olhos de Macro seguiram-no.
- Bom, mas que raio de atitude foi esta?
O mais próximo dos outros centuriões espreitou, para se assegurar de que o comandante da coorte prosseguia o seu caminho através das tendas até desaparecer de vista.
Então, virou-se calmamente para os dois novos oficiais da unidade.
- Se fosse a vocês, tinha cuidado.
- Cuidado? - Macro fez uma careta. - O que é que queres dizer com essa, Túlio?
Caio Túlio era o mais antigo dos centuriões da Terceira Coorte, depois de Máximo; era um veterano, com mais de vinte anos e muitas campanhas nas pernas. Embora possuísse
um carácter reservado, tinha sido o primeiro a cumprimentar Macro e Cato depois de terem sido nomeados para a coorte. Os outros dois, Caio Pólio Félix e Tibério
António, não tinham até ao momento dito a Cato nada mais do que o estritamente necessário, e o jovem pressentia a hostilidade que lhe dirigiam. Macro tinha direito
a um tratamento diferente. Já o conheciam desde antes da promoção, e tratavam-no de forma cordial, como aliás era seu dever, uma vez que a nomeação de Macro para
o centuriato era anterior à deles.
- Túlio? - Insistiu Macro.
O outro hesitou por um instante, de boca aberta, como se estivesse prestes a dizer alguma coisa. Mas depois limitou-se a abanar a cabeça.
- Não foi nada. Tentem apenas não lhe aparecer à frente pelo lado errado. Tu especialmente, jovem.
Os lábios de Cato comprimiram-se, formando uma linha fina, e Macro não conseguiu evitar uma risada.
- Cato, não sejas tão susceptível. Podes ser centurião, mas tens que desculpar as pessoas que pensam que não passas de um miúdo.
- Os miúdos não usam coisas destas. - Ripostou, mostrando as medalhas que levava ao peito, para logo se arrepender do gesto imaturo com que pretendera afirmar-se.
Macro levantou as mãos, num gesto de apaziguamento.
- Está certo! Desculpa. Mas, Cato, olha bem à tua volta. Vês alguém que tenha uma idade parecida com a tua, ou que não tenha pelo menos mais uns cinco anos do que
tu? Acho que vais acabar por perceber que és uma excepção.
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- Pode muito bem ser uma excepção, - juntou Túlio, serenamente - mas é melhor para ele não sobressair, se quiser ter uma vida sossegada.
O veterano virou-se e seguiu Félix e António para a saída da tenda. Macro ficou a vê-lo afastar-se, coçando o queixo.
- O que quereria ele dizer?
- É fácil de perceber. - Resmungou Cato. - Parece que o comandante da nossa coorte pensa que eu não estou à altura do lugar que ocupo.
- Disparate! - Macro aplicou-lhe um leve murro no ombro. -
Toda a gente na legião te conhece. E já não tens nada a provar, a ninguém.
- Vá dizer isso ao Máximo.
- Talvez o faça. Um dia destes. Se ele não o perceber primeiro. Cato abanou a cabeça.
- O Máximo só se juntou à legião há poucos meses, naquela remessa de substitutos que chegou quando estávamos no hospital em Caleba. O mais provável é que nunca tenha
ouvido falar de mim.
Macro apontou uma das medalhas de Cato.
- Isto devia dizer-lhe tudo o que precisa de saber. Bom, é melhor irmos, temos que tratar das rondas para esta noite. Não queremos chegar atrasados à reunião com
o comandante, pois não?
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Depois de se certificar de que o seu optio tinha organizado correctamente os turnos de sentinela, Cato atravessou duas colunas de tendas até alcançar a centúria
de Macro, e enfiou a cabeça pela abertura da maior das barracas, que era também a última da fila. Macro estava sentado a uma pequena mesa, examinando algumas tábuas
à luz bruxuleante de uma lamparina a óleo.
- Pronto?
O outro ergueu o olhar, e pôs as tábuas de cera de lado. Levantou-se e dirigiu-se ao centurião mais jovem.
- Sim. Já estou farto destas coisas. Merda de registos de pagamentos. Às vezes bem gostava que ainda fosses o meu optio. Era muito mais fácil ter os registos organizados
e podia dedicar-me ao que interessa realmente.
Cato acenou em sinal de compreensão. Com efeito, a vida anterior tinha sido bem mais fácil para ambos. Sob as ordens de Macro, o começo da vida militar de Cato não
tinha sido perturbado pelo excesso de responsabilidades. Por vezes, as circunstâncias tinham-no forçado a assumir o comando, e ele sempre aceitara esse dever, mas
tinha sido sempre com um profundo alívio que devolvera tal fardo ao seu legítimo proprietário, Macro. Agora que era um centurião, tudo isso pertencia ao passado.
Não se limitava a sentir-se julgado por todos, ele mesmo se avaliava constantemente, e com extremo rigor. Não se conseguia sentir impressionado pela figura magra
e juvenil num uniforme de centurião que sabia bem corresponder à sua pessoa.
- Como é que se está a aguentar o Fígulo? - Inquiriu Macro enquanto se dirigiam à grande tenda quadrada onde estava instalado o comando da Terceira Coorte. - Não
percebo porque é que o escolheste para optio. Quando não se trata de combater, o rapaz é um chato do caraças.
- Está-se a aguentar bem.
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- A sério? - respondeu Macro, com ar divertido. - Trata sozinho dos registos de pagamentos? Para não falar do resto da trampa do trabalho de escrivão?
- Eu... ando a ensiná-lo.
- Ensiná-lo? A quê, ler e escrever, não?
Cato inclinou a cabeça de forma a esconder a expressão sombria, dele que se apossara. Macro tinha razão. Sob muitos aspectos, Fígulo era uma péssima escolha - mal
conseguia escrever o nome e, quanto a contas, era só pedir-lhe que fizesse cálculos com valores maiores do que a pobre quantia que tinha conseguido poupar no seu
primeiro ano de serviço na legião... Perdia-se por completo. Ainda assim, Cato oferecera-lhe imediatamente o posto. Fígulo tinha praticamente a sua idade, e Cato
precisava desesperadamente de ver um rosto familiar entre os homens que comandava. A maior parte dos homens que conhecera quando se juntara à antiga centúria de
Macro estava morta, ou inválida. Os sobreviventes tinham sido distribuídos pelas outras centúrias da coorte, que estava com falta de homens. Portanto, ficara Fígulo.
Não era que faltassem vantagens, reflectiu Cato, num momento de autojustificação. Fígulo era de origem gaulesa, alto e espadaúdo; fisicamente, não tinha a recear
nenhum homem na legião, nem nenhum inimigo. Além disso, tinha jeito para tratar com os homens, dada a sua natureza bem-disposta e sem malícia. Isso fazia dele uma
preciosa ponte entre Cato e a centúria. E, tal como o centurião, Fígulo ansiava pela oportunidade de se mostrar à altura da nova patente. Porém, as tentativas que
tinha feito para lhe ensinar os rudimentos da arte de manter os registos tinham esgotado a paciência do centurião. Se as coisas não melhorassem rapidamente, Cato
acabaria por se ver obrigado a tratar dos assuntos que eram da responsabilidade do optio.
- Podes sempre substituí-lo. - Sugeriu Macro.
- Não. - Retorquiu Cato, obstinado. - Ele há-de servir.
- Se achas que sim. A decisão é tua, miúdo.
- Eu sei. A decisão é minha. Macro, não é o meu pai. Por favor, deixe de agir como se fosse.
- Está bem! Está bem! - Macro ergueu as mãos, num gesto de rendição. -Não volto a tocar no assunto.
- Ainda bem...
- Bom, hum, então o que achas do Máximo, o novo chefe?
- Ainda não o conheço suficientemente para poder dizer alguma coisa. Parece competente. Um bocado convencido, é verdade.
Macro anuiu.
- É da velha escola: cada fivela bem apertada, cada lâmina polida
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até encandear, e nem um grão de lama admitido na parada. São tipos assim que formam a espinha dorsal de um exército.
- Como é a história dele? - Cato deitou uma olhadela ao companheiro. - Já falou sobre ele com algum dos outros?
- Troquei umas palavras com o António no outro dia, na messe.
Chegou na mesma coluna de reforços, e conheceu o Máximo no depósito, lá em Gesoríaco.
- E?
- Não há grande coisa a dizer. Há quase dez anos que é centurião, já andou por quase todo o Império. Antes disso, esteve na Guarda Pretoriana. Passou lá alguns anos,
depois transferiu-se para as legiões. - Macro abanou a cabeça. - Não percebo como é que aceitou uma transferência dessas. Eu matava para entrar para a Guarda; o
pagamento é melhor, o alojamento nem se fala, e há mulheres e bebida como só Roma pode oferecer.
- Talvez ele se tenha fartado dessa abundância?
- O quê? - Macro ficou estupefacto. - Que raio de conversa é essa? Uma das tuas filosofias de merda, com certeza. Olha, miúdo, acredita em mim: a abundância nunca
é de mais.
- Macro, essa é uma tirada verdadeiramente epicurista.
- Oh, vai chatear outro...
Tinham entretanto chegado à tenda de Máximo. Um brilho mortiço escapava-se entre as abas da tenda; quando as sentinelas se aperceberam da aproximação dos dois centuriões,
uma deu um passo ao lado e afastou a aba, para lhes dar passagem. Macro entrou primeiro. Viram-se imersos na atmosfera quente e densa que reinava no interior, e
notaram a presença de Máximo, sentado junto à mesa de campanha. À sua frente estavam dispostas cinco cadeiras, das quais três já estavam ocupadas pelos outros centuriões
da Terceira Coorte.
- Muito obrigado por terem decidido juntar-se a nós. - Foi a curta saudação do comandante.
Faltava ainda uma boa meia hora até que soasse o sinal para a mudança de turno, calculou Cato, mas antes que pensasse sequer em protestar, Macro adiantou-se:
- Desculpe, senhor.
- Senhores, sentem-se. Temos que começar.
Ao sentarem-se, Macro franziu a sobrancelha, num claro aviso a
Cato. Este compreendeu que era aquele o estilo de Máximo à frente da coorte. Esperava, aliás, exigia que os seus subordinados fossem além do mero cumprimento das
suas ordens. Isso podia levá-los a deitarem-se a adivinhar em muitas circunstâncias, mas também os mantinha atentos e disponíveis. Cato já tinha testemunhado esse
estilo de comando noutras coortes, e
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detestava-o com intensidade. Um comandante que o adoptasse nunca poderia estar seguro de que as suas ordens seriam cumpridas de acordo com as
suas verdadeiras intenções......
Depois de os últimos oficiais se sentarem, Maximo aclarou a garganta e empertigou-se, antes de se dirigir aos seus subordinados:
- Agora que cá estamos todos... Viram o mapa do legado, e espero que tenham compreendido a tarefa que nos foi atribuída. Aguentamos os vaus, impedimos a passagem
de Carátaco, e ele será derrotado. Seremos a primeira coorte a deixar o campo amanhã, já que temos que nos deslocar para mais longe; sairemos antes do nascer do
Sol. Seguiremos por uma rota usada pelos comboios de abastecimentos, que nos levará ao vau. Por volta do meio-dia, devemos passar por um forte auxiliar. Aí descansaremos
por um curto período, e comeremos das rações que eles nos fornecerem. O vau fica a pouco mais de um quilómetro a norte do forte, pelo que teremos muito tempo para
lá chegar e fortalecer a posição que vamos ocupar. Muito antes da possível chegada do inimigo. Os homens não levarão as mochilas, não serão necessárias. Só a disposição
para combater e o equipamento necessário para tal, mais nada, além dos cantis. Vamos marchar para uma batalha. Nada de gente a ficar para trás, nada de preguiçosos...
e nada de cobardes quando enfrentarmos o inimigo. Ninguém se renderá. Evidentemente, - sorriu, - se os bretões se quiserem render, então teremos todo o gosto em
cumprir tal desejo. Com alguma sorte, o dia será nosso, bem como uma pequena fortuna. Estão a perceber-me?
Todos os centuriões anuíram com gestos da cabeça - à excepção de um. Máximo virou-se para Macro.
- Qual é o problema?
- Senhor, será que podemos realmente fazer prisioneiros?
- Será que podemos arriscar-nos a não os fazer? - Máximo riu.
- Tens alguma coisa contra ser rico, Macro? Ou queres passar à reforma como um velho miserável?
Macro sorriu de forma polida.
- Senhor, gosto tanto de dinheiro como outro tipo qualquer. Mas não passamos de uma coorte, colocada no flanco da legião. Se começarmos a pôr homens de lado para
guardar prisioneiros, vamos enfraquecer a nossa força. E a mim não me deixa nada feliz a perspectiva de ter grupos de bretões tanto pela frente como pela retaguarda,
estejam eles armados ou não. Senhor, isso é estar a convidar sarilhos.
- Vá lá, Macro, não achas que estás a exagerar? E tu, jovem Cato, não concordas comigo?
Por instantes, o pânico instintivo de Cato tomou conta do seu ser, enquanto procurava uma resposta adequada à pergunta directa.
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- Não sei, senhor. Depende de quantos forem, suponho. Se os pudermos controlar, então acho que não haverá qualquer razão para não
tomarmos prisioneiros. Mas se, como o Macro suspeita, eles nos atacarem com uma força muito numerosa, então precisaremos de todos os homens disponíveis na frente.
E, nessas circunstâncias, os prisioneiros poderão tornar-se uma ameaça para nós... senhor.
- Estou a ver. - Máximo fez que sim com a cabeça, pensativo.
- Achas portanto que, se errarmos, o devemos fazer pelo lado da cautela? Supões que foi assim que nós, romanos, nos tornámos senhores do mundo?
- Senhor, sobre isso nada sei. Penso apenas que nos devíamos preocupar em cumprir as ordens que recebemos, sem nos expormos a riscos desnecessários.
- E eu também! - Máximo soltou uma sonora gargalhada, que fez com que Félix e António se lhe juntassem no riso. Túlio sorriu. Quando o comandante se acalmou, inclinou-se
na direcção de Cato e deu-lhe uma palmada no ombro. - Não te preocupes. Não tomarei riscos escusados. Tens a minha palavra. Por outro lado, também não deixarei escapar
a oportunidade de conseguir algum dinheiro fácil. Mas tens razão em ser cauteloso. Veremos como evolui a situação amanhã, e agiremos em função das circunstâncias.
Chega para te sossegar, rapaz?
Cato assentiu.
- Óptimo. Então, esse assunto está arrumado. - Máximo deu um passo atrás, para repor alguma formalidade na maneira como se dirigia aos seus oficiais. - Atendendo
às ordens que recebemos, gostaria que compreendessem que estou firmemente determinado a que a Terceira Coorte se mostre digna da missão que o legado lhe confiou.
Amanhã não aceitarei outro comportamento que não o mais diligente, tanto da vossa parte como da dos vossos homens. Sou exigente com os homens que comando, porque
quero que, em combate, sejamos a melhor e mais dura das coortes. Não apenas desta legião, mas de todas as legiões dos exércitos imperiais. - Fez uma pausa para perscrutar
atentamente as expressões nos rostos dos centuriões, em busca de alguma reacção menos favorável. Cato devolveu-lhe o olhar, sem deixar transparecer qualquer emoção.
- Muito bem. Senhores, tenho consciência de que só comando esta coorte há pouco mais de um mês, mas tenho observado cuidadosamente as actividades de todas as centúrias,
e estou certo de que nunca estive com um melhor grupo de homens... à excepção daqueles com quem servi em Roma, claro. Tive também ampla ocasião de avaliar o vosso
potencial, Félix, António e Túlio, e estou satisfeito com aquilo que pude ver. São bons homens, e comandam bem as vossas tropas. O que nos traz aos nossos
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novos comandantes de centúrias... - Virou-se deliberadamente para Macro e Cata e fez um sorriso curto. - Consultei os vossos registos, e posso dizer que me agrada
ter-vos na minha unidade. Macro, dois anos de centuriato, excelente folha de serviços, com louvores do legado e do próprio general. Estou seguro de que poderás enriquecer
ainda mais estes registos ao servir
na minha coorte. "
Macro sentiu o ressentimento a torcer-lhe as entranhas. Servia nas
Águias há mais de quinze anos. Quinze anos de dura experiência, e de combates dos mais renhidos que se podiam conceber. Duvidava que algum dos que deixara para trás
na pequena aldeia piscatória próxima de Ostia ainda fosse capaz de o reconhecer. O miúdo encorpado que tinha arranjado uma boleia para Roma, para se alistar nas
legiões, não passava de uma memória distante, e Macro espumava de raiva perante a condescendência na voz e na forma como o comandante da coorte lhe dera as boas-vindas
à unidade. Mas refreou o seu ímpeto, e limitou-se a aquiescer de forma hirta.
- Obrigado, senhor.
Máximo sorriu de novo, e virou o olhar para Cato.
- Bom, centurião Cato, algumas folhas de serviço levam muito menos tempo a ler que outras. Apesar da tua idade, vejo que já acumulaste uma impressionante lista de
feitos, e até conseguiste aprender alguma coisa da língua local. Isso pode vir a ser-nos útil. - Considerou. - Será interessante ver como te portas amanhã.
- Senhor, espero não o desapontar. - Replicou Cato, procurando aquietar o seu orgulho ferido, que exigia uma resposta mais elaborada.
- Também o espero. - O sorriso desapareceu da face de Máximo.
- Há muita coisa em jogo para todos nós, desde o general até aos legionários na linha da frente. Se tivermos êxito, haverá glória suficiente para nos cobrir a todos.
Se fizermos asneira, podem ter a certeza de que as pessoas em Roma nunca nos perdoarão. Faço-me compreender?
- Sim, senhor. - Responderam Félix e António em coro.
- Muito bem. Agora, senhores, gostaria que se juntassem a mim num brinde... - O comandante baixou-se para apanhar um pequeno jarro de vinho que estava sob a mesa.
- Não é a melhor colheita, mas considerem-no como um prenúncio das riquezas que em breve teremos na nossa Posse. Portanto, cá vai, ao Imperador, a Roma e às suas
legiões. Júpiter e Marte, protejam-nos, e enviem a derrota e a morte a Carátaco e aos seus bárbaros!
Máximo tirou a rolha ao recipiente, pegou-lhe pela asa e, apoiando- o no braço, levou-o aos lábios e deixou que lhe escorregassem pela garganta algumas golfadas
do líquido. Cato notou uma gota vermelha que se escapou do canto dos lábios do comandante e lhe deslizou ao longo do rosto.
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Máximo baixou o jarro e passou-o a Túlio, e um a um os centuriões repetiram o brinde e, ao partilharem o vinho, selaram aquela espécie de pacto. Quando chegou a
vez de Macro, este aproveitou para beber mais do que o convencionado, e passou o recipiente a Cato enquanto limpava a boca às costas da mão.
Quando ergueu o jarro e repetiu as palavras, Cato sentiu que todos os olhos na tenda estavam postos nele, e preparou-se para engolir o líquido que saía do bocal
do tosco jarro de barro. À medida que o vinho lhe passava sobre a língua, Cato resistiu ao impulso de vómito que o sabor avinagrado, azedo e picante, lhe provocou.
Nem nos piores bairros de Camaloduno tinha Cato provado um vinho tão mau. Forçou-se a tomar mais um golo, e depois baixou o jarro.
- E já está! - Máximo voltou a pegar no jarro, pôs-lhe a rolha e colocou-o de novo sob a mesa. - Senhores, amanhã... amanhã mostraremos ao resto do exército o que
pode uma coorte.
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VI
A coorte preparou-se para a marcha ainda no escuro. Aos lados do torreão que protegia a entrada do campo, dois braseiros iluminavam a cabeça da coluna, mas o seu
brilho não se propagava até muito longe na Via Pretoriana, e deixava na escuridão todos os legionários que não pertenciam à Primeira Centúria. Só o ar húmido da
manhã os envolvia. Cato, que se encontrava junto aos outros centuriões, ao pé do portão, só se apercebia da presença dos quinhentos homens prontos para marchar para
a batalha devido às conversas sussurradas e ao contínuo tilintar das muitas peças de equipamento. No espaço aberto da entrada do campo, via-se também o contingente
montado que ia acompanhar a coorte; trinta homens sob o comando de um decurião, equipados de forma ligeira e treinados para desempenhar tarefas de batedores e estafetas,
não para combate. Os cavalos esperavam, também eles ansiosos, as orelhas a moverem-se constantemente e os cascos a raspar o chão, enquanto os seus cavaleiros, ainda
desmontados, lhes agarravam as rédeas. De mais longe vinham os sons de outros legionários que acabavam de despertar; imprecações, blasfémias, tosses e grunhidos
de homens que se espreguiçavam e procuravam activar os corpos entorpecidos pelas horas de sono.
- Já falta pouco, rapazes! - Anunciou o centurião Máximo, enquanto aquecia as costas num braseiro, projectando uma longa e ondulante sombra sobre a mais próxima
das fileiras de tendas.
- Está cheio de vontade. - Notou Macro.
Cato bocejou.
- Quem me dera estar também.
- Não dormiste bem?
- Antes de ir para a cama, tive que acabar as contas.
- As contas? - O centurião Félix abanou a cabeça, descrente. - Na véspera de uma batalha? És doido?
Cato encolheu os ombros, e Félix virou-se para Macro;
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- Já o conheces há bastante tempo, não é?
- Sim, não passava de um miúdo quando o conheci.
- Foi sempre assim?
- Oh, sim. Aqui o nosso Cato tem a mania da perfeição. Nunca se marcha para uma batalha sem se certificar de que os registos estão actualizados. Não há nada pior
do que ser morto enquanto se pensa na papelada. Deve ser qualquer coisa religiosa que apanhou no palácio imperial, uma história sobre a alma ser condenada a percorrer
este mundo até que os registos estejam completos, verificados e arquivados. Só depois o seu espírito poderá descansar em paz.
- Isso é verdade? - Perguntou o centurião António, de olhos arregalados.
- Porque é que perguntas? - Macro virou-se para ele, com uma expressão horrorizada. - Não me digas que deixaste a papelada a meio?
Cato suspirou.
- António, ignora-o. A especialidade do centurião Macro é gozar com quem se põe ajeito.
O outro olhou de Cato para Macro e franziu o sobrolho.
- Idiota de merda...
- Ah, sim? Mas estavas a engolir a história, não era? Quem é que é o idiota, então?
- Viveste no palácio? - Indagou Félix. - No palácio imperial?
Cato assentiu.
- Vá, Cato, desembucha.
- Não tenho muito para contar. Nasci e cresci por lá. O meu pai era um liberto, fazia parte do pessoal administrativo. Tratava das diversões para Tibério, e depois
para Calígula. Nunca conheci a minha mãe, sobreviveu pouco tempo ao meu nascimento. Quando o meu pai morreu, fui enviado para a legião, e cá estou.
- Deve ser um bocado difícil, depois de viver no palácio.
- Nalgumas coisas, sim. - Admitiu Cato. - Mas a vida no palácio pode ser tão perigosa como a vida nas legiões.
- É boa. - Félix sorriu, e fez um aceno de cabeça na direcção de Máximo. - Foi precisamente o que ele disse.
- A sério? - Murmurou Cato. - Não me lembro da Guarda Pretoriana alguma vez ter tido problemas, à excepção do Sejano e dos seus seguidores.
- Estavas lá nessa altura? - Os olhos de Félix iluminaram-se. - Foi tão mau como se conta?
- Foi pior. - A expressão de Cato endureceu ao recordar a queda de Sejano. - Centenas de pessoas foram massacradas. Centenas. Incluindo
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os filhos... Costumavam brincar comigo quando visitavam o palácio. Os pretorianos levaram-nos e mataram-nos. É esse o tipo de batalhas que a maior parte deles costuma
travar.
Macro franziu o sobrolho perante o tom duro na voz do amigo, e
apontou o comandante da coorte com a cabeça.
- Miúdo, tens que ser justo. Ele não andava por lá nessa altura.
- Não, suponho que não, de facto.
- E a Guarda portou-se bem connosco, às portas de Camaloduno.
E essa foi uma batalha bem sangrenta.
- Sim, é verdade. Não voltarei a menosprezá-los.
- Sabes, - afirmou calmamente Túlio, - talvez o Máximo tenha conhecido o teu pai. Devias perguntar-lhe. Talvez vocês os dois tenham alguma coisa em comum.
Cato encolheu os ombros. Duvidava seriamente que ele e Máximo tivessem algo em comum. O desdém que o comandante da coorte sentia por ele tinha-se-lhe tornado evidente
nos poucos dias em que servira naquela unidade. Mas mais doloroso para o jovem era o pensamento de que os outros centuriões da coorte, à excepção de Macro, podiam
ter a mesma falta de apreço por si.
Ouviu-se uma ordem berrada algures na escuridão sufocante, para que os homens se colocassem em sentido, e Cato reconheceu a voz de Fígulo. Enquanto se escutava o
som das botas cardadas a bater em uníssono sobre o solo seco, fazendo lembrar um trovão longínquo, Máximo abandonou a proximidade do braseiro e dirigiu-se aos seus
oficiais.
- Deve ser o legado! Atenção, tudo em sentido.
Máximo deu dois passos em frente e empertigou-se, ficando hirto como um pedaço de madeira. Atrás dele, os outros centuriões colocaram-se em linha, os ombros para
trás, os queixos erguidos e os braços esticados ao longo do corpo. Fez-se então silêncio, interrompido apenas pelos sons do respirar e pisotear dos cavalos. Depois,
ouviu-se o ruído produzido por um grupo de homens que se aproximava a pé e, instantes depois, Vespasiano e alguns dos oficiais do seu estado-maior emergiram da escuridão
para o brilho alaranjado dos braseiros. O legado dirigiu-se aos centuriões e devolveu-lhes a saudação.
- Máximo, vejo que os teus homens parecem bem preparados, e dispostos a combater.
- Sim, senhor. Mal podem esperar para entrar em acção, senhor.
- Gosto de te ouvir! Vespasiano aproximou-se do comandante da coorte e baixou a voz. - Tens as tuas ordens, e sabes bem a importância lo teu papel na batalha que
vamos travar hoje.
- Sim, senhor.
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- Alguma questão de última hora?
- Nenhuma, senhor.
- Ainda bem. - Vespasiano estendeu a mão, e os dois homens trocaram um cumprimento, apertando o antebraço do outro. - Uma última batalha. Ao fim do dia, esta história
já deve estar arrumada. Que os deuses estejam contigo hoje, centurião.
- E também consigo, senhor.
Vespasiano sorriu e voltou-se para oriente, onde a primeira luz da alvorada começava a impor-se no horizonte.
- É tempo de se porem em marcha. Logo à noite partilharei o vinho contigo e com os teus homens.
O legado afastou-se e, seguido pelos seus oficiais, subiu as escadas de madeira que levavam ao passadiço sobre o portão.
Máximo virou-se para os outros centuriões:
- Regressem às vossas unidades! Preparem-se para marchar.
Cato e Macro fizeram a saudação regulamentar e afastaram-se,
percorrendo a coluna de homens silenciosos. Ao passar, Cato notou as bossas dos escudos, já que estas estavam impecavelmente polidas e luziam com um brilho pálido;
Máximo tinha dado ordens para que as coberturas de couro impermeável dos escudos ficassem no acampamento, reduzindo assim o peso que cada homem tinha que suportar.
Era portanto melhor que não chovesse, pensou, recordando o tremendo peso de um escudo ensopado.
Macro deixou-o quando passaram pela Terceira Centúria, dando-lhe um aceno à laia de despedida; Cato dirigiu-se à retaguarda da coluna, onde Fígulo, o seu optio,
o esperava junto ao estandarte da Sexta Centúria. Por agora, a longa haste exibia apenas uma condecoração, para lá do pendente quadrado com a identificação da unidade:
um disco em que estava inscrito o perfil do Imperador Cláudio, atribuído a todas as centúrias do exército do general Pláucio depois da vitória sobre Carátaco às
portas de Camaloduno, fazia quase um ano.
Cato sorriu amargamente para si mesmo. Há um ano. E ali estavam eles, prontos para mais uma vez enfrentarem o comandante bretão. Pela última vez. Mas mesmo que conseguissem
uma vitória na batalha que se avizinhava, Cato estava quase certo de que não seria naquela ocasião que as legiões romanas deixavam de lidar com Carátaco. Um ano
naquela ilha bárbara tinha-lhe ensinado uma coisa: os bretões eram demasiado idiotas para compreenderem o significado da derrota. Todos os exércitos que tinham enviado
contra as Águias tinham sofrido pesadas derrotas. Porém, eles continuavam a lutar sem descanso, e sem cuidarem de quantas vidas já tinham perdido. Para bem deles,e
das suas mulheres e crianças, Cato esperava que
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aquela batalha acabasse finalmente com a sua vontade de resistir.
Encheu os pulmões.
- Sexta Centúria, preparar para avançar.
Na escuridão, ouviu-se o som do metal a raspar, quando os homens levantaram os escudos do solo e apoiaram os dardos nos ombros, seguido de alguns resmungos e grunhidos
enquanto procuravam a melhor posição para equilibrar o peso, e depois o silêncio.
Cato ouviu a ordem para abrir os portões e os protestos das enormes dobradiças de madeira quando as espessas vigas foram empurradas para o interior do forte e se
abriu um buraco negro sob a torre sobranceira ao portão iluminado. Máximo lançou a ordem para a coorte se pôr em movimento. A coluna avançou então em cadência, esticando-se
à medida que cada centúria esperava uns instantes antes de seguir a que a precedia, para que houvesse algum espaço entre as unidades. Então, ouviu-se António ordenar
à Quinta Centúria que iniciasse a marcha. Quando a última fileira se começou a afastar, Cato contou cinco passos em silêncio, e depois gritou:
- Sexta Centúria! Avançar!
Estava finalmente em acção, a comandar os seus próprios homens, a sua unidade, com Fígulo um passo atrás e ao lado. Vinha a seguir o estandarte da centúria, e depois
a coluna de oitenta homens que constituíam o seu primeiro comando na legião. Nem um homem na lista da enfermaria. Cato espreitou sobre o ombro, e por um momento
o orgulho preencheu-lhe o peito. Eram os seus homens. Era a sua centúria. Os olhos percorreram as figuras indistintas das primeiras filas, e Cato sentiu que nada
na vida podia ser melhor do que ser o centurião da Sexta Centúria da Terceira Coorte da Augusta Segunda Legião.
Enquanto a coorte marchava através do portão, o legado desembainhou a espada e ergueu-a vigorosamente, como se quisesse trespassar a escuridão que o rodeava.
- Vitória! Vitória! A Marte!
- Gládios ao alto! - Gritou Máximo da cabeça da coluna, e com um ruído metálico, as curtas e letais espadas dos legionários faiscaram para o alto, e os homens juntaram-se
ao legado num grito a plenos pulmões, invocando a protecção do deus da guerra. Os gritos prosseguiram até que a coorte deixou bem para trás os baluartes do campo
e estes já não passavam de silhuetas recortadas contra o céu que começava a iluminar-se com o nascer do dia.
Cato lançou um último olhar sobre o ombro, e depois virou a atenção para o caminho por onde Máximo levava os seus homens a caminho da batalha que selaria definitivamente
o destino de Carátaco e dos seus guerreiros.
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Quando o Sol se levantou, tornou-se evidente que o dia ia ser quente e abafado. Nem o mais leve traço de brisa perturbava o céu de um azul sem mácula. A coorte marchava
pela rota dos abastecimentos, as botas cardadas dos legionários a levantarem a poeira que cobria os rastos deixados pelos vagões que percorriam regularmente o caminho.
O equipamento chocalhava, e ouvia-se o raspar constante de cabos de dardos e de bainhas de gládios no interior dos escudos. A curta distância, à direita, os homens
do esquadrão de cavalaria conduziam as suas montadas paralelamente à infantaria. Os centuriões, convocados por Máximo, marchavam à cabeça da coluna.
- Mantenham a passada num ritmo regular. - Indicava o comandante. - Não é preciso acelerar. Não queremos deixar os homens exaustos pela caminhada.
Macro discordou, mas manteve o silêncio. Havia todas as razões para se colocarem o mais cedo possível no lugar que lhes tinha sido designado. O legado tinha deixado
bem claro que era fundamental que todas as unidades ocupassem as suas posições, para que a armadilha se fechasse sobre Carátaco. Era verdade que a Terceira Coorte
tinha tempo de sobra para alcançar o vau logo ao início da tarde, mas se fosse ele o comandante, teria forçado a marcha, guarnecido a posição rapidamente, preparado
imediatamente as defesas, e só então teria permitido que os homens descansassem, enquanto aguardavam pela chegada do inimigo. Valia bem mais ter uma grossa margem
de erro do que uma estreita, decidiu. Pelo menos isso tinha aprendido em todos os anos de árduo serviço nas Águias. Mas a verdade é que não era ele o comandante
da coorte, e não lhe cabia discutir as ordens dos seus superiores. Portanto, manteve a boca fechada, e anuiu em resposta às instruções, como os outros centuriões.
- Assim que chegarmos ao forte auxiliar, pegamos nas ferramentas e concedemos um pequeno descanso aos homens.
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VII
A que unidade pertencem os auxiliares, senhor? - Perguntou.
- À Primeira Bataviana - germanos de boa cepa. São bons rapazes. - Máximo sorriu. - E estão em boas mãos. São comandados por um velho amigo meu, o centurião Porcino,
que também esteve na Guarda Pretoriana.
primeira Bataviana? - Macro pensou alguns segundos. - Não foram eles que estiveram em apuros nos pântanos do Tamisa, no Verão
passado?
- Foram...
- Bem me parecia. - Macro acenou, e apontou Cato com o polegar. - Estivemos lá. Tivemos que limpar o terreno depois daquela história deles se meterem a perseguir
os nativos, se perderem no pântano e serem praticamente destroçados. Não foi, Cato?
- Hum... foi. Acho que sim. - Cato tinha estado a observar o comandante da coorte, e notara o sobrolho franzido. - Mas combateram bem.
Macro virou-se para ele com uma expressão de surpresa, e Cato abanou a cabeça, para tentar avisá-lo.
- Sim, eles lutaram bem. - Rosnou Máximo. - Honraram o seu comandante. Perderam mais de metade do efectivo, e mesmo assim o Porcino manteve-os em combate. Estão
em boas mãos, como já disse.
- Bem, - Macro fungou, - se ele é assim tão bom comandante, então porque é que...
Cato olhava-o fixamente, e por fim ele percebeu. Fez uma pausa, olhou um instante para Máximo, e pigarreou.
- Porque é que o quê? - Insistiu Máximo, num tom duro.
- Bem, porque é que... Porque é que o general não lhe prestou as honras devidas?
- Macro, sabes como são essas coisas. Alguns centuriões são sempre vistos de esguelha pelos nossos legados e generais. Enquanto outros - e Máximo olhou para Cato
- vêem tudo cair-lhes nas mãos, numa bandeja de prata. É assim o mundo. Não achas, centurião Cato?
- Sim, senhor. - Cato forçou-se a sorrir. - Mais uma das iniquidades desta profissão.
- Iniquidades? - Repetiu Máximo, em tom jocoso. - Ora aí está uma bonita palavra. Sabes mais algumas desse género, filho?
Senhor?
- Tens mais palavras caras que queiras ensinar-me?
- Senhor, não foi minha intenção...
- Tem calma! - Máximo sorriu de forma exagerada, e ergueu a
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mão. - Não veio aqui mal nenhum ao mundo, e ninguém se sentiu ofendido! Não é culpa tua se passaste a maior parte da vida com o nariz metido nos livros, em vez de
te preparares como devia ser para uma vida de soldado, pois não?
Cato baixou a face para ocultar a raiva que o percorria.
- Não, senhor. E tenciono esforçar-me bastante para compensar a minha falta de preparação.
- É claro que sim, miúdo. - Máximo piscou o olho na direcção de António e Félix. - No fim de contas, um jovem não nasce ensinado.
- No fim de que contas, senhor? - Cato enfrentou o comandante. Máximo sorriu quando se apercebeu do brilho de determinação nos olhos do jovem oficial. Deu-lhe uma
palmada no ombro.
- Maneira de dizer, filho. Foi só isso.
- Muito bem, senhor. - Cato anuiu com um gesto da cabeça.
- Posso voltar para junto dos meus homens?
- Cato, não é preciso amuares.
Houve um momento de silêncio enquanto Cato tentava controlar um novo acesso de fúria. Percebia que Máximo o estava a atiçar, tentando forçá-lo a qualquer demonstração
de petulância em frente dos outros centuriões. Era tentador responder na mesma moeda, mostrar o que já tinha conseguido, apontar as medalhas que lhe ornavam o peito.
Infelizmente, quer Máximo quer Macro ou Túlio tinham mais medalhas do que ele. António e Félix ainda não possuíam qualquer condecoração por bravura, pelo que se
limitaria a insultá-los, e a ser alvo da chacota dos outros três centuriões, que não lhe perdoariam a arrogância. E menosprezar o comandante poderia ser interpretado
como insubordinação, o que só pioraria as coisas. Mas não fazer nada daria a sensação de que não passava de um fraco, e seria quase um convite para que Máximo prosseguisse
na sua campanha de comentários maliciosos. Achincalhar os subordinados era uma prerrogativa da patente, e Cato percebeu que era algo a que tinha que se habituar.
Por muito injusta que fosse a situação, dificilmente encontraria simpatia pela sua posição junto dos outros centuriões. Cada homem tinha que sofrer a sua parte,
e aguentar os insultos mal disfarçados e as propostas acintosas, sem qualquer possibilidade de lhes dar a resposta que mereciam. Quem cedesse a essa tentação depressa
estaria acabado. Tudo o que lhe restava portanto era suportar a tempestade e aceitar a... iniquidade - sorriu amargamente consigo mesmo - da situação.
Num lampejo, compreendeu que, no fundo, aquela era apenas mais uma forma que as legiões tinham para endurecer os homens. Os desconfortos associados à vida militar
eram tanto mentais como físicos, e era melhor que se habituasse a isso, porque, caso contrário, homens como Máximo
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destruí-lo-iam, tão certo como a noite se seguir ao dia. Muito bem, se não podia arriscar mostrar-se mais inteligente do que o seu comandante, e se não aguentava
mais ser o alvo das suas piadas, então o melhor era manter-se afastado dele, tanto quanto possível.
Olhou sobre o ombro, ao longo da linha de homens, até avistar a sua centúria, a última da coluna. Franziu o cenho.
- Senhor, parece-me que a minha centúria se está a deixar ficar
para trás. Peço licença para ir lá e os pôr a mexer como deve ser.
Máximo olhou para a retaguarda da coluna, e depois encarou Cato com ar desconfiado. Por momentos, o jovem receou que o seu pedido fosse recusado.
- Muito bem. Vê lá se eles acompanham o passo da coluna.
- Sim, senhor. - Cato fez a saudação regulamentar, girou sobre os calcanhares e dirigiu-se para o fim da coluna, cruzando-se com os legionários, sob o olhar atento
de Máximo.
- Macro?
- Senhor?
- Até que ponto é que conheces este rapaz?
- Bastante bem, senhor, suponho. - Macro respondeu com cautela. - Pelo menos, conheço-o desde que ele se juntou à Segunda Legião, como recruta.
- Há assim tanto tempo? - Máximo arqueou as sobrancelhas.
- Isso deve fazer quase, deixa-me ver... dois anos. Caramba, é mesmo muito tempo.
Até Macro se conseguiu aperceber da forte dose de sarcasmo empregue na afirmação. Decidiu imediatamente que Cato tinha que ser defendido, antes que Máximo sedimentasse
um julgamento erróneo sobre o jovem centurião. A primeira impressão era difícil de apagar, mas a última coisa que Macro queria ver era Cato ser prejudicado por um
julgamento apressado de um veterano, logo quando tinha a sua primeira experiência no comando de uma centúria. Os homens da Sexta ainda estavam irritados com a nomeação
de um centurião que era mais novo do que praticamente todos eles. A escolha de Fígulo para optio, feita por Cato, também não tinha ajudado nada à situação. O gaulês
era apenas uns meses mais velho do que o centurião, mas pelo menos tinha o tipo de aspecto físico que desincentivava a insubordinação nas fileiras. Fígulo não seria
um problema, concluiu Macro. Era Cato quem se ia ver pressionado para justificar a sua ascensão meteórica. E o veterano sabia que o seu jovem amigo, possuidor de
uma fraca autoconfiança mas animado por uma ambição poderosa, seria capaz de tudo para provar que era merecedor das honrarias que lhe tinham sido concedidas. Já
várias vezes testemunhara a coragem, movida pelo
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desespero, do rapaz. À primeira oportunidade, Cato trataria de demonstrar a Máximo que estava enganado, ou morreria a tentá-lo. Se o comandante da coorte não tomasse
consciência disso e abrandasse o tratamento zombeteiro que lhe estava a aplicar, o miúdo seria um perigo para si mesmo.
Nesse momento, Macro foi assaltado por uma suspeita terrível, que lhe deteve o curso do pensamento. E se Máximo já o tivesse reconhecido, mas tivesse decidido usar
aquela peculiaridade do carácter de Cato contra o próprio, explorando-a até ao fim?
Limpou a garganta, e começou, naquilo que esperava fosse um tom
ligeiro:
- Sim, senhor, é verdade que é muito novo. Mas aprendeu depressa. E tem coragem.
- Novo! - Troçou Máximo. - Nessa já reparei, obrigado.
Os outros centuriões riram-se, e Macro forçou-se a sorrir também, enquanto se preparava para realizar uma nova tentativa de levar Máximo a adoptar um tratamento
mais correcto para com o mais jovem dos centuriões da coorte.
- Ele é um bocadito susceptível, senhor. - Macro sorriu. - Lembra-se com certeza de como é ter aquela idade.
- Sim, recordo-me. E é precisamente por isso que penso que não se devem pôr rapazes a comandar homens. Não possuem o temperamento adequado, não achas?
- Na maior parte dos casos, sim, senhor.
- E no teu caso?
Macro pensou um pouco, e acabou por concordar.
- Acho que sim. Nunca poderia ter sido centurião com a idade do
Cato.
- Nem eu. - Máximo riu. - Por isso, o nosso jovem centurião não me convence.
- Mas Cato é diferente.
Máximo encolheu os ombros, e olhou para a estrada que se estendia à sua frente.
- Depressa o saberemos.
A poeira que se levantava à passagem da coluna ficava no ar e afectava principalmente os homens que marchavam na retaguarda, secando-lhes e irritando-lhes as gargantas.
Por isso, a Sexta Centúria tinha, pouco a pouco, deixado aumentar a distância que a separava da Quinta. Depois de dar conta do sucedido, Cato ordenou-lhes que recuperassem
a posição
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inicial e manteve a formação correcta no conjunto da coorte, apesar do murmúrio de protestos com que as suas ordens foram recebidas.
- Silêncio! - Gritou. - Pouco barulho nas fileiras! Optio, toma nota do nome do próximo que abrir a boca sem que tal lhe seja ordenado.
- Sim, senhor! - Respondeu Fígulo.
Cato saiu da estrada e ficou a ver a centúria a desfilar, observando cuidadosamente os homens. Já tinha o olhar treinado na detecção dos bons e maus elementos, na
distinção entre veteranos e recrutas, na análise dos que estavam em forma e dos que se arrastavam penosamente. Naquelas circunstâncias não ficavam dúvidas de que
todos estavam em boas condições físicas; o infernal regime de treino e de marchas constantes encarregava-se desse ponto. Os seus olhos concentraram-se na análise
do aspecto do equipamento que os homens transportavam, tomando mentalmente nota daqueles que tinham feito todos os esforços para apresentar o material no melhor
estado possível. Fixou os rostos dos que tinham a armadura suja e desleixada; tinha que mandar o optio tratar desses casos. Uns dias de faxinas deviam ser suficientes
para os pôr na linha. Se essa medida não resultasse, podia sempre multá-los.
Depois de a última fileira passar, Cato esperou ainda algum tempo para verificar o alinhamento das linhas, e depois regressou à estrada e correu para retomar a sua
posição. Estava satisfeito com o que tinha visto até ali. Havia uma mão-cheia de maus elementos que se identificavam à distância, mas a grande maioria eram homens
honestos, trabalhadores e conscientes do seu papel. O único factor que ainda o apoquentava era o seu desconhecimento do espírito de grupo da unidade. Os rostos que
tinha perscrutado enquanto passavam não mostravam grande expressão, e uma vez que lhes tinha ordenado que se mantivessem em silêncio, não havia muito que pudesse
servir para avaliar o estado de espírito da centúria, para além de algum ressentimento para com a ordem. Considerou a possibilidade de a alterar e de lhes permitir
conversar
enquanto caminhavam, o que lhe permitiria aperceber-se melhor dos sentimentos que imperavam entre Os homens. Mas contrariar uma ordem tão recente só o faria parecer
indeciso e incapaz de assumir uma posição. Portanto, por agora, teria que aceitar o facto de os homens terem ficado mal-dispostos com ele. Talvez isso até contribuísse
para formar a imagem que queria que os outros tivessem dele, a de um disciplinador implacável que não toleraria o menor indício de insubordinação dos homens que
comandava. Havia de mostrar uma ou duas coisas àquele filho da puta do Máximo...
E era por isso, compreendeu subitamente, que estava a ser tão duro com os homens. Estava a fazê-los pagar pela raiva que sentia; e ao aperceber-se de tal facto,
sentiu-se imediatamente engolido por uma vaga de culpa
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e autodesprezo. Não havia qualquer diferença entre a forma como Máximo o tratara e a vingança que exercia sobre os legionários que estavam sob o seu comando. Máximo
tinha razão - por muito que lhe custasse admitir, estava amuado, e oitenta homens de valor sofriam as consequências. Se não se livrasse daquela sensibilidade tonta,
seria para eles um anátema. Mas eles teriam que ser capazes de confiar absolutamente nele, se quisessem prevalecer sobre a selvagem ferocidade de Carátaco e da sua
horda.
? ? ?
Pouco depois do meio-dia, chegaram a um ponto em que a estrada fazia uma curva, dirigindo-se a um outeiro próximo. No cimo deste podia ver-se terra escura, denunciando
a recente escavação e construção de um baluarte. Uma paliçada de madeira percorria o topo do monte de terra, e torres de construção mais sólida marcavam os cantos
da edificação, bem como os dois portões. Os detalhes do forte eram indistintos sob o calor que fazia tremeluzir a imagem, mas, por trás da colina, já se adivinhava
o Tamisa, com as suas águas frescas e convidativas aos olhos dos legionários extenuados. Cato sentiu que há meses que não via uma cena tão pacífica e serena, mas
a visão do rio trouxe-lhe à lembrança a batalha iminente. Dentro em pouco, as águas tranquilas estariam manchadas pelo sangue, e os cadáveres espalhar-se-iam pela
paisagem sob a luz brilhante do Sol.
Enquanto a coorte se aproximava, não havia sinal de movimentações no baluarte, quase como se as sentinelas tivessem decidido recolher-se, para fazer uma sesta protegidas
do calor. Por cima do forte pairavam pequenos pontos negros: provavelmente alguma espécie de necrófagos, concluiu Cato. Para lá de alguns andorinhões que dardejavam
aqui e ali, eram aqueles os únicos pássaros que se viam pelo ar. Quando a coorte chegou à distância correspondente ao alcance dos arcos longos e ainda não havia
qualquer sinal de vida no forte, o centurião Máximo ordenou à coorte que se detivesse, e mandou os batedores montarem e irem investigar: Dirigiram-se ao forte, subindo
a ligeira encosta.
- Oficiais à frente da coluna!
Cato correu, o equipamento a chocalhar enquanto passava pelas centúrias silenciosas. Juntou-se aos outros oficiais, com a respiração pesada e o suor a escorrer-lhe
pela testa.
- Há qualquer coisa errada. - Murmurou Félix.
Máximo virou-se para ele devagar.
- A sério? Achas que sim?
Félix pareceu surpreendido com a reacção.
- Bem, senhor, sim. Ou isso ou eles têm ali as piores sentinelas
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que alguma vez encontrei. E, nesse caso, alguém tem que levar uma boa
ensaboadela.
Máximo anuiu.
- Bem muito obrigado pela tua concisa apreciação da situação.
Muito instrutiva... Idiota! É evidente que alguma coisa não está bem.
Félix começou a murmurar qualquer coisa, mas resolveu que era melhor manter-se calado, e ali ficou, a olhar para as botas e a escavar o solo com a ponta de uma delas.
Os outros centuriões olharam para o forte e viram como os batedores se aproximavam cautelosamente da entrada. Uma das portadas começou a abrir-se lentamente.
- Senhor!
- Estou a ver, António.
Um vulto escuro saiu da sombra da muralha, ficando bem à vista. Era um cão, um dos animais de grande porte que os batavianos insistiam em manter por perto, quando
em campanha. Lançou um olhar rápido aos batedores que se acercavam, virou-se e fugiu velozmente na direcção oposta. Por momentos, os oficiais ficaram a vê-lo correr,
o dorso a oscilar, enquanto desaparecia por trás da colina.
- Senhor, o que é aquilo? - Inquiriu Cato, apontando para o torreão sobranceiro à entrada do forte.
O portão tinha continuado a abrir-se, e estava agora em plena luz. Havia alguma coisa pendurada no interior da portada.
- Oh, merda. - Lamentou o centurião Félix.
Ninguém lhe respondeu. Já todos conseguiam distinguir perfeitamente o que era, e a ninguém apetecia falar. Era o corpo de um homem, preso às tábuas por estacas metálicas
cravadas nas palmas das mãos. Estava nu, e tinha sido estripado; as entranhas caíam-lhe sobre as pernas, em tons vermelhos e cinzentos que reluziam ao Sol.
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VIII

O centurião Máximo virou-se rapidamente.
- Coorte! Formar! Em fileiras apertadas!
Enquanto os homens se movimentavam e juntavam os escudos, Máximo enviou os centuriões de volta às unidades respectivas. Junto ao forte, os batedores tinham-se espalhado
pelo caminho, e o decurião aproximava-se lentamente do portão, acompanhado por outros três homens. Detiveram-se por um momento junto ao cadáver mas, pela altura
em que Cato chegou junto a Fígulo, que se tinha mantido à frente da Sexta Centúria, já tinham desaparecido no interior da fortificação.
- Senhor, o que se está a passar?
- Optio, por acaso não tens olhos? - Retorquiu Cato rispidamente. - Sugiro que os uses.
Fígulo colocou a mão em pala, a proteger a vista da luz do Sol e franziu os olhos enquanto se esforçava por ver o que se passava; entretanto, Cato apercebeu-se de
que os homens murmuravam nas suas costas. Lançou um olhar furibundo sobre o ombro.
- Toca a calar!
Ao avistar um legionário que tinha arriscado sussurrar qualquer coisa ao vizinho, Cato virou-se e dirigiu-se ao homem, apontando-o.
- Tu! Tu, sim! Vais ter uma participação. Como é que te chamas?
- Tito Vélio, senhor!
- Não te mandei calar, porra? Quem é que te mandou falar depois disso? - Cato estacou à frente do legionário e encarou-o, forçando-o a recuar imperceptivelmente.
Vélio era um pouco mais baixo do que o centurião, bastante mais velho e muito mais forte. Olhava sobre o ombro do oficial, sem qualquer expressão no rosto. - Então?
- Senhor, dizia apenas que estamos metidos num sarilho. - Os olhos do homem encontraram os de Cato, pelo mais breve dos instantes.
- Foi tudo. - O olhar regressou ao habitual fitar do infinito.
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As narinas de Cato tremeram enquanto ele exalava, irritado.
- Optio!
- Senhor? - Fígulo apressou-se a responder a chamada.
- Vais pôr aqui o Vélio de faxina às latrinas, dez dias.
- Sim, senhor.
Cato deu um passo atrás e lançou um olhar abrangente aos homens que comandava.
- O próximo linguarudo que eu ouvir a falar sem permissão vai passar vinte dias na merda!
Virou-se e voltou a dirigir a atenção para o forte. O portão tinha-se escancarado e ficara encostado ao torreão, e o homem ficara dependurado, imóvel. Não havia
sinais de vida no interior, e só o lento esvoaçar dos corvos perturbava a calma mortal que se espalhava pelos baluartes. Cato perscrutou a paisagem em redor, mas
em nenhuma direcção se notava qualquer movimento. Nem inimigos, nem tropas auxiliares, nem sequer algum nativo que vivesse na zona.
Por fim, o decurião que comandava os batedores emergiu das sombras do torreão e dirigiu-se a trote até ao centurião Máximo, que tinha avançado alguns metros, impaciente
por saber o que tinha acontecido à guarnição do forte.
- Então?
O decurião parecia fortemente abalado.
- Estão todos mortos, senhor.
- Todos? Toda a unidade?
- Suponho que sim, senhor. Não os contei, mas ali dentro devem estar mais de cem corpos. A maioria não parece ter morrido depressa.
Máximo olhou para o forte durante um momento, e depois deu as suas ordens ao decurião.
- Pega nos teus homens, e procura os rastos dos autores deste serviço. Descobre para onde se dirigiram, e depois apresenta-me um relatório.
O decurião saudou o superior, fez o cavalo dar meia-volta e regressou para junto dos seus homens, ordenando-lhes que formassem. Máximo dirigiu-se ao forte com passos
decididos e entrou.
Os batedores seguiram para norte em busca do inimigo, e depressa desapareceram da vista dos homens da coorte, que ficaram em silêncio à espera do seu comandante,
debaixo de um sol abrasador; a ansiedade aumentava nos rostos à medida que o tempo passava e aquele não regressava do forte. Ao fim de cerca de um quarto de hora,
pelos seus cálculos, Cato já não aguentava mais, e deu uma palmada na coxa, irritado.
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- Senhor, pensa que aconteceu alguma coisa ao comandante? - Perguntou Fígulo, em voz baixa.
- Espero que não. Mas era bom que ele voltasse, e depressa. Não ppdemos atrasar-nos. Ele tem ordens precisas.
- Não deveria alguém ir ver se ele está bem?
Cato olhou ao longo da coluna, localizando os outros centuriões. Macro olhava para ele, e moveu as mãos num gesto de impotência.
- Tens razão. - Concedeu. - Alguém tem que ir ver o que se passa. Fica aqui.
Cato dirigiu-se à frente da coluna. Félix e António, comandantes das centúrias mais próximas, olharam-no com surpresa quando passou por eles. Parou junto a Macro.
- Porra, que está a demorar! - Resmungou este.
- Pois está. E temos que nos pôr a mexer.
- Vamos precisar das ferramentas do forte para abrir trincheiras.
- Então temos que as ir buscar e seguir para o vau. Alguém tem que ir lá...
Enquanto Macro coçava o queixo e avaliava a situação, o centurião Túlio aproximou-se deles com uma expressão de ansiedade no rosto enrugado.
- O que é que vocês acham que devemos fazer?
Macro olhou-o espantado. Sendo o oficial mais antigo presente, Túlio devia tomar decisões, não pedir conselhos ou, pior ainda, opiniões. O centurião mais velho continuou
a olhar para eles com um ar de esperança, à espera que dissessem qualquer coisa.
- Alguém tem que ir lá. - Disse, por fim, Cato.
- Ele ordenou-nos que permanecêssemos com as nossas centúrias.
- Olhem, - irritou-se Macro, - não podemos passar o dia todo aqui a fazer farinha Temos que chegar ao vau. Alguém tem que ir buscar o Máximo. E já.
- Pois. Mas quem?
- Sei lá. - Retorquiu Macro. - Vai tu.
- Eu? - Túlio pareceu ficar assustado perante a perspectiva. Abanou a cabeça. - Não. É melhor eu ficar com a coorte. Se for uma armadilha, vou ser necessário aqui.
Vai tu, Cato. É melhor correres até lá, agora mesmo.
Cato nem se deu ao trabalho de mostrar o seu desagrado; em vez disso, virou-se para o forte e começou a correr pelo declive acima. Quase no mesmo instante, uma figura
emergiu do portão, e caminhou a passadas largas pela estrada. Reparou imediatamente no ajuntamento dos centuriões,
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e dirigiu-se a eles sem disfarçar a fúria. Os três oficiais prepararam-se para aguentar a reprimenda.
- Que diabo é isto? Quem é que vos disse para deixarem as vossas
unidades?
- Senhor, - protestou Cato, - estávamos preocupados com a sua
segurança.
- E estamos a atrasar-nos. - Ajuntou Macro. - Nesta altura já devíamos estar a caminho do vau, senhor.
Máximo virou-se de imediato para ele, espetando-lhe um dedo no
peito.
- Centurião, não te atrevas a dizer-me o que devo fazer!
- Senhor, apenas pretendia lembrar...
- Calado! - Máximo berrou a ordem na cara de Macro. Por um momento, os dois oficiais encararam-se ferozmente, enquanto os homens em redor observavam espantados.
Cato tossiu.
- Senhor?
- O que é?
- Há sobreviventes?
- Nem um.
- Algum sinal do centurião Porcino?
Máximo pestanejou ao ouvir o nome do amigo.
- Oh, sim, encontrei-o. De facto, encontrei-o por todo o lado.
- Não compreendo.
- Porra, queres que te faça um desenho? Se alguma vez apanhar os cabrões que fizeram isto, juro pelo nome da minha família que hão-de levar todo o dia a morrer.
O som de cascos distantes atraiu a atenção dos homens para a base da encosta; um dos batedores aproximava-se a galope. Puxou as rédeas quando se aproximou dos oficiais,
e o cavalo projectou alguns torrões de terra para cima destes, ao deter-se. O batedor saltou imediatamente para o chão e saudou Máximo, quase sem fôlego.
- Apresenta o relatório!
- Senhor, encontrámo-los! - O batedor lançou o polegar sobre o ombro, apontando para norte, na direcção do Tamisa. - Infantaria. Dirigem-se para ocidente, ao longo
do rio, a menos de quatro quilómetros daqui
- Quantos são? - Perguntou Cato.
- Entre trezentos e quatrocentos, senhor.
Máximo lançou um olhar de aviso a Cato, antes de voltar a dirigir-se ao batedor.
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- Rapaz, é a mim que estás a apresentar o relatório.
- Sim, senhor. - O homem estava aflito. - É claro. Desculpe senhor.
O comandante da coorte anuiu com severidade.
- Está bem. Vamos a eles. Regressa para junto do teu decurião. Quero que os sigam. Se mudarem de direcção, informem-me imediatamente. Percebido?
- Sim, senhor.
- Então vai. - Máximo acenou-lhe com a mão para que se despachasse, e virou-se para os outros oficiais. Enquanto o batedor se lançava sobre a
sela e impelia a montada, afastando-se, o centurião ordenou os pensamentos. - Muito provavelmente, é um pequeno grupo que aproveita qualquer oportunidade para atacar
unidades isoladas.
- Um pequeno grupo? - Admirou-se Cato.
- Que mais poderia ser?
- Bem, é óbvio. - Cato estava surpreso.
Macro surpreendeu-se com a resposta directa, pouco habitual no
amigo.
- Ah, sim? Bom, centurião, por quem és, partilha connosco, pobres mortais, a tua sabedoria táctica.
- Devem ser batedores do exército de Carátaco. Deve-os ter mandado para verificarem os vaus.
- E porque teriam atacado o forte, então?
- Porque devem ter sido vistos. Talvez Carátaco não quisesse ninguém vivo que fosse capaz de dar informações sobre os seus movimentos.
- Então para que os teriam morto desta maneira? Que propósito é que isso serve?
- São bárbaros. - Cato encolheu os ombros. - Não conseguem evitar comportar-se desta forma.
- Uma merda! São é assassinos... carniceiros! É tudo. E agora vão pagar por isto.
- Senhor, - interveio Macro, - e as nossas ordens?
Máximo ignorou-o e virou-se para a colina, enchendo os pulmões.
- Coorte! Preparar para avançar!
- Se deixarmos o vau desprotegido e Carátaco resolver atravessar
aqui...
Máximo encarou-o com um sorriso forçado.
- Macro, temos tempo para tratar-destes nossos amigos e ainda assim guarnecer o vau. Acredita.
- Mas as ferramentas de que vamos precisar estão no forte, senhor.
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- Voltaremos cá para as apanhar...
- Mas se tivermos que voltar para trás...
- Demónios, Macro! - Exclamou Máximo, as mãos a formarem punhos cerrados. - Pega na tua centúria. Arrebanha a merda das ferramentas, e vem ter connosco ao vau.
- Sim, senhor.
- Coorte! - O centurião ergueu o braço e lançou-o para a frente.
- Avançar!
- Terceira Centúria! - Berrou Macro - Abandonar formação!
Os homens de Macro saíram do caminho enquanto o resto da coorte seguia Máximo, que se dirigia a passo acelerado na direcção do Tamisa. Lançando um relance às costas
do comandante da coorte, Macro agarrou Cato pelo braço.
- Escuta. Isto está a correr mal. O Máximo passou-se. Se ele se lembrar de alguma que vos ponha, a ti e aos homens, em perigo...
Cato assentiu, devagar.
- Farei o que for preciso, se as coisas forem por esse caminho. Vemo-nos no vau.
- Certo. Tem cuidado, miúdo.
- Tenho sempre. - Cato forçou-se a sorrir, e depois virou-se para os seus homens.
Macro viu o amigo juntar-se à formação, ao lado de Fígulo. Toda a Sexta Centúria passou, e quando a última fileira desapareceu por trás da colina, Macro ordenou
aos seus homens que subissem a encosta. Além do tilintar do equipamento dos legionários, o único som que se escutava era o dos corvos a disputarem os cadáveres no
interior do forte.
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IX

Cerca de uma hora depois, a coorte alcançou os bretões. Uma massa compacta de infantaria marchava rapidamente para montante ao longo do rio, na direcção do vau que
a coorte tinha por missão defender. Tornou-se imediatamente claro que não chegariam lá antes dos romanos, mas via-
se que o comandante bretão era combativo e não estava disposto a desistir sem tentar, pelo que forçou os seus homens a estugar o passo, mesmo perante a aproximação
da coluna inimiga. Então pareceu mudar de opinião, e os bretões mudaram repentinamente de direcção, afastando-se do vau e tentando desesperadamente escapar aos seus
perseguidores. Máximo deu imediatamente ordens ao decurião que comandava os batedores, para que estes se adiantassem e travassem o passo aos inimigos, forçando-os
a envolver-se em escaramuças.
Assim, os batedores começaram a aproximar-se da coluna inimiga, lançando os seus dardos ligeiros contra as primeiras fileiras bretãs, antes de galoparem de volta
a uma distância segura. Ao ver que esta táctica não alcançava grandes resultados quanto ao objectivo de atrasar o passo do inimigo, o decurião reagrupou as suas
tropas e ameaçou várias vezes lançar uma carga, o que obrigou os bretões a deterem-se e prepararem-se para o embate. Depressa porém perceberam que os romanos não
concretizavam a ameaça, e ignoraram a terceira ameaça, o que obrigou os batedores a pararem e fazerem rapidamente meia-volta para escaparem. Ainda assim, Máximo
e os seus homens tinham ganho algum tempo. Pouco mais de uma hora depois de a coorte ter deixado o forte, os bretões deram meia-volta e prepararam-se para enfrentar
os seus perseguidores.
- Coorte... alto! - Bradou Máximo. - Formar linha!
Enquanto as cinco centúrias ocupavam em silêncio as respectivas posições, os bretões formaram numa cunha desordenada, a duzentos passos, com as costas para a larga
curva descrita pelo rio. Começaram imediatamente a bater com as armas contra os escudos e a levantar as vozes
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numa cacofonia de piadas, gritos e insultos que tinha por fim motivarem-se para o combate. A maior parte dos legionários tinha testemunhado esta actuação várias
vezes durante o último ano, mas ainda assim o estrépito e o frenesim dos inimigos continuavam a afectar-lhes os nervos, enquanto se preparavam para a "correria céltica",
que parecia ser a única manobra do reportório táctico das tribos da ilha.
Cato andava devagar à frente dos seus homens. A Sexta Centúria estava colocada no flanco esquerdo da linha romana. Alguns dos rostos mais jovens, e até alguns dos
veteranos, mostravam expressões eloquentes quanto à dúvida e ao medo que sentiam, e o seu comandante apercebeu-se de que era preciso distraí-los. Cato parou e voltou
as costas ao inimigo.
- Se fosse a vocês, não me preocupava com aquela malta! - Tinha que gritar para ser ouvido sobre o clamor crescente dos gritos de guerra do inimigo. - Daqui a nada
vão-se atirar sobre nós. Tudo o que temos a fazer é aguentar firme, dar-lhes com uns bons centímetros das nossas espadas, e vão ver como eles desistem. Muitos de
nós já passaram por isto, e sabem como se passam as coisas. Quanto aos outros, quando tudo tiver acabado, até vão ficar admirados por se terem preocupado. - Cato
sorriu. - Podem acreditar em mim, sou o vosso centurião!
Alguns dos legionários riram, e Cato viu com satisfação que a tensão nervosa que tinha percebido em muitos rostos um momento antes se desanuviava.
- E tu é que sabes, não é, puto? - Gritou uma voz, vinda das fileiras de trás.
Fígulo girou sobre os calcanhares.
- Quem disse isso? Quem foi o cabrão que abriu a boca? - O optio forçou a passagem através da primeira fileira. - Há aqui um filho da puta que acaba de assinar a
sua própria sentença de morte.
- Optio! - Gritou Cato. - Regressa ao teu posto!
- Sim, senhor! - Fígulo lançou olhares severos aos homens à sua Volta antes de voltar a forçar a passagem por entre os escudos e tomar o seu lugar junto ao porta-estandarte
da centúria. Cato olhou-o nos olhos e acenou-lhe brevemente, em jeito de aprovação; a intervenção do optio tinha cortado pela raiz qualquer tentação de indisciplina
generalizada. Muito bem, se alguns dos seus homens dispensavam o seu encorajamento, bem podiam esperar pela carga do inimigo em silêncio.
Afortunadamente, a paciência não se contava entre as virtudes dos celtas, e os nativos depressa soltaram um rugido colectivo e iniciaram a correria pelo campo, de
encontro à linha imóvel de escudos vermelhos romanos, acima dos quais se fazia notar a resplandecente linha de capacetes polidos banhados pela áspera luz do Sol.
Cato forçou-se a proceder
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calmamente, enquanto se virava para enfrentar o inimigo. A sua visão apurada permitiu-lhe apreciar todos os detalhes, os cabelos viscosos, as tatuagens e pinturas
espirradas aplicadas na pele nua e reluzente, e os reflexos faiscantes quando o sol batia nas lâminas e capacetes. As lanças oscilavam pelo ar, e todos os selvagens
rostos que se viam sob elas traziam expressões de fúria e desejo assassino que os deformavam e os assemelhavam a criaturas vindas dos pesadelos mais tenebrosos.
Cato sentiu-se aterrorizado, e por um instante as suas pernas foram presa de uma forte vontade de se virar e fugir dali. Mas o horror de expor o medo que sentia
em frente dos homens que comandava foi mais forte, salvando-o dessa vergonha; então, o jovem centurião acolheu com alívio o arrepio que o percorreu e que lhe alertou
todos os sentidos e preparou todos os músculos para o embate iminente, e para a necessidade de matar para continuar a viver. Obrigou-se a permanecer imóvel ainda
mais uns instantes, e a enfrentar a multidão ululante que corria pela relva na direcção da linha romana. Virou-se então, e caminhou lentamente até à primeira fila
da sua centúria.
- Estandarte para a retaguarda! - Cato julgou que a sua voz tinha tremido um pouco, e concentrou-se em firmá-la para emitir a ordem seguinte. - Escudos acima!
Ao assumir a sua posição no centro da formação, na primeira linha de combate, agarrou com firmeza o escudo que Fígulo lhe apresentava, e empunhou o gládio.
Na outra ponta da coorte, Máximo levou a mão em concha à boca, e gritou uma ordem a plenos pulmões, embora ela se tornasse quase inaudível no meio da algazarra feita
pelos guerreiros bretões.
- Primeira fileira... Preparar dardos!
A fila da frente ondulou quando os homens avançaram dois passos e se imobilizaram.
- Preparar lançamento!
Os legionários colocaram-se em posição, as cinturas torcidas e os braços puxados atrás, orientando as hastes dos dardos para o céu. Então, ficaram à espera da ordem
final. Máximo avaliou a distância entre a coorte e os bretões. Deixou que estes continuassem a aproximar-se, à desfilada sobre os verdejantes tufos de erva. Quando
já não estavam a mais de trinta passos de distância, virou-se de novo para os seus homens.
- Lançar!
Um grunhido colectivo de esforço fez-se ouvir quando os legionários projectaram as armas para o céu, formando um véu de riscos negros que subiram, perderam velocidade
até atingir o ponto mais elevado da sua trajectória, e depois curvaram e iniciaram a descida, ganhando de novo
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ímpeto e atingindo o inimigo com o habitual som de choques metálicos e de penetrações na carne exposta. A tão curta distância, dezenas de bretões caíram imediatamente,
trespassados pelas pesadas pontas metálicas dos mísseis romanos.
- Filas seguintes, dardos para o solo, avancem! - Gritou Maximo,
e o resto da coorte colocou-se em posição por trás dos homens da primeira fileira, que entretanto tinham desembainhado as espadas e aguardavam o embate da carga.
No momento seguinte, os bretões lançaram-se contra a linha romana, usando as suas longas espadas e as lanças para atacar e tentar contornar os grandes escudos romanos.
Alguns, mais poderosos fisicamente, irromperam pelas brechas entre os escudos, apenas para se confrontarem com as espadas dos homens das filas seguintes. Cato, alto
e magro, viu-se empurrado por um corpo que embateu contra o seu escudo. Cedeu, mas à medida que o guerreiro inimigo penetrou nas linhas da Sexta Centúria, foi golpeado
incessantemente pelo legionário à sua esquerda. O centurião agradeceu a Velio com um aceno, e recuperou o lugar na linha.
Depois de absorver o primeiro impacto da carga inimiga, a linha romana restabeleceu-se rapidamente e começou a ceifar metodicamente as vidas dos inimigos que, frustrados,
atacavam os escudos vermelhos sem obter resultados. Cato bloqueava as estocadas dos inimigos à sua frente e, sempre que a ocasião se proporcionava, projectava a
ponta da espada por entre o seu escudo e o do homem ao seu lado, reclamando mais uma vida inimiga. Quando podia, olhava para os lados, para avaliar a forma como
decorria o combate. Apesar da ferocidade da carga, os bretões estavam em menor número e o seu combate era sem esperança; a linha romana nunca correra perigo de ser
quebrada.
Sobre os gritos, choques e gemidos da batalha, Cato ouviu uma ordem a ser passada através da coorte e viu, à sua direita, a Primeira Centúria a avançar. Depois,
escutou a voz do centurião Félix, ali perto, também a dar uma ordem. - Avançar!
À medida que a Quinta começou a movimentar-se, Cato repetiu também a ordem, e os seus homens aplicaram o seu peso contra os escudos e começaram a forçar a ténue
linha inimiga a recuar. Com o avanço dos romanos, os bretões viram-se ainda com menos espaço para manejar as suas grandes e pesadas armas, e depressa os gritos de
exaltação que se tinham escutado morreram nas suas gargantas, à medida que cada homem se passava a preocupar apenas com a melhor forma de escapar às perigosas pontas
metálicas que espreitavam por entre os grandes escudos. A escaramuça não tinha tido dimensão suficiente para que se empilhassem corpos, portanto, nada detinha o
recuo dos bretões. Ao espreitar sobre a borda do escudo,
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Cato viu os homens à sua frente a cederem terreno, e apercebeu-se de que já existia algum espaço entre as linhas de combatentes. Os legionários prosseguiram o avanço
em formação cerrada, e passaram sobre os corpos dos inimigos que tinham sido abatidos pela rajada de dardos. Aniquilaram os feridos e continuaram sem se deter. Já
não havia qualquer pretensão de resistência, e os bretões quebraram a sua linha e fugiram.
Nas suas costas estava o rio, e ao aperceberem-se do risco de ficarem presos entre a água e a parede de escudos, os bretões dirigiram-se para os flancos da formação
romana, tentando escapulir-se enquanto podiam. Mas essas posições estavam cobertas pelo decurião e pelo seu esquadrão montado, dividido em dois destacamentos. Fizeram
avançar os cavalos, e abateram sem piedade todos os guerreiros que fugiam. Sem possibilidade de fuga pelos flancos, os bretões concentraram-se de novo junto ao rio
e prepararam-se para morrer junto à corrente que lhes passava tranquilamente pelas costas. Cato calculou que ainda havia mais de cem inimigos, e que muitos já tinham
perdido ou abandonado as armas, pelo que aguardavam de punhos cerrados e dentes à mostra, com expressões de terror. Estavam acabados, percebeu o centurião. Só lhes
restava a morte ou a rendição. Inspirou profundamente e gritou em céltico:
- Larguem as armas! Larguem-nas, ou morrem!
Os guerreiros olharam para ele, alguns em desafio, outros com esperança. Os legionários continuaram a avançar e os bretões a recuar, alguns já pelo rio, primeiro
junto à margem mas depois avançando mais, com a água a subir-lhes pelos corpos.
- Atirem as vossas armas para o chão! - Exigiu Cato. - Já!
Um dos guerreiros virou-se e lançou a espada para a corrente, para uma zona mais profunda. Outro imitou-o, e daí a pouco todos tinham deposto as armas e esperavam,
mergulhados na corrente, a decisão dos romanos.
Cato virou-se para a coorte, levando a mão à boca.
- Alto! Alto!
As centúrias travaram o passo e acabaram por se imobilizar, a poucos passos da margem do rio. O comandante da coorte saiu da sua posição junto à Primeira Centúria
e Cato viu-o a correr na sua direcção.
- O que é que pensas que estás a fazer? - Vociferou Máximo enquanto se aproximava.
- Senhor, exigi-lhes que se rendessem.
- Rendição? - As sobrancelhas de Máximo arquearam-se, em sinal de genuína surpresa. - Mas alguém disse alguma coisa sobre fazer prisioneiros?
Foi a vez de a face de Cato se enrugar.
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- Mas, senhor, supunha que queria prisioneiros...
- Depois do que fizeram? Que diabo estavas tu a pensar?
- Senhor, estava apenas a tentar salvar vidas. Nossas e deles.
- Estou a ver. - Máximo relanceou o olhar pela Sexta Centúria
e inclinou-se para o centurião, antes de continuar, em voz baixa. - Não é a ocasião para sentimentos nobres, jovem Cato. Não podemos sobrecarregar-nos com prisioneiros.
E além disso, não viste o que eles fizeram aos homens do forte. Porcino, o meu amigo... Não, eles têm que morrer.
- Senhor, eles estão desarmados. Renderam-se. Não seria correcto. Já não pode ser.
- Não seria correcto? - Máximo deu uma gargalhada, e abanou a cabeça. - Isto não é um jogo. Cato, aqui não há regras.
No olhar do comandante não havia um traço de piedade; em desespero, Cato resolveu tentar outra aproximação.
- Senhor, eles podem estar na posse de informação valiosa. Se os enviarmos para a retaguarda, para serem interrogados...
- Não. Nem pensar em dispensar homens para guardar prisioneiros. - Máximo arreganhou os lábios, num sorriso simulado. Virou-se para os homens de Cato. - Tirem-nos
dali! Levem-nos e amarrem-lhes as mãos. Usem tiras da roupa deles.
Os homens da Sexta Centúria depuseram os escudos e começaram a arrastar os bretões para fora da água. Os prisioneiros eram lançados para o solo, as mãos puxadas
brutalmente para trás e amarradas cuidadosamente. Quando o último dos inimigos tinha sido manietado, Máximo contemplou-os com um olhar de satisfação perversa. Cato
mantinha-se de lado, satisfeito com o facto de os prisioneiros terem sido poupados.
- Senhor, estes já estão arrumados. Não nos darão mais problemas.
- Pois não.
- E podemos apanhá-los depois, senhor.
- Sim, podemos.
- Suponho que podem tentar escapar, mas não irão muito longe.
- Não, não irão, de facto. Sobretudo depois de tratarmos bem deles.
- Senhor? - Cato sentiu um calafrio a percorrer-lhe os pêlos da
nuca.
Máximo ignorou-o, e dirigiu-se directamente aos legionários:
- Ceguem-nos.
Fígulo fez uma careta, inseguro sobre o que acabara de ouvir.
- Já disse, ceguem-nos. Vazem-lhes os olhos. Usem as adagas.
Cato abriu a boca para protestar, mas não conseguiu encontrar as
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palavras certas, de tão horrorizado que estava. Enquanto se debatia para falar, o comandante da coorte avançou decidido para Fígulo, puxou da adaga do optio e inclinou-se
sobre o prisioneiro mais próximo.
- Assim, é fácil...
Ouviu-se um grito da mais pura agonia e terror, como Cato nunca escutara, e sentiu que o estômago se revoltava e a vontade de vomitar o assaltava. O comandante da
coorte continuava a operar com o braço com que habitualmente segurava a espada, e depois ergueu-se com uma expressão amarga e virou-se. O braço pendia-lhe junto
ao corpo, e o sangue pingava da adaga que empunhava com toda a força. Por trás dele, o bretão agitava-se no solo, ainda a gritar, enquanto o sangue lhe escorria
das órbitas vazias e salpicava a erva em redor.
- Pronto! - Máximo devolveu a adaga a Fígulo. - É assim que se faz. Agora, continuem com o serviço.
Fígulo olhou para ele horrorizado, e depois para Cato, como que pedindo ajuda.
Máximo encarou o optio:
- Tu, vais...
- Optio! - Gritou Cato. - Recebeste as tuas ordens. Obedece-
-lhes!
- Sim... - Anuiu Fígulo. - Sim, senhor. - Virou-se para os legionários mais próximos. - Peguem nas facas. Ouviram o centurião!
À medida que os homens se lançavam na sua tenebrosa tarefa, e que a tarde quente se enchia de gritos lancinantes, Máximo mostrava-se satisfeito.
- Bom, agora sim, estamos a acabar o serviço aqui. Assim que vocês tiverem terminado, a coorte avança para o vau.
- Sim, senhor. - Replicou Cato. - Sendo assim, é melhor despacharmo-nos.
- Sim. É melhor, de facto. - Máximo pareceu ficar preocupado, de repente, e girou sobre os calcanhares e dirigiu-se para os seus homens. Os últimos prisioneiros
foram supliciados, e os homens da Sexta Centúria limparam as armas e recuperaram os dardos e escudos, antes de formarem na retaguarda da pequena coluna romana. A
coorte tinha sofrido apenas sete mortos, e alguns homens tinham sido feridos. Já tratados, seguiam agora para a segurança relativa do forte. O resto da coorte esperou
que Máximo desse ordem para avançar, e então marchou a caminho do vau, seguindo junto ao rio.
Para trás deixavam os gritos e lamentos dos prisioneiros, que se foram tornando mais fracos e difíceis de distinguir dos chamamentos dos corvos que pairavam já sobre
o campo de batalha, preparando-se para recolher
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os seus despojos por entre os mortos e moribundos que juncavam a viçosa erva lá em baixo.
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X
O vau situava-se num ponto em que a largura do Tamisa se via reduzida a menos de metade da habitual. A meio do rio via-se uma ilhota atravessada por um trilho, ladeado
por dois pequenos aglomerados de salgueiros. Os longos ramos das árvores estendiam-se até quase tocarem a corrente, e forneciam uma sombra esverdeada e tremeluzente.
O centurião Macro lançou um olhar guloso para a sombra, enquanto limpava o suor da testa com o braço peludo. Num raro momento de fantasia, imaginou-se refastelado
na sombra, as botas descalçadas e os pés nus a repousarem na corrente fria do Tamisa. Tentador... demasiado tentador. Frangiu a testa e atravessou a ilhota, dirigindo-se
à margem norte do rio. Ali o leito era coberto por seixos e pouco profundo, o que provocava maior agitação à superfície, enviando reflexos do sol em todas as direcções.
Assim que a Terceira Centúria alcançara o vau, Macro tinha avançado pelo rio, para testar a profundidade da corrente. A água tinha-lhe chegado à cintura nas zonas
mais fundas entre a ilha e as duas margens. Embora nunca se tivesse desequilibrado, a corrente era forte, e podia facilmente arrastar quem não a atravessasse com
cuidado. O centurião dispôs uma secção na margem norte para vigiar a possível aproximação do inimigo, e começou imediatamente a tratar das defesas. A distância da
ilha à margem norte era de cerca de cem passos, e o vau não tinha mais de dez de largura. De ambos os lados da área menos profunda, o fundo caía rapidamente e era
movediço, além de estar coberto por longas ervas que ondulavam lentamente como uma cabeleira logo abaixo da superfície das águas.
Tinha ordenado a metade da sua centúria que espalhasse pequenas estacas aguçadas pelo fundo do vau, e os homens tinham recolhido ramos adequados nas árvores que
cresciam junto ao rio; agora atarefavam-se a colocá-las em posição, lutando contra a corrente, tentando fixá-las no meio dos seixos e viradas para a margem de onde
o inimigo poderia surgir. Se os bretões se vissem forçados a tentar a passagem por aquele vau, não seriam
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as estacas a detê-los, mas talvez ferissem alguns e retardassem o avanço dos outros...
A linha de defesa seguinte era a pequena ilha no meio do rio,
onde uma vintena de homens preparava uma barricada improvisada na margem. Uma densa massa de ramadas e arbustos tinha sido trazida da margem sul do rio e empilhada
na estrada, ocupando toda a largura desta e prolongando-se para os lados, ao longo de toda a extensão do vau. Alguns toros tinham sido enterrados no solo para servirem
de suporte a esta muralha verde, e ramos grossos tinham sido aguçados e distribuídos pelo meio da vegetação, para dissuadir os eventuais atacantes de se lançarem
sobre o muro. Não tinha grande aspecto, era verdade, mas era o melhor que podiam fazer no tempo e com os materiais que tinham disponíveis.
Não tinham encontrado as ferramentas que esperavam no forte auxiliar que tinha sido saqueado. Os bretões tinham-se preocupado quase tanto em destruir o material
como em aniquilar a guarnição. Tinham deparado com uma pilha ainda fumegante de escudos, fundas, dardos e outro equipamento no pátio interior dos edifícios do comando.
Algumas das ferramentas na orla da fogueira ainda eram utilizáveis, e uma busca rápida no interior das casernas tinha-lhes permitido recolher mais algumas pás e
picaretas, mas, no total, as ferramentas obtidas mal davam para equipar metade da centúria de Macro, quanto mais toda a coorte. O centurião esperava que a sede de
vingança do comandante da coorte tivesse sido rapidamente saciada. A Terceira Centúria não conseguiria defender sozinha a travessia do rio, se o inimigo surgisse
em força.
E, além do mais, considerou Macro, irritado, o imbecil do Máximo não tinha nada que perseguir o pequeno grupo de atacantes. Era uma violação das ordens recebidas.
A prioridade enunciada nestas, e que devia ter sido respeitada, era a protecção do vau. A coorte devia estar em posição pouco depois do meio-dia, mas já tinham passado
outras três horas, e só Macro e a sua centúria se preparavam para defender a passagem. O inimigo podia surgir a qualquer momento, e, se tal sucedesse, depressa o
vau lhes pertenceria.
Espreitou por cima do ombro, procurando na margem sul qualquer sinal da chegada de Máximo com o resto da coorte.
- Vá lá... vá lá, meu sacana. - Bateu com a mão na perna. - Porra, pá, onde é que te meteste?
O grito que veio da margem norte quase passava despercebido, mas ele estava atento, e virou-se logo para lá. Um dos legionários que tinham andado a cortar estacas
acenava para lhe chamar a atenção.
- Que se passa?
Ali, senhor. Ali em cima! - O homem apontou para trás.
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Naquela margem, o caminho subia do vau até à crista de uma colina desaparecendo pela outra encosta. No cimo, via-se uma figura diminuída pela distância, que fazia
oscilar a lança entre as mãos - o sinal de que o inimigo fora avistado.
Macro avançou imediatamente pela brecha que tinha sido deixada propositadamente na barricada, e saltou para o rio. Manteve-se à direita na zona que ainda não tinha
sido semeada com as estacas, de forma a permitir aos defensores a utilização da travessia. A água acolheu-o, fazendo pressão sobre as suas pernas enquanto o centurião
progredia para a margem, espalhando cascatas de prata ao emergir da corrente. Alguns dos homens que trabalhavam na margem interromperam o que estavam a fazer, preocupados
com o alarme.
- Continuem! - Gritou Macro. - Não parem até que eu vos
diga!
Subiu a correr a encosta, até ao ponto onde o vigia perscrutava a paisagem que se estendia para norte. Ao alcançá-lo, estava cansado, e ofegava, enquanto seguia
com a vista a direcção indicada pelo dardo nas mãos do vigia.
- Ali, senhor.
Macro esforçou a vista. A uns três quilómetros dali, o caminho embrenhava-se numa floresta densa. Dela emergia um destacamento de batedores montados, acompanhados
por alguns carros de combate. Dispersavam-se em leque a partir da linha de marcha, galopando para pontos elevados, de onde pudessem vislumbrar o espaço ainda por
percorrer pela coluna. No instante seguinte, uma maciça coluna de infantaria começou a surgir da escuridão frondosa e a preencher a trilha.
- Senhor, é mesmo o Carátaco que ali vem?
Macro olhou para o legionário, lembrando-se que o jovem era um dos novos elementos da centúria, mal saído da recruta e acabado de receber a sua primeira colocação.
Parecia estar tenso e excitado. Talvez demasiado excitado, considerou o centurião.
- Ainda não se consegue perceber, rapaz.
- Senhor, não devíamos voltar para junto dos outros?
- Lêntulo, não é como te chamas?
- Sim, senhor. - O legionário pareceu ficar surpreendido por o seu centurião lhe saber o nome, e um tanto ou quanto inchado por ser interpelado pelo nome próprio
por alguém tão distinto como um oficial.
- Lêntulo, tem calma. O que tens a fazer é apenas observar e registar o que se passa, e não preocupares-te com isso. Um vigia tem que ser sereno. Foi por isso que
te escolhi para esta missão. - Era uma mentira descarada. Macro poderia ter escolhido qualquer um dos seus homens
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para aquela posição, mas o jovem ainda estava suficientemente verde para acreditar naquilo que ouvia. Pelo menos ajudou-o a firmar os nervos, e ele empertigou-se.
- Sim, senhor. Obrigado, senhor.
- Só tens que fazer o teu trabalho, rapaz.
Lêntulo anuiu e virou-se, para continuar a observar a progressão do inimigo. Por momentos, mantiveram-se em silêncio; Macro levou a mão em pala aos olhos. Mais e
mais homens saíam da floresta. Daí a pouco, convenceu-se de que aquela era realmente a coluna principal do exército inimigo.
- Parece que tens razão. - Afirmou, sem ponta de emoção. - O Carátaco prepara-se para tentar raspar-se pelo nosso vau.
- Oh, merda...
- Pois, daqui a pouco tempo, vamos estar metidos nela até ao pescoço. - Macro deu um murro amigável no ombro do soldado. - Aposto que nunca pensaste que a vida na
legião podia ser assim tão excitante!
- Bom, senhor, realmente, não.
- Quero que te mantenhas nesta posição enquanto for seguro. Suponho que o inimigo vai seguir este trilho e dirigir-se directamente à nossa posição. Mas se eles mudarem
de ideias e, por qualquer razão, mudarem de direcção e se afastarem, quero sabê-lo imediatamente. E vê se descobres algum sinal de que o general Pláucio vem em perseguição.
Percebido?
- Sim, senhor.
- Óptimo. Então, mantém-nos debaixo de olho. E agacha-te; não ganhas nada em atrair-lhes a atenção. - Macro designou-o com o dedo.
- E nada de heroísmos. Sai daqui enquanto ainda tiveres tempo suficiente para voltar para a centúria.
Lêntulo assentiu e baixou-se, mantendo o olhar fixo na coluna inimiga que continuava a aproximar-se. O centurião voltou-se e deu alguns passos na direcção do vau,
parando para perscrutar a margem sul do Tamisa. Não havia sinais de vida nas proximidades do trilho na margem distante, e quando orientou o olhar para a esquerda,
ao longo da frente ribeirinha, nada avistou. Mas nesse instante reparou num faiscar distante, e esforçou a vista para tentar perceber do que se tratava. Apercebeu-se
de um ligeiro reluzir tremeluzente sobre o verde e castanho da paisagem, e de uma espécie de névoa no ar. Só podia ser a Terceira Coorte, mas ainda estava a uns
bons cinco quilómetros da travessia.
Seria Carátaco, com o grosso das suas forças, o primeiro a alcançar o ponto que tinham sido encarregues de defender.
Como ainda estava a curta distância de Lêntulo, e este o escutaria com toda a certeza, Macro limitou-se a ranger os dentes, evitando soltar em
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voz alta as imprecações que lhe corriam pelo cérebro e que ameaçavam explodir numa torrente de linguagem pouco recomendável; em silêncio percorreu o seu extenso
reportório de maldições, e lançou-as todas na direcção da distante - demasiado distante - coluna romana, que se arrastava na direcção da travessia do rio. Depois
de um último olhar e de um suspiro, correu pela encosta abaixo, para a margem do Tamisa.
Ao aproximar-se do vau, refreou o passo, para recuperar o fôlego. Não valia a pena afligir ainda mais os homens, decidiu. Era melhor tentar oferecer uma máscara
de calma e confiança, por ténues que fossem.
- Já chega! - Gritou aos homens que continuavam a espetar estacas no fundo da corrente. - Voltem para a ilha e preparem-se! Vamos ter companhia.
Os legionários largaram as estacas que ainda não tinham sido colocadas, deixando-as seguir com a corrente, e chapinharam pelo rio, ao longo do estreito caminho que
tinha ficado livre até à abertura na barricada que tinha sido preparada.
- Nada de correrias! - Reclamou Macro. - Se alguém ficar preso numa estaca, juro que o deixo lá para os bretões se divertirem.
Com um grande esforço da vontade, ajudado pelo temor que a fúria do seu centurião inspirava, os legionários refrearam o seu alvoroço.
Macro seguiu-os, num passo ponderado, sempre atento à localização das estacas que esperavam por vítimas. Olhando para a ilha, viu que os homens já começavam a formar
por trás da barricada, apertando os capacetes e empunhando escudos e lanças, retirados dos montes em que tinham sido colocados ao lado do trilho que atravessava
a ilhota. Ao sair do rio, ensopado, avaliou os homens mais próximos, e fixou o olhar num legionário alto e magro.
- Fábio!
- Senhor! - Ao ver que o oficial se aproximava, o homem colocou-se em sentido.
- Tira a armadura. Preciso de um estafeta.
- Sim, senhor. - Depressa o legionário desapertou as correias de cabedal da armadura segmentada, enquanto Macro explicava o que pretendia.
- O centurião Máximo aproxima-se da nossa posição, pela margem sul do rio. Está a cerca de cinco quilómetros daqui. Vais correr até à coluna o mais depressa que
puderes, e dizes-lhe que o Carátaco se dirige para o nosso vau. Diz-lhe também que mande imediatamente um cavaleiro levar a notícia ao legado. Não, espera... - Macro
imaginou de que forma o irritável comandante da coorte receberia uma mensagem daquele teor.
- Diz-lhe antes que sugiro, respeitosamente, que envie um cavaleiro para
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informar o legado sobre estes novos desenvolvimentos. E, por fim, diz lhe que o Carátaco está mais próximo do vau do que ele, e que e imprescindível que a coorte
chegue aqui o mais depressa possível. Ou melhor, ainda mais depressa!
- senhor. - Fábio sorria enquanto se libertava das últimas
peças da armadura e as deixava sobre a estrada.
- Ainda aí estás? - Rosnou Macro. - Põe-te a mexer!
Fábio virou-se e correu para o rio, lançando-se na travessia do braço sul do vau. Macro ficou a observá-lo durante alguns momentos, antes de se virar e se concentrar
no resto dos seus homens. A maior parte já tinha acabado de se equipar, e estava à espera de ordens. Aguardou que o último legionário terminasse de apertar as tiras
que prendiam o capacete; uma tarefa árdua, quando efectuada sob o olhar impaciente de todos os seus camaradas e do comandante. Por fim, o homem ergueu o olhar, com
uma expressão culpada, e assumiu uma posição de prontidão. Macro aclarou a garganta.
- Atenção!
Os legionários apoiaram escudos e lanças na terra, e formaram uma linha compacta que atravessava o trilho e se estendia até às sombras dos salgueiros, nas extremidades
da ilhota.
- Daqui a menos de uma hora, Carátaco e o seu exército vão descer por aquele caminho e dirigir-se ao vau. Atrás deles vem o general Pláucio, o que quer dizer que
as espadas romanas devem estar bem enterradas no traseiro daqueles sacanas.
Alguns dos homens deram umas risadas perante a colorida imagem, e Macro deixou que a boa disposição se espalhasse, antes de continuar.
- O resto da coorte vem aí, ter connosco. Vi-os do alto daquela colina além. Mandei o Fábio avisá-los para se despacharem, de modo que devem chegar cá antes que
o inimigo nos dê muito trabalho. É claro que nem sequer precisávamos deles! A Terceira Centúria não tem medo de ninguém. Estou convosco há ainda pouco tempo, mas
a minha carreira nas Águias permite-me reconhecer a qualidade quando a encontro. E vocês são bons soldados. Tenho é pena daqueles desgraçados que nos vêm chatear!
Só poderão atacar-nos numa frente estreita, e mesmo assim só depois de se espetarem nas nossas estacas e de se esmagarem contra a nossa barricada. Se tiverem sorte,
e se eu me estiver a sentir generoso, sou até capaz de evitar a continuação do massacre, e aceitar a rendição de Carátaco.
Macro sorriu e, aliviado, verificou que os homens o imitavam.
- Bom, não podemos esquecer-nos que estes bretões são completamente loucos, e é provável que não percebam a situação. Se quiserem
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mesmo atravessar o rio, acabarão por o conseguir. Tudo o que podemos fazer é atrasá-los. O meu trabalho não é propriamente criar mártires, portanto, se já tivermos
cumprido o nosso dever e tudo indicar que eles vão mesmo atravessar, darei ordem de retirada. Se isso acontecer, não quero que ninguém se arme em herói. É passar
para o nosso lado do vau tão depressa quanto puderem, e seguir para jusante ao encontro da coorte. Percebido?
Alguns dos legionários assentiram com gestos graves das cabeças.
- Porra, não ouvi nada! - Berrou Macro.
- SIM, SENHOR!
- Ah, assim é melhor. Agora, formem de frente para o rio!
Os homens viraram-se e foram ocupar posições nas defesas improvisadas que enfrentavam a margem norte do rio. Macro passou a vista sobre a pequena unidade que comandava,
apercebendo-se das túnicas vermelhas gastas e sujas, e das armaduras envelhecidas. Os homens tinham formado três linhas que ocupavam todo o comprimento da pequena
ilha. Oitenta homens contra vinte, talvez trinta mil bárbaros. Como quase todos os soldados, Macro gostava de apostar, mas nunca tinha visto probabilidades tão difíceis.
Apesar dos seus esforços para aumentar a confiança dos soldados, sabia muito bem que estavam praticamente mortos. As coisas poderiam ter sido diferentes se Máximo
tivesse chegado a tempo de defender o vau como devia ser.
A tarde arrastou-se. Macro permitiu que os homens se sentassem no chão. Agora que nenhuma actividade ocorria no vau, a cena parecia idílica. Macro sorriu. Cato teria
apreciado a vista; teria tocado a sensibilidade poética do jovem. À esquerda de Macro, o Sol já tinha passado pelo zénite há bastante tempo, e banhava a paisagem
com uma luz oblíqua que intensificava as cores e se reflectia na superfície da água, cintilante. Mas, apesar da serenidade da natureza, havia no ar uma tensão semelhante
à que afectava os cabos de torção de uma catapulta, e Macro apercebeu-se de que todos os seus sentidos se tinham aguçado, em busca de algum som ou sinal produzido
pelo inimigo.
Talvez tivesse passado uma meia hora quando avistaram uma figura a correr pela estrada na direcção do vau. Antes que Lêntulo conseguisse alcançar o rio, um grupo
de cavaleiros irrompeu sobre a crista da colina e carregou pela encosta abaixo. Lêntulo espreitou sobre o ombro enquanto
começava a atravessar o vau.
- Mantém-te à esquerda! - Gritou Macro. Segue pela esquerda!
O legionário não deu qualquer indicação de o ter escutado, ao mergulhar no rio. Correu em desespero, levantando um enorme estardalhaço, e de repente tombou, soltando
um grito agudo. Um lamento irrompeu entre
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os homens na ilha ao verem Lêntulo a tentar levantar-se, o sangue a jorrar-lhe da perna. O legionário observou horrorizado a ferida. Nesse momento, o chapinhar dos
cavalos inimigos por trás de si fê-lo olhar para trás enquanto se arrastava na direcção dos seus camaradas. Os bretões avançaram para o homem que se debatia com
a água que lhe dava pela cintura. A estaca devia ter atingido uma artéria, concluiu Macro, já que Lêntulo parecia estar a perder rapidamente as forças. Caiu de joelhos
lentamente, a cabeça inclinada para a frente, de forma a que só o torso ficou fora de água. Os cavaleiros estacaram, observando o romano. Então, cautelosamente,
deram meia-volta e regressaram à margem.
Durante algum tempo, ambos os lados observaram o corpo de Lêntulo, enquanto a cabeça deste rolava de um lado para outro. Uma mancha escarlate espalhava-se na água,
a jusante do ponto em que o malogrado legionário caíra. Por fim, o corpo rolou e desapareceu, levado para o fundo pelo peso da armadura.
- Desgraçado. - Murmurou alguém.
- Pouco barulho! - Gritou Macro. - Silêncio nas fileiras!
A tremenda tensão a que os legionários estavam submetidos tornou-se ainda mais insuportável enquanto esperavam pela chegada da coluna principal do exército inimigo;
mas não tiveram que esperar muito mais. A princípio, parecia uma trovoada distante que se ia aproximando, tornando-se mais forte e distinta. Depois, começou a notar-se
uma neblina sobre o topo da colina sobranceira ao vau, onde a estrada desaparecia de vista. Por fim, surgiram as silhuetas de estandartes e lanças, e depois foi
a vez dos capacetes e corpos dos homens fazerem a sua aparição na crista.
Os olhos de Macro percorreram a vanguarda do exército de Carátaco, abrangendo os milhares de homens que começavam a descer para o vau. Então voltou-se para a margem
oposta, à procura de sinais de Máximo e do resto da coorte. Mas nada perturbava ainda a plácida superfície do Tamisa.
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XI
- Tens a certeza de que Macro disse que era a coluna principal do inimigo?
- Sim, senhor. - Respondeu o mensageiro.
- Muito bem, passa a notícia ao decurião. - Máximo apontou para a coluna de cavaleiros que se destacava no flanco esquerdo da formação romana. - Diz-lhe para transmitir
imediatamente a informação a Vespasiano. Vai!
Enquanto o mensageiro fazia uma saudação rápida e corria na direcção dos batedores montados, Máximo convocou os seus centuriões. Estes correram pela coluna na sua
direcção, e ele teve que esperar que Cato, o que estava mais afastado, chegasse, antes de lhes anunciar os novos desenvolvimentos.
- Carátaco dirige-se ao nosso vau. E está mais próximo dele do que nós. Olhem para ali. - O comandante da coorte apontou para a distante margem norte. Havia no ar
junto ao Tamisa algo de semelhante a uma fina neblina, que até ali tinha passado despercebida a Cato.
- E onde está Macro? - Inquiriu Túlio.
- No vau, a preparar as defesas.
- Defesas? Ele vai enfrentar toda a força do exército inimigo? - As sobrancelhas de Túlio arquearam-se com o espanto.
- Foram essas as ordens que a coorte recebeu.
- Sim, senhor, mas é um suicídio.
- Esperemos que não, já que nos vamos reunir a ele.
António e Félix trocaram um olhar de surpresa.
Cato avançou um passo.
- Senhor, será melhor que nos coloquemos em movimento.
- Tens razão, Cato. Regressem imediatamente às vossas unidades. Vamos marchar em passo rápido. Quem ficar para trás, fica.
Ainda os centuriões corriam de volta às respectivas unidades, e já
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Máximo dava a ordem de marcha acelerada. A coluna colocou-se em movimento com um rápido ritmo de botas a bater no solo. Ao olhar em volta, o comandante da coorte
notou o mensageiro de Macro que regressava depois de ter ido transmitir as suas instruções aos batedores. Lá atrás via-se uma pequena nuvem de poeira levantada por
um cavaleiro que se afastava, encolhido sobre o cavalo. Quando o homem se colocou ao seu lado, acertando o passo e esperando por novas ordens, Máximo avaliou a condição
em que ele se apresentava.
- Estás pronto para correr outra vez até Macro?
- Claro, senhor. - Respondeu o mensageiro, o peito a arfar enquanto tentava recobrar o fôlego.
O comandante da coorte baixou a voz.
- Se ele ainda lá estiver quando chegares ao vau, diz-lhe que vamos em seu auxílio, tão depressa quanto podemos. E se já não estiver, regressa imediatamente para
nos avisar. Percebido?
- Não estiver? - O estafeta tentou levantar a questão. - Senhor, quer dizer...
- Sabes bem o que quero dizer. - Irritou-se Máximo. - Agora,
corre!
O homem fez a saudação e desapareceu a grande velocidade pela estrada, na direcção do vau. Máximo olhou para trás e notou que as cinco centúrias tinham acelerado
o passo, e todos avançavam sem problemas. Inspirou e lançou a ordem de passagem a corrida lenta. Era uma forma de marcha que os homens treinavam regularmente, e
podiam aguentar facilmente aquele ritmo por uma hora. Por essa altura, já deviam estar junto de Macro. Se tivesse tempo para isso, Máximo teria que lhes dar algum
tempo de recuperação antes de os lançar na batalha, se queria que eles tivessem um desempenho capaz de influenciar o resultado do combate.
Na parte de trás da coluna, o centurião Cato e os seus homens seguiam o passo imposto pela centúria que seguia à sua frente. O equipamento chocalhava enquanto corriam,
e era acompanhado pela respiração esforçada dos homens, pesadamente carregados de armas e material. De vez em quando, um dos centuriões ou optios algures na coluna
incitava os homens a manterem o passo, geralmente com um chorrilho de insultos e ameaças de terríveis punições dedicados aos desgraçados que estivessem a atrasar-se.
Cato desviou-se para o lado e reduziu o passo até ficar mais ou menos a meio da sua centúria.
- Força, rapazes! Macro está à nossa espera. Corram!
Enquanto voltava à velocidade normal, não despegava os olhos da
margem oposta do rio. A nuvem de pó levantada pelo exército de Carátaco era agora mais evidente, e embora as hostes bárbaras responsáveis pela sua
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criação não fossem visíveis, Cato percebeu que a coorte ia travar um combate em que os números lhe eram desfavoráveis, e muito, já que seriam talvez uns cinquenta
bretões para cada legionário. Se Macro se visse forçado -a enfrentar a força inimiga sozinho, então esses números passariam facilmente para cerca de trezentos para
um, e ao fazer mentalmente as contas, o centurião compreendeu que, no momento em que os bretões conseguissem pôr o pé na margem sul, a coorte seria destruída. E
era quase impossível que isso não sucedesse.
O calor e o esforço da corrida com a cota de malha, o escudo, o capacete e as armas depressa fizeram com que o sangue lhe começasse a rugir aos ouvidos. A respiração
tornou-se-lhe ofegante e errática. Sentia os pulmões como se alguém lhe tivesse posto ao peito um cinto de metal e o fosse apertando mais e mais a cada inspiração.
Rapidamente cada centímetro do seu corpo começou a gritar em protesto. A vontade de parar, parar e vomitar e recuperar o fôlego, era quase irresistível. Não fosse
o receio pela vergonha de ser visto pelos homens como um fraco, e o facto de ser Macro quem corria perigo, e Cato ter-se-ia arrojado ao solo. Mas, naquelas circunstâncias,
forçou-se a prosseguir, ignorando as dores, dando um passo de cada vez, com a mesma férrea determinação que o tinha ajudado a ultrapassar todos os desafios que tinha
enfrentado desde que se juntara à legião.
E assim, por entre acessos de ríspida autodisciplina e esforçados gritos de encorajamento aos homens, Cato levantou mais uma vez os olhos do chão que pisava e reparou
que Fígulo se tinha deixado ficar para trás e agora se deslocava em passo rápido ao seu lado.
- Porque é que... não estás... na tua posição? - Conseguiu Cato perguntar, enquanto ofegava.
- Senhor, não ouviu nada?
- Ouvir, o quê?
- Pareceu-me ouvir trompas, senhor. Trompas de guerra britânicas. Mesmo agora.
Cato reflectiu um instante, mas não se lembrava de ouvir nada para lá do ruído da coluna em marcha acelerada.
- Tens a certeza?
Por momentos, Fígulo pareceu hesitar, envergonhado por ter talvez permitido que a imaginação se sobrepusesse aos sentidos. Mas, nesse instante, a sua face iluminou-se.
- Agora! Senhor, não ouviu?
- Calado! - Cato imobilizou-se e escutou atentamente. Ouvia o sangue a palpitar nos seus ouvidos, a sua respiração ofegante e, para lá disso... sim, um bramido,
quase sumido. E ali, uma nota estridente acima do coro das trompas de guerra. - Ouvi, sim. Regressa à tua posição.
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Enquanto Fígulo se apressava a retomar o seu lugar, Cato correu também ao longo da centúria. Não deviam já estar a muito mais de um quilómetro do vau. Perscrutou
a distância. O rio começava a descrever uma curva para norte, ladeado aqui e ali por pequenas matas esparsas. Um pouco à frente abria-se um panorama mais largo sobre
a margem oposta e, por entre dois outeiros a umas centenas de metros, avistou uma densa massa de infantaria que marchava paralelamente à coorte.
- Continuem! - Gritou aos homens. - Já falta pouco! Força nessas pernas!
Empertigou-se, e expulsou da mente qualquer pensamento que não fosse o de chegar ao vau a tempo de evitar a fuga de Carátaco e do seu exército, e de impedir que
Macro e os seus homens fossem aniquilados.
? ? ?
Macro voltou-se de novo para a margem norte do Tamisa, ao escutar mais um coro de acordes vindos das trompas de guerra. Com um rugido colectivo, os bretões lançaram-se
pela encosta e avançaram pelo vau, provocando uma explosão de água e espuma quando irromperam pela superfície refulgente da correnteza.
- Cerrar fileiras! - Bradou Macro, fazendo-se ouvir acima do clamor. - Escudos erguidos!
Em ambos os flancos, os legionários juntaram-se mais, e ergueram os escudos, de forma a apresentar ao inimigo uma linha ininterrupta de defesa. Enquanto esperavam
pela ordem de lançar os dardos contra os homens que se dirigiam contra eles atravessando a corrente, os soldados ajustaram a forma como seguravam as armas.
- Calma! - Ordenou Macro. - Vão chegar às estacas a qualquer momento...
Quando estavam a cerca de oitenta passos da linha romana, os bretões lançaram-se à carga, incitados pelo coro de gritos guturais dos seus camaradas que se acumulavam
na margem. De repente, muitos dos homens que seguiam à frente da corrida detiveram-se, dobrando-se. Os que os seguiam continuaram, sem lhes prestar atenção, e os
que conseguiram evitar os camaradas feridos foram empalar-se na fila seguinte de obstáculos submersos. Mais homens repetiram esse erro, e depressa a carga se interrompeu,
reduzida a um monte de corpos espalhados pelo rio. Os feridos gritavam de agonia e medo, enquanto os que vinham mais atrás urravam de frustração e raiva, sem se
aperceberem da razão por que o assalto tinha sido suspenso. E mais homens se precipitavam para o vau, esmagando os que, lá à frente, estavam presos às armadilhas.
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- Bela confusão! - Gritou Macro, entusiasmado. - Não podia ter corrido melhor.
Ao seu lado, os legionários irromperam num coro de insultos, desafios e gritos de triunfo perante a cena caótica que se desenrolava à sua frente. Por momentos, a
ordem da linha romana foi quebrada, mas o centurião considerou que podia fechar os olhos àquela infracção, nas circunstâncias em que se encontravam. Que os homens
tivessem o seu momento de triunfo - bem iam precisar de todo o apoio moral que conseguissem reunir quando o inimigo voltasse ao assalto.
Finalmente, as trompas bretãs fizeram-se ouvir, pondo um termo à confusão no vau e ordenando a retirada com três notas repetidas. Lentamente, os guerreiros celtas
começaram a recuar, enchendo a margem de ambos os lados da estrada. Os que tinham sido feridos tentaram soltar-se e coxear de volta aos seus. Uma vintena de corpos
ficaram para trás: trespassados pelas estacas, ou esmagados pelo peso dos homens que os seguiam. Alguns tinham escorregado e tinham-se afogado no meio da confusão
de homens. Entre os corpos havia alguns feridos, que a corrente já tingida de vermelho começava a arrastar para longe, apesar dos seus esforços para a contrariar.
- O primeiro assalto foi nosso! - Gritou Macro aos seus homens, que lhe responderam com um clamor de alegria. Enquanto o ruído diminuía, o centurião olhou por cima
do ombro e cerrou os lábios, preocupado com a continuada ausência da coorte. Se o estafeta que tinha enviado não os encontrasse a tempo de virem reforçar a Terceira
Centúria, depressa Macro se veria confrontado com duas alternativas: ou tentar escapar, ou lutar até ao último homem. Se escolhesse a segunda hipótese, o seu sacrifício
não permitiria ao exército romano que perseguia Carátaco recuperar muito tempo. Não se iludia, e sabia muito bem que a defesa da ilha não poderia ser prolongada
o tempo suficiente para que o general Pláucio se conseguisse aproximar e desferir o golpe fatal nos bretões. Mas se ordenasse aos seus homens que recuassem e escapassem
à aniquilação certa, poderia vir a ser acusado de ter permitido ao inimigo a fuga à armadilha. E uma tão clara violação do dever de um legionário só podia conduzir
a uma sentença. Fosse qual fosse a alternativa escolhida, tudo apontava para a morte.
Encolheu os ombros e ensaiou um sorriso curto e amargo. Era mesmo típico da vida militar. Quantas vezes já se vira embrulhado em dilemas que lhe apresentavam opções
tão desagradáveis umas como as outras? Se havia algo a que aspirava quando chegasse ao Além, era que nunca mais o forçassem a fazer escolhas daquele género.
Na margem norte do rio, o inimigo começava de novo a movimentar-se, e Macro imediatamente esqueceu os pensamentos sobre o futuro.
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- Formem! - Ordenou.
Um pequeno grupo de guerreiros inimigos aproximou-se do vau. Desta vez não havia o berreiro habitual nem a correria louca na direcção dos romanos. Ao invés, os bretões
avançaram cautelosamente, as armas embainhadas, e agachados, como que a tactear o terreno. A táctica não era de todo inesperada para Macro, e não se importava nada
de os ver perder tempo a desembaraçar o caminho dos obstáculos que os seus homens tinham colocado no fundo do rio. Tinha outros truques preparados.
- Preparar fundas!
Tinha disposto os homens a quem tinham sido distribuídas fundas, recolhidas no forte, nos flancos da centúria, junto a pilhas de calhaus rolados recolhidos no leito
do rio. Os legionários depositaram escudos e lanças no solo, recuaram uns passos para obter espaço para os movimentos necessários, e prepararam os encaixes de cabedal
na ponta das longas tiras que constituíam as armas. Os calhaus foram colocados no sítio adequado, e o ar encheu-se de silvos quando os homens começaram a fazer girar
as fundas sobre as cabeças, à espera da ordem de Macro.
- Lançar!
Um coro de estalos fez-se ouvir, como se de chicotes se tratasse, e muitas pequenas manchas negras atravessaram velozmente o ar na direcção dos combatentes inimigos.
Algumas embateram na superfície de escudos ou atingiram apenas a água, mas muitas encontraram os alvos pretendidos, fendendo crânios ou partindo outros ossos.
- Bem jogado! - Felicitou Macro. - Lancem à vontade!
Depressa se tornou constante o zumbido das fundas a serem giradas e o silvo dos projécteis a cruzarem o ar. Embora as baixas fossem constantes, os guerreiros inimigos
continuaram a progredir no rio, buscando e arrancando os obstáculos presos ao leito. Cada um dos feridos era rapidamente substituído por outro homem da horda que
esperava na margem. E enquanto a massa de bretões esperava em silêncio, sentada e a receber o calor do sol vespertino, era continuamente reforçada pela chegada de
mais homens, a pé, a cavalo e em bigas; todos esperavam calmamente que o vau fosse limpo de armadilhas.
Macro avaliou o progresso dos homens no vau, e quando chegaram ao alcance do lançamento de dardos, considerou o impacto que teria uma rajada das mortíferas lanças
com pontas metálicas. Mas os inimigos apresentavam-se dispersos, o que impossibilitava um ataque realmente eficiente, e por isso decidiu poupar as armas para o ataque
que se seguiria inevitavelmente, quando a limpeza do rio estivesse terminada. Além disso, quanto mais os outros se aproximavam, maior era a eficiência das fundas,
e ele deliciava-se ao ver a velocidade a que eram abatidos os guerreiros celtas.
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Até àquele momento, pelas suas contas, a sua centúria já tinha provocado bem mais de cem baixas, e só tinha perdido o infeliz Lêntulo.
Mas, apesar das perdas, os bretões continuavam a avançar, procurando e removendo todas as estacas no rio. Estava a levar-lhes bastante menos tempo a arrancar os
obstáculos do que tinha tomado aos homens de Macro fixá-los. Pouco mais de um quarto de hora depois de terem iniciado a tarefa, já tinham quase alcançado o emaranhado
de troncos cortados e aguçados que formava a barricada. Alguns legionárips inclinaram-se para a frente e tentaram atingir os inimigos com as pontas das lanças.
- Alinhem! - Berrou-lhes Macro. - Ninguém se mexe até eu dar ordens para isso!
Terminado o seu perigoso trabalho, os bretões que tinham estado mergulhados no rio recuaram lentamente, mantendo-se protegidos sob os seus escudos enquanto os projécteis
continuavam a abater-se sobre as águas à sua volta. Na margem, os chefes já começavam a incitar os seus homens, preparando o assalto. Macro reparou que a primeira
vaga seria constituída por homens bem equipados, quase todos com capacetes e cotas de malha. Carátaco devia estar com muita pressa para atravessar o rio, se estava
disposto a lançar os seus melhores guerreiros para o primeiro embate. Atrás dos cerca de trezentos homens que se preparavam para avançar, via-se uma densa força
de arqueiros e fundibulários. Os primeiros pouco preocupavam Macro; os seus arcos curtos podiam ser irritantes numa escaramuça, mas não tinham o poder necessário
para trespassar o escudo de um legionário. Já os fundibulários podiam, como tinha ficado amplamente demonstrado, provocar tremendos danos.
- Rapazes, isto vai ser duro! Mantenham os escudos ao alto enquanto eu disser. Só as fileiras de trás é que vão atirar dardos; na frente, precisaremos deles como
lanças. Os dardos têm que ser arremessados muito rapidamente, portanto só vos darei a ordem de lançar. Atirem-nos e protejam-se imediatamente por trás dos escudos,
até que aquela malta chegue à barricada. - Avaliou os homens num relance. - Percebido?
Os homens mais próximos anuíram, e alguns murmuraram a sua compreensão das ordens.
- Caraças! Não oiço nada! Perceberam, seus sacanas?
- Sim, senhor! - Responderam em coro todos os legionários.
Macro sorriu.
- Ainda bem! Assim que eles estiverem bem próximos, quero que lhes dêem uma boa carga de porrada. Não se hão-de esquecer tão depressa da Terceira Centúria!
- Aí vêm eles! - Gritou alguém, e todos os olhos se concentraram na margem norte do rio. Os guerreiros nativos lançaram-se encosta abaixo
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e entraram no rio, ocupando toda a largura do vau. Ao aproximarem-se, os bretões lançavam os seus gritos de guerra, fazendo acompanhar os seus desafios do ensurdecedor
clamor das armas a baterem contra as orlas metálicas dos escudos. Não havia trompas a incitá-los, ou, pelo menos, eles produziam tanto ruído que nenhum incitamento
do seu próprio lado se conseguia fazer ouvir. Estavam tão perto que os romanos se conseguiam facilmente aperceber das expressões determinadas nos rostos por baixo
dos capacetes. Aqueles não eram os habituais guerreiros selvagens, sujos e de cabelo empastado, que enfrentavam os legionários sem pensar; sabiam o que faziam, e
seriam adversários temíveis.
Macro espreitou para lá da linha de inimigos que cortava a corrente do rio, e viu que as fundas dos seus apoiantes na retaguarda tinham começado a ser giradas no
ar.
- Abaixem-se!
Os romanos esconderam-se por trás dos escudos, assim que o ar ficou repleto dos zunidos típicos dos projécteis que se encaminhavam na sua direcção. A pontaria dos
bretões era admirável, e poucas pedras se perderam nos ramos por cima das cabeças dos legionários. A larga maioria abateu-se sobre os escudos, numa cacofonia de
impactos. O impiedoso bombardeamento prosseguiu, forçando Macro a arriscar-se a ser atingido, de cada vez que espreitava sobre o escudo para avaliar o progresso
da vaga de assalto que se aproximava. Os guerreiros continuavam a atravessar o vau a passo regular, sem se preocuparem com obstáculos no fundo. Não havia nenhum
indício de carga anárquica; os homens que se aproximavam faziam-no de forma deliberada, com intenções letais e sem precisarem de ser animados pela tradicional carga
céltica contra a fina linha de legionários.
A barragem de projécteis abrandou repentinamente, e depois interrompeu-se por completo, e Macro espreitou cuidadosamente sobre o seu escudo. O inimigo estava já
a menos de vinte passos de distância, com água a espumar em torno das coxas, e os fundibulários tinham amainado a sua acção por receio de atingirem os seus próprios
homens.
- Vamos à resposta! - Lançou Macro. - Dardos! Fundas, atirem também!
Nada houve da precisão da parada nos movimentos dos legionários, quando cada um dos homens das fileiras recuadas se ergueu com um grito a irromper-lhe da garganta,
puxou o braço atrás, apontou para a concentração de guerreiros inimigos e lançou o seu dardo. Nos flancos da linha romana, os fundibulários aproveitaram também para
fustigar os lados da coluna inimiga com sucessivas rajadas de projécteis, fazendo tombar vários combatentes na rápida e feroz corrente. Os restantes refizeram-se
da chuva de dardos que caíra sobre eles, e continuaram a avançar por entre os corpos,
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aproximando- se da barricada. Macro tinha tido a esperança de que nos últimos metros, os bretões não resistissem a lançar-se numa louca correria contra o inimigo,
mas estes homens mostravam-se possuidores de um admirável autocontrolo, e enquanto alguns faziam protecção com os escudos, outros começavam a quebrar e cortar ramos
da barricada, soltando grandes bocados desta.
- Ataquem! - Berrou Macro, agarrando o dardo do legionário mais próximo. Segurou-o sobre o ombro e, com o escudo a servir de suporte, empurrou a vegetação da barricada
até conseguir alcançar os inimigos que se atarefavam do outro lado da mesma. Um braço adiantou-se por entre os escudos bretões e agarrou um ramo. O centurião espetou
a ponta da lança na carne sob o cotovelo, e ouviu um grito de dor. Enquanto puxava o ferro para si, recebeu um forte e barulhento impacto na bossa do escudo. Olhou
em redor e reparou que vários dos combatentes inimigos estavam equipados com longas e pesadas lanças, com as quais tentavam manter os romanos afastados da barricada.
- Cuidado com as lanças! - Avisou.
Procurou um novo alvo, e notou uns olhos que o observavam por cima da borda de um escudo quadrado. Fez uma finta, e quando o escudo se movimentou em resposta ao
seu suposto ataque, mudou de direcção e lançou um golpe às pernas do homem. Porém, a distância era grande, e apesar de a ponta metálica atravessar as calças do bretão,
só conseguiu arranhar a carne por baixo delas. O centurião grunhiu, frustrado, e afastou-se cuidadosamente da barricada, fazendo sinal a um legionário da fileira
seguinte para ocupar o seu lugar.
Olhou em volta, para ver como se estava a portar a centúria. Os homens estavam a aguentar-se bem. Os fúndibulários de ambos os lados, afastados do combate junto
à barricada, trocavam projécteis, numa luta desigual. Os romanos mantinham-se agachados enquanto imprimiam velocidade às suas armas, erguendo-se rapidamente e soltando
os projécteis, e voltando a proteger-se em seguida. Os inimigos não tinham à sua disposição qualquer protecção, e Macro notou com satisfação que vários corpos semi-submersos
eram levados pela corrente da zona do vau, em que a água já começava a tingir-se de vermelho. Mas já era o suficiente, a atenção dos atiradores era necessária noutro
local. Berrou a ordem seguinte a plenos pulmões, para se fazer ouvir por cima do contínuo som de choques metálicos e dos gritos dos homens.
- Fundas! Contra a infantaria! A infantaria!
Os homens olharam para ele, percebendo as suas palavras. Um deles, no entanto, ergueu-se para lançar um último projéctil contra os alvos anteriores, e foi imediatamente
atingido na face. A cabeça foi projectada
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para trás, e o sangue salpicou os camaradas de ambos os lados do mfeliz. O homem abateu-se numa forma inerte no solo. Macro rangeu os dentes de raiva Já tinha poucos
homens à partida, e custava-lhe ver alguém desperdiçar a vida daquela forma descuidada. O primeiro dever de qualquer soldado era para com os seus camaradas, e o
melhor serviço que lhes podia prestar era manter-se vivo e combater ao seu lado. Actos impensados, fossem eles de bravura ou de fúria, não passavam para ele de gestos
egoístas e criminosos, e amaldiçoou o legionário caído. Mas não tinha sido o primeiro a tombar. Já havia mais três romanos mortos: um no chão no interior da barricada,
os outros dois deitados sobre o emaranhado verde, o sangue que lhes corria das feridas a manchar a margem do rio.
- Olhem para aquilo! - Lançou um legionário, e Macro seguiu com os olhos a direcção apontada pelo soldado. Enquanto as fundas romanas castigavam os flancos da coluna
inimiga, um guerreiro mais idoso gritava ordens. Os homens à sua volta agruparam-se cada vez mais, formando com os escudos uma muralha sem brechas, nem nos lados
nem por cima das cabeças. O centurião ficou assombrado perante a manobra, evidentemente copiada das tácticas da legião. Os projécteis tinham passado a abater-se
infrutiferamente sobre os escudos, e os homens no interior avançaram protegidos.
- Foda-se. - Concluiu Macro. - Afinal, estes cabrões são capazes de aprender.
Um grito de alarme atraiu-lhe a atenção de novo para o combate na barricada. No centro da linha, o inimigo tinha conseguido progredir até uma das grandes estacas
que os legionários tinham cravado para aguentar toda a vegetação. Várias mãos abanavam furiosamente o toro, tentando soltá-lo, e enquanto Macro avaliava a situação
ele começou a tombar para o lado dos bretões, arrastando consigo uma secção da barricada.
- Merda! - Vociferou, furando entre os seus homens na direcção da área ameaçada. - Impeçam-nos! Dêem-me cabo desses filhos da puta!
Os legionários viraram a atenção para os homens que puxavam a estaca, golpeando ferozmente os braços nus. Porém, os guerreiros que tinham a seu cargo a defesa daquele
destacamento eram igualmente determinados, e contra-atacaram imediatamente, tentando forçar os romanos a recuar com as lanças. A intensidade do combate era tal que
ambos os lados combatiam em silêncio, esforçando-se por fazer recuar o inimigo. De repente, ouviu-se o som de madeira a estalar, e o tronco soltou-se de vez, fazendo
com que vários guerreiros bretões caíssem para trás, no rio. Os outros soltaram gritos de triunfo e lançaram-se para a brecha.
- Aguentem! - Gritou Macro, lançando o seu dardo contra os inimigos. - Aguentem!
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Puxou a espada da bainha, agachou-se e lançou todo o seu peso por trás do escudo, correndo contra o inimigo, apoiado pelos legionários próximos, ao seu lado e por
trás. Os dois lados embateram, escudo contra escudo, tão perto que todos se apercebiam da respiração ofegante dos ádversários, e dos seus gemidos de esforço. Ainda
agachado por trás do seu escudo, Macro libertou a mão que manejava o gládio e usou-o contra qualquer pedaço de carne ou tecido bárbaro que lhe passasse ao alcance.
As lanças e espadas longas dos bretões eram inúteis naquele género de combate, para o qual as espadas curtas das legiões tinham sido expressamente pensadas. No meio
da multidão apertada, mais e mais inimigos iam sendo feridos. Incapazes de recuar pelo meio das suas fileiras, impedidos até de tombar para o solo, sofriam a agonia
de pé, sangrando até à morte, as cabeças pendentes no meio das expressões desesperadas dos seus camaradas que ainda viviam.
Os romanos tinham a vantagem de ocuparem a margem do rio, estando portanto em posição superior, e com mais firme apoio para os pés, e assim conseguindo aguentar
o muito maior número de combatentes inimigos. Macro perdeu a noção de quanto tempo durou o assalto. A sua mente só estava ocupada com o desafio ao inimigo, com a
defesa da sua posição. Em redor ouvia as exclamações e os grunhidos dos homens, a corrente que já corria vermelha, e os reflexos faiscantes do sol inclemente que
batia nas lâminas erguidas e nos capacetes já cobertos por salpicos de sangue e lama.
Nem deu pelo novo toque urgente das trompas bretãs. Só se apercebeu que os celtas recuavam quando a pressão sobre o seu escudo diminuiu e começou a ter espaço para
movimentar mais facilmente a espada.
- Estão a retirar! - Gritou alguém, incrédulo. Um grito cansado de triunfo saiu das bocas romanas e ecoou pelo vau, enquanto os bretões recuavam. Macro manteve-se
calado, aproveitando a ocasião para olhar em volta e avaliar a situação. Um dos seus homens passou por ele, saltando para a corrente e fazendo menção de perseguir
o inimigo em retirada.
- TU! - Berrou o centurião, fazendo com que o homem olhasse para ele, receoso. - Foda-se, podes contar com uma participação. Volta já para aqui!
O legionário voltou para trás e trepou para a margem, juntando-se ao oficial furioso.
- Porra, no que é que estás a pensar? Vais enfrentar sozinho o filho da puta do Carátaco e o exército todo, é?
- Senhor, peço desculpa. Eu...
- Lamentas, pois! És a mais lamentável amostra de pseudo-legionário
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que alguma vez encontrei. Faz outra dessas e enfio-te a merda da espada pelo cu acima. Percebeste?
- Sim, senhor.
- Volta para a linha.
O homem afastou-se, fundindo-se nas fileiras sob os risos de gozo dos camaradas, que abanavam a cabeça.
Macro ignorou-os, preferindo ocupar-se com o que o inimigo estava a preparar. O mais provável era que reagrupassem as forças e voltassem a lançar um assalto em boa
forma contra a brecha na barricada. Um movimento aos seus pés despertou-lhe a atenção, e reparou então num guerreiro inimigo que tentava içar-se para a margem. Em
toda a extensão do vau, os bretões mortos e feridos empilhavam-se na margem revolta e sobre os seixos do fundo elevado. Quase sem pensar, Macro inclinou-se sobre
o homem e trespassou-lhe o pescoço com a ponta do gládio. Com um gemido, o bretão tombou de novo no meio dos cadáveres, o sangue a jorrar da ferida. Os olhos, desesperados
e selvagens, fixaram-se em Macro. Então reviraram-se, e o homem morreu. Um a menos, faltavam apenas outros vinte e nove mil.
Na margem, o chefe encarregado do cada vez mais reduzido grupo de assalto estava a formar os seus homens, criando uma tartaruga rudimentar com uma fila de lanças
à frente. Assim que ficou satisfeito com a formação, lançou uma ordem, e os guerreiros voltaram a entrar no vau.
- E eu a pensar que tínhamos dado uma boa lição àqueles cabrões.
- Murmurou um soldado junto a Macro.
O centurião fez um sorriso desanimado.
- A mim parece-me é que já lhes demos lições a mais.
Desta vez o inimigo não enfrentaria obstáculos na aproximação pelo rio. Com a tartaruga, forçaria a passagem pela brecha e esmagaria os defensores. Macro compreendeu
que tinha chegado o momento da decisão. Dirigiu-se ao ponto mais elevado da ilhota, um pouco recuado, e perscrutou a margem sul do rio, à procura de sinais da aproximação
de Máximo e da coorte. Nada. Então apercebeu-se de um faiscar, logo seguido de outro, algumas centenas de metros a jusante. Esforçou a vista e avistou uma massa
prateada que serpenteava na sua direcção como uma centopeia esguia. Por momentos, alegrou-se. Mas rapidamente concluiu que estavam ainda demasiado longe para o ajudar
no embate próximo. Mantinha-se assim a necessidade de uma decisão. Podia obedecer às ordens, manter-se na posição e lutar, embora não tivesse qualquer esperança
de evitar a passagem do inimigo; ou podia forçar-se a ordenar a retirada, numa tentativa de salvar as vidas dos seus homens, mesmo que isso lhe custasse uma reputação
conquistada com tanto esforço.
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Voltou-se e observou a formação inimiga; a muralha de escudos já tinha atravessado um terço da corrente sem sinal de desagregação. A sua decisão começava a tornar-se
óbvia. Não tinha realmente escolha. Dirigiu-se a passos largos para os seus homens exaustos, que se apoiavam nos escudos.
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XII
Enquanto os seus homens caminhavam no meio da poeira levantada pelos que seguiam à sua frente, o centurião Cato não tirava os olhos da margem oposta do Tamisa. Todos
os caminhos para o vau estavam cheios de homens, cavalos e bigas, uma consequência da tentativa do inimigo de escapar à denodada perseguição do exército romano.
A armadilha devia ter sido fechada pela Segunda Legião nos dois pontos principais de travessia, mas tornava-se claro que o general Pláucio não tinha sido bem sucedido
na tentativa de aprisionar os bretões entre as suas forças e a principal força de bloqueio liderada por Vespasiano. De alguma forma, Carátaco tinha conseguido esgueirar-se
aos dois e dirigir-se ao terceiro ponto de travessia, o vau que coubera à Terceira Coorte guarnecer.
O problema era que a coorte não estava a ocupar a posição que devia. A travessia não era defendida por mais de um punhado de homens sob o comando de Macro. Apesar
de toda a cuidadosa preparação e da concentração de forças, o plano estava a soçobrar. Com trinta mil legionários ao seu dispor, o general Pláucio dependia agora
das acções de apenas oitenta. Era sobre os ombros destes que caía a responsabilidade pelo sucesso ou falhanço do grande esquema do general para acabar de uma vez
por todas com a resistência organizada dos nativos. Se Carátaco fosse esmagado antes do fim do dia, inúmeras vidas seriam salvas no futuro - vidas romanas, pelo
menos.
Temendo pelo amigo, Cato adivinhou que Macro veria a situação sob esse prisma e, com a habitual determinação, tentaria tudo o que lhe fosse possível para evitar
que os bretões cruzassem o rio, mesmo que isso implicasse a sua morte e a de todos os homens da sua centúria. O seu sacrifício
poderia atrasar os bretões o tempo suficiente para que Pláucio conseguisse alcançá-los pela retaguarda, ou pelo menos para que Máximo conseguisse detê-los na margem
sul e lhes negasse qualquer possibilidade de fuga.
Enquanto marchava ao lado dos homens, Cato tentou pôr-se no
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lugar de Macro e pesar as opções que se lhe abriam; depressa compreendeu que também ele aceitaria a necessidade de aguentar a posição e lutar até ao último homem.
Havia demasiado em jogo para que qualquer outra possibilidade pudesse ser contemplada. Virou-se para os legionários.
- Mais depressa! Toca a andar, raios vos partam!
Alguns dos legionários da Sexta Centúria trocaram olhares surpreendidos perante a explosão escusada do seu centurião, e uma voz irritada fez-se ouvir:
- Porra, estamos a ir o mais depressa que podemos!
Fígulo saltou imediatamente para um dos lados da coluna, numa tentativa de intimidar os homens.
- Bico calado! Tratarei pessoalmente do próximo sacana que abrir a cloaca! Guardem as forças para os cabrões dos celtas!
Cato voltou a observar o inimigo. A margem norte do rio estava agora quase completamente coberta de homens e cavalos. Deviam estar já muito próximos do vau. Pouco
à frente, o rio fazia uma curva e parecia estreitar de forma acentuada. Depois, quando lhe pareceu que o rio parecia desviar-se para a margem setentrional, Cato
apercebeu-se de que estava a ver a ilha que ficava a meio da corrente, precisamente no local do vau. O pulso acelerou-lhe enquanto se esforçava por distinguir os
detalhes distantes. A margem da ilha estava repleta de figuras diminutas, e a luz do Sol reflectia-se no equipamento prateado e nos salpicos de água que se soltavam
dos movimentos dos pés dos homens. As árvores da ilha escondiam porém a vista, o que tornava difícil uma avaliação correcta do modo como as coisas estavam a correr
para Macro e os seus homens.
Cato apercebeu-se de que a força inimiga que ocupava o vau começava a recuar, os homens encaminhando-se para a margem ocupada pelos bretões como formigas em busca
do ninho. Alegrou-se ao ver que Macro e os seus homens tinham conseguido repelir o ataque, o que só podia significar que ainda estavam vivos. Poucas centenas de
metros separavam agora a coorte da centúria de Macro, e na frente da coluna, via-se Máximo a incitar os homens, usando para isso todas as imprecações que conhecia
e mais algumas que lhe surgiam no momento.
Dali já se conseguia avistar toda a largura do rio, e Cato notou que os bretões se preparavam para renovar o assalto às defesas da ilha. Mas desta vez iam fazê-lo
de forma mais organizada. Não havia nenhuma multidão disposta a lançar-se em corrida contra os romanos, antes uma massa densa de homens que atravessavam o vau num
passo regular. Quando o inimigo alcançou a margem mais afastada da ilha, a coorte estava já relativàmente próxima do vau, e Máximo enviou os batedores montados para
reforçar o efectivo de Macro.
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Estes incitaram os cavalos e entraram pelo rio lançando salpicos para todo o lado. Mas antes de percorrerem sequer um terço da distância, surgiu um legionário à
vista por entre os salgueiros que marcavam a margem da ilha. Logo outros homens se lhe seguiram, correndo através da água. Ao depararem-se com os cavaleiros, estacaram,
mas logo prosseguiram a caminho da margem sul do rio. Não era nenhuma debandada, concluiu Cato quando notou que todos os homens ainda vinham equipados com escudos
e capacetes. Os batedores imobilizaram-se a meio da corrente, e Cato percebeu que o decurião estava a discutir com os legionários, apontando furiosamente para a
ilha. Mas eles não lhe ligaram, passando por entre os cavalos e prosseguindo a corrida para a margem. Surgiu então da ilha um punhado de homens em recuo, entrando
pelo vau mas mantendo os escudos erguidos contra o inimigo. Logo atrás deles, surgiu um magote de bretões que os seguiram pela água, logo reforçado por mais e mais
guerreiros celtas, que se empenhavam em destruir a retaguarda romana enquanto esta tentava proteger a retirada geral.
Máximo lançou o braço para a frente, e ordenou à coorte que avançasse. Os legionários, a suar e ofegantes, iniciaram uma corrida, as botas a troar na terra calcinada.
Entretanto, a retaguarda da unidade de Macro e os batedores lutavam desesperadamente para conseguir recuar pelo vau, já que o número de atacantes engrossava a cada
momento. Os homens que já tinham alcançado a margem estavam a dispor-se numa formação de profundidade apenas dupla na margem sul, tentando ocupar toda a largura
do vau. Era óbvio que a frágil linha de escudos vermelhos não conseguiria deter a massa de bretões sedentos de sangue por mais de um breve momento.
Os homens da coorte lançaram-se pelo caminho, na direcção dos seus camaradas, e depressa os mais rápidos e fortes de entre eles se juntaram à Terceira Centúria,
reforçando a pequena formação. Cato já estava suficientemente perto do vau para se aperceber dos detalhes da luta desigual que se travava a meio do rio, e o seu
coração alegrou-se quando notou uma crista transversal vermelha, que denunciava um capacete de centurião, a oscilar no meio da confusão do combate. Portanto, Macro
ainda estava vivo. Mesmo perante a perspectiva de uma aniquilação quase segura, Cato encontrou algum reconforto nessa certeza, enquanto corria pelo último declive
para se juntar aos legionários que eram apressadamente colocados em posição na margem do rio. Apesar de o seu número ser muito menor, os romanos tinham vantagem
táctica, já que ocupavam uma posição que só podia ser atacada numa frente estreita. Ainda havia esperança, tentou convencer-se Cato. Talvez conseguissem realmente
impedir o progresso de Carátaco.
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- Sexta Centúria! - Gritou. - Formar à direita da linha!
Os homens, extenuados, arrastaram-se para as suas posições na extremidade da coorte, embora mal pudessem ter-se de pé, tossindo e arfando enquanto, apoiados aos
escudos, tentavam recuperar o fôlego. Não havia neles grande espírito de luta, e não voltaria a surgir enquanto não recuperassem da marcha forçada que tinham realizado
debaixo de um sol abrasador. Mas o inimigo aproximava-se, e daí a curtos instantes estariam a combater para se manterem vivos.
Os sobreviventes da retaguarda de Macro e o esquadrão de batedores lutavam para abrir caminho até à zona menos funda do rio, os escudos justapostos e as espadas
curtas a serem usadas sem descanso contra qualquer corpo ou braço inimigo que tentasse abrir uma brecha na formação romana. Máximo virou-se para os homens que aguardavam
na margem.
- Quarta Centúria! Abram alas!
Surgiu uma passagem no seio da coorte, e Macro, ao aperceber-se da manobra, deu uma ordem ao decurião:
- Primeiro os batedores! Vão!
Os cavaleiros deixaram de combater e impeliram as montadas na direcção da estreita passagem. Um deles foi demasiado lento e, enquanto o cavalo dava meia-volta, uma
figura pulou sobre ele, agarrou-o pelo braço e arrastou-o para o solo. Atacante e batedor caíram juntos na corrente, mas num instante um magote de guerreiros inimigos
se juntou à volta do soldado romano, lançando gritos de triunfo. Um berro gorgolejante rasgou o ar, mas logo foi interrompido quando as lanças e espadas trespassaram
o peito do homem, expulsando-lhe todo o ar dospulmões. Este incidente distraiu os atacantes e permitiu a Macro e aos que o acompanhavam reentrar nas fileiras da
coorte, encharcados pela travessia do rio e salpicados pelo sangue de inimigos e camaradas.
Máximo, colocado ao centro da coorte,algumas filas atrás, encarou Macro com um olhar alucinado, com uma expressão de profundo e intenso ódio.
- Perdeste o controlo do vau.
Não havia tempo para uma troca de palavras, e Macro limitou-se a virar-se e a formar com os seus homens, enfrentando mais uma vez a enxurrada de bárbaros que atravessavam
o vau e se dirigiam para a coorte. Lançaram-se sobre os escudos que defendiam a margem e golpearam sem cessar os romanos que os empunhavam.
A princípio, os legionários conseguiram aguentar o embate, embora estivessem exaustos. Os anos de treino interminável mostraram o que valiam, já que os homens adoptaram
facilmente o padrão usual: empurrar o escudo e usar a bossa do mesmo contra o inimigo, e depois puxá-lo,
101
enquanto a espada avançava e o tentava alcançar; uma pausa para bloquear o ataque adversário, e depois repetir a sequência. Enquanto a linha aguentasse seria esse
o ritmo. Se cedesse, então as vantagens da formação cerrada e do treino estrito, que tanta eficiência lhes davam em combate, ver-se-iam perdidas, e a luta ficaria
reduzida a uma competição de força e selvajaria.
À medida que o número dos inimigos ia engrossando, a coorte começou a ceder. Apesar de ser quase imperceptível, Cato, colocado na ponta da linha e ainda não empenhado
no combate, apercebeu-se de que o centro da linha romana começava a curvar e a recuar. Também Máximo o notou, e dirigiu-se ao decurião e aos poucos homens que restavam
do esquadrão montado.
- Procura o legado, e diz-lhe o que se está a passar. Vai!
O decurião saudou-o e orientou o cavalo para jusante, ordenando aos seus homens que o seguissem. Ao partir, lançou um derradeiro olhar sobre o ombro aos camaradas.
- Boa sorte, rapazes!
No momento seguinte já galopava pela estrada, o ruído dos cascos perdido entre o clamor das armas e os gritos desesperados dos homens envolvidos na tremenda refrega.
- Aguentem a linha! - Incitava Máximo, agitando a espada no ar na direcção do inimigo. - Aguentem a linha, meus sacanas! Não cedam nem um milímetro!
A violência das suas palavras não se podia igualar à dos esforços do inimigo, e os romanos cediam, passo a passo, perante os sucessivos ataques. Alguns legionários,
ainda frescos da recruta e sem experiência da dura realidade das batalhas, começaram a lançar olhares nervosos por cima dos ombros. No preciso instante em que Cato
olhava para a retaguarda romana, reparou numa figura que dava um passo atrás, abandonando a formação. O comandante da coorte também a avistou, e correu imediatamente
para o homem, usando a lâmina como uma vara e batendo-lhe no capacete.
- Volta imediatamente para a linha! - Rosnou Máximo. - Se te mexes outra vez, juro que te corto o pescoço!
O legionário voltou para a formação, o medo do seu comandante vencendo por momentos o terror que o inimigo lhe inspirava. Mas estava longe de ser o único em pânico
perante a perspectiva de ser morto pelos bretões. À medida que os romanos iam sendo forçados a recuar, mais e mais cabeças se viravam para procurar um caminho para
a segurança.
Na outra ponta da linha, Cato viu um homem da própria centúria de Máximo livrar-se repentinamente do escudo, virar-se e correr. Máximo apercebeu-se do movimento
e virou-se imediatamente.
- Volta já para a linha!
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O homem virou-se na direcção da voz, mas logo se ocupou a desfazer os nós que lhe prendiam o capacete. Quando conseguiu soltá-los, arrancou-o, atirou-o para o lado
e correu para um maciço de arbustos e árvores enfezadas nas proximidades.
Enraivecido, Máximo bateu com a face da espada na sua greva prateada. Berrou na direcção do fugitivo:
- Muito bem, poltrão! Cobarde de merda! CORRE! Eu conheço-te! Quando isto estiver acabado, eu mesmo tratarei de te apedrejar até acabar com a tua maldita existência!
Mas o mal estava feito, apercebeu-se Cato. Outros homens começaram a afrouxar o combate, lançando olhares culpados aos camaradas. A linha romana começou a recuar,
e os bretões aproveitaram para renovar o ataque. Forçaram os romanos a abandonar a margem do rio, alargando cada vez mais a testa-de-ponte e conseguindo assim empenhar
cada vez mais homens no combate. Em breve as alas da coorte seriam também afastadas da margem, e nessa altura nada impediria o inimigo de cercar os legionários e
aniquilá-los.
Máximo compreendeu o perigo, e viu que tinha que agir depressa se quisesse salvar a unidade que comandava. Seria necessária alguma destreza nas manobras; só a Primeira
e a Sexta Centúrias não estavam ainda embrenhadas no combate.
- Primeira Centúria! Reformar no flanco esquerdo!
Enquanto a sua centúria se deslocava para formar uma linha perpendicular à de Túlio, Máximo olhou para a outra extremidade da linha e gritou a Cato:
- Sexta centúria! Formar à esquerda!
- Vamos! - Respondeu Cato, incitando os homens. - Em corrida!
Correram por trás da coorte e tomaram posição na extremidade da centúria de Máximo, também em ângulo recto, e portanto paralelamente aos homens que ainda combatiam
os bretões. Quando o dispositivo ficou pronto, Máximo lançou um último olhar à situação e tomou então o passo decisivo.
- Coorte! Abandonar combate à direita!
Passo a passo, os homens alteraram a posição a jusante, e os que enfrentavam directamente o inimigo concentraram-se mais em manter a formação cerrada do que em abater
bretões. À medida que a Quinta Centúria se afastava do inimigo, começou a rodar, unindo-se à extremidade da unidade de Cato. Mas já toda a coorte se movimentara
ao longo da margem o suficiente para abrir uma brecha no flanco esquerdo, e por aí se precipitaram os bretões para atacar a Primeira Centúria. À medida que mais
e
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mais combatentes inimigos saíam do vau e corriam ao longo da formação romana. Máximo olhava para a direita, ansioso por completar a transformação da linha romana
num rectângulo mais fácil de defender. Por fim, a Quarta Centúria abandonou a sua secção do vau, e rodou imediatamente a formar a última face da formação defensiva.
Lentamente, mantendo
uma permanente parede de escudos em todas as faces, a coorte recuou do vau e foi seguindo a estrada que levava ao resto da legião, que era agora a sua única possibilidade
de sobrevivência.
Cada vez mais bretões atravessavam o rio e se lançavam no combate, tentando exterminar a unidade romana. Cato, na fileira da frente da sua centúria, mantinha o escudo
alinhado com os dos homens que o ladeavam e dava passos laterais cuidadosos, enquanto os golpes se abatiam sem cessar na superfície curva. Entrevia o inimigo, e
não parava de lançar estocadas, numa tentativa de os manter à distância. De vez em quando, a espada atingia um homem, e ouvia-se um grito de dor ou uma imprecação
de raiva. Mas, enquanto recuava, a coorte também ia sofrendo as suas baixas. Os homens feridos deixavam a linha e eram rapidamente substituídos pelos que vinham
nas fileiras de trás, de modo a manter os espaços preenchidos. Os que ainda conseguiam caminhar eram empurrados até ao centro da formação, os outros eram abandonados
onde caíam, para serem aniquilados assim que os seus camaradas se afastassem. Em tempos, esta prática tinha parecido ignóbil a Cato. Agora, aceitava-a como uma obscena
necessidade da guerra. Por muito que temesse sofrer uma ferida incapacitante, que o deitasse no chão, desamparado, Cato tinha consciência de que não podia esperar
que os outros arriscassem as vidas para o tentar salvar. Era esse o duro código de conduta das legiões.
Um repentino grito de agonia soou à sua esquerda. Cato nem sequer tentou ver do que se tratava, já que não podia arriscar-se a afastar o olhar do inimigo e das suas
acções. Porém, ao recuar lentamente com os outros, apercebeu-se de alguém no solo.
- Não me abandonem! - Gritou uma voz, plena de terror. - Por piedade, não me abandonem!
De repente, uma mão agarrou Cato pelo tornozelo.
- Senhor!
Cato viu-se obrigado a olhar rapidamente para baixo. Um dos seus homens, um recruta pouco mais velho do que ele próprio, estava pelo solo, apoiado no cotovelo. Uma
espadeirada tinha-lhe destroçado o joelho e rasgado os tendões e músculos da parte superior da perna, o que o tinha derrubado instantaneamente.
- Senhor! - Suplicou o legionário, apertando-o com mais força.
- Salve-me!
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- Larga-me! - Retorquiu Cato, de forma selvagem. - Larga-me, senão mato-te!
Chocado com a resposta, o ferido ficou boquiaberto. Entretanto, Cato apercebeu-se de que o homem à sua esquerda tinha dado mais um pequeno passo lateral, e que se
abrira uma brecha entre eles.
- Larga-me! - Voltou a gritar Cato.
Durante um momento, o aperto diminuiu de intensidade, mas logo se refez, com o pânico renovado.
- Por favor! - Suplicou o homem mais uma vez.
Cato não tinha escolha. Se ficasse no mesmo lugar mais um instante, algum dos guerreiros inimigos não deixaria de aproveitar a brecha entre ele e o homem seguinte.
Cerrando os dentes, Cato golpeou o legionário no solo, ferindo-o profundamente mesmo acima do pulso. Os dedos abriram-se e o centurião soltou o pé, dando imediatamente
o passo necessário para fechar a formação. Ouviu ainda o ferido gritar, em agonia.
- Cabrões! - Vociferou, enquanto os seus camaradas lhe passavam por cima. - Assassinos de merda!
Quando Cato conseguiu voltar a olhar para o conjunto da coorte, reparou que já tinham deixado o vau para trás, e que já iam a meio da encosta suave que a estrada
seguia enquanto acompanhava o curso do rio. Os bretões ainda cercavam a formação romana, tentando por todos os meios destruir aquela força inimiga, mas tinham deixado
de receber reforços de entre aqueles que continuavam a atravessar o rio. Esses já se afastavam para montante, aproveitando a oportunidade que lhes surgira de escapar
às legiões do general Pláucio. À medida que a coorte subia a encosta, os guerreiros inimigos começavam a abandonar o combate, ficando apoiados às armas a ver os
romanos a recuar, e recuperando o fôlego. A estrada estava repleta de corpos, romanos e bretões, ensanguentados e mutilados por cortes e estocadas de espadas e lanças.
Por fim, a coorte ficou livre das atenções inimigas, mas Máximo deixou que a formação caminhasse até à crista da colina antes de ordenar alto. A trezentos passos,
o exército de Carátaco passava sem interrupções e sem fazer qualquer nova tentativa de atacar a coorte. Se Carátaco tivesse por intenção destruí-los, tal não levaria
muito tempo; mas o comandante bretão tinha outras preocupações.
- Baixar escudos! - Ordenou Máximo, e por todo o lado os legionários exaustos deixaram os escudos apoiar-se na relva pisoteada, encostando-se a eles e tentando recuperar
o fôlego. Mais abaixo na encosta, os bretões que tinham forçado Macro e os seus homens a abandonarem a ilha e depois tinham forçado também a passagem contra toda
a coorte descansavam também apoiados nos escudos. Os dois lados vigiavam-se
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cuidadosamente, à procura de algum sinal de que havia vontade de reiniciar o combate. Mas ela não existia de nenhum dos lados.
Aproveitando a pausa, Cato atravessou o interior da formação romana para ver como estava Macro. O centurião veterano esticava o braço para que o seu optio lho tratasse.
O sangue jorrava de um golpe que lhe apanhara o músculo do antebraço, e gotejava para o solo sem parar.
- Não é nada sério. - Dizia o optio. Do interior da sacola tirou um rolo de tecido, e começou a ligar o ferimento, enquanto Macro levantava o olhar.
- Ah, Cato! - Sorriu. - Parece que ganhei mais uma cicatriz acerca da qual vou poder contar umas histórias na velhice.
- Se por acaso lá chegar. - Cato apertou-lhe a outra mão. - É bom vê-lo ainda vivo. Temi que o varressem da face deste mundo, ali na travessia.
- E fomos mesmo varridos. - Disse Macro, tranquilamente. - Se lá estivesse mais gente, tínhamos aguentado.
Cato olhou em redor, mas Máximo estava de costas voltadas e longe demais para ter escutado aquelas palavras.
- Também me parece. - Sussurrou, com um leve aceno na direcção do comandante da coorte.
Macro inclinou-se para ele.
- Ainda vai haver bronca por causa disto. Tem cuidado contigo.
- Oficiais à minha presença! - Chamou Máximo.
Aproximaram-se a passo, demasiado exaustos para correr. Para lá
de Macro, também Túlio e Félix tinham sido feridos, este último com um profundo lanho na face. Tentava estacar o sangue com um penso já ensopado. Cato viu a expressão
tensa do comandante e adivinhou que no seu íntimo se travava um duro combate que o dilacerava. Não tinha cumprido o seu dever, e a prova desse falhanço continuava
a desfilar a poucos metros deles. Só um verdadeiro milagre podia salvar a sua carreira militar de uma ruína abjecta. Máximo limpou a garganta.
- Para já, estamos a salvo. Sugestões? - A voz era esforçada e irritada.
Fez-se um silêncio embaraçoso, e só Macro se mostrou preparado para lhe enfrentar o olhar.
- Centurião?
- Senhor?
- Há alguma coisa que me queiras dizer?
- Não, senhor. - Macro encolheu os ombros. - Pode esperar.
Cato olhou na direcção do vau.
Senhor, não devíamos deixá-los escapar.
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Máximo voltou-se imediatamente contra ele.
- Ah sim? O que propões então? Carregamos sobre eles e por lá ficamos todos? Olha para o estado em que estamos. Quanto tempo é que achas que durávamos?
- Talvez o suficiente para fazer diferença, senhor. - Respondeu Cato, aprumado.
- A qualquer custo? - Desdenhou Máximo, mas Cato viu um traço de desespero na expressão do outro.
- Caberá a outros dizê-lo, senhor, mais tarde.
- Mas a ti não custa nada dizê-lo, agora!
Cato recusou-se a responder. Ao invés, limitou-se a olhar para lá do comandante e a apreciar os guerreiros de Carátaco enquanto estes atravessavam o rio. O olhar
viajou até à margem oposta e à massa de inimigos que ainda a ocupava. O Sol já estava baixo, e as sombras alongadas faziam o número de inimigos parecer maior do
que era, além de lhes dar um aspecto aterrorizador. Enquanto examinava o panorama, ouviram-se os sons das trompas bretãs, vindas da margem norte. Homens estavam
a afastar-se do vau e a formar uma linha defensiva numa crista baixa a algumas centenas de metros. Eram ainda vários milhares de homens, com cavalaria e carros em
ambos os flancos.
- Senhor! - O centurião António ergueu o braço e apontou para jusante. - Veja, ali!
Os oficiais viraram as cabeças e olharam na direcção apontada. Na margem, a menos de dois quilómetros à direita, surgia a cabeça de uma densa coluna de homens.
Macro piscou os olhos.
- Nossos?
- Quem mais? - Retorquiu Cato. - E aí vem a Segunda, do nosso lado do rio.
Os oficiais olharam outra vez. De facto, outra coluna de infantaria romana se dirigia para eles, embora um outeiro a escondesse momentaneamente. Por momentos, Cato
sentiu o sangue a ferver nas veias e dirigiu-se ao comandante da coorte.
- Senhor, ainda há tempo para fazermos alguma coisa. Tudo o que tem a fazer é dar a ordem.
- Não. - Máximo abanou tristemente a cabeça. - Já é demasiado tarde. Ficamos aqui.
Cato abriu a boca para emitir um protesto, mas o comandante da coorte ergueu a mão, para o impedir.
- Basta, centurião, a minha decisão está tomada. Não há mais nada a discutir.
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Era então tudo, compreendeu Cato. O assunto estava encerrado. O falhanço da Terceira Coorte era completo, os seus homens e os seus oficiais viam-se humilhados. E
se tivessem muita sorte, essa seria a menor das suas preocupações.
As forças do general Pláucio alcançaram o vau divididas em três colunas, que imediatamente se dispuseram em formação de ataque e entraram em contacto com o inimigo.
Da outra margem do rio, os homens da Terceira Coorte viram como os bretões que ocupavam a crista se lançaram pela encosta, desaparecendo de vista. Só se ouviam os
sons abafados das trompas e trombetas e o ruído do combate. Então, começaram a surgir na crista figuras isoladas que corriam para o rio. Depressa se tornaram mais
numerosas, e quando a encosta ficou coberta por homens em fuga, tornou-se claro que as linhas dos bretões tinham cedido.
Um clarão súbito atraiu o olhar de Cato de volta à crista, a tempo de ver surgir, sob o brilho avermelhado do sol poente, a cavalaria romana que perseguia os inimigos
em fuga, abatendo-os sem piedade enquanto corriam para o vau. Ali não cabiam mais de quinze homens lado a lado, e em breve a travessia estava congestionada, com
homens, cavalos e bigas a tentarem atravessar a corrente e escapar da impiedosa perseguição dos cavaleiros romanos. Alguns dos bretões livraram-se das armas que
carregavam e tentaram a fuga a nado; havia dúzias deles a chapinharem através do largo rio. Alguns, demasiado fracos ou demasiado pesados pela roupa ou equipamento
que ainda transportavam, começavam a debater-se, agitavam desesperadamente a água e acabavam por se afogar.
Os primeiros legionários surgiram na crista e começaram a descer a encosta que dava para o rio em formação ordenada. Enquanto os homens da Terceira Coorte assistiam,
à luz do sol poente, um enorme lamento soltou-se da massa densa de guerreiros inimigos. Alguns ainda tiveram discernimento para concluir que, apesar de não terem
qualquer esperança de sobrevivência, ainda podiam levar com eles alguns dos romanos, e talvez ganhar o tempo que permitiria a mais homens de Carátaco atravessar
o rio em segurança. Mas não eram os suficientes para fazer qualquer diferença, e foram rapidamente eliminados quando as fileiras vermelhas se aproximaram do vau.
O Sol tinha acabado de desaparecer por trás do horizonte e, sem luz, era impossível distinguir o que se passava na margem norte do rio. Só os terríveis sons de milhares
de homens em agonia e os pedidos de clemência
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denunciavam o massacre que estava a ocorrer, e Cato sentiu-se grato por não ter de testemunhar a carnificina.
No sopé da encosta, no lado sul do vau, o número de inimigos que saíam do rio começou a diminuir, e eles dispersavam-se por todas as direcções, tentando aproveitar
a noite que caía para escapar. Ouviam-se vozes romanas vindas daquela direcção, e da escuridão nas costas da Terceira Coorte, escutaram-se os sons de cascos a martelar
o caminho.
- Coorte, atenção! - Gritou Máximo, e os legionários, ainda formados em quadrado, apressaram-se apegar nos escudos e a formar fileiras, enquanto os centuriões se
apressavam a retomar as posições junto às suas unidades. Uma coluna de cavaleiros aproximava-se, saindo da poeira; os animais detiveram-se a curta distância e ali
ficaram a roer os arreios e a bater as patas, enquanto os seus cavaleiros se mantinham em silêncio.
- Quem se aproxima? - Berrou Máximo. - A senha?
- Pólux!
- Reconhecida. Podem aproximar-se.
Ouviu-se uma ordem, e uma numerosa coluna montada passou pela coorte, dirigindo-se ao vau para procurar e abater quaisquer inimigos que ainda por lá se arrastassem.
Das sombras, um pequeno grupo destacou-se e dirigiu-se directamente para a Terceira Coorte.
- É o sacana do legado em pessoa! - Comentou alguém nas proximidades de Cato.
- Calado! - Gritou imediatamente o centurião.
Os cavaleiros detiveram-se junto aos legionários, e desmontaram. Vespasiano avançou, e os homens abriram fileiras para que ele passasse. Quando passou por ele, Cato
apercebeu-se claramente da ira que lhe marcava as feições. Máximo dirigiu-se ao seu encontro, e saudou-o. Vespasiano contemplou-o em silêncio durante um breve período.
- Centurião... - Começou, mal disfarçando a raiva na voz fria.
- Ainda não percebi exactamente o que se passou hoje aqui, mas garanto-te que, se afectar a minha reputação ou a da Segunda Legião, te desfaço, a ti e a todos os
homens desta coorte.
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XIII

O interior da tenda do general estava abafado, sobretudo depois do ar fresco da noite banhada pelo luar. Vespasiano sentiu o suor que se lhe formava na testa, e
limpou-o apressadamente. Não tinha qualquer vontade de levar o general a supor que estava nervoso. Isso seria o mesmo que admitir que havia, de facto, alguma razão
para se sentir dessa forma; como, por exemplo, ter a culpa pelo falhanço do plano do general. A responsabilidade por Carátaco e um grande número dos seus guerreiros
terem conseguido escapar à armadilha podia ser, de facto, dos seus subordinados, mas isso pouco importaria a Áulio Pláucio. Era Vespasiano o responsável pelo desempenho
dos homens que comandava - era assim no exército - e seria ele a sofrer as consequências. Como depois as passava aos seus homens, era problema seu.
O legado foi obrigado a ficar à espera à entrada da tenda, enquanto um escrivão afastava uma cortina de linho que separava o átrio da área reservada a Pláucio e
ao seu pessoal. Várias lamparinas iluminavam a cena, e a luz atravessava o fino material, projectando sombras disformes sobre a cortina, enquanto os homens se movimentavam
no interior. Na entrada só reinava uma lamparina que pendia do suporte da tenda, e a luz mortiça tremia com cada brisa que se fazia sentir. Lá fora encontrava-se
o esquadrão de guardas pessoais do general, que vigiava as redondezas das tendas, e o terreno descia suavemente até ao rio que fluía tranquilamente ao luar. No vau,
a água reluzia, já que a corrente se tornava mais rápida ao passar sobre o terreno irregular, repleto de pedras e pouco profundo, mas também espumava em volta dos
corpos que ainda bloqueavam a passagem. Na margem distante, sob a pálida luz prateada, avistava claramente os baluartes do campo da Segunda Legião. No interior da
silhueta escura brilhava ferozmente uma série de pequenas fogueiras, como se fossem estrelas cadentes.
Vespasiano tinha deixado o seu campo e atravessado o vau pouco
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antes, respondendo à austera convocatória do general. A cada passo, o seu cavalo tinha tido que escolher o caminho por entre os cadáveres que juncavam o solo. Havia
homens que ainda viviam, alguns gemendo em tom baixo, outros reunindo as últimas forças para lançar gritos de agonia que assustavam o cavalo. O odor adocicado do
sangue dominava o ar, fazendo-o parecer mais quente do que estava. O legado deixou de contar os corpos quando atravessou o vau e chegou à pequena ilha no meio do
Tamisa. Mais mortos espalhavam-se pela estrada e estavam empilhados em frente do que restava da barricada improvisada pelo centurião Macro. Mas o pior estava reservado
para o fim, quando o cavalo do legado emergiu do vau e começou a subir para a crista pouco elevada onde o general tinha decidido instalar o seu campo.
Os corpos tinham sido desviados da estrada e amontoados de ambos os lados, numa amálgama de torsos e membros que arrefeciam à medida que a noite avançava. Por trás
dos cadáveres mais próximos, o legado apercebeu-se de um campo coberto por milhares de corpos, que se estendia ao luar. Estremeceu ao pensar em todos os espíritos
dos mortos que deviam, naquele preciso momento, pairar no ar ao seu redor, à espera de iniciar viagem para a terra das sombras eternas, onde os mortos passariam
a sua lúgubre existência até ao fim dos tempos. Sabia bem que os bárbaros acreditavam numa vida para lá da morte, em que se veriam num festim eterno, sempre bêbados,
mas a dureza austera da morte tornava-lhe difícil aceitar tal visão. A tremenda escala da destruição de vidas humanas à sua volta provocava-lhe uma sensação de opressão
como nunca sentira na vida. Depois de uma batalha perdida, pensou, nada havia com certeza de mais lamentável do que uma batalha ganha.
- O general vai recebê-lo agora, senhor.
Vespasiano virou-se para o escrivão, forçando-se a afastar a mente dos pensamentos sobre a morte que pairava como um manto negro sobre o mundo exterior ao pavilhão.
Dobrou-se e passou pela abertura na cortina que o outro lhe preparara. Lá dentro, e apesar de a noite já ir avançada, alguns escrivães ainda trabalhavam nas suas
mesas. Não ergueram os olhos quando Vespasiano foi conduzido através da tenda até outra cortina ao fundo, e ele perguntou-se se já teriam alguma ideia sobre o que
o esperava. Irritou-se consigo mesmo por albergar tais pensamentos. Os homens estavam ocupados, era só isso. Nada podia ter sido já decidido. O escrivão puxou a
cortina e o legado entrou noutra secção da tenda, mais pequena e acolhedora. No canto ao fundo, fracamente iluminado, via-se uma cama de campanha e algumas arcas.
Ao centro encontrava-se uma grande mesa sobre a qual se via um rico suporte para várias lamparinas, que produziam a luz amarelada habitual; um enorme escravo núbio
abanava um leque de
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grandes dimensões, para refrescar os dois homens que estavam sentados à
mesa.
- Vespasiano! - Narciso ofereceu-lhe um sorriso caloroso. - É
um prazer rever-te, meu caro legado.
Havia qualquer coisa de complacente na maneira como Narciso pronunciara a última palavra, e Vespasiano imediatamente reconheceu a habitual tentativa de o colocar
no seu lugar. Podia ser legado, e ainda por cima de uma família senatorial. Narciso, um mero liberto - de estatuto social inferior ao mais reles dos cidadãos romanos
- era porém o braço direito do próprio Imperador. O seu poder era, portanto, bem concreto, e, perante tal facto, todo o prestígio e elevação dos aristocratas pouco
ou nenhum significado tinham.
- Narciso. - Vespasiano inclinou levemente a cabeça, como se saudasse um igual. Voltou-se então para o general Pláucio e fez a saudação formal. - Senhor, fui informado
de que a minha presença era necessária.
- De facto. Senta-te. Vou pedir que nos tragam vinho.
- Obrigado, senhor. - Vespasiano sentou-se numa cadeira oposta aos outros e sentiu algum alívio pela ligeira corrente de ar que era produzida pelo escravo.
Houve um breve silêncio, até que Narciso voltou a tomar a palavra.
- O problema, pelo menos quanto um mero burocrata pode compreender da situação militar, é que a campanha está longe de terminar.
- Narciso virou-se para o general. - Creio estar certo neste ponto. Quer dizer, Carátaco escapou-nos... outra vez.
O general assentiu.
- Assim é, pelo menos pelo que sabemos. Alguns milhares de homens conseguiram atravessar o rio antes de forçarmos o exército bretão a dar-nos batalha.
Por momentos, as sobrancelhas de Vespasiano ergueram-se em sinal de surpresa. Não tinha ocorrido nenhuma batalha, de facto tinha sido realmente um massacre impiedoso.
Percebeu então que a descrição do general se destinava a impressionar o secretário imperial; este apresentaria um relatório ao seu senhor assim que regressasse ao
palácio, sem qualquer dúvida. E uma batalha sempre seria mais digna de elogios do que um mero massacre.
Pláucio continuou:
- É bem possível que Carátaco se encontre entre os que conseguiram atravessar o vau. Mas pouco importa. Não haverá muito que ele possa fazer com o punhado de homens
que lhe resta.
Foi a vez de Narciso franzir o sobrolho.
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- Não quero ser chato, general, mas, para mim, um punhado de homens é um número substancialmente menor do que vários milhares.
- Pode ser que sim - concedeu Pláucio, sem demonstrar irritação
- mas à escala das nossas operações, isso não nos causa qualquer preocupação.
- Posso então informar o Imperador de que a campanha está em fase de conclusão?
Pláucio não respondeu, limitando-se a olhar de relance para o legado, num evidente aviso. Antes que a conversa prosseguisse, um escravo entrou com o vinho, e colocou
cuidadosamente a bandeja de bronze sobre a mesa. De um jarro elegantemente ornado, despejou um líquido cor de mel em três cálices de prata; depois, voltou a colocar
o jarro na bandeja, virou-se e deixou a tenda. Vespasiano esperou que os outros se servissem antes de pegar no seu cálice. Estava frio, e quando segurou o cálice
sob as narinas, apreciou o rico aroma.
- Foi refrescado. - Explicou Pláucio. - No rio. Achei que, depois de uma dura batalha travada sob o calor do Sol, uma bebida fresca era bem merecida. Um brinde,
senhores. - Ergueu o cálice. - À vitória!
- Vitória. - Reforçou Vespasiano.
- À vitória... quando ela chegar.
O general e o legado observaram o secretário imperial enquanto ele sorvia lentamente o líquido e colocava delicadamente o cálice sobre a mesa.
- Um belo refresco, sim senhor! Antes de voltar para Roma, tenho que obter a receita.
- Quando partes? - Perguntou Pláucio, sem rodeios.
- Assim que a campanha estiver terminada. No instante em que sentir que posso dizer ao Imperador que destroçámos a resistência organizada a Roma no coração desta
ilha. Quando essa meta for alcançada, o Imperador poderá enfrentar os seus inimigos no Senado, sabendo que eles sabem que a vitória foi alcançada. Não podemos aceitar
que haja línguas soltas a sussurrar que a guerra aqui na Britânia está ainda por resolver. Sin, tenho espiões entre as vossas legiões, e também os inimigos do Imperador
os possuem. É vossa obrigação garantir que eles não enviam nenhuma informação que possa ser usada para prejudicar Cláudio.
Narciso olhou directamente para o general, que se limitou a anuir com a cabeça, lentamente.
- Compreendo.
- Ainda bem. É portanto chegado o momento de sermos honestos uns com os outros. Digam-me, em que pé estão as coisas depois da... batalha de hoje? Partindo do princípio
de que Carátaco ainda está vivo.
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- Se ele escapou, então precisará de recuar e cuidar das muitas
feridas nas suas forças. Calculo que se retirará para alguma fortificação que ainda não localizámos. Esperará que os seus homens recuperem, e que mais alguns sobreviventes
se consigam juntar a ele, e tratará de se rearmar. Também tentará por certo recrutar mais homens, e para isso terá de enviar mensageiros a outras tribos, para tentar
conseguir novos aliados.
- Estou a ver. - A condensação no cálice de Narciso tinha produzido gotas que se tinham precipitado no tampo da mesa; ele usou o dedo para desenhar padrões com elas.
- E será possível que ele consiga novos aliados?
- Duvido. O tipo tem os seus talentos políticos, mas não tem tido grande sucesso militar. Aliás, batemo-lo em todas as batalhas que travámos. A verdade é que os
guerreiros nativos não estão à altura das legiões.
- Então, o que fará ele?
- Carátaco terá que refazer a sua estratégia. A partir de agora, só pode travar pequenas escaramuças, e vai-se limitar a atacar pequenas guarnições, colunas em busca
de abastecimentos, patrulhas e outros alvos do género.
- Ainda assim, serão sem dúvida perdas para as nossas forças, e perdas que poderão levar a campanha a prolongar-se indefinidamente, não é?
- Sim, essa possibilidade é real.
- Bem, meu caro general, diria então que a situação está longe de ser satisfatória.
- Está, de facto. - Pláucio pegou no jarro e voltou a encher o cálice de Narciso.
- Portanto, a questão é: como é que foi possível deixá-lo escapar? Foi-me dito antes que esta batalha seria o fim da história. Que ao fim do dia, Carátaco estaria
morto ou seria nosso prisioneiro. Em vez disso, o mais provável é que continue a flagelar-nos por mais uns tantos meses. Nada mudou. O Imperador não ficará nada
satisfeito, e estou a ser simpático com as palavras. Vocês têm, ambos, família em Roma?
Era uma pergunta retórica, que mal disfarçava a ameaça, e tanto o general como o legado olharam para o secretário imperial com medo e ódio evidentes.
- O que estás a sugerir? - Inquiriu Vespasiano sem alarde.
Narciso recostou-se na cadeira e entrelaçou os seus longos e elegantes dedos.
- Vocês falharam, hoje, aqui. E há um preço a pagar por esse falhanço. O Imperador assim o exige, e eu tenho que o informar que vocês tomaram as medidas que se exigiam.
Se não o fizerem, então o custo terá
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que ser cobrado em Roma. Na realidade, não há grande escolha. Portanto senhores, quem é que fez asneira hoje? De quem é a culpa pela fuga de
Carátaco? - O secretário imperial olhou para um dos homens, e depois para o outro. Enquanto esperava pacientemente por uma resposta, o seu rosto permaneceu impassível.
Por fim, o general encolheu os ombros.
- Bem, é óbvio. Ele escapou por um vau que devia ter sido melhor defendido. O meu plano dependia desse factor. - Pláucio olhou para o seu subordinado, do outro lado
da mesa. - A culpa do falhanço foi da Segunda Legião.
Vespasiano cerrou os lábios e devolveu o olhar do general com desdém. Ao mesmo tempo, a sua mente funcionava a toda a velocidade na busca de uma resposta. Compreendeu
imediatamente que a sua reputação, a sua carreira, talvez mesmo a sua vida e a da sua família estavam em perigo. A mesma ameaça pendia, evidentemente, sobre o general.
Porém, Vespasiano conhecia os meandros do poder suficientemente bem para não ter dúvidas de que, naquelas circunstâncias, os poderosos de Roma não deixariam de proteger
os seus e lançar o peso da culpa sobre uma figura menos importante: alguém com uma patente relevante, que pudesse servir de exemplo quanto aos custos do falhanço,
mas não tão alta que não pudesse ser dispensável. Alguém como ele próprio.
Por momentos considerou a possibilidade de assumir as culpas e demonstrar assim que possuía bastante mais orgulho e dignidade do que o general, mais a sua antiga
e nobre linhagem. Isso proporcionar-lhe-ia alguma satisfação, de facto. Mas seria um gesto de profundo egoísmo, compreendeu. E só serviria, no fim de contas, para
preservar a reputação de Pláucio. Considerando todos os factores, Vespasiano admitia que tinha mais a oferecer a Roma do que aquele general velho e desgastado. Por
fim, num momento de clareza, compreendeu que, fosse qual fosse a maneira de apresentar a questão, tudo se resumia ao instinto de autopreservação. E sempre seria
assim. E raios o partissem se ia permitir que um punhado de aristocratas merdosos o atirasse às feras só para salvar a pele de um dos seus. Limpou a garganta e assegurou-se
de que o tom que ia empregar não trairia as emoções que o percorriam, o medo e o azedume.
- Não era suposto o inimigo alcançar aquele vau. O plano - o plano do general, tal como o compreendi - implicava que as outras três legiões e as coortes auxiliares
encontrassem o inimigo rapidamente e o forçassem a tentar a travessia numa das passagens principais, nas quais eu esperava com o grosso das minhas forças. O terceiro
vau estava praticamente fora de questão. A força que o ocupava não deveria ter que se bater com mais do que os fugitivos da batalha que devia ter lugar em frente
a uma das
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outras travessias, Nunca foi esperado ou planeado que eles tivessem que enfrentar o peso da coluna principal do exército de Carátaco.
- Sempre existiu essa possibilidade, por muito remota que fosse.
- Interrompeu Pláucio. - As ordens eram claras. Os teus homens deviam
manter o controlo do vau em todas as circunstâncias.
- Isso estava nas minhas ordens? - Duvidou Vespasiano.
- Estou certo de que assim rezarão. - Murmurou Narciso. -
Legado, pelo que compreendo, estás a insinuar que o general não se moveu com a velocidade necessária para fechar a armadilha?
- Estou a afirmá-lo.
Pláucio inclinou-se para a frente, furioso.
- Avançámos à velocidade que nos foi possível, raios te partam! Não se pode esperar que a nossa infantaria pesada seja mais rápida do que as tropas nativas. E aliás,
não é a velocidade das nossas tropas que está em causa. Tínhamo-los encurralados, e, se a Segunda Legião tivesse cumprido a sua parte como devia, a armadilha teria
funcionado perfeitamente. Vespasiano, devias ter-te assegurado de que o vau estava convenientemente controlado. Uma coorte não era suficiente. Qualquer tolo teria
percebido isso.
- Uma coorte era mais do que o suficiente, para fazer aquilo que lhe tinha sido realmente pedido. - Retorquiu Vespasiano.
Por instantes, os dois oficiais superiores encararam-se com fúria, os olhos refulgindo com os reflexos das chamas das lamparinas. Depois, o general recostou-se na
cadeira e dirigiu-se a Narciso.
- Quero este homem fora do meu exército. Não possui competência para comandar uma legião em campanha, e a sua insubordinação não pode ser tolerada. - Virou-se de
novo para o legado. - Vespasiano, exijo a tua resignação. E quero-te fora daqui, no primeiro navio que parta para a Gália.
- Acredito que sim. - Respondeu Vespasiano friamente. - Se não estiver por cá para me defender das acusações que me forem feitas, não é preciso ser nenhum génio
para adivinhar as consequências. Recuso-me a resignar ao meu comando, e porei essa decisão por escrito.
Antes que Pláucio pudesse responder, Narciso tossiu.
- Meus senhores! Já chega desta discussão sem sentido. Estou certo de que as culpas não estão todas nem de um lado nem do outro.
Ambos os oficiais se viraram furiosos para ele, prontos a protestar, mas Narciso ergueu a mão e continuou a falar antes que o interrompessem.
- Uma vez que ambos mantêm firmemente que a culpa é do outro, temo que os vossos testemunhos no Senado nada mais conseguiriam
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do que assegurar a destruição de ambos. Portanto, parece-me que a melhor solução é instruir imediatamente um inquérito e designar um culpado mais abaixo na cadeia
de comando. Se chegarem rapidamente a uma decisão e estiverem de acordo quanto ao castigo draconiano que se impõe, estou cérto de que poderemos aplacar todos os
que, em Roma, não deixarão de exigir responsabilidades por este desastre.
Pláucio reagiu a este último termo, mas depressa aceitou a salvação que lhe era oferecida, a ele e ao legado.
- Muito bem. - Aquiesceu. - Um inquérito, assim será. Eu e o legado seremos os magistrados e presidiremos aos trabalhos. Concordas com isto, pelo menos, Vespasiano?
- Sim, senhor.
- Darei as ordens necessárias assim que o Sol nascer. Serão recolhidos os depoimentos de todos os oficiais envolvidos. Se nos despacharmos, a questão estará resolvida
em poucos dias. Creio que isso será suficiente para satisfazer o Imperador...?
- Sem dúvida. - Narciso sorriu. - Acreditem. E agora, acho que resolvemos este assunto de forma muito satisfatória. Nenhum de vós tem que perder o sono por causa
disto. A culpa recairá sobre outros ombros, ou talvez sobre outras cabeças. - Deu uma risada apreciativa à própria piada.
- Façam o vosso inquérito. Encontrem culpados credíveis, e assim que o julgamento estiver concluído, poderei regressar a Roma e apresentar o meu relatório. Senhores,
estamos todos de acordo?
Pláucio anuiu; depois, com o estômago repleto de nós formados pelo desprezo frio e amargo que sentia pelos outros dois, mas ainda mais por si mesmo, Vespasiano baixou
a cabeça, contemplou o jarro de prata na bandeja, e, lentamente, deu também o seu acordo.
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XIV
Os homens da Segunda Legião tinham passado a noite ao relento, cada um enroscado junto ao seu equipamento. O sono era profundo, devido ao cansaço provocado pela
marcha acelerada do dia anterior, que tinha sido seguida pela construção do campo fortificado para a noite. Dado que as ferramentas de construção tinham ficado no
comboio das bagagens, os homens tinham escavado trincheiras com os gládios, e construído o
baluarte à mão. Na face exterior, tinham sido espetadas estacas rudimentares, mal afiadas, e havia patrulhas a percorrerem regularmente as margens do campo.
Os mais exaustos de todos eram os legionários da Terceira Coorte, que, para lá dos trabalhos que tinham partilhado com as outras coortes, tinham tido ainda que travar
uma batalha. Porém, muitos tinham dificuldade em conciliar o sono, e remexiam-se inquietos sobre a relva amassada. Alguns não conseguiam esquecer as terríveis imagens
e sensações que se tinham gravado nas suas mentes; outros lamentavam a perda de amigos chegados, abatidos à frente dos seus olhos. Mas, no caso de Cato, era a ansiedade
sobre o que se ia passar nos dias que se avizinhavam que impedia o sono de triunfar, e não o dia agitado que tinha ficado para trás.
O facto de um número significativo de inimigos ter conseguido escapar praticamente garantia que aquela arrasadora luta ia continuar. Mesmo que Carátaco não estivesse
entre eles, algum dos seus tenentes motivaria certamente os sobreviventes para que continuassem a resistir a Roma, lembrando-lhes a necessidade de vingar os companheiros
mortos. O que garantia mais derramamento de sangue no futuro próximo; Cato perguntava-se até quando conseguiria o solo daquela terra absorvê-lo, antes de se transformar
num medonho pântano escarlate. A imagem era quase ridícula, e ele sorriu sem vontade, antes de se virar mais uma vez, puxar
a capa mais para os ombros e assentar a cabeça no apoio improvisado com as grevas.
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Ainda assim, pior do que o inimigo ter escapado, era a coorte não ter cumprido aquele que era o seu dever. O centurião Máximo tinha feito asneira da grossa. Nunca
devia ter-se afastado da missão para perseguir o pequeno bando que tinha saqueado o forte e dizimado a guarnição. Devia ter feito toda a coorte seguir para o vau.
Máximo sabia muito bem que teria que responder por aquele tremendo erro de julgamento, e antes de a coorte se ter instalado para passar a noite, tinha convocado
os oficiais para uma reunião discreta, fora do alcance dos ouvidos dos homens.
- Hão-de ser feitas perguntas sobre o que se passou hoje. - Começara, perscrutando intensamente as faces dos seus centuriões, iluminadas pelo luar. - Conto convosco
para nos mantermos unidos nesta questão. Eu falarei em nome de todos, e aceitarei a culpa que o legado julgar por bem atribuir à Terceira Coorte.
Falara com uma expressão de sinceridade, e Cato sentira ao mesmo tempo uma onda de alívio, porque a culpa não o atingiria, e outra de vergonha e simpatia pelo comandante
da coorte, que só tinha a esperar um castigo severo. A carreira de Máximo estava acabada. Teria sorte se fosse apenas rebaixado a legionário. Só por si, essa já
seria uma tremenda punição. O salário, a pensão e os privilégios que a sua patente lhe assegurava desapareceriam; e os homens que tinham sofrido às suas mãos não
se inibiriam de lhe devolver o sofrimento, assim que o vissem como um igual.
- Lamento ter-vos conduzido a isto. - Tinha Máximo prosseguido. - Vocês são excelentes homens, e são-no também os vossos legionários. Mereciam melhor.
Tinha-se seguido um silêncio confrangedor, até que Félix se adiantara e agarrara o braço do comandante da coorte.
- Senhor, foi uma honra servir ao seu lado.
- Obrigado, rapaz. Não tinha dúvidas de que podia contar com a tua lealdade. E com a de todos vós, claro?
Os centuriões tinham murmurado a sua concordância; todos, menos Macro, que se mantivera hirto e não pronunciara uma palavra. Se Máximo reparara, não o comentou;
trocou apertões de braço com os seus oficiais e desejou-lhes uma noite tranquila.
- Lembrem-se, eu falarei por todos...
? ? ?
As trombetas soaram ainda antes do amanhecer, e por todo o campo os homens começaram a despertar, de músculos doridos. Os que tinham sido feridos sofriam com as
dores e com o latejar nas áreas afectadas,
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por baixo das ligaduras. Cato, que só tinha conseguido adormecer poucas horas antes do alvorecer, não acordou ao mesmo tempo que os outros, e os seus homens deixaram-no
descansar, em parte por consideração pela sua capacidade de liderança, mas sobretudo porque, quanto mais tarde ele despertasse, mais tarde lhes daria as ordens que
os fariam entrar na cansativa rotina diária. E foi assim que Macro o foi encontrar, já o Sol subia no céu; soltou um assobio ao ver o amigo ainda enrolado na capa,
de boca aberta e braço esticado sobre os caracóis negros que lhe cobriam o crânio. Pôs a bota sob o corpo do jovem, e fê-lo rolar.
- Olá! Já são horas de acordar, dorminhoco! Mais um bocado e o Sol queima-te os olhos.
- Ohhh... - Resmungou Cato, piscando os olhos quando a luz os atingiu em cheio. O olhar vagueou pelo céu límpido, mas depois encontrou o rosto bem marcado de Macro,
e sentou-se com ar de culpa. - Merda!
- Já acordaste de vez? - Perguntou Macro sem alarde, enquanto perscrutava as redondezas.
Cato anuiu, espreguiçando-se ao mesmo tempo.
- O que se passa?
- Passa-se muita coisa. Anda por aí um rumor de que o general vai fazer um inquérito sobre a embrulhada de ontem.
- Um inquérito?
- Chhhhiu! Mais baixo. Também corre o boato de que, quem quer que seja considerado responsável, vai servir de exemplo.
Cato olhou para o centurião mais velho.
- E onde é que soube isso tudo?
- Disse-me um dos escrivães do legado. Que soube por um tipo do pessoal do general.
- Ah, então é com certeza verdade. - Gozou Cato.
Macro ignorou o sarcasmo.
- A mim parece-me bastante plausível. Tem que atribuir a culpa a alguém, e foi a nós que saiu a fava. Portanto, temos que ter muito cuidado.
- Já tivemos essa conversa ontem à noite. O Máximo garantiu que assumiria a responsabilidade.
- Pois, foi o que ele disse...
- Não acredita nele?
Macro encolheu os ombros.
- Não é bem isso: não confio nele.
- E há diferença?
- Por enquanto, há. Anda, levanta-te.
A legião vai-se deslocar outra vez? - Cato esperava bem que não. Os músculos ainda lhe doíam terrivelmente, e a perspectiva de mais
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um dia a marchar por aquela maldita ilha sob o ardente sol estival era quase insuportável.
- Não. O general enviou algumas coortes montadas em perseguição do inimigo. Nós vamos ficar por aqui a descansar e a esperar que o comboio das bagagens chegue.
- Óptimo. - Cato lançou a capa para trás das costas, endireitou-se e esticou o pescoço.
Macro acenou sobre o ombro.
- O escravo pessoal do Máximo está a tratar do pequeno-almoço. Felizmente lembrou-se de trazer provisões. Vem lá ter.
Os centuriões da Terceira Coorte estavam sentados ao redor de uma pequena fogueira, sobre a qual o escravo fritava grossas salsichas em azeite. Um frasco de óleo
perfumado e aquecido jazia junto ao lume, deixando escapar um aroma que fazia crescer água na boca. O escravo tinha chegado ao alvorecer, e tinha-se imediatamente
lançado ao trabalho, depois de ter caminhado toda a noite para se juntar ao seu senhor. O aroma da carne enchia o ar, enquanto as salsichas ao lume lançavam salpicos
e frigiam. Os legionários que se encontravam nas proximidades lançavam olhares invejosos, enquanto o cheiro lhes enchia as narinas; sabiam bem que ainda tinham várias
horas de espera até que o comboio dos abastecimentos os alcançasse e pudessem enfim comer qualquer coisa.
- Pelos colhões de Júpiter! - Grunhiu o centurião Túlio. - És capaz de te despachar com essas salsichas? Se isso ainda demora, sou capaz de começar a roer o couro
da merda das botas.
- Está quase pronto, meu senhor. - Replicou o escravo de forma apaziguadora, habituado como estava à impaciência dos centuriões.
Enquanto esperavam, Cato deixou que o olhar se dirigisse à outra margem do rio. A luz rósea da alvorada banhava os incontáveis cadáveres que nela se espalhavam.
Sobre eles esvoaçava uma nuvem de aves necrófagas, atraídas pelo aroma pungente da morte. Muitos já tinham pousado sobre os corpos e entretinham-se a arrancar pedaços
de carne. A visão revoltante não foi todavia suficiente para arruinar o apetite de Cato quando o escravo lhe entregou um prato repleto de pedaços fumegantes de salsicha
e de nacos de pão. Os centuriões atiraram-se à comida quente, e, daí a pouco, os estômagos reconfortados operaram maravilhas na disposição geral; ainda de bocas
cheias, depressa a batalha da véspera se tornou tema de comentários.
- Macro, como é que se passaram as coisas na ilha? - Quis saber Félix. - Quanto tempo é que conseguiste aguentá-los?
Macro pensou no assunto, tentando recordar os detalhes.
- Mais ou menos uma hora.
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- O quê combateste durante uma hora? - O maxilar do outro descaiu com o espanto. - Contra a porra do exército todo?
- Evidentemente que não, meu cretino! - Macro espetou um dedo na direcção do vau. - Eles só conseguiam atacar-nos em pequenos números. E mesmo isso, só depois de
se verem livres das pequenas surpresas que lhes tínhamos preparado. Duvido que tenhamos estado em acção mais do que uma fracção desse tempo. E já foi mais do que
o suficiente.
Máximo observava-o com toda a atenção.
- E porque é que recuaste então?
- Bolas, depois de eles terem conseguido abrir uma brecha na nossa barricada, que mais podíamos fazer? E vou-vos dizer mais uma coisa.
- Macro agitou o dedo, para dar ênfase às palavras. - Aqueles filhos da puta começaram a usar os nossos truques.
- O que é que queres dizer com isso? - Inquiriu Túlio.
- Só isto: quando lançaram a segunda vaga de ataque, fizeram-no em formação, mais precisamente em tartaruga.
- Tartaruga? - Túlio abanou a cabeça. - Não acredito.
- Mas é verdade! Pergunta a qualquer um dos meus homens. Foi por isso que tivemos que recuar. Não tínhamos hipóteses de os conseguir deter. Se tivéssemos ficado
lá, eles desfaziam-nos em pouco tempo.
- Tal como sucedeu connosco na margem. - Adiantou Máximo, pensativo. - Tivemos que ceder, ou seríamos destroçados. Não lhes levaria muito tempo a aniquilar-nos.
Os outros centuriões trocaram olhares preocupados e, por momentos, limitaram-se a prosseguir a refeição, até que António quebrou o silêncio:
- Tu! Escravo!
- Meu senhor?
- Tens por aí mais salsichas?
- Sim, meu senhor. Ainda aqui está uma. - Olhou para Máximo, à espera de instruções. - Senhor Máximo... meu senhor?
- Que é? - Respondeu Máximo, irritado. - Que se passa?
- Meu senhor, a salsicha. - O escravo acenou na direcção de António, que lhe apresentava o prato.
Máximo sorriu e concordou:
- Deixa-o lá comer a salsicha. É um jovem, precisa de comer para
crescer.
- Obrigado, senhor. - António parecia realmente um miúdo a quem tivessem dado um presente muito desejado, os olhos fixos no garfo que o escravo estendia na sua direcção.
Também ele esticou o braço com o prato de estanho, mas com tanta avidez que aquele bateu no garfo,
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fazendo a salsicha saltar e cair no meio do fogo.
- Olha que grande porra! - António olhava desolado para a salsicha que esturricava no coração da fogueira, enquanto todos à volta se riam.
- Pensa nisso como um sacrifício! - Máximo sorria ainda. - Uma oferenda a... A que deus vamos prestar honras?
- À Fortuna. - Propôs Macro, sem traço de hilaridade. - Vamos precisar de toda a sorte que pudermos. E é agora mesmo.
Acenou sobre o ombro de Maximo, e todos os centuriões se voltaram para ver um grupo de soldados que marchava por entre as linhas dos estremunhados legionários da
Terceira Coorte.
- Prebostes! - Félix cuspiu sobre o fogo. - Não se pode ter uma refeição decente sem aparecer alguém para a estragar.
Calaram-se, enquanto o esquadrão se aproximava, comandado por um optio da guarda pessoal de Vespasiano. Imobilizaram-se a curta distância do grupo reunido em torno
da fogueira. O optio avançou.
- Centurião Máximo, senhor.
- Sim.
- Tem que nos acompanhar. O general deseja interrogá-lo.
- Compreendo. - Máximo inclinou a cabeça por momentos, como que para recuperar a compostura, e depois anuiu. - Muito bem... Muito bem, vamos lá.
Colocou o prato no chão e pôs-se de pé, sacudindo as migalhas da túnica suja e manchada de sangue. Forçou um sorriso.
- Ver-nos-emos de novo daqui a pouco. Túlio?
- Senhor?
- Trata de pôr a coorte em condições. Quero toda a gente pronta para o serviço. Assim que regressar, farei uma inspecção.
- Sim, senhor.
O optio acenou na direcção do pequeno grupo de tendas que ocupava o centro do acampamento.
- Já estou a ir. - Máximo mostrou alguns traços de irritação perante as maneiras do optio.
Os centuriões observaram em silêncio enquanto o seu comandante se afastava, ladeado pelos prebostes. Máximo empertigara-se, e marchava
como se estivesse na parada.
- Desgraçado. - Disse Cato, tão baixo que só Macro o conseguiu
escutar. - É o fim da linha para ele, não é?
- Sim. - Sussurrou Macro. - Se houver justiça.
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XV

O optio e os prebostes trouxeram Máximo de volta pouco mais de uma hora depois. Túlio tinha executado as ordens que recebera, e os legionários estavam em formatura,
preparados para a inspecção do comandante. No curto período de tempo que tinham tido disponível, os homens tinham -se esforçado por se apresentar da melhor forma
possível. Quando Túlio se apercebeu da aproximação do seu superior, bradou a ordem de sentido, e os homens bateram os calcanhares e aprumaram-se, olhando fixamente
em frente. Os centuriões estavam postados à frente das suas centúrias, ladeados pelos optios e porta-estandartes respectivos. Quando Máximo e a escolta já estavam
mais próximos, Cato notou que o centurião parecia abalado e pensativo, consequências evidentes do interrogatório a que tinha sido submetido. Respondeu com um aceno
descuidado à saudação formal de Túlio e depois, sem sequer olhar para os homens formados, ordenou-lhe calmamente que os dispensasse.
- Coorte! Destroçar!
Os homens desfizeram a formatura, e afastaram-se em grupos a caminho das tendas; Cato não pôde deixar de reparar nas suas expressões de descontentamento e nos resmungos
vagos que se escutavam, por terem sido acordados e obrigados a prepararem-se para uma inspecção. Era mesmo ao estilo do exército, como ele bem sabia. Períodos de
intensa actividade, muitas vezes sem outro motivo que não fosse manter os homens sempre preparados para responder rapidamente a quaisquer ordens que lhes fossem
dadas. Mas, naquele momento, eles estavam ainda famintos e esgotados, e o seu ressentimento era compreensível. Mesmo assim...
Cato apontou com a sua vara para um par de soldados, cujos protestos demasiado efusivos lhe tinham chegado aos ouvidos.
- Vocês, calados!
Os homens, veteranos de ar duro, obedeceram, mas não sem
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mostrarem ao centurião o desprezo que lhes enchia as almas, olhando-o de alto a baixo. Por um momento, uma raiva gélida e amarga preencheu-lhe a mente, e Cato sentiu-se
tentado a chamá-los e puni-los pela sua falta de respeito. Os legionários tinham que respeitar a patente em qualquer circunstância, mesmo que não apreciassem o homem
que a ocupava, e nenhuma infracção a esta regra devia ser tolerada. Mas, por essa altura, já o par se tinha misturado com o resto da centúria que se afastava, e
era demasiado tarde para que o jovem centurião agisse. Bateu com a vara na palma da própria mão, com força; a dor resultante da autopunição fê-lo piscar os olhos,
mas julgou-se merecedor, devido à sua eterna indecisão. Macro ter-lhes-ia entalado os tomates antes que eles soubessem o que os tinha atingido.
Virou-se, e percebeu que todos os outros centuriões se dirigiam para o local onde estava Máximo e, bem próxima e a aguardar algo, a escolta de prebostes. Cato seguiu-os,
enquanto o auto-desprezo era substituído por uma curiosidade ansiosa para saber das novidades. Os centuriões formaram um semicírculo à volta do comandante. Máximo
ainda envergava apenas a túnica, e saltava à vista o seu incómodo por se dirigir aos seus subalternos naquele estado, sobretudo quando eles se apresentavam completamente
equipados.
- O legado quis obter o meu depoimento. Agora, quer falar com cada um de vocês, individualmente. Aqui o optio vai-vos convocar por ordem de antiguidade. Nenhum de
vós deve discutir o seu depoimento com outros. Percebido?
- Sim, senhor. - Retorquiram os centuriões em coro. Túlio ergueu a mão.
- Sim?
- Senhor, e os homens?
- O que têm?
- Ainda serão necessários hoje?
- Não. Eles que tirem o equipamento. Passa-lhes a palavra: dia livre, podem descansar à vontade.
Túlio anuiu, com ar infeliz. Um dia livre era um privilégio raramente
concedido, em que os legionários tinham a possibilidade de fazer a manutenção do equipamento, ou cozinhar algum petisco, ou simplesmente descansar e conversar ou
jogar. Na mesma medida em que os homens apreciavam um dia do género, os centuriões detestavam-nos, com o argumento de que amolecia os homens, e que a sua repetição
levava ao desleixo. Era, ao mesmo tempo, evidentemente, uma forma de o oficial responsável pela atribuição do dia livre ganhar alguma popularidade junto dos homens.
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- Dia de descanso. - Túlio anuiu. - Sim, senhor. Devo informá-los
imediatamente?
- Não, tu tens que acompanhar o optio. Eu mesmo lhes direi.
- Sim, senhor. - O olhar de Túlio dirigiu-se aos rostos impassíveis dos prebostes. Máximo reparou na sua expressão de preocupação e resolveu dirigir algumas palavras
aos seus centuriões, para os sossegar:
- Está tudo bem. Fiz aquilo que vos tinha dito antes. Nenhum de vós tem algo com que se preocupar. Digam apenas a verdade.
- Centurião Túlio? - Chamou o optio, indicando com a mão os prebostes. - Por favor, senhor.
Túlio engoliu em seco, nervoso.
- Sim, claro.
Enquanto se dirigia à escolta, foi soltando os laços que lhe prendiam
o capacete. Depois seguiu, ladeado pelos prebostes, com o capacete debaixo do braço. Quando todos já se tinham afastado, António aproximou-se do comandante.
- Senhor, o que se passou?
Máximo fitou-o, uma expressão neutra no rosto, sem deixar transparecer qualquer emoção.
- O que aconteceu comigo... Não é da tua conta. Percebido?
António baixou o olhar.
- Desculpe, senhor. É que... É só porque estou preocupado. Nunca passei por uma situação destas.
Os lábios de Máximo relaxaram, formando um sorriso.
- Eu também não. Limita-te a responder às perguntas do legado sem invenções, e lembra-te que és um centurião na melhor legião da porra do Império. E as únicas preocupações
na vida de um centurião deviam ser os bárbaros, as pragas, faltas de vinho e mulheres loucas de ciúme e com acesso a facas. As perguntas - abanou a cabeça - essas,
nunca te podem fazer mal.
António sorriu por sua vez. Os outros imitaram-no, até Cato, que depois da infância passada no palácio imperial, sabia muito bem que uma resposta errada a determinadas
perguntas podia tão facilmente custar a vida a um homem como um encontro com o maior dos guerreiros bárbaros.
? ? ?
Toda a manhã e pela tarde fora, os centuriões esperaram junto às cinzas fumegantes da fogueira que o escravo tinha feito para lhes preparar a comida. Ao regressar
do interrogatório, Macro tinha tirado do saco a pedra de amolar, e tinha-se dedicado a afiar o seu gládio. Não dirigiu palavra
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a ninguém, nem sequer a Cato, e recusou-se mesmo a encarar os outros centuriões, entretendo-se a passar a pedra ao longo do gume da brilhante lâmina.
Enquanto António foi depor, Túlio e Félix passaram o tempo a jogar dados, e a sorte parecia estar a favorecer o mais novo dos centuriões, de uma forma que as leis
da probabilidade dificilmente poderiam explicar. O facto de os dados pertencerem ao outro começou a alimentar a suspeita que tinha nascido na mente do normalmente
pouco desconfiado Túlio. Cato observou-os por uns tempos, divertido. Nunca apostava em jogos de azar, e achava que os homens que o faziam eram pouco inteligentes.
Quando vivera em Roma, as pequenas quantias que apostara, ainda rapaz, tinham sido sempre nas corridas do Circo Máximo, e mesmo assim só após um exaustivo estudo
das mesmas.
Um pouco à parte, Máximo sentava-se de costas para os homens e os oficiais, contemplando o vau e os campos cobertos de cadáveres que o ladeavam. Cato sentia alguma
pena dele, apesar da forma ríspida como o comandante da coorte o tinha tratado no curto período de serviço comum. Um soldado com a carreira arruinada, especialmente
alguém tão respeitado como um centurião-chefe, era de facto uma visão lamentável; se o inquérito lhe arruinasse a reputação, a idade não lhe permitiria seguir outro
caminho e realizar ainda algo de proveitoso. Daí a poucos anos passaria a receber a miserável pensão atribuída aos legionários reformados e viveria os seus últimos
dias numa qualquer colónia de veteranos, a beber e a relembrar glórias passadas. A reforma de um centurião, ao invés, oferecia a possibilidade de uma continuação
do serviço na carreira da magistratura. Mas naquele momento, essa possibilidade parecia distante do futuro de Máximo.
Cato afastou o olhar do comandante e contemplou antes as convidativas águas do rio. António ainda estava a ser questionado, e a seguir seria a vez de Félix. Havia
portanto tempo para dar um mergulho. Despiu-se até ficar apenas com a túnica, e dirigiu-se a Macro.
- Vou nadar um bocado. Quer vir?
Macro parou o que estava a fazer e olhou para cima com uma expressão divertida.
- Tu, tu vais nadar?
- Bem, estou a melhorar.
- A melhorar? Queres tu dizer que já não és completamente incapaz de chapinhar?
Cato franziu o sobrolho.
- Vem, ou não?
Macro embainhou cuidadosamente a espada.
- Acho que é melhor ir. Para garantir que não perdes o pé.
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- Muito engraçado; mais um esforço e afogo me a rir.
Enquanto se afastavam para deixarem o campo pela entrada mais
próxima do rio, Máximo gritou-lhes:
- Vejam se não se demoram.
Cato confirmou essa intenção com um aceno; ao virar-se, deparou
com a expressão cansada de Macro.
- Às Vezes gostava de ainda estar em Caleba com aqueles rapazes
que treinámos. Isso é que era a simples e boa vida do exército a sério, sem esta merda de superiores a espreitarem-nos por cima do ombro a toda a hora.
- É boa, parece-me que me lembro de o ouvir dizer que mal podia esperar por regressar à legião...
- Isso era antes desta maldita confusão. Era de caras, com o azar que temos, tínhamos que levar com o Máximo em cima. Por mim não o punha a comandar a cozinha, quanto
mais uma coorte.
- A mim parece-me competente. Um bocado ríspido, de mais, por vezes. Mas parece saber o que está a fazer.
- Que sabes tu disso? - Macro abanou a cabeça. - Há uns meses que andas nisto e ainda não distingues o que está certo do que não presta. E olha para os outros. O
Túlio anda só a ver se se aguenta. Nem sei como é que conseguiu manter-se a par de vocês ontem, deve ser mais rijo do que parece. - Concedeu Macro. - Mas o Félix
e o António são demasiado novos, demasiado inexperientes, não deviam ter aquela patente.
- Bem, eles são cinco, um, e dez anos, o outro, mais velhos do que eu. - Assinalou Cato.
- É um facto. E às vezes nota-se. Mas tu, ao menos, tens cabeça e avalias bem as coisas no terreno. Se não tivéssemos tido tantas baixas neste tempo que passou,
haveria melhores homens para promover do que aqueles trastes.
Macro interrompeu o discurso ao passarem pelas sentinelas no portão, em sentido sob o Sol ardente. A passagem dos dois centuriões foi permitida sem problemas, e
eles começaram a descer a suave encosta até ao rio. A relva, naquele fim de Verão, estava comprida e seca, e agitava-se contra as suas pernas enquanto eles procuravam
um local apetecível algumas centenas de passos a montante do vau, longe dos corpos que ainda se amontoavam nessa zona do rio. Infelizmente, uma brisa irregular soprava
contra eles e, de vez em quando, ao mesmo tempo que as folhas dos salgueiros próximos abanavam, chegava-lhes o revoltante cheiro dos cadáveres.
Os dois centuriões encontraram um local onde a profundidade do rio aumentava pouco a pouco a partir da margem; despiram as túnicas, e tiraram as botas. Macro atirou-se
para a água, num mergulho que lançou
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salpicos pelo ar e provocou ondas na superfície do rio. Voltou à tona quase de imediato, sacudindo a água do cabelo curto.
- Gaita, está fria! - Virou-se e deu algumas braçadas poderosas, afastando-se da margem. Cato esperou que ele estivesse mais longe e, então, afançou prudentemente
alguns passos para o interior do rio. A temperatura da água contrastava fortemente com o calor de Verão que se fazia sentir no ar e que fazia as pessoas sentirem-se
moles. Cato dirigiu-se na direcção de Macro, caminhando nas pontas dos pés e mantendo os braços no ar, e fazendo caretas enquanto a corrente lhe molhava o ventre.
Mais longe da margem, Macro continuava a nadar, rindo.
- Pareces uma velhinha! Vá, entra na água de vez!
Cato cerrou os dentes e dobrou os joelhos, deixando-se cair na água. Um momento de choque, um arrepio quando a água gelada lhe rodeou o peito, mas depois o jovem
começou a avançar na direcção do amigo. As braçadas eram desajeitadas e ele esforçou-se por manter a boca acima da água enquanto se aproximava de Macro.
- Ainda bem que resolvi vir contigo! - Riu Macro, enquanto Cato parava e chapinhava nas proximidades. - Precisas de uns bons anos de prática.
- Bom, poucas oportunidades tenho para evoluir.
- Vá lá, eu mostro-te como deves fazer.
Macro esforçou-se por mostrar ao amigo os rudimentos de um estilo decente, e Cato tentou aprender, embora o receio que mostrava perante a possibilidade de a água
lhe cobrir a cabeça por um instante que fosse prejudicasse os seus esforços. Por fim, Macro desistiu, e sentaram-se na zona rasa, deixando que a água lhes corresse
sobre as pernas enquanto o Sol lhes aquecia as costas.
- Era capaz de me habituar a isto. - Murmurou Cato.
- Se fosse a ti, esquecia...
Cato virou-se para o amigo.
- Porquê? Alguém disse alguma coisa que eu deva saber?
- Não. É só porque o legado parece estar cheio de pressa. Acho
que ele quer despachar esta história do inquérito o mais depressa possível, para se poder dedicar à perseguição ao Carátaco. O homem tem uma reputação a restabelecer.
- Essa agora... Não foi por culpa dele que a coorte não ocupou a posição devida a tempo de impedir a travessia do Carátaco.
- De facto. Mas a coorte faz parte da legião dele. E alguma da lama vai salpicá-lo. Dessa podes ter a certeza. É uma ocasião demasiado boa para os rivais não aproveitarem.
- Rivais?
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- Cato caramba! Não sejas tão bronco. O Vespasiano chegou a pretor. mas não lhe foi nada fácil conseguir o posto. Disseram-me que, da primeira vez que tentou chegar
a edil, foi recusado. Cada degrau que se sobe significa que há mais senadores a lutar por menos lugares. E essa cambada era capaz de tirar a vista aos próprios filhos
se isso lhes desse mais hipóteses de ascensão na escala. Se não houver alguém entre o pessoal do estado-maior do general a tentar atirar as culpas disto ao legado,
será um milagre. E isso quer dizer, - Macro lançou um olhar triste ao amigo, - quer dizer que o Vespasiano vai procurar uma maneira qualquer de atirar com as culpas
para cima de outros.
- A nossa coorte?
- Quem mais?
- Pobre Máximo.
- Máximo? - Macro riu sem vontade. - O que é que te faz pensar que é ele quem vai ficar com a culpa?
Cato ficou surpreendido.
- Foi ele quem o disse. Que aceitava a responsabilidade.
- E tu acreditaste?
- Sim. - Disse Cato, muito sério. - Se ele não tivesse decidido perseguir aquele grupo que atacou o forte, nós...
- Não, idiota. Acreditas que ele assuma a responsabilidade?
Cato pesou a situação durante alguns instantes.
- Foi o que ele disse. E pareceu estar a ser honesto quanto a isso.
- E o que é que te faz pensar que ele não vai actuar na mesma linha que o legado? O Máximo também tem muito em jogo, mesmo que não Esteja a pensar num lugar no Senado.
É um centurião-chefe, certo?
Cato anuiu.
- É o mesmo jogo do Vespasiano. O próximo degrau para o Máximo
é um lugar na Primeira Coorte da legião. Há cinco vagas, e nove candidatos. Não é preciso ser um génio para perceber que vai haver alguma competição entre os comandantes
das outras coortes. Se o Máximo for afastado da corrida, nenhum deles vai verter lágrimas. Portanto, ele vai fazer tudo o que puder para garantir que a culpa vai
cair em cima doutro desgraçado qualquer. E quem é que achas que vai ocupar esse lugar?
- Você?
- Em cheio. - Replicou Macro, sombriamente. - O problema é que a cadeia se interrompe em mim. Não posso atirar a culpa para cima de mais ninguém. A não ser, claro,
para o cabrão do Carátaco, que não tinha nada que aparecer por aquelas bandas.
- Podia tentar...
Cala-te, Cato. Porta-te bem. - Macro saiu do rio, e foi pegar na
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túnica que ficara esticada sobre a erva. - Vamos voltar para o campo. Daqui a pouco deve ser a tua vez de ir depor.
- Pois. - Concordou Cato, seguindo o centurião mais velho para fora de água. - É melhor começar a pensar no que vou dizer.
- Não tentes inventar nenhuma história por minha causa, está bem?
Limita-te a relatar o que se passou.
Cato encolheu os ombros.
- Como queira.
131
XVI
- À vontade. - Ordenou Vespasiano, e Cato afastou os pés, alinhando-os com os ombros, e juntou as mãos atrás das costas. Encontrava-se nos aposentos privados do
legado, no centro do pequeno grupo de tendas que constituía o quartel-general de campanha da Segunda Legião. Os painéis laterais tinham sido levantados, para facilitar
a passagem da ligeira brisa que se levantara, e as pontas dos cabelos ralos de Vespasiano agitavam-se ocasionalmente enquanto ele se reclinava na sua cadeira. Num
banco ao lado sentava-se um escrivão, com uma pilha de finas tábuas de cera sobre os joelhos.
- Para que não te fiquem dúvidas, - começou bruscamente o legado, - o general está a proceder a um inquérito sobre os acontecimentos de ontem. Considera que as suas
ordens não foram obedecidas e que, por consequência desse facto, uma importante parte das forças do inimigo conseguiu escapar do campo de batalha, compreendendo
vários milhares de guerreiros e, tanto quanto sabemos, o próprio Carátaco. Se o inimigo tivesse sido contido no vau, todo o exército se teria visto obrigado à rendição,
e teríamos evitado a chacina que ocorreu quando eles tentaram escapar. Como resultado de tudo isto, a campanha contra Carátaco terá que ser desnecessariamente prolongada,
e o Império viu-se privado de prisioneiros que valeriam alguns milhões de sestércios. Centurião Gaio Licínio Cato, estás consciente da gravidade da situação?
Fez uma pausa, e a julgar pela forma quase monocórdica com que tinha pronunciado o curto discurso, Cato compreendeu que o legado devia ter empregue exactamente as
mesmas palavras com os outros cinco centuriões que interrogara. Cato compreendia perfeitamente a situação, mas a formalidade com que o legado se lhe dirigira acentuava
o clima de ameaça. Tossiu para limpar a garganta.
- Sim, senhor. Compreendo a situação.
- Óptimo. Agora, centurião, quero que me relates todos os
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movimentos e acções da Terceira Coorte no dia de ontem, na medida em que as recordes com clareza. Tenta não falar demasiado depressa, para que o escrivão te possa
acompanhar. É fundamental que os registos sejam tão completos e correctos quanto possível.
- Sim, senhor.
Cato concentrou-se e iniciou um relato minucioso da marcha da coorte até ao forte da unidade auxiliar, daquilo que lá tinham encontrado, das ordens para que a centúria
de Macro recolhesse as ferramentas necessárias, seguisse para o vau e começasse a preparar as defesas enquanto aguardava a chegada do resto da coorte, depois de
esta perseguir e destruir o grupo de assaltantes do forte. Não se esquivou a mencionar a ordem dada por Máximo para cegar os prisioneiros. Interrompeu a narrativa
para pôr uma questão.
- Senhor, alguém foi tratar dos prisioneiros?
- Continua, por favor.
Cato prosseguiu, lembrando como a coorte se tinha então dirigido velozmente para o vau, em corrida, assim que se tinha apercebido de que o inimigo já estava a atacar
a centúria de Macro; como tinham visto os homens deste a recuar, e como tinham idealizado rapidamente um plano para tentar aguentar a margem do rio, antes de serem
também eles forçados a recuar e a lutar ferozmente para se juntarem ao resto da Segunda Legião.
Quando terminou, Vespasiano fez um breve aceno de cabeça, e pegou nas tábuas que o escrivão preenchera, verificando o depoimento que acabara de escutar. Fez algumas
pausas para verificar outras tábuas, sem dúvida os registos das declarações dos outros centuriões. Por fim, o legado pegou ele mesmo numa tábua limpa e num estilete
e tomou algumas notas,
antes de voltar a olhar para Cato.
- Apenas mais algumas perguntas, centurião, e depois poderás
sair.
- Sim, senhor.
- No forte, quando o centurião Máximo deu ordens para perseguir os atacantes, alguém, tu ou um dos outros centuriões, fez notar que isso era uma violação das ordens
recebidas pela coorte?
- Eu não, senhor. Não me cabia pôr em causa as ordens do comandante da coorte. E os outros pensaram da mesma forma, senhor. Todos, excepto Macro. Ele tentou lembrar
que as nossas ordens exigiam que estivéssemos no vau a uma determinada hora, e que até já estávamos atrasados.
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Vespasiano ergueu o sobrolho.
- Mas vocês deixaram o campo da legião com tempo de sobra para cumprir o horário. Porquê esse atraso?
- Senhor, os homens pareciam marchar mais devagar do que eu, pessoalmente, gostaria.
- Mais alguém notou isso?
- Sim, talvez alguém tenha comentado a situação. Não me recordo com precisão.
- E Máximo, reparou nalguma coisa?
- Não sei, senhor.
- Muito bem. - O legado rabiscou uma nota e fez deslizar o dedo sobre a tábua, até à questão seguinte. - O centurião Máximo ofereceu alguma explicação para as ordens
de perseguir os atacantes?
- Não tinha de o fazer, senhor. É ele o comandante da coorte.
- Muito bem. Na tua opinião, porque é que o comandante da coorte ignorou as reticências do centurião Macro e resolveu perseguir os atacantes do forte?
Cato apercebeu-se de que pisava terreno perigoso, e que tinha que considerar cuidadosamente as respostas a dar ao legado.
- Suponho que ficou perturbado pelo massacre da guarnição.
- Com certeza que já tinha visto homens mortos antes?
- Sim, mas um, o comandante do forte, era amigo dele; um amigo próximo, ao que parece.
- Estás a afirmar então que ele desobedeceu às ordens por motivos emocionais?
Cato calou-se. Se respondesse que sim, a sua afirmação poderia levar à condenação de Máximo.
- Não sei, senhor. É possível que o centurião Máximo tenha considerado que os atacantes poderiam constituir uma ameaça para a coorte, se avançassem contra nós quando
estivéssemos a preparar a defesa do vau. Pode ter simplesmente decidido eliminar esse perigo.
- Pode ser que sim. - Repetiu Vespasiano. - Mas, sobre isso, nada se pode saber, uma vez que ele nunca terá mencionado essa ameaça possível.
- Não, senhor.
Vespasiano fungou.
- Daqui em diante, limita-te aos factos, por favor, centurião.
- Desculpe, senhor.
- Que mais... Quando se aproximaram do vau e viram que o inimigo se preparava para tomar a ilha no meio do rio, dirias que a centúria de Macro opôs suficiente resistência?
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- Suficiente, senhor?
- Muito bem, vou refazer a pergunta. Por quanto tempo é que eles tentaram ainda defender a posição na ilha, depois de se aperceberem de que o resto da coorte se
aproximava?
Cato apercebeu-se imediatamente das implicações da pergunta, e, pela primeira vez temeu pelo amigo.
- Senhor, é-me difícil responder. Eu estava na retaguarda da coluna.
Vespasiano suspirou e bateu com o estilete contra a tábua.
- Quando avistaste a travessia, os homens de Macro ainda a defendiam, ou não?
- Não, senhor. Alguns dos homens recuavam, enquanto Macro e a retaguarda da centúria os cobriam. Ele teve que lutar rijamente para se juntar ao resto da coorte.
- E do local em que te encontravas, na margem, conseguiste ver esse combate?
- Nem por isso, senhor.
- Nem por isso?
- Havia árvores a impedir-me a visão completa, senhor.
- Não tiveste portanto possibilidade de avaliar se Macro foi forçado a recuar, ou se pura e simplesmente abandonou a posição?
Cato não respondeu de pronto. Não podia. Mesmo que negasse as implicações na pergunta do legado, não conseguiria exonerar de responsabilidades o amigo.
- Senhor, conhece o centurião Macro. Sabe bem das suas qualidades. Ele nunca recuaria perante o inimigo antes do último momento, e mesmo nessa altura...
- Centurião Cato, isso é irrelevante. - Interrompeu o legado. - Ainda estou à espera de uma resposta à minha questão.
Cato olhou para o legado com um pedido de ajuda mudo, mas acabou por ter de responder:
- Não... Não consegui ver o que se passou na ilha.
Vespasiano voltou a tomar notas, depois levantou o olhar e fixou-o
em Cato, de forma interrogatória. Cá vem, pensou o centurião. Guardou a pergunta mais difícil para o fim. Concentrou-se.
- Só há mais um ponto que queria esclarecer, e depois liberto-te. Quando a Terceira Coorte chegou ao rio, foi feita uma tentativa para conter o inimigo, se bem me
parece.
- Sim, senhor.
- Na tua opinião, essa tentativa foi executada com eficiência?
As imagens do combate desesperado faiscaram-lhe na memória,
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até que Cato se Forçou a reflectir de forma fria e objectiva no que tinha sido
o comportamento da coorte.
- Senhor, os números do inimigo eram muito superiores, fomos
forçados a ceder.
- Forçados?
- Sim, senhor. Depois de nos terem expulso da margem, havia realmente a possibilidade de nos rodearem. Tivemos que retirar, ou seríamos completamente destroçados.
- Já te ocorreu que, se a Terceira Coorte tivesse enfrentado o inimigo com maior resolução e tivesse mantido a sua posição, a batalha teria terminado com uma completa
e absoluta vitória para as nossas cores?
- Claro que sim, senhor. Mas, com o devido respeito, éramos nós que lá estávamos...
O escrivão inspirou nervosamente e arriscou um olhar ao legado. Vespasiano parecia furibundo por o menos graduado dos oficiais da sua legião ter tido a ousadia de
se lhe dirigir daquela forma. Durante algum tempo, manteve o olhar fixo em Cato, e depois estalou os dedos para chamar a atenção do escrivão.
- Elimina este último comentário dos registos.
Enquanto o escrivão virava o estilete e usava o lado rombo para apagar a frase ofensiva, Vespasiano dirigiu-se calmamente ao centurião.
- Tendo em conta os serviços que prestaste anteriormente, vou esquecer esse comentário. Mas não deixarei passar mais nenhum do género. Quero que tu e os outros se
mantenham no interior do campo. Acabaram-se os banhos. Podem ser chamados a qualquer momento. Podes sair!
- Sim, senhor. - Cato colocou-se em sentido, fez a saudação protocolar, girou sobre os calcanhares e saiu da tenda. Dirigiu-se lentamente para a zona ocupada pela
Terceira Coorte. O comboio das bagagens tinha chegado durante a tarde, e os legionários tinham erguido as tendas a seguir a uma rápida refeição. Em vez das extensas
linhas de mochilas amontoadas, viam-se agora centenas de tendas de pele arrumadas em fileiras ordenadas de ambos os lados da Via Pretoriana; os homens tinham arrumado
o equipamento no interior, e agora dormitavam à sombra, ou sentavam-se ao sol a conversar calmamente em pequenos grupos.
De regresso à sua unidade, Cato procurou a sua tenda e reparou que uma cama de campanha lhe tinha sido preparada. Deixou-se cair sobre ela e começou a desapertar
as fivelas da armadura. Uma sombra bloqueou parcialmente a luz que entrava pelas abas abertas; olhou para cima, e viu que era Macro.
- Vi-te a regressar. Como é que correu?
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- Mal. Parecia que tudo o que eu dizia, fosse o que fosse, funcionava ao contrário.
- Sei como é. - Macro sorriu com amargura. - Mas tu, geralmente, não tens problemas com as palavras.
- Pois não. Mas nada que eu dissesse parecia fazer qualquer diferença. Acho que o legado já decidiu aquilo que se passou. - Cato parou de brincar com as fivelas,
e o seu olhar perdeu-se no solo. - Parece-me que estamos metidos em sarilhos... e dos grossos.
137
XVII
Pouco antes do anoitecer, Vespasiano atravessou o Tamisa, para ir apresentar o seu relatório ao general Pláucio, no campo principal. Nas sacolas que a sua montada
transportava, logo atrás da sela, levava os resultados do inquérito que conduzira. As unidades auxiliares tinham estado todo o dia ocupadas a abrir grandes valas
a curta distância do vau. Os corpos dos bretões caídos na véspera ainda estavam a ser levados para as valas, e a erva esmagada nos locais em que os corpos tinham
sido empilhados estava escura devido ao sangue seco. As narinas frementes do cavalo de Vespasiano mostravam o efeito que o odor que persistia no ar tinha sobre o
animal, e o legado impeliu-o para a frente, ansioso por alcançar a crista e deixar para trás aquela cena perturbadora.
Chegado ao campo, o legado desmontou junto ao pavilhão do comando, e fez sinal a um dos guardas para que este levasse as sacolas. Um escrivão facultou-lhe a entrada
no complexo de tendas ocupadas pelo general, no preciso momento em que o último raio de Sol desaparecia no horizonte. No interior, o pessoal ocupava-se com as consequências
administrativas da batalha do dia anterior. Havia relatórios a compilar, para que o que se tinha passado ficasse devidamente registado para a história oficial: os
efectivos das unidades; inventários de armas e abastecimentos; registos do número de inimigos abatidos; preparações das ordens para a fase seguinte da campanha.
Era quase Setembro, reflectiu Vespasiano, e Pláucio tinha tido esperanças de, por essa altura, já estar bem estabelecido nas margens do Sabrina, antes de chegar
o Outono com as suas chuvas e a lama que provocavam e que tão facilmente atolava as forças da legião.
Agora que o exército de Carátaco tinha sido praticamente varrido do mapa, o inimigo ver-se-ia limitado a operações de pequena envergadura - pelo menos até conseguir
reunir de novo um número razoável de elementos, armá-los e dar-lhes treino básico. A espinha dorsal do exército bretão tinha sido formada por homens da casta dos
guerreiros, mas estes
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tinham sido sistematicamente eliminados ao longo do último ano e meio e já poucos restavam. Entre eles, com toda a certeza, ainda estava o próprio Carátaco. E enquanto
ele vivesse, o espírito de resistência manter-se-ia aceso nos corações dos bretões, ameaçando a qualquer momento explodir nas faces dos invasores romanos.
Vespasiano franziu o sobrolho. Aquele maldito sujeito tinha mais sorte do que o normal. Pelo menos bastante mais do que a dos milhares de nativos que estavam naquele
momento a ser enterrados junto ao rio.
O general Pláucio examinava um vasto mapa aberto sobre a mesa quando Vespasiano foi admitido à sua presença. Ao seu redor estavam os outros legados e tribunos-chefes.
Vespasiano notou a presença do seu irmão mais velho, Sabino, e acenou-lhe discretamente. Sentado num dos lados da mesa, e parecendo imensamente aborrecido, estava
Narciso, entretido a descascar uma pêra com uma adaga ricamente ornada.
O general levantou a vista do mapa.
- Vespasiano, juntas-te a nós num momento interessante. Acabámos de receber os relatórios das unidades montadas.
Vespasiano fez um sinal ao legionário que transportava os sacos, e este depositou-os junto à parede da tenda, antes de sair. O legado juntou-se aos outros ao redor
da mesa.
O mapa era feito de peles criteriosamente escolhidas e curadas, e sobre ele o pessoal do estado-maior do general inscrevia constantemente novas informações sobre
a geografia local. A disposição das forças romanas era marcada por blocos de madeira pintada de vermelho, com a identificação das unidades gravada na face superior.
Sobre o mapa não havia sinal de marcadores respeitantes às forças inimigas.
O general tossiu ligeiramente, para limpar a garganta.
- Como sabemos, uma parte considerável das forças inimigas conseguiu escapar-nos ontem, talvez uns cinco mil homens. Ordenei à nossa cavalaria que os perseguisse
e flagelasse. Até agora, foi-me garantido que já foram abatidos mais dois mil inimigos, mas depois as nossas forças encontraram uma vasta extensão de áreas pantanosas...
aqui.
Pláucio inclinou-se para a frente e pôs o dedo numa região quinze a vinte quilómetros a sul e oeste do vau onde os romanos estavam instalados.
- Estes outeiros depressa se transformam num verdadeiro pântano. Foi nessa zona que os sobreviventes conseguiram fugir à nossa cavalaria. Mas só depois de contra-atacarem.
Começámos a sofrer baixas, pelo que a cavalaria retirou e começou a patrulhar as vias de acesso ao vaul. Assim, senhores, vemo-nos perante um dilema. Poderíamos
ignorar estes sobreviventes, pelo menos de momento. Afinal, já não são muitos. Com certeza
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que não são os suficientes para prejudicar significativamente o andamento das nossas operações. Por outro lado, seguramente que eles depressa vão recuperar algum
moral, e transformar-se numa chatice. E dessa forma apresentar um exemplo inspirador a todas as tribos que ainda pensam em desafiar Roma. Portanto, o nosso propósito
imediato tem que ser o de terminar o trabalho e destruir o que resta do exército de Carátaco, incluindo o próprio, assumindo que sobreviveu à batalha de ontem.
- E temos que aproveitar ao máximo o tempo que ele vai passar a lamber as feridas. Uma vez que já não há nenhuma força inimiga significativa que se nos oponha, podemos
finalmente dispersar as legiões e consolidar os ganhos. Se nos movermos com rapidez, podemos estabelecer uma rede de fortes e estradas no coração da Britânia. E
quando essa tarefa estiver concluída, nenhuma tribo poderá movimentar-se sem que nos apercebamos disso. A partir daí, os nossos esforços limitar-se-ão praticamente
ao policiamento da situação. Para tal...
Pláucio pegou num dos marcadores e colocou-o no leste, mesmo junto à fronteira com as terras que, segundo o mapa, pertenciam à tribo dos icenos, que no ano anterior
tinha declarado o seu apoio a Roma. Então, o general virou-se para um oficial idoso, Hosídio Geta, o legado da Nona Legião.
- ".a Nona marchará até esta posição, estabelecerá aqui uma base e fará sortidas para norte, usando as tropas auxiliares e construindo pequenas fortificações ao
longo das linhas de avanço. As tribos da área são, em princípio, nossas aliadas. Portanto, tudo deve correr bem, mas quero que isto seja uma demonstração de força,
percebido? Deve ficar bem claro que Roma está aqui, e vai ficar. Nada de acampamentos de campanha. Quero estruturas permanentes, e quero que elas sejam impressionantes.
- Sim, senhor. - Geta sorriu em antecipação. - Creia-me, senhor, dar-lhes-ei uma lição que não esquecerão.
- Não! - Pláucio espetou o dedo na direcção do oficial. - Isso é precisamente o que quero evitar. As nossas forças vão ficar muito dispersas, e não quero que nenhum
de vocês dê aos nativos qualquer desculpa para iniciarem uma revolta. Uma vez que as forças ocupem as posições que lhes estão destinadas, quero que se esforcem ao
máximo para cultivar boas relações com os chefes locais. Vão à caça com eles. Mandem os vossos engenheiros construir-lhes pontes, balneários, casas confortáveis,
seja o que for necessário para os manter do nosso lado e os convencer das vantagens de se juntarem ao Império. Quero que estes bárbaros habituados a chafurdar na
lama fiquem romanizados tão depressa quanto possível. Assim que esta fase estiver concluída, podemos pensar em alargar a província, para oeste e para norte.
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Fez um gesto na direcção dos territórios dos siluros e dos brigantes, e os oficiais não esconderam alguma surpresa perante tanta ambição. Pláucio apercebeu-se da
reacção e sorriu.
- É trabalho para o futuro, senhores. Tudo a seu tempo... A Vigésima prosseguirá o seu avanço pelo norte do Tamisa, depois atravessará o rio Sabrina e estabelecerá
aí a sua base. Acompanhá-la-ei, pelo que o legado Sulpício Piso terá que dobrar a guarda à sua bela colecção de vinhos.
Os oficiais riram educadamente, e então o general dirigiu-se directamente a Sabino.
- Conduzirás a mais numerosa das colunas. Quero que sigas para norte. Para aqui. - Pláucio empurrou o marcador da Décima Quarta Legião para uma zona entre a Vigésima
e a Nona. - Vais começar a construir uma estrada que permita a ligação entre as três legiões. Dessa forma, se alguma vez houver necessidade, poderemos rapidamente
concentrar as nossas forças. Senhores, o fim desta campanha está à vista. Roma pode finalmente considerar estas terras como parte do Império. Daqui a poucos anos,
a Britânia será mais uma província florescente, contribuindo com a sua parte para o tesouro imperial.
- Tenho a curiosa sensação de que as pessoas em Roma já consideram esta terra miserável como parte do Império...
As cabeças dos oficiais viraram-se em uníssono para Narciso, que tinha começado a descascar outra pêra enquanto falava, e não se dignou a devolver-lhes o olhar.
- Afinal de contas, o Imperador teve o seu triunfo público pelas ruas da capital no fim do ano passado. Vocês estão supostamente apenas a fazer operações de limpeza.
Se fosse a vocês, lembrar-me-ia disso. Insinuar de alguma forma que o Imperador exagerou quando proclamou a vitória sobre os bretões pode soar a traição a alguns
ouvidos. - Narciso baixou a adaga, mordeu um gomo de fruta suculento, e sorriu. - Apenas um conselho amigo sobre a forma como devem apresentar os vossos relatórios,
nada mais. Sem ofensa. Prossegue, por favor, meu caro general.
Pláucio anuiu, um pouco irritado, e voltou de novo a atenção de
todos para o mapa.
- Vespasiano, ficarás pelo sul. A tua primeira tarefa será completar
a pacificação do sudoeste. Quero esse assunto arrumado o mais depressa possível. Até ao fim desta época de campanha, se conseguires. Encontra e destrói o que resta
do exército de Carátaco. Se o encontrares, procura capturá-lo vivo. A sua vida deve ser poupada.
- Poupada, senhor? Julguei que o queríamos eliminado de vez.
- Será eliminado. O secretário imperial deseja que ele seja enviado para Roma, acorrentado, como um presente para o Imperador Cláudio,
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para o recordar da sua brilhante campanha para conquistar e submeter os
bretões.
- Não exageres, general. - Aconselhou Narciso.
Pláucio fingiu que não o tinha ouvido, e continuou a dar instruções a Vespasiano.
- De acordo com as informações que recebemos, o pântano cobre uma vasta área que se estende até ao Sabrina. É atravessado por uma infinidade de caminhos. Pelo meio
há umas regiões mais elevadas, em que se situam algumas povoações. Há áreas de água aberta e alguns ribeiros, mas nada de navegável com uma embarcação maior do que
uma jangada. Há um rumor de que Carátaco se instalou num acampamento fortificado algures pelos pântanos, mas até agora não conseguimos que nenhum dos prisioneiros
nos indicasse a localização desse campo. Compreendo que é um terreno difícil, Vespasiano, mas é fundamental que os sobreviventes do exército inimigo sejam descobertos
e eliminados. Se realmente existir uma fortificação, quero-a arrasada. Se conseguires capturar Carátaco vivo, fá-lo.
- Pláucio fez uma pausa e sorriu. - Mas, se tal não for possível, teremos que pensar noutro tipo de recordação britânica para lembrar ao Imperador a sua visita a
estas paragens.
- Seria aconselhável, de facto. - Ajuntou Narciso.
Vespasiano olhava para o mapa. A área ocupada pelos terrenos alagados era enorme. No mapa apenas eram assinalados os seus limites, mais um ou outro marco importante
no interior, cuja localização tinha sido obtida junto dos nativos ou de algum mercador. A única área representada com algum detalhe era um vale que se desenvolvia
paralelamente ao pântano, seguindo o curso de um rio que o alimentava. Alguns caminhos tinham sido assinalados, mas sem grande certeza, e quando o legado tentou
seguir uma das linhas com o dedo, só conseguiu esborratar o desenho, já que o Caminho estava traçado a giz, e não gravado. O general apercebeu-se da cena, e mostrou-se
irritado com a mancha.
- Assim que o mapa estiver actualizado, fornecer-te-ei uma cópia. Legado, o efectivo do inimigo já está fortemente reduzido. Não deve ser muito complicado descobrir
e aniquilar os poucos que faltam. E quando tiveres esmagado Carátaco e o resto do seu exército, deverá ser o fim da resistência à nossa presença aqui no sul da ilha.
Animado, o general levantou o olhar.
- E é tudo, meus senhores. Alguma questão?... Não? Óptimo. As ordens escritas ser-vos-ão entregues em breve, e as vossas preparações devem ser iniciadas também sem
perda de tempo, de forma a deixarem o acampamento depois de amanhã.
Sabino mostrou-se incomodado.
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- Senhor, teremos apenas um dia para os preparativos?
- Foi o que eu disse. Já perdemos demasiado tempo, este ano. Temos que recuperar, e, para isso, temos que andar depressa. E agora, a não ser que haja mais alguma
questão, podem regressar às vossas legiões e porem o vosso pessoal a trabalhar.
Os oficiais foram saindo, mas Vespasiano deixou-se ficar, e depois aproximou-se do comandante.
- Senhor, interroguei os oficiais da minha Terceira Coorte, e recolhi os seus depoimentos, que trouxe comigo. - Indicou a sacola que se encontrava junto à parede
da tenda.
- Muito bem. Vou chamar o meu escrivão-chefe. Ele tratará dos preparativos para o inquérito. Se nos despacharmos, podemos arrumar esta questão nos próximos dias.
- Não. - Interrompeu Narciso. - Arrumamo-la agora, já.
O general Pláucio voltou-se para o liberto, e Vespasiano apercebeu-se de que ele cerrara os maxilares, num esforço para conter a fúria.
- Narciso, peço desculpa. Tens alguma contribuição a oferecer quanto aos procedimentos disciplinares das minhas legiões?
- Queres dizer, é claro, as legiões do Imperador.
- É claro.
Narciso sorriu.
- Temo ter que te apressar nesta questão. Sabes bem que te deixo ao alvorecer, tenho que regressar a Roma.
- Sim... É lamentável.
- Pois. Bem, seja como for, não poderei deixar de mencionar a quem de direito a oportunidade perdida ontem para esmagar completamente o Carátaco.
- Ah, pois, naturalmente que não.
- O Imperador e o Senado gostarão de saber que os responsáveis por esse erro pagaram o preço justo pelo seu falhanço. Temo, portanto, que um inquérito regulamentar
esteja fora de questão. Temos que agir imediatamente.
- Imediatamente? - O general fez uma careta.
- Esta noite, sim. - Retorquiu Narciso com firmeza. - O inquérito tem que ser encerrado hoje, e os responsáveis devem ser sentenciados antes de eu partir.
- É absurdo! - Explodiu Pláucio. - É impossível.
- Não, de forma alguma. E dir-te-ei o que também é possível. É possível que Roma veja com maus olhos o teu falhanço na eliminação de Carátaco e do seu exército.
A menos que eu os persuada de que obtiveste de facto uma vitória decisiva. A fuga de Carátaco pode ser apresentada como
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um mero detalhe, desde que os responsáveis por terem permitido que ele lhes escapasse entre os dedos sejam identificados e punidos rapida e decisivamente. E a Terceira
Coorte de Vespasiano pode muito bem desempenhar esse papel.
- Ainda não fizemos o inquérito. - Lembrou o general. - Até pode ser que não haja nada a apontar-lhes.
- Será melhor que encontres algo a apontar-lhes. No fim de contas, és tu ou eles, meu caro general. - Narciso fez uma pausa para garantir que a ameaça era compreendida,
e depois continuou, empregando o seu habitual modo calmo, polido, e sem pressas. - Portanto, posso sugerir que dês as ordens necessárias?
O general olhou furioso para o outro, a mente preenchida com uma rápida sucessão de imagens de tortura e vingança. O descaramento do liberto era inacreditável, mas
a verdade é que a vasta distância social entre um senador e um ex-escravo, que tinha deixado de o ser há poucos anos, desaparecia perante o facto indesmentível de
que Narciso era o mais próximo e considerado dos conselheiros do seu antigo amo, o próprio Imperador. E se este governava Roma, Pláucio já ouvira dizer que era,
por sua vez, controlado pelo seu liberto. Só que agora este tinha encontrado uma rival em Messalina, a jovem e ambiciosa esposa de Cláudio, e tal facto tornava-o
um homem desesperado e perigoso, a quem não convinha nada decepcionar.
- Muito bem, darei as ordens necessárias.
- Muito obrigado, general. - Narciso voltou a concentrar-se na pêra descascada que se encontrava na escudela de prata que tinha ao colo, cortando fatias tão finas
quanto permitia a adaga que empunhava.
- Manda-me avisar quando tudo estiver preparado. Fico aqui à espera.
Pláucio não aguentou mais partilhar a tenda com o liberto e, pegando nas sacolas que Vespasiano trouxera, pôs a mão no ombro deste e conduziu-o para o exterior.
Já na tenda dos escrivães, fora do alcance dos ouvidos do secretário imperial, o general dirigiu-se serenamente ao seu subordinado.
- Será melhor que regresses à tua legião. Quero a tua Terceira Coorte formada, em sentido, desarmada, em túnicas, e vigiada.
- Senhor, porquê? Porquê cobri-los de vergonha desta forma?
- Porque eles têm que ser envergonhados. Tem que saber que todo e qualquer homem da coorte tem que prestar contas, qualquer que seja a sua patente. Servirão de exemplo
para as outras coortes.
- Mas, senhor... - A mente de Vespasiano, exausta, não conseguia ja acompanhar a velocidade apressada a que o suposto inquérito estava a ser conduzido. - Pense no
moral dos homens. Toda a legião se verá coberta
144
pela vergonha, e todo o espírito de corpo que lhe conseguimos imprimir ao longo desta campanha irá por água abaixo.
Pláucio imobilizou-se, e voltou-se para o legado com uma expressão de espanto.
- Por água abaixo? Que expressão tão vulgar. Suponho que tens passado demasiado tempo em companhias de baixo nível... Talvez devesses regressar a Roma, antes que
te esqueças de quem és.
- Sei bem quem sou. - Respondeu Vespasiano, de forma gelada.
- E também sei bem o que está certo e o que está errado. E volto a afirmá-lo, este inquérito é um erro. Nada de bom há-de resultar dele... senhor.
Pláucio encarou o seu subordinado.
- Legado, parece-me que te esqueces da tua posição. Dei-te uma ordem. Regressa à tua legião, e prepara tudo para a audição. Assim que tiver analisado estes registos
com os meus escrivães, irei lá ter contigo, e daremos imediatamente início aos procedimentos. Se não estiver tudo pronto, poderei ver-me forçado a alargar o âmbito
do inquérito e a incluir nele mais oficiais do que os da Terceira Coorte. Fui claro?
- Sim, senhor.
- Então vai.
145
XVIII
Plínio, o tribuno-chefe, encheu os pulmões e lançou a ordem:
- Centuriões... À frente!
A coorte de Máximo alinhava-se em fileiras aprumadas perante as tendas do estado-maior da Segunda Legião. Apesar de a noite já ter caído, eram bem visíveis graças
à luz bruxuleante das inúmeras tochas empunhadas pelos legionários da Primeira Coorte, a quem tinha sido atribuída a
tarefa de vigiar os camaradas. Os homens de Máximo estavam desarmados, e nem sequer lhes tinha sido permitido o uso das armaduras, pelo que envergavam apenas leves
túnicas. Estavam sob acção disciplinar, e, como tal, podiam ser a qualquer momento expulsos do acampamento, como pena pela sua incapacidade de manterem o controlo
do vau na véspera. Alguns dos homens pareciam aterrorizados. E tinham razões para isso, pensou Cato, enquanto se dirigia ao local onde se encontrava o tribuno. Ficariam
sem abrigo dos elementos, e sem armas com que se pudessem defender de patrulhas inimigas que decidissem coleccionar algumas cabeças de invasores romanos. E isso
durante toda a duração do castigo, fosse ela qual fosse.
Cato alinhou com os outros centuriões ao lado do tribuno, e a escolta formou aos lados.
- Em frente! - Ordenou o tribuno, e o pequeno grupo marchou na direcção da entrada da maior das tendas. As abas estavam presas, e a luz alaranjada produzida pelas
lamparinas de óleo espalhava-se para o exterior. Pela abertura, Cato apercebeu-se de que as mesas dos escrivães tinham sido mudadas, e que uma longa secretária tinha
sido colocada ao fundo da tenda, deixando um espaço livre à frente. Algumas pequenas mesas alinhavam-se a um dos lados, e escrivães já se atarefavam sobre elas,
preparando os materiais que seriam necessários para fazer os registos do inquérito.
Plínio, o tribuno, conduziu os centuriões e a escolta para o interior da tenda, e indicou-lhes os lugares que deviam tomar, em pé, em frente da mesa vazia. A escolta
formou por trás dos oficiais, as mãos sempre nos
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punhos das espadas. Os escrivães ocuparam também os seus lugares, com as suas tábuas e estiletes, prontos a registarem o processo. Então tudo ficou em silêncio
e imóvel, enquanto esperavam sob o calor abafado pela chegada dos oficiais superiores que iam presidir ao inquérito. Cato, que nunca tinha presenciado um acontecimento
daquele género, sentia-se aterrorizado, mas estava disposto a não o deixar transparecer, e mantinha-se tão hirto como a sua vara e com o olhar fixo num ponto distante.
Mas, enquanto esperavam, a vista desviou-se para o lado, e ele apercebeu-se de que os dedos de Félix não paravam, formando e desfazendo um punho uma e outra vez.
De repente, o outro centurião virou ligeiramente a cabeça e os seus olhos captaram os de Cato, que assinalou com a vista e um ligeiro aceno o tique que afectava
as mãos de Félix. Este pareceu genuinamente surpreendido ao olhar e dar-se conta do movimento nervoso que as suas mãos não paravam de realizar, como se elas pertencessem
a outra pessoa. Imobilizou-as, e assinalou a sua gratidão a Cato com o olhar, antes de voltar a fixá-lo em frente. Pelo seu lado, o jovem centurião sentiu-se animado
por ver que outros estavam pelo menos tão nervosos como ele.
Uma aba lateral foi afastada, e o prefeito do acampamento entrou. Colocou-se rapidamente a um dos lados, e anunciou:
- Oficiais superiores em presença! Todos de pé!
Os escrivães colocaram-se imediatamente de pé e em sentido, e o mesmo fizeram todos os outros homens na tenda, quando o general e o legado entraram e se dirigiram
apressados para os seus assentos. Seguiu-se uma curta pausa, até que Narciso entrou também e se foi sentar ao lado do general. Assim que ele se instalou, o prefeito
do acampamento ordenou:
- À vontade!
Sem perda de tempo, o general Pláucio deu início aos trabalhos.
- Antes que se inicie o inquérito, gostaria que ficasse registado que, em face das exigências da presente situação, os procedimentos normais serão postos de lado,
por forma a possibilitar que o inquérito seja resolvido o mais depressa possível. Desta forma, solicito que a sentença seja pronunciada imediatamente após o fim
do inquérito, e que qualquer castigo que seja considerado necessário seja aplicado tão cedo quanto possível.
Os oficiais da Terceira Coorte trocaram olhares ansiosos perante este desrespeito aos seus direitos. Um processo daquele género numa guarnição instalada numa fortaleza
seria bem mais demorado, mas ali, em plena campanha e em face do inimigo, percebia-se que a justiça tivesse que ser mais expedita. Porém, o abandono das mais elementares
regras do processo não deixava de chocar os centuriões.
Antes que alguém pudesse protestar, o general continuou.
- O objectivo deste inquérito é determinar se os oficiais e
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homens da Terceira Coorte da Segunda Legião desempenharam o seu dever de acordo com os padrões exigidos àqueles que servem em nome do Imperador Cláudio, e do Senado
e do povo de Roma. As acusações apresentadas referem que nos idos de Agosto passado, o comandante da coorte Gaio Norbano Máximo, desobedeceu às ordens recebidas
e, em virtude desse incumprimento do dever, permitiu a fuga de cerca de cinco milhares de guerreiros inimigos. Mais, o centurião Máximo acusa o centurião Lúcio Cornélio
Macro de não ter enfrentado o inimigo com suficiente empenho, na defesa da ilha que se situava a meio do rio. Acusa ainda o centurião Máximo toda a Terceira Coorte
de não combater com o vigor e a determinação necessárias na posterior tentativa de defesa da margem do rio. Na minha opinião, porém, e depois de ter avaliado cuidadosamente
todas as provas que me foram apresentadas, a Terceira Coorte e todos os seus oficiais são culpados em igual medida no que respeita a todas as acusações apresentadas.
Antes de ser pronunciada a sentença, algum dos oficiais deseja aproveitar uma oportunidade para responder às acusações?
O general Pláucio levantou o olhar e esperou que algum dos centuriões respondesse. Os maxilares de Macro cerraram-se de raiva quando compreendeu a traição de Máximo.
Se abrisse a boca, não conseguiria fazer um discurso coerente; de facto, nem sequer se atrevia a olhar para a direita, para lá de Túlio, e enfrentar o homem que
tão facilmente mentira aos seus oficiais superiores para encobrir a culpa por não ter cumprido o seu dever. Ainda mais difícil de perdoar era a tentativa de distribuir
a culpa acusando toda a coorte de cobardia.
- Senhor, se me permite?
Todos os olhos se viraram para Vespasiano.
- Pode falar, legado. Desde que seja breve e preciso.
- Sê-lo-ei, senhor. Gostaria que ficasse registada a minha oposição a todas as acusações pronunciadas.
Os olhos de Pláucio arregalaram-se de surpresa perante esta demonstração pública de desacordo com o seu julgamento. Engoliu em seco antes de prosseguir.
- E em que se baseia essa oposição?
Vespasiano pesou cuidadosamente as palavras.
- No facto de que as acusações são demasiado limitadas. Não pretendo, desmentir que a Terceira Coorte não tenha agido com a rapidez ou a determinação necessárias
no cumprimento dos seus deveres, mas a verdade é que lhes tinha sido pedido que defendessem a passagem contra os fugitivos da batalha principal. Que devia ter sido
travada junto a um dos outros dois vaus. Nunca foi considerado que os homens de Máximo teriam que enfrentar o grosso do exército inimigo. - Vespasiano fez uma pausa
e
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respirou fundo, antes de entrar no âmago da questão. - A questão que gostaria que ficasse registada é: quais as razões para que o exército do general Pláucio não
tenha conseguido forçar o inimigo a dar batalha em frente de uma das duas passagens principais, como estava planeado?
Desta vez, o choque e a surpresa entre os que assistiam aos procedimentos na tenda foram tão profundos que se instalou um silêncio duradouro, enquanto os homens
olhavam do general para o legado e de volta ao primeiro, e esperavam a sua resposta ao frontal ataque de Vespasiano. Cato sentiu a tensão no ar do interior da tenda,
como se se aproximasse uma tempestade violenta. Pláucio manteve o olhar no legado ainda um bocado, e depois desviou a vista, dirigindo-a a Narciso. O secretário
imperial deu um ligeiro sinal de aquiescência com a cabeça. Pláucio virou-se então para os homens que se distribuíam em redor da tenda.
- Essa questão extravasa o âmbito deste inquérito, e é portanto irrelevante. - Olhou para os escrivães. - Não será mencionada nos registos oficiais.
- Senhor, isso não é aceitável.
- É aceitável, sim, legado. A autoridade é minha.
- Senhor, não pode seguramente condenar homens com base no facto de eles não terem conseguido defender uma posição perante forças imensamente superiores.
Pláucio sorriu.
- Não faltam, em todos os exércitos, precedentes de sacrifícios heróicos.
- É um facto. - Concedeu Vespasiano. - Mas essa situação apenas se colocou à Terceira Coorte devido à incapacidade de outros para efectuarem um ataque decisivo;
e isso implica que se estejam aqui a aplicar dois pesos e duas medidas. Estes oficiais e os seus homens poderão ser condenados por não terem cumprido cabalmente
o seu dever. Mas não acontecerá o mesmo aos que, sob o seu comando directo, não conduziram de forma suficientemente rápida o ataque que devia fechar a armadilha
que foi planeada. Foi devido ao falhanço deles, ao seu incumprimento cabal das ordens, que o inimigo conseguiu escapar à armadilha, e avançar sobre a posição da
Terceira Coorte com forças tão numerosas.
O legado tinha exagerado, pensou Cato, enquanto passeava o olhar pela tenda. O choque bem evidente nos rostos dos oficiais presentes era eloquente quanto à quebra
dos protocolos aceites nos inquéritos daquele género. O general olhava furibundo para o seu subordinado, tão perdido na surpresa e na ira que, por momentos, se viu
incapaz de prosseguir. Então aclarou a garganta e dirigiu-se aos escrivães.
- Uma nota para os registos. O legado apresentou uma objecção
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quanto à condução deste inquérito. Em data futura, que posteriormente será determinada, será realizado outro inquérito para esclarecer as questões que ele levantou.
Por agora, prosseguiremos com o assunto que temos entre mãos. Uma acusação de cada vez. Centurião Máximo.
- Senhor?
- Negas ter desobedecido às ordens que recebeste?
- Sim, senhor.
- Sim?
- Dirigimo-nos ao vau tão depressa quanto possível, senhor. Quando alcançámos o forte, decidi que seria demasiado perigoso prosseguir, uma vez que havia uma força
inimiga a ameaçar o nosso flanco. Avançámos contra essa coluna, destruímo-la, e então prosseguimos para o vau, senhor. De acordo com as ordens recebidas.
- A tua decisão de destruir imediatamente essa unidade inimiga foi apenas baseada em considerações tácticas?
- Claro, senhor. - Respondeu Máximo, sem a mais pequena hesitação.
- E algum dos teus oficiais tentou dissuadir-te?
- Recordo-me que houve algum desacordo, de facto, senhor. Mas não havia tempo para explicar a situação ao indivíduo em causa. Além disso, quando o centurião mais
antigo dá uma ordem, deve ser obedecido sem discussão.
- Precisamente. - Pláucio anuiu, e virou então o olhar para Macro. - Quanto à segunda acusação, centurião Macro, porque é que as defesas do vau não estavam adequadamente
preparadas antes da chegada do inimigo?
Macro afastou o olhar de Máximo, recompôs a expressão lívida e aclarou a garganta de forma ruidosa.
- Porque não havia homens suficientes para tal tarefa, senhor. Isso e o facto de que poucas ferramentas utilizáveis encontrámos no depósito do forte. O inimigo tinha
queimado a maior parte delas. Quando eu e os meus homens chegámos ao vau, não tínhamos nem equipamento nem tempo para construir o fosso e o baluarte previstos. A
melhor defesa que pude organizar foi a de construir uma barreira na ilha e espetar umas estacas aguçadas no vau. Só dispúnhamos de uns poucos machados, e a maior
parte dos homens teve que andar a cortar madeira com as espadas.
- Muito bem. Aceito que não havia grande possibilidade de preparar melhor as defesas. Mas porque recuaste antes que o grosso da coorte chegasse ao vau? Já tinhas
sofrido demasiadas baixas?
- Não, senhor.
Estavas a ser flanqueado pelo inimigo?
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- Não, senhor.
- Então porquê abandonar a luta e retirar? Suponho que tiveste uma boa razão.
Macro pareceu surpreso.
- É claro que tive, senhor.
- Continua.
- O segundo ataque do inimigo tinha destruído uma secção das defesas, é já se preparava um novo assalto às nossas linhas. Estavam a empregar infantaria pesada, e
em formação de tartaruga, senhor. Assim vvpercebi que tínhamos que recuar, reunirmo-nos ao centurião Máximo e tentar defender a margem do rio, do nosso lado.
- Tartaruga? - Pláucio sorriu sem vontade. - Afirmas que eles formaram uma tartaruga?
- Sim, senhor. E nada mal, por sinal, senhor.
- Oh, sim, centurião, tenho a certeza. Pelo menos o suficiente para te pôr a fugir.
- Não fugi, senhor. - Ripostou Macro. - Nunca o fiz, e nunca o
farei.
- Então o que chamas ao que fizeste?
- Senhor, acho que poderá encontrar tal acção nos manuais, referida como uma retirada em combate.
- Veremos... - O general lançou um olhar às suas notas. - Passemos à última acusação. Centurião Máximo, podes afirmar que os teus homens defenderam o vau com todo
o empenho que deviam ter utilizado?
- Francamente, senhor, não. Penso que não. Os rapazes estavam fatigados, senhor. Tínhamos corrido os últimos quilómetros até ao vau e, quando lá chegámos, não tivemos
tempo para descansar, entrámos imediatamente em combate. Os homens estavam exaustos e, assim que se aperceberam do número de inimigos que se amontoavam do outro
lado do rio, ansiosos por se lançarem ao ataque...
- Sim?
Máximo olhou para as botas.
- Senhor, acho que se assustaram. A vontade de lutar abandonou-os. Tive que recuar e esperar por reforços. Não tive escolha. Não fazia sentido sacrificar uma coorte
que não estava pronta para lutar. - Lançou então um olhar de desafio. - Noutro dia qualquer...
- Centurião! - Repreendeu-o Pláucio. - Nunca existe outro dia. Só aquele em que o teu sacrifício é necessário. Tu, e os teus homens, não estiveram à altura dos deveres
exigidos aos legionários.
O general fez uma pausa antes de anunciar a sua decisão. O seu
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objectivo ia para além do efeito teatral. Os homens deviam passar alguns momentos a antecipar o seu destino, com terror crescente.
- A Terceira Coorte passará seis meses sem direito a entrar no
acampamento. Não terá direito a abrigos. Todas as condecorações serão removidas dos seus estandartes. Não lhes será atribuído pagamento, e as rações serão apenas
de cevada e água. A sentença começa a ser cumprida de imediato.
Mesmo perante a perspectiva de meio ano de terrível desconforto, o que Cato mais sentia era vergonha. Todas as unidades do exército teriam conhecimento de que ele,
como os outros oficiais e homens da coorte, não tinha cumprido o seu dever. Os estandartes nus seriam marcas de desonra, onde quer que marchassem. Apercebia-se de
que a sombra daquela sentença o cobriria por muito mais tempo do que os seis meses de punição; a memória do crime persiste sempre para lá da duração da sentença.
O general fechou as placas de ardósia que constituíam o seu bloco de notas, e preparava-se para se levantar quando o secretário imperial se inclinou para ele e lhe
colocou uma mão no ombro.
- General, um momento, por favor.
- O que é?
Narciso inclinou-se mais e falou numa voz tão baixa que só Pláucio o podia escutar. O silêncio no interior da tenda adquiriu um ar pouco natural, já que toda a gente
tentava não fazer qualquer ruído e esforçava os ouvidos na tentativa de perceber qualquer das palavras que os dois homens trocavam.
Pláucio escutou um momento, antes de um olhar de horror lhe tomar conta da expressão e de abanar a cabeça. Narciso continuou a falar de forma expressiva, espetando
o dedo na direcção do general de forma a dar mais ênfase aos pontos que assinalava. Por fim o general pareceu ceder, e anuiu com solenidade. Virou-se para Vespasiano,
e sussurrou algo. O legado manteve o olhar fixo nos oficiais da Terceira Coorte, mas os seus lábios cerraram-se em sinal de tensão.
O general Pláucio recostou-se e juntou as mãos antes de se dirigir aos outros homens na tenda.
- Tendo em conta a gravidade de que se revestiu a renúncia ao cumprimento do dever por parte da Terceira Coorte, e de forma a dar um exemplo a todo o exército que
serve nesta província e no resto do Império, a sentença acaba de ser revista, e nela será incluída a dizimação. As sortes serão imediatamente tiradas, por centúrias.
As execuções ocorrerão ao alvorecer, depois de amanhã, perante uma assembleia de unidades representativa de todas as legiões. Tribuno! Leva os oficiais para junto
dos seus homens.
À medida que os centuriões iam abandonando a tenda, Cato
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observava as suas expressões. Máximo manteve o olhar no chão, recusando-se à enfrentar quem quer que fosse. Túlio apresentava uma expressão de desalento. Macro ainda
estava furioso, e deu-lhe a entender o ressentimento que sentia, ao passar por ele marchando de forma rígida. Félix e António não pareciam acreditar no que lhes
estava a acontecer. Chegou por fim a vez de Cato se virar e seguir a coluna de centuriões que estava a ser escoltada para o exterior. Sentia-se como que ausente,
e a atroz realidade do mundo à sua volta parecia-lhe distante e vaga.
Dizimação. Já tinha lido sobre isso: a mais cruel das punições que podiam ser aplicadas aos homens das legiões em campanha. Um homem em cada dez, tirado à sorte,
seria espancado até à morte pelos seus camaradas. As probabilidades deixaram-no aterrorizado.
Os centuriões foram enviados para os seus lugares à frente das centúrias, e todos foram obrigados a esperar em silêncio, sob a luz trémula das tochas, até que seis
escrivães saíram da tenda do estado-maior, transportando urnas samianas. Espalharam-se, dirigindo-se cada um deles a uma das centúrias da Terceira Coorte. Quando
se colocaram em posição, o tribuno Plínio deu um passo em frente.
- Em cada centúria, cada homem deve tirar uma peça do interior da urna à sua frente. Quem tirar uma peça branca deve regressar à sua unidade. Quem tirar uma peça
preta será escoltado e mantido num grupo à parte.
Um gemido colectivo soltou-se dos homens da Terceira Coorte, quando se aperceberam da natureza do castigo que lhes tinha sido aplicado.
- Pouco barulho! - Gritou o tribuno-chefe. - Quando um oficial superior vos dirige a palavra, devem manter-se em silêncio!
Encarou com ar de poucos amigos os homens aterrorizados que se encontravam na formatura à sua frente.
- Comecem!
Por secções, os legionários aproximaram-se dos escrivães, para tirarem a sua sorte. Junto a cada escrivão estavam postados dois homens da Primeira Coorte, um com
um archote, para garantir que a cor da peça extraída por cada homem era bem visível, e o outro preparado para levar consigo os azarados. Cato virou-se para os seus
homens.
- Primeira secção! Avançar!
Os oito homens dirigiram-se ao escrivão. Este levantou a uma acima do nível dos olhos, de forma a que os outros não pudessem ver o interior, e estendeu-a na direcção
do primeiro homem. Ouviu-se um chocalhar, quando os dedos deste se agitaram entre as peças.
- Despacha-te! - Rosnou o legionário que segurava o archote.
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O homem extraiu a mão, e mostrou ao escrivão a peça, um disco de madeira do tamanho de um denário.
- Branco! - Anunciou o escrivão, e o legionário deu meia-volta
e afastou-se rapidamente, apressando-se a juntar-se ao resto da centúria, as mãos a tremerem de alívio.
- Branco! - Voltou o escrivão a anunciar, depois do segundo homem ter tirado a sua sorte.
- Preto!
O terceiro legionário olhava para a palma da mão, incapaz de se mover, como se esperasse que o disco se tornasse branco a qualquer momento pela força do seu olhar.
- Tu, vem cá! - Um legionário agarrou-lhe o braço e empurrou-o na direcção do esquadrão que esperava junto ao tribuno, e que tinha ordens para vigiar os seleccionados.
- Para ali! Vá!
O homem cambaleou ao ser quase arrastado para longe dos seus camaradas. Espreitou sobre o ombro e encontrou os olhos de Cato. O desesperado pedido de auxílio era
claro, mas não havia nada que o centurião pudesse fazer; limitou-se a abanar a cabeça em sinal de impotência e a afastar a vista.
A escolha prosseguiu, e uma série de vítimas foram sendo separadas do resto da coorte. Cato avistou Máximo a tirar a sorte na sua vez, a extrair um disco branco
e a afastar-se com ele nas mãos, como se fosse um talismã. Talvez fosse um presságio para si também, decidiu o jovem centurião, e virou-se para o seu optio.
- Vamos, Fígulo. Tiramos a sorte com a próxima secção.
Dois dos oito homens à sua frente tiraram discos negros, e Cato calculou rapidamente que já só podia restar um na urna. Um preto, vinte e seis brancos, as probabilidades
estavam do seu lado. Ao mesmo tempo que se animava perante este pensamento, sentiu-se envergonhado, porque a melhoria das suas perspectivas tinha acontecido à custa
das vidas de alguns dos homens que tinha mandado à sua frente.
Entretanto tinha chegado a vez de Fígulo, e o poderoso gaulês hesitava em frente à urna.
- Vá lá, filho. - Sussurrou o legionário que empunhava a tocha mais próxima. - Não os deixes perceber que estás com medo.
- Não estou. - Silvou Fígulo. - Não tenho medo, sacana!
Avançou, mergulhou a mão na urna, agarrou o primeiro disco em
que tocou, e tirou-o.
- Branco! - Anunciou o escrivão, e virou-se para Cato.
O coração batia-lhe desalmadamente, e sentia o sangue a latejar. Porém, ao mesmo tempo, sentia frio, o ar gelado da noite a envolver-lhe a
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pele apesar de saber que a temperatura era agradável. O escrivão agitou a urna na sua direcção.
- Senhor?
- Sim, claro. - As palavras calmas saíram-lhe dos lábios como se
tivessem sido proferidas por outro homem, e apesar de Cato desejar mais do que tudo afastar-se daquela urna, viu-se firmemente estacionado em frente dela. A sua
mão ergueu-se sobre a borda da urna e começou a penetrar no interior desta. Apercebeu-se de uma fina racha que traçava uma linha negra a partir de uma falha na borda,
e interrogou-se sobre que acidente teria provocado aquele defeito. Nesse momento as pontas dos seus dedos encontraram a pilha de discos amontoados no fundo da urna.
A mão encolheu-se pelo mais ínfimo dos instantes. Então, cerrou os dentes, e fechou a mão sobre um dos discos de madeira, extraindo-o da urna. Enquanto abria a mão
Cato olhava para a face do escrivão. O olhar deste dirigiu-se à mão do centurião, e um vislumbre de pena passou-lhe pela expressão quando abriu a boca para anunciar:
- Preto!
155º
XIXua
Assim que amanheceu, o secretário imperial deixou o campo, acompanhado pelos seus dois guarda-costas e por nada menos do que quatro esquadrões de cavalaria auxiliar.
Depois da tentativa que tinha sido feita contra a sua vida, Narciso não estava disposto a correr mais riscos. Tinha deixado ao general a ameaça velada mas motivacional
do Imperador, e seria, no regresso, portador de boas-novas. O exército de Carátaco tinha sido esmagado, e nada mais restava do que apanhar os poucos sobreviventes.
O comandante do exército nativo tinha esgotado a boa vontade das tribos das terras baixas, e dificilmente encontraria entre elas mais simpatia para prosseguir a
rebelião. Uma geração de jovens guerreiros tinha sido sacrificada à causa, e por toda a parte as famílias choravam lágrimas amargas pelos seus filhos, mortos e enterrados
em campos longínquos. A captura ou morte de Carátaco era apenas uma questão de tempo, um pensamento que confortava o liberto. Para lá de uns tantos druidas capazes
de provocar uns sarilhos enquanto tentavam espalhar as suas filosofias bizarras e as suas estranhas práticas religiosas a partir de uns obscuros santuários na segurança
das florestas ancestrais, a província podia-se considerar conquistada. E isso devia bastar para calar os críticos do Imperador, pelo menos por uns tempos.
A coluna montada atravessou o rio, estilhaçando a calma superfície da água. Em ambas as margens, podia ver-se uma fina neblina esbranquiçàda que se erguia da superfície
e se espalhava pelos campos próximos. Os cavaleiros emergiram do vau e subiram pela estrada que conduzia a Caleba. A capital atrébate seria um local seguro para
passar a noite, agora que a tribo tinha sido incorporada no reino dos regênsios, governado pelo leal Cogidubno.
Narciso sorriu. Ali estava um homem que nunca causaria problemas. Tinha sido comprado de alma e coração, e agora macaqueava os comportamentos dos seus senhores romanos
com um zelo admirável. E apenas fora necessário prometer-lhe vagamente que lhe construiriam
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um palácio, assim que os fundos o permitissem.
Ao passar pelo acampamento fortificado da Segunda Legião, avistou, a curta distância, algumas centenas de homens a erguerem uma paliçada. Só podia ser a Terceira
Coorte, concluiu satisfeito, não evitando mesmo um ligeiro sorriso. O impiedoso castigo que aqueles homens iam suportar seria um estupendo exemplo para os seus camaradas
das quatro legiões ali reunidas. E, melhor ainda, satisfaria plenamente os generais de sofá que abundavam no Senado, em Roma, que veriam que as legiões ainda seguiam
as duras e rijas tradições que lhes tinham possibilitado a conquista de um império que se espraiava até aos limites do mundo conhecido.
Umas dezenas de homens estavam sentados a um lado, sob guarda apertada e de mãos atadas atrás das costas. Enquanto os cavaleiros passavam, alguns levantaram o olhar.
Narciso compreendeu que eram os condenados, que seriam espancados até à morte por homens da sua própria coorte, no dia seguinte. A maior parte deles tinha um ar
ausente; outros pareciam apenas tristes. Nesse momento, Narciso quase deu um pulo ao encontrar uma face que em tempos bem conhecera, pelos corredores e salões do
palácio imperial. Agitou as rédeas e fez o cavalo mudar de direcção, fazendo sinal à escolta para prosseguir. Em silêncio, os dois guarda-costas tomaram as suas
posições habituais, aos lados e ligeiramente atrás do secretário imperial.
- Cato... - Narciso esboçou um sorriso, mas o jovem centurião limitou-se a encará-lo sem prazer, os olhos cheios de uma raiva sem esperança. - És um dos condenados?
Cato manteve-se imóvel um momento, antes de confirmar, com um único movimento da cabeça. Narciso, tão habituado a decidir os destinos de homens que só raramente
passavam de números numa tábua, sentiu-se intimidado ao ver-se confrontado com alguém que tinha visto crescer desde menino a jovem desajeitado. O filho de um homem
que em tempos considerara como um amigo. E agora Cato tinha que morrer, de forma a que não fosse comprometida a dura disciplina das legiões. Quanto a isso, consolou-se
Narciso, o rapaz teria a sorte dos mártires. Lamentável, mas de certa forma necessária.
Sentiu que devia dizer qualquer coisa, algo que reconfortasse o Jovem e o fizesse compreender a razão da morte iminente. Mas tudo o que lhe veio à mente foram lugares
comuns sem significado, que ficariam mal a ambos.
- Lamento, Cato. Era necessário.
- Porquê? - Replicou Cato, de dentes cerrados. - Nós cumprimos o nosso dever. Tem que dizer isso ao general. Dizer-lhe que altere a decisão.
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Narciso abanou a cabeça.
- isso é completamente impossível. Tenho as mãos atadas.
Cato olhou para ele e desatou a rir com amargura, erguendo as mãos de forma a revelar a corda que lhe unia os pulsos. Narciso corou, mas não conseguiu pensar em
mais nada para dizer. Nada que oferecesse àquele jovem algum conforto, nada que justificasse a necessidade da sua execução. Destinos maiores estavam em jogo, e por
muito que Narciso o tivesse realmente apreciado nos tempos em que crescia pelo palácio, nada se podia interpor entre o secretário imperial e o seu dever de proteger
e fazer avançar os interesses do Imperador. Portanto, Cato teria que morrer. Deu um estalo com a língua e puxou firmemente as rédeas. O cavalo resfolegou, e regressou
à estrada.
Cato viu-o afastar-se com uma expressão de nojo a torcer-lhe os lábios. Custara-lhe muito suplicar um perdão em frente dos outros. Tentou convencer-se de que fora
por eles que implorara. Narciso representara a última oportunidade para um apelo que pudesse sobrepor-se à decisão do general. Mas tinha partido, e já quase desaparecera
de vista com a coluna montada que trotava a caminho de Caleba, deixando para trás apenas um rasto de poeira.
Quando desapareceram por completo, Cato deixou-se abater sobre o solo e contemplou a relva entre os pés nus. Por aquela altura, no dia seguinte, ele e os outros
quarenta homens condenados à morte seriam conduzidos para o interior de um círculo formado pelos seus camaradas e amigos da Terceira Coorte. Estes empunhariam pesados
cacetes e, quando o sinal fosse dado, aproximar-se-iam e bateriam nos prisioneiros até à morte, um a um. Amaldiçoado com uma imaginação vívida, Cato já projectava
a cena no interior da sua mente, com todos os detalhes. O veloz movimento dos cacetes a abaterem-se sobre as vítimas, os terríveis sons da madeira a atingir carne
e a quebrar ossos, os gritos e gemidos dos homens amarrados, enroscados no solo ensanguentado. Alguns dos homens não conseguiriam manter o controlo das tripas, o
que provocaria comentários pouco agradáveis dos esbirros, e quando chegasse a sua vez, ele teria que se ajoelhar sobre o sangue, urina e fezes dos que o teriam
precedido, e assim aguardar a sorte.
Era humilhante, vergonhoso, e só esperava manter a força suficiente para morrer sem um lamento, encarando os seus assassinos com um olhar de orgulhoso desafio. Mas
sabia que dificilmente as coisas se passariam dessa forma. Seria arrastado, a tremer e coberto de imundície, para o cadafalso. Talvez conseguisse não suplicar misericórdia,
mas gritaria ao sentir o primeiro golpe, e assim continuaria. Orava para que um golpe mal dirigido lhe acertasse na cabeça rapidamente, para que estivesse inconsciente
quando o
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seu corpo massacrado e esmagado libertasse por fim o seu espírito.
Nada mais do que um sonho, pensou com desdém por si mesmo. Os carrascos deveriam receber instruções precisas para se assegurarem de que as pernas e braços seriam
esmagadas antes de lhes ser permitido quebrar as costelas dos condenados. E só depois poderiam atacar os crânios e pôr fim ao seu tormento. Sentiu-se enjoado, e
a bílis dava-lhe voltas no estômago, pelo que se deu por feliz por nada ter comido desde a manhã do dia anterior. A lembrança da comida preparada pelo escravo de
Máximo deu-lhe vontade de vomitar, e cobriu a boca com as mãos amarradas, até que o impulso passou.
Uma mão pousou-lhe suavemente no ombro.
- Estás bem, miúdo?
Cato engoliu rapidamente o fluido amargo que lhe enchia a boca, e viu então que era Macro quem se debruçava sobre ele, um sorriso forçado no rosto enrugado. De relance,
notou que os outros condenados estavam demasiado absortos nos seus próprios pensamentos para lhe dedicarem qualquer atenção. Rapidamente, abanou a cabeça.
- Não me surpreende. - Os dedos de Macro apertaram-lhe o ombro, quando o veterano se agachou ao seu lado. - Esta história não tem nada de bom. Fomos completa e totalmente
fodidos. Tu e estes todos, sobretudo... Olha, Cato. Não sei o que hei-de dizer. É uma merda. Quem me dera poder fazer o que quer que fosse para alterar a situação.
A sério. Mas...
- Mas não há nada a fazer. Já sei. - Cato forçou-se a sorrir. - Estamos nisto porque nisto estamos. Não é o que dizem os veteranos?
Macro anuiu.
- É isso. Mas só se aplica quando a situação está fora de controlo. Isto podia ter sido evitado - devia tê-lo sido. O cabrão do general meteu água, e precisa que
alguém fique com a culpa. Filho da puta.
- Pois. - Respondeu Cato, calmamente. - Um grandessíssimo sacana, sem dúvida... Já alguma vez assistiu a uma dizimação?
- Duas vezes. Ambas as unidades amereceram. - Lembrou-se Macro. - Fugiram, e deixaram-nos na merda. Nada a ver com o quê se
passou neste caso.
- Suponho que uma dizimação nunca é cancelada, pois não? - Cato levantou o olhar, esforçando-se por não mostrar qualquer expressão no rosto. - Quer dizer, alguma
vez ouviu falar de uma que não tivesse tido lugar?
Por momentos, Macro sentiu-se tentado a mentir. O mais ínfimo pedaço de conforto que pudesse oferecer ao jovem talvez tornasse o tempo que lhe restava mais fácil
de suportar. Mas sabia que era um mentiroso
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terrível- não tinha talento para enganar. E, sobretudo, devia a Cato a verdade. Era esse peso que fazia uma verdadeira amizade.
- Não. Nunca.
- Estou a ver. - Cato voltou a baixar o olhar. - Podia ter-me
mentido. Macro riu então, e deu uma palmada amigável no ombro do jovem.
- A ti não, Cato. A ti, não. Pede-me o que quiseres, menos isso.
- Está muito bem, então. Tire-me daqui.
- Não posso. - Macro desviou o olhar para o rio. - Desculpa. Queres que veja se consigo trazer-te alguma comida de jeito? Vinho?
- Não tenho fome.
- Devias comer qualquer coisa. Acalmava-te os nervos.
- Porra, já disse que não tinha fome! - Vociferou Cato, arrependendo-se imediatamente, já que sabia que Macro apenas pretendia oferecer-lhe algum conforto antes
da chegada da alvorada. A culpa da situação não era dele, e o jovem compreendeu claramente que o amigo tinha tido de reunir uma grande dose de coragem para o vir
ver, sabendo que a conversa nunca seria fácil. Olhou de novo para o centurião mais velho. - Mas um jarro de bom vinho sempre era uma ajuda.
- É assim mesmo! - Macro deu-lhe mais uma palmada nas costas e levantou-se penosamente. - Vou ver o que posso fazer.
Começou a afastar-se dos condenados.
- Macro! - Chamou Cato, e o veterano espreitou sobre o ombro. Cato olhou-o por um instante, enquanto na sua torturada mente se debatiam medos indizíveis. - Obrigado.
Macro fez uma careta e acenou, antes de se virar e prosseguir o seu caminho. Cato ficou a vê-lo a afastar-se, e depois olhou em volta, deixando que a atenção ficasse
retida na mudança de turno de guarda à entrada do campo da Segunda Legião. A rotina militar seguia no ritmo de sempre,uma rotina que o tinha aprisionado num ríspido
abraço durante quase doisanos , e o transformara num homem. E agora aquele mesmo exército tinha-o posto de lado e, ao alvorecer do dia seguinte, executá-lo-ia. As
sentinelas foram substituídas e a tábua de registo foi passada para as mãos do centurião que entrava ao serviço. Cato invejou-lhe a rotina interminável que o manteria
ocupado durante todo o dia, enquanto ele se limitaria a permanecer sentado, prisioneiro dos próprios pensamentos, à espera do fim.
Os guardas no portão puseram-se em sentido de repente, quando uma figura a cavalo surgiu do interior do campo. Quando o cavaleiro emergiu para a luz alaranjada do
sol nascente, Cato reparou que era o legado. Seguiu ao longo do campo, na direcção dos homens da Terceira Coorte
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que se afadigavam a preparar as defesas do seu próprio recinto. Ao passar por eles, Vespasiano lançou-lhes um relance. Então, ao aproximar-se das formas agachadas
dos condenados, vigiadas por dois legionários, o legado fixou a vista em frente e fez o cavalo avançar a trote. Alguns dos prisioneiros ergueram as cabeças para
ver passar o seu antigo comandante. Agora que a legião os tinha rejeitado, já não estavam sob a alçada da disciplina militar. Na véspera, ter-se-iam posto imediatamente
em sentido e saudado a passagem do oficial. Mas hoje não passavam de criminosos, praticamente já mortos, e qualquer sinal de respeito que mostrassem ao legado seria,
no fundo, um insulto.
A diferença que um dia fazia, considerou Cato. Pelo menos para os condenados. Vespasiano continuava livre, com a possibilidade de viver a sua privilegiada vida até
ao fim, e, daí a uns dias, já teria certamente esquecido que Cato e os seus companheiros algumavez tinham existido. Por momentos, deixou-se levar numa onda de desprezo
pelo legado, um homem a quem servira com lealdade, e que chegara a admirar. E era daquela forma que os seus bons serviços eram recompensados. No fim de contas, Vespasiano
não era assim tão diferente dos outros aristocratas que lideravam as legiões, sempre com o seu próprio interesse em primeiro lugar. Depois do espectáculo público
de oposição ao general no dia anterior, tinha desistido ao primeiro sinal de possíveis consequências para o seu lado, e aceitado humildemente a dizimação dos seus
homens.
Enojado pela visão de tal sujeito, Cato cuspiu no solo. Manteve o olhar duro e fixo nas costas do legado, enquanto este descia o caminho que conduzia à travessia
do rio e se dirigia ao campo do general, na margem oposta do Tamisa.
? ? ?
- Bem, legado, o que posso fazer por ti? - Áulio Pláucio levantou o olhar da secretária e saudou-o com um sorriso. Agora que Narciso já não estava por perto para
lhe vigiar todos os movimentos, o general sentia que lhe tinha sido tirado um peso dos ombros. Podia prosseguir a campanha à sua vontade, e, daí a poucos meses,
aquelas terras e as suas desordeiras tribos estariam sob o seu controlo. Nessa altura, o exército teria o tempo necessário para consolidar a nova ordem imposta nos
territórios subtraídos a Carátaco e aos seus cada vez mais escassos aliados. As legiões poderiam aproveitar o Inverno para descansar e reequipar-se, e avançar com
uma muito mais fácil expansão da província na campanha seguinte. Pela primeira vez nas últimas semanas, o futuro parecia brilhante, e estava um dia solarengo, com
uma ligeira brisa para manter a frescura. Que mais podia
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um homem querer? Em consequência, o general estava bem-disposto, e o sorriso manteve-se enquanto Vespasiano fazia a saudação e se sentava na cadeira que lhe tinha
sido indicada, no lado oposto da secretária do general.
- Senhor, podemos falar em privado?
Num instante, o sorriso desapareceu dos lábios de Pláucio.
- É importante?
- Penso que sim.
- Muito bem. - Estalou os dedos, e os escrivães que trabalhavam em pequenas mesas a um dos lados da tenda olharam para ele. Acenou com a cabeça na direcção da entrada
da tenda. - Deixem-nos. Quando terminar, mando-vos chamar.
Assim que o último dos escrivães abandonou a tenda, Pláucio recostou-se na cadeira e pousou o queixo sobre os nós dos dedos de uma mão.
- Bem? O que me querias?
Vespasiano não conseguira pregar olho na noite anterior, e agora receava que a sua mente não estivesse suficientemente desperta para aquilo que tinha que fazer.
Esfregou o queixo, enquanto organizava rapidamente as ideias.
- Senhor, aqueles homens não podem ser executados.
- Porque não?
- Não está certo. Sabe-o tão bem como eu. Não foram eles os únicos a não estarem à altura durante a batalha.
- O que é que estás a insinuar, exactamente?
- As coisas não se passaram como as tinha planeado. Carátaco conseguiu escapar-lhe, como a mim. Tivemos muita sorte em ter conseguido alcançá-lo antes que todo o
seu maldito exército tivesse passado o rio. Alguns poderiam até dizer que devíamos era agradecer aos meus homens por terem demorado os bretões o tempo suficiente
para que isso se tornasse possível.
- A sério? - Respondeu Pláucio, o gelo na voz. - E alguns poderiam dizer que o castigo que lhes foi imposto é demasiado leve para uma unidade que não se mostrou
capaz de aguentar uma posição. E poderiam até dizer que uma frente tão estreita como a que eles tinham que defender podia ser mantida por um punhado de homens, desde
que tivessem a coragem necessária.
- Os meus homens não são cobardes. - Retorquiu Vespasiano, calmamente.
- Não foi isso que disse o Máximo.
Vespasiano fez uma pausa. Tinha que ter cuidado. Máximo era um
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centurião-chefe, um homem com uma longa folha de serviços, a maior parte do tempo prestados na Guarda Pretoriana. Homens daquele género tinham com certeza amigos
e patronos poderosos em Roma, e esses não deixariam de lhe fazer sentir o seu rancor. Mas, fosse qual fosse o risco para o futuro da sua carreira, Vespasiano sentia-se
obrigado a agir de acordo com os seus princípios.
- É possível que Máximo tenha exagerado quanto à falta de empenho dos homens.
- E porque o faria?
- Pela mesma razão pela qual nós os dois escolhemos aceitar a sua versão dos acontecimentos.
- E que é...?
- Auto-preservação. - Vespasiano preparou-se mentalmente para aguentar a dura resposta que esperava, mas o general deixou-se estar calado, à espera que ele continuasse.
- Foi Máximo o responsável por a sua coorte não ter conseguido alcançar o vau a tempo de o defender como devia. E ambos o sabemos, senhor.
- Sem dúvida. Por isso é que ele não escapou ao castigo. Podia ter sido sorteado para a dizimação, tanto como qualquer um dos seus homens.
- É verdade. - Reconheceu Vespasiano. - Mas porque é que eles têm que pagar pelo erro do comandante? Se alguém deve ser castigado é ele, e ele apenas. Não podemos
permitir que os homens sofram em consequência das más decisões do comando. Que tipo de exemplo é que isso dá?
- O tipo de exemplo que lembra à soldadesca que nas minhas legiões o falhanço não é tolerado. - Afirmou Pláucio, com intensidade, mas sem erguer a voz. - E que,
se ele voltar a acontecer, agirei de forma rápida e impiedosa. Conheces o ditado: "Eles que me odeiem, desde que me temam"? De certa forma, o facto de o castigo
abranger homens inocentes torna a lição disciplinar ainda mais efectiva, não achas?
O legado não conseguiu mais do que ficar a olhar para o general, enquanto sentia o desprezo a crescer. A atitude do general parecia-lhe ignóbil. O que se passava
com Pláucio? Um ano antes, o apelo de Vespasiano, solidamente baseado em argumentos éticos, teria resultado. Pláucio sempre fora um comandante duro, mas justo para
com os seus oficiais e homens. Mas agora...?
- Esta situação não é aceitável, como bem sabe. - Disse, com firmeza. - Aqueles homens não passam de bodes expiatórios.
- Entre outras coisas, sim.
- E está preparado para os usar dessa forma? Para os deixar morrer, só para salvar a sua reputação? - Uma nova linha de argumentação
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abriu-se perante Vespasiano. - Um dos homens condenados é o centurião
Cato. Sabia disso?
- Sabia. - Anuiu o general. - Sei-o muito bem. Mas não pode
fazer qualquer diferença.
- Não faz diferença? - Vespasiano não conseguiu conter por mais
tempo a sua indignação e surpresa. - Conhece perfeitamente a sua folha de serviço. Não nos podemos permitir desperdiçar homens do calibre de Cato.
- E que queres que eu faça? - Pláucio enfrentou o olhar do interlocutor. - Poupá-lo? Deixá-lo viver enquanto os simples legionários são executados? Como é que isso
seria visto pelo resto dos homens? Uma regra para eles, outra para os centuriões. Já ocorreu um motim neste exército. Quantos oficiais foram mortos nessa ocasião?
Supões tu que acaso sobreviveríamos a uma repetição? Não, se os legionários morrerem, Cato morrerá com eles.
- Então, perdoe-os a todos!
- E fico a parecer um fraco, um sentimental? - Pláucio abanou a cabeça. - Não me parece, Vespasiano. Tens que perceber a situação. Se condenar homens num dia para
os perdoar no seguinte, esse será o primeiro passo no caminho para a completa perda de autoridade sobre a soldadesca. E não ficaria por aí - podes juntar-lhe a populaça.
É o medo que os mantém submissos, e não vejo melhor forma de lhes lembrar o dever de obediência cega aos seus senhores do que o medo do castigo, mesmo que sejam
completamente inocentes. É assim que o mundo funciona, Vespasiano. Foi sempre assim que funcionou. É por isso que a nossa classe governa Roma... Mas esqueço-me -
Pláucio sorriu com ironia - que tu és um dos novos. Tu e o teu irmão. A seu tempo, quando estiveres habituado ao uso da faixa, perceberás o que quero dizer.
- Já o compreendo perfeitamente, nesta altura. - Retorquiu Vespasiano. - E enoja-me.
- Bem, mas é assim, faz parte da classe. Terás que te habituar.
- Classe? - Vespasiano deu uma risada amarga. - Pois, é tudo uma questão de classe, de facto.
Sentia um cansaço que ia muito para lá dos músculos doridos, uma melancolia que lhe destruía a alma. Tinha sido educado por um pai para quem Roma e tudo o que ela
representava eram o melhor dos mundos. A herança que o pai deixara aos dois filhos tinha sido essa mesma devoção ao serviço de Roma. Mas desde que iniciara uma carreira
política, essa fé tinha sido corroída pouco a pouco, da mesma forma que um escultor vai retirando lascas de pedra de um bloco. O que restara, porém, não fora nenhum
orgulhoso monumento, apenas um altar ao egoísmo, banhado pelo sangue
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dos que nele eram sacrificados, não pelo bem comum mas pelo mesquinho interesse de um círculo elitista de cínicos aristocratas de sangue frio.
- Basta! - Pláucio bateu com a mão no tampo da mesa, fazendo com que as tábuas saltassem. - Legado, esqueces a tua posição! Agora, escuta-me com atenção.
Durante algum tempo, os dois homens entreolharam-se sobre a mesa com uma implacável sensação de distanciamento, e Vespasiano compreendeu então que perdera. Não apenas
no que dizia respeito à tentativa de salvar os seus homens, mas também quanto à sua admissão aos mais altos escalões da sociedade romana. Não possuía a necessária
dose de insensibilidade. As sobrancelhas do general estavam vincadas pela fúria quando se voltou a dirigir ao subordinado.
- Ouve bem. Não haverá qualquer perdão. Os homens serão executados, e as suas mortes servirão de exemplo aos seus camaradas. E é o fim da questão. Não permitirei
que este assunto volte a ser discutido. Nunca mais me voltes a falar dele. Faço-me compreender?
- Sim, senhor.
- Assim, a execução terá lugar amanhã ao alvorecer. Perante as primeiras coortes das quatro legiões. Descobre quem são os amigos mais chegados dos condenados. Serão
eles os executores. Se algum deles protestar ou vacilar no cumprimento destas ordens, será crucificado imediatamente a seguir à conclusão das execuções. - Pláucio
deixou-se encostar na cadeira, e inspirou profundamente pelo nariz. - Bom, legado, tens as tuas ordens. Estás dispensado.
Vespasiano levantou-se, hirto, e fez a saudação regulamentar. Antes de se virar, sentiu-se tentado a fazer um último apelo - uma derradeira oportunidade para que
a justiça e a razão prevalecessem, mesmo depois de tudo o que fora dito naquela tenda. Mas então apercebeu-se do brilho frio e letal nos olhos do general, que denunciava
uma resolução férrea, e compreendeu que, mais do que uma pura perda de tempo, seria um verdadeiro perigo pronunciar outra palavra que fosse.
Portanto, virou-se e marchou para fora do pavilhão, para o ar puro, tão depressa como o permitia a dignidade da sua patente, que tão mal lhe assentava na ocasião.
165
XX

À sombra de um dos salgueiros que cresciam na margem do rio, havia uma extensão de relva fresca, e foi para aí que Macro se dirigiu, quebrando alguns ramos finos
antes de se sentar pesadamente. Tinha deixado os homens a montar as tendas sob a supervisão do optio, Públio Sêncio. O centurião Félix tinha sugerido que os oficiais
fossem até ao rio e tomassem um banho, mas apesar do atroz calor que os afligia, nem Macro nem nenhum dos outros tinham achado adequado que se fossem divertir em
plena vista dos seus camaradas condenados. Máximo tinha-se ocupado com a preparação do campo separado para a coorte castigada; fazia de tudo para dar a ideia de
um profissional estóico que continuava a cumprir os seus deveres nas mais terríveis circunstâncias. Mas, por muito que tivesse insistido com os homens para fazerem
isto ou aquilo e depressa, estes moviam-se de forma letárgica, o que denunciava claramente o estado de espírito em que se encontravam. A Terceira Coorte estava nas
profundezas da miséria, assombrada pela presença silenciosa dos homens que aguardavam a execução. E ainda mais miseráveis do que os outros sentiam-se os homens que
tinham sido designados para cumprir a sentença: vinte legionários, comandados pelo próprio Macro.
Quando o legado lhe dera a ordem, tinha recusado imediatamente, horrorizado pela perspectiva de executar o amigo à cacetada.
- Centurião, isto é uma ordem. - Dissera o legado com firmeza.
- Não podes recusar, não tens essa opção.
- Senhor, porquê eu?
- Ordens. - Vespasiano olhara para ele, a tristeza bem evidente.
- Assegura-te que ele não sofre... Percebes?
Macro anuíra. Um golpe rápido e seco na cabeça deixaria Cato imediatamente inconsciente e poupá-lo-ia à agonia de sentir os seus ossos a serem quebrados e esmagados.
Só pensar nisso deixava o estômago de Macro cheio de nós.
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- E o resto dos rapazes, senhor?
- Não. Só o Cato. Se formos demasiado clementes com os homens em geral, o general limitar-se-á a interromper a execução e a arranjar quem acabe o trabalho.
- Compreendo. - Macro anuíra de novo. Se existisse a mais pequena possibilidade de poupar o sofrimento aos condenados, tê-la-ia agarrado sem hesitar. Mas o legado
tinha razão: só aquele pequeno acto de piedade poderia ser tolerado.
- Centurião, é uma situação horrível. Para todos. Mas assim, pelo menos o Cato será poupado ao pior.
- Sim, senhor.
- Agora, vai escolher os homens para o pelotão de execução.
Macro saudara e deixara a tenda rapidamente, contente por voltar
ao exterior e encher os pulmões com ar puro e limpo. Nunca lhe tinha sido pedido que fizesse algo que fosse tão evidentemente contrário à sua noção de certo e errado.
Uma visão de Cato, amarrado e de joelhos aos seus pés, atravessou-lhe o espírito. O miúdo olhava-o enquanto ele erguia o cacete... O sangue gelou-se-lhe nas veias,
e Macro deu uma palmada na coxa enquanto se dirigia ao campo da Terceira Coorte.
Seleccionou sobretudo homens da centúria de Cato; duros veteranos, com os quais podia contar para não vacilarem no cumprimento da tenebrosa tarefa para que tinham
sido designados. Naquele preciso momento, estavam atarefados a preparar os bastões que usariam. Os paus tinham que ter o comprimento e o peso adequados para que
os golpes aplicados tivessem força suficiente para serem mortais. Os homens preparavam-se de forma pragmática, e Macro, mesmo sendo também um veterano, não deixava
de se espantar com a forma tranquila com que os homens encaravam a tarefa, como se fosse igual a outra missão qualquer de que tivessem sido encarregues. Tinha passado
demasiado tempo junto de Cato, decidiu, com um sorriso amargo. Antes do miúdo aparecer, nunca Macro tinha colocado em causa qualquer aspecto da vida militar. Mas
agora via as coisas com outros olhos, e não se sentia confortável. Talvez depois de Cato estar morto e cremado, pudesse continuar com a sua vida nos antigos moldes.
Voltar à rotina fácil de desempenhar os deveres militares e ignorar as grandes questões da vida.
Morto e cremado...
Uma pessoa tão viva e arguta como Cato? Não estava certo, pensou. Não era de todo aceitável. O legado devia estar louco para levar este assunto até ao fim. Louco,
talvez, mas a cobardia de lhe atirar com o trabalho sujo para cima, isso Macro nunca lhe perdoaria.
- Merda! - Murmurou. Estava zangado com o legado, mas estava
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também chateado consigo mesmo por se ter tornado amigo de Cato. Partiu um ramo e metodicamente, começou a arrancar as folhas do pau fino com que ficara na mão. Na
margem oposta do Tamisa, um grupo de homens das outras legiões estavam a despir as túnicas e a entrar na água. O bronzeado das faces, braços e pernas contrastava
grandemente com a palidez dos torsos e virilhas. Os gritos de choque perante a baixa temperatura da água, e depois os risos e a animação dos homens a brincarem,
atirando água uns aos outros, propagaram-se facilmente até ao local em que se encontrava Macro. Ficou ainda mais furioso, e afastou o olhar deles, seguindo a colina
até ao local onde os homens das coortes auxiliares acabavam de encher as valas funerárias, repletas de cadáveres já semiputrefactos devido ao calor. Os mortos, frios
para sempre, lado a lado com o entusiasmo vital dos jovens e despreocupados. Macro arrancou outro ramo de salgueiro e despojou-o furiosamente das folhas.
Apercebeu-se então de que alguém se dirigia para a margem do rio, embora ainda estivesse a uns cinquenta passos de distância. O vulto imenso de Fígulo agachou-se
na relva, uma palha pendurada nos lábios enquanto o gaulês contemplava o rio. Lentamente, o optio olhou em volta e reparou no centurião sentado sob a árvore; levantou-se,
hesitou um momento e depois começou a dirigir-se na direcção de Macro.
Merda. - Exclamou este de si para si.
Sentia-se tentado a dizer ao outro para desaparecer. Tinha vindo para ali para estar à vontade e pensar nas coisas sozinho e com tempo, e a perspectiva de ter que
conversar com o optio não lhe agradava de todo. Mas nesse momento compreendeu que também Fígulo devia estar a ruminar o destino de Cato. Acalmou-se, e acolheu-o
com um sorriso quando ele se aproximou. O optio aprumou-se e saudou-o.
- Deixa estar, miúdo. Não estamos de serviço. Podes deixar essas merdas de lado.
- Sim, senhor. - Fígulo mantinha-se à distância, a uns passos da ténue cortina de ramos e folhas que rodeava Macro.
Este suspirou.
- Tens alguma coisa para me dizer?
O optio baixou ligeiramente a cabeça e anuiu.
- Desembucha, então.
- Sim, senhor.
- E senta-te aqui à sombra, antes que o Sol frite esse teu cérebro de galinha.
- Sim, senhor.
Fígulo usou o braço fortemente musculado para afastar as ramagens, e por um momento tapou o Sol quando se deslocou, sobranceiro a
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Macro; depois agachou-se, mantendo-se a uma distância respeitosa do seu superior.
- Então?
Fígulo olhou para o centurião com uma expressão concentrada, as sobrancelhas claras franzidas e quase unidas, mostrando a frustração que o apoquentava.
- É sobre o centurião Cato, senhor. Não podem fazer-lhe isto. Foda-se, não é justo. Desculpe a linguagem, senhor.
Macro deitou-lhe um olhar calmo.
- Sim, tens que ter atenção a isso. Não fica bem a um oficial.
- Desculpe, senhor. - Fígulo acenou em concordância. - Não voltará a acontecer.
- Bom, então trata de não dizeres mais caralhadas, porra.
Fígulo pareceu ficar siderado, até que Macro afrouxou a severidade
que tinha posto na sua expressão facial e sorriu.
- Estava a brincar, miúdo.
- Ah, bom...
O sorriso de Macro evaporou-se.
- Quanto ao Cato, temo que não haja nada que possamos fazer. Nada. Ordens são ordens. Tens que te habituar a isso, agora que és centurião interino. Como é que vão
as coisas?
Fígulo encolheu os ombros com um ar miserável, e a sua mão dirigiu-se a uma ramada de salgueiro, antes de se aperceber que Macro estava a descascar um ramo, quase
sem dar por isso. O braço imobilizou-se, e depois descaiu de novo para o lado do corpo, quando o proprietário decidiu que não seria lá muito apropriado imitar tão
abertamente o superior hierárquico. Por isso, os dedos procuraram um calhau no meio da areia seca que formava a margem do rio naquele ponto. Sopesou-o, e depois
lançou-o para o meio da corrente, onde a sua queda provocou uma pequena explosão na superfície cristalina. Ficou a observar as ondas geradas pela queda a espalharem-se
e desaparecerem, antes de voltar a falar, sem enfrentar
Macro face a face.
- Deve haver qualquer coisa que possamos fazer, senhor.
- Por exemplo?
- Podemos ir falar com o legado.
Macro abanou a cabeça.
- Já te disse, ele não vai mudar de opinião.
- Então com o general.
- Pior ainda. Aliás, se nos ouvisse uma palavra de protesto que fosse, o Pláucio provavelmente atirava connosco também para a prisão. Além disso, - Macro encolheu
os ombros, - o que é que podíamos dizer? Que
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não é justo? Não adiantava nada. A coorte fez asneira, e de uma maneira que deixou toda a sensação de que foi por falta de tomates para combater os bretões. Ninguém
vai mexer uma palha para ajudar a Terceira Coorte.
- Mas nós não fugimos. O Máximo ordenou-nos que recuássemos E foi em primeiro lugar por causa dele que não chegámos ao vau a tempo. Ele é que devia ter sido castigado,
não Cato e os rapazes, senhor.
Macro voltou-se de rompante para o optio.
- Achas que não sei isso tudo? Pensas que me estou nas tintas para eles? Digo-te, Fígulo, a porra da legião toda sabe muito bem como as coisas se passaram. Aliás,
ficaria espantado se não acontecesse o mesmo com todo o exército. Mas alguém tem que pagar por este fiasco de merda, e o destino escolheu Cato. Não é justo, tens
toda a razão. É azar, puro e simples. Dá-te volta às entranhas, eu sei, a mim também.
Os dois homens voltaram-se de forma a observar as diminutas figuras que se divertiam na outra margem do rio, e então Macro pôs-se a fazer garatujos na poeira com
a ponta do ramo que descascara. Pigarreou.
- Mas sabes que mais? Tens razão. Alguém devia tratar desta situação...
? ? ?
À medida que a frescura da noite se abatia sobre a terra, Cato começou a tremer. Doía-lhe terrivelmente a cabeça. Tinha sido forçado, como os outros homens, a estar
todo o dia sentado sob o Sol abrasador, e as partes expostas da pele mostravam as consequências, parecendo esticadas e sensíveis. Só ao fim do dia é que o céu tinha
ficado encoberto, e o ar começara a ficar húmido, anunciando chuva. O centurião tomou este facto como mais um sinal de que os deuses o tinham abandonado por completo:
depois de um dia de tortura sob um sol escaldante, uma noite fria e molhada.
Um dos escravos tinha trazido alguns cantis de água fresca do rio, e a cada homem tinham sido permitidos alguns goles, para molhar a garganta. Mas não lhes tinha
sido dada qualquer comida. Quando as rações escasseavam, os condenados eram os primeiros a ficar sem alimentação. Fazia sentido, concordou Cato. Era o procedimento
mais lógico.
A única coisa lógica, aliás, no meio dos acontecimentos presentes. O facto de nada ter feito para merecer a punição que lhe seria aplicada na alvorada que se aproximava
atormentava-o sobremaneira. Tinha enfrentado o inimigo em batalhas em que um momento de desatenção lhe poderia ter custado a vida. Tinha planeado e executado uma
missão desesperada para encontrar e resgatar a família do general, detida numa fortaleza dos druidas. Tinha-se arriscado a ser queimado vivo para salvar Macro numa
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aldeia germânica, há quase dois anos atrás. Cada uma dessas acções tinha-o feito correr tremendos riscos, que ele tinha compreendido e aceitado. Ter sido morto numa
dessas ocasiões teria sido uma consequência natural, razoável, face aos perigos em que incorrera. Era esse o preço que os homens na sua profissão tantas vezes pagavam.
Mas isto? Esta execução a sangue-frio, pensada apenas para dar um exemplo aos outros legionários? Um exemplo de quê, na realidade? Um exemplo do que esperava aos
cobardes. Mas ele era tudo menos um cobarde. Claro que tinha tido medo, mais vezes do que era capaz de admitir
- até tinha ficado aterrorizado em várias ocasiões. Que, apesar disso, tivesse continuado a lutar, só podia ser uma prova de algum tipo de coragem, reflectiu. Sim,
coragem.
E a escaramuça no vau não tinha sido excepção. Tinha combatido com a mesma vontade, sem se esconder, sempre na primeira linha com os seus homens, lutando ao seu
lado. Nunca se escondera nas fileiras recuadas, lançando gritos de encorajamento com a voz de uma doninha, ameaçando ferozmente aqueles cuja cobardia não fosse protegida
pela patente. Ser designado para a execução por um crime que não cometera, por um processo tão cego e insensível aos méritos de um homem como um sorteio, era o mais
grotesco destino que conseguia imaginar.
Os primeiros pingos de chuva tombaram-lhe levemente na pele, mas depressa a erva em redor se viu martelada por uma bátega de água. Um vento frio fê-la ondular, e
agitou as frondosas ramadas das árvores que cresciam ao pé do rio. O jovem centurião deitou-se de lado e enroscou-se, numa tentativa de se manter quente. Os laços
de cabedal que lhe amarravam pulsos e tornozelos tinham-lhe esfolado a pele, por isso, todos os movimentos eram dolorosos. Tentou manter-se imóvel e fechar os olhos,
mesmo sendo aquela a última noite que vivia. Sempre pensara que a iminência da morte o levaria a querer aperceber-se de todos os mais ínfimos pormenores do mundo
à sua volta, a querer apreciar até ao fim toda a beleza da vida.
- Agarra o dia. - Murmurou, e depois não conseguiu impedir uma gargalhada amarga. - Uma porra.
Os sentidos não lhe traziam nenhuma pungente apreciação do mundo, nenhum prazer de viver, apenas a fúria incessante que lhe despertava a situação, e o ódio a Máximo
que lhe ardia com intensidade pelas veias. O centurião-chefe viveria, teria a possibilidade de se redimir do falhanço da sua liderança no vau, enquanto Cato teria
outro rio para atravessar, este sem regresso, sem alguma vez poder provar a sua inocência em relação às acusações pelas quais seria executado.
A noite caiu por completo, sem que a chuva e o vento amainassem, e Cato permaneceu prostrado, a tremer, presa de ondas sucessivas de
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pensamentos e imagens deprimentes. Em redor, quase todos os prisioneiros se mantinham igualmente em silêncio. Alguns conversavam em tons soturnos, e um dos homens
passava por acessos de delírio choroso, consequência do trabalho do sol escaldante nos nervos fracos. De quando em vez, chamava pela mãe, antes de soçobrar num chorrilho
de lamentações chorosas. Mais longe, o resto da Terceira Coorte não dava sinal de vida, descansando amargurada nas suas tendas. Os únicos sons de alegria provinham
do campo da Segunda Legião; gritos de triunfo e desapontamento de homens que jogavam aos dados, alguns coros de canções entoadas em surdina, e as trocas de senhas
entre as sentinelas e quem quer que se aproximasse. Tudo isto a apenas cem passos de distância, noutro mundo.
No céu sem Lua, espreitando por entre as nuvens, as estrelas dardejavam na escuridão, relembrando-lhe a sua insignificância em comparação com os eventos no mundo
ao seu redor. Quase tinha alcançado um estado de aceitação do seu destino quando soou o aviso de mudança de turno de guarda. Um breve toque das trombetas do quartel-general
da legião, marcando a passagem da segunda hora da noite, fez com que os dois legionários que tinham estado de guarda aos prisioneiros se impacientassem perante a
demora dos seus substitutos. A chuva continuava a pingar-lhes dos capacetes, enquanto aconchegavam as capas impermeabilizadas sobre os ombros.
- Estão atrasados. - Rosnou um dos guardas. - Quem é que nos vem substituir, afinal?
- Dois gajos novos, o Fábio Afero e o Nípio Césio.
- Filhos da mãe de recrutas. - O primeiro homem cuspiu. - Não se consegue nada deles, hoje em dia. Os sacanas mal conseguem distinguir entre os joelhos e os cotovelos.
- Tens toda a razão, Vássio. Alguém lhes devia mostrar como são as coisas. Se não fossem esses merdosos, a porra da coorte não se tinha metido nesta alhada.
- Pois, do que eles precisam é de uma boa carga de porrada. Olha, lá vêm eles.
Da escuridão emergiram duas figuras; os sons das suas botas a raspar na relva mal se conseguiam ouvir sobre o ruído da chuva e do vento.
- Foda- se, porque é que demoraram tanto tempo?
- Uma caganeira! - Respondeu uma voz, e ouviu-se uma curta risada do outro homem, enquanto o par avançava para render os seus camaradas.
- Espera aí. - Murmurou Vássio, esforçando-se por distinguir as silhuetas que se aproximavam. - Aquele grandalhão não é de certeza o Césio, nem o Afero. Quem vem
lá?
- Render da guarda!
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- Quem são vocês?
Vássio inclinava-se para a frente, para inspeccionar os recém-chegados, quando um punho irrompeu pela escuridão e lhe atingiu o queixo com um som de estalo. Ficou
cego pelo clarão que lhe passou pela vista, e depois esqueceu tudo, ao deslizar para o solo, inconsciente.
- Que raio de...? Mas é o Fígulo...
A mão do segundo guarda tinha-se deslocado por instinto para o punho da espada, mas esta não tinha saído mais do que um palmo da bainha antes de ele ser também derrubado,
caindo com um som de ar a ser exalado.
- Aaahh! - Resmungou Fígulo, sacudindo a mão. - O sacana tinha um queixo de pedra.
- Bem, caiu que nem uma pedra, isso é certo. - Macro pousou o saco que transportava, fazendo um ruído surdo de metais. - Não gostaria nada de estar do lado errado
do teu punho.
Fígulo sorriu.
- Pois, como aqueles coitados que deitámos abaixo junto à tenda dos abastecimentos.
- Precisamente. Muito engraçado. Mas este tipo reconheceu-te. Sabes o que isso quer dizer?
- Sim, senhor, sei-o muito bem. Podemos continuar?
- Sim... Cato! - Macro chamou pelo amigo sem elevar a voz.
- Cato! Onde estás?
Várias das figuras enroscadas no solo tinham-se soerguido quando se aperceberam de que se passava algo de estranho. Uma onda de excitação nervosa espalhou-se entre
os prisioneiros, que começaram a trocar sussurros ansiosos.
- Calados! - Avisou Macro, tão alto quanto se atreveu. - Assim, sim... Cato!
- Aqui! Estou aqui!
- Baixinho, miúdo! - Macro dirigiu-se à voz que escutara e esforçou-se por identificar o proprietário, percebendo finalmente que o vulto alto e magro era realmente
o seu jovem amigo. - Queres que toda a gente oiça? Os prebostes caem-nos em cima antes de nós darmos por isso.
- O que está aqui a fazer? - Perguntou Cato, abismado.
- Não és capaz de adivinhar? Tu e o resto do pessoal vão fugir. Com o Fígulo.
- O Fígulo?
- Uma das sentinelas percebeu que era ele, por isso tem mesmo que ir com vocês. Tens que tentar. Tu e quem mais quiser fugir.
- Fugir? - Cato sussurrou. - Está doido?
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- Como uma galinha sem cabeça. E como os imbecis que vos puseram aqui. Portanto, bate tudo certo. - Macro empunhou a adaga. - Põe as mãos aqui onde eu as veja. Não
te quero cortar os pulsos.
Cato ergueu os braços, mas parou, e voltou a baixá-los.
- Não.
- O quê? - Espantou-se Macro em voz alta, o que provocou um
aviso de Fígulo, que se debruçava sobre outro dos prisioneiros enquanto lhe cortava as cordas. Várias figuras amontoavam-se desesperadas em redor do optio, com as
mãos esticadas para que lhes cortassem as amarras.
Cato abanou a cabeça.
- Disse que não. Macro, não pode fazer isto. E se eles descobrem que nos auxiliou a fugir?
- Auxiliar? Diria que fiz um bocadito mais do que isso.
- Sim, e não o conseguirá ocultar.
- Deixa lá, põe é as mãos a jeito.
- Não. Pense nisto. Fugimos para aonde? O que lhe sucede se formos recapturados e eles obrigarem alguém a falar? Também seria executado. Deixe-nos, enquanto pode.
Foi a vez de Macro abanar a cabeça.
- É demasiado tarde para isso. Agora, levanta as mãos.
Cato fê-lo, relutantemente, e Macro agarrou-lhe nos pulsos, localizando os nós. Depois de os encontrar, colocou cuidadosamente a lâmina entre a pele e as tiras de
cabedal e cortou. Pouco depois, as tiras caíram para os lados, e Cato esfregou os pulsos esfolados.
- Pega nisto e começa a libertar os outros. Têm que se pôr a andar depressa.
- E vamos para aonde?
- O mais longe possível. Um sítio onde não possam ser encontrados.
- E depois?
- Foda-se, sei lá.
- E até onde julga que um bando de homens desarmados consegue ir?
- Desarmados, não. - Macro sacudiu o saco que trouxera. - Trouxe-lhes umas espadas. Suficientes para todos.
Cato levantou os olhos das cordas que estava a cortar em redor dos tornozelos.
- É esse o seu plano?
- Tens um melhor? É isso, ou ficar aqui à espera da alvorada para serem executados.
Grande escolha. - Cato abanou a cabeça. A execução pela
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manhã, ou a morte inevitável às mãos dos grupos perseguidores, ou dos bretões? A situação não tinha registado grandes melhorias nos últimos tempos, e agora até Fígulo
se tinha juntado ao grupo de condenados. O mesmo sucederia a Macro, se a sua participação na fuga viesse a ser descoberta. Os cordões que lhe prendiam os tornozelos
cederam, e Cato esfregou vigorosamente as articulações.
- Bom, e agora?
- Segue para ocidente. Para os pântanos. É a única hipótese.
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XXI
Macro disse aos homens para se manterem sentados e quietos enquanto ele e Fígulo cortavam as cordas que os prendiam. Os legionários já soltos esfregavam os tornozelos
e os pulsos e, penosamente, arriscavam-se a esticar os membros, enquanto esperavam. Não deixavam de olhar em redor, aterrorizados pela possibilidade de ser descoberta
a sua tentativa de fuga. O centurião ia distribuindo espadas ou adagas pelos homens, até que as armas que transportava no saco se esgotaram. Um legionário que não
parava de se agitar antes de ser solto, deixou-se ficar imóvel no solo depois de se ver libertado. Recusou-se a aceitar a espada que Macro lhe entregava.
- Pega nisso! - Vociferou Macro em voz baixa. - Pega na merda da espada! Vais precisar dela.
O homem voltou-lhe as costas, rodando e aninhando-se numa bola; depois começou a gemer, num ruído que foi subindo até se tornar num som agudo e angustiante. Macro
espreitou por cima do ombro, mas apercebeu-se rapidamente que não havia qualquer movimento junto às linhas de tendas reluzentes. Voltou de novo a sua atenção para
o homem encolhido no solo, e aplicou-lhe um violento pontapé nas costas, entre os ombros. O homem esticou-se e gritou. Macro ajoelhou-se imediatamente sobre ele,
pegando na espada que tinha ficado abandonada na lama. Colocou a ponta sob o queixo do outro, pressionando-o.
- Calado! Mais um pio, e será o último som que fazes.
O legionário atirou a cabeça para trás, os olhos esbugalhados de terror, enquanto esgravatava o solo numa tentativa de se afastar de Macro.
- Está quieto! - Ameaçou o centurião, furioso. - Está quieto!
- Senhor, deixe-o! - Murmurou Cato. - Ele que fique para aí.
Macro olhou ainda um bocado para o sujeito, com desprezo, e depois levantou-se para falar com o outro centurião.
- Não, ele não pode ficar para trás. Depressa lhes contaria que eu estive metido nisto. Têm que o levar convosco.
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Cato assentiu, e Macro embainhou a espada.
- Bom, levanta-o.
- Senhor, é melhor que saia daqui.
- Assim que vocês se puserem a andar. Vamos, para a paliçada.
- Mas assim vamos sair mesmo à frente do campo principal.
- É melhor do que tentarem encontrar o caminho pelo meio das tendas. Alguém vos há-de ouvir, especialmente se levarem este pedaço de merda. - Macro empurrou com
o pé o homem que continuava a lamentar-se no solo. Cato olhou-o e, por um momento, deixou-se levar pela compaixão pelo homem aterrorizado. Abaixou-se e sacudiu gentilmente
o ombro do legionário.
- Soldado, como te chamas?
O homem virou a cabeça na direcção da voz, permitindo que Cato tivesse um vislumbre de dentes partidos numa boca disforme.
- Próculo... Próculo Segundo.
- Próculo, quando falares comigo, tratas-me por "senhor". Entendido?
- S-sim, senhor.
- Agora tens que te levantar. - Cato falava num tom baixo, tentando revestir as palavras com uma determinação férrea. - Não vamos deixar ninguém para trás para morrer.
Vá, de pé.
Puxou com firmeza pelo braço do homem e ajudou-o a levantar-se, colocando-lhe nas mãos a espada que Macro deixara no solo há poucos momentos atrás.
- Pronto. Agora, aguenta-te... Estás melhor?
- Sim, senhor. Acho que sim.
- Bom. - Cato deu uma palmada amigável no ombro fortemente musculado do legionário. - Agora, vamos.
Os homens recém-libertos ergueram-se e seguiram Macro enquanto o centurião escolhia o caminho para o baluarte. Cato olhava para a esquerda e para a direita, mas
não avistou ninguém junto ao pequeno monte de terra.
Macro apontou para a base do mesmo.
- Devem ser capazes de passar pela paliçada e pelo fosso sem ninguém dar conta. Pelo menos, ninguém neste campo.
Rastejaram pela face interna do baluarte acima, e quando alcançaram as estacas que tinham sido cravadas no cimo, Macro voltou-se e fez sinal com a mão para que todos
ficassem imóveis. Houve alguma confusão quando os homens chocaram uns com os outros ao parar de repente, mas quase não se ouviu nada; Macro virou-se outra vez para
a paliçada. Agarrando uma das estacas com ambas as mãos, começou a puxar e a
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empurrar com toda a força, fazendo sobressair as veias do pescoço maciço. Finalmente, com um ruído abafado, conseguiu arrancar a estaca da terra compactada. A segunda
saiu mais facilmente, e foi colocada no solo ao lado da primeira, silenciosamente. Cato olhava em redor, temeroso, tentando limpar a chuva das pálpebras para melhor
procurar qualquer indício de que o alarme ia ser dado. Mas os legionários da Terceira Coorte dormiam, ignorando por completo a tentativa de fuga dos condenados.
Quando mais uma estaca foi arrancada, o buraco assumiu dimensões suficientes para permitir a passagem de um homem. Cato virou-se e procurou o enorme vulto de Fígulo.
- Optio, passa primeiro. Desce para o fosso e dirige-te para o canto do campo. Mantém-te agachado.
Fígulo anuiu e passou pela brecha, deixando-se imediatamente cair de barriga no solo e rastejando pelo forte declive até ao fosso defensivo. Cato mandou outro homem
avançar, e, um a um, os legionários passaram pelo buraco e lançaram-se para o fosso, espalhando-se ao longo deste. Cato foi o ultimo homem a abandonar o campo. Virou-se
para Macro, e os dois homens apertaram as mãos desajeitadamente. Cato apercebeu-se de que havia poucas possibilidades de voltar a ver o amigo naquela vida, e a ideia
de não ter ao seu lado a figura poderosa e protectora de Macro encheu-o de nostalgia. Mas tinha que se mostrar forte. Por muito negro que fosse o futuro daquele
pequeno grupo de fugitivos, era dele que todos dependiam. Cato obrigou-se a sorrir na direcção do vulto escuro e ensopado que se agachava à sua frente.
- Senhor... obrigado.
Macro fez um gesto de cabeça e depois empurrou gentilmente Cato na direcção da abertura.
- Despacha-te. Tem que estar o mais longe possível daqui quando for descoberta a vossa fuga.
- Certo.
Deixou-se escorregar pela rampa lamacenta. Deitou uma olhadela à paliçada, mas Macro já lá não estava. Avançou de gatas, passando pela linha de homens que se encontravam
no fosso, cobertos de lama. Em redor, a chuva abatia-se ferozmente sobre a relva, e cada pingo que atingia os charcos que se tinham formado no fosso provocava uma
pequena explosão de salpicos. Por fim, Cato lá chegou ao pé de Fígulo, e apontou para o canto da fortificação. Os homens rastejaram nessa direcção, seguindo o centurião.
Quando este alcançou o ponto desejado, levantou a cabeça devagar e espreitou cuidadosamente, esforçando a vista na procura de sinais da presença das sentinelas que
deviam ocupar posições na paliçada do campo principal. Algumas formas indistintas moviam-se lentamente ao longo dos
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baluartes, mas Cato assumiu que estava suficientemente escuro para que passassem despercebidos, desde que se movessem lenta e cuidadosamente O perigo residia em
Próculo. O homem podia facilmente entrar em pânico e acabar por denunciar os seus camaradas. Cato lançou um olhar a Fígulo, por cima do ombro.
- Vamos escapar por aqui. A erva é alta, e dar-nos-á alguma cobertura. Passa a palavra, todos atrás de mim, e bem agachados.
Sim, senhor.
- Fica junto ao Próculo. - Cato baixou a voz, de modo a que mais ninguém o escutasse. - Se ele entrar em pânico, cala-o.
- Calo-o?
- Faz o que for preciso. Percebido?
- Sim, senhor.
Cato virou-se, olhou uma última vez para os baluartes, e depois fixou a atenção num grande maciço de carvalhos em que já tinha reparado antes, quando tinham sido
enviados grupos de homens para recolher lenha. Então, começou a avançar de gatas pelo meio da erva alta, olhos e ouvidos sempre atentos ao menor sinal de perigo.
Atrás dele começaram a emergir do fosso os primeiros legionários. Um a um, todos os condenados o seguiram, com os corações aos sobressaltos. Fígulo foi o último,
empurrando Próculo à sua frente. Este estava aterrorizado, e parava fcempre que escutava algo que lhe soasse a ameaça, lançando-se sobre o solo e abraçando a terra
com toda a força, até que Fígulo lhe dava um incentivo com a ponta da espada, fazendo-o avançar mais uns metros.
Cato já tinha percorrido cerca de dois terços da distância que o separava do bosque quando fez uma pausa e levantou a cabeça para espreitar na direcção do campo
da Segunda Legião. Ainda não tinha sido dado o alarme. Preparava-se para reatar o avanço quando sentiu uma vibração no solo, através dos dedos espalmados.
- Quietos! - Avisou. - Para baixo!
À medida que a ordem foi sendo passada, os homens imobilizaram-se, e então Cato esforçou os ouvidos para tentar identificar a origem das vibrações cada vez mais
próximas. À sua volta, a chuva não dava tréguas, e o vento fazia barulho nos ouvidos quando fazia oscilar as pontas das longas folhas de erva. Nesse momento, surgiu
um vulto escuro na orla do bosque a que se dirigiam. Logo se lhe juntou outro, e depois uma série deles encadeados. O som de um cavalo a resfolegar propagou-se pela
planície, até chegar à audição dos homens escondidos na erva. Cato encolheu-se ainda mais, mas esforçou a vista para tentar apreender mais detalhes. Os cavaleiros
mudaram de direcção, de repente, dirigindo-se precisamente para onde estava o centurião.
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- Merda! - Soltou, enquanto as mãos se lhe dirigiam por instinto para o punho da espada que tinha presa ao cinto. Mas depois compreendeu que não havia hipótese de
que os cavaleiros os tivessem detectado. Estava demasiado escuro para tal. Ainda assim...
- Mantenham-se baixos! Passem palavra. Escondidos, mas preparados para lutar. Ninguém se mexe antes de eu fazer alguma coisa.
Os legionários encolheram-se contra a terra molhada, à medida que a ordem foi sendo passada ao longo da coluna. Cato voltou de novo a sua atenção para os cavaleiros,
agora a menos de duzentos passos. Calculou que eram pelo menos dois esquadrões de batedores. Homens em número mais do que suficiente para os aniquilar por completo.
Continuavam a aproximar-se, já que se dirigiam ao campo, desconhecendo em absoluto a presença dos fugitivos - pelo menos por mais alguns momentos, considerou Cato
com amargura, enquanto se espalmava contra o solo, as bochechas a tremer devido às vibrações causadas pela aproximação de tão largo número de montadas.
Na cauda da coluna, Fígulo esforçou-se para agarrar a ponta da túnica de Próculo.
- Foda-se! Deixa-te estar em baixo!
- Não! Não! Temos que fugir. Corram!
O legionário começou a erguer-se, tentando libertar-se das mãos que o aprisionavam.
- Larga-me!
Fígulo avaliou a aproximação dos cavaleiros, e quase por instinto lançou-se sobre Próculo. Alcançou-o, e quando caíram os dois sobre o solo, abafou-o sob o seu corpo.
O optio deu com o punho da espada na têmpora do Outro, que imediatamente perdeu os sentidos. Mas Fígulo não arriscou, e deixou-se estar deitado em cima dele, o gume
da espada encostado à garganta de Próculo, enquanto os cavaleiros continuavam a aproximar-se.
Quase no último instante, a coluna montada afastou-se dos homens deitados no meio da erva, e começou a passar a pouco mais de seis metros das figuras escondidas.
A cabeça de Cato estava de lado, e ele mal se atrevia a respirar enquanto observava as escuras figuras que passavam envoltas nas capas e incitavam as montadas, ansiosos
por uma tenda seca que lhes proporcionasse um refúgio da chuva e do vento. A coluna prosseguiu o seu caminho, perfeitamente inconsciente da presença dos legionários,
embora parecesse a Cato que o último dos cavaleiros nunca mais aparecia. No instante em que já sentia uma vontade quase incontrolável de se levantar e se lançar
sobre os batedores montados, a retaguarda da coluna passou finalmente por ele. Observou as costas do último cavaleiro, viu como ele se dirigia para o campo, e suspirou
fundo, deixando que se libertasse
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alguma da tensão que lhe amarrava os músculos como os cordões da bolsa do centurião da messe. Esperou que a coluna estivesse tão afastada que os detalhes já não
se conseguissem distinguir, e então passou palavra para que os homens prosseguissem a caminho do bosque.
Levou quase uma hora até que Fígulo, o último da fila, se juntasse aos outros que esperavam nas sombras sob as ramadas gotejantes dos carvalhos. Próculo tinha recobrado
a consciência, mas ainda estava meio zonzo, e nem se lembrou de protestar quando o optio o empurrou para junto dos outros legionários. Cato olhou para o forte mais
uma vez, mas não havia qualquer indicação de que o alarme já tivesse sido dado. Pelas suas contas, não tinham mais do que umas quatro horas para progredir a coberto
da noite: o suficiente para pôr talvez uns quinze quilómetros entre eles e os primeiros perseguidores que saíssem do campo. A orla do pântano, tanto quanto se recordava,
estava pelo menos a vinte e cinco quilómetros de distância. Ia ser complicado.
E depois?
Os perigos e incertezas do futuro pesavam no coração de Cato, como se fossem uma saca de pedregulhos. Se fossem apanhados pelos seus antigos camaradas, voltariam
a ficar destinados à execução, e uma lapidação ou um espancamento até à morte seriam as formas mais fáceis de tal acontecer, embora fosse de prever que o general,
furioso, arranjasse alguma maneira mais tenebrosa de os supliciar. Provavelmente, a crucificação, garantia de uma morte lenta e dolorosa. Por outro lado, se fosse
o inimigo a aprisioná-los, os romanos poderiam estar certos de que sofreriam alguma forma de tortura bárbara: seriam queimados vivos, talvez, ou esfolados, ou lançados
aos cães. E se escapassem aos dois lados, teriam que se manter escondidos nos pântanos, reduzidos a comer o que conseguissem encontrar ou roubar. Uma época de fome,
portanto, até que chegasse o Inverno e acabasse com eles.
Por momentos, Cato esteve tentado a voltar para trás e a aceitar
o menos penoso dos destinos possíveis. Mas imediatamente se amaldiçoou por ser um tolo sem espírito de luta. Estava vivo, e isso era o que importava. E lutaria pela
sua vida com todas as forças, pois até a mais miserável das vidas era preferível à escuridão e ao esquecimento da morte. Não tinha grande fé nas promessas de uma
vida para lá da morte que eram oferecidas por Mitras, o misterioso deus oriental que, em segredo, tantos seguidores conquistara entre os homens da legião. A morte,
quanto a ele, era final e absoluta, e a única coisa que importava era resistir ao seu gélido abraço enquanto houvesse um fôlego, por pequeno que fosse, dentro do
seu corpo.
Cato libertou-se das suas mórbidas reflexões e levantou-se, o corpo
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encharcado a tremer sob as mordeduras da ventania que começara a soprar.
- De pé! - Ordenou e, sem esperar que o resto dos homens obedecesse, o centurião virou as costas ao campo e caminhou na direcção do único refúgio possível,
o tenebroso pântano que se estendia para ocidente.
182
XXII

Macro estava perfeitamente desperto quando soou o alarme. Desde que tinha regressado à tenda, não tinha pregado olho. Para ele era uma situação nova; como acontecia
com a maior parte dos veteranos, normalmente caía num sono profundo assim que apoiava a cabeça. Mas não havia nada de normal naquela situação. Cato andava algures
pelo meio da paisagem, com pequeníssimas hipóteses de sobrevivência, e ele mesmo também se encontrava numa situação muito perigosa. No momento em que os ajudantes
da messe fossem encontrados na tenda dos equipamentos, amarrados e amordaçados, tornar-se-ia evidente que alguém tinha auxiliado os prisioneiros na fuga. E se fosse
descoberto o seu envolvimento, então seria ele a tomar o lugar daqueles que tinham estado à espera da morte. Sobre isso não lhe restavam muitas dúvidas. Centurião
ou não, com uma folha de serviço notável, com o exemplar espírito combativo que exibia... Seria executado.
A primeira ténue pincelada de luz espalhava-se pelo céu, dando-lhe uma palidez cinzenta que Macro conseguia avistar por entre as abas da sua tenda. A chuva ainda
caía, já não com a força com que tombara durante a noite, mas ainda assim martelando incessantemente o couro sobre a sua cabeça, e produzindo um som de água corrente
algures lá fora. Ouviu-se um grito distante, chamando a centúria de piquete. Um grupo de homens passou a correr, silhuetas escuras
na luz que crescia, os pés a escorregar e chapinhar na lama.
Macro decidiu que seria melhor sair da tenda e ser visto a responder ao alarme. A sua sobrevivência dependia de ser capaz de se mostrar tão surpreendido como os
outros homens. Lançou os pés para fora da cama de campanha e procurou as botas. Quando as suas mãos já se fechavam sobre o cabedal macio, fez uma pausa, largou-as
e, abaixando-se, colocou a cabeça fora da tenda.
- Tu! - Apontou para um dos homens que passavam a correr.
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- Por que carga de água é este chinfrim todo?
O legionário parou e colocou-se em sentido, ofegando.
- Senhor, são os prisioneiros.
- O que é que têm?
- Desapareceram, senhor. Fugiram.
- Uma porra! Como é que isso é possível?
O legionário encolheu os ombros, incapaz de dar uma explicação. Não fazia ideia, e não era a ele que alguém poderia pedir os detalhes.
Macro acenou.
- Muito bem. Podes prosseguir.
- Senhor! - O soldado fez a saudação regulamentar e depois girou na direcção do estandarte da sua unidade, que era lentamente agitado à distância, sobre as cristas
da linha de tendas. Macro ficou a vê-lo afastar-se, reparando na dificuldade do homem em progredir rapidamente sobre a massa gelatinosa de lama que rodeava as tendas.
Eram boas notícias. Assim, a perseguição a Cato e aos homens seria lenta e difícil. Recolhendo de novo ao interior da tenda, o centurião apertou rapidamente as botas
e colocou a pesada capa sobre os ombros. A lã tinha sido untada há pouco tempo e, por isso, as dobras da capa seriam capazes de evitar a penetração da maior parte
da água. Cato e os homens não tinham tal conforto, e àquela hora deviam estar a tiritar, com as túnicas ensopadas, reflectiu Macro, sentindo um peso na consciência.
Mas não tinha havido tempo para pegar em mais nada para lá das armas, e mesmo isso já tinha sido um enorme risco para ele e para Fígulo. Cato teria que se aguentar,
e agradecer aos céus o facto de ainda estar vivo, ponderou Macro enquanto se dirigia para junto dos homens que se aglomeravam ao pé do estandarte.
O centurião Máximo apareceu a correr, juntando-se aos seus oficiais, com a capa dobrada debaixo do braço.
- O que se passa? A que se deve o alarme?
Túlio, o comandante da centúria de serviço, endireitou as costas e deu um passo em frente.
- Senhor, os prisioneiros escaparam.
- Escaparam? - Máximo estava estupefacto. - Não pode ser. Mostra-me lá isso.
Túlio virou-se para o terreiro onde os prisioneiros tinham ficado, e os seus homens afastaram-se para dar espaço aos oficiais. Estes avançaram até à área de contenção,
aproximando-se das duas sentinelas que Fígulo tinha deixado inconscientes. Estavam sentados no chão, a beber dos cantis dos homens que os tinham libertado.
- Mas o que raio estão vocês a fazer? - Berrou Máximo. - De pé, porra!
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Os dois homens puseram-se de pé com dificuldade e puseram-se em sentido como os outros legionários, quando os oficiais se dirigiram para junto deles. A princípio,
o comandante da coorte ignorou-os, dedicando antes atenção à extensão de relva pisoteada que marcava a área em que os prisioneiros tinham sido mantidos. Deu três
passos rápidos, baixou-se e recolheu do chão alguns pedaços de cabedal; examinou-os de perto, antes de os mostrar como um troféu aos outros oficiais.
- Foram cortados.
Macro engoliu em seco e anuiu.
- Alguém lhes deve ter dado uma ajuda.
- Assim parece. - Máximo resolveu interrogar as sentinelas. - Vasso, o que é que se passou aqui?
O idoso legionário manteve o olhar fixo na distância, não se atrevendo a enfrentar o comandante.
- Então? - Voltou a inquirir Máximo. - Desembucha.
- Senhor, eu e aqui o miúdo fomos surpreendidos. Eles atacaram-nos no meio da escuridão, foi isso.
- Eles? Quantos eram?
- Dois, senhor! - Exclamou o mais jovem dos legionários. - E grandes como o caraças.
- Reconheceram-nos?
- Senhor, estava escuro... - Respondeu o veterano. - Não posso garantir.
- Senhor, reconhecemos um deles. Era o Fígulo. - Adiantou o companheiro, ufano.
- Fígulo, o optio? - O comandante da coorte coçou o queixo.
- Era o optio de Cato. Faz algum sentido. Então e o outro tipo?
Macro obrigou-se a ficar imóvel enquanto esperava que o veterano respondesse.
- Não o consegui ver bem, senhor. Era mais baixo do que o Fígulo, mas isso é verdade para a maior parte dos homens, senhor.
- Estou a ver. - Máximo virou-se e fitou Macro. - Quero uma contagem dos efectivos da coorte. Descobre se falta mais alguém. Imediatamente!
Macro deixou-o, e pôs-se à procura do trombeteiro da unidade. Tal como seria de esperar, o homem tinha-se reunido à centúria de serviço, e empunhava o seu instrumento
de bronze que desenhava um largo arco. O centurião dirigiu-se- lhe.
- Toca a reunir!
A medida que as graves notas se espalhavam entre as fileiras de tendas, os homens da coorte que não tinham sido acordados anteriormente
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começaram a surgir à luz do dia e a atravessar o lamaçal para se juntarem às fileiras que se agregavam no interior dos baluartes. Os centuriões ocuparam as suas
posições à frente das respectivas unidades, enquanto os optios procediam a uma rápida contagem dos efectivos. Macro encarregou-se da centúria de Cato, que tinha
perdido não apenas o centurião mas também o
centurião interino.
Pouco depois, os oficiais foram levar a Máximo as informações recolhidas.
- Só falta o Fígulo? Mas as sentinelas falaram em dois tipos.
- Talvez estivessem a ver a dobrar? - Macro sorriu. - Uns copitos a mais...
- A mim não me pareceu que tivessem estado a beber. - Murmurou o centurião Túlio.
- A mim também não. - Concordou Máximo. - Bêbados não estavam. Portanto, parece é que um dos homens que ajudou os prisioneiros a escapar ficou para trás. E ainda
anda por aí.
- Talvez não, senhor. - Afirmou Macro. - Pode ter sido um dos escravos.
- Sim... Bem lembrado. Manda alguém contar os escravos.
Enquanto esperavam, Macro reparou no ar ansioso com que o seu
superior avaliava a aproximação da aurora. Então, apercebeu-se da razão para tal preocupação, e olhou na direcção do campo principal.
- Já não deve faltar muito para chegar o legado.
Máximo pigarreou e lançou uma curta e amarga gargalhada.
- O legado, o general, e a primeira coorte de cada uma das legiões. Vamos ser motivo de chacota geral.
- Duvido que o legado ache muita graça a isto. - Lembrou o centurião Túlio. - Vai mas é arrancar-nos os tomates e servi-los ao pequeno-almoço.
Macro anuiu.
- E isso é se tivermos sorte.
Nesse preciso instante, as trombetas fizeram-se ouvir do outro lado do rio, anunciando a mudança de turno que marcava o começo oficial do dia. Um momento depois
ouviu-se outro som, mais alto, vindo das trombetas da Segunda Legião. Máximo e os seus oficiais trocaram olhares nervosos; as coortes escolhidas para presenciarem
a execução da sentença estariam, àquela hora, a vestir apressadamente túnicas e a afivelar as armaduras. Dando-lhes o tempo necessário para formarem e depois para
marcharem através do rio e tomarem posição no espaço aberto no exterior dos baluartes da Segunda Legião, Máximo e os seus homens pouco mais tinham do que meia hora
antes que a verdade fosse conhecida. E depois disso, a ira dos
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oficiais superiores do exército abater-se-ia sobre eles como uma avalanche de granito.
Aproxima-se o legado! - Avisou o optio de serviço ao portão
- Guarda de honra, sentido!
Os ombros de Máximo descaíram. Não lhe seria concedido mais tempo, teria que enfrentar Vespasiano. Durante um momento, Macro teve pena do comandante, e sentiu-se
um tanto envergonhado por ter planeado a fuga. Mas logo se recordou de que a responsabilidade pela desgraça da coorte, e pela condenação de Cato e dos outros a uma
morte que não mereciam, era exclusivamente daquele mesmo homem. A expressão do seu rosto endureceu, ao mesmo tempo que uma capa de desprezo pelo centurião-chefe
lhe cobria o coração.
O optio no portão deu ordem para a abertura dos mesmos e depois apressou-se a tomar o seu lugar à frente da secção que ladeava a entrada no pequeno campo da coorte.
As madeiras rangeram quando as portadas deslizaram para dentro, e as figuras do legado e de alguns dos membros do seu pessoal tornaram-se visíveis ao aproximarem-se
do campo pela estrada enlameada.
Máximo alisou o cabelo e afastou algumas gotas de chuva que se tinham acumulado sobre os olhos.
- Bom, o melhor é acabar com isto de vez. Venham.
Os centuriões da Terceira Coorte aproximaram-se vagarosamente do portão, vergados ao peso da apreensão sobre a possível reacção do legado às notícias da fuga dos
condenados. Ao redor, a chuva continuava a cair sem pausa; apenas a suficiente para que se sentissem desconfortáveis e miseráveis, dando um toque final ao clima
de desolação que imperava.
Vespasiano passou rapidamente o olhar sobre a guarda de honra, e acenou ligeiramente para mostrar a sua satisfação. Uma ou duas manchas de lama, para lá das botas
que estavam, essas, completamente enlameadas; era aceitável. Virou-se para o optio.
- Muito bem. Podes mandar dispersar.
- Senhor! - O optio fez a saudação regulamentar, girou sobre os calcanhares e berrou a ordem como se estivesse na parada e não a curta distância dos homens. Os legionários
aprumaram-se e, depois de cumpridas todas as formalidades e receberem licença para tal, correram em busca de abrigo.
O legado desceu da sela e aterrou no solo sem problemas. Os cinco centuriões aprumaram-se, lançando os ombros para trás.
- Bom dia, senhores. Espero que todos os preparativos tenham sido realizados.
- Bem, senhor, foram-no, sim, mas...
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Vespasiano apercebeu-se imediatamente da hesitação do outro.
- Mas?
Macro deu uma olhadela na direcção de Maximo e viu como a cabeça lhe descaía, e ele se mostrava desalentado.
- Senhor, lamento informar que os prisioneiros fugiram.
O legado ficou absolutamente imóvel durante um instante, enquanto uma ruga se acentuava na sua testa larga; então, o cavalo mexeu a cabeça e puxou pelas rédeas que
ele ainda segurava, quebrando o encantamento.
- Fugiram? Quantos é que fugiram?
- Todos, senhor. - Reconheceu Máximo, desolado.
- Todos? Centurião, essa é difícil de engolir. Como é que podem ter escapado todos? Estavam a ser vigiados, não estavam?
- Claro, senhor.
- Então?
- Os guardas foram dominados por alguns cúmplices, senhor. Amarraram-nos e libertaram os prisioneiros, que fugiram pelos baluartes.
- Mandaste uma força em sua perseguição, espero?
Máximo mal conseguiu abanar a cabeça.
- Senhor, a fuga só agora foi descoberta. O alarme foi dado quando chegou a alvorada.
O legado cerrou um punho junto ao corpo. Por um instante fechou os olhos com força, enquanto lutava para controlar a raiva que a confissão do comandante da coorte
lhe causara. Inquiriu então:
- E não achas que seria boa ideia enviar imediatamente alguns homens à procura dos fugitivos?
- Sim, senhor. Imediatamente, senhor. Túlio, trata disso, depressa.
Enquanto o centurião corria para cumprir a ordem, Vespasiano estalou os dedos e chamou o tribuno-chefe. O oficial saltou imediatamente da sela e correu para o legado.
- Plínio, aquela patrulha montada mencionou alguma coisa de especial?
O tribuno Plínio pensou um momento, e depois abanou a cabeça.
- Não, senhor. Nada de extraordinário.
- Bem, então, quero que voltes ao campo e os mandes montar outra vez. Eles que procurem para sul, oeste e leste do rio. Se encontrarem alguns dos desertores, devem
tentar trazê-los vivos para que sejam castigados. Mas se houver resistência, os batedores têm a minha permissão para os liquidar logo ali. Entendido?
- Sim, senhor.
- Então vai e trata do assunto.
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O tribuno correu para o cavalo, saltou sobre a garupa do animal e puxou as rédeas, esporeando-o na direcção do campo principal. Os cascos lançaram grossas gotas
de lama na direcção do legado e dos centuriões da Terceira Coorte, e Macro encolheu-se quando um pedaço lhe salpicou a face.
- Desculpe, senhor.
Macro virou-se para ver quem o interpelava, e deparou com o homem a quem tinha atribuído a tarefa de saber quantos homens permaneciam no campo da coorte.
- Sim?
- Só há um homem cujo paradeiro é desconhecido. É o optio Fígulo. Todos os outros legionários e escravos estão no campo.
- Tens a certeza? - Macro arqueou as sobrancelhas.
- Sim, senhor. Mas há mais. Encontrámos alguns dos assistentes da messe amarrados na tenda dos equipamentos. Faltam algumas armas, senhor.
- Muito bem, estás dispensado.
Macro trocou um olhar desalentado com Máximo.
- Algum problema, centurião Macro? - Quis Vespasiano saber.
- Quero eu dizer, mais algum problema a adicionar à inacreditável sequência de asneiras com que esta manhã nos tem presenteado?
Macro anuiu.
- Temo que sim, senhor. Ao que parece, só o Fígulo é que desertou com os outros. Mas os guardas dizem que foram atacados por dois homens. Portanto, é de supor que
o segundo homem ainda esteja algures no campo.
- Então será melhor que o encontrem. - Avisou o legado, sem alterar o tom de voz. - Tenho a sensação de que o general Pláucio vai exigir a cabeça de alguém em compensação
por este desastre. E seria bem melhor oferecer-lhe a desse cúmplice do que uma das vossas, não concordam, senhores?
Ninguém lhe respondeu; os centuriões limitaram-se a olhar para o legado com expressões de total desalento e desespero. Nas suas costas passou Túlio com um grupo
de homens, que seguiu pela brecha que tinha sido feita na paliçada; com o equipamento completo, os legionários viram-se e desejaram-se para descer para o fosso com
alguma ordem; uma vez lá, começaram a seguir as marcas deixadas pelos fugitivos, que levavam à esquina do campo.
Vespasiano abanou a cabeça.
- Centurião Máximo, a situação está muito longe de ser brilhante. Não apenas se enterrou num monte de merda até ao pescoço graças a este inconcebível desastre, como
conseguiu arrastar-me consigo... Obrigado.
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Não havia nada que Máximo pudesse dizer. Um pedido de desculpas não teria rigorosamente qualquer utilidade e, aliás, o simples facto de abrir a boca só aumentaria
a carga de vergonha que ja lhe vergava os ombros. Portanto deixou-se ficar a olhar para o legado em silêncio, até que este, cansado, se virou e montou. Depois dirigiu-se
aos centuriões, com o
desprezo a escorrer-lhe dos lábios.
- Vou dar as notícias ao general, antes que ele atravesse o rio com as coortes das outras legiões, para virem assistir à execução. Parece-me que Áulio Pláucio não
receberá as novidades com grande entusiasmo. Se fosse a vocês, assegurava-me de que todos os meus assuntos estarão resolvidos.
Vespasiano fez o cavalo dar meia-volta e conduziu-o através do portão e pela estrada lamacenta, a caminho do campo principal. Os oficiais do seu estado-maior seguiram-no.
Enquanto faziam a curva no canto do campo da legião, um esquadrão de batedores montados aproximou-se, vindos da direcção oposta. Fizeram a curva e seguiram pelo
espaço entre os dois campos, precisamente na direcção em que Túlio e os seus homens continuavam a seguir as marcas da passagem dos fugitivos pela erva, que se dirigiam
ao bosque de carvalhos. Um movimento distante numa crista situada por trás do campo da legião atraiu a atenção de Macro, que avistou as figuras escuras de um outro
esquadrão montado a subir a encosta e a espalhar-se pelo terreno, enquanto se dirigiam para oeste.
- Será melhor que eles encontrem Cato e os homens bem depressa. - Murmurou o centurião Félix. - Em que direcção é que acham que eles foram?
- Oeste. - Afirmou António, sem hesitar. - Ou sudoeste. São as únicas direcções que fazem sentido.
- Mesmo para o coração do território inimigo? - Félix abanou a cabeça. - És louco?
- Para onde mais podiam eles seguir? Se fossem para leste, acabavam por dar de caras com as nossas tropas. Ou pelo menos seriam avistados e assinalados pelos nossos
aliados tribais. A única escolha possível é o oeste. Além disso, para esse lado há aquele enorme pântano de merda. Grande sítio para se esconderem.
- O caraças! Iam-se meter mesmo nas mãos do Carátaco, e toda a gente sabe o que os bretões fazem aos romanos que capturam.
- Ainda acho que é a melhor hipótese que eles têm. - Disse António com firmeza, e depois virou-se para Macro. - E tu, o que é que dizes?
Macro fitou-o em silêncio, depois olhou como que por acaso para os cavaleiros que desapareciam para lá da crista da colina que ficava do
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outro lado do campo. Limpou a garganta, de forma a disfarçar a terrível ansiedade que o roía por dentro.
- Oeste. É como dizes, é a melhor hipótese deles. Aliás, a única hipótese.
Félix não escondeu o desdém pela opinião que ouvira, e virou-se para Máximo.
- Senhor, e qual é a sua opmião? O que é que acha?
- Acho? - Máximo olhou em redor com uma expressão distante, e franziu o sobrolho. - O que é que eu acho? Acho que me estou a cagar para a direcção que eles tomaram.
O mal está feito, e caiu em cima de todos nós. Todos os oficiais desta coorte terão este episódio registado nas suas
fichas. É isso que eu acho.
Encarou os três centuriões com o lábio arreganhado e a amargura bem evidente. Por último, os seus olhos pousaram em Macro.
- E digo-vos mais uma coisa que acho. Se um dia descubro o filho da puta que ajudou aqueles cabrões a fugirem, hei-de o ver esfolado a sangue frio. Aliás, eu mesmo
me encarregarei disso.
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XXIII

- Temos que o deixar para trás. - Sugeriu Cato.
Fígulo fez um veemente gesto de negação com a cabeça.
- Não podemos fazer isso. Se o apanharem, fazem-no falar, de certeza. E depois executam-no, claro.
O optio fez uma pausa e olhou por cima do ombro, para o legionário que, sentado numa rocha à beira do riacho, massajava o tornozelo aleijado. Era o mesmo penedo
brilhante e escorregadio devido à chuva de onde, não há muito tempo, caíra. Um passo em falso devido à pressa, e o soldado exausto tinha escorregado sem remissão.
O impacto no solo tinha-lhe torcido o tornozelo de tal forma que, assim que voltara a tentar colocar algum peso sobre a articulação, tinha gritado de agonia. Não
se punha sequer a hipótese de ele continuar a caminhar. O dia tinha-os apanhado a cerca de quinze quilómetros do campo, pelos cálculos de Cato, mas a orla do pântano
ainda estava a quase dez. E o legado não deixaria de enviar os batedores montados à procura deles assim que houvesse luz suficiente para seguir as pistas que inevitavelmente
tinham deixado. Se queriam ter alguma possibilidade de sucesso na fuga, não poderiam perder mais tempo. E não havia forma de transportar o legionário lesionado sem
que isso os atrasasse e pusesse em risco as vidas de todo o grupo. Cato olhou o optio nos olhos.
- Não o vamos levar connosco. Não podemos. Ele tem que se arranjar sozinho, percebido?
- Senhor, isso não está certo. - Replicou Fígulo. - Não serei cúmplice da morte daquele homem.
- Ele já estava marcado para morrer, lembras-te? Tu e o Macro apenas lhe concederam mais umas horas de vida. Optio, já tomei a minha decisão. Não voltes a questionar
as minhas ordens.
Fígulo devolveu-lhe o olhar em silêncio por algum tempo, antes de
falar.
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- Ordens? Senhor, já deixámos de ser soldados. Agora não Passamos de desertores. O que o leva a pensar que tenho que obedecer?
- Cala-te! - Repreendeu-o Cato. - Optio, farás aquilo que eu ordenar! Aconteça o que acontecer, continuo a ser o oficial mais graduado neste grupo. Não te esqueças
disso, ou acabo contigo agora mesmo.
Fígulo olhou-o incrédulo, antes de assentir.
- Sim, senhor. Evidentemente.
Cato apercebeu-se de que tinha o coração aos saltos, e de que os seus punhos estavam cerrados. Devia ter o ar de um perfeito idiota, repreendeu-se. A exaustão e
o medo de ser recapturado e levado de volta ao campo para ser executado tinham-lhe dado cabo dos nervos. Tinha que ser forte se queria sobreviver àquela provação,
e salvar os homens que o acompanhavam. Já tinha um plano semiformado na mente, embora fosse incrivelmente optimista e ambicioso. O que era natural, já que homens
que tentavam preservar a vida mesmo à beira do precipício facilmente se agarrariam a qualquer promessa de salvação, por muito ténue que fosse. A metáfora tinha-lhe
acorrido à mente, mas a ideia de que uma mão divina os conduziria à segurança quase o fazia rir de desdém por si mesmo. A tentação do riso era quase irresistível,
mas Cato reconheceu nela o perigo de ceder à histeria, que o paralisaria e os condenaria a todos à morte.
Cato esfregou os olhos e tocou levemente no ombro do optio, tentando acalmar a situação.
- Desculpa, Fígulo. Tu e o Macro salvaram-me a vida. A vida de todos aqui. Lamento que tenhas acabado por ser arrastado para esta confusão. Não merecias tal sorte.
- Senhor, eu percebo, não há problema. - Fígulo arriscou um sorriso tímido. - A verdade é que mal consigo perceber como é que me meti nisto. Se soubesse que ia acabar
assim... Bom, o que vamos então fazer com ele?
- Temos que o abandonar. Ele está praticamente morto, e sabe-o. Só temos que nos certificar que, se for avistado, luta até ao fim e não se deixa capturar vivo. -
Cato levantou-se e tossiu para limpar a garganta. - Leva os outros. Eu vou dar-lhe uma palavra e já vou ter com vocês.
- Uma palavra? - Fígulo lançou-lhe um olhar penetrante. - Está bem, seja, uma palavra.
- Não confias em mim?
- Confiar num centurião? Depois de me ver metido numa alhada destas? Não abuse da sorte, senhor.
Cato sorriu.
- Tenho abusado dela desde o momento em que me juntei à legião. A fortuna ainda não me abandonou.
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- Para tudo há uma primeira vez, senhor.
- Pode ser que sim. Bom, agora vão. E andem depressa.
Fígulo anuiu.
- Na mesma direcção?
Cato considerou o assunto, e procurou apreender a paisagem que o
rodeava num relance.
- Não. Sigam primeiro para o sul, na direcção daquela crista ali.
Quando o último homem a tiver transposto e já não puder ser visto, virem para a direcção habitual. Depois explico. Sigam.
Enquanto o optio reunia os homens exaustos que se tinham espalhado pela relva junto à margem do rio, Cato dirigiu-se ao legionário que se tinha aleijado.
- És um dos homens do Túlio, não és?
O legionário levantou o olhar. Tinha um rosto curtido como cabedal gasto, emoldurado por caracóis cinzentos que se faziam esparsos. Cato adivinhou que lhe deviam
faltar poucos anos para completar o período de alistamento. Era mais uma macabra partida do destino, escolher um homem nessas condições para ser executado.
- Sim, senhor. Víbio Pólio. - O homem saudou o centurião. Olhou em redor, vendo como os outros já se afastavam. - Vão-me deixar para trás, não é?
Cato anuiu, solenemente.
- Lamento. Não nos podemos dar ao luxo de seguir devagar. Se houvesse outra forma...
- Não há. Eu compreendo, senhor. Não há ressentimentos.
Cato agachou-se sobre uma fraga que se erguia orgulhosamente no
meio da corrente.
- Ouve, Pólio. Ainda não há sinais de perseguição. Se te esconderes e tratares do tornozelo, pode ser que mais tarde te consigas juntar a nós. Pareces-me um tipo
de confiança. Mantém-te fora de vista até essa perna estar recuperada. Depois segue para sudoeste.
- Pensei que nos íamos esconder nos pântanos, senhor.
Cato abanou a cabeça.
- Não. Não são seguros. Se formos apanhados pelos homens do Carátaco, então uma execução rápida ainda nos vai parecer uma saída apetecível.
Partilharam um rápido sorriso, antes que Cato continuasse.
- O Fígulo acha que teremos mais possibilidades de sucesso se procurarmos os demónios. Parece que alguns têm laços de sangue com a tribo dele, lá na Gália. Ele sabe
alguma coisa da língua, e acha que os consegue convencer a ajudarem-nos. Lembra-te de falar dele se por acaso
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deres com algum guerreiro da tribo.
- Farei precisamente isso, senhor. Assim que estiver bom da perna - Pólio deu uma palmada na coxa.
Cato anuiu, pensativamente.
- Se não ficares melhor...
- Bem, nessa altura terá que ficar para a próxima. Não se preocupe, senhor, não deixarei que me apanhem vivo. Dou-lhe a minha palavra.
- Muito bem, Pólio, isso para mim basta. - Cato acenou, enquanto a vergonha por ter enganado o infeliz veterano lhe queimava as entranhas. - Mas, se por acaso eles
conseguirem aprisionar-te de novo, faz por não revelar os nossos planos, nem a parte que o Macro desempenhou na nossa fuga.
Pólio desembainhou a espada.
- Isto mantê-los-á afastados por algum tempo. Se não o conseguir, então garanto que a utilizarei de forma a que eles nada me possam arrancar, senhor.
Dado que o homem pouco mais podia esperar do que a morte, de uma forma ou de outra, Cato pesou cuidadosamente as palavras que proferiu em seguida.
- Sim, defende-te como puderes. Mas lembra-te também que os homens enviados em nossa perseguição são apenas soldados a cumprir ordens. Não foram eles que nos puseram
nesta situação. Compreendes o que quero dizer?
Pólio olhou para a espada, e anuiu com tristeza.
- Nunca pensei que um dia teria que a virar contra mim mesmo. Sempre achei que cair sobre a própria espada era um passatempo para senadores e outros da mesma laia.
- Deves estar a subir na vida.
- Não parece nada, visto daqui.
- Pois não... Pólio, tenho que te deixar. - Cato pegou na mão livre do outro, e apertou-a firmemente. - Tenho a certeza de que te voltarei a ver. Daqui a poucos
dias.
- A não ser que eu o veja antes, senhor.
Cato riu; então levantou-se e, sem mais palavras, correu atrás de Fígulo e dos outros, que já se tinham afastado. Olhou para trás uma vez, mesmo antes de deixar
de poder ver o local onde tinham cruzado o rio, que começava a desaparecer por trás de uma elevação. Pólio tinha-se arrastado para a margem, e estava sentado, com
a espada entre as pernas, a ponta cravada no solo. Ambas as mãos estavam apoiadas no punho, e o homem apoiou o queixo nelas, enquanto olhava para o caminho de onde
tinham vindo. Nesse instante, Cato compreendeu que a sua tentativa de o iludir
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tinha sido desnecessária. Pólio estava pronto a morrer, e disposto a aceitar esse destino antes que tivesse possibilidade de proferir qualquer palavra que pudesse
trair os companheiros de fuga. Ainda assim, o centurião recusou-se a lamentar a protecção extra que tentara assegurar. Até o mais honrado dos homens, com a melhor
das intenções, podia ser apanhado desprevenido E Cato já tinha visto o suficiente do trabalho dos carrascos da Segunda Legião para saber que só o mais excepcional
dos homens seria capaz de lhes negar a informação que perseguiam. E Pólio era apenas mais um homem, no fim de contas.
À medida que a manhã progredia, a chuva passou gradualmente a um chuvisco, mas o céu manteve-se carregado, negando aos fugitivos o conforto de um raio de Sol. Cato
e Fígulo forçaram os homens a prosseguir, alternando a corrida e a marcha, quilómetro após quilómetro, na direcção dos distantes pântanos que lhes ofereciam a melhor
hipótese de escaparem às patrulhas que inevitavelmente seriam enviadas em sua perseguição. A chuva tinha-os limpado da maior parte da lama acumulada na noite anterior,
mas os homens continuavam cobertos de sujidade, e tremiam sempre que reduziam o passo e o suor começava a secar-lhes na pele. Não tendo cantis, a única possibilidade
que tinham tido para matar a sede tinha sido na corrente onde tinham abandonado Pólio, e Cato sentia a língua a inchar e secar enquanto continuava a forçar o passo.
Apesar do cansaço, nem um dos homens se deixou ficar para trás. Todos sabiam que a morte esperava aqueles que se deixassem atrasar. Era um alívio para Cato, que
estava seguro que nenhum tipo de castigo físico ou de promessa seriam capazes de forçar um homem que tivesse chegado ao fim da sua resistência física.
Enquanto continuava a correr, respirando pesadamente e tentando esquecer a dor que lhe provocava a sua velha cicatriz no dorso, Cato tentava manter a percepção da
passagem do tempo. Sem sol no céu que lhe permitisse avaliar a passagem das horas, só podia estimar o ritmo do progresso, pelo que julgou ser mais ou menos meio-dia
no momento em que ultrapassaram uma crista baixa e depararam, a pouco mais de um quilómetro, com a orla da vasta região baixa e húmida que se estendia para o horizonte
distante. A luz fraca tornava o lúgubre panorama ainda menos apetecível, e os fugitivos contemplaram a interminável confusão de juncos, canais estreitos e montículos
de terra em que cresciam árvores atarracadas e se viam espessos maciços de arbustos.
- Não é lá muito acolhedor. - Resmungou Fígulo.
Cato teve que respirar fundo e compor-se minimamente, antes de responder.
- Pois não... Mas é tudo o que temos. Vamos ser obrigados a aguentar este cenário por algum tempo.
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- E depois, senhor?
- Depois? - Deu uma risada quase sinistra, antes de responder em tom baixo. Fígulo, o mais provável é que não venha a existir um de pois. Temos que viver momento
a momento, sempre em perigo de sermos descobertos por um dos dois lados e mortos... A não ser que consigamos fazer algo que nos alcance um perdão.
- Perdão? - Fígulo desdenhou. - E como é que vamos conseguir isso, senhor?
- Não sei bem. - Admitiu Cato. - É melhor não dar muitas esperanças aos homens. Assim que tiver uma ideia mais precisa das nossas possibilidades, digo-te qualquer
coisa. Por agora, temos que continuar.
Mais abaixo na encosta que percorriam, o trilho dividia-se em dois; um dos ramos dirigia-se para a esquerda, contornava o pântano e perdia-se de vista no meio da
névoa que tudo cobria e que se misturava com o nevoeiro que persistia nalgumas áreas baixas do terreno. O outro caminho tinha aspecto de ser menos usado, e mergulhava
directamente no coração do pântano.
- Sigam pelo caminho da direita! - Gritou Cato, enquanto abandonava a fila, dando ainda algumas palavras a Fígulo. - Mantém-nos em movimento. Nada de paragens até
estarem pelo menos uns quinhentos metros no interior do pântano.
- Sim, senhor. Onde vai?
- Vou verificar como estão as coisas ali atrás da colina, para ter a certeza de que não estamos a ser seguidos. Deixa alguém para trás, para ver se me vê. Não gostava
de me perder sozinho pelos pântanos.
Fígulo sorriu.
- Então até breve, senhor.
Separaram-se, Fígulo conduzindo os andrajosos fugitivos para ocidente, na direcção da inóspita extensão de terreno pantanoso, e Cato regressando à crista que tinham
acabado de atravessar. Não tinha a certeza das razões que o levavam a dar uma última vista de olhos. Talvez fosse a necessidade de parar e pensar, de planear o passo
seguinte. Talvez precisasse apenas de descansar e contemplar uma última vez o mundo exterior, antes de mergulhar numa vida de constante fuga, ocultação e privações.
Fosse qual fosse o motivo, subiu lentamente a encosta, o coração pesado perante a desesperança da situação em que se encontrava. E se não existisse qualquer possibilidade
de redenção? E se estivesse condenado a passar o resto dos seus dias em fúga, temendo a descoberta e captura pelos seus próprios camaradas? Valeria realmente a pena
viver assim? Mesmo que conseguissem sobreviver algum tempo, entalados entre o que restava do exército de Carátaco e as legiões, estas acabariam por assumir o controlo
completo do
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sul da ilha, e isso sucederia antes do fim do ano. Depois, teriam todo o tempo de que necessitassem para localizar e destruir todo e qualquer povoado que ainda se
atrevesse a desafiar o poder de Roma. Nesse momento, os fugitivos seriam inevitavelmente localizados e arrastados para o local de execução - por muito pouco que
as autoridades militares ainda recordassem o crime de que tinham sido acusados.
Se era esse o destino que o esperava, Cato decidiu que valeria mais a pena arriscar tudo numa tentativa de recuperar a estima do general Pláucio e do legado Vespasiano,
e na revogação da sua sentença. A alternativa era demasiado penosa, e esperava conseguir convencer disso todos os outros, quando chegasse o momento de lhes revelar
o plano que tinha traçado. Pediria voluntários, uma vez que já não tinha realmente a autoridade militar que lhe permitiria impor a sua vontade. Toda a autoridade
que lhe restava residia na sua fé na capacidade para comandar homens. Fígulo tinha-o compreendido rapidamente, mas o optio tinha a presença de espírito para reconhecer
a necessidade de alguma ordem, se o pequeno grupo de homens queria realmente sobreviver, e para saber que era Cato a melhor opção quanto a isso... Pelo menos por
enquanto.
A mente estava tão ocupada com pensamentos sobre o futuro que Cato alcançou o cimo da colina antes disso se aperceber, e viu-se a observar a paisagem, ainda obscurecida
pelo chuviscar constante, que tinha acabado de percorrer há pouco tempo, e com pressa.
Reparou imediatamente nos cavaleiros que avançavam numa linha espaçada, talvez vinte homens, com cerca de cinquenta passos entre os cavalos. Estavam a poucos quilómetros
e evoluíam numa tangente nà direcção que Cato e o bando de fugitivos tinham tomado. Lançou-se por terra, o coração aos pulos enquanto tentava compreender se fora
avistado. Amaldiçoou-se por se ter aproximado da crista de forma descuidada. A exaustão não podia servir de desculpa quando se punha em perigo a vida dos camaradas.
- Estúpido! - Murmurou, entre dentes cerrados. - Estúpido de merda...
Enquanto observava, não notou qualquer sinal de que os batedores tivessem avistado a sua silhueta distante. Deviam estar a concentrar a sua atenção no solo, tentando
descortinar sinais da passagem dos fugitivos. Avançavam sem pressas, as montadas a passo enquanto atravessavam as suaves colinas relvadas, e paravam em cada maciço
de arbustos, examinando-o cuidadosamente. Se continuassem daquela forma, Cato calculou que lhe iam passar muito ao lado, o que lhe acalmou os nervos por algum tempo.
Interrogou-se sobre se eles teriam encontrado Pólio. Teria o veterano enfrentado estes cavaleiros de espada na mão? Ou teria seguido o conselho
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de Cato e usado o gládio contra si próprio antes de o empregar contra os seus antigos camaradas? Talvez tivesse conseguido encontrar um esconderijo e tivesse passado
despercebido. O centurião apercebeu-se porém de que o seu verdadeiro desejo era que Pólio tivesse sido encontrado e forçado a revelar a pista falsa que Cato lhe
tinha indicado. De facto, os cavaleiros seguiam aproximadamente nessa direcção.
Quando o cavaleiro mais próximo não estava a mais de quilómetro e meio, notou alguma agitação mais ao menos a meio da linha. Um dos batedores tinha desmontado, e
chamava os camaradas. À medida que a palavra ia sendo passada, os homens faziam as montadas dirigir-se à cada vez maior aglomeração de homens e animais. Cato esforçou
a vista, tentando compreender o que se passava à sua frente. A maior parte dos homens tinha desmontado, e o oficial que comandava a coluna conferenciava com o soldado
que tinha feito a descoberta. Enquanto os observava, Cato percebeu que aqueles homens não eram legionários de um esquadrão de batedores. O corte das capas, os escudos
quadrados postos às costas, tudo indicava que pertenciam a uma coorte auxiliar; um arrepio percorreu-lhe o corpo quando notou o estandarte que mostrava uma cabeça
de urso.
- Batavianos...
A impiedosa tribo germânica tinha fornecido várias coortes de cavalaria, duras e temerárias, ao exército do general Pláucio. Os batavianos tinham ganho uma reputação
de ferozes combatentes na travessia do Mead Way no ano anterior, ocasião em que tinham abatido imediatamente todo e qualquer prisioneiro que lhes tinha surgido,
numa orgia sanguinária
- uma de várias, relembrou Cato com temor crescente. Se o encontrassem ou aos seus homens, não poderiam esperar qualquer clemência. As tensões existentes entre os
batavianos e os legionários eram muito mais profundas do que as que normalmente existiam em qualquer exército, de rivalidade entre unidades. Tinham morrido homens
nas rixas entre bandos de romanos e germanos de folga em Camaloduno.
O líder da patrulha afastou-se ligeiramente dos seus homens. Pôs os braços em redor dos ombros e coçou as costas, enquanto avaliava a paisagem à sua frente. Por
instinto, Cato colou-se ao solo quando o homem se virou precisamente na direcção em que ele estava. Absurdo, tentou convencer-se; ninguém o conseguiria distinguir
àquela distância e sob aquela luz. O comandante bataviano virou-se e agitou os braços. Os homens voltaram a montar rapidamente e formaram uma coluna, enquanto esperavam
pelas ordens. O líder saltou para a sela e pegou nas rédeas. Com um movimento do braço, ordenou que a coluna se colocasse em movimento, a trote. No momento seguinte,
Cato compreendeu que se dirigiam precisamente na sua direcção. Não fazia ideia do que tinham descoberto ao examinar o solo
199
mas, fosse o que fosse, os batavianos tinham deduzido correctamente qual a direcção que os fugitivos tinham tomado.
Cato desceu da crista e, assim que teve a certeza de que não podia ser visto, ergueu-se e correu pelo trilho, na direcção do pântano. Algumas centenas de metros
mais à frente, já adivinhava os vultos dos seus companheiros de fuga enquanto estes penetravam na cortina de nevoeiro que se espalhava pela estrada. À medida que
corria, lançava olhares frequentes ao solo para não tropeçar e, ao fazê-lo, não pôde deixar de notar as marcas inconfundíveis de botas de legionário que aqui e ali
tinham ficado gravadas na lama. Aquelas pegadas levariam os batavianos até eles sem qualquer possibilidade de erro; aliás, apercebeu-se com horror, já o estavam
a fazer.
Aquela maldita chuva não apenas lhes tinha feito a vida miserável, agora conspirava para os denunciar aos batavianos; e quando estes inevitavelmente alcançassem
as presas que caçavam, abatê-las-iam sem piedade.
200
XXIV

O General Pláucio percorreu lentamente a área em que os prisioneiros tinham estado, sob o olhar ansioso dos seus subordinados. Estavam presentes não apenas os centuriões
da Terceira Corte, mas também o legado, Vespasiano, os seus tribunos, o prefeito do acampamento da Segunda Legião, e o pessoal graduado das outras três legiões,
que se tinham deslocado na expectativa de assistir a uma execução colectiva naquela manhã. Poucos se atreviam a falar, e faziam-no em murmúrios, tão subtis que os
sons quase não se escutavam sobre o contínuo cair da chuva. Os outros observavam o comandante do exército, mantendo expressões fechadas enquanto tiritavam sob as
capas. O calor dos corpos fazia com que se desprendesse destas um enjoativo fedor a gordura, por causa da impermeabilização, e Vespasiano não o conseguia ignorar.
Fazia-lhe lembrar a fábrica de curtumes de mula do tio, em Reato. O legado recordava-se não apenas do oleoso cheiro que preenchia todos os recantos das tórridas
instalações, mas também da jura que fizera, de que nunca se envolveria numa profissão que tivesse algum contacto com os malditos animais.
Vespasiano forçou a mente a regressar ao presente, e lançou um olhar na direcção de Máximo e dos outros oficiais da Terceira Coorte. Era difícil não sentir alguma
pena deles - os outros centuriões. Tinham sido muito mal liderados, e não tinham de todo merecido a terrível punição que se abatera sobre a unidade. Apesar dos anos
de experiência, a verdade é que Máximo não possuía nem a fibra moral nem a calma que eram exigidas ao comandante de uma coorte. Um exemplo clássico de uma promoção
precipitada, com as trágicas consequências que se podiam adivinhar com a elevação de um homem a uma posição para a qual pura e simplesmente não estava talhado. O
legado lamentava com amargura o momento em que o aceitara na Segunda Legião, e perguntava-se quantos dos oficiais que rodeavam naquele momento o comandante da coorte
veriam as suas carreiras indelevelmente marcadas pelos funestos acontecimentos dos últimos
201
dias. Havia naquele grupo alguns homens de qualidade, considerou. Túlio estava já velho, e dentro de dois anos teria concluído o seu tempo de serviço. Mas era um
soldado experimentado e frio, e nunca trairia a confiança dos seus camaradas. Macro era daqueles em quem se podia sempre confiar e, sob múltiplos aspectos, era o
centurião ideal: corajoso, desenrascado, e duro como couro envelhecido. Alguma falta de imaginação, por certo, mas num centurião isso podia ser facilmente visto
como uma qualidade. Tinha menos certezas sobre os outros dois. Promovidos recentemente, António e Félix tinham folhas de serviço impecáveis, e tinham sido fortemente
recomendados para a promoção pelo prefeito do acampamento da Segunda. Ao lembrar-se da prestação titubeante dos dois durante o inquérito disciplinar, Vespasiano
perguntou-se se Sexto não teria sido subornado para recomendar as promoções. Como legionários, eles tinham sido bons elementos, mas estariam à altura de ser centuriões?
O oficial em falta, o centurião Cato, foi o último dos homens de Máximo em que Vespasiano pensou. De facto, tinha-o mantido afastado da mente, na esperança de que
o general acabasse a sua inspecção do terreno antes que ele tivesse tempo para considerar os factos sobre Cato. A carreira dele estava acabada, e dentro em breve,
muito breve, a sua vida também. Este pensamento perturbava profundamente o legado, porque depressa se tinha apercebido de que homens do calibre do jovem centurião
não abundavam na sua legião, como aliás em qualquer das outras. Nos dois anos que tinham decorrido desde que ele se juntara à Segunda, Vespasiano tinha-o visto amadurecer
e tornar-se um oficial de suprema inteligência e coragem. Evidentemente que cometia erros, mas aprendia sempre com eles, e sabia como tirar o melhor rendimento dos
homens que comandava. Homens como ele, desde que sobrevivessem, formavam o cérebro e a espinha dorsal de um exército profissional, e podiam almejar terminar a carreira
num posto elevado: centurião-chefe, prefeito de acampamento ou, se fossem realmente excepcionais, prefeito das legiões do Egipto - a mais elevada patente militar
que um homem não nascido na exclusivista classe senatorial romana podia alcançar.
Desde que, claro, não desaparecessem na voragem dos combates, ou nas exigências de um imperador como Cláudio, para quem o estabelecimento de uma reputação vinha
antes de tudo o mais.
Apercebeu-se de um movimento junto aos baluartes e, sobressaltado, tentou voltar à realidade. Tinha ficado tão absorto nos seus pensamentos que perdera o rasto ao
trajecto do general, e ficou surpreso quando o viu junto à brecha na paliçada. O legado fez uma nota mental para se obrigar a prestar atenção. Deixar a mente divagar
na presença dos seus superiores era um hábito perigoso.
202
O general Pláucio dobrou-se para apreciar melhor a brecha, depois voltou a endireitar-se e inclinou-se cautelosamente sobre a paliçada, para inspeccionar o fosso
externo. Por fim, virou-se lentamente e dirigiu-se para junto dos seus oficiais.
Sexto inclinou-se para o legado, e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Agora é que vamos ouvir.
O general parou a alguns passos de distância dos oficiais silenciosos, e deixou o olhar vaguear entre eles, até que se fixou em Vespasiano.
- Fugiram mesmo todos?
- Sim, senhor.
- E não há sinais deles?
- Ainda não, senhor. Mas enviei em busca deles todos os batedores e a minha coorte de batavianos montados. Assim que encontrarem alguma pista, virão dar-nos indicações.
- Pois claro que as virão dar. - Replicou Pláucio, sem esconder o sarcasmo. - Senão, não faria muito sentido que eles andassem lá fora com este tempo, pois não?
- Hum, não, senhor. - Vespasiano obrigou-se a manter o olhar fixo, derrotando a tentação de o baixar ou desviar do comandante. - De facto, não faria muito sentido.
- Portanto, uns quarenta homens limitaram-se a desaparecer sem que ninguém desse conta, neste campo ou no da Segunda Legião. É boa, mas parece-me difícil de engolir.
O que levanta duas possibilidades. Ou as tuas sentinelas são tão cegas como Tirésias, ou... alguém permitiu que os prisioneiros escapassem. Seja como for, legado,
são os teus homens os responsáveis.
Vespasiano inclinou muito ligeiramente a cabeça. Pláucio estava a ser injusto. Tinha sido uma noite escura e chuvosa, e as sentinelas do seu campo facilmente podiam
não ter dado pelas movimentações no baluarte do acampamento da Terceira Coorte. Mas se o afirmasse, isso não soaria a mais do que uma desculpa, e era fácil imaginar
a forma como seria recebida, com olhares de desprezo e comentários pouco simpáticos. Manteve a boca fechada e aguentou firmemente o olhar do seu superior.
- Se a culpa é dos meus homens, então, sendo eu o seu comandante, é também minha... senhor.
O general anuiu.
- Exactamente, legado. A questão é, o que vou eu fazer acerca disso? Que espécie de punição merecem, tu e a tua legião?
Vespasiano sentiu-se afoguear de raiva. Adivinhava as intenções de Pláucio, e percebeu que tinha que agir depressa para limitar os danos para a sua legião. Se o
general exigisse mais sangue, o golpe no moral da
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Segunda seria tremendo, talvez irrecuperável. A degradante dizimação já lhes pesava bastante no pensamento, mas o facto de o castigo se ter abatido somente sobre
a Terceira Coorte tinha permitido que o resto da legião escapasse sem grande desgaste para a sua reputação, que tanto lhe tinha custado a construir, e que tinha
sido paga com o sangue de muitos camaradas e baseada em muitos feitos espectaculares no campo de batalha. Sendo o comandante, era natural que as conquistas da legião
se reflectissem nele, e o beneficiassem. Porém, o seu primeiro pensamento era para os seus homens
- como se iriam sentir envergonhados por, mais uma vez, serem o alvo da fúria do general. E tudo graças aos falhanços de Máximo e da Terceira Coorte. Se Vespasiano
queria preservar o espírito de luta que ainda restava aos seus homens, teria que aceitar um sacrifício.
- Senhor, a minha legião não merece ser punida pelos erros de uma coorte já desonrada. A Segunda teve um desempenho excepcional ao longo de toda a campanha. Os homens
lutaram como leões. O general mesmo o reconheceu, há poucos meses atrás. Como leões. Se alguma unidade deve ser castigada, então que seja a coorte que permitiu a
fuga dos prisioneiros. Senhor, castigue a Terceira Coorte.
O general Pláucio não respondeu de imediato, preferindo ponderar a oferta do legado. Por fim, pareceu concordar.
- Muito bem, seja; os que deixaram que os seus camaradas escapassem à punição que lhes estava destinada terão que fornecer um substituto por cada homem condenado.
Vespasiano sentiu o coração acelerar à medida que escutava. O general não podia estar a exigir outra ronda de sorteios para uma nova dizimação. Imaginou o que pensaria
o inimigo desta situação. Era só deixar os romanos sossegados uns tempos, e eles acabariam por se autodizimar e poupar a toda a gente o trabalho de os apagar do
mapa.
- Senhor, - Vespasiano tentou falar com toda a calma que conseguiu reunir - não podemos atrever-nos a dizimar novamente a Terceira Coorte. Seria o seu fim como unidade
de combate.
- Talvez ela devesse ser extinta, de facto. - Replicou Pláucio. - E, neste caso, talvez uma execução colectiva, sem piedade, servisse para lembrar aos outros o seu
dever de combater quando for chegado o momento, em vez de se virarem e fugirem como essa escumalha. Talvez depois de termos executado um novo grupo, eles sejam lembrados
como o exemplo que quero que todo o exército recorde. Legado, esta coorte custou-nos a vitória final sobre Carátaco. O falhanço deles ainda nos vai custar grandemente
nos meses que estão para vir. E agora isto? Que danos é que eles ainda serão capazes de provocar ao meu exército, depois de arruinarem a reputação da tua legião?
Uma nova dizimação é o mínimo que eles merecem.
204
- Talvez não. - A mente de Vespasiano tinha-se antecipado, e preparado um plano alternativo. Seria desumano submeter aqueles homens a um novo castigo. Além disso,
ainda poderiam vir a desempenhar um papel importante. Deveriam, no entanto, ser vistos como alvo de uma punição, e dura. Olhou para o general com um brilho agressivo
nos olhos.
- Talvez os possamos utilizar para atrair os bretões para fora do pântano. Usá-los como isco, no fundo. Uma tarefa perigosa, mas tal como afirmou, senhor, eles merecem
um castigo que nunca possa ser esquecido.
- Isco? - O general parecia céptico.
- Sim, senhor. - Confirmou Vespasiano, com toda a ênfase; mas imediatamente se apercebeu de que teria que fazer mais do que oferecer entusiasticamente a provável
obliteração da sua Terceira Coorte, se quisesse convencer Pláucio a concordar com o esquema que apenas começara a delinear na sua mente.
- Senhor, peço-lhe que me acompanhe até ao meu quartel-general, de forma a que possamos discutir detalhadamente o plano. Tenho que lhe mostrar um mapa.
- Plano? - Foi a resposta de Pláucio, que não escondeu a suspeição. - Se não te conhecesse, legado, era capaz de dizer que estavas implicado nesta fuga. É bom que
esta não seja mais uma das tuas ideias infelizes.
- Não, senhor. De forma alguma. Penso que perceberá que pode ser a resposta a todas as nossas preocupações.
Pláucio considerou o assunto ainda durante algum tempo, enquanto Vespasiano aguardava, esforçando-se por não mostrar nada da excitação e da frustração que lhe percorriam
todos os músculos do corpo e o deixavam insuportavelmente tenso.
? ? ?
- Aqui está, senhor. - Anunciou Vespasiano, enquanto desenrolava sobre a mesa de campanha a pele de ovelha em que estava inscrito o mapa. A
- Muito bonito. - Foi o comentário pouco simpático de Pláucio ao apreciar o mapa; depois, encarou mais uma vez o legado. - Agora, és capaz de me explicar exactamente
o que é que este mapa tem de tão interessante?
- Aqui. - Vespasiano inclinou-se e colocou o dedo sobre uma zona que ladeava a vastidão do pântano, cujo interior era completamente desconhecido para os romanos.
- Sim... E isso é...?
- Um vale, senhor. Um pequeno vale. Um nosso agente, um
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mercador encontrou-o por acaso e mandou-nos a informação. Enviei batedores para confirmar a localização, e o vale existe realmente. Ha por lá uma aldeia, várias
quintas, e uma estrada que o atravessa e depois vira para a
direita, para o interior do pântano.
- Tudo isso é muito interessante. - Pláucio pareceu considerar as informações. - Mas de que me pode servir? E que tem isto a ver com o
destino da tua Terceira Coorte?
O legado fez uma pausa. Tudo lhe parecia evidente, mas era claro que o general não se tinha apercebido da oportunidade aberta por aquele conjunto de circunstâncias.
Agora teria que apresentar o seu plano com imensas cautelas, para não causar qualquer melindre em Pláucio.
- Senhor, presumo que ainda continuamos a perseguir Carátaco.
- Evidentemente.
- E ele esconde-se algures neste pântano. Deve ter por lá alguma espécie de base avançada.
- Sim, Vespasiano, já sabemos isso tudo. E então?
- Bom, senhor, a questão é que, muito provavelmente, nunca seremos capazes de encontrar essa base. Lembra-se com certeza da desgraça que foi aquela nossa incursão
nos pântanos do Tamisa no Verão passado, senhor.
Pláucio fez uma careta ao recordar o episódio. As legiões tinham-se visto forçadas a desfazer as formações e a internar-se nos pântanos em pequenas unidades. Desconhecendo
a rede de trilhos que percorria o labirinto de áreas lamacentas e tufos de erva enganadora, vários dos destacamentos tinham sido duramente castigados pelo inimigo,
perdendo dúzias e dúzias de homens. Era uma experiência que ninguém queria repetir.
- Mesmo assim, temos que fazer algo para arrancar o Carátaco dali - Insistiu o general. - Não lhe podemos dar nem espaço nem tempo para reagrupar as suas forças.
- Precisamente, senhor. E é por isso mesmo que temos que enviar tropas para o pântano, para o assustar. - Vespasiano fez uma pausa, para permitir que a audiência,
composta por oficiais do estado-maior, trocasse olhares de desespero. Mal conseguiu conter um sorriso, ao ver como só ele detinha a chave para a aflição dos outros.
- Ou, em alternativa, tentamo-lo a sair por si mesmo.
- E como é que vamos conseguir essa proeza?
- Usamos um isco.
- Isco? Referes-te à Terceira Coorte?
- Precisamente, senhor. São dispensáveis, como se recorda.
- Mantenho essa opinião. Como é que pensas utilizá-los?
Vespasiano voltou a debruçar-se sobre o mapa e a indicar o vale.
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- Enviamo-los para o vale, para construir um forte a curta distância do pântano. Máximo terá ordens para tratar os locais duramente, para os fazer sentir oprimidos.
Depressa eles começarão a pedir a Carátaco que os venha libertar dos malditos romanos. E há duas excelentes razões para que ele não resista a tais súplicas. Primeira,
será uma óptima ocasião para conseguir novos aliados. Se ele acudir a libertar o povo do vale, não deixará de aproveitar as circunstâncias. Uma vitória, mesmo que
seja de pequena importância como esta seria, tem sempre o condão de acicatar a vontade de resistir dos nativos. O exemplo será contagioso, pensará Carátaco. Segunda,
o nosso batedor conseguiu adicionar uma importante peça de informação a este quadro. - Os olhos de Vespasiano percorreram os rostos em volta, e fixaram-se no de
Pláucio. O legado sorria abertamente, sem se incomodar com a frustração crescente que tão claramente se exprimia no rosto franzido do general.
- Porra, desembucha de vez. - Exigiu Pláucio.
- Claro, senhor. Bom, parece que o vale é pertença de um nobre bretão que é um parente afastado de Carátaco. Duvido que ele fique quieto a ver alguém do seu sangue
a ser intimidado e morto. Muito provavelmente vai atacar as nossas forças. Tentará tudo para desestabilizar o nosso controlo da região. Mas, quando atacar, estaremos
prontos para ele. Se conseguirmos atraí-lo para fora do covil, creio que a minha legião poderá muito bem acabar com ele.
Pláucio abanou a cabeça.
- Fazes tudo parecer muito simples. Mas, e se ele se recusar a morder o isco?
- Nesse caso, teremos que nos assegurar que ele decide vir ao nosso encontro, senhor.
- Como?
- Bem, ele não deve já ter mais do que uns dois ou três mil homens... E, até que consiga uma nova vitória, vai ter entre mãos um problema com as deserções que não
deixarão de ocorrer. É vital para Carátaco que se dê este combate e, para ele, quanto mais cedo melhor. Portanto, só temos que lhe tornar a fuga impossível. Vê como
a extremidade norte do pântano curva aqui?
Pláucio examinou o mapa e concordou.
- Posso perfeitamente controlar esta zona, senhor. Se me permitir que coloque forças de bloqueio em todas as estradas e caminhos que entrem no pântano pelo norte,
e com a Terceira Coorte a controlar o sul, as linhas de abastecimento de Carátaco acabarão por ser interrompidas. Sem que lhes chegue comida, e sem possibilidade
de a ir procurar nos aldeamentos próximos, os bretões depressa ficarão esfomeados. E, nessa altura,
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ou combatem ou passam fome. É claro que escolherão a luta. E quando saírem do pântano para nos enfrentar, estaremos preparados. Desde que eles mordam o isco.
- E se de facto eles o morderem, mas as tuas forças chegarem demasiado tarde para salvar a Terceira Coorte?
Vespasiano encolheu os ombros.
- Nesse caso, só nos resta esperar que ela tenha servido para alguma coisa.
E, pensou o legado, que tenha levado com ela a vergonha que se colava a toda a Segunda Legião e ao seu comandante. Sentiu-se aguilhoado pela culpa, ao compreender
que nos seus pensamentos desejava nada menos do que a morte de cerca de quatrocentos homens. Mas eles iam ter uma oportunidade de sobreviver, e de reconquistar a
honra perdida. Sim, havia uma pequena mas real possibilidade de que a desgraça que Máximo tinha provocado fosse reparada por uma batalha rijamente travada e por
uma conclusão gloriosa para a campanha.
Um dos oficiais do estado-maior do general levantou a mão.
- Sim, tribuno?
- Mesmo que Carátaco abandone o pântano e ataque a Terceira Coorte, é pouco provável que o consigamos apanhar. Nessa altura, ele deixará a retaguarda a combater,
de forma a ter tempo para regressar ao esconderijo com o grosso das suas forças. E voltaremos ao ponto de partida, com uma coorte a menos, claro.
- Sim, é uma possibilidade. - Concedeu Vespasiano, pensativo.
- Se isso suceder, teremos que optar pelo cerco e impedir que ele receba quaisquer abastecimentos. De qualquer forma, se agirmos agora, será o seu fim. A vantagem
de o forçar a uma batalha é que isso nos dá a possibilidade de acabar com a resistência de uma vez, e não ficar a vê-lo tentar conseguir O apoio das tribos que ainda
escapam ao nosso controlo. - O legado voltou-se de novo para o general. - E este plano oferece ainda um papel útil a Mássimo e aos seus homens, enquanto sofrem o
castigo que merecem.
O general franziu o sobrolho.
- Com sorte, o Carátaco encarregar-se-á deles.
- Exacto, senhor. Não espero que eles sobrevivam ao ataque dos bretões. Sobretudo depois daquilo que deverão ter estado a fazer ao seu povo.
- Estou a ver. - O general Pláucio coçou a face enquanto avaliava mais uma vez o plano do legado. -Assegura-te de que ele entende que tem que ser o mais cruel possível
com os locais.
Vespasiano sorriu.
- Atendendo ao estado em que ele e os homens estão, não deve ser
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preciso muito trabalho para o convencer. Suponho que ele estará mesmo ansioso para se vingar e fazer os nativos pagar pelo que lhe sucedeu.
- Muito bem, então. - Pláucio afastou-se da mesa e aprumou-se.
- Vou pôr o meu pessoal a tratar da emissão das ordens imediatamente.
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XXV

- Batavianos? - Fígulo olhou para a crista da colina, como se esperasse que os perseguidores se tornassem visíveis a qualquer momento. Voltou-se para o exausto centurião.
- Quantos eram, senhor?
Cato sorveu o ar antes de responder.
- Não eram mais... mais do que um esquadrão... talvez menos... Vinham para cá. Os homens que se escondam.
Fígulo lançou um último olhar ao caminho e depois deu ordens, avisando os leg ionários numa voz baixa, como se os batavianos o pudessem escutar. Os homens saíram
do caminho, espalhando-se pela erva alta e pelos arbustos mirrados que cresciam aos lados do trilho. Agachados, empunharam com determinação as respectivas espadas
e adagas. Apenas Cato e Fígulo ficaram no caminho, enquanto o centurião se mantinha dobrado, ainda a tentar recuperar o fôlego.
- Vamos enfrentá-los? - Quis saber Fígulo.
Cato olhou para ele como se o achasse doido.
- Não! A não ser que a isso sejamos obrigados. É demasiado arriscado.
- Somos mais do que eles, senhor.
- Mas eles estão montados e bem equipados. Não teríamos grandes hipóteses.
Fígulo encolheu os ombros.
- Talvez as tivéssemos, se os apanhássemos aqui neste caminho. E os cavalos davam-nos jeito para transportar alguns dos homens.
- Iam acabar era por nos dar mais trabalho, nem sequer são de grande utilidade nos pântanos.
- Nesse caso, podíamos sempre comê-los. - Fígulo sorriu.
Em desespero, Cato abanou a cabeça. Ali estavam eles, em risco de serem localizados e perseguidos até à morte, e o optio pensava em comida. Inspirou profundamente
uma última golfada de ar, e endireitou-se.
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- Se possível, evitaremos o confronto. Percebido?
- Sim, senhor.
- Fico com os homens deste lado do caminho. Ficas do outro lado Mantém-nos escondidos e em silêncio até eu aparecer.
- E se formos avistados, senhor?
- Não fazes nada até eu dar a ordem. Mesmo nada.
Fígulo anuiu, e voltou a correr para junto dos homens, afastando as longas ervas e espalhando as gotículas de chuva pelo ar quando passava. Uma olhadela rápida mostrou
a Cato que os homens tinham pisoteado a erva e os arbustos, enquanto andavam à procura de esconderijos. Mas já nada havia a fazer quanto a isso, pelo que Cato correu
para se juntar aos homens que estavam do outro lado do caminho. Só o remexer das folhagens de alguns arbustos denunciavam os pontos em que alguns dos legionários
ainda procuravam sair de vista.
- Porra, deixem-se estar quietos! - Avisou Cato.
Os arbustos imobilizaram-se, e o centurião encontrou um lugar para se esconder também, entre dois dos homens, e ajoelhou-se. Levou a mão em concha à boca.
- Fígulo!
Uma cabeça surgiu entre a vegetação do outro lado da estrada, a cerca de trinta passos dali.
- Senhor?
- Lembra-te do que te disse. Espera até eu dar a ordem!
- Certo! - E o optio voltou a desaparecer, enquanto Cato lançava um último olhar sobre o grupo de fugitivos. Ali perto via um punhado deles, deitados no solo, esforçando-se
claramente por ouvir os primeiros sinais da aproximação dos batavianos. Também Cato procurou escutá-los, inclinando ligeiramente a cabeça; enquanto esperava, deu
por si a suplicar que os cavaleiros tivessem perdido o rasto, e que já estivessem a procurar noutra direcção. O coração batia-lhe mais depressa do que de costume,
e o matraquear constante da chuva nos ouvidos tornava a audição uma tarefa difícil. Enquanto a água continuava a cair do céu, batendo levemente nas folhagens em
redor, tudo se acalmou, deixando o palco à neblina que disfarçava o céu. O tempo foi passando devagar, e a tensão aumentando.
Então, justamente quando Cato começara a atrever-se a pensar que os batavianos tinham passado sem os notar, ouviu um leve ruído de equipamento a bater e de arreios
e rédeas a serem manejados. Logo a seguir, escutou o som dos cascos a baterem na terra do caminho. Olhando em volta para os seus homens, ficou furioso ao reparar
que alguns tinham erguido as cabeças para procurar a origem daqueles sons.
- Para baixo! - Sussurrou, irritado, e todos lhe obedeceram. Foi
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o último a lançar-se pelo solo, pressionando o corpo contra a terra mole e coberta de turfa; esperou, de espada pronta ao seu lado, a cabeça virada para o caminho
e o coração a bater como um tambor. Tamanha era a tensão acumulada nos músculos que sentiu um tremor na perna e nada conseguiu fazer para o aquietar. Os sons guturais
e abafados que vinham da coluna atravessavam facilmente o ar húmido, até que uma ordem ríspida fez calar os batavianos. O silêncio que se seguiu foi apenas interrompido
pelos sons dos cavalos, e Cato percebeu que o comandante da coluna tinha interrompido a marcha para melhor tentar perceber os sinais de presença da sua presa.
Durante algum tempo, só os sons da natureza preencheram o ambiente. O jovem centurião, que normalmente apreciava o ritmo gentil da chuva a cair, sentia-se arrasado
pela tensão. A tentação de se pôr em pé e lançar um ataque repentino era tremenda, porque aguardar mais tempo imóvel, sem poder influenciar o desfecho do episódio,
se tornava insustentável; todavia, cerrou os dentes e os punhos, cravando as unhas nas palmas das mãos. Esperava que Fígulo fosse feito de material mais rijo, e
não se sentisse tão tentado como ele. Lutar estava na natureza do optio, e Cato não tinha a certeza de que ele conseguisse controlar o seu feroz sangue celta.
Por fim, o comandante bataviano gritou uma ordem, e a patrulha deslocou-se a trote pela estrada, passando a não mais de dez passos do ponto em que Cato se escondia,
imóvel, mal se atrevendo a respirar. Pelo som dos cascos, era claro que dois ou três homens tinham sido enviados à frente, mas depois o grosso da coluna internou-se
também no pântano. Se Fortuna, a deusa do acaso, lhes sorrisse, os batavianos acabariam por passar por eles sem dar pela sua presença. Cato lançou-lhe uma prece
mental, e fez a promessa de um dardo se conseguisse sobreviver àquele pesadelo.
O ruído dos cascos passava lentamente, e ouviu-se um repentino coro de gritos. Todos os músculos de Cato estavam tensos, preparados para o fazer saltar e lançar-se
sobre os batavianos ao primeiro sinal de que a sua tentativa de fazer o grupo de fugitivos passar despercebido tinha sido desmascarada. Então compreendeu que, como
era evidente, a sua patética ilusão acabaria por ser desfeita. A pista que tinha levado os batavianos até ali desaparecia mais abaixo na estrada, e isso só podia
ter um significado.
Ia acontecer a qualquer momento...
Notou uma sombra à sua esquerda, e virou a cabeça nessa direcção. Um dos cavaleiros tinha desmontado e caminhava fora da estrada, de costas para Cato, a menos de
dois metros; o homem levantou a túnica e desapertou os cordões que lhe prendiam as calças. Grunhiu de alívio quando se começou a ouvir um jorro bem mais potente,
que o da chuva a cair. O ruído interrompeu-se subitamente. Cato viu-o inclinar-se para a frente e
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girar imediatamente, com um grito de alarme já a formar-se nos lábios.
- Apanhem-nos! - Soltou Cato enquanto se levantava.
Levantem-se e apanhem-nos!
O homem que lhe estava próximo continuou a girar sobre si mesmo, uma mão a tentar agarrar o punho da espada, a outra ainda a segurar o pénis. Cato lançou-se sobre
o bataviano, e a sua lâmina trespassou-lhe o estômago um instante antes de lhe cair em cima e o fazer tombar na erva alta. Em redor, os vultos dos legionários levantavam-se
e corriam na direcção da confusão de cavalos e homens que se tinha estabelecido. Do outro lado da estrada, Fígulo e os seus homens juntavam-se ao assalto. O comandante
bataviano recuperou da surpresa como o profissional que era, e rapidamente empunhou a espada enquanto gritava as suas ordens. Mas estas não tinham hipótese de ser
obedecidas no meio do caos que se tinha imposto, entre figuras enlameadas e selvagens a pé e os vultos dos cavaleiros que tentavam controlar as montadas em pânico
e, ao mesmo tempo, lutar pelas suas vidas. E, apesar de terem as vantagens do número e da surpresa, a verdade é que os legionários estavam mal armados, enquanto
os adversários possuíam escudos, capacetes e cotas de malha. E tinham ainda as longas espadas da cavalaria, que faziam rodopiar pelo ar em arcos letais, dirigidos
aos corpos desprotegidos dos homens que os atacavam.
Cato pressentiu um lampejar próximo e encolheu-se, mesmo a tempo de evitar um golpe que atravessou o vazio no ponto exacto que a sua cabeça ocupara um momento antes,
fazendo-o sentir uma corrente de ar no escalpe quando a espada lhe passou rente à cabeça. O odor penetrante a cavalo atingiu-lhe as narinas, enquanto olhava para
cima, para o homem que tinha acabado de tentar matá-lo. O ímpeto da espada tinha-o obrigado a torcer-se na sela. Antes que tivesse oportunidade para rodar a espada
em sentido contrário, Cato atacou-lhe a articulação do cotovelo, quebrando-lhe os ossos com um estalo. O bataviano gritou, e os dedos largaram a espada. Várias mãos
se agarraram à sua capa, e ele foi arrastado para a lama e atingido por uma série de estocadas e pelo pisotear do seu próprio cavalo.
- Acabem com eles! - Rugia Fígulo, fazendo-se ouvir acima do clamor do choque das armas, dos gritos dos homens empenhados na luta, e do relinchar assustado dos cavalos.
- Matem-nos a todos!
Um dos legionários, mesmo à frente de Cato, não estava para dar a volta ao ajuntamento de homens que se tinha formado, e como não conseguia alcançar o cavaleiro,
enterrava a sua adaga repetidamente no pescoço da montada. Jactos de sangue irrompiam da pele negra e lustros por baixo da crina desgrenhada. O bataviano soltou
um grito de angústia e fúria ao aperceber-se do que estava a ser feito ao seu cavalo, e lançou a espada num golpe derradeiro, cortando a garganta e a espinha do
legionário no mesmo
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movimento, fazendo a cabeça rolar numa explosão de sangue quente.
- Não deixem nenhum escapar! - Avisou Cato, enquanto procurava um novo alvo. Vários dos batavianos já estavam pelo solo, um deles preso debaixo do cavalo que esperneava
o ar, tentando recuperar a posição normal sem cuidar dos gritos de agonia que o seu cavaleiro soltava, enquanto era esmagado pelo peso do animal. Cato rodeou a montada
e deparou com o comandante bataviano, com o seu capacete de crista negra. Os olhos do homem semicerraram-se ao identificar o seu adversário, e ele levou o braço
atrás para desferir um ataque. Quando a lâmina começou a descer, o cavalo tropeçou e o golpe falhou. O bataviano gritou com o animal e, puxando as rédeas, fê-lo
reorientar-se de forma a poder atacar Cato. Durante um momento, ficou de costas para o romano, e este saltou, agarrou-lhe a túnica e tentou puxá-lo da sela. Aguentou
o equilíbrio ainda um momento, apertando as pernas contra o contorno da sela. Mas, nessa altura, outro romano agarrou-o pelo braço, puxando-o no sentido contrário.
No momento em que se viu assim endireitado, o comandante dos cavaleiros golpeou o braço que o puxara. Ao escutar o grito do seu camarada, Cato cerrou os dentes e
lançou a espada contra as costas do inimigo, forçando a cota de malha e atingindo-lhe a espinha. Um espasmo acometeu-lhe imediatamente as pernas, que ficaram sem
força e o fizeram escorregar do cavalo, os braços a agitarem-se no ar enquanto tombava pesadamente sobre o solo. Cato avançou e cortou-lhe o pescoço; depois, mantendo-se
agachado, tentou voltar pela estrada para a orla do pântano.
- Tu! - Pegou num homem pelo braço, e olhou em volta, à procura de outros. - E vocês os dois! Sigam-me.
O pequeno grupo afastou-se do combate, e Cato levou-os pela margem até voltarem à estrada que saía do pântano.
- Espalhem-se pelo caminho. Não deixem passar ninguém!
Os homens anuíram, compreendendo a ideia do centurião, e ergueram as espadas. Mais atrás, na estrada, o combate estava a terminar, com o triunfo dos legionários.
Já só restavam seis batavianos vivos, formando um grupo ainda montado que mantinha à distância os homens que dançavam à sua volta, com os gládios sempre prontos
a morder em qualquer pedaço de carne humana ou equina que lhes passasse ao alcance. Cato apercebeu-se imediatamente do perigo da situação. Assim que os cavaleiros
percebessem que a única hipótese que lhes restava era a fuga, carregariam juntos sobre os legionários, forçando a passagem graças ao peso e ímpeto das suas montadas.
- Não fiquem aí especados! - Gritou aos seus homens. - Fígulo,
ataca!
Um momento depois, um dos batavianos respondeu com um grito
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de guerra que os outros cinco repetiram imediatamente. Levantando ao " alto as suas espadas, incitaram as montadas com os calcanhares, e estas responderam de pronto.
Os legionários mais próximos mergulharam para os lados, tentando escapar ao esmagamento. Os mais afastados deram passos ao lado e prepararam-se para golpear os cavaleiros
quando estes passassem por eles a galope. Os batavianos ignoraram os homens que não os ameaçavam directamente. O seu fito era a fuga, não a glória de uma luta até
à morte num pântano perdido algures no fim do mundo. Portanto, cobriram os corpos com os seus largos escudos ovais, encolheram-se nas selas, e esporearam as montadas.
A estreiteza da estrada obrigava a que não mais de dois cavalos galopassem a par, e isso obrigou-os a refrear a velocidade enquanto se organizavam em coluna. O momento
foi aproveitado pelos mais ousados dos legionários, que avançaram e cravaram as adagas na carne dos cavalos, ou nas partes desprotegidas das pernas dos cavaleiros,
entre as botas e as calças de cabedal. Um dos cavalos, atingido no flanco, atravessou-se no caminho, bloqueando a passagem dos três que o seguiam. Chocaram com o
animal ferido, que tombou e rolou sobre o flanco. No último instante, o cavaleiro saltou, caindo pesadamente aos pés de um grupo de legionários. Estes imediatamente
o aniquilaram com uma chuva de golpes. Os outros três, em desespero, lutaram para readquirir o controlo das suas montadas, e tentaram rodear o cavalo abatido, mas
era já tarde demais. Perdido o ímpeto do galope, os legionários rodearam-nos, arrancaram-nos das selas e liquidaram-nos no solo.
Cato apercebeu-se desta sequência de acontecimentos rápidos; depois, os seus olhos fixaram-se nos dois batavianos que tinham escapado à confusão e que se aproximavam
em grande velocidade, os dentes cerrados e os olhos muito abertos numa carga desesperada. O centurião notou no chão uma espada de cavalaria perdida e pegou nela,
estranhando o peso e o equilíbrio da arma nas suas mãos habituadas ao gládio. Aos lados, os homens que o tinham acompanhado começavam a recuar perante a aproximação
dos cavalos lançados pela estrada na sua direcção.
- Aguentem! Não os deixem escapar!
Um momento antes de os batavianos estarem em cima dele, Cato ergueu a espada, apontou-a cuidadosamente ao peito reluzente do cavalo mais próximo, e preparou-se para
o choque. O cavalo galopou directamente contra a ponta da espada, que lhe rasgou a pele, atravessou os músculos e trespassou o coração. Cato tinha posto todo o seu
peso por trás da espada, e o choque do embate projectou-o para o lado. Aterrou desajeitadamente sobre a erva ao lado da estrada, todo o ar expulso dos pulmões.
A explosão branca que lhe tinha preenchido o crânio ao aterrar
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começou a dissolver-se numa miríade de pontos brancos como estrelas. Desvaneceu-se por fim, e Cato apercebeu-se de que estava a olhar para o céu, cinzento e atravessado
pelo negro das folhas de erva. Não conseguia respirar, embora abrisse a boca na tentativa de encher os pulmões. Nos ouvidos ressoava-lhe uma campainha, e quando
Fígulo se debruçou sobre ele, com uma expressão preocupada, a princípio não conseguiu perceber uma palavra. Depois as palavras começaram a ser perceptíveis, enquanto
a campainha se afastava.
- Senhor? Senhor? Está-me a ouvir? Senhor?
- Pára... - Cato sacudiu a cabeça, e tentou inspirar normalmente.
- Páro? Páro o quê, senhor?
- Porra... Pára de berrar... aos meus ouvidos.
Fígulo sorriu e colocou um braço em redor dos ombros de Cato, ajudando-o a sentar-se. Espalhados ao longo da estrada viam-se corpos e poças de sangue. Alguns cavalos
também tinham sido abatidos, e ainda se agitavam. Os outros tinham fugido, sem cavaleiros. Apenas um dos animais se mantinha de pé, empurrando o corpo do comandante
bataviano com o focinho.
- E o último? - Perguntou Cato.
- Escapou. Deve ir a caminho da legião, tão veloz como o próprio Mercúrio.
- Merda... E quantos perdemos?
O sorriso de Fígulo desapareceu rapidamente.
- Um terço, talvez metade dos homens. Entre mortos e feridos. Alguns dos feridos morrerão, ou teremos que os abandonar, de qualquer maneira. Portanto, vai dar ao
mesmo.
- Oh... - Cato sentiu-se repentinamente cheio de frio, quando o choque que se seguia a todas as batalhas se apossou do seu corpo, como sempre lhe acontecia. Tremeu.
- Venha, senhor. - Pediu Fígulo. - De pé. Vamos ver o que se pode fazer quanto aos homens, e depois havemos de encontrar um lugar seguro para descansar, até que
a noite caia.
- E depois? - Interrogou-se Cato, em voz alta.
Fígulo sorriu de novo.
- Depois, vamos ter assado de cavalo!
216
XXVI
No dia seguinte, o exército do general Pláucio levantou o acampamento. Vespasiano observava a actividade da torre de vigia do campo da Segunda Legião, a sul do Tamisa.
Tinha-se levantado cedo, e agora, apoiado na balaustrada de madeira, assistia ao espectáculo da multidão de pontos negros que, no vasto campo fortificado que ocupava
a paisagem na margem oposta do rio, dobrava as tendas e tratava de arrumar todo o material. Por aquela altura, já o fumo disperso das fogueiras que tinham iluminado
a noite se misturara com a poeira entretanto levantada pelos homens, e formava uma difusa neblina que cobria a cena, banhada pelos primeiros raios de luz do dia
que se anunciava. Pequenos destacamentos dedicavam-se à demolição da paliçada e à recolha das armadilhas eriçadas de ferro que tinham sido espalhadas pelo fosso
exterior. Quando terminavam um sector, imediatamente outros grupos de homens atacavam o baluarte com pás e picaretas, e lançavam a terra para o fosso, enchendo-o.
Daí a poucas horas, o campo fortificado estaria completamente desmontado, e para trás não ficaria nada que o inimigo pudesse utilizar.
Já em muitas ocasiões tinha presenciado cenas semelhantes, mas aquela visão continuava a encher Vespasiano de satisfação e orgulho. Havia algo de quase miraculoso
na forma como cerca de trinta mil homens conseguiam erguer em tão pouco tempo um acampamento com as dimensões de uma pequena cidade, e depois arrasá-lo e seguir
para um novo local antes mesmo que o Sol aquecesse o solo. Lembrou a si mesmo que, de facto, não havia naquele processo nada de miraculoso, apenas o resultado de
longos anos de treino duro, que asseguravam que a tarefa era realizada com a máxima eficiência. Era a máquina de guerra romana no seu apogeu, e dela dependia a sorte
do Império. '
No lado mais afastado do campo, uma densa coluna de homens abandonava o recinto por uma brecha nos baluartes, no ponto em que o torreão da entrada já tinha sido
desmantelado. Vespasiano semicerrou os
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olhos para tentar perceber os detalhes, ao mesmo tempo que pequenas explosões de luz ocorriam ao longo da coluna, devido ao reflexo da luz do Sol nos capacetes polidos.
À medida que os legionários marchavam pelo caminho, ia-se levantando uma nuvem de pó que depressa obscureceu a
vista, engolindo a força principal.
A Nona Legião, acompanhada por dois regimentos de cavalaria e quatro coortes de infantaria auxiliar afastou-se do Tamisa, dirigindo-se para leste, com o fim de dominar
os últimos focos de resistência que persistiam entre os icenos e os trinobantes. Depois de concluída essa tarefa, o legado Hosídio Geta tinha por missão a construção
de uma rede de fortins para policiar a vasta região de rica terra arável que se estendia para norte até aos impenetráveis e extensos pântanos que marcavam o limite
do reino dos icenos. Um exército muito mais numeroso do que as pobres forças que restavam a Carátaco podia facilmente esconder-se nesses pântanos e nunca ser avistado
pelas patrulhas romanas.
Agora que os bretões tinham sofrido uma nova derrota e já não tinham capacidade para ameaçar o domínio romano, Pláucio podia dispersar as suas forças e dar início
ao processo de transformar o sul da ilha, devastado pela guerra, numa nova província romana. Havia colónias a estabelecer, cidades a construir, e uma rede de estradas
a desenvolver para as ligar a todas. E havia ainda a necessidade de criar uma classe de administradores e funcionários para gerir a província e garantir que ela
começava a render o mais cedo possível.
Poucos dias tinham decorrido desde a derrota infligida a Carátaco, e já o general tinha recebido instruções para nomear pessoal local para preparar o terreno para
os rendeiros que tinham conseguido arrematar os contratos relativos à nova província. Devia ser produzido um inventário completo dos reinos pertencentes às tribos
entretanto já completamente submetidas a Roma. Além disso, os reinos ainda independentes mas subordinados aos interesses romanos deviam ser avaliados de forma a
determinar qual o tributo adequado que deviam pagar ao tesouro imperial.
Era uma tarefa delicada, já que alguns destes reinos tinham maior importância estratégica do que outros. Os câncios, por exemplo, dificilmente poderiam afectar o
resultado da campanha em curso, mas já os icenos
- uma tribo poderosa e com tradições guerreiras - estavam localizados sobre o flanco direito das forças romanas, e era imperioso tratá-los com um respeito cuidadoso,
até que fosse possível reunir uma força suficiente para os intimidar e colocá-los no devido lugar. A norte, muito mais a norte, situava-se o reino dos brigâncios,
governado por Cartimândua, uma jovem rainha de indomável carácter, que tinha decidido que havia mais a ganhar em aplacar Roma do que em desafiá-la. Pelo menos por
enquanto. A seu
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tempo, todos estes reinos seriam incorporados no Império e submetidos à vontade de Roma. A presença de uma legião, acampada mesmo à porta era normalmente o suficiente
para fazer definhar qualquer tentação de rebelião contra a nova ordem. Mas se acaso decidissem resistir, depressa receberiam uma lição impiedosa sobre as realidades
da nova vida. O avanço para leste da coluna de Hosídio Geta era apenas o primeiro passo no processo que havia de conduzir as terras dos icenos à posse do Império.
Ao mesmo tempo, o general Pláucio levaria a Vigésima e a Décima-Quarta Legiões e a maior parte das coortes auxiliares, e seguiria para norte, para estabelecer a
nova fronteira da província e começar a empreitada de construção de estradas militares que permitissem a ligação entre as forças dispersas pela ilha.
A terceira coluna, comandada por Vespasiano, seria constituída pela sua legião, a Segunda, várias coortes de batavianos, quatro montadas e duas a pé, e duas grandes
unidades mistas de ilírios. O general Pláucio também prometera ao legado a utilização da armada que estava baseada em Gesoríaco, na Gália, assim que Vespasiano acabasse
com Carátaco e pudesse avançar para subjugar as tribos que, no sudoeste, insistiam em desafiar Roma. Mas o comandante bretão tinha-se fundido com a paisagem e Vespasiano
sentia-se frustrado perante a perspectiva de ter que desenterrá-lo do buraco em que se escondera. O Verão já se aproximava do fim, e daí a pouco as folhas começariam
a amarelecer e cair. A chuva não faltaria ao encontro, e as estradas depressa se transformariam em rios de lama que fariam com que os pesados carros dos comboios
de material se arrastassem penosamente e se enlameassem por completo. Eliminar a ameaça que Carátaco ainda representava podia muito bem ser a última operação que
o legado poderia conduzir antes do fim da época de campanha.
Há já quase três anos que comandava a legião, e duvidava que a sua folha de serviços fosse suficientemente brilhante para que a sua nomeação fosse prolongada por
muito mais tempo. A relação cordial que tinha estabelecido nos dois últimos anos com o general, seu superior, estava morta. Os dois homens olhavam-se agora com clara
hostilidade, e Vespasiano estava convencido de que Áulio Pláucio faria com que o substituíssem na primeira oportunidade. Em circunstâncias normais, um legado comandava
uma legião por um período de três a cinco anos, antes de regressar a Roma para desenvolver uma carreira política. Mas a Vespasiano tais ambições pareciam sensaboronas.
Que interesse tinha um cargo político relevante no Senado, se o verdadeiro poder em Roma residia no palácio imperial? Pior ainda, a promoção a qualquer cargo de
real importância dependia de cair nas boas graças do secretário imperial, Narciso. Só o pensamento de ter que bajular um liberto, ainda por cima um grego decadente,
deixava
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Vespasiano agoniado. Mas era suficientemente realista para compreender que os velhos valores republicanos em que o seu avô tanta esperança depositara eram praticamente
irrelevantes no mundo em que vivia. Em tempos, o destino de Roma era debatido por centenas de senadores, mas agora era um imperador que o impunha. E era essa a realidade
com que tinha que se defrontar.
Desde o momento em que tomara posse da sua posição de comando à frente da Segunda Legião, Vespasiano sentira-se em casa. A vida militar não tinha nada do embuste
permanente e do constante reverenciar do poder que caracterizavam a vida política na capital. Ao servir nas Águias, um homem tornava-se em larga medida senhor do
seu destino, e muitos subiam nas fileiras apenas à conta do mérito. Não havia aquele ininterrupto fabricar de esquemas para melhorar a situação própria, nem esquemas
dentro de esquemas. Em vez disso, um soldado recebia ordens claras e apenas lhe era pedido que se desembaraçasse da melhor forma para cumprir as suas tarefas. Era
um facto que havia uma enorme quantidade de papelada a tratar, e nunca na sua vida o legado tinha tido tão pouco tempo de descanso. Ainda assim, depois das curtas
horas de sono que conseguia aproveitar, acordava sempre com um renovado propósito, e com a sensação de que estava a fazer algo com real significado, algo que deveras
engrandecia o destino do povo de Roma, e da própria cidade.
Flávia ficaria feliz quando chegasse o momento em que ele teria que abandonar a legião, reflectiu, sentindo-se um tanto culpado. A sua esposa sempre considerara
o posto de legado como uma inevitável formalidade que era preciso suportar antes que o seu marido alcançasse uma elevada posição administrativa. O desconforto da
vida na fortaleza do Reno tinha-a desgostado do exército para sempre, e agora esperava impaciente na casa da família em Roma. Mas não em solidão, lembrou-se Vespasiano,
e sorriu. Tinha o pequeno Tito para lhe fazer companhia, e o miúdo estava a transformar-se num patife, se percebia bem as frases cautelosas que lia nas cartas que
ela lhe enviava. O miúdo mantê-la-ia ocupada. O suficiente para ela não ter tempo de se dedicar a outros assuntos.
Toda a alegria matinal de Vespasiano se dissipou quando o legado se confrontou com a ideia do regresso ao fosso de cobras da política romana. Até ali, nos limites
do mundo conhecido, rodeado pelos seus homens, sentia os tentáculos da traição e da ameaça a estenderem-se desde o coração do Império, para o rodearem e esmagarem.
Para ele já não haveria a vida simples do soldado, reflectiu com amargura. E era tolo se pensasse de outra forma. A política fazia parte do ar que a sua classe social
respirava, e ele nada podia fazer para alterar esse facto.
Um movimento na periferia do seu campo de visão atraiu-lhe a
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atenção. Vespasiano voltou-se e olhou para lá do baluarte, para onde a Terceira Coorte da sua legião tinha acabado de desmantelar o seu campo provisório e estava
a formar uma coluna de marcha. Uma centúria na frente, depois os estandartes, mais quatro centúrias, um pequeno comboio de bagagens, e então a retaguarda. Menos
de quatrocentos homens. A coorte parecia muito pequena depois das formações numerosas que tinha contemplado na outra margem do rio, e Vespasiano olhou-a com uma
peculiar mistura de desprezo e esperança. Tinha manchado a reputação da sua legião, e só a sua destruição poderia fazer desaparecer por completo tal lembrança. A
obliteração ou, em alternativa, um tal feito militar que fosse capaz de a redimir aos olhos dos seus camaradas e de todo o exército. Era aí que residia a esperança.
Fosse como fosse, o problema da incómoda presença da Terceira Coorte ficaria resolvido.
Se o plano que elaborara resultasse e Carátaco emergisse do seu esconderijo para morder o isco, era praticamente seguro que Máximo e os homens que comandava seriam
esmagados sem piedade antes que os seus camaradas pudessem fechar a armadilha sobre os guerreiros celtas.
O legado continuou a apreciar a forma como os centuriões davam ordens aos homens e se colocavam à frente das respectivas centúrias. O comandante da coorte fez uma
última inspecção à coluna e então dirigiu-se ao grupo dos estandartes e colocou uma mão em concha junto aos lábios. Um instante depois, o som abafado da ordem para
avançar que ele gritara chegou aos ouvidos de Vespasiano, ao mesmo tempo que a coluna se colocava em movimento.
? ? ?
- Senhor, temos que ter cuidado. - Disse o optio, dirigindo-se a Macro, e depois acenou na direcção do campo. - O legado está a ver-nos.
Macro virou-se e viu claramente a figura distante na torre, notando a túnica ricamente trabalhada mas já comida pelo sol, e a capa escarlate sobre os ombros. Mesmo
àquela distância, a cabeça larga e o espesso pescoço eram inconfundíveis.
- Que quererá ele? - Resmungou o optio.
Macro deu uma curta e amarga gargalhada.
- Só quer ter a certeza de que nos viu pelas costas.
- Hã? - O optio girou para olhar directamente para Macro, que se arrependeu instantaneamente do comentário descuidado. Olhou para o optio.
- Diz lá tu o que achas, Sêncio. Achas que o velho gosta assim tanto de nós que se veio despedir?
221
O optio corou e depois lançou um olhar sobre o ombro.
- Essa fila da frente, direita! Porra, vocês são legionários, não são a
merda dumas tropas auxiliares quaisquer!
Macro não se deixou enganar pela tentativa do optio disfarçar o embaraço que sentira, mas não impediu que ele usasse os homens para esse fim. Não fazia mal nenhum
manter os legionários na linha. Podiam estar desonrados, mas ainda eram soldados, e Macro tencionava não os deixar esquecer-se desse facto, nem por um segundo. Não
podia contudo evitar a apreensão perante o que o futuro lhes reservava, e não apenas porque a sua missão seria claramente a de atrair as forças inimigas. Isso era
normal, era parte do trabalho. Máximo tinha-lhe parecido um pouco mais do que calmo quando informara os oficiais na noite anterior. Como se esta fosse uma oportunidade
para ajustar as contas com os parentes distantes dos guerreiros nativos a quem o comandante da coorte atribuía as culpas pela sua queda em desgraça.
Quando a Terceira Coorte alcançasse o pequeno e aprazível vale que ladeava os pântanos, cairia sobre os nativos uma atroz vingança. Mas os riscos não seriam apenas
para os homens da coorte, reflectiu Macro. Se Cato e os fugitivos caíssem em poder dos bretões depois de a coorte começar a sua implacável tarefa, os guerreiros
nativos fariam com que padecessem uma morte lenta e dolorosa.
Enquanto a coorte marchava estoicamente pelo caminho que a conduzia ao ocidente, Macro lançou um olhar ao campo fortificado. Não podia deixar de se interrogar se
não seria a última vez em que via o resto da Segunda Legião.
Estava já seguro de que não voltaria a ver Cato vivo. Perseguido pelo seu próprio lado enquanto ao mesmo tempo se escondia do inimigo, o jovem centurião acabaria
por ser encontrado. E então morreria de espada na mão, numa curta e sangrenta escaramuça, ou seria executado a sangue-frio. Provavelmente já estava morto àquela
altura, decidiu Macro. Mas depressa se voltariam a reunir, nas sombras que reinavam na outra margem do Estige.
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XXVII

- Honório morreu durante a noite. - Murmurou Fígulo, enquanto se acocorava junto aos restos fumegantes da fogueira. Do outro lado, Cato estava sentado num velho
tronco coberto por líquenes e fungos que formavam brilhantes manchas amareladas. Aconchegou-se numa das capas batavianas, puxando-a para os ombros, tentando não
estremecer com o frio.
- Mais um, portanto.
- É verdade, senhor. - Concordou Fígulo; esticou as mãos sobre as cinzas pálidas, e deixou que um sorriso fraco lhe moldasse a face ao sentir o calor a espalhar-se
pelos dedos.
- Restam vinte e oito. - Cato ergueu a cabeça e passeou o olhar pelas formas aninhadas dos homens espalhados pela clareira. Alguns davam sinais de vida, agora que
os primeiros pálidos raios de luz se infiltravam por entre os troncos e ramos das árvores. Ouviam-se sons de homens a tossir, e dois deles conversavam em voz baixa;
o tom tornou-se ainda mais imperceptível quando se aperceberam do olhar do centurião na sua direcção. A clareira onde se encontravam estava situada numa zona baixa
que formava uma espécie de ravina, protegida das águas pelos montículos de terra que a rodeavam. Por trás destes ficava o pântano, escondido pela neblina que todas
as noites se levantava. Os fugitivos tinham tido a sorte de dar com
o pequeno vale no dia seguinte à escaramuça com os batavianos. Tinham deixado para trás, junto aos corpos dos cavaleiros, seis dos seus, também mortos no combate;
mas tinham levado os feridos, por muito grave que fosse o seu estado, seguindo para o interior do pântano por trilhos meio escondidos. Cato tinha tentado prestar
os melhores cuidados possíveis aos feridos, mas um a um tinham ficado cada vez mais enfraquecidos e acabado por falecer. Honório tinha recebido um golpe de lança
no estômago. Era um tipo forte, e tinha lutado, agarrando-se tenazmente à vida, cerrando os dentes perante as atrozes dores que a ferida lhe provocava, o rosto coberto
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de suor. Mas agora estava imóvel, e o centurião via o corpo como Fígulo o
dispusera, com os braços esticados ao longo do corpo.
Cato levantou-se, fazendo uma careta enquanto esticava os músculos doridos. Olhou então para o optio.
- Temos que arranjar comida. Ja há dias que não trincamos nada.
Fígulo anuiu.
Depois de estabelecer uma espécie de base, Cato tinha levado alguns homens em busca de abastecimentos. Tinham-se aventurado ao longo do trilho que passava pela ravina,
e a cerca de três quilómetros dali tinham dado com uma pequena ilha, onde quatro ovelhas estavam num redil junto a uma cabana em péssimo estado de conservação. No
interior desta repousava o corpo de um ancião. Estava morto já há algum tempo, pelo que o cheiraram antes de o verem. Cato concluiu que o velho devia ter adoecido
e morrido na cabana. Os romanos recolheram o patético monte de trapos que constituía todas as posses do homem, e tentaram conduzir as ovelhas para o seu refúgio
distante. Três dos estúpidos animais tinham fugido e desaparecido no pântano, e nada mais tinham sabido deles depois dos sons de chapinhar e do balir se extinguirem,
deixando de novo apenas o opressivo silêncio. O último tinha sido imediatamente abatido e assado numa fogueira que Cato só tinha permitido que os homens acendessem
depois de a última luz do dia desaparecer do céu. Era uma ovelha esquelética e miserável, o que explicava a razão de não ter fugido com as outras. As míseras lascas
de carne que produzira tinham durado dois dias, e agora a fome voltara a impor-se nos estômagos dos homens, que esperavam que o centurião resolvesse o problema.
Havia evidentemente animais que viviam naquela área, mas até ali não tinham sequer conseguido capturar um pássaro, e só uma vez tinham avistado algo maior: os quartos
traseiros de um pequeno cervo, que rapidamente se esgueirara pelo meio dos arbustos ao aperceber-se do cheiro dos homens. As lanças que tinham recuperado dos cadáveres
dos batavianos ainda não tinham sido utilizadas na caça, e os sons constantes dos estômagos dos romanos ameaçavam sobrepor-se aos ruídos feitos pelos pássaros que
esvoaçavam nas proximidades.
- Assim que houver luz, vou sair com um grupo. - Indicou Cato.
- Tenho a certeza de que, desta vez, vamos encontrar alguma coisa.
- E se isso não acontecer, senhor?
Cato olhou atentamente para a expressão no rosto do optio, mas não se apercebeu de qualquer desejo de questionar a sua autoridade, e sentiu-se um pouco envergonhado.
Fígulo não precisava de demonstrar o que quer que fosse. Não depois de ter arriscado a vida para salvar a de Cato e as dos homens. A sua situação actual era uma
fraca recompensa para a lealdade
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que tinha demonstrado ao centurião, um facto que contribuía para este 'se sentir ainda mais miserável e culpado. Era uma dívida que provavelmente nunca teria ocasião
de pagar.
Mas, se a lealdade de Fígulo não podia ser questionada, a do resto daquele lastimoso bando de refugiados era outra conversa. Desde que se tinham internado no pântano,
há quatro dias, que Cato pressentia que a distância que os separava da legião era mais do que meramente geográfica. Os homens ainda mal compreendiam o desespero
da situação em que se encontravam, e a seu tempo deixariam de respeitar a patente que ele tinha exibido. Quando isso sucedesse, só Fígulo se interporia entre o centurião
e a completa ausência de autoridade. Se alguma vez perdesse a lealdade do optio, Cato estaria perdido. Todos o estariam, a não ser que permanecessem unidos e agissem
como uma equipa.
Como teria Macro resolvido o assunto? Cato estava certo de que o seu amigo encontraria muito melhores maneiras de lidar com a situação. Baixou a cabeça para ocultar
o desespero que sentia, antes de responder à questão de Fígulo.
- Nesse caso, continuarei a levar os homens à procura de alguma coisa para comer. Se não encontrarmos nada, acabaremos por morrer à fome.
- É isso?
- É, optio. É tudo o que podemos fazer.
- E o que acontecerá quando chegar o Inverno, senhor?
Cato encolheu os ombros.
- Duvido que consigamos resistir assim tanto tempo...
- Isso depende de si, senhor. - Fígulo olhou em volta, depois rodeou as brasas quase extintas, de forma a aproximar-se do centurião e ter a certeza de que não era
escutado por outros. - Mas era bom que tivesse algum plano. Os homens precisam de qualquer coisa que os mantenha ocupados. Que não os deixe pensar no que se vai
passar a seguir. Senhor, será melhor arranjar alguma ideia, e depressa.
Cato abriu as mãos, desesperado.
- Mas o quê? Não há equipamento para ser mantido, não há casernas para inspeccionar, não há treino, nem marchas, e é impensável entrarmos em combate com o armamento
que possuímos. Não há nada para fazer a não ser mantermo-nos escondidos. - Sentiu o estômago a queixar-se, e foi denunciado por um ronco que se escapou de debaixo
da sua imunda túnica. - E procurar comida.
Fígulo abanou a cabeça.
- Senhor, isso não chega. Tem que fazer melhor do que isso. É para si que os homens olham.
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- Mas o que é que eu posso inventar?
- Não faço ideia. É o senhor o centurião. É essa a sua função. O que se passa é que, seja o que for, é melhor fazê-lo depressa... senhor.
Cato levantou a vista e anuiu fracamente.
- Tenho que pensar. Enquanto estiver fora a caçar, põe os homens
a tratar dos abrigos.
- Abrigos, senhor?
- Sim. Por agora, vamos ficar neste local. E, sendo assim, podemos
ver se arranjamos algum conforto. Além disso, - Cato acenou na direcção dos homens, - o trabalho vai mantê-los ocupados.
Fígulo ergueu-se com um suspiro de frustração e afastou-se, dirigindo-se à orla da clareira, onde desembainhou a espada e se deixou cair sentado no solo. Procurou
a pequena pedra que tinha enrolado na tira de pano gasto e sujo que usava à cintura, e começou a passá-la pelo gume da lâmina, num movimento ritmado mas lento e
deliberado, que produzia um ruído de raspar. Cato observou-o durante algum tempo, fortemente tentado a dar-lhe um berro e a ordenar-lhe que parasse de produzir aquele
irritante som, mas conseguiu conter-se, embora com dificuldade. Fígulo tinha razão, compreendeu subitamente. Soldados sem tarefas que os ocupassem eram homens sem
propósito. E depois era apenas uma questão de tempo até que se tornassem salteadores.
Mas o que poderia ele conseguir com vinte e oito homens, que apenas dispunham de espadas, mais algumas lanças e escudos retirados aos batavianos mortos? A mera sobrevivência
parecia ser o limite da sua capacidade de acção, e Cato sentiu que mergulhava ainda mais profundamente nas águas negras da depressão.
? ? ?
Antes que o Sol dispersasse a neblina que se espalhava sobre o pântano, Cato escolheu quatro homens para o acompanharem numa busca por comida. Entre eles seleccionou
Próculo. O homem tinha ganho o hábito de agarrar os joelhos e começar a balouçar para a frente e para trás, assim que se via sem nada para fazer. Isso estava a mexer
com os nervos dos outros legionários, e Cato pensou que era melhor para todos que Próculo se ausentasse do acampamento por algumas horas. Escolheram as melhores
lanças batavianas, e prenderam adagas nas tiras que usavam à cintura. Cato deu a Fígulo ordens para que se empenhassem na construção dos abrigos, e deixou a clareira
com os homens que escolhera, seguindo pelo trilho que serpenteava entre dois afloramentos rochosos e descia para o pântano. Água parada e escura, da qual irrompiam
226

grandes juncos, rodeava a estrada em mau estado, e depressa o ar se tornou pesado com o fedor da decomposição e com o incessante zumbir dos insectos.
Já tinham seguido aquele caminho várias vezes, e conheciam o seu percurso curvilíneo, pelo menos por alguns quilómetros. Embora fosse claramente de origem humana,
devia ser muito pouco usado, e de vez em quando desaparecia por completo, nos pontos ja reclamados pelo mato rasteiro típico da região. Cato avançava à frente, seguido
por Próculo, e assim os romanos foram andando, os olhos e ouvidos sempre atentos a qualquer sinal de vida. Aqui e ali, o trilho descia e era coberto pela água de
aspecto oleoso, ou por uma camada macia de lama negra, que os legionários se viam forçados a atravessar, lançando imprecações mudas por entre os sons de sucção e
atolamento que Cato imaginava que poderiam ser ouvidos a alguns quilómetros de distância. Num ponto, o trilho cruzava-se com outra estrada muito mais larga que se
orientava de norte para sul e que tinha aspecto de ser o caminho mais usado pelas tribos nativas nas suas deslocações pela desolada extensão pantanosa. Os romanos
atravessaram-na rápida e furtivamente, lançando olhares nervosos em todas as direcções para se assegurarem de que ninguém os via.
Durante quase duas horas, pelos cálculos de Cato, seguiram o trilho, acabando por chegar ao ponto mais distante até onde já se tinham arriscado. Ali o caminho desembocava
numa língua de terra firme coberta por grandes tufos de arbustos espinhosos. A neblina quase tinha desaparecido, restando apenas alguns bancos espalhados pela paisagem
deprimente. O sol abatia-se sobre o pântano, e o ar estava pesado e sufocante. A túnica de Cato colava-se-lhe às costas com o suor, e produzia um irritante formigueiro
na pele.
- Vamos descansar, e depois voltamos para trás. - Decidiu.
Um dos homens abanou a cabeça.
- Mas ainda não encontrámos nada para comer, senhor.
- Voltaremos a tentar mais tarde, Metélio. - Cato obrigou-se a sorrir. Percorrer o pântano podia ser uma tarefa sem esperança, mas ao menos mantinha os homens ocupados.
- Logo à tarde, possivelmente.
O legionário abriu a boca para emitir um protesto, mas engoliu as palavras quando o sorriso de Cato se apagou e foi substituído por uma expressão dura e determinada,
denunciada pelo brilho da ameaça nos olhos do centurião. Por momentos encararam-se, enquanto os outros homens esperavam, tensos. Por fim, Metélio desviou o olhar
e aquiesceu.
- Como queira, senhor. - Murmurou.
- Exactamente. Como eu quero... Agora vejam se encontram uma sombra e se descansam um bocado. Eu encarrego-me de vigiar. Depois
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regressaremos ao campo. Se tivermos sorte, até pode ser que encontremos
alguma coisa pelo caminho.
Os outros olharam-no com expressões de azedume e dúvida, e
Cato só conseguiu encolher os ombros.
- Está bem, mas ao menos vejam se descansam.
Deixando os homens à procura de protecção do Sol, Cato meteu-se pelo meio de uns arbustos, até chegar à margem do pântano. Ajoelhou-se, debruçou-se sobre a água
e recolheu alguma na palma da mão. Tinha um tom acastanhado e cheiro a podridão. Alguns dos homens no campo tinham bebido daquela água e desde então tinham ficado
com as tripas revoltas, o que os enfraquecia inexoravelmente. Cato cheirou-a, desconfiado, mas tinha a garganta tão seca que ponderou o risco, enquanto passava a
língua inchada pelos lábios secos. Decidiu que uma morte à sede não era melhor do que outra qualquer, e bebeu, recolhendo mais água na mão até saciar a sede. Levantou-se
e regressou para junto dos outros, deslocando-se sem ruído pelo meio das giestas. Três dos homens já dormiam, um deles ressonando de forma audível, e Próculo estava
sentado à sombra, embalando-se no seu habitual ritmo.
Cato preparava-se para lhe dar algumas palavras de conforto quando o homem se imobilizou, olhando fixamente para o trilho que tinham seguido. Cato virou-se e avistou
um pequeno veado que esticava o pescoço, o focinho delicado a mover-se pelo ar. Enquanto o centurião se imobilizava e olhava, o animal arriscou-se pelo trilho e
baixou a cabeça, enquanto se movia pelos tufos de erva. Próculo fez menção de acordar Metélio, mas Cato fez-lhe sinal para estar quieto, erguendo um dedo. Se o outro
fosse acordado, o mais certo era espantar o animal.
Os dois homens permaneceram assim, como estátuas, observando com olhares gulosos o veado que continuava a aproximar-se, despreocupado. Cato já conseguia escutar
o som dos pequenos cascos na terra seca, e apertou com mais força o cabo da lança de cavalaria que empunhava, sopesando-a. Quando chegou à área aberta, o animal
estacou, as orelhas a moverem-se enquanto captavam o som do homem a ressonar. Bateu com as patas da frente no solo, esperou e repetiu o gesto. Quando nada se moveu
em resposta, esperou ainda mais uns instantes, e então avançou para o espaço entre Cato e Próculo. Aí parou de novo e virou o focinho na direcção de Próculo, examinando
atentamente o romano que se mantinha como que petrificado.
Cato puxou atrás o braço com que lançava, e apontou cuidadosamente a ponta da lança na direcção do corpo escuro do veado. Sobre o dorso do animal conseguia ver o
rosto de Próculo. Com raiva mal suprimida, o centurião apercebeu-se de que o homem estava directamente na trajectória
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da lança. Se o animal se mexesse, Próculo receberia o impacto em pleno peito.
- Merda... - Vociferou.
O veado representava vários dias de carne para os homens. Sem ele, passariam fome, e daí a pouco já nem forças teriam para caçar. A isso só poderia seguir-se uma
morte lenta e penosa. Porém, se lançasse e falhasse, mataria com certeza Próculo. Cato lançou uma rápida prece a Diana, para que o animal se mexesse, nem que fosse
apenas uns passos. Mas o veado mantinha-se imóvel, como uma estátua. Só os flancos se moviam, subindo e descendo ao ritmo da respiração da criatura. Cato conseguiu
atrair a atenção do legionário, e este pareceu perceber a intenção do centurião.
Com um grunhido, Cato impulsionou a lança numa trajectória veloz e quase plana. O som explosivo que produziu alertou o veado, que deu um pulo no ar. Ouviu-se um
som surdo quando a lança o atingiu, penetrando-lhe o flanco, trespassando os músculos e alojando-se nos ossos. Com um guincho de terror e agonia, o animal tombou,
e imediatamente se debateu para voltar a colocar-se sobre as patas.
- Apanhem-no! - Gritou Cato, atirando-se para a frente.
Próculo aproximou-se do animal com as mãos estendidas como
garras. Os outros legionários despertaram do torpor em sobressalto e procuraram as armas.
- Apanhem-no! - Voltou a apelar Cato. - Antes que fuja!
O veado tinha conseguido voltar a equilibrar-se sobre as patas e tinha-se esquivado a Próculo, lançando-se sobre os arbustos mais próximos, arrastando a lança presa
nos quartos traseiros, e deixando um rasto de sangue quente e brilhante. A haste da arma prendeu-se nas folhagens e fez o veado tropeçar e quase cair de novo. Conseguiu,
no entanto, manter-se de pé e prosseguir, num pânico cego. Próculo perseguiu-o, com Cato apenas uns passos mais atrás. Os outros homens, já de pé, juntaram-se à
perseguição.
- Próculo! Não o deixes fugir, homem!
Com um estrondoso coro de arbustos a quebrar e ramos a serem arrastados, o veado ferido tentou afastar-se dos perseguidores, mas a haste da lança continuava a perturbar-lhe
a fuga, e Próculo, arranhado e ensanguentado, conseguiu aproximar-se dele. Na confusão, deixaram ambos para trás os arbustos, indo dar a uma curta extensão de relva
a que se seguia uma zona plana de terra escura e fendida. O veado tomou impulso e saltou, desenhando um arco no ar e voltando a tocar o solo uns três metros mais
à frente. Os cascos afundaram-se na lama, de tal forma que o animal tentou dar novo salto mas não conseguiu. Próculo julgou ver a sua oportunidade e lançou-se sobre
ele, aterrando na lama, quebrando a crosta já fracturada e enterrando-se no lodaçal quase até aos joelhos. Grunhindo com o esforço,
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extraiu um pé e plantou-o mais à frente; tentou fazer o mesmo com o outro, mas a sucção da lama era demasiado forte. Poucos metros à frente, o veado debatia-se num
círculo cada vez maior de lama remexida e malcheirosa, de forma que a haste da lança ainda presa na sua carne passou ao alcance de Próculo. O legionário agarrou-a
imediatamente, segurou-a com firmeza e arrancou-a, no preciso momento em que Cato e os outros chegavam à margem relvada.
- Merda! - Gritou Metélio. - Caramba, conseguimos apanhá-llo!
O legionário já se adiantava, mas Cato pôs-lhe a mão à frente do peito, impedindo-o de prosseguir.
- Espera!
Metélio preparava-se para afastar o braço do centurião, mas nesse momento este apontou Próculo com a outra mão. O legionário afundava-se na lama enquanto tentava
firmar-se para acabar com o veado espetando-lhe de novo a lança.
- Olha! - Gritou Cato. - Isto é tudo menos seguro. Espera!
Próculo, enterrado até aos joelhos no lodaçal, inclinou-se e espetou
a lança no pescoço do veado, depois soltou a lâmina e voltou a golpeá-lo. Por fim, o veado soltou um derradeiro bramido e deixou pender a cabeça sobre a lama, enquanto
a língua lhe saltava por entre os lábios. O peito arfou ainda algumas vezes, e depois imobilizou-se definitivamente. O sangue escorria das múltiplas feridas e espalhava-se,
brilhante, sobre a lama remexida.
Próculo ergueu a lança sobre a cabeça e soltou um grito de triunfo e prazer, e depois virou-se para os seus camaradas com um largo sorriso na face; mas este rapidamente
se transformou numa careta quando se apercebeu das expressões preocupadas dos outros.
- Está-se a afundar. - Pronunciou Metélio, sem espanto.
Próculo olhou para baixo e viu que a lama negra já lhe chegava às
coxas, e que a água começava a ensopar-lhe a bainha da túnica rasgada. Fez um tremendo esforço para levantar uma perna, mas só conseguiu enterrar-se mais um bocado.
Apelou aos camaradas, com os primeiros traços de medo a surgirem na sua expressão.
- Ajudem-me.
- A tua lança! - Cato fez um gesto na direcção do legionário.
- Tenta alcançar-nos com ela.
Próculo agarrou na haste, mesmo atrás da ponta metálica, e esticou-se, tentando colocar a outra ponta ao alcance dos camaradas. Cato esticou o braço tanto quanto
pôde, os dedos a esforçarem-se por alcançar o cabo, mas ainda havia um vazio impossível de transpor.
230
Virou-se para Metélio.
- Agarra-me pelo braço, e segura-me bem.
Com Metélio a servir-lhe de âncora no terreno mais firme, Cato arriscou dar um passo na superfície fendida da lama, mas o pé afundou-se imediatamente alguns centímetros.
Voltou a debruçar-se para a frente, e desta vez os dedos conseguiram alcançar a oscilante ponta da haste. Fechou-os em volta da madeira e começou a puxar. Via perfeitamente
as mãos de Próculo, cerradas com toda a força naquela que podia ser a sua única possibilidade de salvação. Por trás delas, era impossível não reparar nos olhos esbugalhados
de terror que o fixavam.
- Aguenta! - Grunhiu Cato por entre os dentes. - Agarra-te bem, homem!
Por instantes sentiu que a lança se aproximava, mas depois deixou de existir movimento, por muita força que fizesse para puxar o legionário de volta à margem. Fechou
os olhos e depois de um derradeiro esforço, intenso, mas sem resultados, deixou que os músculos se distendessem.
- Não está a resultar. - Deitou um rápido olhar à volta, e rapidamente decidiu o que devia ser feito. - Precisamos de qualquer coisa que aguente o peso. Cortem uns
ramos. Deitem-nos para a lama. Depressa!
Enquanto o centurião e os outros empunhavam as adagas e começavam a serrar os finos ramos de giesta, Próculo olhava em redor com terror crescente. A lama continuava
a sugá-lo sem cessar, e já lhe chegava à cintura. Por trás dele, o veado, morto e por isso imóvel, afundava-se mais lentamente, mas a cabeça já tinha desaparecido,
vendo-se apenas uma das orelhas a romper a superfície da oleosa água que formava uma fina película sobre o lodo.
- Tirem-me daqui! - Próculo fez força contra a lama, e depois tentou afastá-la do peito.
- Deixa-te estar quieto, palerma! - Rosnou Cato. - Assim só consegues afundar-te mais depressa. Não te mexas!
Os ramos eram mais rijos do que Cato esperava, e ainda nem um tinha sido cortado. Em vez de continuar a serrar, tentou golpear a polpa branca no interior do ramo
que atacara, mas este apenas se dobrou, cedendo à pressão mas não se quebrando.
- Merda!
Recomeçou a serrar, com crescente desespero ao observar Próculo, que já tinha a lama pelo peito.
- Até que enfim! - Um dos homens soltou um grunhido e atirou um ramo para a lama junto à margem, atacando imediatamente outro ramo.
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- Foda-se! - Gritou Próculo. - Despachem-se, seus filhos da
puta! Mais depressa!
A adaga cortou finalmente através do ramo que Cato segurava, e
sem perder tempo virou-se e lançou-o sobre o anterior, enquanto apreciava a situação do legionário aprisionado.
- Oh não... - Sussurrou. Já só a cabeça e os ombros do homem se
viam acima da superfície, enquanto ele esticava os braços sobre a lama, na direcção dos seus camaradas. Ainda agarrava a lança com toda a força na mão direita. Ouviu-se
um som de sucção e Próculo afundou-se mais um bocado, enquanto a água oleosa lhe alcançava a boca.
- Merda! - Vociferou. - Tirem-me daqui!
Cato largou a faca e deu um passo na direcção dos ramos que se espalhavam sobre a lama.
- Não! - Metélio agarrou-lhe o braço. - É tarde demais...
Cato soltou o braço com brusquidão e virou-se para Próculo,
mas já só conseguiu ver a cabeça do homem inclinada para trás, os olhos arregalados de terror enquanto a lama lhe cobria o nariz. Depois só se viu o cimo do crânio,
e por fim o braço, com os dedos em garra a tentarem desesperadamente agarrar o vazio. No local em que a cabeça desaparecera ficou uma poça de água, que se agitou
por momentos mas acabou por se aquietar. Ao lado, a mão do legionário voltou a erguer-se acima da lama, os dedos ainda crispados. Finalmente, e a pouco e pouco,
relaxaram, e a mão descaiu.
Durante alguns momentos tudo ficou calmo e silencioso, enquanto os homens na margem contemplavam o lugar onde a cabeça do camarada desaparecera.
- Foda-se... - Desabafou um dos legionários.
Cato deixou-se cair sobre a relva, e os outros seguiram-lhe o exemplo, sentando-se ao seu lado. Enquanto olhavam, o lamaçal foi engolindo, a um ritmo quase imperceptível,
a carcaça do veado, sem que pudessem fazer mais do que lamentar e tentar superar o choque pelo que acontecera a Próculo, e esquecer a fome que aquele animal não
saciaria. Por fim, também desapareceu por completo, a água oleosa fechou-se sobre a pele ensanguentada, e nada mais restou.
Ao cabo de algum tempo, Cato pôs-se de pé e voltou a colocar a adaga na faixa que tinha à cintura.
- Vamos.
- Vamos? - Metélio franziu o sobrolho, enquanto olhava para o centurião. - Vamos para onde, senhor?
De volta ao campo.
- Para quê?
232
- Temos que ir andando. - Explicou Cato, pacientemente. - O nevoeiro levantou. Podemos ser vistos.
- Pouco importa, senhor. - Retorquiu Metélio, com um ar de cansaço absoluto. - Mais cedo ou mais tarde, este maldito pântano vai-nos apanhar a todos.
233
XXVIII

A Terceira Coorte chegou ao vale dois dias depois de desmontar o campo junto ao Tamisa. Enquanto a luz desaparecia no horizonte, Máximo deu ordens para que as tendas
fossem montadas e para que fosse construído um perímetro defensivo. Em frente à coorte, na base das colinas, estendia-se um vale pouco profundo, com uns três quilómetros
de largura e não mais de doze de comprimento. O pântano estendia-se até onde a vista alcançava, por trás de uma pequena e espaçada linha de colinas - um conjunto
desolado de maciços de juncos e árvores atarracadas, separados por vastas áreas cobertas por água escura, e aqui e ali uns bosques instalados em montículos de terreno
que se elevavam acima do nível do pântano como se fossem o dorso arqueado de alguma gigantesca criatura marinha.
Da pequena torre de vigia erigida junto ao portão do campo fortificado, o centurião Macro tinha uma boa vista sobre todo o vale, e via dúzias de ténues colunas de
fumo a subirem por entre as suaves ondulações do terreno. Mais próximo do campo, adivinhava algumas aglomerações de cabanas circulares, e uma ligeira névoa que pairava
sobre um bosque a meio do vale indicava a existência de uma povoação de razoáveis dimensões. Tudo tinha um ar pacífico, pensou. E tudo mudaria nos próximos dias.
Ouviu um raspar de botas cardadas sobre madeira e, logo a seguir, a cabeça de Máximo emergiu por entre as tábuas que formavam o soalho da torre. O comandante da
coorte acabou de subir as escadas e limpou a testa húmida de suor com as costas do braço.
- Está calor!
- Está, senhor.
- Mas valeu a pena puxar pelos homens, para chegarmos cá antes que anoitecesse.
- Sim, senhor. - Voltou a responder Macro, enquanto lançava uma olhadela na direcção dos legionários que ainda se atarefavam na construção da última secção de fosso
e baluarte num dos lados do campo. Os
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homens que constituíam o piquete de defesa formavam uma linha dispersa a cerca de cem passos do fosso. Quase todos se limitavam a aguentar-se de pé, apoiando o peso
no escudo, em posições que demonstravam a absoluta exaustão que os dominava. Se o inimigo atacasse naquele momento, ou até naquela noite, os homens da coorte estariam
demasiado extenuados para serem capazes de montar uma defesa razoável. Para ser justo para com Máximo, aquele era o tipo de decisão que afligia todos os comandantes:
a escolha entre a rapidez na definição de uma boa posição e a capacidade de combate dos homens. Pelo menos quando chegasse a manhã, a Terceira Coorte teria apenas
uma curta distância a percorrer, e estaria pronta e disposta a enfrentar toda e qualquer ameaça que emergisse dos pântanos.
O centurião-chefe olhava para o vale, na direcção da povoação escondida pelo bosque. Ergueu o braço e apontou.
- Estás a ver aquela colina ali, ao lado da floresta, mesmo ao pé do
rio?
Macro olhou na direcção que Máximo apontava e assentiu.
- Parece ser o melhor local para montar um acampamento mais duradouro. Visibilidade em todas as direcções, água em abundância. Vem mesmo a calhar, não achas?
- Sim, senhor. - Macro começava a ficar cansado das mal-disfarçadas tentativas do seu superior para entabular uma conversa. Se Máximo queria trocar impressões, faria
melhor em procurar a companhia de Félix, sempre disposto a dar graxa ao comandante. Além do mais, Macro não se sentia seguro de que conseguiria manter uma conversa
com ele, carregando o peso de ter sido ele a libertar Cato e os outros. Máximo ainda não desistira de descobrir o responsável, e por isso Macro temia que o outro
usasse algum estratagema para o levar a admitir nem que fosse o mais pequeno resquício de culpa ou cumplicidade no acontecido.
O comandante da coorte virou-se para encarar o subordinado e, em silêncio, perscrutou-lhe a expressão durante um curto período. Macro sentiu-se inconfortável perante
tal observação, mas não tinha a certeza sobre qual seria a melhor forma de lhe responder, portanto manteve-se calado e a olhar em frente, como se se preocupasse
em avaliar o terreno que a coorte teria que percorrer na manhã seguinte.
- Não gostas lá muito de mim, pois não?
Não havia forma de o evitar; Macro tinha que enfrentar o superior, pelo que resolveu mostrar uma expressão de surpresa.
- Senhor?
- Oh, não te faças parvo! - O comandante da coorte sorriu. - Nunca te preocupaste muito em esconder o facto de não aprovares o meu comando, desde que foste nomeado
para a Terceira Coorte.
235
Macro estava assombrado. Teria sido assim tão óbvio? Era deveras preocupante De que mais se teria Máximo apercebido? Um arrepio de frio percorreu-lhe a nuca. O outro
devia estar a brincar com ele, a estender-lhe uma armadilha, a testá-lo, e a sua mente reagiu em pânico.
- Senhor, não quis faltar-lhe ao respeito! É assim que eu sou. Não tenho... não tenho muito jeito para lidar com os outros.
- Patranhas. Não foi isso que me disseram. És um líder natural. Salta à vista. - Os olhos de Máximo semicerraram-se. - Talvez seja isso mesmo. Deves pensar que és
melhor do que eu.
Macro abanou a cabeça vigorosamente.
- Que se passa? Estás com medo de falar?
Macro enfureceu-se, e respondeu com vigor:
- Senhor, não tenho medo de nada! O que deseja? O que é que quer que eu diga, senhor?
- Calma, centurião! Calma... - Máximo deu uma leve gargalhada. - Só me interroguei sobre o que pensavas, nada mais. Não queria provocar-te.
Não queria provocar... Macro sentia um desprezo amargo pelo comandante. Os verdadeiros soldados não praticavam jogos deste género. Só os loucos e os políticos, e
não estava seguro de que existissem diferenças entre essas duas categorias de gente.
- Mas queria realmente conversar contigo. Conheces o Cato há bastante tempo, não é?
- Desde que ele se juntou à Segunda, senhor.
- Bem sei. Consultei os registos. Portanto, és a melhor pessoa a consultar para perceber os planos dele.
- Sobre isso nada sei, senhor.
Máximo assentiu, devagar.
- Mas conheces o homem. Acho que as tuas ideias sobre o assunto podem ser importantes. O que é que supões que ele vai fazer? Até pode estar já morto. Mas imaginemos
que ainda vive. O que fará ele agora? Então?
- Eu... Eu não faço a mais pequena ideia, senhor.
- Vá lá, Macro! Pensa nisso. Se não soubesse, era capaz de pensar que estás a tentar protegê-lo.
Macro quase se forçou a soltar uma gargalhada, mas imediatamente compreendeu que o riso soaria vazio e não enganaria ninguém, muito menos o nervoso comandante.
- Senhor, deve conhecer a minha ficha. Sabe portanto que eu sigo
sempre as regras, e não tenho qualquer simpatia por quem as infringe, muito menos por quem me deixa, a mim e aos meus camaradas, enterrado na merda até ao pescoço.
Por mim, o Cato vai ter o que merece. Quanto ao que
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ele faz ou deixa de fazer, só posso tentar adivinhar. Não o conheci assim tão bem que seja capaz de prever as suas acções. - Não estava a fugir à verdade, e mal
resistiu à vontade de sorrir, quando continuou. - Ele é capaz de tudo. Até pode tentar derrotar o Carátaco, sozinho.
- Essa ideia é absurda. Não teria qualquer hipótese.
- Ele deve saber bem disso, senhor. Mas o exército é toda a família que lhe resta. Sem nós, ele não é nada. E fará o que for preciso para recuperar um lugar na legião.
Por isso, estou certo que ele está algures nos pântanos, à espera, atento a qualquer oportunidade. Aliás, provavelmente até está a observar-nos neste momento...
E não seria o único, senhor. Veja, ali!
Macro acenou na direcção da quinta mais próxima. Um pequeno número de figuras observava o forte romano, por trás de umas pilhas de feno, a umas centenas de metros.
Limitavam-se a olhar, sem fazer qualquer movimento.
- Senhor, deseja que envie uma patrulha para os afastar?
- Não. - Máximo apreciou-os com dureza no olhar. - Isso pode esperar até amanhã. Entretanto, vamos permitir que os locais espalhem a notícia da nossa chegada, e
deixemo-los suar um bocado. É isso mesmo que queremos: espalhar o medo e a ansiedade.
? ? ?
Na manhã seguinte, a coorte desmantelou o campo e prosseguiu a caminhada pelo vale. Macro sentiu-se vigiado ao longo de todo o caminho. De vez em quando olhava,
mesmo a tempo de ver um rosto a desaparecer por trás de uma árvore, ou a esconder-se por entre as searas que ladeavam o caminho. A sua longa experiência permitia-lhe
aperceber-se da disposição do terreno e, à medida que avançavam, tentava avaliar todos os bons locais para emboscadas que encontravam. Mas nenhuma armadilha os esperava,
nem um único gesto de hostilidade ou desafio foi realizado na sua direcção enquanto atravessavam o pacífico vale.
Ao fim de uma hora de marcha em passo regular, a coluna circundou a floresta e começou a subir a encosta do pequeno outeiro que Máximo escolhera para instalar o
campo definitivo. À esquerda, na outra margem do rio, e num declive gentil, situava-se uma aldeia de razoáveis dimensões, composta pelas habituais cabanas redondas
e por edificações menores, estábulos e celeiros. O fumo erguia-se lentamente das aberturas no tecto de algumas cabanas. Alguns vultos movimentavam-se junto à paliçada
que rodeava a aldeia, e Macro não pôde deixar de reparar que os portões estavam encerrados.
- Oficiais, junto a mim! - Berrou Máximo.
237
Quando todos os centuriões e optios se apresentaram, o comandante da coorte removeu o capacete, enxugou a testa com a protecção de feltro e começou a dar-lhes instruções.
Entretanto, os legionários iniciaram os trabalhos de construção na área que os agrimensores já tinham delineado para o campo. Um destacamento de sentinelas foi imediatamente
colocado em redor da crista da colina, enquanto os seus camaradas atacavam o solo com as picaretas, para cavar o fosso e erigir o baluarte.
- Túlio!
- Senhor?
- Quero um fosso extra à roda do campo. E o terreno entre os dois fossos tem que ser semeado com obstáculos, daqueles que magoam, e estacas.
Túlio anuiu com ar de aprovação. Pequenas covas com estacas aguçadas no centro seriam uma importante defesa adicional.
- Sim, senhor. Transmitirei as suas ordens ao responsável pelas
defesas.
- Não. Vais tu tratar disso em pessoa. Quero isso feito em condições. E também quero um portão fortificado construído na estrada, ali onde ela sai do pântano. Vê
se é construído assim que o campo estiver pronto.
- Sim, senhor.
- Muito bem. - Máximo aclarou a garganta, e voltou a atenção para os optios. - Sabem porque estamos aqui. O general e o legado querem que os fugitivos sejam encontrados
e recambiados. Tanto quanto sabemos, eles estão ali para o pântano. Vocês, optios, conduzirão patrulhas regulares pela região. Não conhecemos os caminhos e os trilhos
do interior do pântano, mas - Máximo sorriu - devemos ser capazes de convencer alguns dos locais a servir de guias, daqui a uns dias. Entretanto, apesar do ar tranquilo
da região, devemos estar prontos para enfrentar um ataque em força, a qualquer momento.
Alguns dos oficiais trocaram olhares de surpresa. Enquanto tinham marchado pelo vale, não tinham notado qualquer sinal de problemas, e os camponeses que por ali
habitavam nunca deviam ter empunhado algo mais perigoso do que uma foice.
Máximo troçou das suas expressões.
- Estou a ver que alguns de vós pensam que estou a ser demasiado cauteloso. Pode ser que sim, mas lembrem-se que Carátaco, esteja ele onde estiver, ainda tem uns
valentes punhados de homens...
Sim, uns largos milhares deles, concordou Macro, em pensamento. Os suficientes para varrer a coorte do mapa.
Não se preocupem com os locais. E não percam tempo a tentar
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estabelecer boas relações com eles. Aliás, - Máximo fez uma pausa para dar maior ênfase às palavras que proferiu em seguida, - quero que os tratem de forma a não
lhes deixar dúvida de qualquer espécie de que Roma está aqui para ficar, e de que nada mais lhes resta do que submeterem-se à nossa vontade e porem-se à nossa mercê.
O mais pequeno sinal de resistência deverá ser punido de forma impiedosa... Compreenderam?
As cabeças acenaram, e ouviu-se um murmúrio de assentimento.
- Óptimo. Porque, se vejo algum de vós a tratar os nativos como se eles valessem alguma coisa, se o vejo em demonstrações de compaixão ou simpatia, o desgraçado
terá que se haver comigo, e mais ninguém. E eu tratarei de lhe fazer sair os tomates pelos cornos, à porrada. Percebido? Bom, agora é só começar a impor respeito
a essa escumalha...
? ? ?
Meia hora depois, a Primeira Centúria descia a encosta, liderada por Máximo e englobando todos os optios e ainda os centuriões Macro, António e Félix. Túlio, o mais
antigo dos oficiais a seguir a Máximo, ficou encarregue da construção do campo, e observou com ansiedade a forma como a coluna se dirigiu para à aldeia nativa, na
outra margem do rio. Uma zona de terra amassada e húmida em ambas as margens denunciava a existência de um ponto de travessia, e Máximo e os homens atravessaram
a corrente com estrondo, levantando salpicos até saírem encharcados na outra margem e começarem a subir o caminho bem marcado que se dirigia à frágil paliçada que
rodeava a aldeia.
Quando se aproximavam, Macro reparou nas faces que os observavam à volta do portão, e por momentos considerou a possibilidade de os locais estarem a preparar-se
para resistir à coluna romana fortemente armada. Ergueu a mão e deixou-a repousar no punho do gládio, preparando-se para empunhar a arma ao primeiro sinal de sarilhos.
Ao seu redor, notou a tensão crescente que se apossava dos outros oficiais; mal tinham entrado na zona de alcance das fundas quando Máximo deu ordem de alto. Durante
alguns instantes, avaliou as defesas da aldeia, e depois virou-se para Macro.
- O que é que achas?
Macro notou que continuava a haver apenas um punhado de nativos a observá-los, e que nenhum parecia estar armado.
- Senhor, não parece existir qualquer ameaça.
Máximo coçou o pescoço.
- Então porque é que o portão ainda está fechado, pergunto-me?
- Voltou-se para a coluna. - Vou mandar avançar alguns homens, para o caso...
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- Senhor, não será necessário. - Macro acenou na direcção da aldeia. - Veja.
Os portões estavam a abrir-se, para dentro, e no interior da povoação, via-se um grupo de homens. À sua frente apresentava-se uma figura alta e magra, de longos
cabelos brancos. Apoiava-se num bordão e mantinha-se imóvel.
O centurião Félix aproximou-se de Macro.
- Que é que achas, a comissão de boas-vindas?
- Se for, não o será por muito tempo. - Respondeu Macro em voz baixa.
Convencido de que não havia qualquer sinal de perigo, Máximo ordenou que a coluna prosseguisse. Quando o centurião chegou à sombra projectada pela paliçada, o homem
com o bordão moveu-se enfim, com o evidente propósito de receber os visitantes à entrada da aldeia. Começou a pronunciar um discurso, numa voz rica e profunda.
- Espera! - Máximo ergueu a mão e chamou, sobre o ombro.
- Intérprete! À frente!
Um legionário correu para junto do comandante, um dos substitutos que tinham chegado da Gália há poucos dias. Macro notou que a sua face tinha os mesmos traços celtas
que as daqueles que ia interrogar. O homem colocou-se em sentido, entre Máximo e o ancião.
- Descobre o que tem ele para dizer, e avisa-o de que deve ser breve. - Ordenou Máximo.
À medida que o legionário traduzia as exigências do romano, o chefe nativo pareceu ficar confuso, e depois não evitou franzir o sobrolho. Quando falou, não era difícil
perceber o tom amargo que imprimiu às palavras.
- Senhors - começou o legionários - ele desejava apenas apresentar-vos as boas-vindas ao vale, e assegurar-vos que nem ele nem o seu povo constituem qualquer espécie
de ameaça. Queria oferecer-vos a hospitalidade da sua cabana, e a possibilidade de adquirir abastecimentos aos camponeses. Mas afirma-se surpreso. Sempre ouviu dizer
que Roma era uma grande civilização, porém os seus representantes estão longe de mostrar dignidade...
- Ele disse isso, assim?
- Sim, senhor. Exactamente assim.
- Muito bem. - Máximo cerrou os lábios por momentos, enquanto olhava fixamente para o ancião, sem esconder o seu desprezo. - Chega de merdas. Diz-lhe que, se eu
quiser a sua hospitalidade, a terei quando e como bem me apetecer. Diz-lhe que, se querem viver, ele e o seu povo devem fazer exactamente aquilo que lhes for ordenado.
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Quando o legionário terminou, os locais olharam chocados uns para os outros.
Então o comandante da coorte apontou para o magote de gente que se aglomerava por trás do chefe.
- Aquela mulher, e os gaiatos. São a família dele?
Depois da tradução, o chefe anuiu.
- Macro, apanha-os! Leva cinco secções e prepara-te para os escoltar para o campo. Daqui a pouco já te dou mais alguns para levares.
- Apanho-os? - Macro estava quase tão chocado como os locais.
- Porquê, senhor?
- Reféns. Quero que estes selvagens cooperem connosco.
Macro sentia-se dilacerado entre o desgosto que as acções de
Máximo lhe provocavam e o dever de obedecer às ordens que recebia.
- Mas há com certeza... Seguramente que há outras formas de conseguir essa cooperação, senhor?
- Conseguir? - Máximo desdenhou. - Estou-me positivamente a cagar para o que eles querem. Percebido? Agora, centurião, cumpre as tuas ordens!
- Sim... senhor. - Macro convocou quarenta homens da frente da coluna e dirigiu-se decidido para a família do chefe. Depois de um momento de hesitação, puxou a mulher
e os três filhos de entre a multidão e encaminhou-os para o meio das duas linhas de legionários. Imediatamente se ergueu um coro de protestos dos aldeãos. A mulher
agarrada por Macro torceu-se e olhou para o chefe. O ancião deu um passo à frente, imobilizou-se e, impotente, fechou as mãos num punho que desfez logo a seguir;
ela gritou-lhe qualquer coisa, o que o fez franzir o rosto, e abanar a cabeça. Quando já havia uma fileira de legionários entre a mulher e o resto dos aldeãos, Macro
largou-lhe o braço, olhou-a nos olhos e apontou para o chão.
- Fica aqui!
O centurião Máximo virou-se para o tradutor.
- Diz-lhe que exijo que uma criança de cada família da aldeia seja trazida aqui, imediatamente. Se alguém tentar esconder uma criança, crucificarei toda a família
sem perda de tempo. Vê se ele percebe bem isso.
O coro de descontentamento dos locais transformou-se num rugir de horror e desespero, à medida que o legionário traduzia as palavras. Alguns dos homens começaram
a gritar contra os romanos, os rostos cheios de raiva e ódio. O chefe não se atreveu a permitir que as confrontações se tornassem físicas, e avançou rapidamente
para o espaço vazio entre os aldeãos e os legionários nervosos. Ergueu os braços, e tentou aplacar a ira do seu povo. Daí a pouco, o ruído tinha-se transformado
num lamento contínuo, pontuado pelo choro de mulheres e crianças.
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- Diz-lhe para se despachar! - Irritou-se Máximo. - Antes que
tenha que lhes dar uma demonstração de que não falo por falar.
Os locais começaram a movimentar-se para cumprir as ordens; enquanto Macro observava com crescente pena e desgosto, as famílias trouxeram as suas crianças e entregaram-nas
às rudes mãos dos legionários. Depressa cerca de trinta se encontraram entre as linhas romanas, cercadas pelos grandes escudos e assustadas pelas expressões duras
dos homens. Algumas das crianças gritavam e choramingavam, debatendo-se entre as mãos de aço dos legionários.
- Façam-nos calar! - Exigiu Máximo.
Um dos optios ergueu a mão e agrediu uma criança que não teria mais de uns cinco anos de idade com um murro na cabeça. Os gritos e choros do miúdo interromperam-se
imediatamente, já que ele caiu inanimado. Uma mulher gritou e saltou na direcção da criança, esgueirando-se entre dois legionários e tentando alcançar o corpo que
jazia sobre o solo.
- Deixa o fedelho em paz! - O centurião Máximo avançou na direcção da mulher. Esta, debruçada sobre o filho, virou a cabeça para encarar o oficial romano. Macro
apercebeu-se de que ela era jovem, talvez com menos de vinte anos, com uns espantosos olhos castanhos e cabelo louro arranjado em duas tranças. O rosto dela contorceu-se
numa expressão de desprezo, e cuspiu nas botas de Máximo. Este gesto foi imediatamente seguido pelo som de metal a raspar, pelo brilho de uma lâmina a faiscar pelo
ar, e pelo ruído de algo a ser cortado, logo seguido por um baque quando a cabeça da mulher rolou pelo solo na direcção do chefe. O filho, que recuperava do golpe
sofrido, foi atingido pelos jactos do sangue da mãe, e gritou de novo.
- Oh merda... - Murmurou Macro. Depois sentiu algo quente a atingir-lhe as canelas, e recuou rapidamente.
Por momentos só se ouviram os gritos do miúdo, até que Máximo fez o cadáver rolar com o pé, afastando-o da criança, e se dobrou para limpar a espada à túnica da
mulher. Embainhou-a de novo, e aprumou-se, encarando os aldeãos. Um homem cambaleou ao furar por entre a multidão, às mãos fechadas, os dentes a rangerem, mas imediatamente
alguns dos outros locais o seguraram, enquanto ele se debatia de raiva. Máximo olhou-o com desprezo, e depois apontou um dedo à pequena multidão.
- Diz-lhes que isto é o que acontecerá a quem quer que ouse desafiar-me. Não haverá qualquer aviso, somente a morte. Diz ao chefe que nos vai acompanhar quando partirmos.
Quando regressarmos ao campo, dar-lhe-ei uma lista com tudo aquilo de que precisamos.
A Primeira Centúria girou sobre os calcanhares e, ladeando um magote de crianças aterrorizadas e chorosas, a coluna deixou a aldeia,
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seguindo pela encosta abaixo na direcção do riacho. Os aldeãos seguiram-' -nos durante algum tempo, abalados e incapazes de mostrar o seu desespero em palavras.
Macro sentia-se miserável, e olhava para todos os lados na tentativa de evitar ter de encarar os locais. Seria este o mesmo vale que lhe parecera tão acolhedor quando
marchara através dele há tão pouco tempo atrás? Em poucas horas, a antiga serenidade deste vale de camponeses tinha sido estilhaçada da forma mais sangrenta possível
pelos homens de Roma. Ali, já nada podia voltar a ser como dantes.
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XXIX

O ressentimento dos homens era cada vez mais evidente, o que fazia com que Cato se perguntasse quanto tempo mais teria até que aquele sentimento se tornasse em algo
mais letal. Há dez dias que se escondiam no pântano, e a falta de comida deixava-lhes nos ventres uma agonia que não dispensava espaço para mais nada no pensamento.
A última refeição de que tinham desfrutado não passava já de uma memória com alguns dias - um bácoro que tinham encontrado por acaso a passear-se por uma estreita
vereda. Depois do animal ter sido abatido, Cato ouvira alguém a chamar ali por perto e, ao rastejar com Fígulo ao lado, encontrara uma pequena quinta numa mísera
extensão de terra arável que mal se elevava acima do nível do pântano que a rodeava. Duas ou três famílias dedicavam-se a amanhar a terra, vivendo em casebres. No
exterior da mais próxima das cabanas, sentava-se um homem ainda jovem, com a sua roliça mulher; brincavam com duas crianças, uma das quais ainda não se tinha de
pé. Junto à habitação existiam dois cercados, um com galinhas e outro com uma porca e vários leitões. Na vedação deste segundo cercado, via-se um buraco.
- Está explicada a nossa descoberta. - Sussurrou o optio. - Agora, se mais um ou dois se lembrassem de ir explorar as redondezas, havíamos de comer que nem reis.
- Não te ponhas a sonhar. Depressa vão dar pela falta daquele porco. O melhor é pormo-nos a andar.
Quando Cato se preparava para recuar, o optio segurou-o pelo ombro.
- Espere... senhor.
Cato virou-se para oferecer ao companheiro um olhar gelado.
- Tira-me as mãos de cima.
- Sim, senhor.
- Assim é melhor. O que se passa?
Fígulo indicou o camponês e a família, no preciso momento em que
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as estridentes gargalhadas do miúdo mais velho atravessaram o ar quente da tarde.
- Só ali está um homem.
- Só está um à vista. - Cautelosamente, Cato concordou.
- Seja, senhor. Mas mesmo que esteja outro no interior da cabana, ainda assim podemos arrumá-los.
- Não.
- Liquidamo-los, escondemos os corpos, e podemos apanhar a bicharada que quisermos. - O olhar do optio estava fixo na porca, que grunhia contente no seu chiqueiro.
- Só aquela dava-nos para uma semana, senhor.
- Já disse que não. Não podemos correr esse risco. Agora, vamos.
- Qual risco?
- Assim que alguém aparecer por aqui para fazer uma visita e não encontrar ninguém, dá o alarme. Os nativos caem-nos em cima em menos tempo do que leva a dizê-lo.
Portanto, não corremos esse risco. Compreendes, optio?
O tom na voz do centurião não admitia discussões, e Fígulo anuiu e recuou cuidadosamente, afastando-se da pequena quinta e regressando ao meio dos canaviais. Quando
voltaram a juntar-se ao pequeno grupo de caçadores que Cato escolhera, o leitão já tinha sido preparado e empalado numa lança, para facilitar o transporte para o
acampamento. Cato ficou satisfeito por ver que, ao ouvirem o ruído da sua aproximação, os homens esqueceram os festejos pela captura e empunharam as armas. As expressões
tensas amainaram quando os oficiais emergiram do pântano e se juntaram a eles no trilho, a pingar. Metélio olhou-os com um brilho de esperança.
- Senhor, algum sinal de mais coisas deste género?
- Mais do que podes imaginar. - Fígulo sorriu. - Há ali uma linda e pequena...
Cato rodou instantaneamente, para impor silêncio ao subalterno.
- Calado! Não há para aquelas bandas nada que nos diga respeito. Percebido? Nada... Agora vamos mas é regressar e comer.
Os homens apreciaram a cena, curiosos, até que Cato lhes ordenou que pegassem na presa, enviando um homem à frente e deixando outro para trás, para garantir que
ninguém os seguia. Regressaram ao acampamento em silêncio, realizando curtas paragens para ocultar os traços do sangue que pingava da carcaça, e que poderiam levar
o camponês a descobri-los, quando se apercebesse de que lhe faltava um leitão no cercado.
Assim que os últimos resquícios de luz rósea abandonaram o horizonte, Cato deu permissão a Metélio para que fosse acesa uma pequena fogueira. O resto do bando esperou,
olhos esgazeados de fome, enquanto
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aguardavam com impaciência que o lume abrandasse, de forma a assar o leitão sobre as brasas incandescentes. Depressa o rico aroma da carne a ser cozinhada e o acre
odor da gordura a arder quando tombava sobre o lume encheram as narinas dos homens e fizeram-nos lamber os beiços em antecipação. Assim que foi possível, Cato disse
a Metélio que tirasse a carne do lume e começasse a cortar pedaços para distribuir pelos homens. O legionário rapidamente perfurou a espessa pele e trinchou a carne,
que soltou um suco avermelhado quando a faca a separou dos ossos. Depois, um a um, os homens sentaram-se ao redor do fogo, agarrando o seu pedaço de carne quente
nas mãos imundas e arrancando-lhe pedaços com os dentes. Só muito raramente levantavam os olhos da refeição e trocavam sorrisos ou piscares de olhos satisfeitos,
enquanto a carne de porco assada lhes enchia os estômagos.
Cato aguardou que o último homem fosse servido, e acenou na direcção de Metélio.
- Tu primeiro.
O legionário agradeceu e trinchou um pedaço de lombo que tinha estado a guardar para si; depois afastou-se, dando lugar ao centurião. Ao empunhar a faca, Cato não
deixou de reparar que os melhores bocados já tinham sido todos tirados, e que teria que se contentar com umas lascas de carne cortadas na parte posterior do pescoço
do leitão. Depois sentou-se junto aos homens e levou a carne à boca. O aroma tornou-se irresistível, e ele fincou os dentes com toda a apetência de um mendigo que
encontrasse os restos de um festim. Sorriu perante tal pensamento. Naquele instante, trocaria alegremente de lugar com o mais miserável dos pobres que viviam pelas
ruas de Roma. Pelo menos esses não viviam no permanente temor de serem perseguidos e abatidos como cães.
À medida que o fogo ia enfraquecendo, os homens acabavam as suas porções e dirigiam-se à carcaça que esfriava, tentando extrair mais uns pedaços de carne. Cato ponderou
a possibilidade de lhes proibir que esgotassem a carne, mas rapidamente pôs de parte esse pensamento. Não tinha a mais pequena ideia de quando voltariam a obter
comida, e assim que passassem os efeitos daquele festim, os homens regressariam à agonia da fome que lhes consumia o ventre. Havia uma expressão de desespero nos
rostos dos homens que se atarefavam agachados em redor do leitão, catando-o com as pontas das facas e os dedos magros. Ao observá-los, Cato percebeu que uma ordem
para que deixassem de apaziguar o apetite poderia facilmente transformar-se na sua última ordem naquele mundo. Não deixava de fazer sentido poupar a comida, tentar
fazê-la durar mais uns dias, pelo menos. Mas a fome tinha levado os homens para lá do bom senso, e tinha que os controlar com todo o cuidado, se queria que todos
tivessem alguma
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hipótese de sobrevivência. Assim, todo o leitão foi consumido rapidamente, e pela manhã tudo o que restava por trás das mandíbulas do animal, que pareciam ainda
sorrir, era osso e cartilagem. A cabeça e as patas foram cozinhadas na noite seguinte, e Cato recusou-se a comer a sua parte, de forma a que houvesse mais alguma
comida a ser distribuída pelos homens. E a partir daí não tinha havido outra refeição, e a fome tinha voltado a impor-se.
Já tinham passado dois dias, pensou Cato ao acordar e notar a dor da fome no estômago vazio. Estava deitado de lado sob uma das árvores que rodeavam os limites do
seu espartano campo. Rolou até ficar de costas e olhou para cima, piscando os olhos por causa da luz do Sol que se esgueirava por entre as folhas murmurantes. Já
passava do meio-dia, mas Cato desejou ter conseguido dormir mais, já que tinha passado a noite de vigia. E não havia sequer qualquer razão para despertar. Só lhe
restava a longa espera pelo regresso da patrulha, e os breves momentos de entusiasmo passageiro quando ela fosse avistada, perante a remota possibilidade de que
os homens tivessem encontrado alguma comida. A que se seguiriam rapidamente a desilusão e o desespero face à perspectiva de mais uma noite com os estômagos vazios.
Além de voltarem de mãos a abanar, os batedores normalmente também não traziam quaisquer novidades acerca de Carátaco e dos seus guerreiros, que também se escondiam
algures no pântano. Era como se a deprimente paisagem tivesse engolido o que restava do exército nativo, como fizera com o pobre Próculo.
Cato afastou rapidamente a memória desse triste episódio, e começou a matutar no plano que elaborara para conseguir o perdão e recuperar a posição dos homens junto
aos camaradas da Segunda Legião. Tinha uma perfeita ideia da cena: a coluna de legionários em trajes sujos e rasgados a marchar orgulhosamente e a apresentar-se
perante o atónito legado, que os escutaria com toda a atenção enquanto Cato lhe mostrava onde encontrar Carátaco e os seus guerreiros, apontando o local preciso
num dos mapas que Vespasiano tinha sobre a mesa de campanha. Era uma doce fantasia. Sorriu para si mesmo com amargura. O conforto que tinha sentido enquanto a imaginava
já tinha sido reduzido ao vazio, e agora só servia para troçar dele mesmo, enquanto permanecia deitado e com o olhar perdido e desfocado no céu azul.
Ao fim de algum tempo, sentiu que não podia continuar a torturar-se, pelo que resolveu sentar-se. Olhando em redor do campo, viu os outros homens em pequenos grupos,
sentados, a conversar calmamente. Um ou outro olharam-no ao repararem que tinha acordado, e Cato tentou perceber o que discutiam antes, uma vez que rapidamente desviavam
os olhos e disfarçavam o interesse. Depois recordou que tinha dado ordens
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estritas para que os homens não fizessem barulho. Agora passava o tempo à procura de sinais de perigo e, se não tivesse cuidado, acabaria por deixar que isso o levasse
à loucura.
Mas havia algo de errado...
Cato voltou a olhar em redor do acampamento e fixou a figura de Fígulo, sentado sob um arbusto ali perto, afiando afincadamente a ponta de um ramo pouco espesso
e relativamente direito. Rapidamente, o centurião pôs-se de pé e dirigiu-se ao optio.
- O que é que estás aqui a fazer? Devias estar em patrulha.
- Sim, senhor. - Anuiu Fígulo. - Mas outro tipo ofereceu-se para fazer a patrulha.
- Outro tipo? - Cato olhou à volta, e depois encarou o optio. - O Metélio?
- Sim...
- Para onde é que ele foi? - Perguntou Cato, embora tivesse a angustiante sensação de que já conhecia a resposta.
- Para lá daquela quinta que descobrimos há uns dias. Ele acha que deve existir um caminho que leve da quinta a alguma povoação maior algures no pântano.
- Ah, é isso que ele acha? - Retorquiu Cato, com ironia.
- Sim, senhor.
- E tu acreditaste?
- Porque não? - Fígulo encolheu os ombros. - Pode ser que ele encontre alguma coisa, senhor.
- Oh, sim, há-de descobrir alguma coisa, não tenho dúvidas. Podes contar com essa. - Irritado, Cato deu uma palmada na coxa. - Bem... Levanta-te! Vens comigo. Arranja-nos
umas lanças.
Enquanto o optio se apressava, levantando-se e dirigindo-se às armas ensarilhadas no centro do acampamento, Cato esfregou os olhos e tentou resolver o que fazer
a seguir.
- Senhor?
Levantou o olhar. Fígulo estendia-lhe o cabo de uma lança. Pegou-lhe, apoiou-a no ombro e verificou que tinha a adaga bem presa na espécie de cinto que usava à volta
da cintura.
- Desculpe, senhor. - Disse Fígulo em tom constrangido. - Não supus que ele fosse capaz de fazer alguma estupidez.
- A sério? - Resmungou Cato. - Bom, depressa ficaremos a saber. Vamos embora.
Virou-se e dirigiu-se para a saída do acampamento, seguido pelo optio. Quando chegou à orla da pequena dareira, Cato gritou por cima do ombro as suas ordens:
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- Nimguem sai do acampamento. Mantenham os olhos abertos Seguiu pelo caminho que levava ao pântano, relembrando mentalmente todos os trilhos que já tinha usado desde
que se tinham instalado na ravina. Se Metélio se dirigia à quinta, o mais natural era que seguisse pelo caminho que tinham tomado no dia em que tinham encontrado
o leitão extraviado. Tinha sido uma das poucas patrulhas em que Metélio tinha participado. Cato temera que a atitude pouco respeitosa do homem viesse a causar problemas,
e tinha-o mantido confinado ao campo sempre que possível. Mas havia um caminho que levava à quinta mais rapidamente, um trilho estreito que por vezes quase desaparecia
sob as águas do pântano. Era difícil de seguir, mas se fossem rápidos, talvez conseguissem chegar à quinta antes do outro, e impedi-lo de fazer algum disparate.
Apressou-se, sacrificando o habitual cuidado com que se movimentava pela tenebrosa paisagem, e trocando-o pela velocidade que se afigurava imperiosa. O Sol brilhava
num céu limpo, e as nuvens de insectos que se congregavam junto aos juncos lançavam-se sobre os romanos suados sempre que estes se viam forçados a atravessar alguma
extensão de lama malcheirosa entre dois trechos do caminho que serpenteava pelo pântano.
- O que comerão estes sacanas quando não há romano na ementa? - Resmungou Fígulo, enquanto enxotava um moscardo que se banqueteava no seu pescoço.
Cato olhou para trás.
- Se não detivermos o Metélio, é capaz de vir a haver muitos mais romanos na ementa. Vamos!
Já caminhavam há quase duas horas quando Cato se apercebeu de que a paisagem à sua volta não tinha nada de familiar. Pela posição do Sol, calculou que tinham seguido
aproximadamente na direcção correcta, mas já se deviam ter deparado com a quinta muito antes. Deviam ter passado próximo a ela sem dar por isso, e por isso também
não tinham dado com Metélio. Com uma expressão sombria, Cato auxiliava o optio a sair de uma poça de lama mais profunda quando deitou um olhar na direcção de onde
tinham vindo e se imobilizou.
- Senhor, o que se passa?
Cato olhou mais uns instantes, e depois respondeu:
- Olha para aquilo...
Fígulo trepou para a margem arenosa e endireitou-se, olhando na direcção indicada pelo centurião. A princípio não distinguiu nada de estranho, mas então notou uma
mancha que se espalhava pelo ar.
- Estou a ver.
Enquanto observavam, a mancha transformou-se numa coluna
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cinzenta e fina que se elevou pelo céu limpo. A base da coluna apontava
claramente para a sua origem.
Cato procurou a posição do Sol, aimda muito acima do horizonte.
- Ainda temos uma ou duas horas de luz. É muito tempo. Temos
que regressar, e depressa.
Mergulhou decidido na lama de que tinham acabado de sair e, com um suspiro resignado e cansado, Fígulo virou-se e seguiu-o. A marcha de volta foi duas vezes mais
dura, já que Cato adoptou o passo mais rápido que estava ao seu alcance, ignorando o cansaço que lhe queimava as pernas, enquanto não deixava de apreciar ansioso
a coluna de fumo que, à luz que enfraquecia, parecia nunca mais ficar mais próxima.
Escutaram o ruído produzido pelos porcos muito antes de saírem do trilho do pântano e correrem o trecho final por entre as árvores até à clareira, ofegantes e com
as pernas pesadas. O Sol já não passava de um disco de cobre quase sobre o horizonte, nas suas costas, e as sombras alongavam-se e distorciam-se à sua frente quando
alcançaram finalmente o acampamento. Ali depararam com dois leitões no espeto, junto aos restos da fogueira, ainda fumegantes. Presa a uma das árvores, a progenitora
observava a cena, lançando guinchos estridentes como se lamentasse o destino dos seus rebentos. Alguns leitões amontoavam-se em redor das suas patas, tocando-lhes
com o focinho, em busca de reconforto.
Os homens debruçavam-se em redor dos porcos assados, alimentando-se, e um a um foram levantando o olhar e lançando olhares culpados ao aperceberem-se do regresso
dos oficiais. Um deles deu um toque a Metélio, e este levantou-se lentamente enquanto Cato e Fígulo se aproximavam ofegantes do fogo. O legionário forçou-se a sorrir,
dobrou-se e pegou num belo pedaço de carne que tinha acabado de trinchar. Voltou a endireitar-se e ofereceu-o ao centurião.
- Aqui tem, senhor. Umas febras magníficas. Experimente.
Cato estacou a alguma distância da fogueira e apoiou-se no cabo da
lança enquanto recobrava o fôlego, o peito a arfar.
- Tu... és um grandessíssimo idiota. - Olhou em volta, furioso. - Todos vocês... cretinos, Essa fogueira via-se... a quilómetros de distância.
- Não. - Metélio abanou a cabeça. - Não há ninguém suficientemente perto para a ver. Ninguém, senhor. Ou, pelo menos, já não há.
Cato observou o legionário.
- Onde é que arranjaste essa carne?
- Na quinta que descobrimos no outro dia, senhor.
- E as pessoas...? - Cato sentiu-se agoniado. - O que aconteceu?
Metélio sorriu.
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- Senhor, não se preocupe. Não irão contar nada a ninguém. Tomei a iniciativa de o garantir.
- Todos eles?
- Sim, senhor. - A face de Metélio enrugou-se numa careta. - É
claro.
Um dos outros homens deu uma risada.
- Mas só depois de nos termos divertido um pouco com as mulheres lá do sítio, senhor.
Cato mordeu os lábios e inclinou a cabeça para que os homens não vissem a expressão que adoptara. Engoliu e tentou recuperar o controlo sobre a respiração, embora
o coração lhe martelasse o peito e os braços e pernas tremessem de exaustão e ira. Era demasiado para ele, e por momentos a tentação de abdicar dos últimos resquícios
da sua autoridade sobre aqueles homens foi poderosa. Se se queriam autodestruir, então que continuassem a tentar atrair a atenção de todos os guerreiros inimigos
que andavam por ali. Que lhe importava? Tinha dado o melhor para lhes oferecer uma extensão da vida, contra todas as hipóteses. E era assim que lhe pagavam. E depois,
havia o cheiro a carne assada, insinuando-se até à boca do estômago e fazendo-o roncar e gemer, antecipando o banquete. Sentiu uma fria vaga de autodesprezo e de
ira perante a situação. Era um centurião. Ainda por cima, um centurião da Segunda Legião. Nem pensar em deixar passar uma coisa daquelas.
- Senhor?
Cato levantou a cabeça e fitou Metélio. O legionário estendia-lhe ainda o pedaço de carne, assinalando-a com um sorriso. Foi esse gesto, que o fez ver-se tratado
como uma criança petulante a quem é forçoso agradar, que o decidiu. Forçou-se a desviar a vista da carne e a olhar para o legionário que os colocara a todos em perigo
por razões egoístas.
- Louco! Para que serve a comida, se amanhã estivermos todos mortos? Assim que os bretões nos encontrarem, aliás.
Metélio não se atreveu a responder, limitando-se a permanecer calado - a princípio surpreendido, mas depois a sua atitude alterou-se, optando pela insubordinação;
deixou cair o naco de carne no chão.
- Senhor, pode servir-se à vontade.
Cato respondeu imediatamente, fazendo girar o cabo da lança que empunhava e atingindo com ele o peito do legionário, o que o fez cair para trás, em cima dos outros
homens agachados em volta do assado. Levantou-se imediatamente um coro de protestos, contribuindo para aumentar a tensão.
- Silêncio! - Gritou Cato, a voz a falhar-lhe pela raiva que o possuía. - Calem essas bocas de merda! - Encarou-os, quase pedindo que o
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desafiassem, e só depois se voltou de novo para Metélio. - E tu... És uma boa merda de soldado; vais ser castigado!
As sobrancelhas do legionário arquearam-se, mas logo ele desatou
às gargalhadas.
- Um castigo! Vai-me castigar, senhor, é isso?
- Calado! - Vociferou Cato, puxando a haste da lança atrás, pronto para a usar contra o outro. - Calado! Eu sou o teu comandante!
Metélio ainda ria.
- Essa é muito boa, a sério! E que espécie de castigo me vai impor, senhor? Limpar as latrinas? Fazer mais um turno de guarda no portão?
- Mostrou a clareira vazia com um gesto. - Olhe à sua volta. Não há por aqui nenhum campo romano. Não existem baluartes para serem defendidos. Não há tendas para
arrumar. Nem latrinas para limpar... não há nada. Não há nada para comandar. Excepto nós. É melhor enfrentares a realidade, miúdo.
Cato alterou a posição das mãos no cabo da lança, fazendo-a rodopiar de forma a que a ponta metálica ficou a poucos centímetros da garganta do outro. Todos os homens
em redor pararam de comer e levaram as mãos às espadas e adagas, observando atentamente as acções do centurião.
Tudo se manteve imóvel por alguns instantes, os músculos tensos e os corações a bater, enquanto na orla da clareira a porca continuava a guinchar a plenos pulmões.
Nesse momento, Fígulo avançou e, gentilmente, forçou a ponta da lança que Cato empunhava para baixo.
- Senhor, eu trato desta bosta.
Cato olhou-o, a expressão do rosto mostrando bem a tensão a que se encontrava submetido, e então baixou a lança, enquanto atirava mais um olhar a Metélio e cuspia
no chão aos pés do legionário.
- Muito bem, optio. É todo teu. Trata disso imediatamente.
Assim que acabou de pronunciar aquelas palavras, Cato virou-se e
afastou-se, para evitar que o brilho das lágrimas ao canto do olho denunciasse as emoções que o assaltavam. Dirigiu-se à margem da clareira, para um montículo de
onde se podia apreciar a extensão do pântano.
Atrás dele, Fígulo levantou Metélio à força.
- Parece-me que já é altura de te dar uma lição.
O optio tirou o gládio da faixa que tinha à cintura, atirou-o para longe, e ergueu os punhos. Metélio olhou-o, desconfiado, e depois sorriu. O optio era alto e espadaúdo,
mostrando as características típicas do sangue celta que lhe corria pelas veias. Metélio não era tão forte, mas os anos que tinha já passado nas Águias tinham-no
endurecido. Seria um combate entre poder e experiência, e Fígulo percebeu que o outro achava que tinha
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boas hipóteses, enquanto se agachava e acenava para que o optio se aproximasse.
Metélio deu um passo em frente, soltou um urro e lançou-se ao ataque. Mas não chegou a concretizá-lo. Fígulo lançou o punho para a frente com toda a velocidade e,
com um som de esmagamento, a face do legionário foi de encontro à mão fechada do gaulês. O legionário tombou de imediato, pesadamente, inanimado, derrotado com um
único golpe. Fígulo aplicou um pontapé na figura prostrada, e depois virou-se para os outros homens.
Sorriu, e perguntou com voz doce:
- Há mais alguém que se queira meter com a autoridade?
? ? ?
A noite passou sem incidentes. Cato reservou para si um dos primeiros turnos de vigia; sentou-se nas sombras sob uma árvore, perscrutando as águas paradas e reluzentes
do pântano, que eram banhadas pelo brilho prateado do crescente lunar. No acampamento, tudo estava em silêncio; os homens tinham acabado por se aconchegar para descansar,
sempre sob o olhar ameaçador do optio. Por agora, a confrontação tinha terminado, mas Cato estava consciente de que, a partir daquele momento, qualquer pequena provocação
serviria para fazer explodir o conflito entre homens e oficiais. Os laços do treino e da tradição que ainda os mantinham unidos estavam a desfazer-se mais depressa
do que ele antecipara, e daí a pouco nada mais existiria para lá de um bando de homens desesperados, prontos a tudo para sobreviver não apenas ao terreno hostil
que os rodeava, mas também uns aos outros.
Falhara por completo, considerava Cato. Não conseguira cumprir o dever que tinha para com os homens, e não havia pior vergonha do que essa. E em resultado desse
falhanço, iriam todos perecer naquela terra esquecida, no coração de uma ilha bárbara.
Apesar de consumido pelas reflexões sobre o que julgava ser o seu falhanço, fechou os olhos assim que se aninhou no solo para dormir. Estava demasiado fatigado para
se deixar afectar pela espécie de sonhos agitados que normalmente afligem as mentes perturbadas, e assim caiu num sono pesado e sem sonhos.
? ? ?
Uma mão sacudiu-o; depois de um momento de desorientação, sentou-se e tentou identificar a face que pairava sobre ele.
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- Fígulo. Que se passa?
- Chhhhhiu! - Sussurrou o optio. - Parece-me que temos companhia.
A névoa do sono dissipou-se imediatamente e, por instinto, Cato pegou na espada. Em redor, a neblina escondia o campo e obscurecia os pormenores a mais de vinte
ou trinta passos de distância. A imunda túnica de Cato estava coberta por finas gotas de orvalho, e o ar cheirava a terra
húmida.
- O que é?
- As sentinelas dizem que escutam homens a esgueirarem-se aqui por perto. Chamaram-me logo.
- E?
- Também os ouvi. São muitos.
- Certo. Bom, acorda os outros. Sem fazer barulho.
- Sim, senhor.
Enquanto a imponente massa do optio se esgueirava pelo meio do nevoeiro, Cato pôs-se de pé e percorreu o caminho que levava da clareira ao pequeno montículo onde
as sentinelas costumavam ficar. Quando as alcançou, agachou-se. Não teve que lhes pedir informações; o ar estava cheio dos sons de equipamento militar e de vozes
abafadas que transmitiam instruções que Cato não conseguia perceber com clareza. As vozes continuavam a aproximar-se, enquanto ele esforçava os ouvidos, e pareciam
já tê-los rodeado.
- Estamos cercados. - Sussurrou um dos legionários. - Senhor, o que fazemos?
Cato reconheceu-o: era Népio, um dos comparsas de Metélio nos acontecimentos da noite anterior. Era tentador fazer ver ao homem que aquela situação se devia à falta
de contenção exibida na véspera. Mas seria fútil e uma perda de tempo estar naquele momento a atribuir culpas pela situação delicada em que se encontravam.
- Retirem. Vamos recuar para o campo... E esperar que eles passem sem dar por nós. Quem quer que sejam.
Liderou as sentinelas pelo caminho e quando chegou à clareira, viu que o resto dos homens já estava reunido, empunhando as armas e à espera de ordens.
- Não há onde nos possamos esconder - disse Cato, calmamente
- e só há uma entrada para esta clareira. Se tentarmos escapar pelo pântano, vamos acabar atolados e caçados um a um. O melhor é estarmos preparados, mantermos o
silêncio e esperarmos que não nos vejam no meio do nevoeiro.
Os legionários formaram um pequeno grupo, virados para o exterior,
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esforçando olhos e ouvidos para se aperceberem do mais pequeno som ou sinal visual no seio do véu cinzento que os rodeava. Depressa escutaram os sons de outros
homens nas proximidades, arbustos a serem afastados e ramos a serem quebrados sob pés descuidados.
- Do que é que estamos aqui à espera? - Rosnou Metélio. - Por mim, acho que devíamos fugir.
Cato enfrentou-o:
- E por mim, aviso-te que, se voltas a abrir a boca, te corto as goelas. Entendido?
Metélio olhou-o, depois anuiu e voltou a atenção para o crescente som dos homens que se aproximavam e se espalhavam ao redor do pequeno grupo.
Os olhos de Cato saltavam da silhueta acinzentada de uma árvore para a próxima, mas depressa julgou perceber relances das figuras de homens que se moviam por entre
as árvores como fantasmas. Pouco a pouco, os sons foram desaparecendo, e tudo acabou por ficar em silêncio, interrompido apenas pelo foçar dos leitões que se agitavam
junto ao gigantesco vulto da progenitora.
- Romanos! - gritou uma voz em latim, a partir do nevoeiro, e Cato virou-se rapidamente na direcção do apelo. - Romanos! Larguem as armas e rendam-se!
Cato inspirou fundo e respondeu:
- Quem está aí?
A voz respondeu de imediato:
- Falo em nome de Carátaco! Ele exige que entreguem as vossas armas e se rendam. Se não o fizerem, serão mortos.
- Quem é que este quer enganar? - Resmungou Fígulo. - Estamos mortos de qualquer maneira. Pelo menos, se lutarmos, será uma morte rápida e menos dolorosa. E até
somos capazes de levar connosco uns quantos destes malditos.
Cato pouco mais podia fazer do que aquiescer, perante a proximidade da morte. Ia por fim acabar assim, e sentiu um arrepio subir-lhe pela espinha e apertar-lhe o
pescoço no seu abraço gelado. Estava com medo, concluiu a parte do seu cérebro que se entretinha a analisar racionalmente a situação. No fim de tudo, afinal, estava
com medo de morrer. Mas Fígulo tinha razão. Se era imperioso morrer, que fosse ali, em combate e rapidamente, para evitar os tormentos e suplícios que os bárbaros
não deixariam de lhe impor se o executassem mais tarde.
- Romanos! Rendam-se. Carátaco dá-vos a sua palavra que nada vos sucederá.
- Tretas! - Gritou Fígulo em resposta.
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De repente, tudo pareceu mover-se em volta deles, e numerosos vultos emergiram do nevoeiro, solidificando-se nas formas de guerreiros bretões, centenas deles, rodeando
o pequeno magote de romanos por todos os lados. Aproximaram-se lentamente, imobilizando-se a não mais de três metros das pontas das lanças romanas. De novo se fez
ouvir a mesma voz, agora muito mais próxima, mas ainda invisível.
- Esta é a última vez que Carátaco se digna a fazer a sua generosa oferta. Rendam-se agora, e viverão. Têm dez batidas de coração para decidir...
Cato olhou para as ferozes caras dos guerreiros que os cercavam, com as suas espirais pintadas sob o cabelo viscoso e em crista. Todos pareciam dispostos a lançar-se
sobre os romanos e a desfazê-los ali mesmo. Ouviu-se qualquer coisa, e Cato olhou em volta, percebendo então que Metélio tinha deixado tombar a espada. Vários homens
o imitaram em seguida. Por momentos, Cato não conseguiu sentir nada, a não ser ódio e fúria pela atitude do legionário. Sentiu-se a ponto de se lançar sobre a linha
inimiga... mas depois recuperou o autodomínio e compreendeu que esse gesto só o levaria a uma morte sem sentido. Completamente fútil. E, enquanto vivesse, a esperança
permaneceria consigo.
Inspirou fundo e endireitou as costas, enquanto ordenava:
- Larguem as armas...
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XXX

- O que acha que farão connosco? - Perguntou Fígulo. Estavam sentados no interior de um recinto para o gado. Os ocupantes anteriores tinham sido levados, mas a palha
imunda sobre a qual tinham vivido ficara, bem como a matéria fecal que se agarrava à lama e pó que se tinham tornado como uma segunda pele para os romanos.
Cato apoiava os braços nos joelhos, e fitava a ponta das botas.
- Não faço ideia. Mesmo nenhuma... Nem sequer percebo porque é que nos deixaram vivos. Não é costume manterem romanos prisioneiros.
- E o que aconteceu aos que foram capturados?
Cato encolheu os ombros.
- Sabe-se lá. Só encontrámos os corpos, e bocados de corpos. Se fosse a ti, não tinha grandes esperanças.
Fígulo torceu o pescoço de forma a espreitar por uma pequena fenda na cerca de tábuas entrecruzadas que formava a parede do curral. No exterior estendia-se o resto
do campo inimigo, que ocupava quase toda a ilha: centenas de cabanas redondas, rodeadas por uma paliçada baixa. Só havia uma entrada para o campo, através de um
pontão estreito que atravessava as águas que o rodeavam. Era defendido por dois torreões de aspecto formidável que se projectavam da ilha, de cada lado de um portão
feito de sólidas tábuas de carvalho. No seu interior, os sobreviventes do exército de Carátaco descansavam e lambiam as feridas, enquanto esperavam que o seu comandante
decidisse o que fazer a seguir.
Quando a diminuta coluna de prisioneiros romanos tinha sido conduzida para o campo, uma multidão de guerreiros, que incluía também algumas mulheres e crianças, tinha-se
juntado para ridicularizar e insultar os esfomeados e imundos representantes do odiado inimigo. Enquanto fazia o possível por proteger a cabeça da chuva de pedras,
lama e outras matérias, Cato olhava em volta com interesse profissional. Os guerreiros
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tinham mantido o equipamento em condições, e muitos ainda estavam a suar do treino que tinham realizado antes da chegada dos cativos. O centurião tinha esperado
encontrar um grupo de homens desmoralizados e derrotados, depois do quase completo desastre que tinha sido para eles a travessia do Tamisa, há quinze dias atrás.
Mas o que via era gente preparada e desejosa de voltar ao combate.
Os prisioneiros tinham sido passeados pelo campo e tinham recebido toda a habitual série de indignidades antes de serem levados para o curral, onde já estavam há
três dias, alimentados a restos e amarrados de pés e mãos. O fedor no acanhado recinto, que era mau ao início, tinha piorado com a urina, fezes, vómitos e suor dos
romanos, incapazes de se mexerem muito da posição em que tinham sido colocados sem incomodarem os camaradas que os ladeavam. Durante o dia, o Sol atingia-os sem
clemência, ajudando o odor a tornar-se cada vez pior, de tal maneira que cada inspiração agoniava os homens. Lá fora, os bretões treinavam sem descanso, e o monótono
som dos choques de armas fazia-se ouvir incessantemente, sendo apenas interrompido por grunhidos e gritos de guerra de homens que estavam claramente decididos a
lutar contra as legiões com todas as fibras dos seus seres.
- Não me parece que tenhamos grande hipótese de escapar àquela malta. - Dizia Fígulo, enquanto se encostava à parede do recinto. Maquinalmente, o optio tentou ajeitar
o laço de cabedal que lhe apertava o tornozelo, de forma a provocar-lhe menos dor. - Mesmo que conseguíssemos livrar-nos desta porcaria.
Cato encolheu os ombros. Já há muito que tinha abandonado a ideia de fuga, depois de fazer uma análise exaustiva à situação. O curral era guardado por três guerreiros,
de noite e de dia. Embora a cerca não representasse grande obstáculo para homens determinados a passar sobre ou através dela, a corrente que ligava todos os prisioneiros
tornava a saída do recinto impossível.
Tendo afastado o pensamento da fuga, Cato tinha-se concentrado nas razões por que tinham sido poupados. Não parecia fazer grande sentido. Como reféns, não possuíam
qualquer valor. O que representavam vinte soldados nas contas do general Pláucio? E o facto de serem fugitivos à justiça de Roma tornava-os ainda menos importantes
como moedas de troca. Portanto, não eram reféns; então, qual seria a sua utilidade? A alternativa enchia de terror o coração do centurião, e apertava-lhe a espinha
num abraço gelado.
Sacrifícios humanos.
Como todos os líderes celtas, Carátaco devia obediência a um poder mais elevado do que o dos reis que governavam as diferentes tribos da
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ilha - o dos druidas. Cato já os tinha encontrado antes, e transportava no corpo uma terrível cicatriz, cortesia de um druida armado com uma foice de cabo longo.
E pior, tinha visto o que acontecia aos homens, mulheres e crianças que eram oferecidos aos tenebrosos deuses dos druidas. A imagem de si mesmo a ser sacrificado
num altar de pedra ou a ser queimado vivo numa estrutura de madeira assombrava cada hora que passava no curral, acorrentado aos outros homens.
A maior parte dos outros partilhava a sua sombria disposição e permanecia em silêncio, mexendo-se apenas quando a posição em que se encontravam se tornava demasiado
desconfortável. Até mesmo Metélio e os seus comparsas se mantinham calados e se limitavam a esperar o fim inevitável. Só Fígulo parecia ter ainda alguma vontade
de resistir e lutar, e prestava atenção a tudo o que se passava no campo inimigo. Cato admirava o espírito do optio, por muito irrelevante que fosse, e não fez qualquer
tentativa para o dissuadir de idealizar os seus planos e aceitar o destino.
Ao fim do terceiro dia, Cato foi despertado dum sono leve por um repentino coro de festejos. Até os guardas no exterior do curral se juntaram aos vivas, erguendo
as lanças ao alto ao mesmo tempo que gritavam.
- Porque é a berraria? - Perguntou Cato.
Antes de responder, Fígulo esforçou-se por perceber alguma coisa dos gritos.
- Carátaco. É o Carátaco... Estão a gritar o nome dele.
- Deve ter-se ausentado do acampamento durante uns dias. Onde terá ido?
- Com certeza tentar fomentar a revolta contra as legiões, senhor. Imagino que já não lhe devem restar muitos aliados.
- Talvez não. - Resmungou Cato, mal-disposto. - Mas isto não nos deve dar grande ajuda, não achas?
- Não...
Os festejos e aclamações prosseguiram por bastante tempo, até que por fim os guerreiros lá se fartaram e retomaram os treinos e outras tarefas.
O Sol desapareceu por trás da cerca, lançando os prisioneiros para as sombras. Era normalmente nessa altura que os guardas entravam no curral e lhes distribuíam
as sobras com que os alimentavam. homens agitaram-se em antecipação ao momento em que iam poder enganar a fome que lhes roía os estômagos. Cato apercebeu-se de que
estava a lamber os beiços, e que não tirava a vista do portão, que abria para dentro do curral. Tinham sido mantidos à espera mais tempo do que o habitual, e ele
começou a recear que naquele dia não houvesse distribuição de comida. Mas então ouviu-se o som da tranca a ser levantada, e a porta foi aberta. Uma
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faixa de luz projectou-se sobre os montes de porcaria no interior do recinto, mas logo uma sombra a tapou; Cato levantou o olhar para enfrentar um gigantesco guerreiro
que se debruçava sobre eles, avaliando as lamentáveis criaturas acorrentadas umas às outras.
- Qual de vocês tem a patente mais elevada?
Apesar da pronúncia cerrada, o latim era suficientemente claro para que os romanos percebessem a pergunta, e Cato fez menção de levantar o braço. Fígulo impediu-o,
lançando ao mesmo tempo um aviso com a cabeça, e preparou-se para se oferecer. Mas Cato falou antes.
- Eu!
O guerreiro olhou para Cato e arqueou as sobrancelhas.
- Tu? Perguntei pelo vosso comandante, não pelo guardador das cabras. Agora, qual de vocês é que comanda?
Cato corou, irritado, e aclarou a garganta antes de responder de forma tão clara e digna quanto possível:
- Sou o centurião Quinto Licínio Cato, comandante da Sexta Centúria, Terceira Coorte da Augusta Segunda Legião. Sou eu o oficial mais graduado aqui presente!
O guerreiro não conseguiu impedir-se de soltar uma gargalhada, perante o ultraje evidente na voz de Cato. Olhou-o de alto a baixo e riu de novo, antes de prosseguir
na sua própria língua.
- Não fazia ideia de que os homens das legiões eram comandados por rapazinhos. Tens ar de quem ainda nem sequer faz a barba.
- Pode ser que assim seja. - Retorquiu Cato em céltico. - Mas tenho idade suficiente para saber que vocês, bretões, não valem grande coisa. Senão, como poderia
eu ter despachado tantos deste mundo?
O sorriso do guerreiro apagou-se, e ele fixou um olhar gelado no jovem centurião.
- Se fosse a ti, rapaz, tinha tento na língua. Enquanto ainda tens uma. Tu é que estás na merda até ao pescoço, não eu. Farias melhor em lembrar-te disso.
Cato encolheu os ombros.
- E que me queres, afinal?
O guerreiro baixou-se, desapertou a corrente em torno dos tornozelos do centurião e soltou-lhe a perna. Depois, forçou-o a levantar-se com brusquidão e rosnou, aproximando
o rosto do de Cato.
- Há alguém que te quer ver, romano.
Cato queria afastar o rosto da medonha face do bretão, com os seus dentes arreganhados e os olhos arregalados, mas sabia muito bem que era isso que o outro pretendia,
que ele mostrasse medo. Tinha também a perfeita consciência de que os seus homens o estavam a observar; receosos,
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sim, mas também tentando avaliar se ele era capaz de enfrentar o inimigo.
- Vai-te foder. - Disse, em latim. Um sorriso aflorou-lhe aos lábios, e cuspiu sobre o outro. Tinha a boca seca, e foi mais ar do que cuspo que atingiu o
rosto do guerreiro. Ainda assim, obteve o efeito desejado, e Cato dobrou-se ao receber o punho do homem no estômago. Caiu de joelhos, a tentar respirar, mas à sua
volta erguiam-se os gritos de apoio e desafio dos seus homens, que lhe enchiam os ouvidos. O bretão puxou-o pelos cabelos, forçando-o a pôr-se de pé.
- Foi divertido, não foi, romano? Da próxima, esmago-te os tomates como se fossem ovos. Depois, quero-te ver a falar como um homem outra vez. Vamos.
Empurrou Cato para fora do curral, e ao segui-lo, apercebeu-se de que se aproximava um homem com um cesto de comida para os prisioneiros. Quando o guarda se aproximou
da entrada, o guerreiro deu uma forte pancada de punho cerrado no cesto que o outro transportava, espalhando as míseras lascas de carne por todo o lado. Imediatamente
acorreram galinhas de todos os lados, e começaram a debicar as migalhas. O guerreiro manifestou a sua satisfação com um aceno, antes de se virar para o guarda espantado:
- Hoje não haverá comida para os romanos.
O guarda concordou e, com algum receio, baixou-se para recuperar o cesto, enquanto o guerreiro pegava em Cato pelo braço e o forçava a acompanhá-lo pelo meio do
campo bretão. A refeição da noite estava a ser preparada, e os aromas dos cozinhados enchiam o ar, atormentando o romano que ainda tentava recuperar o fôlego. Apesar
da agonia da fome, tentou manter-se atento e observar a disposição do campo enquanto o percorria. Havia muitos guerreiros, homens endurecidos que o observavam ao
passar conduzido por um deles. Havia carne a secar em fios esticados, e vários depósitos de cereais que pareciam repletos. Aqueles homens tinham claramente a vontade
e a capacidade de continuar a luta, e formavam um núcleo a partir do qual a resistência a Roma se podia desenvolver. Cato compreendeu que, se as legiões queriam
colocar a ilha sob o domínio do Imperador, aqueles homens tinham que ser destruídos, completamente aniquilados. Mas esse problema já não lhe dizia respeito. Já não
era, de facto, um membro das legiões. Na verdade, parecia certo que dentro de pouco tempo já não seria nada. Talvez estivesse a ser arrastado para a sua execução
- um sacrifício a incluir num qualquer ritual nocturno dos druidas.
Por fim, ao chegarem a uma área mais escura do campo, foi atirado para o interior de uma das maiores cabanas, e como tinha a ainda as mãos amarradas, caiu desamparado
sobre a palha que cobria o chão. Rolou sobre si mesmo e notou a pequena fogueira no centro da sala. Sentado num
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banco ao lado do fogo, estava um homem de grande estatura e cabelo claro puxado para trás e atado, deixando-lhe o rosto bem à vista. Envergava uma túnica simples
e calças que não disfarçavam os músculos que cobriam. Os braços eram sólidos e terminavam em longos dedos agora entrelaçados, nos quais se apoiava um queixo com
barba. Um bigode espesso curvava-se aos lados dos lábios comprimidos. O brilho do fogo revelava o rosto de um homem de trinta e muitos anos, com arcadas salientes
e uma testa larga. Um espesso cordão de ouro brilhava-lhe em redor do pescoço, e Cato reconheceu imediatamente o desenho. Sentiu uma vaga de terrível apreensão.
- Onde é que arranjaste esse colar? - Disparou em céltico.
As sobrancelhas do homem arregalaram-se em surpresa, e ele inclinou a cabeça, em sinal de algum divertimento.
- Romano, não me parece que te tenha feito vir à minha presença para discutirmos o teu gosto em joalharia.
Cato conseguiu colocar-se de joelhos, e forçou-se a acalmar.
- Não, suponho que não foi essa a razão.
O nó que lhe amarrava os pulsos estava apertado e era desconfortável; Cato apoiou-se no solo e sentou-se de pernas cruzadas, de forma a dar descanso aos braços.
Então, pôs-se a examinar com maior atenção o seu interlocutor. Era evidentemente um guerreiro, e possuía a aura e a compostura de alguém que com naturalidade comandava
largos números de homens. O cordão de ouro era em tudo semelhante ao que Macro usava em volta do seu possante pescoço. O centurião tinha-o retirado do corpo de Togodumno,
um príncipe da poderosa tribo dos catuvelaunos, e irmão de Carátaco. Cato inclinou ligeiramente a cabeça.
- Suponho que és Carátaco, rei dos catuvelaunos?
- Ao teu dispor. - O homem inclinou a cabeça, simulando modéstia. - Sim, foi minha essa honra, antes do teu Imperador Cláudio decidir que a nossa ilha ficaria bem
na sua colecção de terras de outras gentes. Sim, fui rei - em tempos. Ainda o sou, mesmo que o meu reino esteja reduzido a esta minúscula ilha no meio de um pântano,
e que o meu exército esteja limitado aos poucos homens que sobreviveram ao nosso último encontro com as legiões. E tu, és...?
- Quinto Licínio Cato.
O rei acenou.
- Ouvi dizer que o teu povo prefere ser tratado pelo último dos nomes que indica.
- Entre amigos, sim.
- Estou a ver. - Um sorriso perpassou pelo rosto de Carátaco.
- Muito bem, uma vez que o teu último nome é o mais fácil de usar, terás que me considerar como um amigo, por enquanto.
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Cato não respondeu, e manteve uma expressão neutra, já que pressentia uma armadilha de algum tipo.
- Serás então Cato. - Decidiu o rei.
- Porque é que me fizeste trazer à tua presença?
- Porque assim o quis. - Respondeu Carátaco imperiosamente, empertigando as costas e olhando de alto para Cato. Mas, logo a seguir, relaxou e sorriu. - Vocês, romanos,
têm todos o hábito de fazer perguntas impertinentes?
- Não.
- Bem me parecia. Pelo que tenho sabido, os vossos imperadores não apreciam particularmente ser interpelados directamente pela plebe.
- Não.
- Mas de facto não estamos em Roma, Cato. Podes portanto falar à vontade. Com maior liberdade do que se estivesses entre os teus.
Cato inclinou a cabeça.
- Tentarei fazê-lo.
- Óptimo. Estou curioso quanto à razão pela qual tu e os teus camaradas estavam acampados no pântano. Se fossem legionários armados, ter-vos-ia destruído imediatamente.
Se não fosse o vosso pobre aspecto e o vosso armamento desprezível, estariam a esta hora todos mortos. Portanto, romano, diz-me: quem são vocês? Desertores? - Olhou
esperançado para Cato.
Cato abanou a cabeça.
- Não. Somos homens condenados. Injustamente condenados.
- Condenados por que razão?
- Por termos permitido que tu e os teus homens cruzassem o rio.
As sobrancelhas de Carátaco subiram ligeiramente.
- Fazias parte dos homens que ocupavam a margem sul?
- Sim.
- Então foste um dos que ajudaram à armadilha em que o meu exército foi apanhado. Por Lud! Os homens na ilha lutaram como demónios. Eram poucos, mas letais. Custaram
a vida a centenas dos meus guerreiros. Estavas lá, romano?
- Não na ilha. Essa unidade era comandada por um amigo meu.
Eu vinha com a força principal, pela margem.
Carátaco olhou para Cato como se não o visse, enquanto relembrava a batalha.
- Quase que nos apanhavam. Se tivessem aguentado mais um bocadinho, teríamos sido todos apanhados e aniquilados.
- Sim, eu sei.
- Mas como podiam vocês enfrentar todo um exército?
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Impediram-nos a passagem por tanto tempo quanto vos foi possível. Nenhum comandante podia exigir mais aos seus homens. Com certeza que o vosso general Pláucio não
vos condenou por não terem conseguido o impossível?
Cato sacudiu os ombros.
- As legiões não aceitam falhanços. A culpa tinha que ser atribuída a alguém.
- E foste tu e os outros? Pouca sorte. Qual ia ser o vosso destino?
- Fomos sentenciados ao espancamento até à morte.
- Espancados até à morte? Dura sentença... Embora talvez não mais dura do que o destino que aguarda os meus prisioneiros.
Cato engoliu em seco.
- E qual é esse destino?
- Não decidi ainda. Os meus druidas precisam de oferecer um sacrifício sangrento antes que possamos regressar à luta. Alguns dos teus homens devem ser os suficientes
para aplacar os nossos deuses da guerra. Mas, como te disse, ainda não tomei nenhuma decisão. Por agora, queria apenas saber de que matéria são feitos vocês, os
homens das legiões. Para melhor perceber o meu inimigo.
- Nada te direi. - Afirmou Cato, decidido. - Deves saber isso.
- Paz, romano! Não tenho intenções de te torturar. Quero apenas saber mais sobre o tipo de homens que preenchem as vossas fileiras. Tentei conversar com os vossos
oficiais superiores que caíram nas nossas mãos, com os tribunos. Mas dois deles suicidaram-se antes que os pudesse interrogar. O terceiro foi frio, altivo, superior,
disse-me que não passava de um porco bárbaro, e que preferia morrer a sofrer a indignidade de falar comigo. - Carátaco sorriu. - Satisfizemos-lhe o desejo. Queimámo-lo
vivo. Manteve o controlo quase até ao fim. Mas depois desatou a chorar e a berrar como um bebé. A verdade é que não lhe consegui arrancar nada, a não ser desprezo,
do mais profundo e vil. Duvido que alguma vez consiga aprender alguma coisa com os teus superiores na escala social, Cato. E, de qualquer maneira, é sobre os homens
comuns da legião que quero aprender - quero compreendê-los; saber mais sobre os homens contra quem os meus guerreiros foram feitos em pedaços, como ondas contra
um penedo. - Fez uma pausa, e fixou o jovem interlocutor. - Quero saber mais sobre ti. Qual é a tua patente, Cato?
- Sou centurião.
- Centurião? - Carátaco riu. - Não és um bocadinho novo de mais para teres tal posto?
Cato sentiu-se corar perante a facilidade com que o outro afastava tal hipótese.
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- Tenho idade suficiente para ter visto as tuas forças derrotadas uma e outra vez, neste ano que passou.
- Isso vai mudar.
- Vai?
- É claro. Preciso apenas de mais homens. Todos os dias as minhas forças engrossam. O tempo é meu aliado, e haveremos de conseguir a nossa vingança contra Roma.
Não seremos sempre derrotados, centurião. Até tu deves perceber isso.
- Deves estar fatigado de nos combater, depois de tantas derrotas.
- Avançou Cato, calmamente.
Carátaco encarou-o sobre o fulgor do lume. Por momentos, Cato receou que a sua tirada de desafio tivesse sido demasiado arriscada. Mas então, o rei anuiu.
- Sim, estou cansado. Todavia, fiz um juramento solene de que defenderia o meu povo de todos os invasores, e combaterei Roma até soltar o meu último suspiro.
- Não podes vencer. - Explicou Cato, com gentileza. - Tens que perceber isso.
- Não posso vencer? - Carátaco sorriu. - Foi um ano difícil para todos, romano. Também os teus legionários devem estar fatigados, depois de tanta marcha e de tanto
combate.
Cato encolheu os ombros.
- É a nossa forma de vida. É tudo o que conhecemos. Mesmo quando não estamos envolvidos numa guerra, treinamos para a próxima, todos os dias. E cada batalha fingida
que travamos sem que o sangue corra aguça o apetite dos nossos homens para as batalhas reais. O teu povo lutou com bravura, mas a maior parte dos teus combatentes
são camponeses... amadores.
- Amadores? Talvez. - Concedeu o rei. - Porém, estivemos à distância de um cabelo de vos derrotarmos. Até o mais orgulhoso dos romanos tem que conceder esse facto.
E ainda não estamos vencidos. Os meus batedores informam-me que a vossa Segunda Legião está acampada a norte do pântano. O vosso legado colocou uma das suas coortes
a sul. Imagine-se, uma coorte! Será ele assim tão arrogante que é capaz de pensar que uma coorte me vai conter? - Carátaco sorriu. O vosso legado precisa de uma
lição, digo eu. Em breve. Havemos de lhe mostrar - a todos vocês, romanos - que esta guerra está longe de terminar.
Cato sacudiu mais uma vez os ombros.
- Sou capaz de admitir que houve momentos em que o sucesso da nossa campanha esteve em dúvida. Mas agora...? - Abanou a cabeça.
- Agora, o único fim que te espera é a derrota.
265
Carátaco fez uma careta e pareceu amargurado, antes de responder.
- Tenho idade suficiente para ser teu pai, porem falas comigo
como se te dirigisses a uma criança. Cuidado, romano. A arrogância da juventude só é tolerável até certo ponto.
Cato baixou o olhar.
- Peço desculpa. Não queria ofender-te. Mas sei, no fundo do meu coração, que a vitória não está ao teu alcance, e que deve ser posto um ponto final ao desnecessário
sacrifício dos povos destas terras. E eles mesmos to suplicariam, se pudessem.
Carátaco ergueu o punho cerrado, e esticou um dedo na direcção do centurião.
- Não te atrevas a supor que podes falar em nome do meu povo, romano!
Cato engoliu, nervoso.
- E em nome de quem falas tu, exactamente? Só um punhado de tribos se mantém leal à tua causa. Todas as outras aceitaram o destino e entraram em acordo com Roma.
Agora são nossas aliadas, não tuas.
- Aliados! - O rei cuspiu sobre a fogueira, com desprezo. - Escravos, eis o que eles são. São menos do que os cães que se alimentam das migalhas da minha mesa. Aliar-se
a Roma é o mesmo que condenar um reino a uma morte em vida. Olha para aquele imbecil, o Cogidumno. Ouvi dizer que o teu imperador lhe prometeu a construção de um
palácio. À medida de um reino subjugado. E por isso ele condenou o seu povo a tornar-se propriedade de Roma após a sua morte, para que possa ele passar os seus dias
numa prisão dourada, desprezado quer pelo teu imperador, quer pelo seu próprio povo. Não é maneira de um rei viver. - Abatido, olhou profundamente para o coração
do fogo. - Não é maneira de um rei governar... Como pode ele viver com tamanha vergonha?
Cato manteve-se em silêncio. Sabia que o que Carátaco dissera sobre os reis submetidos a Roma era verdade. A história do crescimento do Império estava recheada de
episódios sobre reis que tinham acolhido o domínio romano de braços abertos e tanto se tinham deslumbrado perante as migalhas que lhes eram oferecidas que se tinham
tornado cegos ao verdadeiro destino dos seus povos. Contudo, ponderou Cato, qual era a alternativa? Se não um rei fantoche, então o quê? Uma tentativa fútil de resistência,
seguida do frio desconforto de uma vala comum, para os reis e os povos que preferissem a liberdade à própria vida. Cato sabia que tinha que tentar fazer com que
o rei visse a razão, para pôr fim à carnificina insensata que ensopava em sangue as terras daquela ilha.
Quantos dos teus exércitos já Roma derrotou? Quantos dos teus
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homens perderam a vida? Quantos fortes e povoados foram reduzidos a cinzas? Pelo teu povo, tens que tentar a paz. Pelo bem dos teus...
Carátaco abanou a cabeça e continuou a fitar o fogo. Durante muito tempo, nenhum dos homens falou. Cato compreendeu que tinham chegado a um impasse. O espírito de
resistência continuava a consumir o líder bretão. O peso da tradição e o código do guerreiro que lhe tinha sido imposto desde o berço forçavam-no a manter-se imperturbável
no trágico caminho da autodestruição. Porém, parecia sensível ao sofrimento que as suas escolhas implicavam para outros. Cato percebeu que a sua frase sobre o sacrifício
desnecessário do povo tinha atingido um ponto fraco. Compreendeu que o rei era suficientemente imaginativo e capaz de compaixão para sofrer pelo seu povo. Se conseguisse
aceitar que a derrota era de facto inevitável, o impasse seria quebrado.
Por fim, Carátaco levantou o olhar e esfregou a face.
- Centurião, estou fatigado. Não consigo pensar. Teremos que continuar esta conversa noutra ocasião.
Chamou a guarda, e o homem que tinha trazido Cato do curral entrou na cabana. O rei indicou, com um breve aceno de cabeça, que a sua entrevista com o romano tinha
terminado, e este foi bruscamente posto em pé e empurrado para a escuridão. Arriscou um olhar para trás, e antes que a cortina de couro tapasse a entrada da cabana,
avistou uma última vez o rei bretão: inclinado para a frente, a cabeça entre as mãos, imóvel, numa postura de solidão e desespero.
267
XXXI

- Este gajo ainda vai fazer com que nos matem a todos. - O centurião Túlio acenou com a cabeça na direcção do comandante da coorte. Máximo dava ordens aos optios
responsáveis pelas patrulhas a efectuar durante o dia. Cada um deles tinha vinte homens sob o seu comando, e levaria consigo um guia nativo. Estes eram prisioneiros,
os pescoços envoltos por um aro de metal preso por uma corrente ao cinto de um legionário. Uma vez que os seus filhos eram reféns, era pouco provável que algum deles
oferecesse resistência ou que pensasse sequer em escapar ou trair os romanos. Contudo, Máximo não queria correr riscos. Já dispunha de poucos homens, tal como as
coisas estavam. Túlio batia com a vara de centurião na face lateral da greva, produzindo um ruído irritante. Macro olhou para ele, exasperado.
- Importas-te?
- O quê? Oh, desculpa! - Túlio interrompeu o gesto, colocando a vara debaixo do braço, e voltou a apreciar as actividades do seu superior.
- Supunha que estávamos aqui para procurar o Cato e os outros. Não fazia ideia de que íamos aproveitar para fomentar uma porra duma revolta ao mesmo tempo. E se
não é isso que ele anda a tentar fazer, então não sei o que é... o sacana.
- Talvez tenha sido mesmo isso que lhe disseram para fazer. - Especulou Macro, sem procurar esconder os seus pensamentos.
- Queres dizer...
Macro encolheu os ombros.
- Não tenho a certeza. Ainda não. Mas parece-me uma estranha forma de tentar fazer com que os nativos nos ajudem.
- Estranha? - O centurião mais velho abanou a cabeça. - Não estavas connosco quando atacámos os bretões junto ao rio. O tipo perdeu a cabeça. - Túlio baixou a voz.
- Parecia que estava possesso: agia de forma selvagem, perigosa e cruel. Nunca lhe devia ter sido atribuído um comando.
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Enquanto ele comandar a Terceira Coorte, estaremos metidos em sarilhos. Já nos fez perder a face, desonrou-nos por completo. Macro, o meu tempo de serviço está quase
a acabar. Mais dois anos e serei dispensado. E bem o mereço, com uma folha de serviço limpa... até agora. Mesmo que este tipo não nos mate a todos, a dizimação vai
dar-nos cabo das carreiras. Tu e os outros centuriões ainda são novos, têm muitos anos pela frente. Achas que vais ter muitas possibilidades de ser promovido com
uma coisa destas no teu registo? Digo-te, enquanto aquela besta estiver no comando, estamos na merda; e bem funda. - Afastou o olhar de Macro, na direcção do comandante
da coorte, e continuou calmamente. - Se ao menos lhe acontecesse alguma coisa...
Macro engoliu nervosamente, e aprumou-se.
- Se fosse a ti, tinha cuidado com o que dizia. Ele é perigoso, é verdade, mas esse tipo de conversa também é.
Túlio encarou atentamente o outro centurião.
- Então concordas que ele é perigoso?
- Talvez seja, sim. Mas tu é que me estás a assustar. Túlio, no que é que estás a pensar? Numa adaga afiada numas costas, numa noite escura?
Túlio deu uma risada curta e pouco convincente.
- Já aconteceu antes.
- Ah, sim, - resmungou Macro, - sei bem disso. E também sei bem o que pode acontecer aos homens das unidades consideradas responsáveis. Não me agrada a ideia de
acabar os meus dias numa mina imperial. E o que aconteceria se ele fosse morto? Serias tu o comandante. - Macro encarou o outro homem com severidade. - Com toda
a franqueza, não me parece que estivesses à altura.
Túlio baixou o olhar antes que Macro se apercebesse da expressão de mágoa que lhe toldou o semblante.
- É provável que tenhas razão... Há muitos anos atrás, seria capaz de comandar, sim. Mas nunca tive essa oportunidade.
Precisamente, pensou Macro, não evitando um esgar de desprezo com os lábios. Túlio voltou a levantar a vista.
- Macro, podias ser tu a assumir o comando.
- Não.
- Porque não? Tenho a certeza de que os homens te seguiriam. Eu
fá-lo-ia.
- Já disse que não.
- Tudo o que temos a fazer é garantir que a morte do Máximo não
se torne suspeita.
A mão de Macro saltou disparada em direcção ao ombro do homem mais velho. Sacudiu-o, para dar ênfase às suas palavras.
269
- Eu disse que não. Percebeste? Mais uma palavra tua, e sou eu
quem te entrega ao Máximo. E até me ofereço para carrasco. - Deixou a mão escorregar de novo até ao lado do corpo. - Nunca mais me voltes a
falar nisto.
- Mas porquê?
- Porque ele é o nosso comandante. Não temos que o questionar, o nosso dever é obedecer às suas ordens.
- E se ele nos der ordens que nos levem à destruição, à morte?
Nesse caso, fazemos o quê?
- Nesse caso... Nesse caso, morremos. - E Macro voltou a encolher os ombros.
Túlio olhou para ele com uma expressão de espanto.
- És tão louco como ele..
- Talvez. Mas nós somos soldados, não somos senadores. Estamos aqui para fazer aquilo que nos mandam e para combater; não há lugar para debates. Foi isso que aceitámos
fazer quando entrámos para as Águias. Fizemos um juramento, tu e eu. E não há mais nada a dizer.
Túlio encarou-o, e depois espetou-lhe um dedo no peito.
- Se é assim que pensas, és louco.
- Senhores!
Voltaram-se ambos, alarmados pelo som da voz de Máximo. Tinha concluído a reunião com os optios, e encaminhara-se para eles sem que dessem conta da sua aproximação.
Ao aperceber-se das expressões carrancudas e surpreendidas, a face de Máximo enrugou-se, antes de se abrir num sorriso.
- Vocês os dois estão com ar de quem quer andar à porrada!
Túlio forçou-se a lançar uma fraca gargalhada, e Macro conseguiu
produzir um sorriso, enquanto o centurião mais velho retorquia:
- Um pequeno desencontro de opiniões, senhor. Nada mais do que isso.
- Ainda bem. E sobre o que era o desacordo?
- Nada de especial, senhor. Nada que valha a pena mencionar.
- Eu serei o juiz disso. - Máximo voltou a sorrir. - Portanto, estou à espera.
Túlio olhou para Macro e agitou a mão no ar entre eles.
- Uma diferença de opinião, senhor, apenas uma opinião profissional diferente. Dizia eu que teríamos batido o inimigo muito mais depressa se tivéssemos tido algumas
unidades da Guarda Pretoriana a lutar ao nosso lado.
Estou a ver. - Máximo perscrutou cuidadosamente o semblante
270
do subordinado, antes de se virar para Macro. - E o que pensa o Centurião Macro?
Antes que este pudesse responder, Túlio adiantou-se:
- Ele acha que a Guarda não passa de uma cambada de preguiçosos, senhor.
Máximo ergueu a mão.
- Calado. Penso que o Macro é capaz de falar por si próprio. E então, o que é que tu pensas?
Macro lançou um olhar viperino na direcção de Túlio, amaldiçoando a situação em que o outro o colocara; depois, avançou uma resposta:
- Senhor, não duvido que sejam bons homens. Bons soldados, mas... Bem, depois de passarem tanto tempo em Roma, acho que podem ter amolecido um bocado... senhor.
- E portanto achas que os legionários são tipos mais duros, é
isso?
Macro encolheu os ombros, desanimado.
- Bem, senhor, sim. Acho que... Sim, é isso.
- Uma porra! - Máximo cuspiu imediatamente a resposta. - Nem sequer há comparação possível. O guarda é o melhor soldado do Império, sem rival à vista. Acredita que
sei, servi com eles durante bastante tempo. O Túlio tem toda a razão. Se Cláudio tivesse deixado por cá alguns quando se raspou de volta a Roma o ano passado, já
tínhamos acabado com isto. A Guarda tinha despachado o Carátaco em menos tempo do que leva a dizê-lo. - Voltou-se irritado para Macro, as narinas bem arregaladas
e a respiração pesada. - Pensava que um oficial com a tua experiência teria consciência disso. Não há comparação entre um guarda e qualquer um dos teus legionários
de merda.
- Sim, senhor. - Macro corou. Estava tentado a defender-se, a responder e a justificar as palavras que Túlio lhe tinha atribuído. A lembrar a Máximo as asneiras
que tinham sido cometidas na batalha às portas de Camaloduno, no ano anterior, e que quase tinham custado a destruição da Guarda que tanto gabava. Mas Macro não
podia confiar em si mesmo para prosseguir a discussão; sabia que, irritado e decidido a prevalecer, lhe podiam sair da boca frases indiscretas e desastrosas. Era
melhor permitir que a arrogância do comandante da coorte lhe passasse por cima como uma das ondas que rebentavam na praia, inchadas pelo lixo que arrastavam, junto
à casa onde passara a infância, nas proximidades de Ostia. Aprumou-se e enfrentou o superior hierárquico. - É como diz, senhor. Não há de facto comparação possível.
Mesmo disfarçada, a ironia não escapou a Máximo, que ordenou
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a Túlio que se fosse dedicar aos seus deveres. Assim que ficaram a sós, o comandante voltou a questionar Macro.
- Afinal, do que é que tu e o Túlio estavam a falar?
- Como ele disse, senhor, era apenas uma diferença de opinião
profissional.
- Estou a ver. - Máximo encarou longamente Macro, mordendo
o lábio. - Nada a ver com o traidor que procuramos, então?
Macro sentiu o pulso a acelerar, e rezou para que nenhum sinal de culpa se tornasse evidente na sua expressão, enquanto respondia:
- Nada, senhor.
- Não estamos a fazer grandes progressos nessa investigação, pois não, Macro?
- Nós, senhor?
- Evidentemente. - Máximo olhou em volta, desconfiado, e depois baixou a voz, até ser pouco mais do que um murmúrio. - Em quem mais posso confiar quanto a isto,
Macro? O Túlio não passa de uma velha assustada. O Félix e o António são demasiado jovens, quer para guardarem segredos, quer para os desvendarem. És o único dos
meus oficiais em quem posso confiar. Quero que o traidor seja identificado e seja levado à minha presença acorrentado. E tu, Macro, és o homem indicado para desempenhar
essa tarefa.
- Sim, senhor. - Anuiu Macro. - O que deseja que eu faça, exactamente?
- Fala com os homens. Com calma, sem exageros. Não tentes pescar informações. Diz só o que achares que deves dizer, e nem mais uma palavra. E escuta o que eles disserem.
Fico à espera de um relatório.
- Sim, senhor.
- Então, muito bem. - Máximo voltou-se e acenou na direcção do último destacamento que esperava para partir em patrulha, e cujos homens se espalhavam pelo terreno
junto ao portão. - Quero que comandes esta patrulha. O guia disse que há algumas pequenas quintas a leste. Pode ser que haja alguma coisa por lá. Afinal de contas,
o grupo de Cato há-de precisar de comida. Se encontrares algum sinal de que os nativos os estão a esconder, já sabes como proceder. Eles que sirvam de exemplo.
- Sim, senhor.
- Aquele optio, o Córdio, é da centúria do Félix. É um bom soldado, podes confiar nele. Compreendeste as ordens?
- Sim, senhor.
O comandante da coorte fez uma pausa, olhando de novo fixamente para Macro.
272
- Assim que regressares, vais-me fazer um relatório completo. Minucioso.
Macro fez a saudação regulamentar.
- Compreendido, senhor.
- Então, boa sorte.
? ? ?
Era meio-dia quando Macro deu ordem de alto à patrulha. Foram colocadas sentinelas nas proximidades, enquanto o resto dos homens se deixavam cair no solo, agradecidos,
e pegavam nos cantis. O azul do céu era penetrante, e apenas uns farrapos de nuvens o perturbavam, passando vagarosamente para sul. Macro ansiava por uma sombra,
e olhou para as nuvens com pesar. O Sol não dava tréguas, aquecendo o ar parado que cobria o pântano, e não havia nenhum elemento da patrulha que não estivesse a
suar copiosamente. A protecção de feltro por dentro do capacete de Macro estava encharcada, e ele sentia gotas de suor a escorrer pela testa e a pingar sobre as
bochechas. O calor exauria as energias dos homens, e toda a manhã eles se tinham queixado da sua sorte, até Macro ter perdido a paciência e dado um berro que os
fez calar. Daí em diante, tinham marchado em silêncio, cada vez mais carrancudos, enquanto o guia os levava por trilhos estreitos e serpenteantes no meio dos pântanos
malcheirosos, aqui mais frondosos, ali quase nus, mas sempre sem encontrar qualquer sinal de habitação.
- Córdio! - Macro chamou o optio com um gesto da mão. - Pergunta-lhe se ainda temos muito que andar.
O optio acenou em sinal de compreensão e dirigiu-se ao guia nativo. Este era um homem baixo, entroncado, e que vestia uma rústica túnica e calças de lã. Estava descalço,
de cabeça descoberta, e a tira de couro que lhe rodeava a garganta tinha-lhe arranhado a pele, deixando um vergão avermelhado em redor do grosso pescoço do homem.
Era ferreiro de profissão, e o sucesso no trabalho exigia-lhe força nos braços e não nas pernas, pelo que ainda tinha sofrido mais do que os legionários com a caminhada
da manhã. Embora tivesse anunciado que conhecia o caminho para as quintas espalhadas pelo pântano, Macro suspeitava que o outro quase se tinha perdido em mais de
uma ocasião. O facto de a sua família se encontrar numa jaula de reduzidas dimensões no campo romano, como refém, fora um incentivo mais do que adequado para que
ele se esforçasse por encontrar rapidamente o trilho correcto. Mas agora aparentava estar exausto, de cócoras, o peito a arfar e a olhar com evidente inveja para
o cantil de onde bebia o romano que o guardava.
273
Deu um grito de susto quando Córdio lhe tocou com a ponta da bota. Encolheu-se todo, ao olhar sobre o ombro e perceber que era o optio, que imediatamente pegou na
corda que o aprisionava e a puxou, forçando-
-o a pôr-se de pé.
Córdio interpelou-o no céltico macarrónico que tinha conseguido aprender quando a Segunda Legião tinha passado o Inverno em Camaloduno. Entre o sotaque do optio
e a dificuldade que o nativo tinha para compreender o dialecto empregue, passou algum tempo antes que a pergunta fosse entendida. Então o guia pôs-se a apontar para
a estrada e a palrar na sua língua, até que Córdio se irritou e voltou a puxar pela corda, cortando-lhe o fôlego e a palavra. Deixou que o bretão se abatesse de
novo no solo, e atirou a coleira na direcção do legionário encarregue de o vigiar, antes de se virar e voltar para junto de Macro.
- Então?
- Ele acha que devemos levar menos de uma hora a chegar lá, senhor.
- Merda... - Macro passou a mão pela testa, enquanto tentava calcular o tempo. Uma hora para encontrar a quinta, talvez duas para revistar as instalações, e depois
seis horas de marcha para voltar para o forte. Se tivessem sorte, chegariam pouco depois do cair da noite. Andar aos caídos pelo pântano depois do anoitecer era
uma perspectiva muito pouco animadora. Macro tomou um curto gole do cantil, e levantou-se pesadamente.
- Optio, manda essa corja levantar-se! Vamos embora.
Ouviu-se um coro de protestos e gemidos vindo dos homens.
- Toca a calar! - Gritou Córdio. - Se não querem que vos meta os dentes para dentro com um pontapé bem assente! Upa! De pé!
Macro aprovou silenciosamente o comportamento do optio, à medida que este percorria o caminho para cima e para baixo, apressando à bruta todo e qualquer legionário
que se mostrasse menos diligente. Córdio era precisamente o tipo de optio que Macro apreciava. Com certeza que não tinha nada do brilhantismo de Cato, mas era um
firme defensor da rija disciplina que fazia com que os homens se mexessem. Pensar em Cato fê-lo recordar o propósito da patrulha, e lamentou-o nesse preciso momento.
Cerrou os lábios e, quase sem dar por isso, começou a bater ritmadamente com a ponta da vara na dura terra do caminho. E se realmente encontrassem Cato e os outros,
o que fariam? As ordens eram para que os capturassem vivos, se possível. Mas vivos constituíam uma ameaça. Havia entre eles homens bem capazes de tentar negociar
o nome de quem os tinha ajudado a fugir em troca de uma sentença mais suave. Sim, algum deles o tentaria seguramente, e assim que Máximo soubesse disso faria o necessário
para convencer o desgraçado de que o negócio era possível; depois, ou renegava
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o acordo ou chamava os carrascos e obtinha a informação de qualquer maneira.
Por outro lado, se Macro desse ordens para se verem livres deles ali no pântano, não faltariam perguntas no futuro. E não seria preciso nenhum génio para adivinhar
as razões por que ele teria feito com que os prisioneiros fossem silenciados.
E, além disso, Macro estava longe de ter a certeza de que queria dar ordens para a execução de Cato e Fígulo, se eles lhe caíssem nas mãos. Estava metido numa grande
embrulhada, mas não se podia furtar ao cumprimento das subtis ordens que Máximo lhe transmitira antes de deixar o acampamento.
A patrulha prosseguiu, seguindo o obeso guia pelo trilho; Macro decidiu caminhar ao lado de Córdio.
- Calor do caraças.
O optio ergueu o olhar.
- Hum, de facto, senhor.
- Está-me mesmo a apetecer um banho... Assim que voltarmos.
- Adiantou Macro, pensativo, enquanto o subordinado tentava perceber se aquilo era uma afirmação ou um convite.
- Um banho, sim, senhor. Exacto... Estamos mesmo a precisar. Macro anuiu.
- Sobretudo depois de um dia a calcorrear este pântano de merda. Se encontrarmos aqueles sacanas, hão-de arrepender-se do dia em que decidiram desaparecer, garanto-to
eu.
- Sim, senhor. - Córdio cuspiu para limpar o pó da garganta.
- Eles, e o filho da puta que os ajudou a escapar.
Macro deitou-lhe um rápido olhar.
- Quem quer que ele seja.
- Sim, senhor. Esse gajo tem muito que explicar. - O optio afastou uma vespa que lhe pairava em frente dos olhos.
- É bem verdade. - Macro fez uma breve pausa. - Suponho que se percebe porque é que o general teve que dar aquelas ordens. Sobre a dizimação, claro.
- Percebe-se, senhor? - A face de Córdio enrugou-se, enquanto o homem pareceu meditar no assunto por um instante; depois encolheu os ombros. - Talvez, sim. Mas ainda
assim, o castigo parece-me um bocado
exagerado.
- Achas que sim?
Córdio cerrou os lábios, e acenou.
- Senhor, penso que sim. Lutámos ferozmente junto ao rio. Só que eles eram muitos, demasiados, e conseguiram forçar-nos a recuar. É a vida,
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não se pode triunfar em todos os combates. Mas, lá por causa disso, não se pega em quarenta e tal homens para executar como castigo a uma coorte, por não ter conseguido
o impossível. Isso é de loucos, pura e simplesmente.
- Tens razão. Mas isso não desculpa o nosso homem de os ter
ajudado a fugir, não é?
- Não. Mas faz com que se compreenda o que ele fez. - Córdio encarou-o. - Não concorda, senhor?
- Sim, acho que sim. Eras capaz de o ter feito?
Córdio afastou o olhar.
- Não sei. Talvez o tivesse feito... se alguém não tivesse sido mais rápido. E o senhor?
Macro deixou passar um momento antes de responder.
- Para um centurião, essa não era uma opção possível. A nossa função é manter a disciplina, por muito injusta que seja.
- Senhor, e se não ocupasse esse posto?
- Não sei. - Macro olhou para a distância, com uma expressão de dor e culpa no rosto. - Não quero falar nisso.
Córdio deitou-lhe um rápido olhar, e depois deixou-se ficar um passo para trás, por respeito à patente de Macro. Enquanto a patrulha prosseguia a cansativa marcha,
o centurião matutou na posição que Córdio assumira relativamente aos fugitivos. Se até aquele optio, duro como poucos, manifestava simpatia pelos condenados, quantos
mais dos homens da coorte teriam a mesma opinião? E Córdio tinha ido para lá da simples simpatia. Tinha até deixado alguns indícios de que teria sido capaz de os
ajudar a escapar. Se essa posição era comum entre os homens, então o número de potenciais suspeitos era suficientemente grande para permitir a Macro passar despercebido.
Sentiu que se aligeirava o peso pela sua participação efectiva no sucedido. Pelo menos até ao momento em que os fugitivos fossem realmente apanhados.

- É isto? - Macro acenou na direcção das cabanas circulares e silenciosas. Uma névoa tremeluzente, devida ao calor, atravessava-se na estrada, e fazia com que as
cabanas parecessem flutuar sobre água.
- Sa! - Confirmou o guia.
Os dois homens estavam deitados no meio da erva que crescia de ambos os lados da estrada, e espreitavam por entre os tufos. À sua frente, o trilho alargava ao alcançar
uma área extensa que se erguia um pouco acima do pântano circundante. Esta estava dividida entre searas, onde crescia
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cevada, e áreas cercadas, em que se avistavam algumas ovelhas que tentavam proteger-se do calor em qualquer zona menos exposta, os flancos erguendo-se e descendo
à medida que os gordos animais respiravam. Era um bom local para habitar, percebeu Macro. Escondido do resto do mundo, e sobretudo de grupos de atacantes de tribos
hostis. Em caso de necessidade, a estreita estrada que conduzia à quinta podia ser barricada, desencorajando eventuais atacantes. Mas não se via ninguém a vigiar
o caminho, e não se avistava qualquer sinal de vida nas cabanas.
Macro passou uma mão sobre os caracóis escuros e suados que se lhe colavam à testa. Tinha tirado o capacete antes de avançar com o guia, e deixara-o com Córdio.
E que alívio sentira quando libertara a cabeça do aperto desconfortável do capacete e removera o feltro protector que, ensopado em suor, tinha tendência a provocar
comichão.
Com o dedo, apontou para a estrada, na direcção de onde tinham
vindo.
- Vamos!
Córdio e os outros estavam tensos e impacientes, e quando se aperceberam do regresso do centurião e do guia, olharam-nos com perguntas silenciosas. Córdio entregou-lhe
de novo o capacete, e Macro colocou-o de novo por cima da protecção, enquanto relatava o que tinha visto.
- Não há movimento. Nem sinal de qualquer presença.
- Acha que é uma emboscada, senhor?
- Não. Se fosse, tentariam atrair-nos; fariam com que tudo parecesse normal, seguro, sem ameaças, para nos apanharem melhor. Parece apenas deserta.
- Ou abandonada?
Macro abanou a cabeça.
- Há searas cuidadas, e também vi alguns animais. Vamos avançar em formação, e vamos mantê-la até nos assegurarmos de que não há qualquer ameaça.
À medida que a patrulha avançava por entre as primeiras cabanas, os legionários mantinham os pesados escudos em posição defensiva, e laçavam olhares apreensivos
às escuras entradas e a qualquer local que pudesse esconder um inimigo. Mas o silêncio persistia e reforçava a atmosfera opressiva de calor sufocante, sem uma brisa
que aliviasse tal impressão.
Macro ergueu a mão.
- Alto!
Assim que a patrulha se imobilizou por completo, imperou o silêncio. Macro fez sinal na direcção das cabanas de maiores dimensões.
- Revistem-nas! Dois homens em cada cabana!
Enquanto os legionários se dispersavam e se aproximavam cautelosamente
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das habitações, Macro deixou-se cair sobre um toco muito desgastado, que parecia ter servido aos camponeses como base para rachar lenha. Pegou no cantil e preparava-se
para remover a tampa quando se ouviu um grito vindo da cabana mais próxima.
- Aqui! Aqui!
Um legionário saiu do interior escuro, o braço erguido a cobrir a boca e o nariz. Macro largou o cantil, levantou-se e correu para o homem. Ao aproximar-se da cabana,
um tremendo fedor a decomposição assaltou-lhe as narinas, fazendo-o diminuir o passo, mesmo que involuntariamente. O legionário virou-se ao aperceber-se da chegada
do centurião.
- Informa!
- Corpos, senhor. A cabana está repleta deles.
Macro afastou o legionário, engoliu em seco e, com uma careta devida ao cheiro, enfiou a cabeça pela abertura, deixando suficiente espaço livre para que a luz penetrasse
também e lhe permitisse distinguir o interior. As moscas pululavam lá dentro, e Macro viu cerca de dez corpos empilhados como bonecos no centro da cabana. Deixando
o escudo encostado à abertura, Macro entrou, aproximou-se dos corpos e ajoelhou-se, lutando para controlar a vontade de vomitar. Havia três homens, um deles velho
e enrugado, e o resto eram crianças, dobradas em posições grotescas, os olhos abertos nas faces tenras, enquadradas pelo cabelo desgrenhado habitual nos jovens celtas.
Uma sombra cobriu as faces dos mortos, e Macro olhou para a entrada da cabana, onde Córdio tinha assomado.
- Optio, chega cá.
Este avançou com relutância, a mão sobre aboca, e agachou-se junto a Macro.
- Senhor, o que se terá passado? Quem terá feito isto? Carátaco?
- Não. Ele não. - Macro abanou a cabeça tristemente. - Olha para as feridas.
Todos os cadáveres apresentavam sinais de estocadas, uma ou várias, mas sempre com a forma característica das espadas da legião.
- Os guerreiros celtas usam golpes da lâmina. Deixam que seja o impacto das espadas pesadas a fazer o trabalho.
Córdio olhou para ele de sobrolho franzido.
- Então quem fez isto? Uma das nossas patrulhas?
- Não. Não acho que tenha sido isso. Mas foram na mesma romanos.
Os dois oficiais trocaram um olhar pleno de compreensão, mas depois Córdio voltou a olhar para os corpos.
- Mas onde estão as mulheres?
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Antes que Macro pudesse responder, ouviu-se um novo grito. Levantaram-se e deixaram rapidamente a pesada atmosfera da cabana, aliviados por se verem de novo ao ar
livre. Macro inspirou várias vezes para limpar os pulmões do cheiro da morte. A curta distância, um dos legionários chamava-lhe a atenção com o dardo.
- Senhor, mais corpos. Aqui!
Quando chegaram à outra cabana, Córdio estava vários passos adiantado, pelo que foi o primeiro a espreitar para o interior; ao fim de poucos instantes, voltou a
pôr a cabeça para fora e virou-se para o centurião.
- São as mulheres, senhor.
- Mortas?
Córdio deu um passo para o lado.
- Senhor, veja por si mesmo.
Com um sentimento de tristeza que lhe abalava a alma, Macro olhou para o interior da cabana. Na penumbra, apercebeu-se de três corpos nus; uma delas pouco mais era
do que uma menina. As duas mais velhas tinham as faces cobertas de golpes, e todas tinham sido abatidas da mesma forma. A uma delas tinha sido decepado um seio,
e havia uma massa viscosa de sangue seco e tecido dilacerado acumulada sobre a pele do peito. Um peso gelado abateu-se sobre o seu coração enquanto contemplava a
macabra cena. O que se teria passado ali? Só os homens de Cato podiam ser os responsáveis. Mas o jovem nunca o teria permitido, com certeza. Não o Cato que ele conhecia.
Isso só podia significar que ele já não controlava os homens que o tinham acompanhado na fuga. Ou então - um pensamento negro atravessou-lhe a mente - talvez a explicação
para os homens de Cato se comportarem como selvagens residisse no facto de Cato já não existir para lhes impor a ordem.
279
XXXII

Nos dias seguintes, Carátaco prosseguiu o seu curioso interrogatório, fazendo com que Cato fosse levado à sua presença quase todas as tardes. Numa dessas ocasiões,
ofereceu-lhe comida, e antes que o centurião pensasse no que estava a fazer, já tinha agarrado numa perna de borrego e preparava-se para enterrar os dentes na carne
sumarenta; mas, nesse momento parou. O delicioso aroma da carne penetrou-lhe nas narinas e fê-lo vacilar, atormentando-o, mas fez prevalecer a sua força de vontade
e baixou a mão, voltando a colocar o pedaço de carne na escudela de madeira que Carátaco fizera deslizar pelo chão na sua direcção.
- O que se passa, romano? Temes que te envenene?
Tal ideia nem sequer lhe tinha ocorrido nos momentos em que a fome que lhe roía as entranhas lhe tinha tomado o controlo da mente.
- Não. Se os meus homens passam fome, também eu passarei sem alimentos.
- A sério? - Carátaco pareceu divertir-se com tal afirmação. -
Porquê?
Cato sacudiu os ombros.
- Um centurião deve partilhar as agruras da vida dos seus homens, ou nunca conquistará o seu respeito.
- E quem é que lhes iria dizer? Estás esfomeado. Come.
Cato voltou a olhar para a perna de borrego, e sentiu que as gengivas se lhe humedeciam em resposta. Imaginava com tal intensidade o sabor daquele pedaço de carne
que a tentação quase era irresistível, e compreendeu repentinamente que não aguentaria muito mais. Era um fraco, um homem incapaz de controlar o seu próprio corpo.
Bem depressa a sua vontade cedia perante o desejo de saciar os seus apetites. Cerrou os punhos atrás das costas e abanou a cabeça.
- Não o farei, não enquanto os meus homens não tiverem que
comer...
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- Como quiseres, romano. - Carátaco inclinou-se, pegou no pernil e lançou-o na direcção de um dos cães de caça, enrolado junto à parede da cabana. A carne resvalou
no solo e atingiu o animal no focinho. O ganido de surpresa rapidamente foi calado, e o cão prendeu o osso entre as enormes patas e, segurando-o cuidadosamente,
começou a mastigar. Cato sentiu-se desfalecer de fome e desespero ao ver como a longa língua rósea do animal se deleitava ao percorrer a carne. Afastou o olhar daquele
espectáculo e virou-se de novo para o comandante inimigo. Carátaco observava-o de perto, ainda com ar divertido.
- Pergunto-me quantos dos vossos centuriões teriam recusado uma oferta deste género.
- Todos. - Retorquiu rapidamente Cato, o que fez Carátaco soltar uma gargalhada.
- Acho difícil acreditar nisso. Penso que não és tão típico do teu género como supões, romano.
Cato tomou a afirmação como um elogio disfarçado, o que o fez sentir como uma ainda maior fraude.
- Não, não sou típico. A maior parte dos centuriões são muito melhores soldados do que eu.
- Se achas que sim... - Carátaco fez uma careta. - Mas se és tu o pior de entre eles, então temo pelo futuro da minha causa. - Arrancou outro pedaço de carne e começou
a mastigar devagar, o olhar perdido nas sombras que se espalhavam entre os suportes do telhado da cabana. - Muitas vezes me pergunto se teremos realmente hipóteses
de derrotar tais homens. Vi milhares e milhares dos meus melhores guerreiros perecerem nas pontas das vossas espadas. A elite de toda uma geração. Nunca mais veremos
entre nós homens do calibre dos que desapareceram. A nata das tribos desta ilha não passará em breve de uma memória partilhada pelos poucos que ainda vivem e lutam
a meu lado. Quanto aos outros... Os lamentos das mães e esposas espalham-se sobre a terra, porém, as suas mortes não nos trouxeram mais do que honra, e nenhuma vitória.
E se a nossa luta é fútil, que valor tem uma morte, por muito honrosa que possa ser? Não passa de um gesto vazio?
Parou de mastigar e cuspiu um pedaço de cartilagem.
Calmamente, Cato aclarou a garganta e falou:
- Então, envia um emissário ao general Pláucio. Avisa-o de que queres discutir os termos de uma paz honrosa. Não tens que ser nosso inimigo. Aceita a paz, e o teu
povo terá um lugar no Império.
Triste e lentamente, Carátaco abanou a cabeça.
- Não. Já discutimos isto, romano. A paz a qualquer preço? Seria o mesmo que dar uma licença para nos escravizarem.
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- A escolha para o teu povo é entre a paz e a destruição.
Carátaco encarou-o em silêncio; o chefe britânico dir-se-ia uma estátua, enquanto pesava as palavras de Cato. Então, franziu o sobrolho e baixou a cabeça, apoiando-a
na palma da mão, enquanto os dedos lhe corriam entre os cabelos.
- Deixa-me, Cato. Deixa-me só. Tenho que... Tenho muito em que
pensar.
Para sua surpresa, o romano sentiu crescer dentro de si uma onda de simpatia. Afinal, Carátaco, o impiedoso e incansável inimigo, não passava de um homem. Um homem
cansado da guerra, porém, tão habituado às suas tradições, parte do seu ser desde o momento em que tivera tamanho suficiente para empunhar uma arma, que não tinha
a menor ideia de como avançar para a paz. Olhou-o durante alguns momentos, quase tentado a oferecer-lhe umas palavras de encorajamento, ou até de simpatia. Então
Carátaco remexeu-se, apercebendo-se de que o romano ainda estava presente. Piscou os olhos, e depois empertigou-se na cadeira.
- Romano, porque esperas? Vai.
? ? ?
Enquanto era escoltado de volta ao curral malcheiroso em que os prisioneiros eram mantidos, Cato sentia-se, pela primeira vez em muitos dias, optimista. Pensando
bem, já eram muito mais do que dias. Depois de duas duras e sangrentas épocas de campanha, parecia que o inimigo estava finalmente disposto a aceitar a derrota.
Quanto mais pensava nas palavras e no comportamento do seu captor, mais o centurião se convencia de que o homem queria realmente alcançar a paz para o seu povo.
A sua tentativa determinada, por vezes desesperada, de derrotar as legiões tinha falhado, e era tempo de reconhecer que a vontade romana de adicionar aquela ilha
ao Império era inquebrável.
Cato estava bem consciente de não ter sido totalmente verdadeiro nas respostas que dera às questões postas por Carátaco. A acusação de e a resistência dos nativos
era fútil soava-lhe a vazia na mente. As legiões tinham sido forçadas a combater duramente por cada passo que tinham dado para o interior da ilha. Sempre atentas
aos flancos, a espreitar ansiosamente sobre os ombros, esperando a cada hora um ataque súbito, a morte inesperada e a a fuga dos atacantes até à próxima ocasião
em que pudessem reduzir o número dos invasores.
Os legionários que ainda estavam acordados mal levantaram a vista quando Cato foi empurrado para o interior do curral e acorrentado junto a
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eles. Fígulo, pelo contrário, imediatamente se arrastou para junto do centurião.
- Senhor, está bem?
- Sim... tudo bem.
Era a pergunta que Fígulo lhe dirigia todos os dias quando regressava do interrogatório, e a rotina em que depressa tinham caído fez sorrir Cato.
- Somos capazes de nos safar disto com vida, no fim de contas.
Fez um breve relato do que fora dito por Carátaco, e do que ele
próprio observara.
- Mas não fales disto a ninguém. Se estiver errado, não vale a pena alimentar falsamente as esperanças dos homens.
Fígulo assentiu.
- Mas acha que ele vai mesmo fazê-lo? Render-se?
- Não, render-se, nunca. É demasiado orgulhoso para considerar essa possibilidade. Nunca o fará. Mas é capaz de fazer algo muito parecido.
- Para mim serve, senhor. - Fígulo sorriu. - Aliás, servia muito bem para todos nós, creio.
- É verdade. - Cato deitou a cabeça para trás até ela se encostar à vedação, e contemplou as estrelas. Espalhadas pelas profundezas do negro céu nocturno, brilhavam
como pequenos archotes. O ar estava límpido e quase não existia aquele habitual faiscar e tremeluzir que vulgarmente afectava a contemplação dos céus. As estrelas
pareciam fixas e serenas, em paz. Um sorriso aflorou-lhe aos lábios, quando se viu inundado por este pensamento. Os augúrios eram bons. Se um rei celta e as estrelas
estavam em harmonia espiritual, então tudo podia acontecer. Até a paz.
Fígulo inclinou-se para ele.
- E o que sucederá a seguir?
- A seguir? - Pensou por um momento. Não fazia de todo ideia. Praticamente desde que se juntara à Segunda Legião que não tinha conhecido outro tipo de actividade
que não fosse combater um inimigo. Primeiro aquela tribo junto ao Reno, depois, a grande invasão da Britânia. Combater, sempre. Quando tudo estivesse terminado,
poderiam voltar à rotina do treino e das patrulhas. Contudo, Cato não podia imaginar como se sentiriam nessa altura. - Não sei. Mas será diferente. Será melhor.
Agora deixa-me descansar.
- Muito bem, senhor.
Fígulo afastou-se tanto quanto pôde, e Cato apoiou a cabeça nas tábuas, o rosto ainda virado para as estrelas. Por algum tempo, limitou-se a contemplar, mal dando
conta do peso que lhe saíra de cima. Lentamente, os
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olhos foram-se-lhe fechando, as estrelas ficaram desfocadas e daí a pouco estava mergulhado num sono profundo.
? ? ?
Mãos rudes despertaram-no, obrigando-o a pôr-se de pé no mesmo selvagem movimento. Piscou os olhos e sacudiu a cabeça, confuso e assustado. O guerreiro que normalmente
o levava à presença de Carátaco ocupava-se a desprender o anel que o ligava ao resto dos prisioneiros. Ali perto, outros bretões tinham separado mais seis homens,
e conduziam-nos para fora do redil. A maior parte dos legionários tinha acordado e comentavam os acontecimentos entre si, ansiosos.
- O que se passa? - Perguntou Cato. - Para onde é que eles estão a ser levados?
Sem responder, o guerreiro deu uma repentina bofetada em Cato, com as costas da mão. A súbita dor e o choque acordaram-no de vez, e ele recuou um passo.
- O que...
- Silêncio. - Rosnou o homem. - Se abrires a boca, levas mais.
Fez Cato rodar para a entrada e empurrou-o brutalmente, fazendo
com que ele caísse no chão lá fora. A porta foi fechada, e um guarda colocou a tranca no lugar.
- Levanta-te, romano!
Com as mãos ainda amarradas, Cato rolou sobre os joelhos e lutou para se pôr de pé. Foi imediatamente empurrado de novo e afastado do curral, na direcção de um grupo
de cavaleiros que se via a curta distância, um magote de vultos escuros nas trevas antes do alvorecer. Quando se aproximaram, Cato reconheceu Carátaco, sentado na
sela e silencioso. Os olhos de ambos encontraram-se e, antes de o comandante bretão desviar o seu olhar, o centurião pressentiu o ódio frio e amargo na expressão
do outro, não evitando um tremor de receio que lhe subiu pela espinha. Tinha acontecido alguma coisa. Algo de terrível, e as esperanças de que Carátaco considerasse
um acordo com Roma tinham sido definitivamente varridas do cenário. No olhar do comandante bretão não se via agora mais nada senão a vontade de destruir os romanos.
Cato olhou em volta e viu os outros seis homens que tinham sido tirados do cercado a serem conduzidos para as sombras sob ameaça de lanças. Voltou-se para Carátaco.
- Para onde é que estão os meus homens a ser levados?
Não obbteve resposta, nem sequer algum sinal de que tinha sido escutado.
- Para onde...
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- Silêncio! - Berrou o homem que o vigiava, atingindo-o no estômago com o punho cerrado. Sentiu que lhe faltava o ar e dobrou-se, arfante.
- Põe-no num cavalo. - Disse Carátaco, sem emoção. - Amarra-o à sela. Não quero que escape.
Enquanto Cato gemia, mãos poderosas soergueram-no e lançaram-no, de cara para baixo, sobre uma manta no dorso de um cavalo. Uma corda foi-lhe apertada em volta dos
tornozelos, e depois ligada com um nó à que lhe prendia os pulsos. Ficou a olhar para o chão, dobrado por cima da montada. Virou a cabeça, tentando atrair o olhar
de Carátaco, mas naquele ângulo não o conseguia ver, e desistiu, deixando a cabeça pender e apoiando a maçã do rosto contra o pano da sela, áspero e fétido. Logo
a seguir alguém deu um estalido com a língua, e o cavalo avançou, ocupando o último lugar de uma pequena caravana.
Deixaram o campo, atravessando o estreito pontão e tomando um trilho que só se tornou evidente quando o dia começou a clarear. A mente de Cato trabalhava a toda
a velocidade, tentando compreender aquela súbita mudança no humor do comandante bretão. Aonde estaria ele a ser levado, e o que sucedera aos restantes prisioneiros?
Mas não havia respostas, só o temor crescente de que estivesse a ser conduzido à morte, e de que em breve todos os prisioneiros o seguiriam. Pelo ódio frio que sentia
nos homens à sua volta, Cato tinha a certeza de que a morte, quando chegasse, seria acolhida com alívio, já que lhe permitiria escapar aos tormentos que aqueles
guerreiros tinham com toda a certeza planeado para os cativos.

Algumas horas depois, após uma longa e desconfortável cavalgada pelo ar quente e húmido do pântano, chegaram a uma pequena quinta. Ao levantar a cabeça, Cato reparou
num povoado de cabanas redondas dispersas, rodeada por terra arável. Dois guerreiros esperavam-nos, e levantaram-se respeitosamente à aproximação do seu comandante.
Carátago deu ordens para se imobilizarem e desmontarem. Então, dirigiu-se a uma das cabanas e permaneceu lá dentro algum tempo, durante o qual tudo se manteve calmo.
No entanto, Cato apercebeu-se de uma forte tensão no ar, enquanto os guerreiros esperavam que Carátaco voltasse a surgir e tentou não se mexer, de forma a não atrair
atenção sobre si mesmo. Deixou-se ficar imóvel sobre o cavalo e esperou.
Quanto tempo o fez, não podia precisar. Finalmente, Os homens empertigaram-se, expectantes, e de repente Carátaco estava ao seu lado, de faca na mão. O romano virou
a cabeça, e olhou para cima num ângulo
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estranho, tentándo avaliar a expressão no rosto do bretão, e interrogando-se sobre se aquela seria a última coisa que veria neste mundo.
Carátaco encarou-o, os olhos repletos de nojo e ódio. Ergueu a faca na direcção de Cato, e o centurião estremeceu e fechou os olhos com força.
Ouviu-se um estalido, e a corda que lhe amarrava mãos e pés por baixo da barriga do animal soltou-se e caiu. Começou a escorregar para o chão, e mal teve tempo para
proteger a cabeça com os braços antes de tombar desamparado.
- Levanta-te! - Rugiu Carátaco.
Ainda meio atordoado, Cato conseguiu rolar sobre os joelhos e levantar-se penosamente. Carátaco agarrou-o imediatamente pelo braço e empurrou-o na direcção da cabana
em que tinha estado anteriormente. O zumbido dos insectos encheu-lhe os ouvidos e o cheiro da decomposição atingiu-o como um murro. Um forte empurrão forçou-o a
entrar e a cair no interior escuro da cabana. Tentou firmar-se, mas as mãos esbarraram em algo mole e frio. Depressa os seus olhos se habituaram à escuridão e, ao
levantar a cabeça, Cato reparou que tinha caído sobre a barriga nua de uma mulher; ao tentar mudar de posição, um pelo púbico encaracolado raspou-lhe na face.
- Merda! - Gritou, tentando afastar-se do cadáver. Tombou sobre uma pilha de pedaços de sílex afiados que se encontrava a um dos lados, esfolando as palmas das mãos
quando as abriu para amortecer a queda; cerrou imediatamente os dedos em torno de uma das aguçadas pedras. Havia mais corpos na cabana, nus e arrojados pelo solo,
no meio de manchas de sangue seco. Foi nesse momento que Cato compreendeu onde estava, e quem eram os responsáveis pelo grotesco panorama. - Oh, merda...
O choque e o odor fétido levaram finalmente a melhor, fazendo-o perder todo o autocontrolo, e vomitou, sujando os próprios joelhos, até mais nada ter para expulsar,
mas, nessa altura, os vapores ácidos atingiram-no e ele voltou a agoniar-se. Recuperou lentamente, apercebendo-se de que Carátaco o observava do outro lado da cabana,
olhando-o sobre os corpos que ocupavam o centro da divisão.
- Estás orgulhoso, romano?
- Eu... eu não compreendo. Mentes! - A palavra saltou dos lábios do rei como que cuspida.
Sabes bem quem fez isto. É trabalho de Roma. Esta cabana e a outra,
repletas dos cadáveres de indefesos camponeses e das suas famílias. É este
o Império que, disseste tu, nada mais pretende do que a nossa amizade.
- Isto não é trabalho de Roma. - Cato tentou parecer tão calmo
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quanto possível, embora o terror mortal que sentia lhe fizesse bater o coração como uma bateria de tambores. - Só loucos podem ter feito isto.
- Loucos romanos! Quem mais poderia ter executado esta macabra tarefa? - Carátaco ergueu o punho e espetou um dedo na direcção de Cato, acusando-o. - Acaso te atreves
a lançar a responsabilidade deste massacre sobre os meus homens?
- Não.
- Então quem mais a não ser os teus podia... teria sido capaz disto? Só os romanos o podiam ter feito. - Desafiou Cato a discordar, e o centurião compreendeu que
aceitar esse repto equivaleria à sua execução imediata.
Engoliu em seco.
- Sim, mas... Só podem tê-lo feito em desobediência a ordens.
- Esperas que eu acredite nisso? Há já vários dias que recebo informações sobre as acções punitivas que os teus legionários têm levado a cabo contra as pessoas que
habitam no vale perto do pântano. Chicotear mulheres e crianças, incendiar quintas, matar sem motivo... e agora isto. Quando falámos ontem, prometeste-me o fim da
guerra. E eu... Eu quase acreditei. Até agora, até ver o que é realmente a paz romana. Agora tudo se tornou claro, e sei o que devo fazer. Nunca haverá paz entre
nós. Nunca tal será possível. Portanto... Enquanto respirar, é meu dever combater-vos com todas as fibras do meu corpo.
Cato apercebeu-se da expressão decidida, dos punhos cerrados com tanta força que os nós dos dedos pareciam descarnados, e da linha fechada da mandíbula de Carátaco,
e compreendeu que, enquanto o líder bretão existisse, não haveria paz de qualquer espécie. A sua própria vida voltara a estar em perigo, bem como as de todos os
homens ainda presos no campo. E tudo porque Metélio não conseguira controlar a vontade de ter uma refeição decente. Por instantes, desejou que o legionário estivesse
entre os primeiros a morrer, e que a sua morte fosse lenta e dolorosa, para compensar todo o sofrimento que o seu maldito apetite tinha trazido ao mundo. Era uma
pena que o seu último pensamento estivesse tão repleto de raiva, mas quanto a isso não havia nada a fazer; sorriu até. Olhou de novo para Carátaco e resignou-se
a morrer.
Antes que o comandante inimigo pudesse fazer alguma coisa, o som de vozes - ansiosas e alarmadas - chegou aos ouvidos dos dois homens na cabana, e ambos se viraram
para a estreita porta. Carátaco saiu rapidamente, escurecendo o interior ao transpor a entrada. Depois, Cato levantou-se, deu uma última olhadela aos cadáveres,
e saiu também.
- O que se passa? - Inquiriu o comandante bretão aos seus homens. - O que aconteceu?
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- Sire... é uma patrulha romana. - Um dos guerreiros esticou o
braço, apontando ao longo da estrada que desembocava na quinta. - Cerca
de vinte homens, a pé.
- A que distância estão?
- Uns oitocentos metros, no máximo.
- Vão-nos cortar o caminho antes que possamos sair daqui.- Considerou Carátaco. - Alguém sabe de outro caminho que nos tire desta quinta?
- Sire, - começou um dos guardas, - conheço esta terra. À volta só há charcos e lodaçais. Nunca conseguiríamos levar os cavalos por terreno desse tipo.
Carátaco, frustrado, esmurrou a própria perna.
- Muito bem. Segurem os cavalos. Levem-nos para o extremo mais afastado da quinta e mantenham-nos escondidos. Não podem fazer um som, percebido?
- Sim, sire.
- Então, vão!
O guerreiro empurrou o companheiro, e os dois homens correram na direcção dos cavalos, presos a um poste no meio das cabanas. Carátaco fez sinal aos outros três
homens que o acompanhavam.
- Tragam o prisioneiro, e sigam-me.
Cato foi empurrado pelo ombro e forçado a seguir o comandante inimigo. Carátaco levou-os pelo meio das edificações da quinta, esgueirando-se pelo meio de dois redis
e dirigindo-se para a zona mais elevada. Havia no cimo da pequena elevação um bosque de árvores enfezadas, a menos de cem passos de distância da última cabana, e
foi para lá que se encaminharam em passo estugado. Cato percebeu que tinha ali uma oportunidade de tentar escapar. Sentiu a pulsação a acelerar, e os músculos a
ficarem tensos. Tentou preparar-se para o momento decisivo; imaginou num repente como as coisas se poderiam passar, e depressa se viu a ser derrubado por um golpe
de espada enquanto tentava juntar-se aos seus camaradas. Podia ainda estar sujeito à pena de morte, mas talvez se pudesse redimir se levasse informações sobre a
localização do campo inimigo.
Quando estes pensamentos deixaram de lhe ocupar a mente, era já tarde demais para tentar a fuga. Estavam próximos das árvores, e o homem que o forçava a avançar
torceu-lhe o ombro com força e obrigou-o a mergulhar nas sombras provocadas pelos ramos baixos da primeira árvore. Cato tropeçou numa raiz e rebolou pelo solo, perdendo
de novo o fôlego. Furioso consigo mesmo, percebeu que tinha deixado escapar a sua hipótese.
Como se lesse a mente do inimigo, o bretão que o guardava fê-lo
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rebolar até ficar a jeito e, puxando-lhe o cabelo, colocou o gume da adaga que empunhava contra o pescoço do prisioneiro.
- Chiu! - Ameaçou o guerreiro. - Ou rasgo-te a garganta de orelha a orelha. Percebes?
- Sim. - Respondeu Cato, entre dentes.
- Óptimo. Fica aí quietinho.
Assim ficaram, espreitando por entre as ervas que cresciam sob os ramos mais extensos das árvores, e esperaram. Não por muito tempo. Cato avistou o vermelho de um
escudo romano a emergir de uma curva no caminho. Por momentos, sentiu a necessidade premente da companhia dos seus. O batedor aproximou-se em passo ligeiro, olhando
para as cabanas em redor enquanto se dirigia ao centro do povoado. Aí deteve-se, olhou de novo em volta com atenção, com a cabeça inclinada como se estivesse à escuta,
e então recuou, virou-se e correu para fora de vista.
Pouco depois, a patrulha entrou a marchar na quinta, e Cato notou entre eles as cristas dos capacetes de um centurião e de um optio. Os dois oficiais levaram os
homens até ao centro do círculo de habitações e fizeram alto. Então o centurião deu algumas ordens e enviou homens para proceder a rápidas buscas nas cabanas mais
próximas. Desfez os nós que lhe prendiam o capacete e tirou-o. Cato inspirou profundamente ao ver emergir o cabelo negro e a alta testa de Macro. O que raios estava
ele a fazer a comandar uma patrulha tão insignificante? O seu coração alegrou-se ao avistar o amigo, e tentou levantar a cabeça para ver melhor. O movimento fez
com que a lâmina que era pressionada contra a sua pele deslizasse e lhe fizesse um corte doloroso.
O homem que o vigiava encostou a cara à sua, e proferiu com ar ameaçador:
- Mais um movimento, romano, e morres.
Cato podia apenas assistir de longe, numa agonia de desespero e impotência, enquanto os romanos revistavam as cabanas e Macro olhava em volta, o olhar passando exactamente
pelo ponto em que Cato e os outros se escondiam, imóveis, por entre as sombras da orla do bosque. Ouviu-se um grito abafado, e Macro virou-se e dirigiu-se a um dos
casebres. Daí a pouco saiu, em resposta a um novo grito, rumando à mesma cabana em que Cato estivera há pouco tempo. Desta vez passou mais tempo até que regressasse
ao exterior, e afastou-se lentamente da entrada, o punho cerrado a tapar-lhe a boca. Por momentos, tudo permaneceu calmo, enquanto o centurião fazia uma pausa, o
olhar perdido no solo a seus pés, os ombros vergados a um peso invisível. Depois, enquanto Cato e os guerreiros que o vigiavam observavam em silêncio, Macro levantou
o olhar, endireitou as costas e lançou uma série de ordens em sucessão rápida. Os homens
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acorreram para junto do centurião, formaram de face para o maciço arbóreo e
esperaram por ordens.
- Patrulha! - O berro de Macro, tantas vezes escutado na parada,
chegou claramente a Cato, e os homens que o rodeavam ficaram imediatamente tensos e levaram as mãos às espadas, prontos para as utilizar. A boca do centurião abriu-se
de novo e o som chegou até eles um momento depois.
- Avançar!
A patrulha marchou directamente na direcção dos homens escondidos, e Carátaco lançou um olhar significativo ao guerreiro que mantinha a faca encostada à garganta
de Cato.
- Quando eu disser... mata-o.
A patrulha marchou até uma pequena cabana, rodeou-a e prosseguiu, tomando a direcção da estrada que saía da quinta. Carátaco soltou um prolongado suspiro de alívio,
e a tensão que afligia os bretões desanuviou-se à medida que a patrulha se afastava. Quanto a Cato, nada mais podia fazer do que ficar a ver as costas dos legionários
a desaparecerem à distância.
Quando a patrulha chegou à orla da quinta, Macro estacou, deixando os homens continuarem e desfilarem à sua frente, enquanto lançava um derradeiro olhar às cabanas
silenciosas. Depois virou-se e, poucos momentos depois, a crista escarlate de pêlo de cavalo que lhe ornava o capacete desapareceu por trás de um arbusto. Cato baixou
a cabeça, escondendo-a entre os braços, e fechou os olhos, tentando dominar as vagas de tenebrosas emoções que ameaçavam submergi-lo e fazê-lo passar uma inaceitável
vergonha em frente daqueles bárbaros.
Uma sombra interpôs-se entre ele e o terreno banhado pelo sol que se estendia para lá do bosque.
- Levanta-te! - ordenou Carátaco. - Vamos regressar ao campo. Tenho algo especial em mente para ti e para os teus homens.
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XXXIII

- Portanto, eles ainda andam por aí, não é? - Considerou o centurião Máximo. Olhou para além de Macro, através da abertura na tenda e para a penumbra que se adensava
lá fora. O Sol tinha acabado de se pôr; puxou de um dos mapas em pergaminho e esticou-o sobre a mesa, entre ele e o outro centurião. - Essa quinta a que foste levado
deve ficar... por aqui.
Macro olhou para o ponto que o comandante da coorte indicava e assentiu.
- Certo. Podemos então assumir que eles andam por aqui a rondar. A não mais de meio dia de marcha, diria.
- Como, senhor? - Inquiriu Macro. Fez um gesto largo sobre todo o mapa, ignorando a pequena marca que indicava a posição da quinta.
- Podem estar em qualquer parte desta área.
- É possível, mas pouco provável. - Máximo sorriu. - Pensa. Estão escondidos. Não se aventuram muito, já que não desejam encontrar nem nativos nem romanos. Não têm
com eles guias locais, portanto, não conhecem os trilhos do pântano, e não quererão perder-se ou ficar isolados em pequenos bandos. Devem voltar todas as noites
ao covil, portanto, imagino que podemos concentrar as buscas na área em redor desta quinta. Partindo do princípio de que foram eles quem massacrou os camponeses.
- Só podem ter sido eles, senhor. As feridas eram do tipo das que os gládios infligem. E, de qualquer maneira, seria muito estranho que Carátaco e o seu exército
andasse por aí a matar a sua própria gente.
- Com efeito... - Máximo bateu com o dedo no rabisco que assinalava a quinta. - Mas parece-me estranho. Não tive muito tempo para conhecer o Cato, mas... massacre,
violações? Não parece o estilo dele.
- Não, de facto não é ao estilo dele. - Juntou Macro, pensativo.
- Não acredito que seja ele o responsável por isto.
- Bem, alguém o fez. - O comandante ergueu o olhar. - Supunha que o conhecias bem.
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- Também eu supunha que sim, senhor.
- Achas que o Cato era capaz disto?
- Não... não sei... Não sei mesmo. Podia andar à procura de comida, alguém deu o alarme, e ele teve que lutar. Nessa altura, pode ter tido que matar todos.
- E havia algo que indicasse que foi assim que as coisas se passaram?
Macro fez uma curta pausa para reflectir, mas depois do que tinha visto na quinta, poucas dúvidas lhe restavam.
- Não.
- Portanto, Cato, ou alguns dos seus homens, tornaram-se tão selvagens como os nativos. Ou, então, estão completamente desesperados. São boas notícias. Será mais
fácil tratar deles quando chegar a ocasião.
Macro ergueu um sobrolho.
- A ocasião, senhor? Pensava que eles eram a razão para termos vindo ocupar esta posição.
- De facto, assim foi. - Máximo deu uma leve gargalhada. - Embora também tenha sido uma boa oportunidade para ensinar os nativos a portarem-se como deve ser.
Macro não conseguia deixar de olhar para o comandante. Se a brutalidade dos últimos dias nada mais representara do que uma lição para os nativos, o que teriam eles
aprendido sobre os seus novos senhores? Que Roma era tão cruel e brutal como qualquer horda de bárbaros. E isso, reflectiu Macro cinicamente, não ajudaria nada a
estabelecer boas relações com os nativos no período vital em que a lei e a ordem romanas estariam a espalhar-se pela nova província. A tribo local estava a ser tratada
de forma desumana por Máximo, por um lado e, por outro, roubada e massacrada por Cato e pelos fugitivos. Isso só poderia conduzi-los a apoiar resolutamente Carátaco
e os seus guerreiros. Máximo tinha de facto feito um excelente trabalho, sim, mas a conseguir novos aliados para o inimigo.
E quanto a Cato... Por momentos, Macro não conseguiu articular os pensamentos. Tinha a certeza de que conhecia bem o jovem, mas aquele massacre na quinta éra obra
de outro tipo de homem. As duas recordações não se ajustavam. Mas o facto é que, naquele momento, muito pouca coisa fazia sentido. A dizimação da coorte, um castigo
por não ter conseguido resistir contra forças muitas vezes superiores. A perversidade do destino, ao escolher Cato, completamente inocente no caso, quando era Máximo
o culpado pela fuga de Carátaco. E agora esta crueldade injustificada do comandante da coorte no tratamento dos locais, somente comparável ao massacre impiedoso
dos camponeses e das suas famílias que, esse sim, só podia ser atribuído a Cato. Tudo se passava como se a razão tivesse sido
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varrida da face do mundo. O presságio fê-lo arrepiar-se, mas nesse instante ocorreu a Macro que a sua vida estava à mercê dos caprichos de um punhado de maníacos.
Como o centurião Máximo, que naquele preciso momento lhe sorria.
- Digo-te, Macro, está tudo a correr pelo melhor. Daqui a pouco, os locais vão ter medo até de cagar, por não saberem como é que nós reagiremos. Hão-de odiar-nos
mais do que alguma vez odiaram alguma coisa nas suas vidas merdosas. Se encontrarem Cato e os outros antes de nós, podes ter a certeza de que tratarão esses cabrões
de forma ainda mais impiedosa do que nós.
- Sim, senhor. - Macro tentou soar de forma neutra. - É como diz, córre tudo bem.
- E depois de Cato estar despachado, podemos tratar de Carátaco.
Macro lutou para esconder o seu assombro. Procurar um desgraçado bando de fugitivos era uma coisa. Tentar enfrentar um exército como o de Carátaco estava muito,
muito perto da pura loucura. Um pensamento sinistro impôs-se-lhe de repente, e ele concentrou-se no comandante, procurando decifrar-lhe a expressão e as palavras.
Máximo continuava a sorrir.
- Se entregarmos Carátaco ao general, seremos de certeza autorizados a regressar à legião. Seremos os meninos bonitos do legado. Tu e eu.
- E os outros? O Túlio, o Félix, o António?
- O Túlio não passa de uma velha. - Desdenhou Máximo. - E os outros são uns patetas. Graças aos deuses, não têm a bazófia e o jeito para a traição daquele filho
de uma cabra do Cato. És o único em quem tenho confiança, Macro. Só em ti.
- Hum... - Macro corou. - Obrigado, senhor. Asseguro-lhe que a sua confiança não é injustificada. Mas penso que se engana quanto aos outros oficiais. São bons homens.
- Achas? - A expressão de Máximo enrugou-se. - Duvido. Até fico surpreendido de que não te apercebas também dos seus defeitos, a não ser... A não ser que estejas
feito com eles.
Macro obrigou-se a lançar uma gargalhada.
- Senhor, estamos todos do mesmo lado.
Máximo não lhe respondeu, e instalou-se um silêncio tenso, enquanto o comandante escrutinava de perto o seu subordinado. Depois, relaxou um pouco.
- Sim, Macro, tens razão, evidentemente. Desculpa-me. Tinha que
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me assegurár da tua lealdade. Bom, passemos a outro assunto, a verdadeira razão para te ter posto no comando daquela patrulha. Falaste com alguém? Soubeste alguma
coisa sobre o traidor que libertou Cato?
- Não, senhor, nem por isso. Por aquilo que ouvi, acho que podia
ter sido qualquer um dos homens. Ninguém se sente lá muito feliz por andar a perseguir os seus próprios camaradas, sobretudo quando acha que eles não tinham nada
que ser condenados, para começar. Desculpe, senhor.
- Macro encolheu os ombros. - É tudo.
- É tudo. - Repetiu Máximo, com ar de gozo. - Não, centurião, não é tudo. Nem nada que se pareça.
Macro sentiu regressar o já familiar arrepio de ansiedade, e tentou não evidenciar a sua culpa.
- Senhor?
- Se é assim que os homens se sentem, então não passam de traidores, também eles. - Máximo pôs a mão sob o queixo e coçou os pêlos que começavam a surgir, enquanto
olhava para o colo, sem esconder o nervosismo. - E se pensam que vou tolerar isso, vão ter uma porra de uma grandessíssima surpresa. Eu digo-lhes... Não é a primeira
vez que tenho que lidar com gente dessa espécie. Pois não, mas mostrei-lhes do que era feito da outra vez, e voltarei a fazê-lo. Ninguém me vai fazer passar por
parvo e safar-se.
Macro permaneceu praticamente imóvel enquanto durou esta explosão, tentando não atrair a atenção de um homem que via ameaças por todo o lado. Nessa altura, o comandante
da coorte levantou o olhar e, num sobressalto, pareceu voltar a dar conta da presença de Macro. Sacudiu-se, como que para se libertar de um feitiço, e voltou a sorrir
calorosamente.
- Macro, é melhor descansares um bocado. Vais precisar de estar em forma nos próximos dias, se quisermos mostrar a essa escumalha que não estamos a brincar.
O centurião reconheceu, preocupado, que não sabia exactamente quem era a escumalha a que Máximo se referia, mas limitou-se a anuir quando o outro lhe apontou a saída
da tenda.
Levantou-se rapidamente, ansioso por deixar aquele cenário.
- Senhor, boa-noite.
Girou sobre os calcanhares e afastou-se, saindo para o ar fresco do fim de tarde e inspirando com prazer. Dois escrivães trabalhavam em mesas desmontáveis, a um
dos lados da entrada da tenda. Um deles enchia uma lamparina de óleo, de forma a que tivessem luz quando o Sol desaparecesse no horizonte. Macro dirigiu-se para
as linhas de tendas da sua centúria e, ao fazê-lo, cruzou-se com um vulto, quase indistinto à luz do crepúsculo. O optio Córdio saudou-o e prosseguiu o seu caminho.
Uns passos adiante,
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Macro espreitou por cima do ombro, mesmo a tempo de ver o optio a entrar na tenda do comandante.
- Curioso. - Comentou Macro com os seus botões.
Porque quereria Máximo interrogar também Córdio? Seria possível que não confiasse no relato que lhe fizera da patrulha?
Nesse instante tudo se tornou claro, e Macro sorriu com amargura. Evidentemente que Máximo não confiava nele. Não tinha sido colocado no comando da patrulha para
auscultar a opinião dos homens, e sim para ser sondado por Córdio. O que queria dizer que Máximo tinha tanta confiança nele que suspeitava até que fosse ele o traidor.
Tramas dentro de tramas, suspirou Macro. Tornava-se evidente que, durante os seus anos na Guarda Pretoriana, Máximo tinha passado demasiado tempo em contacto com
as intrigas infindáveis que dominavam o palácio imperial. Bem, se via conspirações por todo o lado, era lá com ele. Isso até servia os propósitos de Macro, já que
havia alguma segurança nos números. Com este pensamento vagamente reconfortante, Macro chegou à sua tenda, verificou que o seu optio nada tinha a comunicar, despiu-se
e adormeceu assim que se lançou para cima da cama.
? ? ?
Na manhã seguinte, o inimigo enviou uma clara mensagem de desafio aos romanos que ocupavam o vale. Quando a bruma matinal se dissipou, revelou seis estruturas que
tinham sido erguidas a curta distância do forte. Em cada uma delas estava um homem, amarrado, de membros afastados, coberto apenas com restos esfarrapados de uma
túnica militar. Todos tinham sido cuidadosamente amordaçados, de forma que os sons da sua agonia não tinham sido escutados pelas sentinelas que tinham estado de
vigia durante a noite. Tinham sido estripados; a pel e e os músculos afastados e presos lateralmente, de forma a expor a carne viva e vermelha e os ossos da cavidade
torácica. As tripas jaziam sob os pés dos supliciados, onde tinham caído, formando pilhas reluzentes em tons cinzentos e púrpura. Todos tinham sido castrados, e
as suas partes genitais pendiam-lhes do pescoço, presas por cordões.
Um cavaleiro aguardava junto às estruturas. Enquanto o alarme era dado no forte, ele deixou-se ficar, calmo e em silêncio. Depressa a paliçada se encheu de tropas
fortemente armadas. Mas o cavaleiro manteve-se no mesmo sítio, até que viu surgir um grupo de cristas vermelhas pelo meio do bronze reluzente dos capacetes. Então,
calmamente, fez avançar a montada até uma distância que garantia que os homens na paliçada o ouviriam.
- Romanos! Romanos! Trago-vos um aviso do meu rei, Carátaco!
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- Com um gesto amplo e teatral do braço, indicou os corpos. - Ele oferece-vos este exemplo do que acontecerá a quaisquer romanos que caiam nas nossas mãos, se se
atreverem a continuar a molestar o povo deste vale, ou aqueles que habitam no pântano. - O mensageiro fez uma pausa, e depois prosseguiu, numa voz que destilava
desprezo. - O meu rei pergunta-se que tipo de homens fazem a guerra a mulheres e crianças. Se há entre vós verdadeiros guerreiros, que nos procurem e nos enfrentem,
homens contra homens. Desesperamos de vos aguardar para que travemos batalha. Em tempos, ouvimos dizer que os homens da Segunda Legião eram os melhores do exército
do general Pláucio. Provem-no, ou vivam para sempre com o desdém e a piedade de homens melhores do que vós!
O cavaleiro fez a montada dar meia-volta e afastou-se do forte num trote despreocupado, sem uma única vez olhar para trás. No torreão por cima da entrada do forte,
os oficiais da Terceira Coorte ficaram a vê-lo desaparecer num maciço de árvores que se desenvolvia junto à orla do pântano.
Macro, com um sorriso triste, admirou a compostura do homem.
- Bem, aquele tipo tem estilo.
O centurião Félix resmungou:
- Estilo? Deixem-me ir lá e eu dou-lhe o estilo!
- A sério? - Gozou Túlio. - Entravas por ali adentro e davas-lhes uma lição, não é?
- Podes crer que sim, porra! - Félix voltou-se para o comandante da coorte. - Senhor? Peço-lhe que me deixe levar a minha centúria. Havemos de encontrar aquele filho
da puta, e esfolá-lo, devagarinho e com todo o prazer. - Apontou com o dedo na direcção dos seis cadáveres no exterior do forte. - Como eles fizeram com aqueles
homens.
- Não sejas pateta, rapaz. - O centurião Máximo não escondeu o desdém. - Eras mesmo capaz de cair numa armadilha tão óbvia? Foda-se, não percebo como é que chegaste
a centurião.
Félix corou, depois abriu a boca para protestar, mas não conseguiu encontrar palavras. Desviou o olhar do seu comandante e voltou a contemplar os corpos, decidindo
que o silêncio seria um protesto suficiente.
Máximo riu.
- Que homens achas que são aqueles? Todas as patrulhas regressaram, e nenhuma assinalou quaisquer baixas.
Félix demorou um momento a compreender.
- São tipos do Cato?
Máximo deu-lhe uma pancada amigável no ombro.
- Estão a ver? O miúdo até é capaz de aprender! É isso mesmo. Os homens do Cato.
Oh... - Félix voltou a olhar para os corpos, com uma expressão
296

menos penosa.
- E agora, achas que me preocupa o que o Carátaco lhes fez? Na realidade, até me está a poupar trabalho. - Máximo abanou a cabeça e sorriu. - Quando se pensa nisso,
até é engraçado. Ele julga mesmo que é capaz de nos provocar com esta exibição. Ou que vamos passar a tratar melhor os locais.
Macro observou-o em silêncio, notando o súbito brilho que lhe tomara conta do olhar. O comandante da coorte dirigiu-se aos seus oficiais com um sorriso.
- Podemos dar a volta a esta, muito facilmente. Não nos vamos precipitar a persegui-los para cair numa emboscada. Até Carátaco deve saber que não somos assim tão
estúpidos. E também não vamos aliviar a pressão sobre os habitantes do vale. Porque é que havíamos de o fazer? Para nós, quantos mais homens do Cato ele liquidar
para demonstrar a sua ira, melhor. Portanto, vamos fazer daquela aldeia um exemplo. Vamos executar dez habitantes por cada homem do Cato que ali está. - Acenou,
agradado com a ideia. - Carátaco e os seus homens ver-se-ão forçados a reagir. Com sorte, até os obrigamos a sair do pântano e a tentar assaltar o forte. Deixamo-los
vir, e depois abatemo-los como cães em frente às nossas defesas. Encheremos o fosso com os cadáveres desses cabrões. Se alguns forem tão estúpidos que prefiram render-se,
hei-de fazê-los suplicar clemência antes de os deixar morrer. Nunca mais hão-de tentar fazer Gaio Máximo passar por parvo. Nunca!
Macro estava abismado com a ênfase posta pelo seu comandante nas últimas palavras. De repente, Máximo voltou a tomar consciência de onde estava, e passou o olhar
pelos seus oficiais, sorrindo-lhes com os seus dentes manchados.
- Vamos, rapazes, temos trabalho a fazer. - Voltou a olhá-los, mas desta vez fixou-se em Macro. - Macro, vais ficar com a melhor parte.
- Senhor?
- Forma os teus homens. Vais conduzi-los até à aldeia. Reúne os nativos, e escolhe sessenta homens, mulheres e crianças. Trá-los até ali
- acenou com a cabeça na direcção dos romanos sacrificados - e mata-os. Devagar. Quero ouvi-los gritar. Melhor, quero que Carátaco os ouça também. Quando terminares,
assegura-te de que as cabeças são todas colocadas em estacas. Percebido?
Macro abanou a cabeça vigorosamente.
- O que é que não percebeste? Não me digas que estás aqui como
o centurião Félix...
- Não, senhor. - Macro voltou a abanar a cabeça. - Não posso
fazer isso.
297

- Não podes? - Máximo estava assombrado. - Caraças, homem! É o que há de mais fácil. Para que é que pensas que servem os quinze anos de treino que levas na legião?
Vai lá, e mata-os.
- Não... senhor.
- Mata-os. É uma ordem.
- Não. Não o farei. Como disse aquele tipo, os soldados lutam contra outros homens. Não massacram mulheres e crianças.
Máximo olhou-o com fúria, a boca cerrada e as narinas arregaladas. Os restantes oficiais e os legionários mais próximos remexeram-se, nervosos. Macro endireitou-se
e devolveu o olhar do outro com toda a calma. Tinha dito o que queria dizer, era altura de esperar pela resposta. Surpreendeu-se com a calma que lhe invadira o corpo.
Já a tinha sentido noutras ocasiões, em batalhas, sempre que a morte parecia inevitável. Serenidade. Ou seria apenas resignação? Não sabia, mas também não lhe importava
realmente. Era apenas uma curiosidade passageira sobre si mesmo e sobre os seus motivos mais profundos. Cato saberia a resposta, pensou, e não conseguiu evitar um
sorriso perante estes momentos de introspecção, algo que sempre censurara ao seu jovem amigo. Era quase como se, estando ele ausente, lhe coubesse assumir aquele
papel, de tão habituado que estava à sua companhia.
- Onde é que está a graça? - Perguntou Máximo, numa voz calma.
- Em lado nenhum, senhor. Não é nada.
- Estou a ver...-Os olhos do comandante estreitaram-se. - Tinha alguma esperança de que tu, de entre todos os meus oficiais, me fosses leal. Mas compreendo agora
que a minha confiança foi mal aplicada. Gostava de saber até onde terá ido a tua traição.
- Senhor, não sou nenhum traidor. Sou leal ao juramento que proferi todos os anos desde que me juntei às Águias.
Máximo aproximou-se.
- E não faz parte do teu juramento o dever de obedecer às ordens de oficiais superiores?
- Sim, senhor. - Retorquiu Macro. - Mas duvido seriamente da sua capacidade de exercer o comando desta coorte.
Máximo inspirou, e depois explodiu.
- Atreves-te a pôr em causa a minha autoridade?
- Sim. E se os outros centuriões tivessem algum juízo, e a coragem para revelar o que sentem, diriam o mesmo que eu.
- Silêncio! - Rosnou Máximo, e esbofeteou Macro com as costas da mão. O golpe foi inesperado e poderoso, e Macro viu tudo branco enquanto cambaleava devido ao impacto.
Quando a visão clareou, sentiu
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o sangue nos lábios e, ao levar a mão à boca, descobriu que estava ferido. O sangue escorreu-lhe do queixo, enquanto ele se aprumava e voltava a enfrentar o comandante.
- O centurião Macro ficará sob prisão na sua tenda. - Máximo olhou em redor e procurou uma face no meio da aglomeração de homens que se tinham aproximado para testemunhar
aquela confrontação pouco habitual. - Optio Córdio! Avança! Nomeio-te centurião interino, e atribuo-te o comando da centúria de Macro.
- Sim, senhor! - Córdio sorriu.
- Vais-te encarregar de cumprir as minhas ordens acerca da aldeia. Vais segui-las à risca, percebido?
- Sim, senhor.
- Não mostrarás qualquer piedade, e não revelarás a falta de espinha que o teu antecessor mostrou.
- Não, senhor. - Córdio lançou um olhar de superioridade a
Macro.
- Conduz Macro à sua tenda, e coloca um guarda à porta. Ninguém poderá contactá-lo. Vai.
Córdio virou-se para Macro e este, os lábios curvados pelo desdém, encolheu os ombros e deixou a presença do comandante da coorte, seguindo pela rampa que conduzia
ao interior do forte.
299

XXXIV

- Os homens que foram levados há pouco foram executados. - Afirmou Cato, depois de os guerreiros o terem levado de novo para a cerca e agrilhoado no sítio habitual.
Fígulo concordou.
- Foi o que eu pensei. Senhor, onde é que o levaram?
- À quinta. A que foi visitada pelo nosso amigo Metélio. Carátaco quis que eu visse os corpos.
- Porquê?
Cato encolheu os ombros.
- Ele supõe que foi a Terceira Coorte a responsável pelo massacre. Não me atrevi a dizer-lhe a verdade.
- Sim, é bem melhor que ele não a saiba, ou estamos fodidos.
Cato sorriu perante a franqueza do optio.
- Bom, seja como for, ainda tinha esperanças de o convencer. Mas agora já não acredito que haja qualquer possibilidade de paz. Ele vai lutar até ao fim, e pouco
lhe importa quantos dos dele e dos nossos vão tombar no processo.
- Acreditou mesmo que ele desistiria da luta? - Quis saber o outro.
- Sonhava com isso, sim.
Fígulo meneou a cabeça, entristecido.
- Senhor, não conhece lá muito bem os celtas, pois não? Lutar está-lhes no sangue. - Sorriu. - Se calhar também está no meu. O meu avô era um guerreiro da tribo
dos éduos. A última vez que se revoltaram contra Roma foi pouco antes do meu nascimento. E, mesmo depois de a tribo ser esmagada, ele nunca desistiu. Nem ele nem
nenhum dos guerreiros que sobreviveram à última batalha. Esconderam-se na floresta e continuaram a combater até ficarem demasiado velhos para pegarem nas espadas.
E, depois, deixaram-se morrer à fome. Lembro-me de, de vez em quando,
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encontrar um dos cadáveres quando era miúdo e ia à caça nos bosques. Um dia, o meu avô arrastou-se até à aldeia, doente e esfaimado. A minha mãe mal o reconheceu.
Foi a primeira vez que o vi. Acabou por morrer, claro. Mas as últimas palavras que proferiu - mesmo antes de morrer - foram para lançar uma maldição sobre Roma e
as suas legiões. Carátaco é feito do mesmo material. Acho que ele nunca aceitaria render-se, senhor.
- Bem, na outra noite pareceu estar quase a fazê-lo.
- Não se deixe mistificar, senhor. Deve ter sido apenas um lapso, um curto momento de dúvida, nada mais. E agora, ele lutará até à morte.
Cato observou o optio por momentos, mas depois encolheu os ombros e desviou o olhar.
- Pode ser. Mas tu juntaste-te às Águias. Talvez fosse possível persuadi-lo a fazer o mesmo, um dia.
Fígulo deu uma leve risada.
- O meu pai já tinha visto o suficiente para perceber que Roma nunca mais seria expulsa das nossas terras. Portanto, serviu nas tropas auxiliares e educou-me de
forma a ser tão romano quanto fosse possível. Talvez até mais romano do que alguns naturais da própria cidade. Tenho sérias dúvidas de que a família da minha mãe
me reconhecesse agora, e nunca me considerariam um dos deles. Sim, alistei-me nas Águias, é por Roma que combato, mas ainda sei como funciona a cabeça dos celtas,
e sei que Carátaco nunca cederá perante Roma. Nunca. Lembre-se das minhas palavras.
- É uma pena, então. Um tipo deve saber reconhecer quando está derrotado. Deve ser capaz de enfrentar a realidade.
- Acha mesmo? - Fígulo olhou o centurião nos olhos. - Então, senhor, como explica o seu comportamento? Não me parece que tenhamos grandes hipóteses de saírmos disto
com vida. Está pronto para desistir e deixar-se morrer?
- Isso é diferente.
- Como?
Cato acenou com a cabeça.
- Ele tem outras responsabilidades. Das Suas decisões depende o destino de muitos. Eu luto apenas por mim mesmo. Pela minha sobrevivência. E farei o que for preciso
para a assegurar.
Fígulo contemplou-o ainda um momento, e depois concluiu:
- Senhor, não são tão diferentes como gosta de pensar. Ele cuida daqueles que estão a seu cargo, como outros cuidam dos deles. - E apontou discretamente para os
homens que se espalhavam pelo cercado.
Cato contemplou-os também. A maior parte deixava-se estar imóvel, apoiada na cerca, olhando para o chão à sua frente. Ninguém dizia
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palavra, e o centurião compreendeu que já todos se tinham resignado à morte próxima. E nada havia que ele pudesse fazer quanto a isso.
As coisas eram diferentes para Carátaco. Ele podia realmente fazer a diferença. E por isso devia ao seu povo um esforço para alcançar a paz, enquanto a sua vontade
ainda era respeitada. Enquanto ainda se sentiam dispostos a segui-lo. Ao contrário daqueles pobre legionários, reflectiu Cato. Já estavam para lá dos limites da
disciplina das legiões, já nada os obrigava a segui-lo. Só Metélio ainda mostrava alguma vontade de resistir, por muito inevitável que o destino se afigurasse. Atarefava-se
sobre a corrente que o prendia, na junção desta com a argola que lhe rodeava o tornozelo, tentando desbastá-la com uma pedra aguçada. Cato tentou perceber o que
estaria a pensar fazer o outro, se acaso conseguisse libertar-se. No exterior do curral estavam postos três guardas, e a prisão estava no meio de um campo inimigo,
recheado de milhares de guerreiros celtas. Abanou a cabeça, olhou para Fígulo e falou muito calmamente.
- Depressa nos juntaremos aos que partiram. Assim que Carátaco despachar a Terceira Coorte.
- Eles estão aqui por perto?
- Sim. Ontem avistei uma patrulha liderada por Macro. E o Carátaco disse que eles estão aquartelados mesmo à saída do pântano. Parece que o Máximo está a pressionar
os aldeãos locais ainda com mais entusiasmo do que é costume. Carátaco não vai deixar-se ficar a assistir. Além disso, parece-me que os seus guerreiros precisam
desesperadamente de uma vitória.
Fígulo deixou-se ficar calado uns momentos, antes de responder.
- Pelo que vi quando nos trouxeram para aqui, cada um dos nossos vai ter que se haver com cinco ou seis bretões, senhor.
- Sim, é isso, mais ou menos. - Concordou Cato. - Se forem apanhados de surpresa, nem sequer vai levar muito tempo.
- Pois... Mas não há muito que possamos fazer contra isso, senhor.
- Não, de facto, não há. - Cato estava fatigado, e a impotência que sentia em face da situação pesava-lhe grandemente. Até conversar lhe exigia um esforço descomunal.
Olhando em volta, apercebeu-se de que os seus sentimentos eram semelhantes aos da maior parte dos homens desesperados que partilhavam o seu destino. Também eles
sabiam que o fim estava próximo, e contemplavam a própria morte com a mesma resignação amarga que o centurião exibia.
A medida que a noite caía sobre o campo bretão, fogueiras eram acesas nos espaços entre as cabanas, afastando as trevas. Daí a pouco, o aroma de porco assado espalhava-se
pelo ar, penetrando no cercado e
302

torturando aqueles que lá se encontravam acorrentados.
- Estava capaz de matar um porco. - Resmungou Metélio, ao que alguns dos homens lançaram gargalhadas irónicas.
Cato irritou-se, e mandou-os calar imediatamente.
- Foi isso que nos meteu nesta alhada. Tu e teu maldito estômago...
? ?
À medida que caía a noite, o acampamento bretão foi-se animando, com a preparação de um festim. Os guerreiros celebravam, e pelos sons que se escutavam, depressa
se tornou evidente que bebiam sem parar até alcançarem um estado de frenesim bélico. O ar estava repleto de canções entoadas em ritmo arrastado, interrompidas por
longos acessos de gargalhadas. Os prisioneiros tudo escutavam, acabrunhados, e Cato não pôde deixar de se interrogar se não teriam sido poupados apenas para servirem
algum propósito de entretenimento sangrento, mais tarde. Os pêlos da sua nuca eriçaram-se de terror ao recordar os homens que, em tempos, tinha visto lançados aos
cães na corte do rei Vérica dos atrébates. Seria esse destino preferível a ser encarcerado num boneco de verga e queimado vivo? Segundo se lembrava, tinha sido esse
o fim de alguns legionários que tinham caído nas mãos do inimigo. Não seria de esperar grande clemência da parte de quem tantas perdas tinha sofrido nas ocasiões
em que enfrentara as legiões em batalha.
- Estes romanos, filhos de uma cadela... - Resmungou uma voz em céltico, do outro lado da cerca. - Por que raio é que temos que os vigiar a noite toda?
- Pois. - Juntou-se outra voz. - Logo tinha que nos calhar a
nós.
- Tinha que nos calhar a nós. - Outra voz ainda, imitando a segunda. Pelo som, alguém mais velho, adivinhou Cato. - Calhou-nos, porque vocês não passam de uns fedelhos,
e eu é que tenho que estar aqui a aturar-vos para ter a certeza de que não fazem asneiras, quando devia era estar além com o resto do pessoal a beber uns tragos.
Na voz do homem era claro o ressentimento. Cato até se sentiu um pouco tonto com a velocidade a que a sua mente preparou um plano, perfeitamente delineado ainda
antes do tipo se deixar de queixumes e se calar.
Inspirou fundo e chamou, em céltico.
- Ei, guarda! Guarda!
- Romano, cala o bico! - Respondeu o homem.
- Porque é a festa?
303

Ouviu-se uma risada.
- A festa? Ora, é em honra de todas as cabeças romanas que os
nossos guerreiros vão conseguir amanhã!
- estou a ver... Portanto, é um festim só para guerreiros. Nada
de mulheres, nem miúdos... nem tu.
- Romano, é melhor que te cales! - Ameaçou o guarda. - Antes que vá aí e te feche eu a boca. Para sempre!
Fez-se uma pausa, até que um dos jovens perguntou:
- E porque é que nós não temos direito a uma bebida?
-Ah, vocês querem uma bebida? - Inquiriu o guerreiro. - Querem-na mesmo?
- Sim.
- E acham que aguentam?
- É claro que sim! - Respondeu o jovem, indignado.
- Eu também! - Adiantou o amigo.
- Muito bem. - O guerreiro baixou o tom de voz, como se parti-dpassem de uma conspiração. - Vocês os dois ficam aqui, e eu vou até lá ver o que se pode arranjar.
- E os prisioneiros?
- Esses? Estão sossegados. Limitem-se a mantê-los debaixo de olho até eu voltar.
- Quanto tempo é que vais demorar?
- O que for preciso. - O guerreiro afastou-se a rir, dirigindo-se às animadas festividades.
No interior da improvisada prisão, Cato sentiu o pulso a acelerar, e torceu-se todo, tentando alcançar com as mãos amarradas uma fresta na trama de ripas que formava
a parede do curral. Conseguiu meter os dedos por ela e deslocar duas tábuas, o suficiente para poder ver o que se passava lá fora. O guerreiro acabava de desaparecer
por trás de uma cabana próxima. Os telhados de colmo das habitações reflectiam a luz das fogueiras que se espalhavam pelo povoado, das quais, de vez em quando, se
desprendiam fagulhas que se elevavam no céu. Cato esforçou o pescoço e tentou aproximar ainda mais a face do buraco por onde espreitava. Ao lado da porta, conseguia
ver os dois rapazes que tinham sido deixados de guarda. Tinham lanças de guerra, e esperavam junto ao curral, as silhuetas delineadas pelo fulgor oscilante das fogueiras.
Podiam ser ainda jovens, mas pareciam bem capazes de matar um homem, se tal se tornasse necessário. Cato virou-se para o optio, e pegou-lhe no braço.
Fígulo não estava a dormir, mas estava perdido nos seus pensamentos, e ficou surpreendido pelo gesto do centurião.
- O que é? Que se passa?
304

- Chiu! - Cato apertou-lhe o braço com mais força. - Pouco barulho. Um dos guardas ausentou-se.
- E então?
- É a nossa oportunidade. Agora ou nunca.
- E o que vai fazer quanto a isto? - Fígulo levantou as mãos, indicando as tiras de cabedal que lhe amarravam os pulsos.
Cato ignorou-o; levantou a bainha da túnica e começou a remexer no interior da sua imunda tanga. Fígulo observou-o e encolheu os ombros.
- Bem, suponho que há sempre tempo para uma última...
- Calado! - Cato lutou ainda mais uns instantes e finalmente mostrou as mãos, abrindo a palma para exibir uma lasca de pedra com um gume cortante. - Dá cá as mãos.
Fígulo aproximou-se, e o centurião imediatamente começou a desbastar o rijo cabedal que lhe ligava as mãos.
- Senhor, onde é que arranjou isso?
- Na quinta. Pensei que ainda podia vir a dar jeito. Deixa-te estar
quieto.
- E manteve-a escondida lá atrás o tempo todo? - Fígulo sorriu.
- Deve ter sido desconfortável.
- Nem imaginas... Agora, cala-te e pára de mexer as mãos.
Cato concentrou-se em cortar as amarras do optio, segurando a pedra pelo lado rombo enquanto a face cortante desbastava as tiras entrançadas de cabedal. Trabalhou
depressa, consciente de que o guerreiro mais experiente podia voltar a qualquer momento, mesmo sendo tentado pela comida e pela bebida. A primeira tira cedeu, e
ele redobrou os esforços. Depressa uma segunda tira se quebrou, acompanhada por um grito de dor de Fígulo quando o gume escapou e lhe cortou a pele.
- O que foi isto? - Ouviu-se um dos guardas a inquirir.
- O quê?
- Parece que alguém está ferido lá dentro.
O companheiro deu uma risada sinistra.
- Se já gemem desta maneira agora, mal posso esperar por os ouvir quando o druida lhes meter as mãos em cima. Senta-te, e deixa-te estar descansado. Vais precisar
das forças amanhã.
- Tens razão.
Cato suspirou fundo e continuou, tendo o cuidado de não voltar a
ferir o optio enquanto lhe cortava o último laço. Enquanto a pedra desgastava o cabedal, Fígulo fazia força para o quebrar, e a tensão na tira fazia com que o trabalho
de Cato se tornasse mais fácil. No instante seguinte, as mãos do optio separaram-se bruscamente, quando o cabedal cedeu.
305

- Agora eu. - Disse o centurião, passando-lhe a pedra de sílex.
- Despacha-te!
Fígulo atacou as tiras num frenesim, e depressa as mãos e pés de Cato ficaram livres. Enquanto esfregava os pulsos doridos, designou os outros homens com a cabeça,
e o optio foi circulando pelo curral, libertando-os. Quando a circulação se regularizou e sentiu que as mãos não o trairiam ao entrar em acção, Cato voltou a encostar
a vista ao buraco. Os guardas estavam agachados no solo, mesmo à entrada do recinto, lançando olhares pesarosos na direcção do festim no centro da aldeia.
Quando todos os homens se viram livres, Cato chamou-os. Não restavam mais de doze, e um deles estava tão fraco e consumido pela diarreia que mal se aguentava em
pé.
- Homens, não há tempo para combinarmos detalhes. - Sussurrou Cato, com urgência na voz. - Temos que nos atirar sobre os guardas. Assim que abrirmos o portão, saltamos
sobre eles. Depois, tentamos seguir para o limite da aldeia.
- E vamos para onde? - Interrompeu Metélio. - Estamos rodeados por água. Só há um caminho para sair daqui.
- Há alguns barcos naquela direcção. - Cato apontou para o sul.
- Vi-os quando estávamos a chegar. Roubamo-los.
- E depois, senhor?
Cato olhou-o directamente.
- Temos que avisar a coorte, e fazer chegar uma mensagem a Vespasiano.
Por momentos, temeu que o outro fosse protestar, mas o legionário limitou-se a concordar com um ligeiro aceno da cabeça.
- Bom, então vamos a isto. Assim que o portão se abrir, mexe-te depressa.
Cato virou-se e progrediu sobre as poças e montes de imundíce até alcançar a face interna do portão. Este estava fechado por uma pesada tranca exterior de madeira,
colocada quase no cimo. Enquanto os outros se mantinham agachados, silenciosos, tensos e prontos a saltar, Cato ergueu-se lentamente em toda a sua altura, até conseguir
espreitar sobre o portão e ver as costas dos dois guardas. Lançou uma mão sobre as tábuas e tentou alcançar o suporte da tranca, de forma a fazê-la tombar. Enquanto
os olhos permaneciam fixos nos guardas, os dedos do centurião foram descendo pela supérfície rugosa da madeira, até ao ponto em que o braço estava completamente
esticado. Então inspirou, e pôs-se em bicos dos pés. Nessa posição, as pontas dos dedos mal afloravam o cimo do suporte da tranca. Esforçou-se por chegar mais abaixo,
mas não conseguia firmar os dedos e acabou por desistir, deixando-se cair no solo com um profundo suspiro.
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- Merda. - Vociferou em surdina. - Não chego lá.
- Tente de novo. - Incitou-o Fígulo. - Às minhas costas.
O optio pôs-se de gatas e encostou-se ao portão. Cato colocou uma bota sobre os ombros do outro e subiu com lentidão, ignorando o gemido de dor de Fígulo quando
as suas botas cardadas lhe morderam a pele. Desta vez, podia ver perfeitamente por cima do portão, e pegou cuidadosamente na tranca, tentando levantá-la. Tinha sido
colocada no lugar com força e estava bem presa, pelo que teve que se esforçar para a retirar. Por fim, a madeira começou a mover-se, um pouco, depois mais. Mas,
desta vez, gemeu ao roçar nas tábuas do portão. A mão de Cato imobilizou-se, e os olhos viraram-se para os guardas, mesmo a tempo de ver uma cabeça a girar na sua
direcção.
Houve um momento de terrível calma, quando o rapaz olhou espantado para o portão. Então pegou na lança, rodou sobre si mesmo e avisou o camarada.
- Estão a tentar fugir! Levanta-te! Temos que os impedir!
Cato lançou as duas mãos sobre o portão, pegou na tranca e puxou-a com todas as forças. Soltou-se de repente, e o portão abriu-se de rompante quando os legionários
irromperam do interior, saltando sobre Fígulo e fazendo Cato cair para a frente. Tombou mesmo aos pés do guarda que o tinha detectado, e rolou para o lado, erguendo
o braço para se proteger. Avistou o jovem guerreiro inimigo sobre ele, um vulto escuro contra o céu estrelado, e viu que levava o braço atrás para o golpear com
a lança. Mas, antes que a ponta metálica o alcançasse, uma outra forma escura precipitou-se sobre Cato, atingiu o rapaz e atirou-o por terra. Outros vultos se precipitaram
sobre ele e ouviu-se um breve e horrível som de alguém a tentar respirar, a esbracejar, e depois o silêncio. Enquanto se punha de pé, o centurião avistou o outro
guarda a fugir na direcção do fulgor longínquo das fogueiras.
- Detenham-no! - Exigiu.
Ali perto, Metélio pegou na lança que pertencera ao outro guarda e correu atrás dele. Depressa compreendeu que o rapaz alcançaria a segurança dos companheiros antes
que ele o apanhasse. Então deteve-se, puxou o braço atrás, apontou para as costas do jovem, que ia já uns vinte passos à frente, e projectou a arma. Cato não conseguiu
distinguir o voo da lança na escuridão, mas um momento depois ouviu-se o impacto, o suspiro de alguém a quem tinham cortado o fôlego, e o bretão tombou para a frente.
Metélio alcançou-o num instante, para se assegurar do fim do adversário, e arrancou a lança do corpo inanimado.
Os homens rodearam Cato na escuridão, as respirações pesadas, à espera de ordens, excitados pelo êxito na tentativa de fuga e pela perspectiva de afinal sobreviverem
àquela provação. Todos esperavam a sua decisão,
307

e, por momentos, Cato permaneceu paralisado perante a responsabilidade de tentar salvar todos aqueles homens. Mas esse momento passou, e ele
olhou em volta.
- Apanha as armas. Depois põe os corpos no redil.
Fígulo apossou-se da outra lança; depois de uma rápida busca aos corpos, mais dois homens exibiam lanças e outro uma adaga. Os guardas foram arrastados para o cercado,
e Cato fechou o portão, colocando a tranca no lugar.
- Óptimo. Agora, vamos. - Cato virou as costas ao curral e preparava-se para levar os homens dali para fora, quando uma voz os interpelou. Voltou-se rapidamente,
os olhos a dardejar de cabana em cabana até que se fixaram num vulto que caminhava de forma trôpega na direcção dos romanos, vindo da direcção do festim.
- Rapazes, estão com sorte! - A voz era arrastada, mas Cato reconheceu-a como sendo a do guerreiro mais velho que se tinha ausentado e deixado os jovens a guardar
os legionários. - Trago-vos de beber!
Enquanto caminhava, exibiu um recipiente rolhado. Então deteve-se, baixou-o, e perscrutou a escuridão.
- Rapazes?
- Apanhem-no! - Bradou Cato, lançando-se contra o homem.
- Antes que o cabrão alerte toda a gente.
O guerreiro lançou a garrafa na direcção de Cato e desatou a fugir, gritando ao mesmo tempo. O avanço era suficiente para o centurião perceber que não valia a pena
continuar a segui-lo.
- Merda! - Vociferou.
- E agora? - Inquiriu Fígulo. - Lutamos para tentar escapar?
- Não temos hipóteses. - Afirmou Metélio. - Apanham-nos num instante.
Cato virou-se para os homens.
- Separamo-nos. Fujam a toda a velocidade e, aconteça o que acontecer, não se armem em heróis. Alguém tem que conseguir avisar o Máximo. Metélio, leva o teu grupo
por ali. O Fígulo e os outros vêm comigo. Boa sorte.
Cato fez uma fugaz saudação militar a Metélio e aos quatro homens que o acompanhavam, e então virou-se e correu, agachado, na direcção da parte sul do acampamento
bretão. Os sons da festa já se tinham calado, e os ruídos de armas e os gritos urgentes mostravam que o inimigo estava alertado sobre a fuga dos prisioneiros.
Da direcção dos currais ouviu-se um grito de Metélio.
- Descobriram-nos! Vamos, rapazes, por aqui!
Enquanto corria na direcção oposta, serpenteando por entre as
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cabanas, Cato notou que os gritos de Metélio e dos seus homens se tornavam mais longínquos, e que depressa eram abafados pelos dos guerreiros que os perseguiam.
As estreitas passagens entre as cabanas rapidamente desorientaram Cato, forçando-o a parar por momentos, para tentar perceber para onde se dirigia, enquanto Fígulo
e os outros olhavam ansiosamente em redor.
- Onde é que está o Lúcio? - Murmurou alguém. - E o Severo? Estavam atrás de mim ainda agora.
Um vulto levantou-se e começou a retroceder.
- Deixa-te estar quieto! - Avisou Cato. - Se se separaram, terão que se safar sozinhos. Como o Metélio e os outros.
- Mas, senhor...
- Calado! - Cato avaliou a disposição das cabanas, e depois observou os padrões que as estrelas desenhavam no céu nocturno. - Por aqui... Acho.
- Acha? - Resmungou um dos homens.
Cato sentiu a raiva a crescer dentro dele.
- Pouco barulho. Por aqui, vá. Vamos.
Pouco depois, tinham deixado as cabanas para trás, e corriam por uma encosta que levava à margem da água. As estrelas continuavam a brilhar na escuridão do céu,
e os seus reflexos marcavam a superfície oleosa da água que rodeava o campo bretão.
Fígulo pegou-lhe no braço.
- Ali!
Cato olhou na direcção indicada, e reparou nas formas escuras de alguns pequenos barcos puxados para a areia a uns cinquenta passos de distância.
- É mesmo do que precisamos. Vamos.
Correram ao longo da margem até alcançarem os barcos, que eram cerca de uma dúzia. De um deles escapavam-se os inconfundíveis sons de um casal a fazer amor, e Fígulo
lançou um olhar interrogativo a Cato, fazendo ao mesmo tempo um sinal inconfundível com o dedo sobre o pescoço. O centurião abanou a cabeça. Já tinham havido demasiadas
mortes, e parecia-lhe aberrante juntar-lhes um par de amantes sem qualquer envolvimento nos acontecimentos. Por outro lado, os gemidos, suspiros e gritos de paixão
eram uma boa maneira de disfarçar os ruídos que Cato e os homens fizeram ao arrastar dois dos barcos para a água e ao empurrá-los até que a água gelada lhes chegou
a meio das pernas.
- Optio. - Sussurrou Cato.
- Senhor?
- Leva um dos homens, e sai do pântano como conseguires.
309

Depois segue para norte. Encontra Vespasiano, dá-lhe a localização deste campo e avisa-o de que Carátaco se prepara para atacar a Terceira Coorte.
- E quanto a si, senhor?
- Vou avisar o Máximo.
Fígulo abanou a cabeça, desalentado.
- Será o seu funeral.
- Talvez. Mas há muito mais vidas em jogo do que a minha ou
a dele. Assegura-te de que encontras Vespasiano. Se ele for rápido, talvez consiga salvar a Terceira Coorte e forçar Carátaco a uma batalha.
- Sim, senhor.
- Então, parte. - Cato ofereceu a mão, e os dois homens trocaram um cumprimento, apertando o antebraço do outro. - Boa sorte, optio.
- Para si também, senhor. Ver-nos-emos de novo na legião.
- Sim... Vai.
O embarque dos romanos levantou algum alarido, com água a saltar por todos os lados. De uma das embarcações na margem levantou-se imediatamente uma figura que lançou
uma chusma de imprecações em céltico sobre os quatro fugitivos, que por essa altura já remavam, afastando-se. Quando já tinham posto alguma distância entre eles
e a ilha onde se localizava o campo bretão, Cato arriscou um olhar para trás. Notava-se ainda algum brilho que permitia adivinhar os contornos das cabanas, e o ondular
da luz que denunciava o movimento de archotes por entre as mesmas. Mas não havia sinais de perseguição.
- Conseguimos, senhor! - Riu o legionário que acompanhava Cato. - Escapámos àqueles sacanas.
Cato esforçou a vista para identificar o rosto do companheiro.
- És o Népio, não és?
- Sim, senhor.
- Bom, Népio, ainda não estamos safos. Portanto, faz-me o favor de manter a boca fechada e remar como se as fúrias te perseguissem.
- Sim, senhor.
Cato deu mais uma olhadela e perguntou-se se Metélio teria encontrado um caminho de fuga. De todos os condenados que tinham escapado com ele do acampamento da coorte,
já só restava um mísero punhado. E sobre os seus ombros pesavam agora as vidas de centenas de camaradas, completamente ignorantes do ataque que Carátaco se preparava
para lançar contra eles.
310

XXXV

- Senhor, tem a certeza sobre isto? - Murmurou Népio, enquanto se agachavam no meio da erva alta, a pouco mais de cem passos do portão principal do forte. Os baluartes
erguiam-se, cinzentos e ameaçadores, no seio da neblina matinal. A atmosfera pesada que reinava no vale tinha-os atingido no momento em que os dois homens tinham
deixado o caminho que atravessava o pântano e tinham avistado as estacas que ladeavam o trilho, cada uma delas encimada por uma cabeça empalada. Népio voltou a encarar
o centurião.
- Senhor, se formos até ao forte e nos entregarmos, somos homens mortos. Para isso, mais vale poupar-lhes o trabalho de nos espancarem até à morte, e rebentarmos
os crânios contra o primeiro calhau que encontrarmos.
- Eles têm que ser avisados. - Retorquiu firmemente Cato.
- E não chega gritarmos as informações e rasparmo-nos com a pele intacta?
- Não. Agora está calado.
Cato respirou fundo, e depois ergueu-se. Colocando as mãos em concha, virou-se para o portão e gritou o aviso normal das patrulhas às sentinelas, quando regressavam
a um forte:
- Estamos a aproximar-nos!
Depois de um momento de silêncio, ouviu-se a resposta:
- Avancem e digam a senha!
Cato olhou para Népio.
- Bom, vamos lá.
O legionário levantou-se com relutância e ficou ao lado do seu superior. Cato avançou lentamente na direcção do portão. Apercebeu-se de que a sentinela chamara o
oficial de dia, e já imaginava a centúria de serviço a ser acordada a pontapés pelo seu centurião e optio. Iam meter-se nas armaduras a toda a velocidade, agarrar
nas armas e correr para o baluarte
311
sempre debaixo de uma chuva de insultos e ameaças dos oficiais. À medida que os dois fugitivos, de aspecto sujo e desgrenhado, avançavam pela relva húmida do orvalho
e iam saindo do meio da neblina, as cabeças cobertas por capacetes começavam a surgir na paliçada. Os dardos oscilavam sobre as cabeças como juncos varridos pelo
vento.
- Merda... - Resmungou Népio. - Isto é que foi uma linda ideia. É como se já estivéssemos mortos.
- Calado! - Avisou Cato. - Nem mais uma palavra.
Pararam mesmo antes de alcançarem o fosso externo, que se estendia pela escuridão, dos dois lados do portão.
- Quem são vocês? - Perguntou uma voz, vinda do torreão.
Cato respirou fundo antes de responder, tentando soar com tanta
autoridade quanto era possível naquela situação.
- Centurião Cato e legionário Népio, da Sexta Centúria da Terceira Coorte, Segunda Legião.
Apercebeu-se das cabeças curiosas que se projectaram imediatamente sobre a paliçada, tentando vê-lo melhor. Uma onda de murmúrios excitados percorreu a muralha.
- Pouco barulho! - Vociferou uma voz, e Cato avistou a crista transversal de um capacete de centurião a surgir por cima do portão. Na luz fraca era impossível distinguir-lhe
a face, mas a voz era inconfundível. Assim que os homens se calaram, Túlio debruçou-se para avaliar as duas figuras de ar miserável que se apresentavam no exterior
do forte, e depois fixou o olhar na mais alta e magra delas. Por momentos, nenhum dos oficiais quebrou o silêncio e Cato, roído pela dúvida, começou a pensar se
não teria cometido um terrível erro ao dirigir-se assim ao forte. Talvez Népio tivesse razão. Deviam ter ficado a distância segura, gritado um aviso, e abandonado
imediatamente o local. Mas logo o temor o abandonou, ao recordar-se de que, acontecesse o que acontecesse, o único futuro que lhe restava era na legião.
- Centurião, - perguntou Túlio, - o que é que está aqui a fazer?
O tom formal adoptado pelo outro não passou despercebido a Cato,
que compreendeu que lhe estava a ser oferecida uma derradeira oportunidade de fúga.
- Tenho que falar com Máximo. Imediatamente.
Túlio olhou-o ainda alguns instantes, antes de encolher os ombros e se virar para dar ordens aos homens que esperavam lá em baixo, junto ao portão:
- Abram. Optio da guarda! Envia um esquadrão para proceder à detenção destes homens.
Com um profundo ressoar das dobradiças, os portões giraram para dentro, e imediatamente surgiram oito homens em corrida e com espadas
312
em riste, que rodearam Cato e Népio. Não tentavam sequer esconder a surpresa que sentiam por ver os dois fugitivos. Surpresa e repulsa, percebeu Cato, e de repente
sentiu-se envergonhado pelo aspecto sujo e rasgado das suas vestes. Ainda assim, aprumou-se e, com os resquícios de dignidade que conseguiu reunir, marchou pelo
portão, flanqueado pelos guardas. Saído de uma prisão e entrado noutra, notou com amargura, e não conseguiu evitar um sorriso triste.
Os guardas fizeram alto assim que o grupo entrou no forte e o portão foi encerrado. Cato olhou para o torreão e viu Túlio a preparar-se para descer as escadas. O
rosto do veterano não mostrava qualquer expressão, e Cato apagou o espontâneo sorriso que lhe aflorara aos lábios, motivado pelo reencontro. Túlio imobilizou-se
a poucos passos de Cato, e abanou a cabeça, desiludido.
- Mas o que é que tu julgas que estás a fazer?
Cato limpou a garganta antes de responder.
- Senhor, é imperioso que eu fale com o centurião Máximo.
Túlio voltou a encará-lo em silêncio por alguns instantes, e depois
deu uma ordem, sem desviar o olhar:
- Optio da guarda.
- Senhor?
- Apresenta as minhas saudações ao comandante da coorte, e diz-lhe que a sua presença é necessária junto ao portão principal.
Assim que o optio se afastou em passo de corrida, Túlio aproximou-se de Cato e falou-lhe em surdina:
- Rapaz, que diabo de jogo é que estás a fazer? Assim que Máximo te puser os olhos em cima, és um homem morto.
- Se não o avisar, estamos todos mortos.
- Avisar? - A face de Túlio enrugou-se. - Avisar de quê?
- Carátaco. Dirige-se para aqui com o que resta das suas forças. Tenciona destruir-vos... - Cato sorriu. - ...nos, tenciona destruir-nos de vez.
Por trás de Túlio, Cato avistou o optio a interromper a corrida quando deu de caras com uma figura que acabava de rodear a esquina de uma linha de tendas. Máximo
afastou o homem para o lado, e gritou na direcção dos homens junto ao portão.
- Porra, o que é que se passa aí? Centurião Túlio! O que é que esses mendigos de merda estão a fazer no meu forte? Isto não é nenhum asilo para vagabundos!
Túlio virou-se e colocou-se em sentido.
- Senhor, se me dá licença, é o centurião Cato e um dos seus homens.
313
- Cato? - Máximo hesitou, mas depressa se aproximou, decidido,
olhando para Cato com a surpresa estampada no rosto. Ao confirmar por si próprio a identidade do jovem centurião, sorriu cruelmente. Colocou-se à sua frente, as
mãos nas ancas e a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, enquanto avaliava os dois homens. Franziu o nariz.
- Cheiras mal.
- Senhor, tenho que lhe dizer...
- Calado! - Berrou Máximo em resposta. - Não te atrevas a abrir a boca, meu miserável pedaço de merda! Mais uma palavra e corto-te o pescoço.
Virou-se para Túlio.
- Lancem-nos para a fossa das latrinas, e ponham lá uns guardas!
As sobrancelhas de Túlio arregalaram-se.
- Senhor?
- Ouviste o que eu disse! Cumpre as minhas ordens.
- Mas, senhor, o centurião Cato veio avisar-nos.
- Centurião Cato? - Máximo espetou o dedo no peito de Túlio.
- Esta coisa não é um centurião. Percebido? Não passa de um condenado. Um cadáver. Nunca mais fales dele como se ocupasse tal posto. Fiz-me compreender?
- Sim, senhor. - Respondeu calmamente Túlio. - Mas, e o aviso?
Máximo cerrou os punhos, enquanto a sua face se tornava pálida.
- Cumpre as ordens que recebeste! Se não quiseres acabar como o Macro, é melhor que te ponhas a mexer, e depressa!
Túlio recuou, amedrontado.
- Sim, senhor. Imediatamente, senhor.
O idoso centurião virou-se e passou as ordens para a secção que tinha escoltado Cato e Népio à entrada do forte, e que agora se encontrava formada em sentido a um
dos lados. Os dois ex-fugitivos foram imediatamente agarrados e levados da proximidade do portão para o canto mais afastado do forte. Cato torceu-se todo, tentando
ainda o impossível.
- Senhor, por piedade, oiça-me!
- Centurião! - Rosnou Máximo. - Faz com que o prisioneiro se
cale!
- Carátaco vai atacar! - Conseguiu Cato dizer, antes que Túlio se aproximasse e lhe desse uma forte bofetada. O jovem ficou momentaneamente aturdido, e depois sentiu
o sabor a sangue na boca. Deixou a cabeça descair e cuspiu-o, antes de tentar lançar um derradeiro aviso.
- Não...
Túlio ergueu o punho.
314
- Pronto, está bem. - Murmurou Cato. - Está bem. O que é que ele disse sobre o Macro?
Túlio espreitou sobre o ombro, e confirmou que Máximo se tinha dedicado a dar um raspanete às sentinelas, incluindo um longo sermão sobre o desleixo na vigilância.
Então, virou-se para Cato.
- Macro está detido.
- Detido? - Por momentos, a tenebrosa ideia de que o papel do amigo na súa fuga tivesse sido descoberto preencheu-lhe a mente; com tão pouco a perder, tentou arrancar
mais informações. - E porque é que ele foi preso?
- Recusou-se a cumprir uma ordem para exercer represálias sobre os nativos.
- Represálias?
- Ontem foram mortos seis dos nossos homens, mesmo debaixo dos nossos narizes. Máximo ordenou a Macro que executasse sessenta camponeses, como castigo. Ele recusou.
Portanto, Máximo deteve-o e colocou a centúria sob o comando de um optio, o Córdio, um canalha da pior espécie, que bem feliz ficou por cumprir a ordem.
Cato olhou para o outro centurião.
- Estás a falar a sério?
- Antes não estivesse. Mas é melhor que nos calemos. - Túlio aproximou-se um instante, de modo a que só Cato escutasse o que ele sussurrou. - Falamos depois. Há
por aqui demasiados ouvidos indiscretos.
Marcharam em silêncio, até alcançarem a barraca que tinha sido erguida sobre a fossa das latrinas. O cheiro era absolutamente insuportável, mesmo depois do fedor
da pocilga em que os bretões os tinham mantido prisioneiros. Túlio dirigiu-se ao alçapão que dava para o canal entre as latrinas e as grades através das quais o
esgoto fluía para a vala de drenagem que seguia encosta abaixo, afastando-se do campo. Com uma careta de desgosto, levantou a tampa e empurrou-a contra a parede
da barraca.
- Lá para dentro.
Cato olhou para a horrenda massa escura que se acumulava lá em baixo, e abanou a cabeça.
- Não.
Túlio suspirou e fez menção de chamar a escolta, mas Cato agarrou-lhe no braço.
- Vimos as cabeças nas estacas ao longo do caminho para o pântano. O que é que se passa aqui? - Cato apercebeu-se de que o homem mais velho vacilava. - Diz-me.
Túlio olhou em redor nervosamente, antes de responder.
- Está bem. Ele age como um louco - o Máximo. Tem
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massacrado os nativos como se fosse pago à cabeça. Tulio esfregou o queixo.
- Nunca vi nada assim. É como se o homem estivesse possesso... Louco. Foi isso que Macro sugeriu. Que Máximo se está a vingar nos aldeãos de todas as merdas que
aconteceram à Terceira Coorte.
- Talvez. - Retorquiu Cato, e ficou um momento a matutar no assunto. - Mas pergunto-me por que diabo mandou o legado a Terceira Coorte para aqui. Devia ter algo
mais em vista do que apenas procurar por nós.
- O que é que estás a dizer?
- Pensa nisto. Perdemos o contacto com o Carátaco. O general tinha que arranjar maneira de o atrair outra vez. E está mesmo para acontecer isso.
- Mas como é que o general podia saber que o Máximo se ia portar como um louco e provocar um ataque de Carátaco? Não tinha maneira de o adivinhar.
- Tinha, sim... Se tivesse dado ordens a Máximo para massacrar os habitantes locais.
Túlio abanou a cabeça.
- Não. Não há qualquer método no que ele tem feito. Só loucura.
- Sim, ele é louco - afirmou Cato - se não se preparar para o ataque. Lá para o fim do dia, Carátaco e milhares dos seus homens estarão à frente dos baluartes. Vêm
com o intuito de se vingarem, e não levarão muito tempo a tomar o forte, e nessa altura massacrarão todos os que encontrarem. Não vamos ter qualquer hipótese.
Túlio manteve o olhar fixo em Cato, tentando esconder o medo, pelo que o jovem decidiu aproveitar a vantagem.
- Só há uma forma de a coorte se safar desta. Pelo menos, eu só vejo esta possibilidade. Mas não vai resultar, a não ser que eu, nós, consigamos convencer o Máximo.
- Não! - O centurião Túlio voltou a abanar a cabeça. - Ele não escuta ninguém. E vai de certeza castigar-me, se souber que estive aqui a conversar contigo. Mete-te
no buraco!
- Foda-se! - Cato manteve a pressão no braço do outro, e obrigou-o a encará-lo. Os legionários prepararam-se para empunhar as espadas. - Escuta-me!
Túlio ergueu a outra mão.
- Rapazes, tenham calma!
Cato agradeceu com um gesto de cabeça, e prosseguiu, num murmúrio desesperado.
- Túlio, és um veterano, porra, e os medalhões que exibes ao peito não te foram dados por teres jeito para fazer contas, nem por fugires às
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tuas responsabilidades. Se não tens tomates para enfrentar o Máximo, deixa-me ao menos tentar eu. - Não deixando de fitar os olhos do homem mais velho, Cato afrouxou
a pressão e deu-lhe antes um ligeiro e amigável apertão. - Está aqui em jogo muito mais do que a vida de um homem. Se o Máximo não me ouvir, estamos todos mortos.
E tu podes fazer a diferença, agora mesmo.
- Como?
- Dispensa esta escolta. E depois leva-me à tenda dele. Manda alguém buscar o Macro. Ele que vá ter connosco lá. Temos que convencer o Máximo. Antes que seja demasiado
tarde. Agora vá, manda estes tipos embora e ouve-me.
Cato apercebeu-se de que o outro continuava a hesitar, e voltou a aproximar-se dele.
- Podemos sobreviver a isto. Melhor ainda, podemos sair desta história com a honra restaurada. E, para cúmulo, somos até capazes de acabar com o Carátaco de uma
vez por todas.
- Como? - Inquiriu Túlio. - Diz-me.
317
XXXVI

Meia hora depois, Cato infiltrava-se na tenda de Máximo, enfiando-se por baixo do pano, nas traseiras. Um relance em redor assegurou-lhe que, afortunadamente, estava
só; os escrivães andavam na ronda matinal com o comandante da coorte. Ergueu a aba da tenda e acenou para Népio, chamando-o. O legionário entrou e afastou-se da
linha de visão do centurião, deixando-o manter contacto com Túlio.
- A costa está livre, senhor. Eu fico aqui à sua espera. É melhor ir buscar o Macro.
Era estranho estar a dar ordens a um veterano; Cato compreendeu que seria melhor manter algumas das regras normais de comportamento, se quisesse manter Túlio do
seu lado. O idoso centurião podia já ter deixado para trás os melhores anos, e ter os nervos completamente arrasados, mas ainda tinha com certeza a capacidade de
perceber o que tinha de ser feito. E Cato sabia bem que precisava do máximo número de aliados que conseguisse reunir, antes de se atrever a confrontar Máximo.
Túlio anuiu.
- Certo. E tu, jovem Cato, vê se te manténs fora de vista.
Cato fez um gesto de concordância e deixou cair o couro da tenda até ao solo. Olhando em volta, avistou a arca pessoal do comandante da coorte. Sobre ela estava
uma capa vermelha, dobrada, e de lado havia uma espada, embainhada. Não era a elaborada e vistosa arma que ele usava normalmente, apenas um gládio dos distribuídos
ao efectivo, cujo punho estava gasto e polido pelo uso. Cato sorriu. Devia ser uma relíquia dos tempos de legionário de Máximo, agora apenas uma recordação. Mas
muito útil. Cato pegou-lhe, tendo o cuidado de disfarçar a sua ausência da bainha com uma dobra da capa.
Passou-a para as mãos de Népio.
- Pega nisto, e vai-te esconder ali, nos aposentos de Máximo. Fica lá, e deixa-te estar calado. Só apareces se eu te chamar. Percebido?
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- Sim, senhor.
- Óptimo. Então vai.
Enquanto Népio se afastava, Cato procurou um lugar para ele próprio se esconder, e depois virou de novo a atenção para a arca. Era alta, e tinha sido colocada fora
do caminho, no fundo da tenda. Rodeando-a calmamente, agachou-se por trás dela, e preparou-se para aguardar que Máximo e os seus oficiais regressassem. Era uma sorte
que as rotinas de uma legião romana fossem imutáveis, reflectiu Cato. O comandante da coorte voltaria à tenda para a reunião matinal com os oficiais, tão certo como
a noite se seguir ao dia.
Lá fora, os sons dos legionários a executarem as suas tarefas davam um ar de conforto e familiaridade à atmosfera, depois dos ansiosos dias de fuga, escondido nos
pântanos. Mais uma vez, Cato apercebeu-se de que a legião se tornara de facto a sua casa, e de que, enquanto vivesse, só se sentiria verdadeiramente seguro e tranquilo
no seu seio.
Mas, por agora, poucas probabilidades existiam de que viesse a ter uma longa vida, concluiu com amargura. Mesmo que Máximo não tentasse matá-lo assim que o avistasse,
os guerreiros inimigos que se aproximavam do forte acabariam por cumprir o desejo do centurião. Por um breve instante, sentiu-se tentado a chamar Népio e procurar
a fuga, deixando o forte antes que o comandante da coorte regressasse à tenda. Mas cerrou os dentes e os punhos, e deu um violento murro na perna. Não havia como
voltar atrás, e para ter a mais ínfima hipótese de evitar o desastre, havia que enfrentar Máximo.
O tempo passava de forma lenta, exasperante, e Cato, tenso com a antecipação, esforçava o ouvido na tentativa de se aperceber dos primeiros sons que indicassem o
regresso do comandante da coorte. De tempos a tempos escutava a voz de Máximo quando este berrava uma ordem ou soltava uma imprecação enquanto fazia a inspecção
ao forte. Em cada uma dessas ocasiões, Cato preparava-se para a tarefa que resolvera cumprir, e de cada vez que se revelava um falso alarme, a sua decisão fraquejava
mais um pouco, e sentia-se cada vez mais próximo de sucumbir aos seus medos e fugir.
Então, por fim, ouviu de novo a voz do centurião, próxima, claramente a caminho da tenda.
- Túlio!
- Senhor?
- Já deste aos optios as ordens para as patrulhas de hoje?
- Sim, senhor. Antes da inspecção.
- Muito bem. Então, a reunião será apenas para centuriões. Ah, aí vêm eles. Para a reunião! Mexam-se!
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Cato encolheu-se atrás da arca e mal se atreveu a respirar, enquanto o sangue lhe pulsava aos ouvidos. A luz dançou nas paredes laterais da tenda quando Máximo entrou,
afastando as abas. Ouviu-se um grunhido quando o comandante da coorte se abateu sobre uma cadeira; depois, a luz voltou a invadir o interior sombrio, à medida que
os outros centuriões, de respiração pesada, se juntaram a ele.
Sem preâmbulo, Máximo soltou uma ordem:
- Senhores, sentem-se, estamos a perder tempo.
No meio de um restolhar de equipamentos, os centuriões sentaram-se.
- Onde está o centurião interino Córdio? - Inquiriu rispidamente o comandante. - Túlio?
- Desculpe, senhor. Enviei-o à aldeia, para capturar alguns nativos. O canal de despejo do forte está a ficar entulhado, tem que ser aprofundado.
- Não me parece que tal tarefa necessite da atenção pessoal de um centurião...
- Senhor, ele estava disponível. E mais do que ansioso por desempenhar a tarefa.
- Não duvido. - Máximo riu. - Um tipo fixe, aquele Córdio. Quem me dera que todos os meus oficiais mostrassem a mesma vontade para tratar estes bárbaros como a escumalha
que são... Bom, Túlio, uma vez que o mandaste lá, é a ti que compete ir buscá-lo.
- Sim, senhor... Dá licença?
- Vai lá, deixa-te de coisas.
Por momentos ninguém abriu a boca, enquanto Túlio saía da tenda; então Máximo riu outra vez.
- Bom, rapazes, pelo menos tentem não acabar como este.
Cato apercebeu-se de que Félix se juntara à galhofa do comandante. Mas, nessa altura, Máximo parou abruptamente.
- António, que se passa? O gato comeu-te a língua?
- Não, senhor.
- Então porque é que estás de trombas?
- Senhor...
- Despeja lá o saco, homem!
- Estava a pensar no que o Cato disse há bocado. No aviso.
- Aviso, pois sim! - Desdenhou Máximo. - Ele já estava era farto do pântano. Viram o estado em que vinha. Essa história de aviso foi só uma patética forma de tentar
recuperar um lugar na coorte. Mas agora que esse sacana está nas nossas mãos, e que os seus companheiros estão com certeza mortos, podemos acabar o serviço por aqui
e levá-lo de volta a Vespasiano e
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à legião. Devias estar a festejar, António, em vez de te lamentares como uma velha medrosa.
Cato percebeu que, mais uma vez, Félix apoiava o comandante na troça, antes que António murmurasse uma resposta:
- Sim, senhor...
- Mas que raio é este cheiro? - Máximo inspirou. - Até parece que algum bicho rastejou cá para dentro, deu uma cagada e ficou-se. Mas que fedor.
A luz penetrou mais uma vez na tenda quando as abas foram afastadas.
- Túlio? - A surpresa estava bem expressa na voz de Máximo.
- Já? Então onde está... O que é isto? Que é que está o Macro aqui a fazer? Com uma espada?
Inspirando profundamente uma última vez numa tentativa de acalmar os nervos, Cato ergueu-se.
- Senhor, tem que me escutar.
- O que... - Máximo girou, ao escutar aquela voz. - Cato? O que raios se passa aqui? Guardas!
Túlio abanou a cabeça.
- Senhor, não vale a pena. Mandei-os buscar Córdio, de acordo com as suas ordens.
- As minhas ordens? - O olhar de Máximo foi de Túlio para Macro, e depois para Cato. Os olhos arregalaram-se. - O que é isto? Um motim?
- Não, senhor. - Túlio ergueu a mão e avançou. - Mas tem que nos escutar. Escutar Cato.
- Hei-de ver-vos nos infernos antes disso! - Rosnou Máximo, e colocou-se em pé de um salto. - António! Félix! Às espadas!
- Deixa-te ficar quietinho. - Macro saltou e ergueu a ponta da espada, ameaçando a garganta de Félix. - Nem penses em mexer-te. Túlio! Vigia-o. - Macro acenou na
direcção do comandante. Mas era demasiado tarde. Mal Macro acabara de falar e já Máximo estava de pé, espada empunhada. Túlio olhava de um para outro, sem saber
o que fazer.
Cato virou-se para a entrada dos aposentos do comandante.
- Népio! Aqui, depressa!
O legionário precipitou-se para o salão, de espada em riste, pronto a atacar. Durante alguns instantes, enquanto Cato observava nervosamente, os músculos do comandante
da coorte tremeram, denunciando a sua disposição para lutar. Os olhos de Máximo semicerraram-se, e ele concentrou o olhar penetrante no legionário.
- Larga a espada! É uma ordem!
321
A ponta da espada que Népio empunhava baixou ligeiramente, e Cato interpôs-se entre eles, quebrando o ascendente que Máximo estava a
conseguir sobre o legionário.
- Se lhe obedeceres, podes considerar-te morto. Percebido?
Lentamente, Népio anuiu; Cato virou-se então para enfrentar o comandante da coorte:
- Senhor, deponha a espada.
Por momentos, Máximo manteve-se imóvel, mas depois deixou que a tensão em redor dos olhos se dissipasse, e chegou a esboçar um sorriso.
- A vantagem é tua, Cato. Por agora.
- Senhor, a espada... Pouse-a.
Máximo relaxou o braço, e deixou que o gládio viesse repousar junto à sua perna.
- Senhor, este é o meu último aviso. - Enunciou Cato com firmeza. - Largue a espada.
- E deixo que o teu homem me abata? Não me parece.
Ninguém abriu a boca quando Cato fez avançar a mão na direcção
do comandante. O coração ameaçava saltar-lhe pela boca, e tinha a garganta apertada, enquanto tentava dominar o medo que sentia. Durante alguns segundos pareceu
que Máximo lhe tinha adivinhado os pensamentos, e um sorriso de desdém começou a aparecer nos lábios do homem mais velho. Cato avançou com firmeza, recusando-se
a baixar o olhar.
Por fim, Máximo fez um gesto de assentimento e embainhou a espada.
- Muito bem, rapaz. Vamos lá a ouvir o que tens para dizer. - Como se nada se tivesse passado, Máximo virou-lhe as costas e dirigiu-se à sua secretária. - Conta-me
lá sobre esse ataque iminente.
Cato viu Túlio esvaziar as bochechas, soprando com ar de alívio. Mas sabia muito bem que a cena ainda não tinha terminado. Aproximou-se rapidamente por trás de Máximo
e, com um gesto determinado, puxou a espada, fazendo com que esta raspasse na bainha. Então recuou e ergueu a lâmina na direcção da espinha do seu superior. Máximo
imobilizou-se.
- É melhor que voltes a colocar isso no lugar, antes que seja tarde demais. - Ameaçou.
- Já é tarde demais. - Retorquiu Cato.
Túlio avançou, preocupado.
- Cato, o que é que estás a fazer?
- Senhor, não podemos confiar nele. Vai fingir que nos presta atenção, e no momento em que saírmos da tenda, fará com que sejamos detidos, ou abatidos imediatamente.
Népio?
322
- Senhor?
- Amarra-o.
- E este? - Macro agitou a sua espada na direcção do centurião Félix. - Nada fará contra o seu mestre.
- Sim, ele também. Temos que ser rápidos.
Enquanto os dois oficiais eram mantidos sob a ameaça das espadas, Népio desapertou-lhes os atilhos das botas e usou as tiras de cabedal para lhes atar os tornozelos
e os pulsos. Túlio e António observavam, com horror crescente.
- Vocês não podem fazer isso. - Murmurou Túlio. - Isto é um motim. Merda, vão acabar por fazer com que nos matem a todos.
- Senhor, agora é demasiado tarde. - Sossegou-o Cato, calmamente. - Estamos todos metidos nisto. Eu, o Macro, o senhor e o António. Se os deixarmos ir agora, seremos
todos executados.
Máximo abanou a cabeça.
- Túlio, ainda não é tarde demais para ti. Nem para ti, António. Detenham estes loucos, e garanto-vos que não irão a corte marcial.
Cato deitou uma olhadela a Túlio, e apercebeu-se de que a determinação do idoso centurião estava a vacilar.
- Túlio! O senhor libertou-me. Armou o Macro e fez com que ele aqui viesse ter. Não haverá piedade para si, senhor. E está em jogo muito mais do que as nossas vidas.
Ele não tem capacidade para comandar uma coorte, muito menos quando estamos à beira de ser atacados por Carátaco. Senhor, acalme os nervos. Os seus homens precisam
de si.
O olhar de Túlio alternou entre Cato e Máximo, e o centurião esfregou o rosto.
- Porra, Cato! Tiras-me anos de vida.
- No fim ninguém se salva, senhor. O que importa é fazer com que a nossa morte não seja em vão. Se o libertarmos agora, Máximo fará com que nos abatam como cães.
Se nos mantiver vivos para o tribunal marcial, então morreremos acorrentados quando Carátaco cá chegar. Mas se nós
- o senhor - assumir o comando, então pode ser que alguns de nós consigamos sobreviver ao assalto. Mais ainda, talvez consigamos causar alguns danos à coluna inimiga.
E se isso suceder, talvez o general Pláucio esqueça este assunto.
- Podem contar com essa, podem! - Desdenhou Máximo.
Cato ignorou-o, mantendo-se concentrado em Túlio.
- Senhor, se mudar de opinião agora, será o mesmo que cometer suicídio. Se se mantiver fiel ao plano, talvez vivamos. É essa a única escolha a fazer.
Túlio mordeu o lábio, numa agonia de indecisão. Por fim, anuiu.
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- Boa! - Macro deu-lhe uma palmada no ombro, e depois virou-se para António. - E tu? Estás connosco?
- Sim... Mas se vier a ocorrer um julgamento sobre estes acontecimentos, quero que fique bem claro que me limitei a obedecer às vossas ordens.
Macro mostrou-se desgostoso.
- Obrigadinho pela demonstração de lealdade.
- Lealdade? - António arqueou o sobrolho. - Agora não há por aí muito disso. Tudo o que quero é sobreviver. Se a escolha é a que o Cato apresentou, então a melhor
aposta é ficar do vosso lado.
- Para mim, isso chega. - Disse Cato. - Népio, leva estes dois para os aposentos do Máximo, e amarra-os à cama. E não te esqueças de os amordaçar. Ninguém os pode
escutar.
- Há maneiras melhores de os calar. - Juntou Macro.
- Não, senhor. Isso não é necessário. Pelo menos por agora.
Enquanto Népio arrastava os dois oficiais para a outra divisão da
tenda, os restantes quatro centuriões agruparam-se em redor da grande mesa. Estabeleceu-se um silêncio incómodo, até que Cato o rompeu, dirigindo-se a Túlio, depois
de limpar a garganta:
- Senhor, quais são as suas ordens?
- Ordens? - O veterano parecia perdido.
- Senhor, é o mais antigo dos oficiais presentes. - Lembrou-lhe Cato. - Temos que nos assegurar que a coorte está preparada para se defender. Qual é o plano?
- O plano? Ah, sim. - Túlio recuperou a serenidade, e lançou o olhar sobre o mapa da região, que Máximo tinha esboçado a partir das indicações das patrulhas e dos
dados que os nativos tinham sido persuadidos a fornecer. O pântano surgia coberto por linhas que se entrecruzavam, representando caminhos que o atravessavam. Uma
linha mais grossa representava a estrada principal, que se dirigia a norte, na direcção do curso superior do Tamisa. Túlio colocou um dedo sobre o mapa.
- Se tiveres razão, é daqui que Carátaco e as suas forças virão. Há mais uma meia dúzia de caminhos que vêm dar a este vale, mas não permitem a passagem de uma coluna
numerosa. Portanto, devemos esperá-los pela estrada principal. E é aí que teremos que os deter. Reforçar o portão que lá pusemos, e esperar que consigamos mantê-lo.
António levantou o olhar do mapa.
- E abandonar o forte? Senhor, isso é loucura. Uma vez que os bretões nos são muito superiores em número, porque não enfrentá-los por trás de defesas apropriadas?
Seria a nossa melhor possibilidade.
- Não, não seria. - Interrompeu Cato. - O centurião Túlio tem
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toda a razão. Temos que tentar detê-los ali, impedi-los de sair do pântano e de espalhar as suas forças pelo vale.
- Porquê?
- Quando fugi do acampamento dele...
- Do acampamento de Carátaco? - António estava siderado.
- Como diabo...
Cato ergueu a mão para o reduzir ao silêncio.
- Mais tarde lho explicarei, senhor. O facto é que enviei o meu optio para norte, com uma mensagem para Vespasiano. Por esta altura, já o deve ter alcançado. E,
portanto, o legado já sabe a localização do campo inimigo. Sabe também que Carátaco vai atacar a Terceira Coorte, e que trajecto fará com esse objectivo. Se bem
o conheço, Vespasiano verá nisto a oportunidade de, finalmente, acabar com Carátaco. Se avançar com a legião pela estrada, poderá abater-se sobre a retaguarda dos
bretões. A coluna inimiga ficará então aprisionada entre Vespasiano e a Terceira Coorte, e será destroçada - desde que consigamos contê-la ali, à saída do pântano.
E, para isso, é fundamental que deixemos este campo e ocupemos posições no portão fortificado. Se ficarmos aqui, Carátaco escapará para sul assim que se aperceber
da aproximação da legião.
- Há aí uma data de ses... - Observou calmamente António. - Já agora, junto-lhes mais uns, da minha autoria: e se Fígulo não conseguiu encontrar Vespasiano? E se
o legado não acreditou na história dele? E se tu estiveres enganado? E se Vespasiano não agir?
- É verdade, o Fígulo pode não ter conseguido alcançar a legião.
- Admitiu Cato. - Temos que esperar que isso tenha acontecido. O facto de ele se arriscar a ser executado ao regressar deve contar para alguma coisa. Esperemos que
o legado veja a oportunidade de pôr de vez um fim à campanha.
- E se ele não a vir?
- Bom, deteremos Carátaco, pelo menos por algum tempo. Se lhes provocarmos bastantes baixas, talvez eles recuem o tempo suficiente para que consigamos regressar
ao forte. Se não, - Cato encolheu os ombros,
- bem, então eles esmagar-nos-ão, e a Terceira Coorte será aniquilada.
- Obrigado. - António deu um estalo com a língua. - A reunião mais inspiradora a que alguma vez tive a fortuna de assistir.
- Bem, é assim. - Continuou Cato. - Temos que ocupar as posições o mais depressa possível, e reforçar as defesas. Senhor? - Virou-se para Túlio. - Estamos prontos
para as suas ordens.
- Um momento. - Interrompeu António, indicando com o polegar os aposentos do comandante da coorte. - E o que fazemos com aqueles dois?
325
- Senhor, sugiro que os deixemos aqui.
- E como é que explicamos aos homens a ausência de Máximo?
Dele e de Félix?
- Não explicamos. O centurião Túlio pode dar todas as ordens
como se viessem de Máximo, é o centurião-ajudante. Quem é que se atreveria a pô-las em causa?
- Se Máximo não for visto, talvez alguém acabe por perguntar por
ele.
Cato sorriu.
- Por essa altura, já devem estar entretidos com outros assuntos. Nesse momento, ouviu o som ritmado de botas a marchar, aproximando-se da tenda. Olhou para Túlio.
- Vem aí alguém.
O idoso centurião correu até à aba da tenda, espreitou lá para fora, e virou-se para os outros.
- É Córdio, e a guarda pessoal de Máximo vem com ele.
326
XXXVII

Macro pegou em Túlio pelos ombros.
- Vai lá para fora, e trata do assunto.
- Mas o que é que eu digo?
- Diz o que quiseres. Tens é que o manter fora da tenda. Se ele entra, estamos tramados.
Nervoso, Túlio engoliu em seco; mas depois acalmou-se, adoptou uma expressão firme e, dobrando-se, saiu da tenda.
- Córdio! Até que enfim. Porque é que demoraste tanto?
- E-eu estava na aldeia, senhor. - O tom era desconfiado, quase insolente. - Como me foi ordenado. Os nativos já estão a trabalhar no fosso, senhor.
- Bom trabalho. Muito bem. Mas há mais para fazer. A coorte vai-se deslocar. Passa a ordem a todas as unidades, que se preparem, equipamento completo.
- Todo o efectivo, senhor?
- Foi o que disse o Máximo.
- E quem vai vigiar os nativos?
- Manda-os de volta à aldeia, e liberta os reféns.
- Libertar os... - A voz de Córdio começou a elevar-se, mas depois o optio conseguiu controlar a frustração que sentia. - Sim, senhor. Vou tratar disso.
- Óptimo. Quando isso estiver arrumado, leva a tua centúria para o caminho do pântano. Reforça as defesas do portão. Temos que o ter pronto para enfrentar um ataque
em massa. Quero o baluarte mais alto, e o fosso mais profundo e largo. Teremos que o conseguir defender.
- Defendê-lo de quem, senhor?
- Do inimigo, quem mais? Parece que, afinal, Carátaco se prepara mesmo para atacar. Agora podes ir executar as tuas ordens.
- Sim, senhor... Mas antes, tenho que me apresentar ao centurião
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Máximo, para fazer o meu relatório. Com licença, senhor.
No interior da tenda, Macro e Cato trocaram olhares apreensivos, e o jovem empunhou a espada do comandante da coorte de forma aguerrida.
- Fazes o relatório depois! - Berrou Túlio. - Cumpre as minhas ordens, ou faço queixa de ti.
- Não, senhor, não me parece. - Foi a resposta gelada de Córdio.
- Veremos o que o centurião Máximo diz sobre isso.
- Com que autoridade pensas tu que estou a dar ordens? - Gritou Túlio de volta. - Sai da minha vista, meu sacana impertinente! Desaparece, antes que leves com uma
acusação de insubordinação.
Fez-se uma pausa, durante a qual Macro e Cato sustiveram a respiração, tensos e ansiosos. Então, Córdio recuou.
- Sim, senhor.
- E leva estes guardas contigo. Máximo quer todos os homens a trabalhar nas defesas, assim que estiverem equipados para o serviço. É melhor arranjarem um vagão e
levarem todas as ferramentas que encontrarem.
- Sim, senhor... Vou seguir as ordens do centurião Máximo.
- É isso mesmo. Agora, desanda.
Córdio deu as ordens aos guardas, que se viraram e o seguiram, marchando na direcção do portão principal. As abas da tenda do comando foram afastadas, e o centurião
Túlio entrou cambaleante. Deixou-se cair numa das cadeiras que ladeavam a secretária.
- Muito bem, senhor. - Sorriu Cato. - Excelente desempenho. Este não nos vai incomodar quando agirmos. Há mais alguns oficiais que nos possam dar problemas?
- Não. - Túlio inchou as bochechas. - Máximo conseguiu irritá-los a todos. Há semanas que se dedica a tratar directamente com os homens, minando a nossa autoridade
sobre eles. Os optios ficariam felizes por o ver pelas costas. Mas nunca apoiariam um motim.
- Portanto, senhor, não será isso que faremos. - Cato sorriu de forma encorajadora. - Se os mantivermos ocupados, as coisas estarão decididas, de uma forma ou doutra,
antes que se apercebam que a coorte tem um novo comando.
As trombetas começaram a tocar a reunir, e depressa o forte se encheu dos sons dos homens a saírem das tendas e a porem o equipamento antes de se dirigirem ao ponto
de reunião, junto ao portão principal.
Cato dirigiu-se a Túlio.
- Senhor, será melhor ir até lá e tomar o comando.
- Sim, sim, tens razão. António, vem comigo. - O idoso
Centurião olhou para Cato. - Assim que Córdio deixar o forte, mando-vos chamar.
Macro remexeu-se, pouco à vontade.
- Se te perguntarem, e fá-lo-ão com certeza, terás que oferecer uma boa explicação para a nossa reintegração. Pelo menos, terás que convencer os homens de que isso
foi ideia do Máximo.
- Senhor, diga-lhes a verdade. - Ajudou Cato. - Diga-lhes que Carátaco se prepara para atacar, e que a coorte necessita de todos os homens válidos para combater
o exército inimigo. E que foi essa a razão porque Máximo decidiu libertar-nos, temporariamente.
- Certo... - Túlio não parecia convencido. - António, vamos.
Macro aguardou que os outros dois centuriões saíssem da tenda
antes de se dirigir a Cato.
- Não é lá muito animador quanto às nossas hipóteses, pois não?
Cato encolheu os ombros.
- Em comparação com as probabilidades que tenho enfrentado nos últimos tempos, quase me apetece dizer que desta vez estou à vontade.
- Sempre o mesmo optimista de merda. - Resmungou Macro.
- Ainda assim, há mais uma coisa de que tenho que tratar antes que o Túlio nos chame.
- O que é ainda?
- É preciso que Népio fique aqui a vigiar o Máximo e Félix. Se ficar de vigia por um instante, senhor, vou dar-lhe as minhas ordens.
- Vai lá. - Macro aproximou-se cuidadosamente da abertura da tenda e espreitou para o exterior. Não havia ninguém nas proximidades, só se avistavam figuras distantes
através das aberturas nas linhas de tendas. Os legionários estavam a formar, preparando-se para marchar para o exterior do forte. Deitou um olhar na direcção de
Cato, e viu o seu jovem amigo a falar com Népio, de forma calma e precisa. Não se conseguia aperceber do que estava a ser dito. O legionário prestava atenção, mas
depois abanou a cabeça.
- Tens que ficar! - Cato insistiu, e depois olhou para Macro. De seguida virou a atenção de novo para o legionário, e baixou a voz ao continuar. Por fim, acabou
de transmitir as ordens, e Népio concordou com um lento assentir de cabeça. O centurião deu-lhe um toque amigável no braço e dirigiu-lhe umas palavras finais de
encorajamento, antes de se virar e afastar, voltando para junto de Macro, perto da entrada da tenda.
- O Népio não me parece nada feliz.
Cato perscrutou-lhe o rosto, antes de encolher os ombros.
- Não lhe agrada ficar para trás.
- Eu reparei.
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- Não é propriamente surpreendente. - Cato sorriu. - Ficar sozinho quando o resto da coorte abandona o forte.
- Para ser franco, não sei bem quem é que fica melhor. - Murmurou Macro. - Há alguma hipótese de ele querer trocar comigo?
Cato deu uma gargalhada silenciosa enquanto observava Népio, que em silêncio regressava aos aposentos do comandante da coorte.
- Oh, aposto que a ideia não lhe desagradaria.
? ? ?
Depois de a coorte formar junto ao portão, o centurião Túlio deu as ordens que supostamente emanavam do comandante, e informou que o centurião Félix se tinha oferecido
como voluntário para ir informar o legado da ameaça que pesava sobre a Terceira Coorte. Explicou ainda que, dado o depauperado estado do efectivo da coorte, Máximo
tinha determinado que todos os homens capazes deviam ser empenhados no combate que se aproximava. Era por isso que tinha sido atribuído o comando da Quarta Centúria,
a de Félix, ao centurião Macro, e que Cato tinha assumido de novo o comando da Sexta. Nesse momento, os dois oficiais emergiram por entre as linhas de tendas por
trás de Túlio, e foram apresentados perante a coorte. O espanto dos legionários não teve muito tempo para se manifestar, uma vez que Túlio deu imediatamente ordem
para avançar e, centúria após centúria, os homens da coorte abandonaram o forte, seguindo pela estrada que conduzia ao pântano.
O optio Sétimo, que Máximo designara para o lugar de Fígulo, marchava ao lado de Cato. De tempos a tempos olhava para o seu superior com uma expressão de desconfiança
e hostilidade que Cato bem compreendia. Tinha saboreado o seu primeiro comando, e agora via-se desalojado da posição, embora não sem manifestar o seu descontentamento
de uma forma quase intolerável. Cato decidiu que a melhor maneira de lidar com a situação era manter o homem ocupado.
- Há homens a ficar para trás, Sétimo! Não os deixes criar espaços na formação!
O optio deixou o lugar que ocupava e começou a desancar verbalmente os homens à medida que passavam por ele, não se coibindo de dar uma vergastada em qualquer legionário
que permitisse o alargamento do espaço em relação ao homem que seguia à sua frente. Não havia motivo para tamanha violência, mas Cato achou melhor não intervir.
A última coisa de que a centúria precisava naquele momento era de uma confrontação entre os seus oficiais. Por agora, teria que permitir que Sétimo descarregasse
a sua frustração nos homens. E, enquanto odiassem o optio, talvez
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estivessem dispostos a aceitar sem perguntas a reposição do seu centurião.
Era estranho estar de novo a comandar os homens que tinha liderado a caminho da batalha no vau do Tamisa. Nessa ocasião, tinham falhado na contenção das forças inimigas,
e para Cato o resultado fora a pena capital. Se falhassem novamente, desta vez nenhum deles escaparia. E se sobrevivessem às próximas horas? Cato sorriu para si
mesmo, amargamente. Acontecesse o que acontecesse, ainda era um condenado à espera da execução; e mesmo que fosse poupado, o mais provável era que fosse expulso
da legião, em desgraça. Com raiva, afastou da mente qualquer pensamento sobre o futuro. Tinha que se concentrar no presente.
A surpresa dos homens tinha sido ainda maior porque a decisão de renomear Cato para o comando da unidade se devera ao comandante da coorte, que fora tão implacável
e decidido na busca pelos fugitivos até à véspera. Quando Cato surgira perante a coorte formada, muitos tinham-no olhado com espanto, mas alguns rostos tinham mostrado
desagrado e, pior ainda, desconfiança. Era um facto que o seu aspecto, a face ainda suja, o cabelo em desalinho e um arremedo de barba, pouco condizia com o de um
homem a quem fora atribuído o posto de centurião. Tinha recuperado a armadura nos armazéns, o que tinha provocado mais desagrado, desta vez no responsável pelos
mesmos, que esperava vender o equipamento por uma soma razoável. Mas os maus sentimentos que outros lhe dedicavam mal beliscavam o contentamento que Cato sentia
no seu íntimo. Vestir de novo a sua armadura, empunhar uma boa espada e um escudo sólido, era o que lhe parecia natural e reconfortante. Era quase como se as últimas
semanas, repletas de miséria, dificuldades e perigos, tivessem sido varridas como uma camada de poeira arrastada por uma chuvada de Verão.
Quase.
- Senhor!
Cato levantou o olhar e viu que se aproximava um estafeta, vindo da cabeça da coluna, que naquele momento estava já a cruzar a crista de um pequeno outeiro. O centurião
afastou-se do caminho dos homens quando o corredor parou junto à Sexta Centúria.
- Senhor, cumprimentos do centurião Túlio; ele manda avisar que Córdio e os homens estão à vista.
Cato não evitou um pequeno sorriso perante a clareza do aviso, e depois deu a sua resposta ao mensageiro.
- Agradece-lhe por mim, e diz-lhe que estou consciente da situação.
O homem franziu o cenho perante a estranha mensagem.
- Senhor?
- Limita-te a dizer-lhe exactamente o que te disse.
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- Sim, senhor. - O legionário saudou e afastou-se a correr pela coluna, até alcançar Túlio, que seguia na vanguarda. Cato sentia alguma ansiedade por se ver forçado
a deixar o destino da coorte nas mãos do velho centurião. Não houvera porém outra forma de lidar com os acontecimentos. Já era suficientemente complicado eliminar
Máximo do quadro. Qualquer tentativa de fazer com que Macro ou ele mesmo tomassem o controlo da coorte fracassaria, portanto, teria que ser Túlio a assumir esse
papel, para não exigir demasiado da credulidade dos homens.
Quando a retaguarda da coluna passou pela crista, Cato perscrutou a distância, e avistou Córdio e os homens que levara, atarefados a alargar o fosso que cruzava
a estrada que se dirigia ao coração do pântano. O centurião interino envergava uma capa vermelha para se distinguir dos legionários, e Cato não pôde deixar de suspeitar
que esta tinha sido subtraída ao espólio de Macro, e que o outro aproveitara as roupas do centurião com tanto à-vontade como aquele que tinha exibido ao assumir
o comando que lhe pertencera. Era um pensamento mesquinho, e Cato irritou-se consigo mesmo por lhe ter cedido. Córdio limitara-se a obedecer às ordens do comandante
da coorte. O facto de o ter feito com grande entusiasmo era irrelevante, considerou.
As centúrias acabadas de chegar foram-se dispondo dos dois lados da estrada, até receberem ordens para largar os escudos e os dardos e se dirigirem ao vagão para
receber pás e picaretas. Os oficiais puseram-nos imediatamente a trabalhar no fosso e no baluarte.
- Os teus não, Cato. - Anunciou Túlio quando a Sexta Centúria se juntou ao resto da coorte. - Quero que avancem e tomem posição uns oitocentos metros mais adiante.
Pode-se tornar necessário que vocês retardem os primeiros ataques enquanto nós acabamos as defesas aqui. Assim que avistarem o inimigo, enviem-me um estafeta, para
eu saber.
- Sim, senhor. Quanto tempo deseja que os aguentemos?
- O que conseguirem. Se acabarmos os trabalhos antes que Carátaco apareça, enviar-te-ei eu um estafeta. Se for esse o caso, deixa um pequeno piquete na posição e
recua com o resto dos homens. Entendido?
Cato anuiu. Por trás de Túlio via Córdio a dirigir-se para eles. Assim que o centurião interino reconheceu Cato, estacou.
- O que está ele aqui a fazer?
Córdio olhou para ele com ar zangado.
- A mim é que fazes essa pergunta?
Córdio afastou o olhar de Cato e só então reparou em Macro, quando o seu ex-superior directo já dava ordens aos legionários da Quarta Centúria. Semicerrando os olhos
com a suspeição, Córdio voltou a confrontar Túlio.
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- O que é que se está aqui a passar? Senhor, onde está o centurião Máximo?
Túlio acenou com a cabeça na direcção do forte.
- Mandou-nos à frente. Disse que já cá vinha ter.
- A sério? - Córdio olhou para os outros oficiais e notou António.
- Onde está o Máximo?
Antes de responder, António não conseguiu evitar um olhar para Túlio, como que em busca de apoio.
- Como disse o centurião, ficou no forte.
- No forte... Estou a ver. Portanto, enquanto esperamos a todo o momento o assalto de uma força muitas vezes superior, o comandante da coorte ficou no forte
a tratar de umas papeladas insignificantes. É isso... Não é, senhor?
Cato compreendeu que António não os ajudaria mais, e que Túlio não conseguiria manter o embuste por muito tempo. Portanto, avançou, colocando-se à frente de Córdio,
com a mão ostensivamente no punho da espada.
- Já tens as tuas ordens. Volta ao trabalho.
O centurião interino olhou-o com evidente desprezo.
- Não recebo ordens de homens condenados, quanto mais de rapazolas condenados.
Cato avançou mais, ao mesmo tempo que desembainhava a espada e colocava a ponta na axila do outro - sem despertar o alarme nos legionários próximos, já que as acções
foram encobertas pelas dobras das capas dos dois oficiais. O rosto de Cato estava a poucos centímetros do de Córdio, e ele conseguia cheirar o fétido bafo do outro,
marcado pelo consumo de vinho barato.
- Nunca mais te atrevas a dirigir-te assim a um superior. - Avisou Cato num sussurro entre dentes, enquanto pressionava a carne do outro com a espada. Córdio
estremeceu e mordeu o lábio quando a lâmina lhe perfurou a pele. Cato sorriu, e murmurou. - Da próxima vez que falares com tanta insolência, a mim ou a qualquer
outro centurião, juro por todos os deuses que te estripo. Estás a perceber? Não fales, limita-te a mexer a cabeça.
Córdio fitou-o, os olhos a arder de fúria, e depois anuiu.
- Ainda bem. - Cato recolheu lentamente o gládio é empurrou suavemente o outro homem com a mão. - Agora, regressa à tua unidade e cumpre as ordens que recebeste.
Córdio levou a mão ao ponto ferido, e franziu o sobrolho. Cato aguentou o olhar do outro, e depois acenou em direcção às fortificações. Córdio finalmente desistiu.
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- Muito bem, senhor.
- Assim é melhor. Agora vai.
Recuou alguns passos antes de se virar e se dirigir a passos largos para os homens da Terceira Centúria. Não olhou para trás, mas Cato vigiou-o o tempo suficiente
para se assegurar que ele fazia o que lhe tinha sido ordenado. Depois, ainda tenso e a tremer, virou-se para Túlio e António.
- Bem feito, miúdo. - Um sorriso aflorou às gastas feições de Túlio. - Aquele já não chateia mais.
- Por agora, senhor. - Retorquiu Cato. - Temos que o manter debaixo de olho. Pode bem causar-nos problemas. O que me lembra: onde estão os guardas pessoais de Máximo?
- Ali, ao pé do vagão dos equipamentos.
Cato olhou na direcção apontada e viu os seis homens que aguardavam, os escudos no solo e as lanças apoiadas nos ombros.
- Senhor, se não se importa, levo-os comigo.
- Para quê? - Túlio franziu o cenho. - Precisamos de todos os homens aqui.
- Eles fizeram um juramento de protecção do comandante da coorte. Se Córdio conseguir falar com eles, pode tentar convencê-los a ajudá-lo da próxima vez que tentar
confrontar-nos.
- Achas que ele vai tentar? - Quis saber António.
- Se Carátaco não aparecer antes de terminados os trabalhos nas defesas, os homens vão-se ver com algum tempo livre, e vão fazer o que é habitual nessas circunstâncias:
falar. Dada a minha presença, a do Macro, e a ausência de Máximo, calculo que não lhes faltará tema.
António pôs-se a contemplar as botas.
- Estamos fodidos, é o que é.
- Seja qual for a maneira como olhares para a situação, sim. - Sorriu Cato. - Bom, senhor, e os guardas?
- Leva-os. - Concedeu Túlio. - Passamos sem eles. E agora, é melhor que vás com os homens para a posição que te indiquei.

A Sexta Centúria atravessou as portadas que bloqueavam a estrada. Os legionários que se atarefavam por ali pararam para os ver passar, mas depressa os berros dos
oficiais os fizeram retomar o trabalho. Macro estava de pé no bàluarte, e acenou uma saudação a Cato, enquanto ordenava aos homens que cravassem as estacas que tinham
trazido do forte, e que ali teriam que servir de paliçada rudimentar. O portão era recuado em relação aos baluartes, que curvavam para dentro, de forma que os atacantes
se
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veriam flagelados de três direcções se tentassem assaltar a entrada. À medida que a centúria se afastava das fortificações, o terreno de ambos os lados da estrada
começou a apresentar poças de lama, e depois charcos de águas paradas, dos quais emergiam os caules pálidos dos juncos, cujas coroas se mantinham imóveis no ar parado
e abrasador.
Quando alcançaram a primeira curva do caminho, Cato parou, para contemplar as actividades do resto da coorte e para avaliar a distância que tinham percorrido. Era
essencial que se familiarizasse com a topografia da área. Se o inimigo surgisse antes de Túlio os chamar, a centúria teria que efectuar uma retirada enquanto combatia.
O peso das armas e do restante equipamento tornar-lhes-ia impossível ser mais rápidos do que os bretões, os quais estariam, em todo o caso, sedentos de sangue romano.
Teriam apenas um curto avanço sobre as forças de Carátaco, e depois teriam que recuar, combatendo a cada passo, para se juntarem ao resto da coorte, que estaria
freneticamente a tentar concluir as defesas. Seria por pouco - se conseguissem escapar de todo. Mas se o seu sacrifício permitisse a Túlio completar as defesas,
então, talvez a Terceira Coorte conseguisse deter o exército bretão. Pelo menos o tempo suficiente para que Vespasiano atravessasse o pântano, fechasse a armadilha
e esmagasse Carátaco.
Cato sorriu perante tal pensamento. Seria o fim de qualquer resquício de resistência ao domínio romano e, a partir daí, os dois lados podiam então dedicar-se à tarefa
de transformar aquela bárbara ilha do fim do mundo numa próspera província civilizada. Já estava farto de matar guerreiros nativos que tinham muito mais coragem
do que bom senso. Eram homens valorosos e, sob comando adequado, tornar-se-iam firmes e valiosos aliados de Roma. Tudo isso se tornaria possível depois da derrota
de Carátaco... E, nesse momento, o sorriso morreu-lhe nos lábios.
A derrota do inimigo só aconteceria se Vespasiano chegasse a tempo de o esmagar contra as defesas da Terceira Coorte. Tal como tinha sugerido António, era perfeitamente
possível que tal não sucedesse. De facto, era até possível que naquele momento o legado não estivesse a conduzir as suas forças naquela direcção. E até era possível
que Fígulo não tivesse conseguido alcançar a Segunda Legião, para não dizer nada sobre conseguir convencer Vespasiano a levar os seus homens por um caminho estreito
pelo coração de um pântano que era controlado pelo inimigo.
Cato compreendeu que tinha estado sempre a contarcom a aceitação pelo legado de um risco calculado que o poderia levar a excelentes resultados. Nesse momento, desejou
ter sido ele a dirigir-se a norte, ao encontro do legado, não confiando na capacidade do optio para o convencer. Mas, nesse caso, Fígulo teria que ter ficado encarregue
de alcançar a coorte e da muito mais árdua tarefa de convencer Máximo das intenções do
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inimigo, ou de o remover do comando, se ele se mostrasse inflexível. Cato não podia estar em dois locais diferentes em simultâneo, mas também não era capaz de confiar
noutro homem para desempenhar aquelas tarefas a contento. Era precisamente o tipo de problema que fazia com que o trabalho de um oficial fosse tão complicado. A
indecisão era horrível, mas a constante análise das possibilidades depois de definido um rumo era uma verdadeira tortura. Tudo seria mais simples se fosse capaz
de deitar as coisas para trás das costas e aceitar simplesmente as consequências das suas decisões. Como fazia Macro.
Tentou parar de debater aquelas questões consigo mesmo. Correu para a frente da centúria e adiantou-se uns cem passos, para avaliar o terreno que se lhe deparava.
A estrada seguia pelo terreno mais elevado, por pouco significado que a expressão tivesse, e evitava os charcos e lodaçais que a rodeavam. Nos pontos em que existia
alguma terra firme, cresciam apertados maciços de giestas e algumas árvores mirradas. Para lá disso, grandes extensões de juncos impediam a vista, pelo que o aviso
sobre a aproximação do inimigo seria curto. Irritado, Cato deu uma palmada na perna. A tensão começou a fazer-se sentir no seu peito enquanto se internava com os
homens pelo pântano, sempre à espera de se deparar com Carátaco e os seus guerreiros na curva seguinte do caminho.
Assim que calculou que tinham andado o suficiente, ordenou à centúria que fizesse alto. A formação reordenou-se, passando de coluna a linha, numa frente de doze
homens e uma profundidade de seis, ocupando toda a largura da estrada; os flancos eram protegidos por densos maciços de arbustos cheios de espinhos, capazes de arrancar
a pele a qualquer homem que os tentasse atravessar. Dois homens foram enviados para uma posição adiantada, a duzentos passos, para alertarem a unidade quando o inimigo
se aproximasse.
Cato virou-se para os homens, recordando brevemente o momento em que o tinha feito pela primeira vez, depois de ser nomeado centurião. Recordava-se de muitas das
faces duras que o encaravam, e sentiu uma renovada confiança na capacidade daqueles homens para enfrentarem o inimigo e serem capazes de prevalecer.
- À vontade! - Ordenou. - Mas mantenham as posições na formação.
Piscou os olhos ao olhar para o céu brilhante, e sentiu o suor a escorrer sob a pesada túnica militar que envergava por baixo da armadura. Tinha a garganta seca,
os lábios inchados e gretados e a língua parecia-lhe áspera,
- Podem usar os cantis, bebam bastante. O mais provável é que daqui a bocado estejamos todos demasiado ocupados para beber outra vez.
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Alguns dos homens sorriram, mas a maior parte manteve a postura rígida e o olhar em frente, até Sétimo dar a ordem para descansar. Depuseram então os escudos e dardos,
e sentaram-se ou agacharam-se sobre a seca e dura terra do caminho. Alguns pegaram imediatamente nos cantis, enquanto outros tiraram lenços do pescoço e limparam
o suor que lhes escorria pelo rosto.
Sétimo aproximou-se de Cato.
- Senhor, os rapazes podem tirar os capacetes?
Cato perscrutou a estrada. Tudo parecia calmo, e não havia qualquer sinal de alarme da parte dos dois vigias.
- Muito bem.
Sétimo fez a saudação e virou-se para os homens.
- Bem, rapazes, o centurião autorizou-vos a tirarem os capacetes. Mas mantenham-nos à mão.
Ouviram-se murmúrios de aprovação, enquanto os legionários se debatiam com os laços que lhes prendiam os pesados capacetes e os removiam com alívio. As protecções
internas de feltro estavam tão ensopadas que se tinham colado ao escalpe dos homens e tinham que ser removidas em separado. Por baixo, os cabelos também estavam
colados ao crânio, como se tivessem estado todos numa sala de vapor nos banhos.
Cato lançou um derradeiro olhar aos vigias, e depois sentou-se também, a uma curta distância à frente dos homens. Os dedos desapertaram as tiras do capacete e ele
tirou-o, apoiando-o no colo, e não evitando sujar os dedos na fina película de poeira que cobria o topo do capacete. Pô-lo no chão ao seu lado e pegou no cantil
que trazia ao cinto. Tinha acabado de tirar a rolha e de começar a levá-lo aos lábios, quando se ouviu um grito distante. Virou-se imediatamente para ver o que se
passava, no que foi imitado por muitos dos homens. Um dos vigias corria pelo caminho, na sua direcção. O outro homem tinha ficado ainda a observar algo, lá atrás.
Mas, no momento seguinte, virou-se e correu atrás do companheiro.
O vigia mais próximo apoiou o dardo no pescoço enquanto corria e, por esta altura, o aviso que lançava já era audível para todos os homens da Sexta Centúria.
- Vem aí!
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XXXVIII

Cato largou o cantil e pôs-se em pé de um salto, berrando ordens:
- Às armas! Às armas! Mexam-se!
Ao seu redor, os legionários apressavam-se, enfiando protectores e elmos na cabeça e atrapalhando-se com as correias que tinham acabado de desapertar momentos antes.
Todos os desconfortos da fome e da sede se varreram dos seus pensamentos enquanto se precipitavam sobre o armamento. Do caminho vinha o grito contínuo do vigia,
que corria desesperadamente para se juntar aos seus camaradas:
- Eles vêm aí!
Escudos e lanças foram levantados do solo poeirento e colocados em posição, à medida que os legionários se preparavam. Cato empunhou a espada e agitou-a no ar, para
atrair a atenção dos seus homens.
- Sexta Centúria! Sexta Centúria, preparar dardos!
Alguns dos soldados tinham, por instinto, pegado nas espadas; depois da ordem, voltaram a embainhá-las e sopesaram as hastes dos seus dardos, enquanto olhavam ansiosos
para o caminho. Cato virou-se para apreciar o mesmo panorama, e desejou que os vigias fossem mais rápidos. O primeiro aproximou-se, esgotado pelo esforço de correr
de volta à centúria com todo o pesado equipamento e armamento. Parou à frente de Cato e dobrou-se, tentando recuperar o fôlego.
- Relatório, homem, depressa! - Irritou-se o centurião.
Sim... senhor. - O vigia endireitou-se à custa da força de vontade, e engoliu, para limpar a garganta. - Com a sua licença... O inimigo aproxima-se, senhor. Talvez
a quatrocentos ou quinhentos metros, pelo caminho.
- Composição das forças?
- Cavalaria e infantaria, senhor. Havia uns oito a dez batedores à frente. Quando nos avistaram, regressaram à coluna principal.
- Vão relatar o que viram. - Concluiu Cato. - A seguir, Carátaco
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deve enviar uma força razoável para nos fustigar, enquanto o grosso da coluna avança.
Sétimo fez um som de desprezo
- Estão a perder tempo. Não têm espaço para uma formação decente, vão ter que nos enfrentar numa frente estreita. Vai-lhes custar mais a eles do que a nós.
Cato sorriu, enquanto perscrutava o caminho. Não valia a pena lembrar ao optio que uns milhares de bretões teriam sempre alguma possibilidade de levar a melhor sobre
um punhado de legionários. Voltou-se de novo para o vigia.
- Vais correr até ao centurião Túlio. Apresenta-lhe os meus cumprimentos, e diz-lhe que o inimigo está à vista. Vamos recuar devagar, e atrasar a progressão dos
bretões o mais que pudermos. Percebeste?
O legionário anuiu. Cato pôs uma mão em pala sobre os olhos para proteger a vista do brilho do Sol, e voltou a observar o caminho.
- Onde é que está o outro vigia?
O homem ao seu lado voltou-se também, seguindo o olhar do centurião.
- O Décimo estava a ver se conseguia perceber quantos eram, antes de voltar, senhor. Aí vem ele.
Uma figura surgiu à distância, escorregando na terra do caminho quando fez a curva, a cabeça baixa e o pesado escudo a oscilar à medida que o seu portador corria.
Os seus camaradas lançaram gritos de encorajamento, enquanto Décimo corria o mais que podia. De vez em quando, o capacete faiscava, sempre que ele virava a cabeça
para tentar perceber se alguém o perseguia. Quando ainda estava a cerca de cento e cinquenta passos do resto da centúria, surgiu na curva da estrada o primeiro cavaleiro
inimigo. Cato pôs a mão em concha e gritou com os outros homens, enquanto o optio franzia o sobrolho. Um veterano como ele não aprovava com certeza que um oficial
não se portasse com uma certa distância. Ele que se lixasse, pensou Cato. Havia um tempo e um lugar para agir de forma fria e rígida, mas não era de todo aquele.
- Corre, homem! Corre! Os sacanas estão quase em cima de ti!
Décimo atirou o dardo fora, mas continuou a empunhar o escudo,
e esforçou-se por acelerar o passo. Lá atrás, os mais de trinta guerreiros inimigos incitaram as montadas, decididos a derrubar o romano antes que ele alcançasse
a segurança da firme linha de escudos vermelhos que interrompia o caminho. As pontas das suas lanças resplandeceram ao sol quando eles as baixaram, apontando-as
às costas do homem que fugia à sua frente.
- Não vai conseguir. - Declarou Sétimo. - Já está praticamente apanhado.
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- Não. - Respondeu Cato de imediato. - Vá, Décimo! Corre!
A distância que o legionário ainda tinha que percorrer era curta, mas a que o separava dos perseguidores era ainda menor.
- Como lhe disse... - O optio nem tentou disfarçar o ar ufano
com que pronunciou as palavras, e Cato sentiu que lhe fervia o sangue nas veias perante o desinteresse que o homem mostrava pela sorte do camarada. Quanto a si,
se houvesse algo que pudesse fazer, os cavaleiros não apanhariam Décimo. O centurião voltou as costas ao triste espectáculo, dirigindo-se aos homens.
- Primeira fila! Preparar dardos!
Os homens levaram um momento a responder, tão atentos que estavam ao que se passava à sua frente.
- Preparem a merda dos dardos, porra! - Vociferou Cato.
Desta vez, os homens ergueram as armas, avançaram dois passos,
e puxaram os braços atrás. Décimo apercebeu-se do movimento, e vacilou por instantes, antes de voltar a lançar-se na direcção da linha de escudos. Logo atrás, os
bretões soltaram gritos de vitória, ao aperceberem-se de que a presa, ainda a trinta passos da segurança, não lhes escaparia.
- Décimo! - Gritou-lhe Cato. - Para o chão!
O aterrorizado legionário percebeu finalmente a ideia do centurião, e atirou-se para o solo, rolando para o lado e cobrindo o corpo com o escudo, tão completamente
quanto lhe foi possível, enquanto Cato dava a ordem à fileira da frente.
- Dardos... lançar!
Ouviu-se um coro de grunhidos de esforço, e então dez hastes negras atravessaram o ar, passando sobre Décimo e atingindo os cavaleiros mais próximos com um ruído
suave de impacto, à medida que as pontas aguçadas penetravam a carne de homens e animais. Imediatamente a paisagem se encheu dos relinchos de dor de dois dos cavalos,
e do resfolegar dos outros que tentavam evitar os seus congéneres feridos. Um dos guerreiros tinha sido abatido por uma lança que lhe trespassara o peito, e caiu
por cima de Décimo, fazendo com que a haste do dardo se quebrasse com um estalo. O homem ainda se agitou por instantes, mas depois morreu.
O ímpeto da carga tinha sido quebrado, e os cavaleiros inimigos em
redor do amontoado de cavalos feridos que esperneavam em todas as direcções. Décimo percebeu que aquela era a sua oportunidade, afastou o cadáver de cima do escudo,
pôs-se de pé e voltou a lançar-se na direcção das fileiras da centúria, deixando o escudo para trás.
- Despacha-te! - Gritou-lhe Cato, quase em desespero. - Abram alas!
Os legionários deram passos laterais, e Décimo dirigiu-se ao
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espaço que surgira entre os seus escudos. No preciso momento em que ele alcançava os camaradas, Cato apercebeu-se de algo que voava pelo ar, e o homem deixou-se
cair nas linhas romanas com um grito de dor. Cato abriu caminho até junto dele, e ajoelhou-se. O cabo de uma lança ligeira trespassava-lhe a barriga da perna mesmo
acima do cano da bota, e o sangue escorria do local em que a ponta de ferro penetrara a carne.
- Merda! Isso dói! - Berrou Décimo, cerrando os dentes.
Cato olhou para o caminho e viu que os cavaleiros tinham recuado até uma distância segura, mas que se reagrupavam e preparavam uma nova carga.
Sétimo aproximou-se, avaliou o ferimento e dirigiu-se a Cato:
- Segure-o!
Agarrando firmemente na haste e assegurando-se de que o ângulo era o correcto, o optio puxou repentinamente a lança, fazendo com que Décimo gritasse em agonia. A
ponta soltou-se e o sanguecorreu livremente pela abertura. O optio examinou o ferimento sem perda de tempo, e depois arrancou o pano que o legionário tinha ao pescoço
e ligou-lhe a perna com força.
- Até foi muito bem feita! - Admoestou. - Quem é que te mandou largar o escudo? Quantas vezes te disseram para não o fazeres, nos treinos?
Décimo pestanejou.
- Desculpe, senhor.
- Agora levanta-te. Com esse ferimento, não nos serves para nada. Regressa para junto da coorte.
O legionário inquiriu Cato com o olhar, e este anuiu. Cerrando os dentes, Décimo pôs-se de pé e arrastou-se pelas linhas dos seus camaradas. Começou a percorrer
a estrada, deixando um rasto de gotas de sangue que se soltavam do penso já ensopado.
Uma voz avisou:
- Aí vêm eles outra vez!
Cato ergueu o escudo e abriu caminho até à frente. Ao mesmo tempo, Sétimo apressou-se a tomar o seu lugar na ponta direita da centúria. O centurião olhou em redor,
e viu que os seus homens estavam firmemente decididos a aguentar o embate da carga inimiga. Mesmo atrás de si, o porta-estandarte da centúria tinha desembainhado
a espada e aguardava, inclinado para a frente, expectante.
- Estandarte para a retaguarda! - Avisou-o Cato. O homem fez uma careta, depois voltou a embainhar o gládio e encaminhou-se para as linhas de trás da pequena
formação. O centurião meneou a cabeça, irritado. O homem devia saber muito bem que o seu primeiro dever era proteger o
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estandarte e não atacar o inimigo. Se ainda estivessem vivos no dia seguinte, teria que ter uma palavra com ele.
Um grito selvagem marcou o arranque dos cavaleiros, enquanto os cascos das suas montadas martelavam a terra seca da estrada com um ruído ensurdecedor. Por instantes,
Cato considerou a possibilidade de ordenar uma nova rajada de dardos, mas depois lembrou-se de que a centúria ia com certeza precisar de todas as armas que tinha
ao seu dispor nas duras horas que se aproximavam.
- Escudos erguidos! - Gritou. - Segunda fila! Passar dardos para a frente!
As pontas metálicas das lanças moveram-se pelo ar até que as hastes ficaram ao alcance dos homens na fila da frente. Cato agarrou numa e baixou-lhe a ponta na direcção
dos cavaleiros que se aproximavam velozmente. De ambos os lados, os seus homens seguiram-lhe o exemplo, fazendo as pontas passar pelos intervalos entre os escudos.
Cato dobrou o pescoço, de forma a que o seu rosto ficasse protegido pela borda do escudo, e avaliou a carga inimiga. Os bretões soltavam os seus gritos de guerra
com expressões exultantes, mesmo antes de as suas montadas embaterem nos romanos. No momento seguinte, ouviu-se o impacto dos corpos nos escudos, e os gemidos de
legionários empurrados pelo embate. Cato sentiu o braço vacilar quando o flanco de um cavalo se veio empalar na ponta do dardo que segurava. O animal empinou-se,
quase lhe arrancando a arma, e Cato recuperou-a com um puxão selvagem que abriu um golpe horrendo na pele lisa do cavalo. Algo faiscou sobre a sua cabeça, e mal
teve tempo de se agachar quando uma ponta de lança se dirigiu a ele, falhando-lhe o crânio por pouco mas atingindo a guarda lateral que protegia o pescoço com um
ruído metálico.
A cabeça foi-lhe atirada para trás e viu-se de repente a olhar para cima, para a cara selvagem do cavaleiro adversário, como que congelada num esgar, dentes estragados
à mostra por baixo de um bigode escuro e comprido. Por instinto, Cato rodou a sua própria lança, atirando-a aos olhos do inimigo. Antes que o golpe o atingisse,
o outro puxou ferozmente as rédeas e fez o cavalo afastar-se, desviando a haste da lança.
Por momentos, Cato viu-se sem adversário, e aproveitou para olhar em volta. Um cavalo estava pelo solo, esperneando o ar e esmagando o cavaleiro, que gritava. Outros
dois inimigos jaziam na estrada, feridos de morte, um deles a agitar-se enquanto apertava as mãos sobre a horrível ferida que lhe rasgava o ventre. Mas nem um dos
romanos tinha sido abatido. Depois do embate, tinham recuperado, e mantinham a parede de escudos em boa ordem, enquanto golpes de espadas e lanças eram aplicados
sem sucesso contra as paredes curvas que os protegiam.
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Os cavaleiros bretões mantiveram a pressão por mais algum tempo até que o seu comandante lançou uma ordem que os fez repentinamente afastar dos romanos, para uma
distância fora do alcance dos dardos. Por trás deles, Cato apercebeu-se da aproximação da cabeça da coluna inimiga, que descrevia a curva onde tinham estado postos
os dois vigias romanos! Era o momento de iniciar a retirada.
- Retirar! Optio!
- Senhor?
- Leva metade dos homens. Recua cem passos e forma uma nova linha de defesa. Prepara a abertura de uma passagem para nós, quando chegarmos lá.
- Sim, senhor!
Sétimo reuniu os homens, e conduziu-os em corrida pela estrada até alcançarem um ponto em que o espaço de ambos os lados da estrada estava preenchido por espessos
maciços de arbustos. Deu a ordem de alto, e construiu uma nova formação.
Cato, satisfeito com a acção do optio, avaliou a situação em que ele e os seus homens se encontravam. A cavalaria inimiga preparava mais uma carga, verificando os
arreios e as armas. Assim que o primeiro homem fez menção de lançar a sua montada, Cato ordenou que os dardos fossem preparados. Quando se aperceberam das mortais
lanças preparadas para os receber, os cavaleiros hesitaram e refrearam as montadas, ainda fora do alcance dos lançadores.
- Boa. - Murmurou Cato. - Dardos ao ombro! Sexta Centúria, preparar para recuar... marche!
Os legionários procederam a uma retirada em boa ordem, mantendo-se virados para o inimigo e recuando pé ante pé, para evitar qualquer tropeção. Os cavaleiros ficaram
a ver o movimento dos romanos sem reacção, até que começaram a assobiar e a provocar os legionários enquanto estes prosseguiam pela estrada. Um dos homens de Cato
começou a responder com alguns insultos.
- Silêncio! - Gritou o centurião. - Ignora esses tipos. Não temos nada a provar a essa malta. Não são os nossos homens que jazem mortos pela estrada!
As cinco secções comandadas por Cato continuaram a recuar lentamente, na direcção de Sétimo e dos outros homens da centúria. Mesmo assim, a distância entre os romanos
e a cabeça da coluna de Carátaco tinha-se estreitado consideravelmente, quando Cato passou pela brecha na
formação de Sétimo.
- Agora é a minha vez de recuar. - Disse-lhe Cato. - É bèm possível que a infantaria deles vos alcance antes de chegarem ao pé de mim.
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- Assim parece, senhor. - Concordou Sétimo. - Não se afaste
muito.
- Não o farei. Boa sorte.
- Que se foda a sorte. - Resmungou o optio. - Para nos safarmos desta vai ser precisa a porra de uma intervenção divina, com certeza.
- Não te enganas. - Cato sorriu. - Dá-lhes trabalho, optio.
Sétimo saudou-o e virou-se, para verificar se a sua escassa linha
defensiva estava bem apertada e preparada para resistir ao assalto que se aproximava. Cato prosseguiu com as suas secções pela estrada, e fez alto quando chegaram
a uma curva. Ordenou aos homens que formassem de novo. Ao longe, por cima dos arbustos e árvores raquíticas, conseguia ver as figuras distantes do resto da coorte,
ainda atarefada no reforço do baluarte e da paliçada.
- Já falta pouco, rapazes!
- A mim parece-me bem longe. - Alguém resmungou.
Cato repreendeu-o imediatamente.
- Pouco barulho!
Virou-se para ver como se estava a safar o optio. Sétimo já tinha iniciado o recuo, e a última fileira movia-se lentamente. A curta distância, os cavaleiros tinham-se
retirado para fora da estrada, e a coluna principal de infantaria do inimigo avançava a toda a velocidade, desejosa de alcançar os odiados romanos e de os desfazer.
Junto à frente da coluna, via-se um carro de combate bretão. De pé na plataforma, por trás do condutor, estava Carátaco, de cabeça e peito descobertos, uma descomunal
corrente de ouro em volta do pescoço musculoso. Uma das mãos segurava o cabo de uma enorme lança de guerra, quase duas vezes maior do que o próprio homem que a segurava.
A outra mão descansava sobre a borda da biga; apesar do mau estado da estrada, o comandante bretão mantinha-se firme e equilibrado sobre o veículo, demonstrando
a sua invencível autoconfiança.
Carátaco ergueu a lança e apontou com ela para os romanos que recuavam, num imperioso gesto de comando. Imediatamente os seus guerreiros lançaram um rugido e atiraram-se
para a frente, espadas e lanças preparadas para desferir golpes. Sétimo interrompeu o recuo dos seus homens, reagrupou-os, e deu ordem para o lançamento de dardos.
Era uma medida desesperada, e Cato perguntou-se se o optio teria permitido que o receio se sobrepusesse ao bom senso. O efeito da rajada no espaço confinado da
estrada devia ser devastador, mas a verdade é que, depois disso, os legionários não teriam mais do que as espadas para se defenderem.
As ordens que Sétimo gritava mal eram audíveis sobre o clamor dos bretões.
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- Dardos... Lançar!
O habitual véu escuro pareceu soltar-se das posições romanas, desenhar um arco pelo céu e abater-se sobre os nativos. Os gritos de guerra sofreram uma interrupção,
que permitiu a Cato e aos homens ouvir o impacto dos dardos: um coro de sons graves que depressa deram lugar a gritos de dor e imprecações. Sétimo ordenou aos homens
que prosseguissem a retirada.
Houve uma curta pausa, enquanto os bretões se desviavam dos mortos e feridos que se empilhavam na estrada, trespassados por lanças em quase todos os ângulos. Mas
logo os gritos de guerra voltaram a ser entoados, e a massa bretã se lançou ao ataque. Porém, o ímpeto colectivo da sua carga já tinha sido quebrado, e foi quase
individualmente que se lançaram sobre os escudos e as lâminas refulgentes dos inimigos. Os primeiros foram abatidos sem grande esforço, e os legionários nem se deram
ao trabalho de reduzir o andamento enquanto tentavam juntar-se a Cato. Mas quando os inimigos voltaram a carregar em conjunto, Sétimo e os seus homens viram-se forçados
a refrear o passo, acabando por quase parar, e a lutar para manter a formação. Para se manterem vivos, de facto.
À medida que um maior número dos combatentes inimigos se juntava à confusão, os legionários retomaram o movimento na direcção de Cato, mas desta vez não estavam
a recuar, estavam mais a ser empurrados. Enquanto assistia à aproximação, Cato percebeu que agora era só uma questão de tempo até que Sétimo perdesse tantos homens
que não tivesse mais condições para manter a formação. Nessa altura, os sobreviventes seriam separados e facilmente abatidos. A forma de recuo que a Sexta Centúria
tinha estado a utilizar tinha-se esgotado, compreendeu o centurião. A única hipótese que lhes restava era manterem-se unidos.
À medida que os homens de Sétimo passavam pela brecha aberta para eles, Cato gritou na direcção do optio.
- Forma os teus homens logo por trás dos meus. Não podemos arriscar-nos a continuar com o mesmo esquema.
Sétimo acenou em sinal de concordância, e dispôs os seus homens na posição indicada, enquanto as cinco secções de Cato, mais descansadas, assumiam o combate.
Agarrando com decisão o gládio e lançando o escudo para a frente e para cima, Cato avançou para a primeira fila do combate. Logo um forte golpe de machado se abateu
sobre o seu escudo, forçando-o a dar um passo atrás. Mas aquele tipo de combate próximo, sem espaço para grandes movimentos, era precisamente aquilo para que as
legiões treinavam, e Cato não tentou sequer contrariar o golpe. Amparou-o, mas logo transferiu o peso para o pé que fincou no solo e lançou-se contra o inimigo,
ficando satisfeito
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ao sentir o impacto do escudo contra um corpo. Ouviu-se um urro de dor e surpresa, e ele aproveitou para dar uma estocada com o gládio, por fora do escudo, sendo
recompensado por um choque que lhe percorreu o braço. Puxou a lâmina para si, notando o sangue que manchava alguns centímetros na ponta da espada. Muito provavelmente
uma ferida fatal, aplicada em alguém a quem nunca chegara a ver a cara, apercebeu-se com algum espanto.
Sofreu outro impacto no escudo, e desta vez surgiram dedos na borda superior, a poucos centímetros do seu rosto, a tentarem arrancar-lhe a protecção. Cato segurou-a
com toda a força e então lançou o capacete para a frente, esmagando os dedos do combatente inimigo com a protecção metálica por cima dos olhos. Os dedos desapareceram
e Cato voltou a atirar o escudo para a frente, desta vez sem atingir ninguém; então deu um passo atrás para regularizar a respiração.
- Sexta Centúria! Sexta Centúria, recuar! Optio?
- Senhor?
- Marca o passo!
- Sim, senhor... Um!... Dois!... Um!... Dois!...
A cada comando, todos os homens recuavam cuidadosamente um passo, sempre enfrentando o inimigo. Cato não se importou de entregar o controlo do ritmo de recuo ao
optio. Quando envolvido em combate corpo a corpo, o mundo de um homem transformava-se numa confusão de golpe e contragolpe, gemidos, gritos de desafio e imprecações
de dor. O instinto, aperfeiçoado por anos e anos de treino impiedoso, tomava o comando, e qualquer consciência da passagem do tempo se perdia na intensidade selvagem
da necessidade de sobreviver, momento a momento.
Enquanto lutava para se manter vivo, Cato poucas possibilidades tinha para pensamentos lúcidos, mas teve relances de Carátaco, a poucos metros de distância, sempre
a incitar os seus guerreiros, lançando gritos de guerra que se ouviam claramente por sobre o clamor do combate, e que levavam os bretões a novos píncaros de ferocidade.
- Um! - Gritou Sétimo.
Se ao menos conseguissem abater Carátaco, conseguiu Cato pensar, enquanto recuava outro passo. Lançou uma estocada contra um pé descalço que tentava arrancar-lhe
o escudo ao pontapé.
- Dois!
Se Carátaco caísse, talvez o espírito de luta abandonasse aqueles demónios que pareciam não conhecer o medo e continuavam a lançar-se contra a barreira de escudos
romanos. Os legionários da primeira fila começavam a ficar cansados, e dois foram abatidos e rapidamente despedaçados em sucessão. Os seus lugares foram imediatamente
ocupados por
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camaradas da segunda fila, e a retirada continuou em boa ordem, apesar do ataque contínuo. Mais legionários caíram, um a um, juntando-se aos nativos chacinados e
pisoteados pela vaga de guerreiros que fluía pela estrada.
Cato lançou o escudo contra um guerreiro mais velho mas não menos selvagem do que os seus camaradas, e retirou-se da linha da frente.
- Ocupa o meu lugar! - Gritou ao ouvido de um legionário na segunda fileira, e o homem avançou, protegido pelo escudo e com o gládio a postos para desferir golpes
oportunos. O centurião furou por entre a massa compacta de romanos até encontrar Sétimo, que esperava ao lado do porta-estandarte da centúria.
O optio saudou-o com um breve aceno de cabeça.
- Trabalho pesado, senhor.
- Sem dúvida. - Cato obrigou-se a sorrir, tentando oferecer o mesmo ar de profissionalismo calmo e seguro que Macro exibia com naturalidade em circunstâncias similares.
Olhou ao longo da estrada na direcção das fortificações da coorte, que ficavam logo a seguir à última curva no caminho de regresso.
Sétimo seguiu o olhar do centurião.
- Senhor, quer que mande um estafeta pedir que enviem alguns homens para nos ajudar?
A ideia de ter mais alguns legionários a auxiliar na retirada era reconfortante e tentadora. Mas Cato compreendeu que um pedido desse género, mesmo que fosse aprovado
por Túlio, só levaria a que mais homens fossem postos em perigo e enfraqueceria a coorte no lugar em que os soldados eram mais necessários: no baluarte, de forma
a impedir que Carátaco e os seus homens conseguissem sair do pântano e escapar de novo às legiões.
Abanou a cabeça.
- Não. Temos que nos haver sozinhos.
Lentamente, o optio concordou.
- Senhor, seja. Mas não os vamos conseguir aguentar muito mais tempo. E se eles romperem as nossas linhas, será o fim.
A formação romana já não tinha mais de cinco homens de profundidade, e Cato depreendeu que, a menos que conseguissem alcançar as defesas rapidamente, o inimigo acabaria
por varrer da estrada os poucos legionários que ainda resistiam. Tinha que agir naquele momento, e apostar numa rajada decisiva de dardos.
Virou-se para o optio.
- Vou ordenar que os homens lancem todos os dardos que nos restam. Quando atingirem os bretões, recuamos. Com um pouco de sorte,
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conseguimos fazer a maior parte do caminho que falta antes que eles voltem ao ataque. Percebido?
- Sim, senhor. Mas será prudente - gastar todos os dardos?
- Talvez não. Mas ao menos vamos usá-los enquanto podemos,
não é?
Sétimo anuiu.
- Fileiras de trás! - Gritou Cato, a voz a arranhar-lhe a garganta seca - preparar dardos. Apontem para longe. Para aquele filho da puta enorme, ali no carro.
A retirada foi interrompida, e enquanto os homens da frente combatiam os bretões próximos, os de trás, que ainda transportavam os seus dardos, abriram fileiras para
ganhar espaço e prepararam-se para arremessar as armas.
- Lembrem-se, façam pontaria lá para trás! Dardos, lançar!
Desta vez, o ténue véu de hastes negras subiu bem alto, faiscando
no cimo da trajectória e tombando quase a pique para mergulhar na densa massa de homens que rodeavam Carátaco e a sua biga. Cato observou ansioso o impacto, e viu
como um dos dardos atingia o ombro do comandante bretão, derrubando-o para o chão do carro e fazendo-o desaparecer de vista. Acima dos gritos dos feridos elevou-se
um grande lamento, emitido pelos guerreiros que se aperceberam de que o seu chefe tinha sido abatido. A coluna oscilou quando os homens na frente se viraram para
trás para tentar perceber o que se passara; depois começaram todos a dirigir-se para o carro, esquecendo os romanos e abandonando o combate. Cato viu a oportunidade
e aproveitou-a.
- Recuar! Recuar!
O que restava da Sexta Centúria voltou a marchar, afastando-se do inimigo, os homens da retaguarda sempre atentos ao que se passava nas suas costas, enquanto todos
se apressavam na direcção da relativa segurança da coorte. Fizeram a última curva do caminho e, a não mais de duzentos passos em linha recta, erguiam-se as improvisadas
fortificações. A tentação de correr era quase insuportável, mas Cato percebeu que a única hipótese residia na continuação de uma retirada em boa ordem.
- Rapazes, nada de correrias! Mantenham a formação!
Lá longe na estrada, ouviu-se um grito, uma ordem, e Cato reconheceu a voz de Carátaco, incitando os seus homens a prosseguirem o ataque. Estes responderam-lhe com
um coro de rugidos de guerra.
Cato deitou um olhar ao optio.
- Foi bom enquanto durou.
- É verdade, senhor. - Sétimo sorriu. - Não há grande coisa que consiga meter-se entre um celta e a perspectiva de uma boa luta.
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Mais à frente, Cato via as figuras que corriam para guarnecer a paliçada que cortava a estrada e se estendia para ambos os lados do portão, avançando pelo pântano
e terminando em dois torreões. Faltavam percorrer ainda uns cento e cinquenta passos e, quando o portão se abriu, passou um pequeno raio de luz entre as portadas.
Olhou para trás, mesmo a tempo de ver os primeiros guerreiros inimigos a descrever a curva na estrada e a precipitarem-se contra eles, as armas ao alto e as bocas
distorcidas enquanto soltavam selvagens gritos de guerra. O som de cascos e o ranger de rodas anunciou a chegada da biga em que Carátaco se fazia transportar. O
comandante inimigo mantinha-se de pé, com uma mão a amparar o ombro ferido e a outra a incitar os combatentes, agitando a lança. Pouco mais se podia fazer do que
admirar o sentido de missão do homem, que o fazia ultrapassar todas as dores.
Quando a Sexta Centúria já tinha percorrido metade da distância que lhe faltava, Cato arriscou um novo olhar e ficou chocado ao verificar que o inimigo já quase
os alcançara. Pouco mais à frente, estendia-se o fosso defensivo, semeado de estacas aceradas. Logo a seguir, era o baluarte, onde o resto da coorte se debruçava
sobre a paliçada, lançando desesperados incentivos aos seus camaradas. Percebeu que não tinham qualquer possibilidade de chegar ao baluarte antes de serem alcançados
pelos guerreiros bretões.
- Alto! Formar de face para a retaguarda!
Mesmo com o portão aberto e a segurança relativa que ele oferecia ali tão perto, os homens da Sexta Centúria interromperam imediatamente a fuga e obedeceram à ordem
do seu centurião. Viraram-se rapidamente, levantaram os escudos e cerraram fileiras, criando uma formação defensiva compacta. Mas desta vez, quando foram atingidos
pela carga inimiga, os legionários tiveram dificuldade em absorver o impacto. A linha de escudos deformou-se, e um dos homens acabou por ser projectado para trás.
Antes que alguém pudesse ocupar a brecha, um gigantesco guerreiro celta aproveitou para penetrar as linhas romanas, fazendo girar um enorme machado de guerra sobre
a cabeça. Logo o fez descer sobre o legionário que tinha caído. Este apercebeu-se do golpe e levantou o braço numa fútil tentativa de proteger o rosto. O machado
mal foi travado pelo membro, decepando-o e prosseguindo na trajectória que o levou a esmagar o capacete do homem e a enterrar-se profundamente no seu crânio.
- Apanhem esse tipo! - Gritou Cato, quase rouco. - Matem-no!
Três espadas precipitaram-se sobre o bretão, fazendo-o soltar um grunhido e tombar de joelhos, deixando escorregar o machado dos dedos sem vida. Mas antes que a
brecha que conseguira criar nas linhas
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romanas fosse colmatada, outro guerreiro saltou para a ocupar, caindo sobre o seu camarada e lançando imediatamente um golpe com a sua longa espada contra o legionário
mais próximo. O romano mal se conseguiu torcer de forma a que o impacto se desse no ombro da sua armadura segmentada, mas o pescoço não o aguentou e quebrou-se com
um estalo.
Mais inimigos estavam a irromper pela formação da Sexta Centúria, e Cato percebeu que um combate organizado se estava a tornar impossível. Lançou-se para o meio
da confusão, empurrando um dos seus homens e fincando os pés no solo para o ajudar a progredir. Mas a pressão dos bretões era irresistível, e Carátaco continuava
a impeli-los para a frente com brados de encorajamento. O centurião viu-se a ser empurrado, passo a passo, até que as costas dos romanos ficaram à beira do fosso,
com os baluartes a elevarem-se logo atrás. O homem à sua frente estremeceu, entrou em convulsões, e caiu para o lado, no fosso, sendo empalado pelas afiadas estacas
que o revestiam. Cato viu-se em pleno coração do combate, agachado, encostado ao escudo e com o gládio na horizontal, pronto a colher vidas inimigas.
A sua volta, celtas e legionários estavam envolvidos numa luta dura e impiedosa. O colapso da formação romana tinha implicado a junção das duas forças combatentes,
formando uma massa compacta em que as armas de maior dimensão eram difíceis de usar e as espadas curtas da legião tinham todas as vantagens. Os bretões sabiam bem
que estavam em desvantagem naquelas condições, e por isso esmurravam e arranhavam os romanos, com punhos e dedos em busca de pele desprotegida. Com um grito estridente,
um jovem guerreiro lançou-se sobre Cato, agarrando-lhe a mão que empunhava o gládio e tentando com a outra apertar-lhe a garganta. O centurião entrou em pânico por
breves instantes, os músculos paralisados pelo terror, mas depressa o instinto de sobrevivência o fez largar o escudo, cerrar o punho e atingir a face do inimigo
com toda a força. O homem pareceu nem sentir o golpe, continuando a tentar estrangulá-lo. Cato deu-lhe outro potente murro, sem obter resultados visíveis, e então
dirigiu a mão à adaga que usava à cintura. Empunhando-a, cravou-a para cima e para a frente, atingindo o oponente no estômago. O olhar de ódio no rosto do jovem
bretão transformou-se em surpresa e dor. Cato golpeou-o de novo, com as forças que lhe restavam, e sentiu a adaga a rasgar a carne lateralmente, e um súbito jorro
quente na mão e no braço, ao mesmo tempo que o inimigo se aquietava e o corpo escorregava, embora fosse mantido em posição pelos outros corpos que se amontoavam
ao redor.
- Corram! - Gritou Cato aos sobreviventes da sua centúria. - Corram!
A confusão começou a desfazer-se à medida que os legionários recuavam, ou simplesmente viravam costas e corriam na direcção da
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estreita abertura no portão. O combate desenrolava-se agora em corrida, com os romanos a lançarem golpes em todas as direcções enquanto se deslocavam para a segurança,
e os bretões a acossarem-nos como cães que tentavam derrubar uma presa. Cato dirigiu-se para o porta-estandarte e ficou aliviado ao verificar que Sétimo já lá estava,
atacando sem cessar qualquer bretão que se atrevesse a aproximar-se demasiado. Então os três homens, costas contra costas, recuaram para o portão, subindo a custo
os últimos passos da rampa estreita que se enfiava entre as defesas afuniladas. Os romanos que ocupavam a paliçada, em cima, não se atreviam, no entanto, a atacar
os homens que os perseguiam, por receio de acertar nos seus camaradas.
Cato apercebeu-se de que já estavam encostados ao portão, e empurrou o porta-estandarte para o interior.
- Optio, tu também!
- Senhor! - Começou Sétimo a protestar, mas Cato interrompeu-o.
- É uma ordem.
Com as costas contra o portão, Cato pegou num escudo caído e virou-se contra o inimigo. Um a um, os seus homens abriram caminho e passaram por ele, enquanto o centurião
golpeava e atacava com a espada, tentando manter afastados os guerreiros de Carátaco. Por fim, parecia não haver mais romanos ainda vivos do lado de fora das defesas,
mas Cato quis dar uma última vista de olhos para se certificar. Porém, uma manápula agarrou-o por um ombro e puxou-o para o interior do portão.
- Fechem-no! - Gritou Macro, e dois esquadrões de legionários lançaram o seu peso contra as tábuas, ao mesmo tempo que os combatentes inimigos empurravam do lado
de fora, para tentar forçar a abertura do portão. Os legionários estavam mais bem organizados, e rapidamente conseguiram fechá-lo e colocar a tranca no lugar, apesar
de as tábuas estremecerem a cada impacto vindo do exterior.
- Dêem-lhes com força! - Gritou Túlio no baluarte, e Cato viu os legionários lançarem rajadas sucessivas de dardos contra a densa mole humana acumulada junto ao
portão. Os gritos rasgaram o ar, e então cessaram os empurrões contra as tábuas, ao mesmo tempo que os incitamentos e berros dos inimigos se afastavam.
Cato agachou-se, uma mão a descansar sobre o escudo, a outra ainda ferozmente apertada em torno do punho do gládio, que usava para suportar o peso do corpo exausto.
- Miúdo, está tudo bem contigo?
Cato levantou o olhar e abanou a cabeça.
- Estava capaz de beber um copo.
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- Azar. - Macro sorriu ao pegar no cantil. - Por aqui só há
água.
- Bom, terá que servir.
Sorveu uma boa quantidade do líquido morno, e devolveu o cantil ao centurião mais velho. Então, pôs-se lentamente em pé, e olhou sobre o ombro de Macro.
- Que é que se passa agora?
- Veja. - Cato apontou. Uma ténue coluna de fumo erguia-se no céu, a partir do forte.
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XXXIX

- Bom, o que foi agora? - Resmungou Macro. - Com certeza que não conseguiram rodear-nos.
- Não, isso não é possível.
- Porque não?
Cato acenou com a cabeça na direcção do pântano.
- Aquilo é a vanguarda de Carátaco, os primeiros dos seus homens a chegarem junto de nós.
- Então, quem é que está lá atrás, no forte?
Antes que Cato pudesse responder, o centurião Túlio aproximou-se a correr, com a ansiedade estampada no rosto.
- Também já perceberam que se passa ali qualquer coisa?
- Sim, senhor. - Replicou Macro, mantendo a calma. - Por isso é que nos virámos para lá.
- Conseguiram flanquear-nos. Estão na nossa retaguarda. - A mente de Túlio já corria para destinos funestos. - Estamos feitos. Assim que acabarem com a resistência
no forte, atacar-nos-ão aqui. Vamos ser apanhados entre as duas colunas e ser desfeitos. Nunca devíamos ter abandonado o forte. O Máximo tinha razão. - Túlio virou-se
para Cato. - E a culpa é toda tua. É o teu plano, e está a ser um desastre de merda. Nunca te devia ter dado ouvidos.
Cato manteve-se em silêncio, esforçando-se por calar tanto a raiva como o desprezo que o seu superior lhe inspirava, mas que era imperioso não demonstrar. Não era
o momento de se defender das ridículas acusações que denunciavam apenas a cobardia de quem as pronunciava. A situação exigia uma condução cuidadosa, de forma a evitar
que o velho centurião entrasse em pânico e tomasse alguma decisão precipitada e verdadeiramente desastrosa. Para além disso, Cato sabia que Túlio estava errado.
- Devia estar doido quando te escutei. - Continuava Túlio, cheio
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de azedume. - Louco. Não devia ter-te libertado. Aliás, acho que devias ser destituído do comando da tua centúria.
- Senhor, um pouco de calma. - Macro resolveu intervir, dando um passo em frente. - Essas acusações não são justas. Todos concordámos com o plano. A culpa não é
do miúdo.
A atenção e a ira de Túlio viraram-se para Macro.
- Se calhar devia era pôr-vos aos dois sob prisão.
- Senhor, - interrompeu Cato, calmamente, - não devíamos estar a ter esta conversa. Não em frente dos homens.
Túlio olhou em redor e apercebeu-se de que os legionários mais próximos os observavam com curiosidade.
- Voltem aos vossos postos! Atenção ao inimigo!
Os homens desviaram o olhar e tentaram agir como se nunca tivessem estado interessados na confrontação entre os oficiais. Túlio assegurou-se de que nenhum deles
estava à escuta antes de voltar a dirigir-se a Macro e Cato.
- Mais tarde tratarei de vocês os dois. Por agora, preciso de todos os homens capazes de empunhar uma arma. Mas juro-vos, se por milagre escaparmos desta, hei-de
exigir-vos contas por esta embrulhada de merda.
As narinas de Macro fremiam enquanto ele respirava fundo e se aproximava para responder ao outro centurião na mesma moeda. Mas Cato agarrou-lhe no braço e falou
antes que o amigo transformasse uma situação má numa pior.
- Muito bem, senhor. Concordamos em absoluto. Mas primeiro vamos tratar da questão do ataque dos bretões. Mais tarde pode fazer connosco o que bem entender.
O centurião Túlio concordou.
- Muito bem. Temos que sair desta armadilha.
- Se abandonarmos o baluarte - propôs Macro - enquanto aqueles ali estão a lamber as feridas e a prepararem-se para uma nova tentativa, talvez consigamos chegar
ao forte antes que eles nos alcancem. Lá teríamos maiores hipóteses de defesa.
- Supondo que o grupo que está por lá a saquear e destruir é pequeno e conseguimos dominá-lo, claro. - Respondeu Túlio. Contemplou a coluna de fumo que se erguia
à distância. - E, de qualquer maneira, não sabemos que danos infligiram eles às defesas do forte.
- Senhor?
- O que é agora, Cato? Mais algum plano brilhante?
- Não, senhor. Apenas julgo que não vale a pena retirarmos para o forte. Não sabemos o que vamos encontrar por lá. As defesas podem ainda resistir, mas também podem
ter sido derrubadas. E, nesse caso, estamos
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muito melhor aqui. Além disso, penso que não temos que nos preocupar com quem está a atacar o forte.
- Oh, deveras? E o que é que te faz pensar assim?
Cato ignorou o sarcasmo contido na pergunta.
- Não são os homens de Carátaco. É muito mais provável que sejam os aldeãos. É uma oportunidade para obterem a sua vingança. Levarão o que puderem, e destruirão
o resto. Depois, acho eu, acabarão por ver que este combate não é para eles, e que será melhor desaparecerem.
- Achas...
- Se o Cato tiver razão, - Macro olhou ansioso para a coluna de fumo, - o que terá acontecido a Máximo e a Félix? E a Népio? Temos que mandar alguém para os tentar
salvar. Senhor, deixe-me ir. Levo metade de uma centúria e...
- Não vale a pena. - Interrompeu Cato. - A esta hora já estão mortos. Quem quer que tenha ocupado o forte - os aldeãos ou o exército inimigo - não os poupou, por
certo. Além disso, como diz o comandante da coorte, precisamos de todos os homens aqui se queremos aguentar Carátaco. Pelo menos o tempo suficiente para que Vespasiano
nos alcance.
- Se ele vier. - Lembrou Macro.
- Sim, é verdade. - Anuiu Cato. - Se ele vier. Mas agora tudo depende disso. Se a legião não chegar, nada do que fizermos aqui terá qualquer importância. Acabaremos
por ser aniquilados. Mas, se o legado tiver percebido a situação, é vital que aguentemos a passagem tanto tempo quanto possível. Só isso importa. - Cato encarou
Túlio com uma expressão determinada. - Senhor, não temos escolha. É aqui que temos de os enfrentar.
Túlio permaneceu em silêncio algum tempo, enquanto tentava arranjar uma alternativa ao triste esboço da situação que Cato apresentara. Mas quanto mais pensava, menos
escolhas encontrava, e acabou por bater com a mão na perna, em sinal de frustração.
- Muito bem, então. Aqui ficaremos, aqui lutaremos. Macro?
- Senhor?
- Quero um homem naquela crista, para ver se há alguma força a avançar contra nós vinda do forte. Trata disso.
- Sim, senhor.
Túlio despediu-se com um aceno breve e dirigiu-se ao portão, trepando os degraus para aceder ao baluarte.
Macro virou-se para Cato, enchendo as bochechas e deixando depois sair um grande suspiro de alívio.
- Esta foi por pouco. Houve ali uma altura em que pensei que ele nos ia mesmo mandar acorrentar. Achas mesmo que são os aldeãos quem incendiou o forte?
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Cato encolheu os ombros.
- Isso não tem grande importância.
- Não devíamos tê-los deixado lá atrás. - Reflectiu Macro, acusando alguma culpa. - Achas que há alguma hipótese...
- Não. Nenhuma. - Respondeu-lhe Cato, com uma expressão
fechada.
Macro franziu o sobrolho.
- O que é que queres dizer com isso?
Nesse instante, um grito foi lançado do baluarte.
- O inimigo aproxima-se!
Os dois centuriões apressaram-se a subir e a furar entre os legionários que ocupavam a paliçada, até chegarem junto a Túlio. António e Córdio estavam já com ele,
a observar os guerreiros inimigos que se encaminhavam na direcção das fortificações romanas. Cato reparou nos corpos espalhados pelo fosso, dos dois lados do portão;
alguns, apesar de empalados nas aguçadas estacas que preenchiam o fundo do mesmo, ainda se agitavam fracamente.
Túlio distribuiu as ordens.
- Já sabem que posições ocupar. Vão.
Córdio dirigiu-se ao torreão da direita, onde os seus homens se concentravam, equipados com dardos que seriam lançados contra o flanco da força inimiga. A Macro
tinha sido atribuído o outro torreão, e as centúrias de António e do próprio Túlio guarneceriam a paliçada entre os dois torreões.
- Senhor, e os meus homens? - Perguntou Cato.
- Pega nos que sobraram, e forma-os por trás do portão. Ficam como reserva. Se os bretões conseguirem forçar o portão, vocês terão que os aguentar, custe o que custar.
- Sim, senhor.
Túlio desembainhou a espada e ergueu o escudo, e depois rosnou um aviso a Cato.
- Vai. Desaparece da minha frente.
Cato fez a saudação regulamentar e desceu rapidamente do baluarte. Enquanto ele se aproximava, os exauridos sobreviventes da Sexta Centúria iam-se pondo de pé. Fez
uma contagem rápida, descobrindo que já só tinha quarenta e seis homens.
- Sétimo!
- Senhor! - Respondeu o optio, colocando-se em sentido.
- Forma os homens atrás do portão. Espadas e escudos preparados para a acção. Podemos ser precisos a qualquer momento.
Enquanto o optio mandava os homens ocuparem a posição indicada,
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Cato aproximou-se do portão, e examinou-o cuidadosamente. Algumas das tábuas já estavam semi-soltas, depois dos impactos que tinham sofrido aquando do primeiro
assalto.
Voltou-se para os homens.
- Primeira secção! Aqui.
Dois homens saíram da formação e correram na direcção do centurião.
Cato fez uma careta.
- Onde é que estão os outros?
- Mortos e desaparecidos, senhor. - Respondeu um dos legionários. - Perdemos muita gente ali na estrada.
- É verdade. - Reconheceu Cato, antes de olhar para o resto da sua unidade. - Segunda secção, avancem.
Aproximaram-se mais cinco homens, e Cato indicou-lhes o portão.
- Não vamos precisar de o abrir tão cedo. Quero-o reforçado. Usem aquela carroça, deitem-na e empurrem-na contra as portas. Depois cavem e empilhem terra por trás
dela. Deixem os escudos encostados ao baluarte. Ao trabalho!
Os legionários começaram a fazer o que lhes tinha sido ordenado, e Cato foi-se juntar a Sétimo à frente da formação, preparado para reforçar qualquer ponto das defesas
que desse sinal de estar a fraquejar. Vindo do outro lado do baluarte, ouviu-se o rugido dos guerreiros inimigos quando se lançaram ao assalto. Um punhado de setas
e lanças arquearam pelo céu e precipitaram-se sobre a paliçada. Um forte ruído de choque entre metais assinalou o impacto de uma lança no capacete de um dos homens
de Túlio, arrancando-lho e lançando-o para trás, para longe da muralha, a rebolar pelo baluarte de terra até se imobilizar no solo, morto.
- Erguer escudos! - Ordenou Cato, e os homens dispuseram-nos de forma a proteger os corpos, enquanto uma verdadeira saraivada de projécteis se abatia sobre os defensores
na paliçada, por vezes passando para lá deles e vindo atingir os escudos dos sobreviventes da Sexta Centúria. O centurião continuou atento ao que se passava no baluarte,
adivinhando que o inimigo devia ter escalado rapidamente a face externa, já que via homens em combate próximo com os bretões, no extremo da paliçada. Até ali, no
entanto, os defensores estavam a conseguir levar a melhor. Não se via nem uma cabeça celta a emergir sobre a paliçada, numa tentativa de penetração do perímetro.
Mas a luta nada tinha de desigual. Já se contava uma dúzia de corpos romanos espalhados pelo declive interno do baluarte. E havia outros, junto à paliçada. Os que
tinham apenas sido feridos tentavam afastar-se das zonas em que a luta era renhida, para evitar novos ferimentos e
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para não atrapalhar os camaradas que enfrentavam o inimigo.
Junto ao portão, os homens designados por Cato já tinham conseguido derrubar a carroça e empurrá-la firmemente contra as madeiras enfraquecidas. Afadigavam-se agora
no ataque ao solo duro a curta distância do vagão, e a empilharem o material assim obtido contra o mesmo. Entretanto, o portão estremecia devido às acções dos bretões
que se acumulavam do lado de fora, tentando escavacá-lo com espadas e machados. Já se viam algumas lascas a saltar na face interna.
Cato sentia-se imensamente frustrado por ter de permanecer ali, atrás do portão, sem saber como se estava a desenrolar o combate. Suspeitava que, a menos que os
bretões voltassem a recuar, acabariam por conseguir desalojar os romanos que ocupavam a paliçada.
A luta prosseguiu sem tréguas. Nos torreões laterais, os legionários já tinham esgotado os dardos. Aqueles a quem tinham sido distribuídas fundas faziam-nas rodopiar
sobre a cabeça antes de soltar os projécteis letais que iam atingir com grande velocidade a mole de guerreiros que se acumulava à frente das defesas. Os outros lançavam
pedras e outros objectos pesados, numa tentativa desesperada de quebrar o ímpeto de Carátaco e dos seus homens. Cato observou Macro a pegar num calhau da pilha e
a lançá-lo com toda a força para o lado de fora da paliçada. O centurião procurou inteirar-se do resultado do seu lançamento, e daí a pouco levantou o punho em sinal
de triunfo. No momento seguinte, lançava-se pelo solo, para evitar uma seta que atravessou o ar no preciso ponto em que tinha estado.
- Cato! - Berrou Túlio da paliçada, por cima do portão. - Eles trazem um aríete! Leva os teus homens para o portão. Aguentem-no!
- Sim, senhor! Sexta Centúria, embainhar espadas! Sigam-me!
Cato conduziu os homens até à carroça que reforçava o portão.
Encostou-lhe o escudo, e fez força contra ele. Os homens imitaram-no, e quando já não havia mais superfície exposta, encostaram-se aos seus camaradas e empurraram
na mesma. Os sons de impactos na madeira interromperam-se abruptamente, sendo substituídos por um clamor de alegria.
- Preparem-se! - Gritou, e cerrou os dentes.
No instante seguinte, deu-se um tremendo impacto na face externa do portão, e Cato foi empurrado, sentindo-se como se tivesse acabado de receber o coice de uma mula
enlouquecida. Assim que recobrou o equilíbrio, lançou de novo o peso contra o vagão, e depressa sentiu a reconfortante pressão nas costas que indicava que os seus
homens também já tinham recuperado do impacto.
- Aí vem outra vez! - Gritou alguém, e de novo os homens da Sexta Centúria foram lançados para trás. Mas o portão aguentou.
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Lá em cima, Túlio gritava, fazendo-se ouvir sobre o clamor da batalha.
- Usem tudo o que puderem! Ataquem! Matem-me esses filhos
da puta!
O aríete atingiu o portão mais cinco vezes; no último impacto, uma das tábuas estilhaçou-se e projectou farpas de madeira para o interior. Um dos homens gritou de
dor ao ser atingido por uma lasca que lhe rasgou a carne pouco abaixo do olho. Cerrando os dentes, o legionário agarrou no longo pedaço de madeira e extraiu-o. O
sangue escorreu-lhe livremente pela face e pela armadura, mas o soldado voltou a lançar-se contra a carroça, apoiando os seus camaradas. Um bravo, pensou Cato, tentando
imaginar como reagiria a semelhante ferimento. Depois, voltou a atenção de novo para o portão, e apercebeu-se com horror de que este não resistiria a muitos mais
impactos antes de se desfazer.
Deu-se um novo choque, que estilhaçou ainda mais a madeira, mas pareceu ao centurião que o ímpeto tinha sido menor. Notou depois que os gritos do inimigo tinham
diminuído de intensidade, embora não fosse fácil de o perceber com o coração aos pulos e o sangue a rugir-lhe aos ouvidos. Então, ouviram-se gritos de triunfo, mas
levou algum tempo a compreender que eram romanos que gritavam. Gritos, insultos e promessas.
- Devem ter retirado! - Soltou um dos seus homens.
- Calados! - Berrou Sétimo. - Mantenham a posição!
Os gritos na paliçada continuavam, e não se deram mais impactos no portão. Cato esperou mais algum tempo para se certificar de que não havia perigo, e depois mandou
os homens recuarem para a posição anterior, de reserva. Formaram, cansados e ofegantes, mas felizes por saberem que as defesas tinham resistido, e sobretudo por
ainda estarem vivos.
- Centurião Cato! - Gritou Túlio, do baluarte.
Cato inspirou e forçou-se a endireitar-se antes de responder:
- Senhor?
- Os teus homens já devem estar descansados. Vai substituir o António. Coloca os teus homens assim que a Quinta Centúria deixar a paliçada.
- Sim, senhor.
- Descansados? - Resmungou um dos homens de Cato. - Foda-se, aquele deve estar a gozar.
Outros entre os legionários começaram a resmungar, mas Sétimo imediatamente os fez calar.
- Bocas fechadas! Guardem o fôlego para enfrentar os sacanas dos
bretões!
Os murmúrios terminaram, mas o ressentimento ficou a pairar
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no ar. À medida que os homens da Quinta Centúria passavam por ele ao descerem do baluarte, Cato notou que muitos estavam feridos, alguns mal
conseguindo andar.
- Aquilo está mau? - Quis saber um dos homens de Cato.
- Os filhos da puta são doidos. - Foi a resposta do optio, ainda
meio zonzo. - Nunca vi uma coisa assim. Atiraram-se à muralha como se só desejassem a morte... Loucos, é o que eles são.
- Optio! - Cato fez-lhe sinal para se aproximar. - Onde está o centurião António?
- Morto...
- Morto, senhor! - Irritou-se Cato. - Quando falas com um superior, tens que mostrar algum respeito!
O optio colocou-se em sentido.
- Sim, senhor. Desculpe, senhor.
Cato assentiu, e depois aproximou-se mais do outro, sussurrando-lhe:
- Optio, agora estás no comando da tua unidade. É para ti que os homens olham. Não os deixes mal.
- Não, senhor.
Cato observou-o ainda um momento, para se assegurar de que os nervos do outro já tinham recuperado.
- Prossegue.
- Sim, senhor.
- Cato! - Berrou Túlio. - Do que é que estás à espera? Mexe-me esse cu e chega aqui depressa!
- Imediatamente, senhor!
Os homens da Sexta Centúria pegaram nos escudos e seguiram o centurião pelo baluarte acima. Este não estava preparado para o espectáculo que se lhe deparou quando
espreitou pela paliçada. O comentário do optio sobre a loucura que possuía os guerreiros inimigos era amplamente justificado. Os cadáveres empilhavam- se junto à
paliçada. Uma confusão de membros ensanguentados, de escudos e de espadas abandonados estendia-se num triângulo cuja base ficava no baluarte externo e que se prolongava,
estreitando-se, até à entrada do pântano. Aqui e ali, alguns feridos ainda se mexiam. Cato viu um homem cuja espinha tinha sido atravessada por um dardo arrastar-se
na direcção dos seus camaradas, que refaziam a formação na estrada, a uns cem passos de distância, preparando nova vaga de assalto. Conseguiu arrastar as pernas
imobilizadas até se afastar da pilha de corpos, mas depois as forças esgotaram-se-lhe e ele caiu sobre a terra dura do caminho, o torso a brilhar e arfar com o esforço.
Uma vista maravilhosa.
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Cato afastou o olhar do guerreiro inimigo estropiado. Túlio tinha aberto caminho por entre os defensores e tinha-se apercebido do choque do jovem centurião quando
deparara com o sangrento panorama junto à muralha.
Este olhou para o rosto do veterano, e anuiu, atordoado. Túlio avaliou a situação na estrada e abanou a cabeça, espantado.
- Parece que vão fazer outra tentativa a qualquer momento. Será melhor que prepares os teus homens.
- Sim, senhor. - Cato fez a saudação e passou o olhar pela paliçada, apreciando o reduzido número de homens que a guarneciam, até avistar o torreão, onde Macro sorria
enquanto fazia uma ronda para verificar o estado dos seus homens, dando-lhes um amigável toque de encorajamento no ombro à medida que passava por eles. Viu Cato,
e fez-lhe um rápido sinal de que tudo ia bem. O jovem acenou, e dedicou-se ao que lhe tinha sido indicado. Notou o número de cadáveres que se amontoava junto à paliçada.
Quando viesse o próximo assalto, não facilitariam a tarefa aos defensores se ainda ali estivessem.
- Tirem esses corpos do baluarte!
Não houve qualquer cuidado na forma como os seus homens afastaram os corpos dos camaradas, limitando-se a empurrá-los com os pés e a deixá-los rebolar pelo declive
abaixo, braços e pernas aos trambolhões. Assim que esse trabalho ficou concluído, Cato ordenou-lhes que guarnecessem a paliçada, e os legionários ocuparam os postos,
enfrentando o inimigo de gládios prontos. Ao passar uma revista rápida, o centurião ficou satisfeito por não lhes ver no olhar qualquer receio, apenas a determinação
resignada de veteranos experimentados. Manter-se-iam nas suas posições, e lutariam até ser abatidos ou até que o inimigo recuasse. O agrado de Cato pela compostura
que os legionários exibiam era temperado por um lamento. Se o general Pláucio e Vespasiano os pudessem ver agora! A vergonha provocada pela dizimação tinha sido
atirada para trás das costas, e os homens estavam prontos a vender as suas vidas como heróis. Mas, a não ser que o legado chegasse entretanto, as únicas testemunhas
do seu valor seriam os guerreiros inimigos. E estes estavam tão obcecados com a destruição da coorte que pouca apreciação manifestariam pela coragem dos seus adversários.
Cato sorriu para si próprio. Como era estranha a vida nas legiões. Já servia nas Águias há dois anos, porém, cada batalha continuava a parecer-lhe a primeira, e
a última. Interrogou-se se alguma vez se habituaria à peculiar intensidade de sensações que acompanhava cada confronto.
- Homem a aproximar-se!
A voz era distante, e Cato não percebeu a princípio de que direcção vinha. Depois, quando notou as cabeças a virarem-se para a
361
retaguarda, fez o mesmo, e reparou no vigia que Macro tinha colocado, a agitar os braços para chamar a atenção, e depois a apontar na direcção da coluna de fumo
que marcava a posição do forte abandonado. Ninguém se moveu. Um homem isolado não representava uma ameaça, apenas uma curiosidade, e todos esperavam por mais informações
sobre a figura que se aproximava.
O vigia virou-lhes as costas durante alguns instantes, e depois gritou.
- É um dos nossos!
Um dedo gelado de temor subiu pela espinha de Cato. E se fosse Máximo? Ou Félix? A chegada de um deles implicaria a sua morte, de forma tão certa como uma estocada
do inimigo. Mas imediatamente se irritou consigo mesmo, lembrando-se que tal receio era completamente infundado. Sabia bem quem devia ser aquele homem, muito antes
de ele alcançar a crista da colina e se dirigir meio cambaleante para o baluarte.
- Senhor! - O vigia gritou para os defensores. - É Népio.
Túlio virou-se, procurando Cato.
- Centurião Cato, vem comigo.
Desceram e avançaram ao encontro de Népio, enquanto o legionário cobria os últimos metros da encosta.
Túlio parou à frente do homem.
- Informa! O que aconteceu no forte?
Népio lutou para recuperar o fôlego e lançou um rápido olhar a Cato, enquanto humedecia os lábios.
- Diz-lhe o que sucedeu. - Insistiu este.
- Os aldeãos, senhor, saquearam o forte., lançaram-lhe fogo... Saí da tenda para ver... saber o que se passava. Viram-me, e perseguiram-me... Tentei voltar à tenda
do quartel-general... Mas alguns chegaram lá antes de mim.
Túlio lançou um olhar horrorizado a Cato, antes de voltar a questionar o legionário.
- E Máximo? Félix?
Népio baixou a cabeça, ainda a tentar respirar normalmente.
- O que é que lhes aconteceu? - Túlio pegou-lhe no braço. - Diz-me!
- Senhor, estão mortos. Nada pude fazer para os tentar salvar. Os aldeãos atacaram-me. Tive que fugir...
O homem estava claramente exausto, e nada mais podia dizer. Túlio largou-lhe o braço e voltou a observar a ténue nuvem de fumo que se espalhava pelo vale.
- Desgraçados.
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- Sim, senhor. - Anuiu Cato. - Mas como é que havíamos de adivinhar que os aldeãos iam atacar o forte?
- Não devíamos tê-los deixado lá.
- Senhor, não podíamos adivinhar. E tínhamos que enfrentar a ameaça de Carátaco. - Cato falava calmamente, dando ênfase às palavras.
- Ninguém pode ser considerado culpado. Sortes da guerra. Não há nada que possamos fazer agora, senhor.
O centurião Túlio olhou para ele durante um longo momento em
silêncio.
- Pois não. Nada.
- E agora, senhor, - continuou Cato, - o inimigo prepara um novo ataque. Devíamos voltar para a paliçada. Népio?
- Sim, senhor.
- Recolhe o equipamento de um dos mortos e depois vem ter comigo ao baluarte.
- Sim, senhor.
Túlio observou o homem enquanto ele se dirigia a um dos cadáveres e recolhia uma espada, um escudo e um capacete.
- Espero que ele esteja a dizer a verdade.
- Claro que está, senhor. Depois do que Máximo fez passar aos locais nos últimos tempos, ficaria muito surpreendido se eles não tivessem aproveitado a primeira oportunidade
para se vingarem. Não o faria, senhor? Não o faria qualquer pessoa?
Túlio voltou-se de novo para Cato, e olhou-o com firmeza.
- Não há nada que me queiras dizer?
Cato ergueu o sobrolho.
- Senhor, temo não compreender o que quer dizer.
- O que é que tu...
Antes que o centurião pudesse completar a pergunta, ouviu-se um grito vindo da paliçada.
- Lá vêm eles outra vez!
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XL

Desta vez, o inimigo mostrou-se mais cauteloso. Carátaco tinha conseguido refrear o ímpeto belicoso dos seus guerreiros, e por isso a cabeça da coluna que se aproximava
pela estreita vereda era formada por homens que empunhavam escudos. Em vez de utilizar a velha táctica celta do assalto furioso, os bretões avançavam lentamente,
tentando manter a formação que lhes era estranha, que incluía até escudos transportados na horizontal, protegendo as cabeças dos homens. A execução era pouco precisa,
mas o dispositivo era claramente inspirado no que tinham usado para forçar a passagem no vau. Se os bárbaros continuassem a aprender e utilizar os truques das legiões,
reflectiu Cato, dentro de poucos anos, Roma ia ter mesmo muito trabalho entre mãos.
Sétimo comentou, com uma olhadela na direcção do centurião:
- Se eles continuam assim, vale mais contratá-los como mais uma coorte auxiliar.
- Bem, um aliado é sempre preferível a um inimigo. - Resmungou Cato. Olhou para lá da muralha de escudos que continuava a avançar e avistou o próprio Carátaco, que
dirigia a operação a partir de uma posição suficientemente longe para estar fora do alcance de dardos ou fundas. O comandante bretão estava de pé sobre a sua biga,
enquanto um ajudante se atarefava a tratar-lhe do ferimento no ombro, colocando uma ligadura precária. Quando a linha da frente não estava a mais de cinquenta passos
das defesas romanas, Carátaco colocou a mão em concha e ordenou que a coluna bretã se detivesse. Os guerreiros interromperam a marcha, recompuseram a linha e começaram
a espalhar-se, alargando a frente mesmo até à margem do pântano. Quando completaram a nova formação, os homens que tinham transportado os escudos em posição horizontal
adiantaram-se, formando uma nova fila da frente, e então todos voltaram a imobilizar-se. Nesse momento, Carátaco dirigiu-se a um grupo compacto de homens que se
encontrava junto ao carro, e ordenou-lhes que avançassem. Cato
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apercebeu-se de que estes guerreiros não traziam espadas nem escudos, mas que transportavam ao peito sacos com aspecto pesado, e que nas mãos tinham algo que se
assemelhava a cobras a contorcerem-se.
- Fundibulários... - Inspirou fundo e gritou um aviso aos seus homens. - Preparem-se para um ataque de fundas! Escudos erguidos!
Por toda a paliçada, os homens levantaram os escudos e tentaram esconder-se por trás deles, preparando-se para receber uma chuva de projécteis mais letais do que
as setas, e numa quantidade muito superior ao que seria possível com dardos. Cato, preparado para se agachar assim que o inimigo enviasse a primeira rajada, vigiava
os acontecimentos por cima da borda do escudo. Os fundibulários bretões correram até à parede de escudos e depois espalharam-se, para terem espaço para manejar as
suas armas, com as longas tiras de cabedal que seguravam as bolsas onde eram colocados os projécteis. Um zumbido baixo começou a escutar-se, à medida que os primeiros
homens se preparavam para soltar os seus mísseis.
- Aí vem! - Avisou Sétimo. - Cabeças para baixo!
O zumbido alcançou um paroxismo e, logo a seguir, foi substituído por um silvo agudo que só terminou quando os projécteis começaram a embater na paliçada, provocando
estrondos. Um dos chumbos acertou em cheio na bossa do escudo de Cato, amolgando-a de tal forma que o jovem sentiu o metal dobrado a roçar nos nós dos dedos. Um
tiro de sorte, considerou Cato, e evidentemente que tinha que acertar no seu escudo. Mas no momento seguinte, outro dos atiradores teve ainda mais sorte. Um pesado
calhau arredondado passou por uma brecha na paliçada construída à pressa e foi atingir o tornozelo de um legionário, mesmo ao lado do centurião. O homem urrou de
dor quando os ossos foram pulverizados pelo choque, e caiu por terra, agarrado à articulação e a gritar em agonia.
Cato chamou o optio.
- Sétimo! Tira-o da paliçada!
Coberto pelo escudo, o optio dirigiu-se ao ferido, pegou-lhe no braço e arrastou-o pelo declive interior do baluarte até à zona onde jaziam os outros feridos, na
base das defesas. Ninguém podia ser dispensado para cuidar das baixas enquanto a coorte estivesse sob ataque, e para ali estavam sob a inclemência do sol da tarde,
alguns chorando, mas a maioria imóvel, a tentar resistir à dor. Os que podiam tentavam tratar das suas próprias feridas e depois ajudar os outros. Sétimo levou o
ferido recente para o fim do grupo, e apressou-se a voltar para o seu posto na paliçada.
Enquanto prosseguiu o bombardeamento, mais projécteis encontraram alvos, e aumentaram com regularidade o número de feridos e mortos, além de continuarem a amolgar
os escudos e a destruir pedaços da paliçada. O tempo estava do lado dos romanos, tentou Cato persuadir-se,
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enquanto continuava agachado de dentes cerrados e sofria outro impacto no escudo. Quanto mais tempo Carátaco insistisse nesta forma de ataque, mais próximo estaria
Vespasiano, fechando a armadilha. Mas não fazia sentido expor a coorte a mais baixas do que eram aceitáveis.
- Mantenham-se em baixo! - Gritou Cato aos seus homens, enquanto deixava o seu lugar na formação e se esgueirava ao longo do baluarte até ao local onde Túlio se
protegia por trás do seu escudo.
- Senhor! - Chamou Cato. Túlio olhou na sua direcção.
- Senhor, talvez fosse melhor fazer retirar os homens para mais longe da paliçada, e tirá-los da linha de fogo.
Túlio abanou a cabeça.
- Eles aguentam. E, além disso, não queremos dar ao inimigo a impressão de que vamos fugir ao combate.
- Senhor, o que se está a passar não é um combate. - Cato mostrou com a mão o número crescente de baixas que se acumulava no sopé do baluarte. - É apenas um desperdício
de homens.
- Centurião, serei eu a avaliar a situação! - Irritou-se Túlio. - E agora, regressa a tua posição.
Cato ainda pensou em protestar, mas o brilho nos olhos do outro mostrava que o veterano não estava com disposição para discussões. Já estava farto dos conselhos
de Cato, e seria perigoso insistir.
- Sim, senhor. - Cato saudou-o e regressou para junto dos homens que continuavam sujeitos ao intenso bombardeamento e o aguentavam num silêncio resignado. Não havia
nenhuma pausa, nenhuma diminuição no número de mísseis que se abatiam sobre a paliçada e sobre os homens que a guarneciam, e Cato não pôde deixar de se perguntar
quantos estariam ainda vivos quando o crepúsculo descesse sobre o pântano. Nessa altura, o legado já devia ter entrado em cena.
- Há movimento na estrada! - Avisou Sétimo, e Cato arriscou uma espreitadela por cima do escudo. Por trás dos fundibulários, passando junto ao carro de Carátaco,
vinha uma massa compacta de homens, muitos dos quais transportavam fardos de lenha e escadas rudimentares.
Cato voltou a proteger a cabeça, e gritou:
- Sexta Centúria! Empunhar espadas!
Ouviu-se um coro de espadas a raspar em bainhas, e depois os homens das restantes centúrias seguiram o exemplo. Os romanos prepararam-se, tensos, à espera da ordem
para se erguerem e enfrentarem uma nova vaga de atacantes. Cato espreitou de novo. Tinha-se aberto uma brecha na muralha de escudos bretões e, por trás dela os fundibulários
desviavam-se para os lados enquanto avançava o grupo de assalto, dirigindo-se a correr para a linha das defesas romanas. Os atiradores prosseguiram o
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bombardeamento por cima das cabeças dos camaradas. Não se escutava o habitual coro de gritos de guerra quando os combatentes nativos se aproximaram do fosso e continuaram
a progredir por entre os corpos dos camaradas que tinham tombado em vagas anteriores. Tendo os romanos pela frente e sabendo que os fundibulários continuavam em
acção lá atrás, tudo o que eles queriam era fazer um ataque tão fulminante quanto possível. Os fardos de lenha foram lançados nas zonas em que o fosso e as suas
estacas ainda representavam um perigo evidente, e os guerreiros atravessaram-no com facilidade, começando a trepar pela íngreme face do baluarte, já do outro lado.
- Levantar! - Ordenou Túlio, e os outros oficiais fizeram eco da ordem por toda a muralha. Os legionários ergueram-se, aproximaram-se da paliçada e prepararam as
lâminas, à espera do inimigo. Os últimos projécteis das fundas cruzaram o ar, abatendo ainda um romano antes de os lançadores inimigos se verem forçados a interromper
a sua acção, para não atingir os seus próprios homens. Quase não houve intervalo entre o fim do bombardeamento e os primeiros confrontos na paliçada. As escadas
foram lançadas contra a madeira e os guerreiros celtas precipitaram-se por elas acima, numa tentativa de saltar sobre o parapeito em grandes números e submergir
os defensores. Nos torreões dos flancos, Córdio e Macro incitavam os seus homens a lançar sobre os inimigos tudo o que estivesse à mão e pudesse causar dano.
Cato empunhou com maior firmeza o gládio e o escudo, e avançou. O topo de uma escada rudimentar apoiou-se no cimo da paliçada mesmo à sua esquerda e, no momento
seguinte, surgiu à vista um guerreiro possante, lançando um braço sobre as tábuas e puxando o corpo para cima. Cato espetou a ponta da espada na parte lateral da
cabeça do homem, e sentiu o embate e o quebrar dos ossos propagar-se ao longo do seu braço. O homem tombou, e Cato chamou o legionário mais próximo.
- Aqui! Ajuda-me!
Empurrando o topo da escada, tentou fazê-la tombar sobre os próprios atacantes. Mas já havia outro guerreiro a subir os degraus, e este apressou-se a trepar o que
lhe faltava, enfrentando o olhar aterrorizado de Cato com um brilho louco de triunfo nos olhos.
- Foda-se, nem penses nisso, meu caro! - Interrompeu o legionário, golpeando o outro com tamanha ferocidade que lhe abriu o crânio, salpicando-se a si próprio e
ao centurião com sangue e miolos. Enquanto o homem caía, Cato afastou a escada da paliçada e acenou ao legionário, agradecendo-lhe a intervenção.
Cato olhou em volta e apercebeu-se de que, até àquele momento, nenhum inimigo tinha conseguido ainda manter-se sobre o baluarte. Mas,
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enquanto olhava, um pouco a sua direita foi arrancada uma secção da paliçada, fazendo desabar sobre os atacantes uma chuva de torrões, quando a terra solta se abateu
sobre eles. Com um grito, o legionário que tinha ocupado aquela zona escorregou e foi cair no meio da massa de guerreiros inimigos, que depressa acabaram com ele.
- Cuidado! - Avisou Cato. - Estão a arrancar bocados da paliçada!
Enquanto os seus camaradas mantinham os romanos ocupados com os assaltos que utilizavam escadas, pequenos grupos de bretões tinham-se dedicado a escavar as fundações
da paliçada, e a soltar as estacas. Já se viam outras secções a serem arrancadas ao longo do baluarte. E, assim que surgia uma brecha, os guerreiros inimigos precipitavam-se
por ela e trepavam até ao topo.
- Merda! - Gritou Sétimo, furioso. - Devíamos tê-las cravado mais fundo!
- Agora é tarde. - Cato voltou a sua atenção de novo para o inimigo, golpeando um homem que os companheiros empurravam. Armado com um longo machado, o bretão conseguiu
bloquear o golpe do centurião, mas, ao fazê-lo, desequilibrou-se e acabou por cair de novo sobre o declive do baluarte.
Noutras zonas, o combate não estava a correr muito bem à Sexta Centúria. Em dois locais onde a paliçada tinha sido derrubada, alguns guerreiros celtas tinham conseguido
estabelecer uma presença sobre o baluarte, e enfrentavam os defensores num corpo a corpo frenético, enquanto mais dos seus camaradas trepavam as ruínas da muralha.
- Sétimo!
- Senhor?
Cato indicou a brecha mais próxima.
- Leva seis homens. Fá-los recuar, antes que seja tarde demais. Despacha-te!
O optio reconheceu rapidamente o perigo, e dirigiu-se à brecha, escolhendo homens enquanto percorria o baluarte. Quando se aproximaram da zona ameaçada, formaram
uma compacta massa de metal e carne, e carregaram sobre o inimigo, apresentando uma frente de dois escudos, ocupando toda a largura que o passadiço oferecia. Embateram
nos bretões e destroçaram-nos antes que os estupefactos guerreiros recuperassem do choque. Os mortos e feridos foram lançados sobre os que se precipitavam ainda
para a brecha, com o fito de trepar até ao cimo do baluarte. Sétimo e os seus homens colocaram-se em posição e castigaram ferozmente qualquer guerreiro suficientemente
audaz para se atrever a tentar forçar de novo as linhas romanas. Mas Cato viu que, por trás deles, a situação na zona da
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segunda brecha era muito mais séria. O inimigo tinha conseguido controlar uma área razoável do baluarte, e aproveitava para colocar muitos mais homens no interior
da paliçada. Virando-se, Cato gritou na direcção do legionário mais próximo, que não estava directamente envolvido em combate, pelo menos de momento.
- Desvia-te daquela área, mas corre até ao centurião Macro. Diz-lhe que é imperioso que ele corra com aqueles tipos do baluarte, e que consolide a brecha. Eu não
posso dispensar mais homens. Vai!
Enquanto o legionário meio corria e meio escorregava pelo declive, Cato sentiu uma vibração surda sob os pés; compreendendo a que se devia, olhou para o portão.
No interior da fortificação, as forças de reserva corriam para tentar contrariar o impacto. No exterior, os combatentes inimigos tinham recuperado o aríete por entre
os corpos espalhados junto à entrada, e tinham renovado o ataque ao portão.
Cato apercebeu-se de que a coorte estava a perder o controlo do combate. Aquele portão tinha sido concebido para controlar as idas e vindas dos locais ao pântano,
e não para enfrentar um assalto decidido. Dentro em pouco, as forças inimigas irromperiam por ele. E se não o conseguissem, abririam tantas brechas na paliçada que
os legionários acabariam por não as poder defender a todas. Fosse como fosse, a coorte estava condenada.
Dominados pela ânsia de sangue, alguns dos guerreiros inimigos que tinham conseguido transpor a paliçada avistaram os feridos romanos que se amontoavam na base do
baluarte, e precipitaram-se sobre eles com gritos de triunfo. Quase incapazes de se defenderem devido aos ferimentos recebidos, os legionários foram facilmente chacinados
pelos seus atacantes. Mas aquela acção condenou também os bretões, já que na vertigem de matar se esqueceram de garantir que as brechas que tinham aberto na defesa
romana se mantinham disponíveis para os seus camaradas. Com um rugido tão alto quanto eram capazes, Macro e metade da sua força avançaram pela paliçada a partir
do torreão, desbaratando o magote de guerreiros que se esforçava por manter o controlo sobre a abertura, para a qual convergiam mais bretões. Um momento mais, e
os celtas teriam conseguido colocar sobre o baluarte homens suficientes para conter o contra-ataque de Macro. Faltara-lhes porém esse momento, e estavam a ser mortos
ou empurrados para o exterior, de tal modo que daí a pouco já não restavam bretões no interior das fortificações. À excepção dos que se tinham dedicado a executar
os feridos; estes aperceberam-se do perigo e voltaram a escalar o baluarte para lutar pelo precioso chão ensanguentado que rodeava a brecha na paliçada. Mas chegaram
demasiado tarde e em número insuficiente para fazer qualquer diferença, e foram mortos ainda antes de alcançarem o cimo do baluarte, rolando pelo declive para se
juntarem na morte aos corpos dos
369
homens que momentos antes tinham impiedosamente massacrado.
Assim que o baluarte foi reconquistado, Cato olhou em volta para tentar perceber se os inimigos tinham realizado algum progresso no portão. O ritmo vagaroso dos
embates continuava sem cessar, e ouviu-se o som da madeira a estalar quando uma das tábuas cedeu. Tinha chegado o momento, assumiu Cato, com o coração pesado. Mais
alguns impactos e o portão seria estilhaçado, permitindo aos atacantes arrancar todas as tábuas e penetrar em grande número para destruir o que restava da Terceira
Coorte.
Apercebeu-se então de que os impactos se tinham interrompido, e ao olhar em redor, notou que mais e mais dos seus homens se viam sem adversário para combater. Baixavam
os escudos e apoiavam-se neles, exaustos, recuperando lentamente. À sua frente, os celtas recuavam, descendo do baluarte, encaminhando-se para Carátaco que ainda
estava de pé, altivo, sobre o carro. Mas agora o olhar do comandante bretão dirigia-se na direcção oposta à da Terceira Coorte, seguindo a estrada.
- Senhor! - Sétimo furou por entre os defensores. - Está a ouvir?
- A ouvir o quê?
- Escute.
Cato esforçou-se, mas tudo o que conseguiu distinguir acima do sangue que lhe martelava os ouvidos foram os gritos de pânico dos guerreiros inimigos à medida que
abandonavam o baluarte e formavam uma massa densa e imóvel em redor do carro do seu rei. Cato abanou a cabeça, o que fez Sétimo bater com a mão na paliçada.
- Senhor, oiça!
Tentou de novo, e desta vez notou mais alguma coisa, que se sobrepunha lentamente ao clamor de desespero e pânico do inimigo: um distante tinir de armas, um leve
soar de uma trombeta. E, naquela ilha, só um exército empregava cobres com aquele som. Um sorriso começou a formar-se no seu rosto, enquanto o alívio e a alegria
lhe inundavam o coração.
- É o legado. Só pode ser ele.
- Porra, é claro que é ele, senhor! - O optio riu, e deu-lhe uma palmada no ombro. - O sacana tinha que chegar mesmo no último
instante, não era?
À medida que os legionários se iam apercebendo da chegada da legião, começaram a abrir-se sorrisos; deliciados, os homens não perderam tempo para começar a insultar
o inimigo em retirada com gesto obscenos, e a lançar vivas. A arrogância feroz com que os bretões se tinham lançado ao ataque no início da tarde evaporara-se quando
tinham sabido da presença de uma poderosa força romana nas suas costas. A única coisa em que pensavam agora era na fuga e na salvação. Só a guarda pessoal de Carátaco
se
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mantinha firme - uma pequena e unida força de aristocratas e guerreiros de elite, que se esforçava por manter um cordão de segurança em torno do rei, afastando com
desprezo as massas aterrorizadas que passavam por eles em fuga. Alguns já tinham compreendido que só o pântano lhes podia oferecer uma possibilidade de salvação,
e abandonavam a estrada, abrindo caminho por entre os juncos e lutando por atravessar os lamaçais, onde as pernas ficavam presas e cada passo se revelava um teste
de resistência e vontade.
- Não é uma paisagem muito agradável, pois não?
Cato voltou-se, e reparou que Macro se aproximara. O centurião mais velho observava com ar triste o espectáculo que se via no caminho.
- Um exército destroçado é uma coisa que me faz pena.
- Bem, quanto a vistas, esta para mim está muito bem, obrigado.
- Vamos a levantar a cabeça. - Sugeriu Macro, olhando para lá do ombro de Cato. - Aí vem o Túlio... Senhor, parabéns!
- Hum? - Túlio parecia tudo menos satisfeito, e Cato notou que o olhar do centurião mais antigo estava fixo para lá das ruínas do exército bretão, nos distantes
estandartes da Segunda Legião, reluzindo à luz do sol poente. - Gostava de saber se o Vespasiano também me vai dar os parabéns assim com tanto entusiasmo.
Lançou um olhar significativo aos outros dois centuriões, antes de ordenar aos soldados mais próximos:
- Desapareçam!
Assim que os legionários saíram do alcance da sua voz, Túlio encarou os seus subordinados, e perguntou num tom urgente:
- O que é que vamos dizer ao legado?
Cato franziu o sobrolho.
- Dizer? Desculpe, senhor, não compreendo.
Túlio aproximou-se e espetou um dedo no peito do jovem.
- Não te armes agora em espertinho comigo, rapaz. Estou a falar de Máximo. Como é que vamos explicar o que lhe aconteceu?
- Desculpe, senhor, mas não há nada a explicar, desde que nos mantenhamos fiéis à nossa história. O Antóniomorreu, pelo que só eu, o Macro, o Népio e o senhor sabemos
o que realmente se passou.
- Podes riscar o Népio da lista. - Adiantou Macro, fazendo um gesto com o dedo ao longo do baluarte. Ficou ali. Uma lança atravessou-o de lado a lado. Não teve tempo
de arranjar uma armadura antes de se
lançar no combate. Uma pena.
- Sim, uma pena. - Repetiu Cato, lentamente. - Portanto, ficámos só nós os três, senhor. E tudo o que temos a fazer é manter a história que contámos a Córdio. Não
é perfeita, mas é o que temos, e ninguém pode
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provar o que quer que seja para lá do que nós dissermos.
- E se o Népio se tiver enganado? Se o Máximo ainda estiver vivo...
, Ou o Félix?
- Estão mortos. - Respondeu Cato com firmeza.
- Mas se não estiverem? Devíamos contar a verdade. Dizer a Vespasiano que o Máximo punha a coorte em perigo. Que tivemos que o prender de forma a proteger
os homens e a assegurar que Carátaco caía na armadilha. - Um súbito brilho de inspiração surgiu nos olhos do velho centurião. - A vitória foi nossa. Tornámo-la possível.
Isso deve contar para alguma coisa.
- Não. - Macro abanou a cabeça. - Não servirá de nada. Se dissermos a verdade, estaremos a admitir um motim. E sabes como é o general. Mesmo que Vespasiano
nos poupe, o sacana do Pláucio não o fará. Será uma grandiosa oportunidade para mostrar que é um verdadeiro disciplinador. Recuso-me a ser executado por causa daquele
cabrão do Máximo. O miúdo tem razão. Temos que manter a nossa história se queremos sair vivos disto, e esperar que o Máximo e o Félix estejam realmente mortos.
Túlio voltou a observar Cato, e franziu o sobrolho.
- Pareces muito confiante na morte dos dois.
Cato devolveu-lhe o olhar, sem mostrar qualquer expressão, e depois retorquiu:
- Não creio que eles pudessem ter sobrevivido ao ataque dos aldeãos. E Népio estava certo de que eles tinham sido mortos. Para mim isso chega.
- Esperemos que também chegue para Vespasiano. - Juntou Macro, em voz baixa.
Túlio olhou na direcção da legião que se aproximava, embora ainda estivesse escondida pela curva no caminho. Mordeu o lábio, e depois anuiu.
- Muito bem... Vamos manter a nossa história. Mas há uma última coisa que podemos fazer para ajudar a nossa causa.
Macro olhou para ele, suspeitando de alguma coisa.
- Ah? E o que poderá ser, senhor?
- Oferecer Carátaco ao legado. - Túlio tinha alterado a direcção do seu olhar, que repousava agora no comandante inimigo, ainda rodeado Pelo fluxo de homens
em torno do seu carro e dos guarda-costas. O centurião
pronunciou as ordens sem olhar sequer na direcção dos outros dois - Quero que levem duas secções e que vão capturá-lo
Macro gargalhou.
Queres o quê?
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- Eu disse: levem duas secções até lá, e façam-no prisioneiro. Tu e o Cato.
- Isso é loucura. Estás a ver se te vês livre de nós?...
A expressão de surpresa no rosto de Macro transformou-se em desprezo. - É isso mesmo, não é?
Mas Túlio continuou a evitar enfrentar o olhar dos dois homens, enquanto repetia com uma formalidade gelada:
- Tem as vossas ordens. Agora, queiram fazer o favor de as cumprir. Imediatamente.
Macro olhou rapidamente em redor, para se assegurar de que ninguém o ouviria.
- Ouve lá, meu grandessíssimo cabrão...
- Senhor! - Cato agarrou-lhe o braço e segurou-o. - Vamos.
- O quê? - Macro encarou o amigo. - Estás doido?
- Senhor, o comandante da coorte tem razão. Se pudermos oferecer Carátaco ao legado, estaremos safos. Por favor, senhor, vamos fazer isto antes que ele fuja.
Macro sentiu que era arrastado para um precipício, e que o mundo enlouquecera. Que outra explicação podia haver para a estranha conivência de Cato com a absurda
ordem de Túlio? Enquanto o jovem convocava os homens que Túlio lhes tinha atribuído para executar aquela missão suicida, Macro olhava para ele com uma expressão
preocupada.
- O que raios estás tu a fazer, a entrar no jogo dele?
- Senhor, temos que o fazer.
- Porquê?
- Como acha que pareceria se tivéssemos uma discussão séria em frente dos homens? Eles já acham a situação bastante suspeita, agora.
- Mas ele está só a ver se se livra de nós.
- É claro que está. - Cato virou-se para o amigo. - Faz sentido. Se estivermos mortos, ele pode atirar as culpas todas para cima de nós, sem se preocupar
com a possibilidade de o seu papel na morte de Máximo vir a ser revelado. Mas se sobrevivermos e conseguirmos capturar Carátaco, terá pelo menos alguma coisa realmente
impressionante para apresentar ao legado. Seja como for, a situação dele será melhor do que se ficarmos aqui parados à espera que Vespasiano chegue e tire as suas
próprias conclusões.
- Então e nós?
- Se realmente capturarmos Carátaco, também ficaremos melhor.
- Cato encolheu os ombros. - Se ficarmos aqui de mãos a abanar à espera do legado, diria que as nossas hipóteses são reduzidas.
Macro encarou-o ainda um momento, antes de responder.
- Caramba, detestaria defrontar-te numa mesa de jogo.
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Cato fez uma careta.
- Senhor, isto não é uma jogada de dados. É o curso lógico a adoptar nas presentes condições. É o que faz sentido.
- Se tu o dizes, miúdo. Bom, se vamos, então o melhor é irmos
andando.
? ? ?
As portadas quase destruídas foram abertas, e as duas secções comandadas por Macro e Cato avançaram em formação cerrada. Passaram cuidadosamente sobre os corpos,
feridos e mortos, que juncavam o terreno à frente das fortificações. Alguns dos inimigos, ainda combativos, tentaram opor-se à passagem dos romanos, e Macro teve
que se desviar de uma débil tentativa de ataque à sua perna. Rodou sobre si mesmo, a espada já pronta para ripostar, quando viu o atacante, um miúdo, que jazia encostado
ao corpo de um gigantesco guerreiro. O rapaz tinha uma adaga numa das mãos, enquanto com a outra agarrava a mão do gigante morto. A ponta de um dardo tinha-lhe rasgado
o peito, e o torso estava coberto por uma camada refulgente de sangue. Macro abanou a cabeça, baixou a espada e regressou à formação.
Enquanto se dirigiam ao comandante inimigo, os corpos começaram a surgir mais espaçados, permitindo uma caminhada mais rápida e sem preocupações quanto ao local
onde punham os pés.
- Alto! - Ordenou Macro. - Formação em cunha!
Cato tomou posição junto ao ombro do amigo, e o resto dos homens criou uma formação que se alargava para a retaguarda, com uma pequena reserva de seis homens no
interior, de forma a fornecer poder de penetração na linha inimiga. Os bretões fugiam à sua frente, sem vontade de lutar, embora fossem muito mais numerosos que
a pequena unidade romana. Só Carátaco e a sua guarda pessoal se mantinham firmes. O rei inimigo ergueu o braço e pronunciou uma ordem. Os guardas avançaram e formaram
uma linha, ocupando a estrada. Cato contou vinte e dois homens. Um combate quase equilibrado, e um verdadeiro teste às elites guerreiras de ambos os lados. Os contrastes
em tamanho, equipamento e aparência dificilmente podiam ser maiores. Os guardas pessoais de Carátaco eram todos homens de grande estatura, tatuados com padrões espiralados.
Cada um deles empunhava uma lança ou uma espada longa, e um escudo oval, e quase todos tinham capacetes e cotas de malha a proteger-lhes o corpo. À medida que os
romanos se aproximavam, os celtas acolhiam-nos com gritos de guerra, insultos e desafios. Atrás deles, Carátaco observava os acontecimentos com ar arrogante, sem
disfarçar o orgulho que sentia nos seus homens.
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Macro notou a atitude do rei bretão, e ergueu a espada, com a ponta dirigida ao comandante inimigo.
- É isso mesmo, amigo! - gritou. - Viemos buscar-te!
Carátaco lançou uma risada de desprezo. Macro também soltou
uma gargalhada e lançou uma olhadela aos seus homens.
- Estejam a postos para carregar assim que eu disser. Vamos entrar por eles dentro como se fossem manteiga!
As duas forças já não estavam separadas por mais de vinte passos, e Cato supôs que Macro os ia lançar numa carga a qualquer momento, enquanto ainda tinham espaço
para ganhar velocidade, mas o centurião veterano continuou a fazê-los avançar em passo regular ainda por algum tempo. A tensão foi estilhaçada pela súbita ordem
de Carátaco, que fez com que os bretões se lançassem em corrida.
- À carga! - Respondeu Macro, e todos os romanos começaram a correr também.
No instante seguinte, os dois lados chocaram, com o costumeiro coro de grunhidos e gritos e choques de armas. A formação romana perfurou com facilidade a linha adversária,
e os legionários viraram-se para o exterior, de forma a enfrentarem os combatentes inimigos. O impacto tinha lançado alguns deles para o solo, e estes foram abatidos
antes de terem tempo de recuperar o fôlego e a posição erecta. Depois da carga, a formação romana desfez-se, e Cato viu que em redor se travavam vários combates
singulares.
Com um grito selvagem, um dos guerreiros inimigos, um bruto de cabelo escuro e com uma tatuagem azul no peito, representando um cavalo, lançou-se sobre Cato, fazendo
descer a espada sobre a crista do capacete do centurião. Este ergueu a espada inclinada e desviou o golpe da cabeça, deixando que ele se abatesse e resvalasse pelo
escudo abaixo. O ataque feroz tinha deixado exposto o flanco do inimigo, e Cato espetou a espada por entre as costelas do outro, quebrando-lhe um par delas quando
a ponta penetrou através da pele e dos músculos e atingiu o coração. O sangue saiu em golfadas da ferida quando Cato puxou a lâmina. Preparou novo golpe, mas o homem
já estava morto: caiu de joelhos, murmurou uma última imprecação e tombou de costas.
Cato virou-se e avistou as costas de um bretão que lutava contra um dos seus homens. Aquilo não era um duelo de espadachins, e sim um combate mortal, e o centurião
não hesitou em mergulhar a sua espada na
espinha do bretão.
- Tem cuidado! - Gritou ao legionário quando este lhe apresentou os seus agradecimentos, mas o rosto do homem mudou para uma expressão de surpresa e agonia quando
a ponta de uma lança emergiu da
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sua garganta, arrancando uma das placas de metal que lhe guarneciam a armadura segmentada e que eram unidas por tiras de cabedal. O legionário tombou para a frente,
arrancando a lança das mãos do homem que lha cravara pelas costas. Desviando-se do soldado mortalmente ferido, Cato saltou sobre o bretão desarmado e golpeou-o no
rosto, cegando-o e quase lhe arrancando o nariz. O guerreiro urrou enquanto levava as mãos à face. Cato virou-se rapidamente, à procura de novo adversário.
A escaramuça estava a decidir-se para o seu lado. A maior parte dos guardas de Carátaco já tinham sido abatidos, e os que ainda viviam tinham que se haver com mais
de um romano cada. Macro arrumou o seu adversário e, ao olhar em redor, encontrou os olhos de Cato.
- Vamos capturá-lo.
Cato aquiesceu, e rodearam os homens ainda envolvidos em combate, dirigindo-se à biga. Carátaco deu uma ordem ao condutor e desceu da plataforma. Em resposta a um
movimento das rédeas, os dois cavalos empinaram-se e avançaram. Cato sentiu uma pancada quando Macro o empurrou para o lado, para fora do trajecto do carro, e rolou
pela relva que ladeava a estrada.
- Macro!
Olhou em volta mesmo a tempo de ver como o amigo se encolhia e se lançava para o solo, cobrindo-se com o escudo enquanto os cascos da parelha martelavam o solo endurecido
do caminho. Por instinto, os animais tentaram evitar o escudo vermelho que lhes surgiu sob as patas, e desviaram-se, fazendo oscilar o carro. A roda de fino desenho
embateu no escudo de Macro, e a plataforma inclinou-se. O condutor gritou quando foi puxado pelos cavalos para o solo, e depois, sem controlo, toda aquela massa,
cavalos, biga e condutor foram embater no pequeno grupo de homens dos dois lados que ainda combatia.
- Merda... - Suspirou Cato, horrorizado, antes de se pôr de novo em pé, pegar na espada e correr para Macro. - Senhor!
- Está tudo bem. - Macro sacudiu a cabeça e permitiu que o jovem o ajudasse a levantar-se. - O braço do escudo está dormente, é tudo. Onde é que está Carátaco?
Cato olhou em volta e avistou o comandante inimigo a fugir para o pântano, com o ombro ainda envolto na ligadura encharcada em sangue.
- Lá está ele!
- Vamos. - Macro incitou-o com uma palmada no ombro. - Atrás dele!
Quando atravessaram a estrada, correram pela margem e saltaram para os juncos que cresciam no limite do solo firme. A água salobra formava poças nas pegadas, e
Cato conseguia ver perfeitamente os traços da
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passagem de Carátaco, momentos antes.
- Por aqui!
Os juncos adensaram-se de ambos os lados, caules pálidos que oscilavam à passagem dos dois homens. A água tornou-se mais profunda, alcançando os joelhos de Cato,
e deixou de se conseguir perceber qual o caminho que o fugitivo tinha tomado.
Cato ergueu o braço.
- Pare!
- O que...
- Chiu! Escute!
Ali ficaram, imóveis, tentando ouvir qualquer ruído produzido pela presa que perseguiam. À distância, eram perceptíveis os sons do combate em que a legião destroçava
o que restava do exército de Carátaco. Gritos individuais, de terror ou desafio, ecoavam pelo ar parado, mas na área mais próxima, nada se ouvia.
- E agora, o que é que fazemos? - Murmurou Macro.
- Separamo-nos. - Cato fez um gesto com a espada para a esquerda, para onde parecia haver uma abertura entre os juncos, talvez provocada pela passagem recente
de alguém. - Eu vou por ali. Dê a volta e vá ter comigo ao outro lado. Se não encontrarmos nada, acabaremos por dar um com o outro. Pode ser?
Macro acedeu, sem sequer reparar que era o jovem quem tinha passado a dar as ordens. Cato começou a afastar-se.
- Cato... Nada de asneiras.
O jovem lançou-lhe um sorriso rápido.
- Quem? Eu?
Macro ficou a vê-lo desaparecer por entre os canaviais, e abanou a cabeça, cansado. Qualquer que fosse o deus que tinha resolvido zelar pelo bem-estar de Cato, devia
estar a fazer horas extraordinárias. E um dia havia de tirar uma folga...
Cato avançou pela água oleosa, produzindo pequenas ondas à medida que afastava os juncos. Ao aproximar-se de um maciço, os seus olhos captaram um reflexo avermelhado,
o que o fez observar as canas com mais atenção. Numa delas brilhava ainda uma mancha de sangue. Segurando firmemente a espada, continuou, avançando cuidadosamente
e só depois de se certificar da firmeza do terreno por baixo da vegetação que crescia na água. Lá atrás, os sons da batalha iam esmorecendo, abafados pelas paredes
de juncos que o rodeavam. Cato não se precipitou, mantendo olhos e ouvidos atentos ao menor sinal ou som produzido pela sua presa. Mas nada acontecia, só se notava
o barulho irritante dos insectos que pairavam ao seu redor.
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As canas começaram a escassear, e a água tornou-se mais profunda quando alcançou um pequeno charco. Ali perto via-se um montículo de terra firme. Sobre a pequena
ilha atravessava-se uma árvore desenraizada, já coberta por musgo luxuriante, em brilhantes tons verdes. Era um bom local para avaliar o terreno em redor, e foi
para lá que Cato se dirigiu lentamente. Ao emergir da água, reparou que as botas estavam cobertas por uma massa negra e espessa, que as tornava pesadas como chumbo.
Sentou-se no tronco morto e arrancou-lhe um ramo para limpar as botas. Um pássaro soltou o seu grito de alarme ali perto, assustando-o.
- Filho da puta. - Murmurou para si mesmo.
Nesse instante, um braço rodeou-lhe a garganta e puxou-o para trás, arrancando-o do tronco. Caiu de forma desajeitada, agitando as mãos e largando a espada. Ouviu-se
um gemido quando aterrou em cima de alguém. Alguém com a constituição de uma torre de pedra. O braço em torno do pescoço apertou com mais força e, por trás da cabeça,
Cato conseguia perceber a respiração acelerada do homem que produzia tamanho esforço. O jovem agitava-se freneticamente, tentando libertar-se, atacando o braço de
forma a fazê-lo aliviar a pressão, mas sem resultado.
- Adeus, centurião. - Sussurrou-lhe ao ouvido uma voz rouca, em céltico.
Cato empurrou o queixo contra o próprio peito, e mordeu o antebraço tatuado. Os dentes rasgaram pele e músculo, mas o homem conseguiu calar o grito de dor que lhe
subiu no peito, e continuou a apertar. Cato sentiu os primeiros sintomas da perda de sentidos, e mordeu de novo com toda a força, até que os dentes se encontraram
e a sua boca se encheu de sangue e de um pedaço de carne quente.
O homem arfou, em agonia, mas não o soltou.
Cato compreendeu que, a não ser que fizesse alguma coisa, estava praticamente morto. Deixou pender uma das mãos e procurou atrás das costas, os dedos a percorrer
o tecido pouco espesso das calças do outro. Encontrou a zona mais mole que correspondia aos órgãos genitais do adversário e espetou-lhe os dedos no escroto, apertando
com toda a força que conseguiu reunir. Ao mesmo tempo, lançou a cabeça para trás, fazendo o capacete bater na cara do outro, e partindo-lhe a cana do nariz. O homem
aliviou a pressão, soltando um profundo gemido. Foi o suficiente. Cato afastou o braço do pescoço, atirou-se para o lado e rolou, libertando-se. Pôs-se de pé num
instante, agachado e pronto para combater. A menos de dois metros, apoiado ao tronco, estava Carátaco, dobrado e gemendo enquanto tentâva perceber os danos provocados
por Cato. O sangue escorria-lhe do nariz e do braço, e de repente a agonia foi de mais para o rei bretão, que vomitou. Naquele estado não representava grande perigo
para o centurião, e
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ele ergueu-se, massajando a garganta enquanto olhava em redor, localizava a espada e a apanhava do chão.
Quando Carátaco parou de vomitar, voltou-se penosamente, de forma a apoiar as costas no tronco. Encarou Cato, os olhos repletos de ódio e amargura, até que o reconhecimento
lhe alterou a expressão.
- Eu conheço-te.
Cato anuiu, e soltou os laços que lhe prendiam o capacete, tirando-o da cabeça suada. Carátaco grunhiu.
- O rapaz centurião... Devia ter-te mandado matar.
- Pois. Suponho que sim.
- É engraçado, não é? - O rei fez uma careta quando foi acometido por outra onda de agonia. - Como as coisas acabam por suceder.
- Engraçado? - Cato encolheu os ombros. - Não, não me parece nada engraçado. Nem de perto.
- Onde está o sentido de humor dos romanos?
- Para mim, já houve demasiadas mortes. Estou farto.
- Só mais uma então, e tudo estará terminado.
Cato abanou a cabeça.
- Não. Agora és meu prisioneiro. Vou conduzir-te ao meu legado.
- Ah. - Carátaco deu um sorriso fraco. - A misericórdia dos romanos. Por fim. Mas acho que preferia morrer aqui em vez de ser sacrificado na parada de vitória do
teu imperador.
- Ninguém te vai sacrificar.
- Julgas-me estúpido? - Desafiou o bretão. - Acaso imaginas que o meu povo alguma vez esqueceu o que o teu César fez a Vercingétorix? Não serei exibido no vosso
fórum e depois estrangulado como um vulgar criminoso.
- Isso não sucederá.
- Como podes ter tanta certeza?
Cato encolheu outra vez os ombros.
- A decisão não é minha. Vamos, deixa-me ajudar-te. Mas nada de truques, percebido?
Colocou-se por trás do outro e, puxando-o pelo ombro são, ajudou-o a apoiar-se melhor no tronco. Uma vaga de dor percorreu o corpo do rei bretão, que cerrou os dentes
até conseguir algum alívio.
- Não me mexerei mais. Romano, peço-te... Deixa-me morrer
aqui.
Cato contemplou o estado ruinoso em que se encontrava o homem que tanta frustração e receio tinha provocado a Roma ao longo dos dois últimos anos de campanhas. Não
tinha dúvidas de que ele seria tratado Como um troféu. Um enfeite engraçado que Cláudio exibiria acorrentado perante
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potentados exóticos. Até ao dia em que o Imperador se cansasse dele e o usasse uma última vez para entreter a populaça, preparando-lhe uma morte sem sentido nalguns
jogos.
- Romano, eu poupei-te. - Havia súplica no olhar de Carátaco.
- Permiti que vivesses. Deixa-me ser eu a escolher a minha morte.
- Ias-me queimar vivo.
- Um detalhe sem importância. - Levantou a mão e apontou
para a espada de Cato. - Por favor...
Cato olhou-o. Outrora o mais poderoso dos reis das tribos daquela ilha estava derrotado e abatido. Digno de dó... Pena? Cato surpreendeu-se a si mesmo. Porque haveria
ele de ter piedade por este homem, que sempre tinha sido um inimigo implacável? Porém, era inegável que havia no seu coração um peculiar sentimento de perda, agora
que o inimigo tinha sido neutralizado. Era tentador permitir-lhe um último gesto digno, deixá-lo morrer em paz, e Cato contemplou a própria espada.
O bretão seguiu-lhe o olhar e fez um gesto de cabeça, agradecido.
- Romano, sê rápido.
Carátaco virou a cara, e fechou os olhos. Por um momento, tudo ficou calmo: o rei nativo à espera do fim em silêncio, e Cato empunhando a espada. Lá longe, os sons
da batalha tinham-se calado, à excepção dos gritos estridentes dos feridos. Os insectos volteavam em nuvens à volta dos dois homens, atraídos pelo doce aroma que
se desprendia da ligadura ensanguentada à volta do ombro de Carátaco. Então, num repente, Cato abanou a cabeça e sorriu. Afrouxou a forma como agarrava o gládio
e, com um floreado, voltou a colocá-lo na bainha. Carátaco abriu um olho e encarou-o.
- Não?
- Lamento. Não agora. És mais valioso para mim enquanto estiveres vivo.
Carátaco abriu o outro olho, observou Cato com dureza, e então encolheu os ombros.
- É justo. Teria sido um fim adequado. Ainda assim, pode ser que um dia te arrependas de me ter poupado.
- Não tenhas grandes esperanças. - Cato afastou-se, colocou as mãos em volta da boca e chamou. - Macro! Macro! Aqui!
? ? ?
Quando saíram do pântano, o Sol estava quase no horizonte, tingindo de um vermelho brilhante as esparsas nuvens que se viam pelo céu. Levavam Carátaco entre eles,
os braços apoiados nos ombros dos romanos. O peso do guerreiro bretão fazia-os ofegar quando emergiram por entre os
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canaviais, subiram para a margem arenosa e foram depositar o rei inimigo junto aos restos da sua biga, antes de se deixarem cair junto a ele, para descansar. À distância,
uma coluna de legionários dirigia-se ao portão.
- Toma. - Macro tirou a rolha do cantil e passou-o a Cato. O jovem levou-o aos lábios, reparando que Carátaco o observava com atenção. Baixou o cantil e passou-o
ao prisioneiro, que o inclinou e sorveu vários goles de forma sôfrega.
Macro ficou zangado.
- Para que é que foi isso? Deixar um bárbaro de cu peludo meter os beiços no meu cantil! Miúdo, estás a ficar mole.
- Queremos mantê-lo em boas condições.
- Uma pontinha de sede não o vai matar.
- Não.
Macro virou-se para o admirar.
- Estás um bocado convencido, não?
- Só estou cansado.
- Bom, miúdo, então é melhor arrebitares. Vamos precisar de estar atentos quando encontrarmos o legado. - Macro observou com maior cuidado o estado do amigo, e concluiu
que o jovem estava à beira da exaustão, coberto de imundícies, e que ainda apresentava o arremedo de barba que tinha desenvolvido enquanto fora um fugitivo escondido
naquele maldito pântano. A túnica pouco mais era do que um farrapo, e o cinto e a armadura dançavam sobre o corpo magro.
Macro deu um estalo com a língua.
- O que foi agora?
- Oh, estava só a pensar. O legado vai-se ver grego para perceber qual de vocês é que é o bárbaro.
- Tem uma piada do caraças.
- Atenção! Aí vem ele.
Os dois centuriões levantaram-se penosamente, ao sentirem cavalos a aproximarem-se. O legado, com os seus tribunos, seguia pela margem da estrada. Ao notar os dois
oficiais, ensanguentados e enlameados, em sentido, Vespasiano fez estacar a montada. Reconheceu imediatamente Macro, mas o jovem magro e barbudo fê-lo franzir o
sobrolho por uns instantes, antes de abrir os olhos de espanto.
- Centurião Cato...? Porra, és mesmo tu.
- Sim, senhor.
- O teu optio disse-me que estavas vivo. Apareceu-me no campo, com mais uns tantos homens. Contou-me uma grande história. - O legado abanou a cabeça. - É difícil
de acreditar.
- Eu sei, senhor. - Cato sorriu, e deu um passo ao lado para
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revelar o abatido prisioneiro, sentado junto aos restos da sua biga. - Temos aqui algo para si, senhor. Apresento-lhe Carátaco, rei dos catuvelaunos.
- Carátaco? - Vespasiano olhou para o homem durante algum tempo. Então largou as rédeas, saltou do cavalo e aproximou-se do seu antigo inimigo. - Este é o Carátaco?
O rei nativo olhou-o e confirmou, com um gesto de cabeça.
- Então, terminou. - Disse Vespasiano, com toda a serenidade.
- Por fim, terminou.
O legado observou admirado o inimigo finalmente capturado: o homem que tinha combatido as legiões a cada passo, quase desde o primeiro momento em que o exército
de Cláudio tinha posto o pé na ilha. Depois olhou para os dois oficiais que tinham capturado o comandante inimigo. Por uma vez, faltaram-lhe as palavras adequadas.
- Bom trabalho.
- Bom trabalho? - Macro não escondeu o assombro. - É tudo?
- Obrigado, senhor. - Interrompeu-o Cato. - Apenas fizemos o nosso dever.
- Evidentemente. Nem esperava menos dos dois. - Vespasiano sorriu. - E acredita-me, centurião Cato, tentarei o melhor para fazer com que todos, digo mesmo todos,
venham a saber o que vocês conseguiram aqui.
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- Isto é muito complicado de se ler. - Vespasiano bateu ritmadamente com um grosso dedo no rolo de pergaminho que lhe ocupava a secretária. - Suponho que os senhores
sabem do que se trata?
Cato resistiu ao impulso de lançar um olhar a Macro, e anuiu.
- O relatório do centurião Túlio, senhor?
- Precisamente. - O olhar de Vespasiano espraiou-se sobre o acampamento da Segunda Legião. As fileiras de tendas de pele de cabra espalhavam-se de forma ordenada
pelas redondezas, até que a vista alcançava as confortáveis formas dos baluartes que protegiam um acampamento de campanha. Apesar de Carátaco e do resto do seu exército
terem sido desbaratados, o legado era um homem que não facilitava. Não duvidava de que alguns dos seus pares o acusavam de ser demasiado cauteloso. Uma ironia, depois
da louca investida que conduzira nesse mesmo dia pelo coração do pântano. Mas, no fim de contas, agradava a Vespasiano ser cauteloso. Poder-se-ia mesmo dizer receoso.
Sobretudo no que dizia respeito às vidas dos seus homens.
Lá fora, a lua crescente banhava o mundo numa luz pálida, algures entre o azul e o prateado, e as estrelas cintilavam como diamantes num céu pacífico. A sua luz
fria e distante contrastava com as fogueiras espalhadas pelo campo, que refulgiam com os tons do rubi. Apesar da batalha que tinham travado durante o dia, os homens
estavam satisfeitos, e o som das suas conversas, pontuadas por acessos de riso, espalhava-se pelo aquartelamento. Passou-lhe pela mente a ideia de que eram estes
os sons da paz. Ao fim de duas épocas de campanha, das mais sangrentas que os homens da
Segunda tinham visto.
O único indício do conflito que decorrera durante o dia era o cheiro acre que saía de algumas ruínas ainda fumegantes. Provinha da silhueta silenciosa do forte abandonado
que tinha sido a base da Terceira Coorte, ali bem perto. A paliçada tinha sido reparada pelos engenheiros da Legião,
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e tinha sido escavado um fosso interior para garantir que Carátaco e algumas centenas dos seus guerreiros, agora prisioneiros, não escapavam. Vespasiano queria ter
apanhado os aldeãos que tinham saqueado o forte, para fazer deles um exemplo, mas tinham desaparecido assim que tinham avistado a legião, embora não antes de atearem
fogo ao quartel-general e a algumas fileiras de tendas dos legionários. Apesar de tudo, e considerando a oportunidade que um forte abandonado representava, os danos
não tinham sido demasiados.
Abandonado; sim, se se esquecesse o comandante da coorte e um dos centuriões. Tinham pago um preço elevado por se demorarem no campo para terminar um despacho urgente,
ou pelo menos assim rezava o relatório do oficial mais antigo entre os que tinham sobrevivido à batalha
- e que era corroborado pelos dois homens que esperavam, em sentido, à frente da sua mesa de campanha.
Vespasiano pegou no pergaminho enrolado, e bateu com ele no queixo enquanto observava os dois centuriões e ponderava o caso. O facto de Túlio ter apresentado um
relatório escrito em pergaminho, em vez das tábuas de cera mais habituais, era uma indicação clara de que queria deixar nos arquivos um registo permanente. Só isso
já era bastante suspeito, já que era a opção preferida dos homens que queriam proteger as próprias costas.
Vespasiano atirou o relatório para cima da mesa.
- Senhores, lamento, mas não acredito numa única palavra do que aqui está escrito. Portanto, digam-me, o que se passou de facto?
Cato respondeu pelos dois:
- É como diz Túlio, senhor. Foi-nos oferecida a possibilidade de combater.
- Sem qualquer promessa de que o castigo seria levantado?
- Senhor, com o devido respeito, - Macro inclinou a cabeça ao dizê-lo, - quando as vidas dos nossos camaradas estão em risco, não há tempo para discutir pormenores.
Luta-se, e pronto.
- Posso aceitar essa ideia, sim. Mas esta história do Máximo ter ficado para trás para terminar uma papelada... O que era mesmo? Ah, sim, um despacho que me era
dirigido.
Cato encolheu os ombros.
- Senhor, foi assim que as coisas se passaram. Peço permissão para falar francamente, senhor.
- Centurião, essa seria uma refrescante mudança. Continua.
- Suspeito que o comandante da coorte tinha percebido que nos dirigíamos a um combate quase sem esperança. Acho que ele arranjou maneira de se esquivar.
Estou a ver. E o centurião Félix?
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- Talvez ele estivesse a tentar safar Félix. Senhor, Máximo tinha os seus favoritos.
Vespasiano sorriu.
- E, por fim, cá estão vocês os dois. Um foragido à justiça militar, e um oficial que se recusou a obedecer a uma ordem. Suponho que ele tinha todo o direito de
não vos fazer quaisquer favores. Não acham?
- Senhor, visto de fora, assim parece. - Admitiu Macro. - Mas era preciso ter estado lá, senhor. Era preciso ter visto como ele comandava a coorte. Muito simplesmente,
não estava à altura da tarefa. Primeiro, foi aquele fiasco junto ao Tamisa, pelo qual Cato e os outros foram punidos. Não houve justiça nessa decisão, senhor. Depois,
foi a maneira como ele tratava os nativos. Até parecia que queria incitá-los à revolta. Obrigá-los a reagir. Eu era capaz de dizer que o homem era um louco.
Vespasiano agitou-se na cadeira, e limpou a garganta.
- Macro, essa opinião não é relevante, como muito bem sabes. Por vezes, um oficial tem que impor uma disciplina dura. Talvez Máximo estivesse apenas a fazer aquilo
que julgava necessário.
Cato olhava para o legado de forma fixa.
- A não ser, claro, que ele tivesse recebido ordens para ser extremamente duro com os nativos... - Os olhos dele estreitaram-se. - Por isso é que a legião estava
acampada junto ao caminho, do outro lado do pântano. Por isso é que tão depressa acorreram em nosso auxílio. Estava à espera que Carátaco surgisse e nos atacasse,
não é, senhor?
- Silêncio! - Cortou Vespasiano, e depois prosseguiu num tom frio e ameaçador. - O que pensa o legado desta legião não é assunto para ser discutido pelos seus centuriões.
Ficou bem claro?
- Sim, senhor! - Respondeu Cato, carrancudo.
- Muito bem. Tudo o que me resta então é decidir o que fazer convosco. - Vespasiano recostou-se, e por momentos observou-os sem expressão. Cato sentiu o suor irromper-lhe
nas palmas das mãos quando as fechou em punhos apertados, por trás das costas.
- Mais uma vez, prestaram um enorme serviço ao Imperador e aos vossos camaradas. - Começou o legado. - Acho que é justo dizer que foi a vossa acção, ao bloquear,
à saída do pântano, o caminho de fuga do inimigo, que selou o destino de Carátaco. E só a captura do comandante inimigo chegava para vos garantir a maior das condecorações
militares. Isto para não falar de uma promoção.
Macro lançou um sorriso na direcção de Cato. Este já compreendera que o discurso do legado era apenas um preâmbulo para algo que seria muito menos elogioso.
Vespasiano fez uma curta pausa antes de prosseguir.
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- Tenho porém que dizer que tu, Cato, ainda és um condenado à
morte, e tu, Macro, és culpado de insubordinação e revolta, o que também equivale a uma sentença de morte. Se o testemunho de um dos outros oficiais sobreviventes
da Terceira Coorte for credível, vocês os dois tiveram tudo a ver com o assassínio do centurião Máximo.
- Córdio! - Cuspiu Macro. - Foi aquele filho da puta do Córdio.
Se ele...
- Calma! - Cortou Vespasiano. Ergueu a mão para impedir que Macro continuasse a vociferar. Ao contrário do habitual, a discrição triunfou, e mais nenhuma palavra
de protesto atravessou os lábios do centurião.
- Como sabes, não existem provas que confirmem tal acusação. Ainda assim, não posso ignorar o facto de que os rumores sobre a morte de Máximo se espalham pela Legião.
Portanto, vocês os dois põem-me um problema. Não vos posso acusar do assassinato de outro oficial, pelo menos sem provas sólidas que vos impliquem. Todavia, penso
que não seria muito difícil convencer o general a dar-me a autoridade necessária para uma punição sumária...
Fez uma pausa para permitir que a ameaça fosse bem percebida.
- O problema é que vocês se tornaram uns heróis para os homens desta legião. Se fossem executados depois de tudo o que fizeram, o moral desta unidade seria francamente
afectado, e provavelmente por muito tempo. O general Pláucio não gostaria de ficar com mais esse peso em cima dos ombros. Mas, da mesma forma, não posso permitir
que continuem a servir nesta legião, quando os outros homens sabem que vocês podem ter tido um papel de cumplicidade no assassínio de outro oficial. Seria uma ameaça
inaceitável à disciplina necessária ao pleno funcionamento de uma legião. Não posso ter os meus centuriões superiores sempre preocupados com a possibilidade de algum
legionário descontente ou, que os deuses não o permitam, de um colega oficial, se lembrar de acertar contas antigas. Não posso permitir que vocês estabeleçam esse
precedente. Estão a ver o meu problema?
Macro foi o primeiro a responder:
- Senhor, o que está a sugerir? Vai-nos expulsar da legião?
O rosto do centurião mais velho exprimia o horror que sentia perante essa possibilidade. O fim da vida militar. Acabados os saques, nada de bónus nem de reforma
honrada e confortável numa província colonial. A vida militar era tudo o que Macro conhecia. Sem ela, sem uma fonte de rendimentos, o que poderia ele fazer? Mendigar?
Tornar-se guarda-costas de algum fedelho irritante, filho de um senador? As imagens fugidias que e atravessaram a mente apenas lhe prometiam a miséria. A destruição
da sua pessoa, num longo e penoso processo de degradação.
386
Cato, como era habitual, reflectia mais profundamente. Era jovem. Tinha já visto mais da vida e da morte do que alguma vez supusera possível, e tinha as cicatrizes
para o demonstrar. Talvez já tivesse tido a sua conta daquele estilo de vida, talvez achasse alguma coisa melhor. Algo mais pacífico, mais recompensador, algo que
não lhe apontasse o caminho para um fim precoce.
- Expulsar? - Vespasiano mostrou-se surpreendido pela ideia. - Não. Vocês são demasiado valiosos para Roma para serem desperdiçados dessa forma. Demasiado valiosos.
Se aprendi alguma coisa como legado, foi isto. Oficiais de jeito são difíceis de encontrar, mas oficiais de topo são mesmo raros. E Roma não se pode dar ao luxo
de os desaproveitar. Temo porém que a vossa estadia na Segunda Legião tenha chegado ao fim. Têm que ser transferidos para outra legião.
- Qual, senhor? - Inquiriu Cato.
- Nenhuma das que fazem parte do exército do general Pláucio, seguramente. Os boatos sobre o vosso passado nunca vos largarão enquanto permanecerem nesta província.
Portanto, serão renomeados. Vão deixar a Britânia. Vou levar-vos para Roma comigo. E vou ver o que posso conseguir-vos no quartel-general imperial. O Narciso deve-me
um ou dois favores.
Cato não conseguiu esconder a surpresa.
- Senhor, vai deixar a Britânia? Porquê?
- O meu turno terminou. - Respondeu Vespasiano, sem entrar em mais detalhes. - Recebi a notificação pouco depois da vossa fuga. Daqui a poucos dias deixo de ser
legado da Segunda. O meu substituto deve estar mesmo a chegar.
- Senhor, porquê? Depois de tudo o que conseguiu...
- Parece que o general perdeu a confiança em mim. - Vespasiano deu um sorriso cansado. - Além disso, há um magote de senadores todos à procura de um quinhão de glória.
E eu não tenho grande influência na corte de Cláudio. Eles sim. Tenho que ser mais claro?
- Não, senhor.
- Ainda bem. - Vespasiano acenou. - Bom, tenho mais questões para resolver. E muita coisa para fazer antes da chegada do meu substituto. Têm alguns dias para arrumar
todos os vossos assuntos na Segunda. Paguem as vossas dívidas. Recebam os vossos salários atrasados, e façam as vossas despedidas. Podem seguir.
387
XLII

Dez dias depois, Cato e Macro encontravam-se sentados num tosco banco de madeira junto ao navio mercante que havia de os levar para a costa da Gália, na companhia
do legado. O Ajax estava encostado ao cais de Rutúpias, à espera de zarpar para o porto de Gesoríaco. Os dois centuriões vestiam túnicas despojadas e, à sombra,
observavam o espectáculo da descarga dos porões; o capitão do navio não parava de berrar com os carregadores, para terem cuidado com a sua preciosa mercadoria. Os
escravos tinham tentado de tudo para partirem "acidentalmente" uma ânfora e assim conseguirem uma bebida. Mas o capitão era experiente naquele tipo de carga, e ameaçava
esfolar o primeiro infeliz que danificasse um dos preciosos vasos. A sua voz já estava rouca devido ao esforço de competir com os gritos estridentes das gaivotas
que sobrevoavam o porto, à cata de migalhas.
Já passara bem mais de um ano desde que tinham pela última vez visitado o porto de onde partira a invasão. À altura, Cato era o optio na centúria de Macro, e não
passava de uma criatura ansiosa e inadequada, que desconfiava que não sobreviveria até ao Inverno que se aproximava. Rutúpias fora nesse tempo um vasto depósito
de abastecimentos, ao qual chegavam sem cessar homens, equipamentos e provisões durante a primeira época de campanha. O canal de acesso ao mar tinha estado congestionado,
repleto de navios que aguardavam a sua vez de acostar e despejar o conteúdo dos porões. Havia milhares de escravos em actividade incessante, a descarregar tudo o
que era necessário para que a voraz máquina de guerra romana prosseguisse o seu avanço implacável.
Entretanto, já fora construída uma base avançada ao longo do curso do Tamisa, e fora lá que o Imperador Cláudio se juntara ao seu exército, antes de rumar a norte
e a leste para ir combater e derrotar Carátaco à grand capital, Camaloduno. Agora, Rutúpias já não possuía
relevância para o esforço militar. A população civil crescera
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grandemente, e uma povoação estendia-se para o interior. A paliçada do depósito tinha dado lugar a armazéns, e estes davam para uma espécie de fórum, no qual os
mercadores e os banqueiros discutiam negócios pelo meio das tendas de comerciantes, recém-chegados da Gália para aproveitarem o novo mercado que se abria aos produtos
do Império.
- É difícil acreditar que isto tudo aconteceu em tão pouco tempo.
- Disse Cato.
- Ah, o progresso é mesmo lindo, não é? - Continuou Macro.
- Dá-lhe mais uns anos, e vai parecer que Roma sempre dominou estas paragens. Até se podia ter tornado um bom sítio para passar a velhice.
- Acha, a sério?
Macro dedicou alguns instantes a considerar o assunto.
- Não. Um clima de merda, e a bebida não passa de mijo disfarçado. Dêem-me uma quintinha na Campânia, nem hesitava. Tenho um tio perto de Herculano, que é
dono de uma pequena vinha. Isso é que era! Para mim não há melhor forma de passar a velhice. Um sítio calmo ao pé do mar, onde o maior risco que se corre é o de
comer uma ostra estragada.
Cato obrigou-se a sorrir. Faltavam menos de dez anos de serviço a Macro. Mas Cato tinha ainda que enfrentar vinte e três anos de serviço nas Águias; e, para os contar,
era preciso em primeiro lugar sobreviver. O que era relativamente raro, para os legionários em missões de combate. Se não fosse um qualquer inimigo a abatê-los,
a dura vida de campanha encarregava-se quase seguramente de os apanhar. Os dois homens olharam para lá da povoação, para os campos que se estendiam pelas doces colinas,
conscientes de que provavelmente não voltariam a avistar aquela paisagem. Foi Cato quem rompeu o silêncio:
- O que acha que nos vai acontecer?
Macro mordeu os lábios.
- Outra legião, suponho. Era bom que oferecesses umas preces para que fôssemos parar a uma guarnição calma e tranquila. Na Síria, de preferência. - Os olhos
de Macro semicerraram-se, enquanto ele se perdia na sua fantasia preferida quanto à nova colocação. - Sim, a Síria seria bem agradável...
Cato já sabia que a viagem de Macro pelos seus sonhos de carreira ia levar o seu tempo, por isso, acenou a um vendedor de vinho que passava e comprou-lhe dois copos.
O vendedor, um tipo entroncado com pronúncia grega, grunhiu quando viu os copos de estanho a serem tirados dos sacos que os oficiais transportavam.
- Ah, soldados?
Cato confirmou.
- Recém-chegados? - Perguntou o vendedor, com esperança na
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voz. - Posso indicar-lhes os melhores lugares para arranjarem uma bebida. Com as melhores raparigas.
- Não. Estamos de partida. - Cato apontou. - Naquele navio.
- Uma pena. Hoje em dia, já não se vêem muitos legionários. É
mau para o negócio. - O vendedor continuou a avaliá-los, enquanto enchia a medida de vinho. - Então não são dispensas médicas?
- Fomos transferidos.
- Essa é nova. O trânsito de soldados em boas condições físicas só tem tido um sentido. Têm sorte por sair desta ilha inteiros.
- Podes dizê-lo.
O vendedor desejou-lhes uma boa viagem, depois de mais uma tentativa de os convencer a experimentar um bordel de preços convidativos que ele conhecia e ficava ali
perto.
Assim que o vinho foi descarregado, o capitão do navio passou a vigiar o embarque da carga para o regresso - grandes fardos de peles, na maior parte, e duas jaulas
que continham vários exemplares dos peludos e gigantescos cães de caça da ilha, que se limitavam a olhar através das grades, quase em letargia, enquanto eram içados
e depositados no porão. Era o meio de Outubro e o ar estava fresco, embora o rosto do capitão estivesse coberto pelo suor, devido ao esforço. Avistou os dois romanos
e fez-lhes impacientes sinais.
- Vamos lá ver o que nos quer aquele. - Avisou Cato.
Puseram os sacos ao ombro e atravessaram o cais, subindo cuidadosamente pela estreita prancha de embarque e saltando para o convés.
- Isso, levem o tempo que quiserem. - Irritou-se o capitão. - Façam de conta que não tenho que aproveitar a maré nem nada.
- Parece-me que este está com pressa. - Macro piscou o olho na direcção de Cato, enquanto pousava o seu saco e se espreguiçava. - Ouça, não vamos a lado nenhum enquanto
não chegar o outro passageiro.
O capitão cruzou os grossos braços, com ar de desafio.
- Ai não?
- Não, se souber o que lhe convém.
- Ninguém me ameaça no convés do meu próprio navio, muito menos um par de legionarecos de caca. Se esse tipo não estiver cá quando tocar o sino para a mudança de
quarto, zarpamos.
- Não, não zarpamos. - Contrapôs firmemente Macro. - Acho que o legado não ia ficar nada contente se isso acontecesse.
- Legado? - As sobrancelhas do capitão arquearam-se.
- Tito Flávio Vespasiano. O que era o comandante da Augusta Segunda Legião. E já agora, pá, não somos legionarecos. Somos centuriões.
390

- Centuriões? - O capitão olhou para Cato, curioso. - Os dois?
- Pois é. Portanto, amigo, não nos dês problemas.
O capitão ficou sem resposta. Limitou-se a olhá-los com mal disfarçado enfado, e afastou-se rapidamente, berrando uma enxurrada de ordens aos tripulantes.
- Cretino. - Murmurou Macro.
- O que estará a demorar o legado? - Perguntou Cato, enquanto espreitava para o cais. - Supostamente ia apenas apresentar os seus cumprimentos ao comandante da guarnição.
Macro encolheu os ombros.
- Já sabes como é a malta dessa categoria. Sempre prontos a partilharem uns momentos. Provavelmente, a esta hora estão a trocar moradas e a prometer que se hão-de
visitar lá em Roma.
De repente, Cato esticou ainda mais o pescoço.
- Lá está ele!
- Bom, lá se foi a minha teoria. - Resmungou Macro. - Pelo menos vamos poder partir antes que o imbecil do capitão tenha um ataque.
Tal como os centuriões, o legado viajava leve, sem grande bagagem. Esta seguiria mais tarde e iria ter a Roma. A sua arca de viagem já tinha sido levada para bordo,
e ele envergava uma túnica de seda com um bordado a ouro na bainha - um estilo simples, mas que claramente indicava o seu estatuto, - o que fazia com que as pessoas
abrissem caminho para lhe dar passagem enquanto ele percorria o cais, à procura do Ajax. Cato acenou e conseguiu atrair-lhe a atenção e, no momento seguinte, as
botas cardadas do legado faziam-se ouvir no convés. Automaticamente, Cato e Macro puseram-se em sentido.
- À vontade. - Vespasiano parecia perturbado. - Acabo de receber algumas notícias que vos devem interessar. Esta manhã chegou um correio militar.
Macro coçou o queixo.
- E o que se passa então, senhor?
- Carátaco escapou.
- Escapou? - Macro abanou a cabeça, descrente. - Como?
- Disseram-me que houve um tumulto entre os prisioneiros, por causa das rações, e foram enviados alguns homens para acalmar a situação. Mas afinal o tumulto era
uma armadilha, e os prisioneiros atiraram-se ao portão assim que ele foi aberto. Ao que parece, lançaram-se sobre os guardas com as mãos nuas. Centenas deles foram
mortos, mas conseguiram que Carátaco fugisse. Isto é que é lealdade. - Vespasiano virou-se para Cato.
- Tu conheces o homem. O que achas que ele vai fazer agora?
Cato encolheu os ombros.
391
- Não faço ideia, senhor. Limitei-me a falar com ele algumas vezes.
- Achas que vai tentar continuar a luta?
Cato anuiu.
- Sim, senhor. Quanto a isso, acho que ele é o tipo de homem que nunca desiste. Há-de preferir a morte, se a isso for forçado.
- Portanto, isto está longe de estar terminado. - Vespasiano abanou a cabeça com ar pesaroso. - Depois de tudo o que se passou, tinha alguma esperança...
Não terminou a frase, limitando-se a olhar para a distância, com uma expressão de cansaço. Dirigiu-se lentamente à proa do navio e apoiou-se no parapeito. Macro
e Cato observaram-no algum tempo, antes de o primeiro abrir a boca.
- Bem, temos que admirar Carátaco. Nunca se dá por vencido.
Cato concordou e juntou, tranquilamente:
- E pelo menos teve a gentileza de não fugir antes de nós recebermos os parabéns pela captura.
Macro olhou-o com os olhos muito abertos. Depois desatou a rir, e deu uma palmada no ombro do amigo. Este piscou os olhos.
Com os últimos passageiros a bordo, o capitão deu ordens para zarpar, pelo que dois grandes remos foram descidos dos lados do navio. A tripulação esforçou-se por
manejá-los de forma a que o Ajax manobrasse pelo canal sem embater noutros navios. Então os remos foram recolhidos e o velame solto. Uma brisa ligeira empurrou-os
para mar aberto, onde o vento soprava com vigor, fazendo com que a vela se enfunasse como uma barriga bem repleta. A proa subia e descia à medida que enfrentava
a ondulação. Os dois amigos foram para a ré, onde ficaram a ver a costa desaparecer gradualmente, até que a Britânia ficou reduzida a uma silhueta vaga no horizonte.
Por essa altura, Macro perdeu o interesse na vista, e foi para o pé do mastro central, tentar despertar o interesse da tripulação por um jogo de dados.
Cato deixou-se ficar encostado à balaustrada, tentando perceber por que razão se sentia tão emocionado ao ver desaparecer a terra onde tanta dor tinha sofrido, tanto
tinha perdido, e onde tinha assistido a tanta crueldade que lhe chegava para a vida toda. Devia sentir-se aliviado por a deixar para trás, pensou. Mas, em vez disso,
sentia um vazio estranho, como se tivesse deixado uma parte essencial do seu ser naquelas paragens. No momento seguinte, a popa do Ajax subiu numa vaga e Cato teve
um vislumbre da ilha já distante; depois o navio mergulhou na cava da onda, e a Britânia desapareceu da sua vida.
Pouco depois, Cato sentiu que alguém se aproximava. Olhou para Macro que contemplava a esteira branca do navio.
392

- Parece que nesta porra de navio não há ninguém que queira enfrentar um centurião ao jogo.
- Não os pode censurar. - Cato sorriu.
- Bem, suponho que tu...
- Não.
- Pronto, está bem. - Macro não escondeu o seu desapontamento. - E porque é que ainda aqui estás a cismar?
Cato olhou para o amigo em silêncio. De facto, tinha começado a pensar no futuro. No que sucederia, agora que tinham deixado a Segunda Legião. O legado prometera
zelar pelos seus interesses quando chegassem a Roma. Tentaria usar a sua influência para lhes arranjar colocação noutra legião, mas tudo dependia das vagas existentes.
Naquela altura, só as legiões da Britânia estavam em campanha, e a necessidade de centuriões nas outras legiões espalhadas pelo Império devia ser reduzida. A perspectiva
de passar meses em Roma sem ter nada para fazer, na companhia de um Macro que ficaria cada vez mais frustrado pela inactividade, não era muito atraente. Cato esperava
que, quando surgisse a oportunidade, uma nova legião oferecesse ao amigo uma vida recheada de actividades militares, antes que ele desse em doido.
Sorriu.
- Oh, estava só a pensar.
- Em quê?
- No que se vai seguir. Seja o que for, só pode ser melhor do que estes dois últimos anos.
- Achas? - Macro fungou. - Há lugares piores, acredita. E com a sorte que temos, podes crer que vamos acabar por os conhecer.
Cato virou-se para dar mais uma olhadela, deixando o olhar perder-se na esteira do Ajax, que se ia desvanecendo à distância, até chegar ao horizonte.
- Será que voltaremos a ver a Britânia?
Macro encolheu os poderosos ombros.
- Olha, miúdo, muito francamente, temo que isso possa vir a acontecer.

 

NOTA DO AUTOR

Embora Carátaco e os seus guerreiros tenham sido varridos pelas legiões no campo de batalha, no ano seguinte ao começo da invasão, o indómito comandante britânico
manteve vivo o espírito de resistência contra o domínio romano. Depois da derrota na região sudeste da ilha, Carátaco procurou refúgio junto das tribos que habitavam
naquilo que é hoje em dia o País de Gales. As tribos das montanhas, selvagens e belicosas, partilhavam o seu desejo de independência, e a sua vontade era encorajada
pelos druidas que mantinham vivos os antigos cultos celtas, a partir da ilha de Anglesey, onde se tinham refugiado. A sua determinação de continuar a luta, ajudada
pelo terreno inóspito, fez a vida negra aos governadores da nova província romana da Britânia por muitos e longos anos. Carátaco partilhou imediatamente com os seus
novos aliados a experiência que tinha adquirido quanto à melhor maneira de enfrentar Roma e os seus soldados. Colunas de elevada mobilidade desencadeavam ataques
repentinos contra os postos dispersos de legionários e contra as suas linhas de abastecimento.
Roma tinha uma longa tradição de nunca admitir a derrota, nem de permitir a existência de bolsas de resistência nos territórios que conquistava e anexava. Por fim,
Carátaco foi expulso de Gales e viu-se obrigado a fugir para o norte, numa tentativa de instigar a revolta da poderosa confederação brigantina. Numerosos nobres
dessa tribo apoiavam-no nessa pretensão, mas a rainha Cartimândua temia provocar a ira de Roma. O resultado desta luta política é outra história. Uma história que
poderá muito bem vir a obrigar dois experientes e desenvoltos oficiais romanos a regressar à Britânia.
Mas, por enquanto, Macro e Cato vão a caminho de Roma. Sabemos, a partir das pedras tumulares de centuriões, que era vulgar que esses homens servissem em unidades
espalhadas por todo o Império. Assim, os nossos heróis contemplam a certeza de viajarem para novas terras e enfrentarem em breve uma vasta gama de novos inimigos.
Porém, antes de
serem colocados numa outra legião, vão ter que superar os rumores e as suspeitas que se espalharam sobre as suas acções durante a guerra contra Carátaco. Terão que
demonstrar que são dignos de voltar a ser colocados nas fileiras das legiões de Cláudio, Imperador. À sua frente vai surgir uma perigosa missão secreta, na qual
será necessário obter um artefacto sagrado que pode determinar o futuro do Império.

 

 

                                                    Simon Scarrow         

 

 

 

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