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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A AGUIA DO DESERTO / Simon Scarrow
A AGUIA DO DESERTO / Simon Scarrow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Nada mais simples para mim do que percorrer o território que fornecia o cenário para os cinco primeiros livros da série da Águia, a antiga Britânia; a paisagem na qual Macro e Cato se viam forçados a combater era-me perfeitamente familiar. Situar a acção deste novo volume no deserto, nas mais longínquas franjas do Império Romano, revelou-se uma questão mais complexa. Até ao momento em que recebi um telefonema doSr. Daghistani, da embaixada da Jordânia, e fiquei a saber que Sua Makkjestade o Rei Abdullah era um leitor entusiasta da série, e que fazia a cortesia de me convidar, com a minha família, a visitar o seu país e a conhecer de perto as numerosas ruínas romanas que existem na Jordânia.

Gostaria de exprimir a minha mais sincera gratidão a Sua Majestade, pela maravilhosa hospitalidade que me foi oferecida. Estendo essa gratidão a todos os jordanos que fizeram da nossa visita ao seu país um verdadeiro prazer. Agradecimentos a Rozana Abu Hamdi, do Real Gabinete do Protocolo, por ter organizado um itinerário fascinante, que nos levou a inúmeros locais romanos; ao nosso condutor, Moraud, que se revelou um paciente professor de árabe, e acolheu com prazer os nossos limitados progressos na sua língua; e, por fim, um obrigado a Samer Mouasher, que conhecia a localização exacta de um certo forte no deserto, de crucial importância para o desenlace deste romance.

 

 

 

 

 

 

I

Foi o centurião Macro quem primeiro reparou neles: um pequeno grupo de homens, de capuzes puxados sobre as cabeças, que entraram na rua apinhada a partir de um escuro
beco transversal, misturando-se imediatamente e com a maior das naturalidades no fluxo de pessoas, animais e veículos que se dirigiam ao grande mercado que tinha
lugar no terreiro em frente ao Templo. Apesar de ser apenas o meio da manhã, o sol já fustigava Jenr-salém, fazendo o ar nas estreitas ruas encher-se de cheiros
intensos, nem todos agradáveis; o familiar perfume das cidades do Império, aqui misturado com aromas estranhos, que evocavam o Oriente - bálsamo, citrinos, especiarias.
Debaixo do sol abrasador e do ar abafado, Macro sentia perfeitamente o suor a irritar-lhe a pele da face e do corpo, e não pôde deixar de se perguntar como seria
alguém capaz de suportar um capuz naquele calor. Manteve o olhar fixo nos membros do grupo à medida que estes seguiam pela rua, cerca de vinte passos à sua frente.
Não falavam uns com os outros, e nem pareciam dar conta da agitação da turba que os rodeava; limitavam-se a avançar com a corrente humana. Passou as rédeas da mula
para a outra mão, e deu um toque ao centurião Cato, habitual companheiro de aventuras, que seguia a seu lado, à frente da diminuta coluna de recrutas das tropas
auxiliares romanas que se arrastava pelas ruas poeirentas.
- Aqueles estão a preparar alguma.
- Hã? - Cato pareceu despertar de um sonho, e olhou em redor. - Desculpe. O que disse?
- Ali à frente. - Macro fez um gesto rápido na direcção dos homens que vigiava. - Estás a ver aquele grupo de encapuzados?
Cato franziu os olhos, até localizar os alvos indicados pelo amigo.
- Sim. O que têm?
- Bom, não achas estranho? - Macro olhou para o companheiro. Cato era um miúdo esperto, admitia-o, mas às vezes não dava conta de um perigo ou de um detalhe
crucial que lhe passava mesmo à frente do nariz.
Sendo mais velho, Macro atribuía esse ponto fraco à falta de experiência do amigo. Ele próprio, já tinha passado quase dezoito anos ao serviço das legiões - o tempo
suficiente para desenvolver a capacidade de apreender rapidamente tudo o que o rodeava e se podia revelar ameaçador. A sua vida dependia disso, como já tinha comprovado
em demasiadas ocasiões. Tinha, aliás, várias cicatrizes espalhadas pelo corpo, que atestavam momentos em que ignorara o perigo até ser quase demasiado tarde. O facto
de ainda estar vivo demonstrava que tinha a pele dura e que, num combate, não tinha qualquer problema em fazer apelo a uma brutalidade sem limites. Como qualquer
centurião das legiões do Imperador Cláudio, era um homem com quem se podia contar num aperto. Bom, talvez não como qualquer centurião, reflectiu, enquanto contemplava
Cato. O amigo era uma espécie de excepção. Tinha conseguido a promoção ao centuriato numa fase atrozmente precoce da sua carreira militar, graças a cérebro, coragem
e sorte, mas também a uma pitada de favoritismo. O último ingrediente podia facilmente irritar um tipo como Macro, que subira a pulso nas fileiras, mas este era
suficientemente honesto para reconhecer que Cato justificara plenamente a promoção. Nos quase quatro anos que tinham passado desde que o jovem se juntara à Segunda
Legião, e durante os quais tinha servido ao seu lado na Germânia, na Britânia e na Ilíria, tinha-se transformado de um recruta de ar inocente num rijo veterano.
Mesmo assim, de vez em quando ainda andava com a cabeça nas nuvens.
Macro suspirou, impaciente.
- Capuzes. Neste calor. Esquisito, não te parece?
Cato olhou outra vez para os homens e encolheu os ombros.
- Agora que fala nisso, é bizarro, com efeito. Talvez sejam membros de uma seita religiosa qualquer. Sabem os deuses quantas delas existem por estas bandas.
- Lançou uma fungadela desdenhosa. - Quem poderia supor que uma única religião tivesse tantas? E, pelo que tenho ouvido, os indígenas são do mais religioso que pode
haver. Ninguém bate os habitantes da Judeia quanto ao fervor pelo seu deus.
- Pode ser que sim. - Considerou Macro, pensativo. - Mas aquele bando não me parece lá muito religioso.
- Como é que sábe?
- Sei. - Macro deu um toque ligeiro no nariz. - Acredita em mim. Vão armar confusão.
- De que género?
- Não sei. Por enquanto. Mas continua a observá-los, e diz-me o que pensas.
- Pensar? - Cato franziu o sobrolho, irritado. - Isso era o que eu estava a fazer quando me interrompeu.
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- Ah? - Retorquiu Macro, mantendo o olhar no grupo que seguia à sua frente. - E eu a supor que estavas a meditar nalgum assunto de capital importância, capaz
de alterar a face da Terra. Pelo menos era o que parecia, pelo ar ausente que exibias.
- Engraçado. Por acaso, estava a pensar no Narciso.
- No Narciso? - A expressão de Macro carregou-se assim que ouviu o nome do secretário imperial, cujas ordens os tinham enviado para leste. - Esse pulha? Para
quê perder tempo com ele?
- Bom, é que desta vez ele lixou-nos com toda a força. Tenho muitas dúvidas de que consigamos completar esta missão. Tresanda.
- E isso é novidade? Todas as tarefas que o sacana nos atribuiu ao longo dos tempos tresandavam. Até parece que somos as esponjas de limpeza das legiões imperiais.
Sempre na merda.
Cato olhou para o amigo com uma expressão de desagrado, e preparava-se para lhe responder, quando Macro esticou o pescoço e sibilou.
- Olha! Vão agir.
Um pouco à frente via-se o grande arco que dava entrada para a vasta esplanada exterior do Templo. A luz era ofuscante, e por um breve instante confundiu as silhuetas
da multidão à sua frente, pelo que os olhos de Cato levaram algum tempo a reencontrar os encapuzados. Tinham passado todos para o mesmo lado da rua assim que tinham
ultrapassado o arco, e agora dirigiam-se rapidamente para as mesas dos agiotas e dos cobradores de impostos, no centro do grande terreiro.
- Vamos. - Macro deu com os calcanhares no flanco da mula, fazendo o animal bramir. Toda a gente olhou na direcção do som e se apressou a sair da frente dos
animais. - Segue-me.
- Espere! - Cato segurou-lhe o braço. - Está a assustar-se com sombras. Mal chegámos à cidade e já quer arranjar uma cena de pancada?
- Cato, estou-te a dizer, aqueles tipos estão a preparar alguma.
- Sabe lá. Não pode é entrar por ali adentro e esmagar quem se meter no caminho.
- Ora essa, porque não?
- Ia provocar um motim. - Cato deslizou da sela e esperou de pé ao lado da mula. - Se quer mesmo segui-los, então vamos a pé.
Macro lançou mais uma olhadela ao grupo suspeito.
- Seja. Optio!
Um gaulês alto e de face dura destacou-se da coluna e saudou Macro.
- Senhor?
- Toma as rédeas. Eu e o centurião Cato vamos dar um passeiozito.
- Um passeio, senhor?
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- Isso mesmo. Espera por nós logo a seguir ao portão. Mas mantém os homens formados, para o caso de serem precisos.
O optio franziu o sobrolho.
- Precisos para quê, senhor?
- Alguma confusão. - Macro sorriu. - Que mais poderia ser? Cato, vamos. Antes que os percamos de vista.
Com um suspiro, Cato seguiu o amigo, juntando-se à grande corrente de corpos que desaguava na esplanada. Os homens que seguiam já estavam a alguma distância, ainda
a dirigirem-se às bancas dos seus aparentes alvos. Os dois centuriões abriram caminho por entre a multidão, afastando sem cerimónia algumas pessoas e atraindo olhares
de hostilidade e imprecações murmuradas.
- Romanos de merda... - Disse alguém, num grego com forte sotaque.
Macro estacou e rodou sobre os calcanhares.
- Quem é que disse isso?
A turba recuou perante a ameaça evidente na atitude do centurião, mas os olhares hostis não o largaram. Macro fixou-se num jovem alto e de ombros largos, cujos lábios
mostravam bem o desprezo que nutria pelos estrangeiros.
- Ah, foste tu, não é verdade? - Macro sorriu, e acenou-lhe para que se aproximasse. - Vem cá, anda. Se te achas homem para isso.
Cato pegou-lhe no braço e puxou-o.
- Deixe-o em paz.
- Deixá-lo? - Macro fez um esgar de raiva. - Porquê? Aquele tipo precisa de umas lições em hospitalidade.
- Não, não precisa. - Insistiu Cato, calmamente. - As mentes e os corações, lembra-se? Foi o que nos disse o procurador. - Aproveitou para indicar as mesas
com dinheiro. - Além disso, os seus amigos dos capuzes estão a escapar.
- Tens razão. - Macro voltou-se ainda uma última vez para o outro. - Judeu, atravessa-te outra vez no meu caminho, e será a última coisa que fazes.
O interpelado olhou-o cheio de desdém, e cuspiu no solo; Cato viu-se forçado a arrastar Macro dali para fora, antes que o veterano respondesse à letra. Moveram-se
com rapidez, reduzindo a distância que os separava do grupo que continuava a abrir caminho por entre a multidão, dirigindo-se às bancas. Sendo mais alto do que o
amigo, Cato não tinha dificuldade em mantê-los à vista, enquanto furavam por entre a exótica mistura de raças que preenchia a grande praça. No meio dos locais viam-se
escuros idumeus e nabateus, muitos dos quais ostentavam turbantes a cobrir-lhes as cabeças.
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Tecidos de todas as cores e padrões esvoaçavam por entre as pessoas, e inúmeras conversas em línguas desconhecidas enchiam o ar.
- Cuidado! - Avisou Macro, agarrando o braço do jovem e puxando-o, no momento preciso em que um camelo pesadamente carregado se lhe atravessou no caminho.
A armação de madeira que o animal levava no dorso estava carregada de fardos de um tecido de textura fina. O camelo soltou um profundo bramido quando se desviou
para evitar pisotear os dois romanos. Depois de o animal passar, Cato lançou-se de novo para a frente, mas logo estacou.
- Que se passa? - Quis saber Macro.
- Merda... Não os vejo. - Os olhos de Cato percorriam rapidamente a zona da multidão onde pela última vez tinha avistado o bando que seguiam. Mas não parecia
haver sinais do grupo de encapuzados. - Devem ter tirado os capuzes.
- Oh, estupendo. - Resmungou Macro. - E agora?
- Vamos para junto dos cobradores de impostos. Era para lá que eles pareciam estar a ir.
Com Cato a mostrar o caminho, os dois centuriões dirigiram-se à mais próxima das bancas instaladas ao longo dos degraus que levavam ao patamar que rodeava as paredes
do templo. As primeiras pertenciam aos banqueiros e usurários, que se sentavam em cadeiras almofadadas e assim conduziam os seus negócios, comodamente instalados.
Logo a seguir havia uma secção mais pequena, onde esperavam os colectores de impostos e os seus musculosos ajudantes contratados, aguardando os pagamentos devidos
de todos os que tinham sido taxados. Viam-se por ali grandes pilhas de tábuas enceradas onde estavam inscritos os detalhes respeitantes aos que deviam pagamento,
nomes e montantes. O direito de impor taxas específicas tinha sido adquirido pelos cobradores em leilões, organizados para o efeito pelo procurador romano da província,
na capital administrativa do território, Cesareia. Depois de terem pago uma quantia fixa aos cofres imperiais, tinham obtido a autoridade legal para impor as taxas
que julgassem adequadas ao povo de Jerusalém, e portanto tentavam recolher a maior soma possível. O sistema era duro, mas assim era aplicado por todo o Império Romano,
com o óbvio resultado de fazer dos cobradores de impostos uma classe social profundamente odiada e desprezada. O facto não deixava de agradar ao Imperador Cláudio
e ao pessoal do tesouro imperial, já que este ódio se focava nos colectores provinciais, e não naqueles a quem estes tinham adquirido o direito de cobrar os impostos.
Uma explosão súbita de gritos e guinchos atraiu a atenção de Cato e Macro para a outra ponta da linha de bancas. Um grupo de homens tinha-se separado da multidão.
O sol refulgiu numa lâmina, e Cato
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apercebeu-se de que todos eles estavam armados; entretanto, o bando rodeava um dos cobradores como uma alcateia prestes a abater a presa. O guarda-costas olhou uma
vez para as lâminas dos assaltantes, virou-se e desapareceu sem perda de tempo. O cobrador lançou as mãos para o rosto, numa tentativa de se proteger, mas depressa
desapareceu de vista, quando o bando se lançou sobre ele. A mão de Cato dirigiu-se automaticamente ao punho da espada, enquanto corria pelas traseiras das bancas.
- Vamos, Macro!
Ouviu-se o som da espada de Macro a ser desembainhada, enquanto os dois centuriões corriam para os assassinos, empurrando quem surgia pelo caminho e saltando sobre
as pilhas de registos dos agiotas. Cato viu como os atacantes se afastavam finalmente do cobrador, prostrado sobre a sua mesa, a túnica branca enxovalhada e ensanguentada.
À frente da banca a multidão recuava, e muita gente gritava de horror e tentava fugir. Os atacantes, que no instante anterior ainda tinham os capuzes a disfarçar-lhes
as feições, avançaram sobre os ocupantes da banca seguinte. Estes tinham primeiro ficado paralisados pela surpresa e pelo medo, mas já se tinham apercebido do perigo
que corriam e tentavam desesperadamente escapar aos homens que brandiam as lâminas curtas e curvas que davam nome ao grupo a que pertenciam: os sicários. Assassinos,
das franjas mais extremistas dos zelotas que resistiam ao domínio romano.
Os sicários estavam tão concentrados na sua macabra tarefa que só se aperceberam da presença de Cato e Macro no último momento; um deles levantou o olhar no preciso
instante em que Cato afastava um dos cobradores e saltava em frente de espada em riste e expressão determinada. A ponta da espada do centurião atingiu o adversário
na parte lateral do pescoço, sofreu um desvio na ossadura e mergulhou profundamente no peito, trespassando-lhe o coração. O homem tombou imediatamente para a frente,
com um suspiro, quase arrancando a lâmina das mãos do jovem. Apoiando a bota no corpo do oponente, Cato lançou-o para trás e recuperou a espada, agachando-se de
imediato, em busca de novo adversário. Mal deu pela passagem de Macro, uma mancha de cor e movimento, golpeando o braço do sicário mais próximo e quase o amputando.
O homem caiu, uivando de dor e largando a arma que empunhava. Os outros abandonaram de imediato o cobrador que estavam a massacrar e viraram-se para enfrentar os
dois romanos. O líder do bando, um tipo atarracado de ombros largos, berrou uma ordem, e os seus homens espalharam-se de imediato, alguns rodeando as bancas, outros
movimentando-se de forma a cortar a retirada aos centuriões. Enquanto olhava em volta, Cato manteve a ensanguentada ponta da sua espada bem levantada.
- Eles são sete.
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- Isso é mau. - Macro ofegava quando assumiu a posição mais aconselhada, costas com costas com Cato. - Miúdo, não nos devíamos ter enfiado nesta situação.
A multidão tinha debandado para o portão, deixando um largo espaço vazio em redor dos dois romanos e dos assassinos. O pavimento do pátio estava coberto de pedaços
de comida e de cestas abandonadas, que as pessoas tinham deixado para trás ao fugir em pânico.
Cato lançou uma gargalhada amarga.
- A ideia foi sua, lembra-se?
- Para a próxima, não me deixes ter ideias deste género.
Antes que Cato conseguisse responder, o chefe dos sicários lançou nova ordem, e os homens começaram a aproximar-se rapidamente, de lâminas preparadas. Não havia
qualquer saída para os romanos, e Cato agachou-se ainda mais, os membros tensos e os olhos a saltarem de um adversário para outro, enquanto estes prosseguiam no
avanço e já estavam a menos do que o comprimento de uma lança.
- E agora? - Murmurou, quase para si mesmo.
- Foda-se, faço lá ideia.
- Boa. Precisamente o que eu queria ouvir.
Notou um movimento lateral, e virou-se mesmo a tempo de reparar no salto de um dos atacantes que tentava atingir o flanco de Macro.
- Cuidado!
Mas Macro já estava em movimento, transformando a lâmina que empunhava numa faixa de luz que descreveu um arco e desarmou o atacante. Antes mesmo que a lâmina atingisse
o solo, outro dos sicários fez menção de avançar, obrigando Cato a virar-se para ele, pronto a deter o golpe. Em resposta, outro dos oponentes movimentou-se, a ponta
da faca a agitar-se no ar. Cato mal se conseguiu reposicionar para enfrentar a nova ameaça. Com a mão livre empunhou a adaga que levava ao cinto, uma arma de lâmina
larga e pouco ágil em comparação com as finas lâminas dos sicários, mas que ainda assim o fez sentir-se melhor. O chefe dos sicários deu nova ordem, e Cato apercebeu-se
claramente da raiva contida na sua voz. Queria aquilo terminado e depressa.
- Macro! - Gritou Cato. - Siga-me! Vamos atacar!
Lançou-se sobre os adversários, seguido pelo amigo, que berrava a
toda a força dos pulmões. A súbita inversão de papéis surpreendeu os sicários, que recuaram antes de se deterem por um instante vital. Cato e Macro investiram sobre
os homens mais próximos, fazendo-os saltar para o lado e permitir assim a passagem dos dois romanos, que desataram a correr para a entrada do grande pátio. Atrás
deles ouviu-se um grito de fúria, seguido pelo som abafado das sandálias dos homens que se tinham lançado na sua
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perseguição. Cato olhou de relance para trás e percebeu que Macro o seguia perto, mas poucos passos à frente do líder dos sicários, que corria atrás dos romanos
com lábios arreganhados num esgar de ódio. Apercebeu-se de imediato de que não lhe conseguiriam escapar. O equipamento pesado que envergavam atrasava-os, e os sicários
vestiam apenas túnicas. Em poucos momentos tudo estaria terminado. Reparou então numa ânfora mesmo à frente, que alguém abandonara na pressa de sair do pátio. Saltou
sobre ela e deteve-se, virando-se para trás. Macro saltou também, com uma expressão de surpresa no rosto, passando por ele no preciso momento em que Cato abatia
a espada sobre a ânfora, estilhaçando-a. O conteúdo do recipiente espalhou-se em golfadas pelas lajes, enquanto um odor a azeite enchia o ar. Cato virou-se e seguiu
Macro, olhando sobre o ombro mesmo a tempo de ver o líder dos sicários escorregar, deslizar e perder o equilíbrio
até cair no solo com estrépito. Dois dos homens que vinham logo atrás, também escorregaram, mas os outros desviaram-se da mancha oleosa e continuaram a perseguir
os romanos. Cato reparou que já estavam perto retardatários da multidão em fuga: velhos, aleijados e um punhado de crianças pequenas que gritavam de medo.
- Vamos a eles! - Gritou para Macro, enquanto se detinha e se virava para enfrentar os perseguidores. No momento seguinte, o amigo estava a seu lado. Os sicários
prosseguiram no seu avanço antes de se deterem também, olhando furiosos para lá de Macro e Cato. Rodaram de imediato sobre os calcanhares e voltaram para junto do
líder e dos homens que tinham escorregado, dirigindo-se todos rapidamente para uma porta na extremidade mais distante do pátio do Templo.
- Cobardes! - Gritou-lhes Macro. - Qual é o vosso problema?
Não têm tomates para uma luta a sério? - Gargalhou, e lançou o grosso braço sobre os ombros de Cato. - Olha para eles a fugir. Que nem coelhos! Se nós os dois chegamos
para assustar um grupo destes, parece-me que não vamos ter muito com que nos preocupar durante esta estadia na Judeia.
- Não fomos só nós os dois. - Cato acenou na direcção da multidão. O olhar de Macro seguiu o gesto do jovem, mostrando-lhe que o optio conuzia a formação
de auxiliares por entre a turba, acorrendo em auxílio dos seus oficiais.
- Atrás deles! - Berrou o optio, esticando o braço na direcção dos fugitivos.
- Não! - Contrariou Cato. - Não vale a pena. Já não os conseguimos apanhar.
Mal tinha acabado de falar quando os sicários alcançaram o portão e desapareceram de vista. O optio encolheu os ombros e não tentou disfarçar o ressentimento.
Cato percebia como ele se sentia, e sentiu-se levado
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a justificar a sua posição. Mas parou a tempo. Tinha dado uma ordem, e nada mais havia a explicar. Não valia a pena permitir que os auxiliares se lançassem numa
perseguição infrutífera e perigosa pelas estreitas ruas de Jerusalém. Ao invés, Cato apontou para as bancas derrubadas e para as vítimas dos sicários, umas mortas,
outras feridas.
- Façam o que puderem por eles.
O optio fez a saudação regulamentar, reagrupou os homens, e foi ocupar-se da confusão que reinava na área ocupada pelos cobradores. Cato sentia-se exausto, depois
de toda aquela actividade. Guardou a espada e a adaga e inclinou-se para a frente, apoiando as mãos por cima dos joelhos.
- Bem jogado, ali atrás. - Macro sorriu e apontou para a ânfora de azeite escaqueirada com a ponta da espada. - Salvou-nos a pele.
Cato abanou a cabeça e respirou fundo, antes de responder.
- Acabámos de chegar à cidade... Porra, ainda nem chegámos ao nosso posto, e já quase nos cortavam os pescoços.
- Umas boas-vindas para não esquecer. - Macro fez uma careta.
- Sabes, começo a perguntar-me se o procurador não estava a gozar connosco.
Cato olhou-o com uma expressão inquisidora.
- Corações e mentes. - Macro abanou a cabeça. - Fico com a nítida sensação de que os indígenas não apreciam lá muito a ideia de fazerem parte do Império Romano.
19
II

Corações e mentes? - O centurião Floriano riu com vontade, enquanto servia água aromatizada com limão aos dois recém-chegados, e fazia deslizar as taças sobre o
tampo de mármore da secretária. Os seus aposentos eram numa das torres da maciça fortaleza de Antónia, edificada por Herodes, o Grande, e baptizada em honra do
seu patrono, Marco António; agora guarnecida pelas tropas romanas encarregadas da vigilância de Jerusalém. Da estreita varanda do gabinete possuía uma magnífica
vista sobre o Templo e a cidade velha. Os gritos da multidão em pânico tinham-lhe chamado a atenção, e dali observara a escaramuça em que Macro e Cato se tinham
visto metidos. - Corações e mentes. - Repetiu. - O procurador disse mesmo isso?
- Disse. - Confirmou Macro. - E disse mais. Um brilhante discurso sobre a importância de manter boas relações com os judeus.
- Boas relações? - Floriano abanou a cabeça. - Essa é mesmo para rir. Não podemos ter boas relações com gente que nos odeia profundamente. Esta malta não
hesitaria em espetar-nos uma faca nas costas assim que nos virássemos. Esta porra desta província é um desastre, é o que é. Sempre foi, aliás. Mesmo no tempo em
que permitimos que Herodes e os seus herdeiros a governassem.
- A sério? - Cato inclinou ligeiramente a cabeça. - Não é isso que se diz em Roma. Pelo que ouvi, a situação na província estava a melhorar a olhos vistos.
Pelo menos, é essa a posição oficial.
- Claro, isso é o que eles dizem às pessoas. - Floriano fungou. - A verdade é que apenas controlamos as cidades e povoações principais, as vias de comunicação
entre elas são o reino de bandidos e assaltantes. Mesmo as aldeias estão repletas de facções políticas e religiosas que lutam entre si na tentativa de obter influência
sobre o povo. O facto de haver inúeros dialectos não ajuda nada; para terem uma ideia, a única língua um é o grego, e mesmo assim poucos o falam. Não passa um mês
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sem que haja problemas entre os idumeus e os samaritanos, ou outros quaisquer. Isto escapa por completo ao nosso controlo. Aquele bando com que vocês andaram agora
mesmo à pancada na esplanada do Templo é um dos muitos que aluga os seus serviços à facção política que mais oferecer. Usam estes sicários para eliminar rivais,
ou para marcar uma posição - como na manifestação a que assistiram.
- Chamas àquilo uma manifestação? - Macro sacudiu a cabeça, descrente. - Foi só para marcar uma posição política? Bem, nem quero pensar em meter-me numa briga
a sério com aqueles tipos.
Floriano sorriu brevemente, e prosseguiu.
- Como é evidente, lá de Cesareia os procuradores raramente vêem as coisas assim. Deixam-se estar de cuzinho assente e mandam directivas para o pessoal que
está no terreno, como eu, de forma a garantir que os impostos são pagos. E quando lhes mando relatórios a descrever o estado miserável da situação, eles arquivam-nos
e mandam dizer a Roma que estão a fazer grandes progressos na melhoria da situação na solarenga província da Judeia. - Abanou a cabeça. - Bom, também não se pode
censurá-los. Se relatassem a verdade, tornar-se-ia evidente que não dominavam a situação. O Imperador substituí-los-ia de imediato. Portanto, esquece tudo o que
te disseram em Roma. Muito francamente, duvido que alguma vez consigamos dominar estes judeus. Todas as tentativas de os romanizar falharam mais depressa do que
a merda escorre por um cano húmido.
Cato cerrou os lábios.
- Mas o novo procurador, Tibério Júlio Alexandre, é um judeu, e deu-me a impressão de ser mais romano do que a maior parte dos romanos que conheço.
- É claro. - Sorriu Floriano. - Vem de uma família abastada. Suficientemente abastada para ter sido criado e educado por tutores gregos numa academia romana
e dispendiosa. E depois disso alguém tratou de o estabelecer numa florescente carreira comercial em Alexandria. Ficou rico, grande surpresa... E o bastante para
entrar para o círculo do Imperador... E dos seus libertos. - Pigarreou. - Imaginem, já passei eu mais tempo nesta terra do que ele. Portanto, podem ver o género
de judeu. O procurador pode ter enfiado o barrete ao Cláudio, e ao seu omnipresente secretário Narciso, mas o pessoal por aqui não se deixa enganar tão facilmente.
Foi sempre esse o problema. Desde o princípio, desde que fizemos Herodes rei. Típica diplomacia imperial: uma solução única para todos os problemas. Lá porque conseguimos
impor um rei e uma elite dirigente noutras terras, pensámos que isso também ia resultar por cá. Bom, não resultou.
- E porque não? - Interrompeu Macro. - O que é que a Judeia tem de tão especial?
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- Pergunta-lhes! - Floriano indicou a varanda com um gesto da mão. - Oito anos já eu passei aqui, e não me lembro de um único desses tipos a quem possa chamar
amigo. - Fez uma pausa para sorver um golo, pousou a taça com uma sonora pancada. - Esquece lá essa ideia de lhes conquistar os corações e as mentes. Não vai acontecer.
Odeiam todos os kittim, como nos chamam. A nossa única opção é agarrá-los pelos tomates pendurá-los pelos ditos até vomitarem o dinheiro dos impostos que nos devem.
- Muito pitoresco. - Macro encolheu os ombros. - Faz-me pensar naquele sacana do Gaio Calígula. Como é que ele costumava dizer, Cato?
- Que me odeiem, desde que sobretudo me temam...
- Isso mesmo! - Macro deu uma palmada no tampo da mesa. - Porra, isso é que ele um conselho, mesmo vindo de um doido varrido como e. Parece-me que é a melhor
maneira de tratar desta malta, se são assim tão difíceis.
- Acreditem em mim. - Retorquiu Floriano, sem humor. - São tão intratáveis como vos disse. Ou piores ainda. Cá para mim, a culpa é daquela arrogante religião
deles. O menor desrespeito à fé desta gente e aí estão eles pelas ruas, a armar confusão. Há uns anos, na altura da Páscoa dos Judeus, um dos soldados espetou o
traseiro por cima da muralha e mandou uns peidos para a multidão. Uma típica piada grosseira da soldadesca, para mim e para vocês, mas não para eles. Dezenas de
baixas depois, tivemos de lhes entregar o desgraçado para ser executado. O mesmo aconteceu com um optio numa aldeola qualquer para as bandas de Cafarnaum, que teve
a infeliz ideia de queimar os livros sagrados, para lhes dar uma lição. Quase se deu uma revolta geral. Também tivemos de lhes entregar o optio, que foi despedaçado
pela multidão. Foi a única forma de recuperar alguma ordem. Aviso-vos, estes tipos não estão dispostos ao menor compromisso no que toca à religião. Por isso é que
aqui as coortes não têm estandartes, e não há imagens do Imperador. Olham de soslaio para o resto do mundo e agarram-se à ideia de que foram escolhidos para um propósito
especial. - Floriano soltou uma gargalhada. - Quer dizer, olhem para isto. Uma espelunca poeirenta, perdida no cu do mundo. Parece-vos realmente a morada de um povo
eleito?
Macro olhou de relance para Cato e encolheu os ombros.
Talvez não.
Floriano encheu de novo a taça com água, sorveu um trago e voltou a observar atentamente os visitantes.
Estás a perguntar a ti mesmo o que fazemos nós aqui. - Cato
rriu.
Foi a vez de Floriano encolher os ombros.
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- A questão já me passou pela cabeça. Até porque tenho muitas dúvidas de que o Império possa dispensar dois centuriões para conduzirem uma coluna de recrutas
aos seus novos postos. Portanto, se não se importam que eu seja directo, o que estão vocês aqui a fazer?
- Não te vimos substituir. - Respondeu Macro, sorrindo. - Desculpa lá, meu caro, mas isso não está nas nossas ordens.
- Ora porra.
Cato tossiu.
- Ao que parece, os gabinetes imperiais não estão assim tão mal informados da situação na Judeia como tu pensas.
Floriano arqueou as sobrancelhas.
- Ah, sim?
- O secretário imperial tem recebido alguns relatórios preocupantes dos seus agentes nesta região do Império.
- A sério? - Floriano manteve o olhar fixo em Cato, sem mostrar qualquer expressão no rosto.
- O que foi mais do que suficiente para pôr em causa os relatórios do procurador. E o fez enviar-nos. Narciso quer uma avaliação da situação feita por outros
olhos. Já falámos com o procurador, e quer-me parecer que tens razão quanto a ele. Não se pode dar ao luxo de ver as coisas como elas são. O seu pessoal sabe muito
bem em que pé estão as coisas, mas também sabe que Alexandre não fica nada satisfeito com ideias que contrariem a versão oficial. Por isso é que precisávamos de
falar contigo. Sendo o chefe dos agentes de Narciso na região, és com certeza quem está melhor colocado para nos passar informação nova.
Seguiu-se um silêncio breve e tenso, até que Floriano fez um quase imperceptível gesto de assentimento.
- Assim é. Espero que não tenham mencionado tal facto ao procurador.
- Por quem nos tomas? - Reagiu Macro, pouco agradado com a insinuação.
- Centurião, não te quero insultar, mas tenho de ser muito cauteloso quanto à minha verdadeira função nesta terra. Se esse dado chegasse aos ouvidos dos movimentos
de resistência locais, estaria a servir de alimento aos abutres antes que o dia terminasse. Mas só depois de me torturarem até revelar os nomes dos meus agentes,
claro. Podem com certeza apreciar a necessidade de me assegurar de que o meu segredo está protegido.
- Connosco, esse segredo não corre qualquer perigo. - Assegurou Cato. - Nenhum. Se assim não fosse, Narciso não no-lo teria confiado.
Floriano aquiesceu.
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- É certo... Bem, então, o que posso fazer por vós?
Com a atmosfera limpa de suspeitas, Cato sentiu que podia falar abertamente.
- Uma vez que a maior parte da informação que Narciso recolheu provém da tua rede, as suas principais preocupações não te devem ser estranhas. A maior ameaça
parece vir da Pártia.
- E isso não é propriamente novidade. - Juntou Macro. - Desde que Roma tem interesses no Oriente que tem tido que se haver com esses cabrões.
- Sim, é isso. - Prosseguiu Cato. - Mas o deserto serve de obstáculüo natural entre Roma e a Pártia. E permitiu-nos gozar uma paz relativa nos últimos cem
anos. Porém, a velha rivalidade ainda aí é mantida, e ao que parece os partos resolveram avançar na frente política, em Palmira.
- Sim, já ouvi essa. - Floriano coçou o queixo. - Um dos mercadores que leva caravanas até lá está a meu soldo. Disse-me que os partos estão a tentar criar
dissensão na casa real de Palmira. O rumor é que prometeram o trono ao príncipe Artaxas, se ele aceitar aliar-se à Pártia. Claro que ele o nega, e o rei não se atreve
a agir contra ele sem ter provas concretas, por receio de antagonizar os outros príncipes.
- Foi o que Narciso nos disse. - Confirmou Cato. - Mas se Palmira cair nas suas mãos, os partos poderão levar os seus exércitos mesmo até à fronteira com
a província da Síria. Nesta altura estão três legiões em Antioquia. Estão a ser feitos preparativos para enviar mais uma para lá, mas aí é que está o problema.
Tinham chegado ao limite do que Floriano sabia sobre a situação, de modo que este olhou para Cato, expectante.
- Qual problema?
Instintivamente, Cato baixou o tom da voz.
- Cássio Longino, o governador da Síria.
- O que há com ele?
- Narciso não confia nele.
Macro soltou uma gargalhada.
- Narciso não confia em ninguém. Bom, verdade seja dita, também ninguém no seu perfeito juízo confiaria nele.
- Seja como for. - Prosseguiu Cato. - Parece que Cássio Longino tem alguns contactos com os elementos que se opõem ao Imperador, lá em Roma.
Floriano levantou o olhar.
- Estás a falar daqueles trastes que se auto-intitulam os Libertadores?
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- É claro. - Cato lançou um sorriso sinistro. - Um deles caiu nas mãos de Narciso, há uns meses. Antes de morrer revelou alguns nomes, entre eles o de Longino.
Floriano franziu o cenho.
- As minhas fontes em Antioquia não me disseram nada sobre ele. Nada de suspeito. E já me encontrei com ele algumas vezes. Francamente, não me parece desse
género. É demasiado prudente para se arriscar sozinho.
Macro sorriu.
- Ter três legiões a proteger-lhe as costas faz maravilhas pela espinha de um homem. Se forem quatro, melhor ainda. Ter um poderio desse tipo à sua disposição
é capaz de inspirar a ambição de qualquer um.
- Não o suficiente para o levar a enfrentar o resto do Império. - Contrapôs Floriano.
Cato assentiu.
- É verdade, pelo menos por agora. Mas imagina que o Imperador se via forçado a reforçar as tropas na região, e a enviar para cá mais algumas legiões? Não
apenas por causa dos partos, mas também para abafar uma revolta na Judeia.
- Mas não há nenhuma revolta por aqui.
- Por enquanto, não. Contudo, como tu mesmo mencionaste, o ambiente está longe de ser harmonioso. Não seria preciso muito para levar a uma rebelião aberta.
Lembra-te do que aconteceu quando Calígula ordenou que lhe fosse erigida uma estátua em Jerusalém. Se ele não tivesse sido morto antes dos trabalhos começarem, todos
os homens desta terra se teriam erguido contra Roma. Quantas legiões teriam sido precisas para controlar um tal levantamento? Outras três? Quatro, se calhar? Com
as legiões da Síria, já seriam umas sete. Com tamanha força ao seu dispor, um homem podia abalançar-se ao manto púrpura. Lembra-te das minhas palavras.
Deu-se um longo silêncio, enquanto Floriano considerava as palavras de Cato; depois, voltou a encarar o jovem centurião.
- Estás a sugerir que Longino pode mesmo fomentar uma revolta? Só para ter acesso a mais legiões?
Cato encolheu os ombros.
- Talvez sim, talvez não. Ainda não tenho a certeza. Digamos que, para Narciso, é uma perspectiva verdadeiramente preocupante, de tal forma que resolveu enviar-nos
para investigar.
- Mas isso é absurdo. Uma revolta levaria à morte de milhares... Não, de dezenas de milhares de pessoas. E se Longino estiver a pensar em usar as legiões
para chegar ao palácio em Roma, isso é o mesmo que deixar as províncias orientais indefesas.
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- Os partos entravam por aqui adentro num instante. - Macro aproveitou para comentar, e logo ergueu as mãos à laia de desculpa ao ver as expressões irritadas
dos outros dois.
Cato clareou a garganta.
- É verdade. Mas nesse caso, Longino estaria a fazer a mais alta das apostas. Se isso significasse tornar-se Imperador, não se importaria de todo de perder
as províncias orientais.
- Se for esse o plano dele. - Respondeu Floriano. - Francamente, parece-me um grande se.
- De facto. - Concedeu Cato. - Mas não deixa de ser uma possibilidade que tem de ser considerada. Narciso assim pensa, pelo menos.
- Desculpa-me, jovem, mas há muitos anos que trabalho para Narciso. Tem uma certa inclinação para ter medo da própria sombra.
Cato voltou a encolher os ombros.
- Nada disso diminui o risco que Longino representa.
- Mas como pensas tu que ele pode fazer desencadear uma revolta? É essa a chave da situação. Se a revolta não se der, não terá as suas legiões, e sem elas
nada conseguirá.
- Portanto, precisa mesmo de uma. Imagine-se a sorte dele, então, quando há aqui pela Judeia, alguém que jurou levar a povoação a um notim.
- Do que é que estás a falar?
- Há um tipo, um cananeu chamado Bano. Suponho que já ouviste esse nome.
- É claro. É um salteador sem importância. Vive algures nas colinas a leste do Jordão. Tem atacado os viajantes e as aldeias do vale, além de assaltar de
vez em quando uma das propriedades e uma ou outra caravana a caminho da Decápole. Mas está longe de ser uma ameaça séria.
- Achas?
- Não tem mais do que umas centenas de seguidores. Uns montanheses mal armados, e uns tantos foragidos às autoridades de Jerusalém.
- Ainda assim, de acordo com os teus últimos relatórios, as suas forças aumentaram, as suas acções tornaram-se mais ambiciosas e, ao que parece, até começou
a espalhar que era líder por escolha divina. - Cato franziu o sobrolho. - Qual era o termo?
- Mashiah. - Adiantou Floriano. - É isso que os locais lhe chamam. De poucos em poucos anos aparece um chanfrado que se proclama abençoado, aquele que há-de
libertar o povo da Judeia do jugo de Roma, e há-de o levar a conquistar todo o mundo.
Macro abanou a cabeça.
- Um jovem ambicioso, esse Bano.
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- Não é o único. São quase todos assim. - Contrapôs Floriano. - Aguentam-se uns mesitos, reúnem uma multidão de seguidores maltrapilhos, até que acabamos
por ter que chamar a cavalaria, que vem lá de Cesareia, parte umas cabeças e crucifica os instigadores. Os seguidores evaporam-se num instante, e voltamos a ter
de nos preocupar apenas com o habitual punhado de fanáticos anti-romanos com as suas tácticas terroristas.
- Isso já nós percebemos. - Comentou Macro. - E olha que não havia nada de amador naquela acção.
- Hás-de te habituar. - Com um gesto da mão, Floriano mostrou a pouca importância que dava ao sucedido. - Está sempre a acontecer. O costume é que eles se
atirem ao seu próprio povo, aos que acusam de colaborar com Roma. Normalmente é um assassínio discreto algures numa rua escura, mas quando os alvos são mais difíceis,
os sicários não hesitam em recorrer a ataques suicidas.
- Merda. - Resmungou Macro. - Ataques suicidas? Mas que tipo de lunáticos é que têm por cá?
Floriano limitou-se a encolher os ombros.
- Levas todo um povo ao desespero, e sabes lá os horrores de que ele é capaz. Daqui a uns meses hás-de perceber o que quero dizer.
- Já só me apetece é sair desta província.
- A seu tempo. - Cato tentou animar o amigo com um sorriso fugaz. - Esse tal Bano. Dizes que ele opera na outra margem do Jordão.
- Isso mesmo.
- Na zona do forte de Bushir?
- Sim, e então?
- É o forte onde está estacionada a Segunda Coorte Ilírica, sob o comando do prefeito Escrofa.
- De facto. E daí?
- Bom, a nossa história é que fomos enviados para substituir o Escrofa. Macro deverá assumir o comando da coorte, e eu serei o sub-comandante.
Floriano franziu o sobrolho.
- Porquê? Para que raio servirá isso?
- Creio que o prefeito Escrofa foi nomeado por uma ordem directa de Longino?
- É certo que ele veio de Antioquia. Mas isso não tem nada de estranho. Por vezes é preciso um novo comandante, e não há tempo de pedir instruções a Roma.
- O que aconteceu ao comandante anterior?
- Foi morto. Numa emboscada, quando conduzia uma patrulha pelas colinas. Pelo menos, foi o que o ajudante escreveu no relatório.
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- Muito conveniente. - Cato sorriu. - Mas o facto de o nome desse ajudante ter sido mencionado pela mesma pessoa que avisou Narciso quanto a Longino parece-me
bastante intrigante, pelo menos a mim.
Por momentos Floriano não conseguiu reagir.
- Não estás a falar a sério, pois não?
- Nunca falei tão a sério.
- Mas qual é a ligação a Longino?
Macro sorriu.
- É isso que estamos aqui para descobrir.
O centurião Floriano chamou um soldado e pediu que trouxessem
vinho.
- Parece-me que estou a precisar de uma coisa mais forte. Vocês os dois estão a começar a assustar-me. Há aqui mais do que vocês me querem dizer.
Macro e Cato trocaram um rápido olhar, e o veterano assentiu com um leve gesto de cabeça.
- Vá, explica-lhe. Conheces a história melhor do que eu.
28
III

Cato manteve-se calado por alguns instantes, enquanto relembrava os acontecimentos; encetou por fim a narrativa, contando ao outro centurião o que se passara três
meses antes, nos fins de Março, quando se encontrara com Narciso no palácio imperial. Antes disso, Macro e Cato tinham passado vários meses a treinar recrutas para
as coortes urbanas, as unidades que policiavam as ruas de Roma. Os recrutas eram o tipo de homens que nunca seriam escolhidos para as legiões, e os dois centuriões
tinham-se esforçado para os pôr em forma. Tinha sido uma tarefa inglória, mas por muito que Cato desejasse voltar ao serviço activo, a convocatória do secretário
imperial só lhe trouxera premonições aziagas.
A última missão em que Narciso os tinha enviado tinha sido uma operação quase suicida para recuperar uns rolos de pergaminhos, vitais para a segurança do Império,
e que se encontravam na posse de um bando de piratas que se dedicavam ao saque dos navios que passavam junto à costa da Ilíria. Os documentos tinham sido elaborados
pela Sibila de Delfos, e completavam um conjunto de profecias sagradas que, supostamente, descreviam com algum detalhe o futuro de Roma e o seu destino final. Como
era evidente, o braço direito do Imperador tinha sentido uma absoluta necessidade de se apoderar de tal tesouro, como forma de proteger o seu senhor e o Império
que servia. Cato e Macro tinham recebido a posição de instrutores em Roma como recompensa por terem encontrado os pergaminhos e os terem entregue a salvo nas mãos
do secretário imperial. Quando o mensageiro de Narciso chegara à caserna, Macro estava de licença, pelo que Cato se apresentara sozinho, ao fim da tarde, enquanto
a escuridão se espalhava pelas imundas ruas da cidade.
Quando Cato chegara ao complexo do palácio imperial, tinha acabado de rebentar sobre Roma uma tempestade de Primavera. Foi conduzido aos aposentos de Narciso e depois
levado ao seu gabinete de trabalho por um dos impecavelmente apresentados servos. Entregou ao homem a sua
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capa ensopada, antes de atravessar a sala e tomar assento na cadeira que Narciso lhe indicava. Por trás do secretário imperial havia uma janela com painéis de vidro,
através dos quais mal se via uma cidade distorcida. Nuvens negras percorriam o céu, iluminadas de quando em vez por um relâmpago ofuscante que oferecia um instantâneo
da urbe a branco e preto, como que parada no tempo; porém, depressa a visão se desvanecia e Roma voltava a mergulhar nas sombras.
- Estás repousado, espero? - Narciso tentou demonstrar algum nteresse. - Já passaram uns meses desde a campanha contra os piratas.
- Tenho-me mantido em forma. - Respondeu Cato, prudentemente. - Estou pronto a regressar ao activo. Tal como o Macro.
- Bom. Isso é óptimo. - Concordou Narciso. - E onde anda o meu bom amigo, o centurião Macro?
Cato lutou para abafar uma exclamação. Só o pensamento de que Macro e aquele efeminado burocrata pudessem ser considerados amigos atingia os píncaros do ridículo,
era quase sublime. Clareou a garganta.
- Está de licença. Foi a Ravena ver a mãe. Ela ainda não conseguiu ultrapassar a perda que sofreu.
Narciso mostrou-se surpreso.
- Perda?
- O homem dela foi morto no decorrer do ataque final contra os piratas.
- Oh, lamento. - Comentou Narciso, sem qualquer emoção. - Quando o voltares a encontrar, transmite-lhe o meu pesar. Antes de assumirem a nova tarefa que vos
designei.
Cato sentiu-se paralisado pelo sentimento de inevitabilidade que o invadiu assim que compreendeu que o secretário imperial tinha novos planos para ele.
- Não compreendo. - Disse. - Pensava que eu e o Macro só estávamos à espera de colocação numa legião.
- Ah, sim, mas as coisas alteraram-se. Ou melhor, surgiu uma nova situação.
- A sério? - Cato sorriu sem vontade. - E que tipo de situação é
essa?
- Aqueles pergaminhos que vocês recuperaram... Tenho-os estudado cuidadosamente, e parece-me que descobri algo de muito interessante.
- Fez uma pausa. - Não. Interessante, não. Assustador é o termo... Como podes imaginar, concentrei-me nas profecias relacionadas com o futuro imediato, e
dei com algo que me afectou profundamente. É que as sementes que poderão levar à queda de Roma estão neste preciso instante a ser semeadas.
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- Deixe-me adivinhar... Uma praga de cobradores de impostos?
- Cato, não te armes em engraçado. Deixa isso para o Macro, tem mais jeito.
- Mas não está cá.
- Uma pena. E agora, posso continuar?
Cato encolheu os ombros.
- Com certeza.
Narciso inclinou-se para a frente, juntou as palmas das mãos e usou-as para apoiar o queixo, antes de começar.
- Havia uma passagem no texto que previa que, no oitavo século após a fundação de Roma, um grande poder surgiria a leste. Nasceria um novo reino que acabaria
por destruir completamente Roma, e erigir uma nova capital sobre as suas ruínas.
Cato fungou, mostrando a pouca importância que dava à profecia.
- Não há profeta louco nas ruas de Roma que não apregoe uma história desse género.
- Espera. Esta é bastante mais específica. Diz que esse novo império emergirá da Judeia.
- Nada que não tenha já ouvido uma dúzia de vezes. Não passa um ano sem que os judeus encontrem um novo grande líder, capaz de derrotar Roma e de os devolver
à liberdade. E se eu oiço falar desses tipos, outros ouvirão, com toda a certeza.
- Por certo. Mas surgiu entre eles una nova seita que me despertou a atenção. Tenho nesta altura agentes a investigá-la. Parece que são seguidores de um homem
que se proclamou um género de divindade. Ou pelo menos, segundo os meus homens, é isso que os seus seguidores proclamam. Disseram-me que, na realidade, era filho
de um artesão de uma aldeia qualquer. Chamava-se Jehoshua.
- Chamava-se? O que lhe sucedeu?
- Os sacerdotes de Jerusalém acusaram-no de instigar à desobediência. Insistiram numa condenação à morte, mas não tiveram coragem de o executar eles mesmos,
pelo que o nosso procurador teve que lhes fazer a vontade. O problema é que, como acontece geralmente com estes profetas, o tipo era francamente carismático. De
tal modo que os que o acompanhavam conseguiram atrair imensos seguidores desde a sua morte, há uns anos. Ao contrário de outras seitas, esta promete aos que se lhe
juntam um tipo qualquer de vida eterna depois da morte. - Narciso sorriu. - Estás a ver a atracção.
- Talvez. - Murmurou Cato. - Mas a mim não me parece mais do que a habitual patranhice religiosa.
- Meu caro jovem, concordo absolutamente contigo. Mas isso não parece impedir esta gente de conquistar novos seguidores.
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- E porque não esmagá-los, simplesmente? Fazer dos seus líderes proscritos?
- Tudo a seu tempo. Será feito, quando se tornar necessário.
Cato soltou uma gargalhada.
- Está a dizer que esta gente ameaça destruir Roma?
- Não. Pelo menos por agora. Mas vamos mantê-los debaixo de olho. Se eu achar que são eles a ameaça referida nos pergaminhos, então serão... removidos.
Era típico do sujeito falar por eufemismos, reflectiu Cato. Por instantes não sentiu nada a não ser desprezo, mas ocorreu-lhe então que a utilização daquela perspectiva
talvez fosse a única forma de o secretário imperial conseguir desempenhar as suas funções. No fim de contas, muitas das decisões tomadas por Narciso resultavam em
mortes. Necessárias, talvez, mas não menos definitivas. Opositores ao Imperador lançados para o esquecimento graças a uma assinatura num documento. Que peso não
teria tal gesto numa consciência? E como seria mais fácil ver esses acontecimentos como problemas resolvidos, em vez de um rasto de cadáveres a marcar um trajecto
pessoal. Tudo isto, evidentemente, partindo do princípio de que o homem tinha uma consciência susceptível de perturbação em face das decisões de vida e morte que
tomava quotidianamente, pensou Cato. E se não fosse esse o caso? E se os eufemismos não passassem de uma questão de estilo, de retórica? O jovem estremeceu. Nesse
caso, Narciso seria uma criatura sem qualquer ética. E o ideal de Roma não passaria de um edifício oco, centrado na pura e crua ganância e sede de poder dos poucos
que constituíam a elite. Tentou afastar esses pensamentos e focar as ideias na questão em análise.
- Pensava que não tinha grande fé nessas profecias?
- Normalmente, não tenho. - Admitiu Narciso. - Mas acontece que, no preciso dia em que li sobre essa suposta ameaça a Roma, me chegou às mãos um relatório
particularmente perturbador, compilado a partir de informações recolhidas pelos meus agentes nas províncias orientais. Aparentemente, está a ocorrer uma confluência
de ameaças na região. Em primeiro lugar, os seguidores desse tal Jehoshua estão divididos. Uma das facções, que ao que parece até tem adeptos em Roma, apregoa um
pacifismo inacreditável. Podemos viver com isso. Que tipo de perigo pode surgir de uma filosofia desse género? A outra facção é que me preocupa. É liderada por um
tal Bano, um cananeu. Apela à resistência de todos os habitantes da Judeia contra Roma, por todo e qualquer meio. Se estas ideias se espalhassem para lá das fronteiras
da província, aí é que estaríamos metidos em grandes sarilhos.
- De facto. - Assentiu Cato. - Mas deu a entender que existem outras ameaças. Quais são?
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- Bom, por exemplo, a Pártia, o nosso velho adversário. Está a tentar dominar Palmira, um reino que faz directamente fronteira com as nossas províncias. Para
cúmulo, em cima disto tudo, da situação na Judeia que se deteriora, da ascensão deste Bano, há outra complicação: o governador da Síria parece ter ligações aos Libertadores.
Se somarmos tudo isto, até mesmo um racionalista cínico como eu pensa duas vezes antes de ignorar as palavras da profecia.
- O que está a dizer, exactamente? - Cato franziu a testa. - A profecia pode referir-se a qualquer um desses problemas, se é que tem alguma verdade.
Narciso recostou-se na cadeira, e soltou um suspiro. Por momentos, manteve-se em silêncio, o que permitiu a Cato aperceber-se pela primeira vez do som da chuva a
bater nos painéis envidraçados das janelas. O vento devia ter mudado. Um relâmpago longínquo fez sobressair a silhueta do secretário imperial por um breve instante;
pouco depois, o som do trovão ribombou sobre a cidade.
Narciso pareceu reanimar-se.
- Esse é o meu problema, Cato. O texto é vago, tão vago que pode ser interpretado de forma a referir-se a qualquer das ameaças. Preciso de alguém que investigue
a fundo a situação, que avalie o perigo, e que seja capaz de resolver o assunto, se possível.
- Resolver? - Cato sorriu. - Se alguma vez ouvi um termo vago, foi esse. Não deixa de fora nenhuma possibilidade.
- Evidentemente. - Narciso devolveu-lhe o sorriso. - E a tarefa de encontrar a melhor forma de resolver qualquer questão que possa ser vista como uma ameaça
ao Imperador cabe-te a ti.
- A mim?
- A ti e ao Macro, claro. Podes apanhá-lo em Ravena, quando embarcarem num navio para o oriente.
- Mas, espere um momento...
- Isso, lamentavelmente, é o que não podemos fazer de todo. Não há tempo a perder. Tens que deixar Roma imediatamente.
Cato encarou Narciso com uma expressão hóstil.
- A última missão em que nos enviou quase nos matou.
- És um soldado. Ser morto em serviço é um acidente de trabalho.
Cato continuou a olhar para o secretário imperial, consumido pela
raiva e pela mágoa de se ver de novo injustiçado. Forçou-se a responder da forma mais calma possível.
- Eu e o Macro não merecemos isto. Não fizemos já o suficiente por si?
- Ninguém fará alguma vez o suficiente por Roma.
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- Arranje outros. Alguém com mais jeito para este tipo de trabalho. Deixe-nos voltar para as fileiras, para a vida de soldados. É o que fazemos melhor.
- São ambos excelentes soldados. - Concordou Narciso, calmamente. - Tão bons como os melhores. E esse é um excelente disfarce para a vossa verdadeira missão.
Tu e o Macro vão ser colocados numa unidade da fronteira, na Judeia. E uma vez que fazem parte do escasso número dos que sabem das profecias, vocês são a escolha
óbvia para este trabalho. - Encolheu os ombros. - De certa forma, são vítimas do vosso próprio sucesso, como diz o ditado. Vá lá, Cato. Não vos estou a pedir para
arriscarem as vidas. Só peço que avaliem a situação.
- E que a resolvamos.
- Sim, que a resolvam.
- Através de que meios?
- Agirão com toda a autoridade do Imperador. Preparei um documento que tornará clara essa situação. Está noutro gabinete, com a carta de nomeação do centurião
Macro, o relatório de Cesareia e tudo o que considerei relevante tornar-se do vosso conhecimento. Gostava que lesses tudo ainda esta noite.
- Tudo?
- Sim, seria melhor, uma vez que vais deixar Roma amanhã pela alvorada.
Assim que Cato terminou o relato do encontro com Narciso, o centurião Floriano abanou a cabeça.
- É duro. O homem parece decidido a fazer-vos merecer cada sestércio do salário.
Macro revirou os olhos.
- Nem imaginas como.
- Como calculas, não podes mencionar os pergaminhos a mais ninguém, jamais. - Avisou Cato. - Narciso insistiu em que só tu devias ser informado. Apenas um
punhado de pessoas sabe da sua existência, e aqui nas províncias orientais somos só nós os três. E é assim que Narciso exige que continue. Percebido?
Floriano assentiu.
- Muito bem. - Prosseguiu Cato. - Não te vou insultar com a exigência de uma jura formal. Todos conhecemos o secretário imperial, e não nos é difícil imaginar
o que nos poderá suceder se revelarmos o segredo.
- Não te preocupes. - Retorquiu Floriano, aparentando despreocupação. - Sei perfeitamente o que acontece a quem desagrada a Narciso. Antes de vir para aqui,
eu era um dos encarregados dos interrogatórios.
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- Ah... - Macro pareceu inclinado a comentar, mas arrependeu-se, pelo que fechou a boca e empurrou bruscamente a taça na direcção do outro centurião. - Acho
que era capaz de beber mais uns goles do teu vinho.
Enquanto Macro se satisfazia com a taça cheia, Floriano prosseguiu.
- Bom, então qual é o vosso plano?
- Vamos começar pelo prefeito Escrofa, e pelo Bano. - Disse Cato.
- Se percebermos o que se passa, talvez consigamos evitar uma revolta. E se ela não se der, então Longino não terá razões para solicitar reforços. Nesse caso,
não terá forças suficientes para marchar sobre Roma. Assim sendo, manter-se-á pela região, e com alguma sorte isso chegará para os partos não darem demasiadas asas
às suas ambições.
- Nessa história há demasiados ses para o meu gosto. - Comentou Macro.
Cato encolheu os ombros.
- Pois, mas não podemos fazer nada quanto a isso. Pelo menos até chegarmos ao forte de Bushir.
- Quando é que partem? - Quis saber Floriano.
- Epá, és um anfitrião do caraças! - Macro deu uma gargalhada, o que fez com que Floriano respondesse enquanto tentava evitar corar.
- Não estou a tentar ver-me livre de vocês. Mas, uma vez que limparam o sebo a alguns daqueles sicários na escaramuça do Templo, há-de haver amigos deles
à vossa procura. Aconselho-vos a tomarem cautelas até chegarem a Bushir. Não passeiem por aí sozinhos. Andem sempre com escolta armada, e nunca descurem a segurança.
- Nunca o fazemos. - Assegurou Macro.
- Ainda bem. Bem, imagino que vão precisar de um guia. Alguém que conheça o caminho e o terreno em torno de Bushir.
- Sim, isso dar-nos-ia muito jeito. - Confirmou Cato. - Conheces alguém em quem possamos confiar?
- Nenhum dos locais, isso é garantido. Mas sei de um tipo que vos deve servir. Costuma trabalhar como guia nas caravanas para a Arábia, portanto conhece bem
a terra e as gentes. O Simeão não é exactamente um amigo do Império, mas é suficientemente esperto para perceber que não tem nada a ganhar se desafiar Roma. Portanto,
podem confiar nele, até certo ponto.
- Sim, parece confiável. - Sorriu Macro. - O inimigo do meu inimigo é meu amigo.
Floriano confirmou.
- Sempre assim foi. Não gozes, Macro. O sistema funciona bem assim. E agora, digam-me: há mais alguma coisa que eu deva saber? Há alguma coisa que possa fazer
para vos ajudar?
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- Acho que não. - Cato deixou o olhar espraiar-se sobre a cidade velha. - Depois do que nos disseste sobre os sicários, suponho que o melhor é deixarmos Jerusalém
o mais cedo possível. Amanhã de manhã, se possível.
- Amanhã? - Repetiu Macro, surpreendido.
- Devíamos partir ao nascer do dia. E tentar pôr o máximo de distância entre nós e a cidade até ao entardecer.
- Muito bem. - Comentou Floriano. - Vou entrar em contacto com o Simeão, e organizar uma escolta montada. Um esquadrão da minha guarnição deve chegar para
garantir a vossa segurança até Bushir.
- Será mesmo necessário? - Inquiriu Macro. - Se formos sozinhos, poderemos avançar mais depressa.
- Acredita, se partissem sem escolta, estes tipos haviam de vos encontrar e aniquilar antes que o dia terminasse. Isto é uma província romana, mas só de nome.
Para lá das muralhas da cidade não existe lei nem ordem, só a desolação onde reinam ladrões e assassinos, e um ou outro culto religioso. Não é lugar para romanos.
- Não te preocupes. Eu e o miúdo somos bem capazes de olhar por nós. Já estivemos em sítios piores.
- A sério? - Floriano não parecia convencido. - Seja como for, mantenham-me a par da situação em Bushir, e eu farei com que os vossos relatórios cheguem a
Narciso.
Cato assentiu.
- Bom, então está tudo combinado. Partimos pela alvorada.
- Sim. Uma última coisa. - Avisou Floriano, calmamente. - Um conselho, na verdade. Tenham muito cuidado quando chegarem a Bushir. A sério. O comandante anterior
foi morto com um único golpe de espada. Pelas costas.
36
IV

O sol acabara de nascer, banhando as muralhas da fortaleza com uma luz rósea e já tépida, quando a pequena coluna se aprestava para deixar a cidade. O ar estava
fresco e, depois do calor da noite, Macro saboreava a baixa de temperatura, enquanto se assegurava de que tinha as sacolas bem presas à sela. À semelhança de todos
os homens das legiões tinha recebido instrução montada, mas tal não impedia que continuasse a detestar e desconfiar dos cavalos. O seu treino era de infantaria,
e a sua longa experiência ensinara-o a preferir a companhia das "Mulas de Mário", a alcunha que se colara aos marchadores e pela qual eram conhecidos por todo o
Império. Ainda assim, o respeito que lhe exigia o calor abafador que martelava as rochosas paisagens da Judeia era suficiente para o levar a reconhecer que alcançar
Bushir a pé seria absolutamente extenuante. Portanto, a viagem seria realizada a cavalo.
Olhou em redor, avaliando o esquadrão de cavalaria que fora destacado para acompanhar os dois centuriões até ao forte. Eram tropas auxiliares, de ascendência grega,
e recrutados entre os habitantes de Cesareia. Agora que Roma assumira o controlo directo da Judeia não existiam em toda a província quaisquer unidades compostas
por nativos. Depois da morte do rei, dois anos atrás, o exército de Herodes Agripa, maioritariamente constituído por mercenários gentios, tinha sido desarmado e
desmobilizado e os homens espalhados. Com todas as lutas internas que afligiam tradicionalmente o reino da Judeia, as autoridades de Roma tinham decidido que seria
extremamente arriscado tentar organizar tropas locais, e fornecer-lhes armas. Além do mais, as peculiares regras da religião local, que incluíam dias de jejum e
de abstinência de qualquer tarefa, não casavam bem com as rotinas do sistema militar romano.
O seu olhar experiente deteve-se sobre os cavaleiros. Tinham um ar competente, o material estava em perfeitas condições, as montadas bem cuidadas e aparentemente
saudáveis. Se surgisse algum problema ao longo
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do caminho, ele e Cato poderiam contar com aqueles homens e organizar uma resistência aguerrida a qualquer emboscada. Uma carga decidida faria debandar como coelhos
qualquer bando de assaltantes, decidiu. Procurou o amigo com o olhar.
Este conversava animadamente com o guia, o que fez o sobrolho de Macro franzir-se ligeiramente. O centurião Floriano trouxera-lhes aquele tipo enquanto Cato e Macro
arrumavam as suas coisas nas sacolas, à luz trémula daslamparinas, pouco antes do alvorecer. Chamava-se Simeão, e era um homem alto e espadaúdo, na casa dos quarenta.
Envergava uma túnica limpa, embora vulgar, sandálias, e o lenço pouco elaborado que usava na cabeça era preso por uma faixa ornada, o único sinal exterior de riqueza
que mostrava. De facto, pouco mais transportava que uma trouxa de roupa limpa, uma espada curva, e um arco curto com a respectiva aljava de flechas. Tinha um rosto
agradável e falava um grego fluente. Aliás, percebeu Macro, mais do que fluente. O seu próprio conhecimento da língua era limitado, nada mais do que umas noções
básicas que Cato lhe ensinara na viagem desde Ravena. Dada a diversidade de línguas nesta região remota do Império, o grego funcionava como língua franca, e era
fundamental que Macro se conseguisse fazer compreender. A pronúncia do guia era irrepreensível. O efeito era tão inesperado que Macro se viu instintivamente a suspeitar
dele. Porém, o tipo era amigável, e apertara-lhe o braço de forma firme e franca, ao ser-lhe apresentado. Cato sorriu perante um comentário que o outro fez, após
o que se virou e se veio juntar a Macro.
- O Simeão tem estado a explicar-me o caminho para o forte. - Os olhos de Cato brilhavam de excitação. - Vamos para leste, para Qumran, na margem do Mar Morto,
depois atravessamos o Jordão e subimos as colinas na outra margem, até chegarmos a uma escarpa. É aí que começa o deserto, e é aí que se situa o forte.
- Que bom. - Retorquiu Macro, sem qualquer entusiasmo. - Deserto. Mal posso esperar para ficar a saber como deve ser animada a vida por essas paragens. Finalmente,
depois de tantos anos, sou mandado para as províncias orientais. E tenho portanto ocasião de conhecer todas as delícias da Síria, não é? Não. Nem pensar. Em vez
disso, vou parar a um forte isolado no meio da porra de um deserto, e terei muita sorte se conseguir evitar que o sol me frite os miolos, um dia, e depois outro...
Não. Desculpa lá, Cato, mas não consigo partilhar esse teu entusiasmo perante esta excitante viagem. Lamento.
Cato deu-lhe uma palmada amigável no ombro.
- Hoje vamos passar a noite na margem do Mar Morto, pateta. Não quer com certeza deixar passar uma oportunidade destas?
Macro encarou-o.
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- Mar Morto? E isso parece-te ter um som agradável?
- Ora, vá lá. - Cato sorria. - Já deve ter ouvido falar dele.
- Porquê?
Cato estava espantado.
- É uma maravilha natural. Li histórias sobre ele em miúdo, lá em Roma.
- Ah, bem. Estás a ver, enquanto tu te divertias a ler sobre maravilhas da natureza, estava eu ocupado a aprender a ser um soldado, e a mostrar umas coisas
àqueles bárbaros de merda lá pelo Reno. Portanto, desculpa lá se não estou a par de todas as atracções turísticas que existem aqui pelo cu do Império.
Cato sorriu.
- Muito bem, continue a lamentar-se. Mas espere até o ver. Logo à
noite.
- Cato. - Começou Macro, com ar cansado. - Depois de veres um mar, já os viste a todos. Não há nada de especial ou belo num mar. Porra, os peixes fodem lá
dentro, os peixes cagam lá dentro. E é tudo o que há de especial num mar, qualquer que ele seja.
Antes que Cato tivesse tempo de responder, o decurião que comandava o esquadrão lançou a ordem para os homens montarem, e o pátio da fortaleza encheu-se do barulho
dos cavalos a relinchar e dos cascos a baterem impacientemente nas pedras do pavimento, à medida que os cavaleiros subiam para as selas. Estas eram elaboradas de
forma a que o cabedal cedesse ligeiramente sob o peso dos homens, fazendo as extremidades inclinarem-se para dentro e fornecendo aos cavaleiros uma posição estável
em cima dos animais. Os dois centuriões pararam de conversar e montaram também, revelando bem a sua falta de hábito; levaram então as montadas para uma posição no
meio da coluna. Floriano sugerira que essa seria a posição mais segura para eles até saírem de Jerusalém, altura em que se poderiam juntar a Simeão e ao decurião
na frente da coluna. Esta precaução irritava Macro sobremaneira.
- Gosto pouco de ser levado ao colo. - Resmungou.
- Sempre é melhor do que ser assassinado Retorquiu Cato.
- Eles que tentem.
O decurião verificou o seu esquadrão, notou que estava tudo em ordem e levantou o braço.
- Coluna! Avançar. - O braço desceu na direcção do portão, e as sentinelas que o ocupavam deram alguns passos para o lado quando a coluna começou a passar
sob o grande arco e a descer a rua que vinha de Antónia, seguindo ao longo da face norte do maciço complexo do Templo e dirigindo-se para o portão de Cédron. Ao
deixarem as sombras do
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interior da fortaleza, a luz do sol atingiu Cato directamente nos olhos, forçando-o a pestanejar. Tinha sido um erro sair àquela hora, considerou. O sol cegá-los-ia
a qualquer emboscada que os sicários estivessem a preparar nas ruas apertadas; com grande esforço, obrigou-se a vigiar tão bem quanto podia os telhados das casas
próximas, que quase transformavam a rua num túnel. Mas havia poucos sinais de actividade. Alguns madrugadores iam aos seus afazeres, mendigos ocupavam as suas posições
habituais, e um cão esquelético ia de um monte de entulho para outro, farejando em busca de algo que pudesse comer. As poucas pessoas na rua afastavam-se rapidamente
para dar passagem à coluna, e não esboçavam qualquer reacção aos soldados. Mais à frente, Cato reparou que o piquete de guarda ao portão da cidade já levantava a
pesada tranca e começava a escancarar as pesadas portadas que protegiam a urbe. Pouco depois, e sem qualquer incidente, o esquadrão deixou Jerusalém e começou a
descer a estrada inclinada que levava ao vale de Cédron. Cato soltou um suspiro de alívio.
- Estou bem feliz por me ver dali para fora.
Macro encolheu os ombros.
- Seria preciso bem mais do que um punhado de imbecis convencidos de que se ajeitam com uma espada para me preocupar seriamente.
- É um alívio saber disso. - A poeira levantada pelos cavalos que iam à frente já começava a encher o ar, pelo que Cato pressionou o flanco da sua montada
com os calcanhares, enquanto torcia as rédeas para o lado.
- Bom, vamos lá para a frente.
Pela hora a que a coluna tinha atravessado o vale e subido o Monte das Oliveiras já o sol se tinha elevado o suficiente para o calor se começar a fazer sentir. Macro,
muito mais habituado ao clima das províncias do norte do Império, depressa começou a lamentar a perspectiva de passar o resto do dia a baloiçar no cavalo debaixo
daquele sol inclemente. O capacete ia pendurado da sela e, como todos os outros, limitava-se a usar um chapéu de palha sobre o resguardo de feltro. Este depressa
ficou ensopado em suor, tornando-se quente e incómodo, e Macro entreteve-se a amaldiçoar silenciosamente Narciso por lhes ter arranjado aquele trabalhinho. À medida
que os cavalos foram fazendo o caminho que levava ao Jordão, no ponto em que o rio desaguava no Mar Morto, deixaram para trás a região em que se situavam as propriedades
dos judeus mais abastados. A maior parte das casas estava fechada, já que os seus donos não se atreviam a viver sob a ameaça constante das facas de um bando de salteadores.
Tinham preferido regressar a Jerusalém, onde também possuíam habitações e podiam viver em maior segurança. A paisagem tornou-se cada vez mais despovoada, e as
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aldeias que atravessaram não passavam de aglomerados de casas de barro, rodeados por pequenas faixas de terreno cultivado.
- Isto é de doidos. - Comentou Macro. - Ninguém consegue viver desta terra imprestável. Ei, guia!
Simeão voltou-se na sela e respondeu com um sorriso.
- Sim, amigo?
Macro olhou-o com um ar pouco recomendável.
- Não és meu amigo. Pelo menos por enquanto. Não passas de um guia, por isso tento na língua.
- Como queiras, romano. O que querias perguntar-me?
Macro apontou para o intricado padrão de campos cultivados junto à aldeia que atravessavam.
- O que é isto? Porque é que os campos são tão pequenos?
- É a lei judaica. Quando um homem morre, o seu terreno é dividido entre todos os herdeiros. Quando esses morrem, é novamente dividido entre os seus filhos.
Portanto, a cada geração que passa, as parcelas ficam mais pequenas.
- Isso não pode durar para sempre.
- Pois não, centurião. É um dos problemas que afectam esta região. Quando um homem já não consegue sustentar a família, vê-se forçado a pedir um empréstimo
e a apresentar o terreno como garantia. - Encolheu os ombros. - Se a colheita for fraca ou o mercado estiver saturado do produto que ele cultivou, não consegue pagar
o empréstimo, e lá se vai a terra. Muitos partem para Jerusalém à procura de trabalho, outros vão para as colinas e transformam-se em salteadores, atacando os viajantes
e aterrorizando as aldeias mais fracas.
Macro mordeu os lábios.
- Não me parece um estilo de vida muito agradável.
- E agora ainda menos, uma vez que temos de pagar impostos a Roma.
Macro deitou-lhe um olhar hostil, mas o guia limitou-se a encolher os ombros.
Centurião, não quis ofender ninguém; é assim que as coisas são. Se Roma quer realmente obter a paz nesta região tem de cuidar dos interesses dos menos favorecidos,
antes de adicionar as riquezas da Judeia aos seus cofres.
- O Império não é uma instituição de caridade, porra. - Fungou Macro. - Tem um exército para pagar, fronteiras a vigiar, aquedutos e... Bom, muitas outras
coisas. E nada é barato. Alguém tem de as pagar. E se não fôssemos nós, quem protegeria esta gente? Responde-me lá a essa.
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- Protegê-los? - Simeão sorriu friamente. - De quem? Dificilmente levariam vidas piores debaixo da pata de outro império qualquer.
- Referia-me a gente como Bano e os seus meliantes. Roma protege-os desses grupos.
- Mas as pessoas não o vêem dessa forma. Muitos estão mais inclinados a vê-lo como uma espécie de herói. Nunca o derrotarão, a não ser que Roma esteja preparada
para governar a Judeia com uma mão menos pesada - ou, em alternativa, a espalhar guarnições por todo o território. Não estou a ver isso a acontecer no tempo que
me resta de vida.
- Bem, Simeão, então o que farias tu? Como é que melhoravas a vida destes desgraçados?
- Eu? - O guia fez uma pausa antes de responder. - Bom, para começar, libertava-os do fardo dos impostos romanos.
- Mas nesse caso não haveria razão para manter a Judeia como província romana. É isso que queres para o teu povo?
- Meu povo? - Simeão voltou a encolher os ombros. - Na realidade, já não os vejo como o meu povo.
- Não és judeu?
- Sou, de facto. Sim, são o meu povo, mas já não me sinto seguro de que partilhe as suas crenças. Vivi longe desta região durante muitos anos.
- E como é que acabaste em guia?
- Há cerca de dez anos tive de deixar a Judeia à pressa. - Lançou um rápido olhar ao interlocutor. - E, antes que perguntes, tive as minhas razões, mas não
as vou discutir.
- Seja.
- Bom, fui para sul, para a Nabateia, onde ninguém me procuraria. Alistei-me num grupo que fazia escolta a caravanas. Foi aí que aprendi a usar uma arma como
deve ser. Nunca me hei-de esquecer da minha primeira caravana. Vinte dias a atravessar desertos e montanhas. Nunca tinha visto terras como aquelas. Garanto-te, centurião,
há zonas nestes confins orientais do mundo onde se pode notar a mão de Deus.
- Parece-me que já vi o suficiente. - Resmungou Macro. - Dêem-me a Campânia, ou a Ümbria. Mil vezes. Que se foda este deserto todo, e mais as suas rochas.
- Nem sempre tem este aspecto, centurião. Na Primavera o ar é fresco, chove, e as colinas ficam cobertas de flores. Até o deserto para lá do Jordão fica florido.
E há majestade no deserto. Para sul há um desfiladeiro de areias vermelhas e grandes falésias com penhascos de todas as cores a erguerem-se para o céu. À noite o
firmamento enche-se de estrelas, e os viajantes juntam-se em roda das fogueiras e contam histórias que ecoam nas
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rochas. - Fez uma pausa e sorriu, recordando. - Talvez um dia as vejas por ti mesmo, e compreendas.
Deu um estalo com a língua, impelindo o cavalo e adiantando-se ligeiramente à coluna. Macro ficou a observá-lo, e depois dirigiu-se a Cato.
- O que pensas tu dele?
- Não tenho a certeza. Se conhece assim tão bem a região, é natural que Floriano o use. Mas há qualquer coisa nele que não parece bater muito certo.
- O quê?
Cato abanou a cabeça.
- Não sei bem. Acho difícil de acreditar que um tipo abandone a família e os amigos durante tanto tempo, com tanta facilidade. Acho-o interessante.
- Interessante? - Macro meneou a cabeça. - Diz antes doido. Se calhar apanhou demasiado sol no deserto.
A coluna chegou a Qumran, uma comunidade essénia, quando o sol já mergulhava no horizonte e criava longas e distorcidas sombras que se projectavam para a frente
dos homens e dos cavalos. Qumran não passava de uma pequena aldeola de casas simples e ruas estreitas e poeirentas. As pessoas aceitavam sem entusiasmo as saudações
que Simeão lhes dirigia; o guia levou a coluna através da aldeia até ao pequeno forte que se erguia numa colina baixa, um quilómetro e meio para lá da povoação.
Por trás da edificação ficava o Mar Morto, que se espraiava na direcção de umas montanhas de aspecto formidável, esplendorosas nas múltiplas cores com que o sol
poente as pintava. O forte não passava realmente de uma estação sinalizadora fortificada; uma quase imperceptível pluma de fumo erguia-se de um braseiro que era
mantido permanentemente aceso na torre principal. A guarnição era composta por meia centúria de auxiliares trácios, comandados por um optio de idade já avançada
que lhes deu umas boas-vindas entusiásticas assim que os viu a entrar pelo portão.
- Senhor, é um prazer ver caras novas por aqui. - O optio sorria, enquanto Macro desmontava e lhe devolvia a saudação militar. - Há mais de um mês que não
punha a vista noutro romano.
O centurião bocejou e espreguiçou-se, antes de esfregar com força as nádegas num esforço para repor a circulação, afectada por um dia passado na sela. Cheirava a
suor, estava todo dorido e coberto de poeira dos pés à cabeça.
- Preciso de um banho. Suponho que por aqui não haverá um balneário?
- Não, senhor.
- Então e lá atrás, em Qumran?
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- Ali, há, sim senhor. Mas não temos autorização para o usar.
- Porquê? - Quis saber o centurião, irritado. - Pago o que eles pedirem.
- São essénios, senhor. Amistosos, mas nem pensar em partilhar comida ou instalações connosco, não querem que os contaminemos.
- Porra, mas o que é que há de errado com esta terra de merda? - Explodiu Macro. - O sol cozeu o cérebro a toda a gente? O que são essénios? Espero bem que
não seja outra seita, foda-se.
- Lamento, senhor. - O optio encolheu os ombros. - Mas as coisas são assim. Eu e os meus homens temos ordens estritas para não ofender os essénios, seja de
que forma for.
- Oh, muito bem, pronto. Arranja acomodações para os nossos homens, e dá-lhes de comer. Vou dar um mergulho.
- Um mergulho, senhor?
- Sim. No mar.
Macro reparou no ar de surpresa estampado no rosto do optio, e prosseguiu, irritado.
- Caralho, não me vais dizer que esses nossos grandes amigos, os essénios ou lá como se chamam, se vão eriçar por terem de partilhar todo um mar comigo?
- Não, senhor. Não é isso, é que...
Macro cortou-lhe a palavra.
- Vai mas é cuidar dos homens e dos cavalos. - Virou-se para Cato.
- Vens?
- Oh, claro. - Cato sorriu. - Por nada deste mundo perderia esta experiência.
Pelo canto do olho Macro viu o amigo a trocar um olhar cúmplice com Simeão, pelo que se virou de repente para os confrontar.
- O que é que se passa aqui?
Cato fingiu-se inocente.
- Nada, nada. Vamos lá tomar banho.
Os dois oficiais despiram-se até ficarem de túnica e botas, e desceram a encosta pedregosa até à margem. Andaram um pouco pela borda da água até encontrarem uma
espécie de praia rochosa, e tiraram o resto das roupas, deixando-as por cima das pedras. Macro adiantou-se até à beira da água e entrou pelo mar, chapinhando enquanto
se afastava da margem. Quando a água lhe chegou ao peito levantou a mão e esfregou os dedos.
- É estranho... Esta água parece oleosa. - Levou os dedos ao nariz e cheirou, antes de experimentar o líquido com a língua. A face franziu-se-lhe imediatamente
numa careta. - Agh!
- O que se passa?
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- A água. Sabe horrivelmente. Tem muito sal.
- Bom, então não a beba. - Instou Cato. - Limite-se a nadar.
- Para quem nada tão mal como tu, estás cheio de entusiasmo.
Cato soltou uma gargalhada.
- Já vai perceber.
Macro sentia-se demasiado fatigado para continuar com a brincadeira de Cato, pelo que lhe virou as costas. Esticou os braços e lançou-se sobre as pequenas ondas
desenhadas na superfície. Mas em vez de mergulhar para o fundo, sentiu-se a vir para cima como se não passasse de um pedaço de cortiça. E ao tentar dar uma braçada
teve a sensação de que as pernas queriam sair da água.
- Mas que raio de coisa...?
Cato ria enquanto se metia pela água dentro. Ainda antes de a água lhe chegar aos ombros já se tinha posto a nadar no seu estilo muito próprio. Era uma sensação
estranha, mas agradável, e ele sorria. Macro, por seu lado, não parecia estar a ter grande sucesso na tentativa de se afastar da margem à custa das suas braçadas
poderosas.
- Isto é ridículo! - Desistiu, e deitou-se de costas. Flutuando sem esforço, olhou para Cato. - Bom, suponho que é por causa disto que toda a gente fala do
Mar Morto como se fosse uma porra de uma maravilha natural.
Cato sentou-se na água, deixando as pernas subir.
- Estranho, não é?
Depois de se refazer da surpresa, Macro estava a achar a experiência bastante agradável, e experimentava diversas formas de se movimentar, concluindo que a mais
prática era a de se manter de costas e usar os braços como remos. Cato seguiu-lhe o exemplo, lançando gritos de prazer como se fosse um miúdo a divertir-se.
Estavam tão animados que nem ouviram o grito de aviso que foi lançado das muralhas do forte, até ser demasiado tarde. Cato foi o primeiro a aperceber-se do som dos
cascos e da gravilha a ser lançada pelo ar. Torceu o pescoço e avistou um grupo de cinco cavaleiros que avançavam à desfilada pela estrada que bordejava o Mar Morto.
- Macro! Temos de sair daqui!
- Hã?
Cato apontou para os cavaleiros, a não mais de trezentos passos. Os dois amigos dirigiram-se de imediato para a margem pedregosa, e assim que os pés tocaram o fundo
correram para fora da água. Os atacantes já estavam mais próximos, e Cato percebeu que tinham desembainhado as espadas, que refulgiam ao sol. Não havia tempo sequer
para pegarem nas adagas e tentarem defender-se.
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- Esqueça as roupas! Corra para o forte!
Correram atabalhoadamente por entre as rochas, ferindo-se e cortando as solas dos pés nos calhaus mais aguçados, e soltando imprecações constantes. Chegaram à estrada
e atravessaram-na a correr, prosseguindo pela encosta acima na direcção do portão. A sentinela gritou qualquer coisa para o interior do forte, e surgiram dois homens
na abertura; hesitaram ao ver a aproximação dos cavaleiros, mas logo correram para os dois oficiais. Cato arriscou uma olhadela para trás e ficou arrepiado ao perceber
que os atacantes já estavam a menos de cem passos e continuavam a aproximar-se a toda a velocidade, debruçados sobre os pescoços das montadas, preparados para desferir
os golpes fatais, enquanto não paravam de incentivar os cavalos. Apercebeu-se perfeitamente de que seriam alcançados e derrubados muito antes de chegarem ao forte,
e de os auxiliares chegarem junto deles.
- Continua! - Gritou Macro, que trepava pela encosta logo atrás do jovem. - Os cabrões estão quase em cima de nós.
Cato continuou a correr, com a cabeça encolhida entre os ombros, como se assim pudesse oferecer um alvo mais pequeno às espadas dos atacantes. Mal dava pelas dores
nos pés lacerados, concentrando-se exclusivamente na necessidade de chegar ao portão, dando tudo por alcançar esse objectivo. O som dos cascos tornou-se ensurdecedor,
e no último instante arriscou de novo uma espreitadela para trás.
- Merda! - Gritou, ao vislumbrar o mais adiantado dos inimigos crescer para ele, a espada em riste, antecipando o golpe letal. Viu o brilho do triunfo nos
escuros olhos do homem, e o ricto congelado nos seus lábios. Nesse instante tropeçou e tombou sobre o solo, aleijando-se em mais meia dúzia de sítios. Deixou-se
rebolar por instinto, e ergueu os braços para se proteger. O outro mantinha a mesma pose, mas agora o seu olhar era de surpresa. A haste de uma flecha saía-lhe do
peito. A espada escorregou-lhe das mãos e caiu para o solo. Depois foi ele mesmo que tombou da sela, esmagando-se pesadamente no chão enquanto soltava um gemido
de agonia. Cato pegou na espada e agachou-se, pronto para enfrentar qualquer adversário. Os outros não vinham muito atrás, e já se desviavam do cavalo sem cavaleiro
que ficara no meio do caminho. Lançou um olhar a Macro, que parara alguns passos mais à frente e se virara para trás.
- Macro, corra! Não pare!
- Nem pensar, foda-se.
Deu um passo na direcção do amigo, mas este gritou de novo.
- Não pode fazer nada. Corra!
Indeciso, Macro hesitou um instante crucial, e um dos cavaleiros avançou sobre ele, derrubando-o com a montada. Mas antes que o homem
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completasse o trabalho uma flecha cravou-se-lhe no estômago, fazendo-o dobrar-se na sela, antes de cair para o lado. Os mais atrasados dos atacantes, assustados
e confusos com a pontaria infalível de quem lançava aqueles projécteis, refrearam as montadas e contemplaram o forte ainda distante. Uma terceira flecha trespassou
a garganta do homem mais adiantado, que tombou agarrado ao pescoço, tentando gritar mas nada mais conseguindo do que fazer borbulhar o sangue que jorrava da ferida.
Um dos sobreviventes gritou qualquer coisa, e os dois homens fizeram as montadas dar meia-volta repentina e fugiram pela estrada fora, encolhendo-se contra os animais
e não se atrevendo sequer a olhar para trás. Cato observou-os um momento, com o peito a arfar pesadamente, e soltou a espada que empunhava com firmeza. Estavam salvos.
Virou-se para Macro.
- Tudo bem consigo?
- Sim. - Macro respirou fundo algumas vezes. Acenou na direcção dos três cadáveres. - Porra, isto é que foi um trabalho e peras.
Cato virou-se para ver o que se passava no forte. Nas ameias por cima do portão, iluminado pelo sol poente, Simeão baixou o arco e acenou.
Cato inclinou a cabeça, num agradecimento, e Macro desatou a rir.
- Lembra-me de nunca tentar atacar uma caravana que ele esteja a escoltar.
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V

Na manhã seguinte, ao deixar o forte, era evidente o ar desconfiado com que os homens que compunham a coluna miravam a paisagem que os rodeava. O ataque da véspera
não tinha sido obra de meros salteadores de estrada. Tinha sido sim uma tentativa deliberada de assassinar os dois centuriões, o que tornava claro que alguém os
seguira desde Jerusalém. E os sobreviventes daquela primeira tentativa não deixariam de os vigiar, aguardando uma nova oportunidade. Porém, pensou Cato, era também
bem possível que os cinco homens fizessem parte de um grupo maior, e nesse caso toda a coluna poderia estar sob a ameaça de uma emboscada.
- Como é o terreno entre este forte e Bushir? - Perguntou ao guia, enquanto deixavam Qumran para trás e prosseguiam ao longo da margem do Mar Morto.
- Enquanto nos mantivermos deste lado do Jordão, ou pouco entrarmos pela margem oriental, não deveremos correr perigo. Além é que está a grande ameaça. -
Simeão ergueu o braço, indicando as montanhas do outro lado do lago. - Para chegarmos a Bushir vamos ter de subir um desfiladeiro íngreme. Não alcançaremos o planalto
antes da tardinha. Se os nossos amigos voltarem a tentar, será aí de certeza.
- Não há outro caminho?
- Claro que sim. Podíamos ir para norte, pela estrada de Filadélfia. E depois virávamos para sul, seguindo o trilho das caravanas até Petra. Seriam mais dois
ou três dias de viagem. Querem ir por aí?
Cato considerou por momentos a hipótese, e depois abanou a cabeça.
- Não me parece que seja boa ideia dar a essa gente mais tempo para preparar outro ataque. Macro, o que acha?
- Se planeiam atacar-nos, então que venham esta noite. Por mim, cá os espero.
- Muito bem, então. - Cato sorriu. - Vamos pelo caminho mais directo.
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Prosseguiram em silêncio durante algum tempo, e os olhos de Macro fixaram-se na ponta do arco que saía de um dos sacos que a montada de Simeão levava na sela.
- Magnífica pontaria, a que exibiste ontem.
- Obrigado, centurião.
Macro fez uma pausa antes de continuar, de forma algo desajeitada.
- Salvaste-nos as vidas.
Simeão virou-se e mostrou os dentes resplandecentes, num sorriso aberto.
- Mal faria o meu trabalho se os homens que fui encarregado de proteger fossem mortos. No mínimo, Floriano exigiria que lhe devolvesse o que me pagou.
- Portanto, além de guia também és guarda-costas?
- Como te disse ontem, centurião, passei muitos anos no deserto, a escoltar caravanas. Foi tempo mais do que suficiente para aprender a usar as minhas armas.
Além disso, tive como professores os melhores guerreiros da Arábia.
- Porque é que deixaste de o fazer? De escoltar caravanas?
- É uma vida dura. Estava a ficar farto daquilo. De forma que passei o trabalho ao meu filho adoptivo. Agora é o Murad que chefia a companhia de escoltas,
e trabalha na rota entre Petra e Damasco.
- E ele é tão bom como tu com o arco?
Simeão riu.
- Tão bom? Não, o Murad é muito melhor do que eu. E muito mais duro, como a maioria dos seus homens. Ele teria despachado os cinco tipos muito antes de eles
se terem aproximado de vocês. - Cuspiu no chão, irritado consigo mesmo. - Eu só matei três.
Macro deitou um olhar de relance a Cato.
- Só três. Pobre homem, está a perder o jeito.
- Peço-te que não voltes a mencionar o assunto. - Prosseguiu Simeão. - Já me sinto bastante envergonhado sem pensar muito nisso.
- Seja. - Macro sorriu. - Mas, já agora, o teu filho parece ser o tipo de homem que daria muito jeito ao Império. Seria um excelente oficial para os auxiliares.
Terá ele alguma vez pensado nisso?
- Para quê? - Simeão pareceu genuinamente surpreendido com a sugestão. - O Murad vive bastante bem assim. O vosso Império não poderia pagar-lhe nem um décimo
daquilo que ele recebe para proteger as caravanas.
- Oh. - Foi a resposta embaraçada de Macro. - Bem, foi só uma
ideia.
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O dia prosseguiu em tudo semelhante ao anterior, e depressa o calor se tornou sufocante. Ao longe, na planície por onde corria o Jordão, o ar tremeluzia como se
fosse feito de prata líquida. Ao fim da manhã atravessaram o rio, num ponto em que este se espreguiçava em meandros por entre vastos canaviais. Havia um vau num
ponto em que o rio corria sobre um leito de areia e seixos, e os cavalos lançavam para o ar grandes cachos de espuma enquanto o percorriam. Ao olhar para montante,
Cato reparou num abrigo na margem oposta cujo telhado era composto por grandes folhas de palmeira sobrepostas. Num baixio junto ao abrigo via-se uma pequena multidão,
reunida em torno de um homem que, à vez, ia mergulhando na água quem o solicitava.
Cato puxou a manga de Simeão, e indicou o ajuntamento.
- O que se está ali a passar?
Simeão observou brevemente a cena.
- Aquilo? É um baptismo.
- Baptismo?
- Uma tradição local. Serve supostamente para limpar os pecados daquele que é baptizado. Muito popular entre algumas seitas. Os essénios, por exemplo.
- Queria mesmo falar-te disso. - Prosseguiu Cato. - Essas seitas todas. Quantas são? Que diferença é que há entre elas?
Simeão soltou uma gargalhada.
- Muito pouca, menos do que podes imaginar; mas ainda assim odeiam-se profundamente uns aos outros. Ora deixa-me ver... O melhor é começar por Jerusalém.
As seitas principais por lá são os saduceus, os fariseus e os macabeus. Os saduceus são tradicionalistas de linha dura, não fazem concessões. Acreditam que os livros
sagrados representam a incontrovertível vontade de Deus. Os fariseus são um bocadito mais pragmáticos, aceitam que a vontade de Deus pode ser interpretada através
dos livros. Já os macabeus não têm dúvidas. Para eles, os judeus são o povo escolhido, destinado a governar o mundo, mais cedo ou mais tarde. - Sorriu na direcção
de Cato. - Podes portanto imaginar como se sentem debaixo do jugo de Roma. Odeiam-vos mais ainda do que odiavam Herodes e os seus herdeiros.
- E porque os odiavam?
- Porque esses eram idumeus, e não descendiam de nenhuma das doze tribos originais dos hebreus.
Macro abanou a cabeça.
- Estes judeus são uma cambada de convencidos. Vá-se lá saber porquê, já que têm sido arrasados por todos os impérios que alguma vez se lembraram de olhar
para a região.
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Simeão encolheu os ombros.
- Talvez acreditem que o seu deus lhes reservou algum papel especial.
- O seu deus? - Cato observou-o, curioso. - Não é também o teu?
- Já vos disse. Essa deixou há muito de ser a minha fé.
- Então no que acreditas agora?
Simeão não respondeu de imediato; durante alguns instantes limitou-se a deixar o olhar vaguear sobre o distante grupo que se entregava ao baptismo.
- Já não sei bem aquilo em que acredito...
- Então e aquele grupo que encontrámos ontem? - Interrompeu Macro. - Os essénios, ou lá o que lhes chamaste.
- Essénios, sim. - Confirmou o outro. - Nada de muito complicado. Acreditam que o mundo dos homens é corrupto, mau e desprovido de espiritualidade. Por isso
é que Deus não favorece a Judeia. Tentam levar uma vida simples, sem ostentação. Tudo o que têm pertence à comunidade, e agem em estrito respeito ao que está escrito
nos livros sagrados.
- Não devem ser grandes companheiros de farra, então.
O guia lançou um olhar a Macro.
- Não. Não me parece, de todo.
- Mais alguma seita que valha a pena referir?
- Só mais uma. A maior parte deles vive numa aldeia perto de Bushir. Não são muito diferentes dos essénios. Pelo menos alguns deles, os que se consideram
os verdadeiros seguidores de Jehoshua. O problema é que há outra facção.
- Que é liderada pelo Bano. - Aventou Cato.
- Precisamente. - Confirmou Simeão, sem esconder alguma surpresa.
- Devo ter ouvido algo sobre isso em Jerusalém. - Apressou-se a explicar o centurião.
Simeão prosseguiu.
- Bano prodama que era vontade de Jehoshua que os seus seguidores usassem a força para estabelecer a sua autoridade, e que os essénios estão a tentar tomar
conta do movimento e corromper os ensinamentos do mestre. Diz que os diluíram e os transformaram numa série de crenças para fracos. A ironia disto é que, apesar
de terem poucos seguidores na Judeia, parece que estão a nascer grupos de crentes um pouco por todo o Império, segundo o meu amigo Floriano.
- E quem lidera essa facção? - Inquiriu Cato.
Simeão perscrutou o jovem centurião.
- Tens mesmo de saber? O perigo real vem de Bano. Se o afastarem, talvez a província possa recuperar a paz.
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- Tens razão, de facto. - Respondeu Cato, não querendo atiçar a discussão. - É só porque gosto de conhecer todos os detalhes de uma situação.
Na margem oposta do Jordão o terreno subia a pouco e pouco, e o caminho passava junto a pequenos bosques e dúzias de quintas de pequena dimensão, que se abasteciam
de água no rio que dava vida a todo o vale. À tarde aproximaram-se da linha de colinas escarpadas que levava ao grande planalto, e a paisagem tornou-se estéril,
sem sinais de vida para lá dos raros rebanhos de ovelhas vigiados por crianças esquivas. Assim que notaram a aproximação dos cavaleiros, apressaram-se a levar os
animais na direcção oposta, desaparecendo numa das milhentas ravinas que percorriam a planície.
Enquanto o sol se dirigia para o horizonte, Simeão conduziu-os para o desfiladeiro, e o caminho seguiu o íngreme declive, trepando por entre as rochas. Depressa
o trilho se tornou tão estreito que a coluna se viu forçada a seguir em fila indiana; os cavalos escolhiam cuidadosamente o lugar onde pôr as patas e mantinham-se
tão longe do precipício quanto lhes era possível. De vez em quando um dos animais fazia saltar um calhau que se precipitava pelo trilho, levantando poeira e milhentas
pedrinhas. O desfiladeiro estava completamente seco e, como o sol lhe batia em cheio, não havia sinal de vegetação, pelo que os sons da passagem da coluna se reflectiam
claramente nas paredes de rocha em redor.
Ao olhar para trás, Cato percebeu que já não tinham muito mais do que uma hora de luz.
- Simeão... Não podemos arriscar-nos a passar a noite no caminho.
- Um bocadinho mais à frente, sim. Há uma zona plana e larga. Acamparemos lá.
- É seguro?
- Sim. O trilho é estreito nas duas pontas da plataforma de que falo. E não há outra forma de a alcançar. Nem sequer para uma cabra.
Aliviado, Cato manifestou a sua aquiescência ao plano com um leve aceno de cabeça.
A coluna alcançou a plataforma no preciso instante em que o último raio de sol desaparecia no horizonte ocidental, e em que o céu se enchia de tons brilhantes em
laranja e púrpura. Todos desmontaram, e os cavalos foram reunidos e levados para longe da borda do precipício. A comida dos animais foi retirada dos alforges e espalhada
em redor, de modo a que eles fossem pastando. Depois de o optio ter colocado sentinelas no trilho, nas duas extremidades da plataforma, toda a gente se acomodou
para passar a noite.
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Macro dera ordens para não haver fogueiras. No ar límpido da montanha, seriam visíveis a muitos quilómetros de distância e alertariam para a presença dos romanos
quaisquer bandidos da região, ou - pior - os sicários. Depois de a noite cair por completo, Macro, Cato e Simeão sentaram-se num penedo liso e contemplaram o vale
do Jordão. À esquerda estendia-se o mar Morto, escuro, fazendo jus ao nome. Ao longo de toda a largura do vale viam-se, aqui e ali, pequenas luzes e o ar estava
tão límpido que ao fundo, muito distante, Cato conseguia distinguir uma leve claridade.
Levantou o braço e apontou nessa direcção.
- Além, é Jerusalém?
Ao seu lado, Simeão semicerrou os olhos e acabou por confirmar.
- É, realmente. Romano, tens uma boa vista. Mesmo muito boa.
- Nesta carreira, dá muito jeito.
Macro estremeceu.
- Está frio. Nunca pensei que pudesse estar, depois do calor que apanhámos lá em baixo.
- Quando chegarmos ao planalto, as noites ainda vão ficar mais frias. - Avisou Simeão, enquanto se levantava. - Vou buscar as nossas mantas.
- Obrigado.
Enquanto o guia se afastava na direcção das manchas escuras espalhadas sobre o solo, os soldados que se preparavam para passar a noite ao relento, Cato levantou
a cabeça e contemplou o céu estrelado. Tal como Simeão afirmara, era belo. Mesmo por cima deles, centenas de estrelas brilhavam em tons frios e etéreos.
- Sabe, acho que começo a perceber porque é que este nosso amigo aprecia tanto esta vida.
- Há realmente muito para apreciar. - Resmungou Macro. - Estou cheio de frio, cercado por inimigos, e tão longe de uma hospedaria decente e de uma mulher
quente como alguma vez imaginei que poderia estar.
- É verdade, mas olhe para as estrelas... A vista. É maravilhosa.
Ao invés, Macro fixou o vulto escuro do amigo, enquanto abanava a cabeça, como que o lamentando.
- Estás no exército há... O quê, uns quatro anos?
- Sim... E então?
- Então... Quando é que vais deixar de te pôr com essas poetiquices merdosas?
- Não faço ideia. - Respondeu Cato, tranquilamente. - Suponho que no dia em que chegar à conclusão que já vi o suficiente deste mundo, e que estou farto dele.
- Mal posso esperar por esse dia. - Concluiu Macro, no momento
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em que Simeão regressava com os pesados cobertores militares dobrados debaixo do braço.
Pela manhã prosseguiram pelo trilho, ainda em fila indiana. A maior parte dos homens tinha passado a noite a tiritar, incapaz de dormir, e agora estavam todos doridos
e cansados. Ainda assim, não deixavam de estar atentos às falésias que os rodeavam, e a qualquer sinal de perigo que pudesse surgir. Daí a pouco o trilho alargou,
e a encosta tornou-se mais suave. Cato deu um suspiro de alívio e apressou a montada, juntando-se a Macro e Simeão.
- Parece que lhes escapámos.
- Um bando de meninas. - Rosnou Macro. - Não passavam disso.
Simeão não respondeu. Estava a observar com todo o cuidado a crista baixa que se lhes apresentava pela frente e que marcava a orla do grande planalto. De repente,
fez estacar o cavalo.
- Centurião, falaste cedo demais. - Avisou. - Olha para ali.
Os olhos de Cato dirigiram-se para a crista, detendo-se quando avistaram um grupo de homens que surgiam do meio das rochas, fazendo com que as suas silhuetas se
destacassem contra o céu. Mais e mais homens apareciam, dezenas deles, e depois um grupo de cavaleiros tomou posição a ocupar a brecha na crista por onde passava
o caminho que seguiam. Enquanto o optio berrava ordens para os homens largarem todo o equipamento desnecessário, colocarem os capacetes e prepararem as armas, a
mão de Macro dirigiu-se instintivamente para o punho da espada.
- Estamos tramados. - Reconheceu, sem emoção.
Simeão deu-lhe um olhar acompanhado de um sorriso triste.
- Nada mal para um grupo de meninas.
Enquanto pronunciava estas palavras, um dos cavaleiros incitava a montada e iniciava a descida do caminho, dirigindo-se para os romanos.
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VI

- É Bano. - Informou Simeão, calmamente.
Enquanto se livrava do chapéu de palha e punha o capacete, Cato olhou para o guia, surpreso.
- Conhece-lo?
- Já nos encontrámos, sim.
- Espero que em termos amigáveis.
- Fomos amigos, sim, há muito tempo. - Olhou rapidamente para Cato. - Esse tempo já passou.
- Podias ter mencionado esse facto antes. - Resmungou Cato.
- Não pensei que tivesse importância, centurião. Além disso, nunca mo perguntaste.
- Se nos safarmos desta, parece-me que vou ter uma série de perguntas a que gostava que desses respostas.
Já próximo deles, Bano refreou a montada, e sorriu quando reconheceu o guia. Dirigiu-se-lhe em grego.
- Devia ter adivinhado, quando os meus homens me falaram de um arqueiro que estava no forte. Estes soldados romanos não são bem-vindos, mas que a paz esteja
contigo, Simeão de Bétàames.
- E contigo, Bano de Canaã. Em que podemos ajudar-te?
- Exijo que esses dois oficiais romanos me sejam entregues. Tu e os outros são livres de regressar a Jerusalém, depois de desarmados.
Simeão abanou a cabeça.
- Sabes bem que o que pedes é impossível. Desonrar-me-ias, a mim e à minha família.
Bano manteve o olhar fixo no interlocutor por largos momentos, antes de voltar a falar.
- Em memória dos velhos tempos, peço-te de novo que me entregues esses dois homens, e que largues as armas. Não quero o teu sangue nas minhas mãos.
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- Então afasta-te e dá-nos passagem.
- Não. Esses dois liquidaram três dos meus homens, em Jerusalém. Tem de ser executados, como exemplo para todo o povo da Judeia.
- E eu então? Também matei três dos teus homens, no forte.
- Simeão, o meu combate é com Roma. Como devia ser o teu também. - Estendeu a mão. - Junta-te a nós.
- Não.
Bano deixou a mão tombar, e voltou a sua atenção para os homens do esquadrão de cavalaria.
- Entreguem-me estes dois oficiais, e garanto-vos que viverão. Larguem as armas!
Macro deu um toque em Cato.
- Quem é que este pensará que consegue enganar? No momento em que os auxiliares lhe entregarem as armas, é como se já estivessem mortos. - Inspirou, desembainhou
a espada e gritou na direcção de Bano. - Se são as nossas armas que queres, vem cá buscá-las!
- Chiiiiu! - Instou Cato. - Quem é que pensa que é, algum Leónidas?
Bano olhou para eles com ar de desafio, deu um aceno de despedida a Simeão, e fez o cavalo dar meia-volta e galopar pela encosta acima para se juntar aos seus homens.
Macro chamou o decurião.
- Quais são as nossas hipóteses?
- Nenhumas, se ficarmos aqui e tentarmos apenas defender-nos. Temos de carregar sobre eles, abrir caminho e tentar escapar. Basta que dê a ordem, senhor.
Mas terá que ser agora, antes que eles ataquem.
Macro anuiu.
- Vamos a isso.
O decurião voltou-se para os seus homens.
- Formar em cunha!
Enquanto os cavalos se dispunham segundo a ordem recebida, Macro e Cato apertaram os capacetes, desataram a carga que transportavam, e deixaram-na escorregar para
o solo. Simeão pegou no arco, desembrulhou-o cuidadosamente, fixou a corda e abriu a tampa da aljava. Quando os três homens se juntaram à formação, já Bano tinha
chegado ao pé dos seus homens e disparava ordens em série. Tinha posicionado fundibulários e arqueiros nos flancos e ao centro, ocupando o trilho, colocara uma força
de homens a pé com espadas, mas equipados de forma frágil, com escudos de madeira não reforçada, embora alguns tivessem capacetes e armaduras de couro. Pouco atrás
deles, na crista do terreno, ficaram Bano e os seus cavaleiros, armados com arcos e lanças. Assim que se apercebeu de que os homens das fundas começavam a preparar
as suas armas, Cato virou-se para o decurião.
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- Agora! Dá a ordem imediatamente!
O decurião anuiu, inspirou e soltou um brado.
- Esquadrão! Avançar!
A formação, que desenhava aproximadamente uma cunha, começou a mover-se; os soldados agarravam firmemente nas rédeas enquanto se protegiam com os escudos. Na outra
mão levavam as lanças, na vertical, para evitar o risco de ferir algum dos seus antes de entrar em contacto com o inimigo. Lá à frente os fundibulários inimigos
já faziam rodopiar as suas armas sobre as cabeças, enquanto os arqueiros retesavam os arcos. Cato irritou-se, querendo que o decurião desse ordens para os homens
aumentarem de velocidade e carregarem antes que fosse tarde demais. Mas imediatamente repreendeu-se. O decurião era um profissional, e sabia o que estava a fazer.
- Esquadrão, a trote, prosseguir!
Os auxiliares usaram os calcanhares para forçar as montadas a acelerar, e a formação aumentou de velocidade no preciso instante em que os primeiros projécteis inimigos
foram lançados pelo ar, seguindo trajectórias em arco. A repentina mudança de velocidade perturbou a pontaria cuidadosa dos atacantes, e a maior parte dos mísseis
abateu-se no solo, a curta distância por trás da formação romana. Alguns dos projécteis atingiram mesmo os escudos dos homens mais atrasados. Um dos cavalos empinou-se,
aterrorizado, depois de ser atingido no flanco por uma flecha. No entanto, o cavaleiro conseguiu manter-se na sela, acalmar o animal e levá-lo de volta à formação.
- À carga! - Gritou o decurião, na frente da formação, agitando a espada no ar. Os homens responderam com um coro de gritos de guerra, e com um acelerar do
passo das montadas que fez a formação em cunha parecer ganhar vida. Na segunda fileira, Cato e Macro agarraram as rédeas e prepararam-se para o embate, enquanto
os cavalos ganhavam velocidade, com as crinas e caudas a esvoaçar ao vento. Poeira e areia fina encheram o ar à medida que o esquadrão subia a encosta com crescente
ímpeto, ao encontro de Bano e dos seus homens. Dos flancos da força inimiga surgiu nova revoada de projécteis dirigida contra os romanos, e desta feita encontraram
alguns alvos. Um pouco adiante e à esquerda, Cato viu uma pedra atingir um dos auxiliares. O embate fez-lhe tombar a cabeça, e a lança, escudo e rédeas escaparam-lhe
dos dedos, fazendo com que o cavalo mudasse de trajectória. O homem acabou por tombar, e o animal prosseguiu na sua correria, insensível ao facto. À direita, Cato
deu por Macro, de rosto determinado, lançado sobre a sela de forma a ficar tão pequeno quanto possível. Para lá dele seguia Simeão, perfeitamente equilibrado enquanto
colocava uma seta no arco e escolhia um alvo.
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À frente, Bano corria na direcção dos seus soldados a pé, incitando-os a não ceder a passagem. Mas a visão da cavalaria romana a carregar sobre eles era demasiado
para muitos dos homens, que se apressaram a deixar o caminho livre. No momento seguinte, antes que Cato se apercebesse do que estava a acontecer, as linhas inimigas
chocaram. De repente, o ar encheu-se dos ruídos de choques das armas, dos gemidos e gritos dos homens, do resfolegar e relinchar dos cavalos. Ao notar movimento
à sua direita, Cato reagiu com uma estocada na direcção de um homem esguio, com um turbante sujo. O tipo esquivou-se, sem conseguir no entanto evitar que a espada
o atingisse no ombro. Rosnando, lançou um golpe com uma espada curva que Cato mal teve tempo de bloquear. Revidou, atingindo o turbante com todo o ímpeto. O tecido
absorveu a força da lâmina, mas o peso do golpe abateu-se sobre o homem, que caiu desfalecido no meio da poeira que se erguia por entre as patas e cascos dos cavalos
embrenhados na refrega. Cato olhou em volta. Macro debatia-se com dois adversários, cobrindo-os de insultos enquanto os desafiava a avançar. Simeão colocava uma
seta no arco, dançando sobre a sela enquanto seleccionava um alvo, apontava e libertava a seta. O míssil não voou mais de dez passos antes de se cravar no peito
de um homem e lhe atravessar a espinha, fazendo jorrar uma torrente de carne sanguinolenta.
- Para a frente! - Gritou Cato. - Não parem! Continuem!
O decurião olhou-o, assentiu e repetiu o grito. Os homens incitaram as montadas, lutando e livrando-se dos adversários; assim que se viam livres, prosseguiam pela
encosta acima, ao encontro dos cavaleiros inimigos. Bano empunhou a espada e ajeitou o escudo redondo sobre o ombro esquerdo, enquanto gritava uma ordem aos seus
seguidores. Um grito comum marcou o momento em que lançaram os cavalos pelo declive, ao encontro das tropas auxiliares romanas. A cunha em que estas tinham começado
já estava desfeita, e agora os romanos apresentavam uma formação dispersa. Os dois grupos chocaram num fragor de espadas refulgentes, de músculos de cavalos, vestes
ao vento e armaduras tilintantes. Desprovido de escudo, Cato sentia-se extremamente vulnerável, pelo que se encolheu, brandindo a espada em riste e incitando o cavalo
a atravessar a confusão e a livrar-se dos atacantes. Conseguia ainda assim ouvir Macro, a berrar sobre toda a confusão.
- Furem pelo meio deles! Ataquem!
Algo rebrilhou à direita de Cato, e ele mal se apercebeu do fulgor branco da lâmina que se abateu pesadamente sobre a face lateral do seu capacete. Fincou os calcanhares
e o cavalo deu um salto para a frente, mesmo a tempo de evitar o segundo golpe, que cortou o ar muito perto do seu pescoço. Dançavam-lhe estrelas nos olhos, mas
a visão clareou, e preparou-se
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para enfrentar o inimigo. Uma face escura rodeada por uma cabeleira e barba negras de onde se erguia um rosnar enquanto o tipo erguia a espada para novo ataque.
Cato levantou a sua lâmina, aparou o golpe, e deixou a espada deslizar pelo gume curvo da arma do adversário até o atingir no pulso. Sentiu o embate e escutou o
grito do homem, que recolheu o braço enquanto o sangue esguichava da ferida profunda que recebera. Cato inclinou-se para ele e deu-lhe uma decidida estocada no estômago,
torcendo a lâmina e puxando-a para trás com violência. Olhou de relance para as silhuetas que o rodeavam no meio da poeira, tentando orientar-se. Reparou numa zona
calma, entre dois cavalos sem cavaleiro, e levou para lá a sua montada, dando-lhe um toque na garupa com a parte lateral da espada. O cavalo acelerou e saiu da nuvem
de poeira, permitindo a Cato perceber que acabara de atravessar a barreira dos homens de Bano. Chamou os outros.
- A mim! Romanos, a mim!
Surgiram outras figuras. Simeão, de arco e rédeas numa mão, empunhando a espada com a outra e golpeando um homem de turbante que tentava alcançá-lo. Mais alguns
auxiliares, e depois Macro, um braço fortemente apertado em torno do pescoço de um tipo que acabou por atirar abaixo do cavalo, deixando-o prostrado no solo. De
repente o mundo transformou-se num turbilhão, e tudo parecia desfocado. Cato piscou os olhos, mas a visão não melhorou, e uma onda de náusea fê-lo cambalear.
- Cato! - Gritou uma voz próxima, vinda de um vulto escuro. Conseguiu perceber que era Macro. - Estás bem?
- Levei uma na cabeça. - Balbuciou a custo, tentando manter o equilíbrio. - Daqui a pouco estou fino.
- Não temos tempo para isso. Dá-me as rédeas.
Antes que pudesse concordar, sentiu que os arreios lhe eram retirados das mãos. Agarrou-se ao corno da sela, enquanto Macro incitava abruptamente a sua montada,
fazendo o cavalo de Cato segui-lo. Afastaram-se dos adversários, e a visão do jovem clareou um pouco, embora ainda se sentisse tonto e com uma crescente vontade
de vomitar. Reparou que a maior parte dos auxiliares tinha escapado do combate e galopava numa fuga louca, seguindo pela crista do terreno. Lá atrás, a escaramuça
prosseguia, já que um punhado de romanos tinha ficado encurralado. Porém, a infantaria inimiga já se tinha apercebido da tentativa de fuga do grosso dos romanos,
e chamava a atenção aos seus camaradas a cavalo para esse facto. Bano tentava repor alguma ordem na sua força, mas quando finalmente organizou a perseguição já a
sua presa levava umas seis centenas de metros de avanço. Ainda assim, as montadas dos judeus estavam leves e os cavaleiros praticamente não envergavam armaduras,
pelo que depressa começaram a recuperar terreno. Porém, dado que os animais dos auxiliares eram dos
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melhores da província, também rapidamente se notou que tinham mais energia e, à excepção de uns poucos, os cavalos dos atacantes começaram a perder velocidade.
- Mantenham-se no trilho! - Avisou Simeão. - Sigam-no até ao
forte!
As tonturas de Cato surgiam em acessos cada vez mais frequentes, e ele temeu perder a consciência. Macro não parava de olhar para trás, com uma expressão preocupada;
era óbvio que a pancada que o amigo recebera era muito mais séria do que parecera a princípio. E depressa sucedeu o que todos adivinhavam. Cato desmaiou e começou
a cair da sela. Macro apercebeu-se do que acontecera mesmo a tempo e refreou o cavalo, deixando que o de Cato se pusesse a par e lhe permitisse amparar o amigo.
Olhou em volta, desesperado, mas a maior parte dos auxiliares já se afastava na distância.
- Ajudem-me! - Bradou.
O mais atrasado dos homens espreitou para trás, cruzou o olhar com o do centurião por um breve instante, mas preferiu virar-se para a frente e incitar de novo o
cavalo. Mas também Simeão tinha ouvido o grito de Macro, e imediatamente fez o cavalo dar meia-volta e regressou para junto do oficial romano.
- O que é que lhe aconteceu?
- Levou uma pancada na cabeça. Desmaiou agora mesmo. A que distância estamos de Bushir?
Simeão olhou em redor.
- A duas, talvez três horas, a galope.
- Porra. Apanham-nos muito antes disso.
Simeão não respondeu. Sabia perfeitamente que era verdade. Se tivesse de prosseguir sempre a amparar Cato, depressa Macro seria alcançado.
- Centurião, o que queres fazer?
Macro olhou para as figuras ainda distantes dos perseguidores. Franziu o sobrolho, e depois pareceu chegar a uma conclusão, anuindo para si mesmo.
- Muito bem. Leva-o tu. Vou tentar atrasar aqueles cabrões o mais que puder.
Simeão lançou-lhe um olhar duro.
- Deixa-o.
- O quê?
- Eu disse: deixa-o. Não conseguirás atrasá-los o tempo suficiente para me permitir escapar com ele. Portanto, ou morre só ele, ou morremos os três.
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- Não posso. - Disse Macro, resignado, enquanto contemplava o rosto pálido de Cato, encostado ao seu ombro. - É meu amigo. Mais do que isso: é como um filho.
Não o deixarei na poeira do caminho para ser assassinado por esses facínoras.
Simeão deitou uma olhadela aos perseguidores e voltou-se de novo para Macro, com uma expressão resoluta.
- Muito bem, então, leva-o. Mantém-te na estrada. Eu sigo contigo e tento mantê-los à distância.
- Com quê?
- Com isto. - Simeão mostrou o arco. - Uns quilómetros à frente, o trilho bifurca, e um dos caminhos leva a uma aldeia. Há uma ravina que serpenteia mesmo
ao lado da estrada. Quando lá chegarmos, faz exactamente aquilo que eu disser. Percebido?
Macro ponderou a proposta, atormentado pela dúvida, mas acabou por aceder.
- Óptimo! Agora, vamos!
Prosseguiram, mantendo Cato entre os dois, amparando o corpo inerte do jovem de forma a que não tombasse da sela. Mas a velocidade a que seguiam foi fortemente reduzida,
e de cada vez que Macro olhava para trás notava a aproximação dos mais velozes dos perseguidores. Pelo contrário, à sua frente, o mais próximo dos auxiliares ia
ficando cada vez mais distante, uma figura diminuta por entre a poeira levantada por todos os que estavam ainda mais adiantados. Macro amaldiçoou-os, antes de compreender
que, no meio da poeira, o decurião e os seus homens não podiam aperceber-se da situação.
Entretanto, um grupo de quatro perseguidores aproximava-se rapidamente, fazendo valer a maior qualidade das suas montadas. Sabiam que depressa iam ter os romanos
ao seu alcance, pelo que incitavam os cavalos sem cessar, antecipando o momento da vitória.
Tinham acabado de deixar para trás uma série de colinas, e emergiam agora numa zona plana: uma extensão de terreno pedregoso e ondulante, pelo meio do qual tinha
sido limpa de calhaus uma faixa estreita, que constituía a estrada. Simeão afastou o seu cavalo do de Cato e avisou Macro.
- Continua. Vou mesmo atrás de vocês.
Macro anuiu, agarrou o ombro de Cato com mais força, e prosseguiu. Atrás dele, Simeão abriu a aljava, pegou numa seta, e colocou-a em posição contra a corda, com
todo o cuidado; o cavalo prosseguia numa corrida a ritmo regular, dirigido apenas pela pressão dos joelhos do cavaleiro. Deixou que os perseguidores se aproximassem,
mais e mais, até não estarem a mais de trinta passos. Só nesse momento se voltou para trás e revelou o arco pronto a disparar, enquanto fazia rapidamente pontaria
ao homem
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mais próximo. Surpreso, este respondeu agachando-se na sela, tentando diminuir o tamanho do alvo que representava. Mas não era a ele que Simeão apontava. Largou
a corda, e a seta foi enterrar-se velozmente no peito do cavalo mais próximo. Relinchando de terror e sofrimento, o animal tropeçou e caiu, rodopiando no solo e
esmagando o cavaleiro. Já Simeão tinha preparado nova seta e apontava ao alvo seguinte. Os perseguidores tinham perdido algum terreno ao desviar-se do cavalo abatido,
que ainda se agitava, lançando os cascos para o ar numa tentativa desesperada de arrancar a farpa que lhe rasgava o peito. Depressa retomaram velocidade, deixando
que o guia lhes visse as expressões determinadas e sedentas de vingança. Porém, um a um, Simeão abateu os três cavalos, deixando-os a debater-se na poeira. Finalmente,
com um aceno de satisfação a si mesmo, voltou a fechar a aljava, a pendurar o arco na sela e a aproximar-se de Macro.
Mais adiante alcançaram o ponto de que Simeão tinha falado, onde a estrada bifurcava e onde um caminho mais estreito descia para um vale pouco pronunciado que serpenteava
até conduzir a um largo desfiladeiro. O decurião e os seus homens estavam à espera, sem saber por qual dos caminhos seguir. Os cavalos pareciam extenuados, com os
flancos a arfar à maneira de foles. O oficial pareceu aliviado por os ver chegar, até reparar que Cato estava inconsciente.
- Está ferido?
- Não. - Respondeu Macro, sarcástico. - Não se vê logo que está a fazer uma sesta, caralho? Evidentemente que está ferido.
O decurião apercebeu-se imediatamente das consequências.
- Vai-nos atrasar.
Simeão apontou para o caminho principal.
- Sigam por aquele lado. Levar-vos-á até ao forte. Centurião, vai com eles.
- O quê? - Macro exaltou-se. - Nem pensar! Fico com o Cato.
- Nesse caso, eles apanham-nos muito antes de chegarem ao forte.
- Já te disse, não o vou deixar nas garras de Bano.
- Bano não o apanhará. Eu levá-lo-ei para um lugar seguro.
Macro riu.
- Um lugar seguro? Aqui, no meio do nada?
Simeão apontou para o caminho secundário.
- Por ali, a um quilómetro e meio, há uma aldeia. Conheço a gente que lá vive, e confio neles. Dar-nos-ão refúgio. Quando chegares ao forte, regressa com
uma coluna de socorro. Ficarei à espera.
- Loucura. - Protestou Macro. - Porque carga de água hei-de eu confiar nesses aldeãos? Porque hei-de confiar em ti?
Simeão olhou-o com intensidade.
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- Juro-te, sobre a vida do meu filho, que ele estará em segurança comigo. Agora, dá-me as rédeas.
Macro ficou quieto ainda uns segundos, avaliando a situação. Não queria abandonar Cato, mas prosseguir para o forte naquelas condições significaria muito provavelmente
a morte de ambos.
- Senhor! - Avisou um dos auxiliares, apontando para a estrada.
- Já os vejo!
Macro largou as rédeas e pôs a mão em pala sobre os olhos. Simeão pegou nos apetrechos do cavalo antes que o centurião mudasse de ideias. Amparando Cato com uma
das mãos, conduziu o cavalo para o trilho secundário.
- Esperem um bocadinho. - Solicitou, enquanto se afastava. - Deixem-me sair da vista. Depois fujam. Eles seguirão atrás de vocês.
Assim que Simeão e Cato desapareceram da vista do trilho, o decurião fez o cavalo rodopiar.
- Vamos!
Os auxiliares seguiram-no, cravando os calcanhares no flanco das montadas e gritando-lhes, incentivando-as a correr à máxima velocidade possível. Macro ainda aguardou
um momento, dividido entre a vontade de ficar com o amigo e a de chegar ao forte o mais depressa possível, para poder dar ordens para o envio de uma coluna de socorro.
Então pegou nas rédeas e espetou as botas no ventre do cavalo, seguindo os auxiliares. Ao lançar um último olhar na direcção da ravina por onde as duas figuras tinham
desaparecido, Macro jurou a si mesmo que, se algo acontecesse a Cato, não descansaria até fazer com que Simeão pagasse por isso. Com a vida.
Simeão levou os dois cavalos pelo leito seco, seguindo o curso do pretenso rio até uma curva apertada. Deteve-se aí e esperou uns momentos. Os animais estavam extenuados,
e resfolegaram, enquanto respiravam pesadamente e batiam com os cascos no solo.
- Chhhhiu! - Pediu Simeão, em tons brandos, enquanto afagava o pescoço da montada. - Não nos vamos denunciar, pois não?
À distância já se percebia a aproximação de um grupo de cavalos. Simeão ofereceu uma prece silenciosa para que os perseguidores se mantivessem concentrados em Macro
e nos outros, e não se interessassem pelo trilho mais estreito, aparentemente deserto. O som do grupo tornou-se rapidamente mais forte, e Simeão sentiu a tensão
espalhar-se pelo seu corpo enquanto aguardava que voltassem a afastar-se. Ao seu lado, de repente, Cato endireitou-se na sela, abriu os olhos e olhou em redor, confuso.
- O que... Onde estou eu?
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- Calado, rapaz! - Simeão agarrou-lhe com força no antebraço. - Peço-te.
Cato olhou-o e depois cerrou os olhos, vítima de outro acesso de tonturas. Com uma convulsão, vomitou por cima da armadura e do flanco reluzente do cavalo. Cuspiu
fracamente, para limpar a boca e tombou para a frente, a mente a vaguear sem sentido enquanto murmurava incoerências.
- Foda-se, por que é a minha tenda... É isso.
Os ombros de Simeão denunciaram o alívio que sentiu quando o romano se calou de novo. Apurou os ouvidos, escutando a passagem dos atacantes, aos berrros com a excitação
da perseguição, agora que os auxiliares estavam claramente à vista. Nenhum ruído indicou que se tivessem separado ou mesmo que tivessem reduzido o andamento ao passar
pela bifurcação, e o som dos cavalos começou rapidamente a afastar-se. Simeão esperou que o silêncio regressasse, atento a qualquer sinal de um retardatário, mas
nada aconteceu. Com um estalo da língua deu sinal aos cavalos para voltarem para trás, subindo a ravina até chegar de novo ao trilho. Então, amparando Cato da melhor
forma possível, tomou a direcção da aldeia.
Cato acordou de um pesadelo com um salto. Imediatamente o momento de terror que o tinha empurrado para a consciência se desvaneceu, sem que ele o recordasse. Doía-lhe
horrivelmente a cabeça, uma dor que lhe martelava o crânio. Abriu os olhos e de imediato a dor piorou, devido ao insuportável brilho do sol. Piscou os olhos, franziu-os,
e nesse momento as narinas encheram-se com o odor acre do seu próprio vómito, o que lhe provocou uma convulsão e o fez levar a mão à boca.
Reabriu os olhos no momento seguinte, notando que a penetrante dor da luz se tinha reduzido levemente, e que se aproximavam de uma pequena aldeia. Pequenas casas
de pedra e lama, bem mantidas, alinhavam-se dos dois lados do caminho. Aos lados dos edifícios havia sombras, criadas por telheiros com largas folhas de palmeira,
cujos troncos esguios e compridos se viam por aqui e ali. Reparou então nas pessoas, semitas, envergando vestes largas e de cores claras. As crianças vestiam túnicas
simples. Homens e mulheres ocupavam-se a moer grãos em recipientes de pedra, enquanto um pequeno grupo parecia estar a ter uma reunião, no exterior do maior dos
edifícios. Interromperam-se e ficaram a olhar para ele enquanto Simeão conduzia os cavalos. O guia inclinou a cabeça num cumprimento a cada um dos presentes, e finalmente
parou junto a uma pequena casa no centro da aldeia. Deslizou do cavalo e ajudou Cato a descer do seu, com esforço. Pôs o braço do jovem por cima do ombro e dirigiu-se
a custo para a porta, de onde emergiu uma mulher de idade.
Tinha o cabelo cinzento, as feições bem desenhadas, e os olhos eram
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escuros. Embora parecesse pequena e frágil, havia nos seus movimentos uma autoridade graciosa; olhou para os dois homens que se aproximavam da entrada da sua casa.
- Simeão ben Jonas. - Disse, de forma austera, em grego. - Há mais de um ano que não te vejo, e agora apareces-me à porta de casa com um soldado romano bêbado.
Podes dizer-me o que significa isto?
- Não está bêbado. Está ferido, isso sim, e precisa da tua ajuda. Além disso, é muito pesado... Dava-me jeito uma ajuda.
A mulher fez um som de gozo e aproximou-se, amparando Cato pelo outro lado. Quando sentiu o apoio, Cato despertou, moveu a cabeça e sorriu, enquanto se apresentava.
- Centurião Quinto Licínio Cato, ao seu serviço.
- Centurião, és bem-vindo à minha casa.
- E que casa será essa?
- É uma velha amiga minha. - Explicou Simeão. - A Miriam, de Nazaré.
A mente de Cato ainda estava longe do seu estado normal, e o jovem lutou para extrair algum sentido do que ouvira.
- Nazaré? Isto não pode ser Nazaré.
- E não é. Esta aldeia chama-se Heshaba.
- Heshaba. Bonito nome. E quem vive por cá?
- Formamos uma comunidade. - Disse Miriam. - Somos seguidores de Jehoshua.
Jehoshua... O nome não lhe era desconhecido, e Cato forçou a memória até se lembrar de que era esse o nome do homem que Roma executara não há muitos anos. Olhou
em redor para as faces dos aldeãos, enquanto um frio arrepio de receio lhe percorria a espinha.
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VII
Macro abrandou deliberadamente o passo, para garantir que os bandidos não o perdiam de vista na bifurcação, e que continuavam a persegui-lo. Assim que os viu a galopar
na direcção correcta voltou a cravar os calcanhares no flanco da montada, que acelerou imediatamente, galgando o terreno a toda a brida. Olhou de relance para trás,
e viu que se mantinham a uma distância constante de cerca de duzentos passos. Se o seu cavalo tropeçasse ou se cansasse rapidamente, apanhá-lo-iam num instante.
Um homem contra trinta ou mais. A perspectiva não era lá muito animadora, considerou, desalentado. Se ao menos tivesse a perícia de Simeão com o arco... Nunca tinha
visto nada daquele género. Mas já tinha ouvido histórias. Só uma nação oriental dispunha de arqueiros que se dizia serem capazes de tamanhas proezas. A Pártia. E,
nesse caso... Sentiu as entranhas a enregelarem-se. Se Simeão era um espião parto, tinha acabado de deixar Cato nas mãos de um dos mais duradouros e aguerridos inimigos
de Roma. Mas não podia ser. Simeão não tinha de todo ar de um parto. Pelo menos não falava como se fosse um deles e, afinal, tinha-lhes salvo a vida na véspera.
Portanto, no fim de contas, quem seria aquele Simeão de Bétsames?
Se escapasse aos seus perseguidores, jurou Macro a si mesmo, tiraria o assunto a limpo. Mas naquele momento só uma coisa interessava: evitar as garras de Bano e
dos seus homens. Não lhe restavam dúvidas de que Bano quereria vingar-se da morte dos seus sicários, e que essa vingança se traduziria numa agonia lenta e penosa.
Voltou a olhar para trás e notou que o grupo que o seguia parecia manter-se à mesma distância.
- Vá, rapariga! - Gritou à montada. - Corre como se estivéssemos na última volta no Circo Máximo.
O animal pareceu compreender a vontade de sobreviver do cavaleiro e esticou o pescoço, parecendo ganhar ainda mais velocidade e aumentar o ritmo com que os cascos
martelavam o piso irregular. Já avistava os auxiliares pouco à frente, e tinha a certeza de lhes estar a ganhar terreno. Esse facto
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deu-lhe algum conforto. Pelo menos, se os outros o alcançassem, as probabilidades estariam mais equilibradas. O resultado, porém, acabaria por ser o mesmo, reconheceu.
Pouco importava: rodeado por soldados romanos seria com toda a certeza capaz de despachar um bom número daqueles cabrões antes de chegar a sua vez de partir.
Voou pelo deserto, mas começou a perder velocidade à medida que a distância percorrida exercia o seu efeito nas reservas de energia do cavalo; daí a pouco não mais
conseguiria seguir num trote acelerado. Uma espreitadela para a frente e outra para trás fê-lo perceber que todas as montadas exibiam os mesmos sinais de exaustão,
e o facto de o Sol se estar a aproximar do zénite levava a que o calor sugasse as poucas forças que os animais ainda guardavam. Tinham sido obrigados a um esforço
maior e mais prolongado do que aquilo a que estavam habituados, e estavam à beira do desfalecimento. Um a um, os cavalos dos auxiliares deixaram de correr e adoptaram
um passo mais lento, o que fez com que Macro se conseguisse aproximar dos retardatários antes que o seu cavalo também estourasse.
O decurião deixou-se ficar para trás até estar ao seu lado.
- Senhor, onde ficaram o centurião Cato e o guia?
- Não podiam vir connosco. - Explicou Macro. - Ficaram escondidos. Voltaremos com homens do forte para os recuperarmos.
O decurião encolheu os ombros.
- É preciso que ainda lá estejam.
O oficial das tropas auxiliares deixou-o, e continuou a percorrer o trilho, apressando os retardatários. A poucas centenas de metros via-se a nuvem de poeira levantada
pelos perseguidores. Por duas vezes estes forçaram os cavalos a acelerar, no que foram imitados pelos romanos; as montadas foram levadas ao limite, até que os perseguidores
renunciaram e retomaram o passo cadenciado, e de novo os romanos os imitaram; quem observasse os dois grupos a progredir lentamente debaixo do terrível calor do
meio-dia dificilmente pensaria que se estava a dar uma aturada perseguição.
Lá à frente, pelo meio das colunas de ar tremeluzente que se elevavam do solo, Macro distinguiu uma silhueta baixa; Semicerrou os olhos, mas ainda levou algum tempo
a compreender de facto o que estava a ver, e que finalmente lhe alegrou o coração. Virou-se sobre a sela e animou os soldados.
- Rapazes, é o forte! Mesmo ali à frente.
Os homens pareceram reviver, espreitando ao longo da estrada, alguns usando as mãos para proteger a vista do brilho do sol e conseguirem ver Bushir com clareza,
a pouco mais de uns três quilómetros. À medida que se aproximavam e a neblina de calor se começava a dissipar, Macro
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apercebia-se de mais e mais detalhes. O forte era em pedra, e exibia quatro torres maciças, uma em cada canto. A uni-las viam-se muralhas espessas, e dois pequenos
torreões que ladeavam o portão principal, na face do forte que dava para o caminho que seguiam. A curta distância da fortificação via-se um reservatório, numa depressão
do terreno para onde convergiam duas ravinas. Macro mal conseguia distinguir as pequenas e escuras figuras do grupo de homens que observava a aproximação da coluna
a partir de uma das torres.
Atrás deles ouviu-se um brado débil quando os perseguidores também avistaram o forte e decidiram obrigar as montadas a um último esforço numa tentativa de alcançar
os romanos antes que estes se refugiassem na segurança do forte.
O decurião respondeu de imediato à nova ameaça.
- Esquadrão... Acelerar!
Espetou os calcanhares no flanco da montada, obrigando-a a aumentar de ritmo, no que foi imitado pelos soldados; tal não impediu os perseguidores de começarem a
ganhar terreno, na ânsia de aniquilarem os romanos. Macro tentou a todo o custo manter-se a par dos auxiliares, mas não passava de um veterano de infantaria, pouco
habituado a extrair todas as forças de um cavalo, pelo que foi ficando gradualmente para trás. Enquanto a coluna se aproximava do forte, os portões abriram-se, dando
passagem a uma força pesadamente armada que se deslocou em passo de corrida ao encontro dos seus camaradas, preparando-se para lhes oferecer protecção. Algum oficial
no forte parecia ter reagido prontamente à situação, e Macro fez uma nota mental para não se esquecer de agradecer a quem tomara aquelas disposições, se conseguisse
escapar aos bandidos.
Os primeiros dos auxiliares passaram pela brecha na linha de infantaria, e imediatamente detiveram os cavalos exaustos e desmontaram. Macro olhou para trás e notou
que os homens de Bano estavam muito mais próximos; conseguia até distinguir a espuma que saía dos focinhos das suas montadas.
- Vá, meu sacana! - Gritou às orelhas que se destacavam da parte traseira do pescoço do seu cavalo. - Corre! Ou acabamos os dois em comida para os chacais.
O animal pareceu compreender a aflição do cavaleiro e lançou-se para a frente, tão depressa quanto lho permitiam os seus já trémulos membros, na direcção da linha
de infantaria que continuava a aproximar-se. Contudo, de repente pareceu falhar um passo e vacilar na corrida, até que as patas da frente se começaram a dobrar.
Macro soltou as rédeas e agarrou-se à ponta da sela com toda a força, para evitar ser projectado para a frente. O cavalo travou e depois tombou, batendo com o ventre
no chão. Macro saltou
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imediatamente e correu para junto da infantaria. Ouviu o grito de alegria dos perseguidores, que já o imaginavam nas suas garras. Lançou um olhar por cima do ombro
e viu que já estavam próximos, de espadas erguidas, e o homem que seguia à frente já debruçado sobre o flanco do cavalo, a espada a postos para um golpe mortal.
Mesmo por trás da linha de infantaria, o decurião fez o cavalo dar uma repentina meia-volta, empunhou a espada e obrigou a montada a voltar à estrada, derrubando
um dos homens a pé enquanto se dirigia a Macro. No último instante, lançou-lhe um aviso.
- Baixe-se!
Os ouvidos de Macro estavam repletos do bater rítmico dos cascos quando ele se atirou para fora do trilho e rebolou, perdendo o fôlego com o impacto. Uma vasta sombra
dançava sobre o solo ao seu lado, e ouviu o silvar de uma lâmina a cortar o ar. Viu-se rodeado por patas de cavalos, e encolheu-se numa bola, protegendo a cabeça
com os fortes braços e sendo bombardeado pelo cascalho levantado pelos cascos. Espadas entrechocaram com um tilintar metálico, e ouviu-se um grito do decurião.
- Nem penses nisso, meu cabrão!
De cada vez que Macro tentava espreitar via-se cego pela poeira e areia levantadas, e só conseguia seguir a refrega pelos sons que escutava. Nessa altura algo de
quente e húmido lhe tombou em cima, e escutou um rugido de triunfo.
- Apanhem-nos! - Gritou uma voz. - Dêem-lhes, Segunda Ilírica!
Viu-se rodeado agora por botas, e mais sombras, até que alguém lhe
pegou por baixo dos ombros e o levantou.
- Estás bem, pá? - Uma rude face de soldado surgiu-lhe pela frente. Nessa altura o soldado notou a cota de malha de Macro, e as medalhas no arnês. - Desculpe,
senhor. Está bem?
Ainda meio zonzo, Macro respondeu.
- Sim, tudo bem.
Reparou então no ar duvidoso do outro; olhou para baixo e verificou que uma larga mancha de sangue se espalhava pelos seus ombros e pelo braço esquerdo abaixo. Percorreu
a área ensanguentada com os dedos, mas não encontrou qualquer ferida.
- Não é meu.
O outro esvaziou as bochechas de ar, aliviado, acenou e afastou-se, na peugada dos camaradas que perseguiam os atacantes. Macro fechou os olhos e limpou a sujidade
da cara nas costas peludas do braço, e só então olhou em volta. Os homens do forte perseguiam os atacantes que tinham sobrevivido ao primeiro embate, atacando-os
e às montadas com lanças longas. No solo, junto a Macro, viam-se três cadáveres de bandidos e o decurião. Este estava deitado de costas, os olhos abertos fitando
o sol sem o
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ver, a boca escancarada. Um golpe de espada rasgara-lhe a garganta até à espinha, e o solo em redor estava ensopado de sangue.
- Quem és tu? - Inquiriu uma voz.
Macro virou-se e viu que se aproximava um oficial. Ao avistar as plumas na crista do capacete do homem deixou que o instinto tomasse conta das suas acções, pelo
que se colocou em sentido perante o presumível superior hierárquico.
- Centurião Macro! - Anunciou, e fez a saudação regulamentar.
O oficial respondeu, e depois franziu o sobrolho.
- Senhor, importa-se de me explicar o que se está a passar?
- Senhor? - Só então Macro se apercebeu de que o outro não passava de um centurião como ele, mas muito mais recente na patente. Olhou para o homem como se
só agora o estivesse a ver. - Quem és tu?
- Centurião Gaio Lário Póstumo, senhor. Adjunto do comandante do forte.
- Onde está o Escrofa?
- O prefeito Escrofa? No forte, senhor. Enviou-me para proteger a sua força.
- Ah, um comandante que gosta de dar o exemplo, portanto. - Macro não se coibiu de revelar algum desdém. - Não interessa. Estou aqui para assumir o comando
da Segunda Ilírica. Estes homens são a minha escolta. Sofremos uma emboscada a alguns quilómetros daqui.
Macro olhou à volta, apercebendo-se de que o combate estava terminado. A maior parte dos atacantes tinha recuado e observava agora o forte em silêncio e a uma distância
segura, numa crista próxima. Os oficiais da Coorte Ilírica tinham reagrupado os seus homens e estavam a formá-los junto aos sobreviventes do esquadrão de cavalaria.
Dois homens pegaram no corpo do decurião e colocaram-no gentilmente sobre o dorso do cavalo, conduzindo-o depois para o portão. Macro abanou a cabeça. Tinha sido
por pouco. Mas mesmo tendo escapado desta vez, tinha a certeza de que Bano não perderia a vontade de o eliminar. E a Cato. Quando esse pensamento lhe ocorreu, olhou
para a estrada.
- Senhor? - Póstumo inclinou a cabeça e olhou para Macro com ar inquisitivo. - Passa-se alguma coisa?
- Sim. Um amigo meu ficou lá para trás. Temos de ir procurá-lo o mais cedo possível. Quero que dês ordens ao contingente de cavalaria do forte para montar
e seguir-me.
- Senhor, com o devido respeito, essa decisão cabe ao prefeito Escrofa.
Macro rodopiou, enfrentando o outro.
- Já te disse. Agora sou eu o comandante.
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- Não, senhor, não até que essa nomeação tenha sido autenticada.
- Autenticada? - Macro abanou a cabeça. - Tratamos disso depois. Agora tudo o que importa é o centurião Cato.
- Lamento, senhor. Só recebo ordens do prefeito Escrofa. Se quer auxiliar o seu amigo, terá de levar a questão à consideração do comandante.
Macro praguejou, irritado com o jovem centurião, enquanto sentia os punhos a cerrarem-se. Depois inspirou profundamente e assentiu, deixando o ar escapar-se com
um silvo.
- Muito bem. Não há tempo a perder. Leva-me até ao Escrofa.
Regressaram ao forte com os últimos dos soldados que tinham sido
enviados em auxílio da coluna, e enquanto seguia no meio deles Macro teve ocasião de os avaliar em pormenor. O equipamento estava pouco mais do que aceitável, mas
os homens pareciam rijos. Pelo menos não tinham hesitado na hora de enfrentar os cavaleiros inimigos, e esse era sempre um momento importante para qualquer unidade.
Os homens das legiões nunca recuariam perante qualquer tipo de ataque, e nisso podia-se apostar a vida. Mas os auxiliares não recebiam um treino tão aturado, e até
o equipamento era mais ligeiro. Porém, aqueles tipos tinham-se lançado sobre os atacantes sem qualquer problema. Sem dar qualquer sinal exterior dos seus pensamentos,
Macro aprovou-os. Os homens que compunham o seu novo comando - a Segunda Coorte Ilírica - pareciam ter potencial, e ele estava determinado a explorá-lo, e a melhorar
ainda mais as suas prestações. Nesse instante cruzou o portão e reparou nos blocos de casernas, em péssimo estado de manutenção, alinhados em filas para os dois
lados do forte. Haveria muito trabalho a fazer antes daquela coorte estar ao nível dos seus padrões pessoais. Em frente às casernas viam-se os armazéns, enfermaria,
estábulos, edifício do comando, os aposentos dos oficiais e a casa do comandante da coorte.
A Segunda Ilírica era uma coorte mista. Dos mais de novecentos homens que serviam na unidade, cento e quarenta eram de cavalaria. Em todas as fronteiras existiam
unidades daquele género, já que a mistura de cavalaria e infantaria permitia uma maior flexibilidade no trabalho dos oficiais encarregados de policiar as tribos
locais e evitar qualquer tentativa de penetração da fronteira por parte de bandos de bárbaros. Uma força de cavalaria importante permitia patrulhar uma área mais
vasta, perseguir quaisquer pretensos invasores e, quando necessário, lançar ataques punitivos para lá da fronteira.
Aquele género de coortes era geralmente comandado por centuriões transferidos das legiões; esse procedimento era visto como uma promoção, aplicada aos que eram considerados
capazes de exercer um comando
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independente. Apesar das reservas que tinha sobre o sujeito, Macro estava consciente de que Escrofa devia ter demonstrado algumas capacidades antes de ser seleccionado
para aquele posto. Não se iludia quanto aos seus próprios méritos. O seu comando da coorte seria apenas temporário, pouco mais do que uma forma de resolver a emergência
que se punha naquele momento de crise.
Depois de o último homem ter cruzado o portão, o centurião Póstumo ordenou que aquele fosse encerrado, e que a tranca fosse colocada em posição. Macro assinalou
os sobreviventes do esquadrão de cavalaria, que levavam as suas exaustas montadas a passo.
- Era melhor arranjar espaço nos estábulos e nas casernas para quem acabou de chegar.
- Sim, senhor. Assim que o tiver levado à presença do prefeito.
- Onde está ele?
- Nos seus aposentos, senhor.
- Ora, então facilmente darei com ele. Trata mas é destes homens,
sim?
- Muito bem, senhor. - Retorquiu Póstumo, relutante. - Juntar-me-ei a vós assim que tiver arrumado esse assunto.
Macro entrou pelos aposentos do prefeito, guardados por dois soldados bem ataviados, com todo o equipamento. Apesar de disporem de abrigos contra o Sol, suavam abundantemente
no calor que reinava. Quando Macro se aproximou, puseram-se em sentido; ao passar entre os dois, o centurião não pôde deixar de notar a gota de suor pendurada no
nariz de um deles. O facto fê-lo sorrir levemente. Depois de entrar, parou, para permitir que os olhos se ajustassem à penumbra. Um soldado varria o salão de entrada,
e Macro interpelou-o.
- Tu!
- Sim, senhor? - O homem pôs-se imediatamente em sentido e saudou-o.
- Indica-me onde fica o gabinete do prefeito Escrofa.
- Com certeza, senhor. - O homem respondeu com um gesto de cabeça, cheio de deferência, e levou Macro até uma escadaria ao fundo da sala. Subiram ao andar
de cima, de salas espaçosas e pensadas para permitir a passagem da mais leve das brisas através das janelas bem posicionadas.
- Por aqui, senhor. - O soldado indicou-lhe uma porta aberta que dava para o patamar. Macro adiantou-se e entrou nos aposentos do comandante, estacando em
surpresa perante o ambiente luxuoso que o acolheu. As paredes estavam pintadas com cenas míticas de carácter heróico. A mobília era elegante, decorada com finos
acabamentos, e a um dos lados via-se um cadeirão coberto por confortáveis almofadas. Numa mesa próxima
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via-se uma taça de vidro repleta de tâmaras e figos. O prefeito sentava-se a uma grande secretária, envergando uma túnica leve. Ao seu lado, um imenso escravo de
cabelo ruivo abanava um leque, dirigindo o ar para o seu senhor. Escrofa era um homem magro, de trinta e poucos anos, de pele pálida e cabelo escuro que começava
a escassear nas partes laterais do crânio. Na mão esquerda ostentava um anel, prova da sua origem social elevada. Olhou irritado para Macro quando este entrou pelo
compartimento, coberto de poeira e manchado pelo sangue do decurião.
- Que espécie de demónio és tu?
- Centurião Macro. Enviado de Roma para assumir o comando da Segunda Ilírica. Prefeito Escrofa, considera-te destituído. Manda chamar os teus oficiais superiores,
por favor, para que possam ser informados da minha nomeação.
A boca de Escrofa estava escancarada. O escravo continuava a abanar, sem qualquer alteração de expressão.
- O que é que disseste?
- Foste destituído. - Macro inclinou-se para trás e colocou a cabeça do outro lado da porta. O soldado que o acompanhara dirigia-se de novo para as escadas.
- Ei!
O homem virou-se e olhou para Macro sem perceber, e depois o seu olhar passou para lá de Macro e interrogou Escrofa.
- Senhor?
- O centurião Escrofa já não está no comando desta unidade. - Macro deu um passo, interpondo-se na linha de visão dos outros dois, e prosseguiu. - Quero falar
com todos os centuriões e decuriões, imediatamente.
- Mesmo os que estão de serviço, senhor?
Macro fez uma pausa. Se Bano e os seus homens ainda andavam pela região, isso não seria de todo prudente.
- Não. Esses não. Falo com eles depois. Agora, vai!
Quando tornou a voltar-se para o interior do gabinete, já Escrofa tinha recuperado alguma compostura, e reclinara-se na cadeira. Encarou Macro com uma expressão
de fúria no rosto.
- Explica-te. O que é que se está a passar aqui, por Hades?
Macro, consciente da urgente necessidade de organizar uma força
poderosa e ir em busca de Cato e Simeão, atravessou a sala em passos largos e postou-se à frente da secretária.
- É muito simples. A tua nomeação foi temporária. Recebi ordens do gabinete imperial para assumir o comando da Segunda Ilírica. Não há tempo para qualquer
cerimónia de transmissão de poderes, Escrofa. Preciso de um esquadrão montado e pronto para agir, agora mesmo.
Escrofa abanou a cabeça.
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- Impossível! Cássio Longino garantiu-me que conseguiria que Roma tornasse a minha nomeação definitiva.
- Olha. - Continuou Macro, em tom amigável, embora desesperado para assumir o comando o mais cedo possível. - Disso não sei nada. Tudo o que sei é que me
mandaram para Bushir com ordens para assumir o comando.
Ouviu-se o som de passos no patamar, e o centurião Póstumo entrou na sala. Escrofa apontou Macro com o braço esticado.
- Este homem diz que foi enviado por Roma para assumir o comando da coorte.
Póstumo encolheu os ombros.
- Estava com a cavalaria auxiliar que foi perseguida até ao forte, senhor.
- Há outro oficial, e um guia, escondidos algures lá para trás. - Disse Macro, com urgência na voz. - Tenho de os ir procurar com alguns homens.
- Já trato disso. - Avisou Escrofa. - Assim que esta situação estiver esclarecida.
- Não há nada a esclarecer! - Gritou Macro, incapaz de se controlar por mais tempo. - Eu sou o comandante! Foste substituído. Afasta-te. Convoquei uma reunião
com os oficiais da coorte para esta sala. Leva o teu escravo, e vai para os teus aposentos.
- Não farei nada disso! Como te atreves a irromper por aqui e a tratares-me desta forma? Quem te enviou?
- Já te disse. Ajo por ordem do gabinete imperial.
O centurião Póstumo tossiu de forma audível, e avançou até à mesa, na clara intenção de confrontar Macro.
- Perdão, senhor. Se tem ordens para agir desta forma, poderemos talvez vê-las?
- O quê? - Macro olhou para ele sem perceber.
- As ordens, senhor. A confirmação da sua nomeação.
- Porra! Seja, muito bem. Vou buscá-las. Estão no meu alforge...
De repente os lábios de Macro imobilizaram-se, quando as imagens
da manhã lhe atravessaram a mente: a subida para o planalto, a súbita aparição de Bano e dos seus homens, e depois o abandonar de toda a carga quando o esquadrão
de cavalaria se preparara para um combate desesperado e para tentar alcançar o forte.
Os lábios do veterano voltaram à vida.
- Oh, merda.
74
Mais uma vez, Cato enfrentou o druida; desta feita, porém, o seu oponente era um verdadeiro gigante, o que o fazia sentir-se pequeno e indefeso como uma criança.
Os olhos do inimigo eram negros como o carvão, e os dentes afiados, como se tivessem sido limados. Nas mãos segurava a foice, que levantou bem acima da cabeça, enquanto
o olhar de Cato ficava preso à lâmina. Esta faiscou por momentos, ao captar os raios prateados do luar. E então precipitou-se para baixo, dirigida à garganta do
romano.
Acordou com um grito, sobressaltado, e ergueu-se ligeiramente, apoiado nos cotovelos. Os olhos abriram-se muito, tentando apreender o que o rodeava, saltando de
ponto em ponto. Um quarto pequeno e escuro, sem mobília, aparte a enxerga em que estava deitado. Tentou mexer-se, mas imediatamente sentiu um martelar na cabeça,
como se alguém empregasse um pesado maço para o agredir ritmadamente. A náusea foi imediata, vinda da boca do estômago, e teve de se debruçar para o lado e tentar
vomitar
Viii
. A porta abriu-se, deixando entrar a luz.
- Romano, deixa-te estar deitado. - Uma mulher falava-lhe suavemente, em grego. Estava ajoelhada junto à enxerga, e empurrou gentilmente a cabeça de Cato
para trás, até a apoiar de novo na almofada. - Ainda estás sob o efeito da pancada que levaste na cabeça. Há-de passar, mas para já precisas de repouso.
Com os olhos já mais habituados à penumbra que reinava no quarto, Cato observou a mulher. A face e a voz pareciam-lhe familiares, e breves memórias da emboscada
atravessaram-lhe o pensamento: a fuga aos atacantes e a chegada à aldeia, onde vislumbrara aquela face por entre momentos de inconsciência.
- Onde estou?
- Em segurança. - Sorriu. - Pelo menos para já.
- A aldeia. Como é que se chamava?
75
- Heshaba. Estás em minha casa, romano.
Outro detalhe surgiu-lhe na memória.
- Simeão... Onde está ele?
- Foi esconder os cavalos no desfiladeiro. Depressa estará de
volta.
A mulher ocupou-se fora do campo de visão de Cato, que só se apercebeu do som de água a correr. Pôs-lhe um pano húmido sobre o crânio e apertou-o ligeiramente, fazendo
com que um fio de água lhe escorresse pelas têmporas.
- Isso sabe bem. E também cheira bem. O que é? Limão?
- Sim, espremi um e juntei-o à água. Vai-te refrescar a pele e aliviar do mal estar.
Cato forçou o corpo a relaxar, expulsando a tensão dos músculos até sentir os membros soltos e o latejar da cabeça diminuir de intensidade. Só então mexeu a cabeça
para melhor ver a mulher.
- Não me lembro do teu nome.
- Miriam.
- Isso. - Anuiu levemente. - Tu e o Simeão conhecem-se.
- É um amigo. Não tão chegado como noutros tempos.
- Miriam, porque é que me estás a ajudar? Sou romano. Pensei que aqui na Judeia todos nos odiavam.
Ela sorriu.
- A maior parte, sem dúvida. Mas a nossa comunidade é diferente. Tentamos evitar que as nossas vidas sejam governadas pelo ódio. Agora, deixa-te estar quieto.
Tocou-lhe a cabeça com as mãos, e Cato sentiu os dedos a palparem suavemente sob o cabelo, até se aproximarem do ponto de onde parecia irradiar toda a dor. Fez uma
careta e cerrou os dentes.
- Está inchada aqui nesta zona. Mas não pareces muito afectado. Parece-me que a pancada não foi muito grave. Daqui por uns dias estarás de novo em pé, romano.
Cato esperou que a dor amainasse antes de voltar a abrir os olhos e olhar para ela de novo. Apesar da idade óbvia, as feições de Miriam eram elegantes. Não era uma
beleza convencional, mas tinha um ar de sabedoria e de autoridade calma que era desarmante. Ergueu a mão, pegou na dela e afagou-a ligeiramente.
- Obrigado, Miriam. Devo-te a vida.
- Nada me deves. Aqui todos são bem-vindos, romano.
- O meu nome é Cato.
- Cato... Pois bem, Cato, se queres realmente retribuir as minhas atenções, deixa-te estar quieto, e descansa.
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- Miriam! - Chamou uma voz de criança, vinda de outra divisão da casa.
Ela virou-se para a porta e respondeu em aramaico.
- Estou aqui.
Um miúdo surgiu na ombreira. Teria uns treze ou catorze anos, e ostentava uma farta cabeleira negra. A túnica que vestia era de material grosseiro, e estava descalço.
Olhou para Cato por momentos, antes de se dirigir a Miriam.
- É um dos soldados? Um romano?
- Sim.
- E tem de ficar aqui?
- Sim, Yusef. Está ferido. Precisa de ajuda.
- Mas ele é um dos inimigos. Um inimigo do nosso povo.
- Nós não temos inimigos. Lembras-te? Não é essa a nossa forma de vida.
O rapaz não pareceu convencido, e Miriam suspirou, cansada, enquanto se levantava e lhe pegava na mão.
Sei que não é fácil para ti, Yusef, mas temos de cuidar dele até ficar bom e poder partir. Sê um bom menino e acaba de peneirar a farinha. Temos de fazer pão para
esta noite, e ainda nem sequer moí toda a farinha de que preciso.
- Sim, Miriam. - Assentiu, deitou um último olhar a Cato, e afastou-se.
Enquanto os pés nus da criança percorriam o soalho, Cato sorriu.
- Suponho que aquele é um dos judeus que ainda odeiam Roma.
- Tem as suas razões. - Retorquiu Miriam, enquanto observava o miúdo a afastar-se. - O pai foi executado pelos romanos.
O sorriso de Cato desvaneceu-se. Sentiu-se embaraçado.
- Peço desculpa. Deve ser difícil para ele.
- Leva-o demasiado a peito. - Miriàm abanou a cabeça. - Nunca conheceu o pai. Só nasceu depois da sua morte. Ainda assim sente a sua falta, sente que perdeu
alguma coisa, e encheu o vazio com a raiva. Durante muito tempo, o centro da sua vida foi o ódio a Roma e aos romanos. Até que a mãe o abandonou e ele veio viver
comigo. - Virou-se para Cato, que registou a tristeza no olhar da mulher. - Eu era tudo o que lhe restava no mundo. E ele, tudo o que me restava a mim. - Cato não
percebeu, e ela sorriu perante a confusão que leu no rosto do centurião.
- Yusef é meu neto.
- Oh, já percebi. - Só então Cato se apercebeu de tudo, quando os seus olhos encontraram os de Miriam.
- O pai dele era meu filho. E o meu filho foi executado por Roma.
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-Miriam acenou com a cabeça, tristemente, e virou-se lentamente. Saiu do quarto, fechando suavemente a porta.
Durante o que lhe pareceu um longo período, Cato deixou-se estar no quarto às escuras. Sempre que tentava mexer-se a dor na cabeça regressava com toda a força e
martelava-lhe o crânio até ficar maldisposto. Depois do que soubera por Miriam, sentia que tinha de se afastar daquela casa, daquela gente, antes que se virassem
contra ele. Apesar de tudo o que a mulher lhe tinha dito sobre o comportamento dos aldeãos, Cato conhecia o bastante da natureza humana para saber que velhas feridas
custavam a sarar. Enquanto estivesse ali, na casa dela, estaria em perigo mortal. Mas a verdade é que não podia mexer-se sem ser assolado pela agonia. Enquanto se
mantinha imóvel na escuridão, tentando escutar o que se passava na casa e na aldeia em redor, amaldiçoou Simeão por o ter deixado ali. E por o ter abandonado. Por
Hades, se tinha ido apenas esconder os cavalos, porque raio ainda não tinha voltado? Não fazia a mais pequena ideia de quanto tempo tinha passado ali estendido no
escuro. Sabia que lá fora era dia, mas seria ainda o dia da emboscada? Ou o dia seguinte? Quanto tempo teria estado inconsciente? Devia tê-lo perguntado a Miriam
enquanto ela ali estivera. Enquanto a ansiedade o assolava, virou a cabeça para o lado e perscrutou de novo todo o quarto. A curta distância, empilhada contra a
parede, estava a sua armadura, mais o arnês, as botas e a espada. Cerrou os dentes e tentou arrastar-se e chegar lá com os dedos. Conseguiu tocar no cinto e mexer-lhe
até que o punho da espada ficou ao seu alcance e liberto da armadura. Os dedos fecharam-se em torno da arma e, tão silenciosamente quanto conseguiu, desembainhou-a.
Raspou ligeiramente no metal da bainha, e ele fechou os olhos numa careta. Mas conseguiu libertá-la e puxá-la para si, colocando-a entre a enxerga e a parede, escondida
mas à mão, para o caso de ser necessária. O esforço tinha-lhe deixado os músculos do braço a tremer, e só lhe restou energia para empurrar a bainha da arma para
debaixo da cota de malha antes de tombar sobre a almofada e combater as vagas de dor que lhe assaltavam o crânio. Fechou os olhos e inspirou profundamente, e a dor
começou a dissipar-se; o corpo voltou a relaxar, e adormeceu.
Quando acordou de novo, a porta do quarto estava aberta, e pela luz que entrava percebeu que a tarde já ia avançada. Ouviu vozes no exterior. Miriam e Simeão. Falavam
em grego, em tons baixos e familiares, e Cato esforçou-se para tentar perceber o que diziam.
- Porque é que não regressaste para junto de nós? - Perguntava Miriam. - Precisávamos de ti. És um homem bom.
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- Não suficientemente bom, ao que parece. Pelo menos não para ti.
- Simeão, desculpa-me. Amava-te - ainda te amo, mas... Não podia, e não posso, amar-te como tu queres ser amado. Tenho que ser forte, por toda esta gente.
Eles esperam que eu os guie. Esperam que os ame. Se te aceitasse como esposo, trairia a confiança de todos eles. Não o posso fazer.
- Estupendo! - Contrariou Simeão. - Morrerás então sozinha, se assim o desejas.
- Talvez... Se for esse o meu destino.
- Não tem de ser assim. Podias ficar comigo.
- Não. - Foi a resposta amarga. - Tu só pensas em ti. Renunciaste a todos nós, porque não quisemos seguir o teu caminho. Tu e o Bano, tão certos de que só
a vossa escolha era a correcta. É esse o teu problema. É por isso que nunca poderias ser parte daquilo que tentamos construir aqui.
- O que pensas tu conseguir? Miriam, estás a enfrentar um Império. E armada com o quê? Com a fé? Sei bem em quem apostaria o meu dinheiro.
- Agora estás a falar exactamente como o Bano.
Simeão inspirou profundamente, e ripostou, a fúria mal contida na
voz.
- Atreves-te a comparar-me a esse...
Antes que Miriam pudesse retorquir, ouviu-se um grito na rua, e o som de passos a entrar na casa.
- Miriam! - Era Yusef, excitado. - Vêm aí uns cavaleiros.
- Quem são? - Quis saber Simeão.
- Eu... Não sei. Mas vêm com pressa. Estão quase cá.
- Gaita! Miriam, temos de nos esconder.
- Não me esconderei. Nunca mais.
- Não és tu! Eu e o romano.
- Oh! Tens razão. Depressa, por aqui. - Entrou no quarto e apontou para Cato. - Levanta-o.
Simeão passou por ela, colocou os braços sob os ombros de Cato, ergueu-o e pô-lo de pé. Miriam enrolou a ponta do colchão, pondo à vista uma porta de alçapão. Abriu-a
puxando por um aro metálico e fazendo-a deslizar.
- Por aqui! Os dois, depressa.
Simeão arrastou Cato até à abertura e, sem cerimónia, lançou-o lá para dentro. O jovem tombou cerca de metro e meio e aterrou pesadamente. Mal teve forças para rolar
para o lado enquanto Simeão descia para o esconderijo. No instante seguinte, o homem praguejou quando sentiu todo o equipamento de Cato a cair-lhe em cima da cabeça.
Miriam voltou a fechar o alçapão e a colocar-lhe por cima a enxerga. A luz entrava no
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compartimento por uma fina abertura que dava para a frente da casa, e os dois homens arrastaram-se nessa direcção. O espaço era apertado, mas à medida que os olhos
de Cato se ajustavam às trevas, reparou que o esconderijo se estendia até às traseiras da casa. Estava vazio, à excepção de um pequeno cofre de aspecto rústico,
aparentemente ali esquecido. Ouviram o som de cavalos a aproximarem-se, e rastejaram rapidamente até à abertura. Esta tinha a largura de um dedo, e havia alguns
tufos de erva a crescer à sua frente; além disso, como ficava mesmo abaixo do nível das tábuas que compunham o soalho, Cato reparou que tinha de inclinar a cabeça
para o lado se queria ver algo do exterior.
Avistava a rua que vinha da entrada da aldeia, e um pouco da estrada que levava ao cruzamento. Um grupo de cavaleiros entrava na povoação, ; o coração deu-lhe um
pulo quando reconheceu Bano à cabeça dos seus salteadores. O líder fez estacar o cavalo mesmo à frente da casa de Miriam, levantando uma nuvem de poeira que obscureceu
a vista por momentos. No entanto, perceberam claramente pelo som que o chefe dos revoltosos tinha saltado da sela para o chão.
- O que queres? - Miriam avançou para o meio da rua. - Não és bem-vindo aqui.
Bano soltou uma gargalhada.
- Essa já sabia. Paciência. Mas tenho homens feridos, e precisam de tratamento.
- Não os podes deixar cá. Os romanos patrulham esta região. Se os incontrarem aqui, não deixarão de nos castigar.
- Não te preocupes, Miriam. Só quero que as feridas sejam limpas e ligadas, e depois voltaremos a partir. Nunca saberão que cá estivemos.
- Não. Tens de partir. Já!
Enquanto Cato e Simeão espreitavam pela frincha, viram o chefe los bandidos desembainhar a espada e apontá-la na direcção da mulher. Mas Miriam não se encolheu,
mantendo o olhar de desafio. A confrontação prosseguiu em silêncio por momentos, até que Bano se riu e agitou a ispada à frente da idosa.
- É graças a isto que as coisas acontecem, Miriam. E não pelas orações ou pelo ensino.
- Achas mesmo? - Ela inclinou a cabeça para o lado. - E o que conseguiste tu? Venceste o combate em que todos estes homens ficaram eridos? Não? Bem me parecia.
Simeão não pôde impedir-se de murmurar um aviso.
- Cuidado, Miriam.
- A situação está a mudar. - O tom de Bano era agora suave, mas não escondia a ameaça. - Temos amigos que nos vão auxiliar. Daqui a

pouco tempo terei um verdadeiro exército. Nessa altura, veremos como as coisas se passam. - Voltou a embainhar a espada, virou-se para os seus homens e gritou. -
Tragam os feridos para esta casa.
Miriam não cedeu.
- Não os levarás para a minha casa.
Bano virou-se de novo para ela.
- Miriam, tu zelas pelas pessoas. Os meus homens precisam dos teus cuidados. Ou tratas deles ou eu começo a arranjar-te pacientes por entre o teu próprio
povo, a começar por... Aqui pelo jovem Yusef. Rapaz! Vem cá. Imediatamente!
As tábuas sobre Cato chiaram quando Yusef saiu de casa e se aproximou do líder dos revoltosos, hesitante. Bano agarrou-lhe nos ombros e olhou-o com um sorriso.
- Um rapaz esplêndido. Ah, se o teu pai te pudesse ver... Serias o seu orgulho. E mais ainda se te juntasses a mim e lutasses para libertar a nossa terra
do jugo romano.
- Ele não se juntará a ti. - Avisou Miriam. - Não é esse o seu caminho.
- Não, por hoje. Um dia, quando tiver idade suficiente para tomar as suas próprias decisões, talvez venha mesmo reunir-se a mim, e ajudar a tornar realidade
a visão de Jehoshua. Um dia, sim. Por agora, Miriam, és tu quem deve escolher. Cuida dos meus homens, ou o rapaz perde um dedo.
Miriam olhou-o com raiva, mas os seus ombros descaíram, e acabou por anuir.
- Trá-los até à minha porta. Tratarei deles.
- Não, lá dentro. A sombra é muito apetecível. - Sem esperar por resposta, Bano afastou Yusef para o lado e berrou algumas ordens. Enquanto Cato observava,
os revoltosos desmontaram e começaram a transportar os feridos para o interior da casa. As tábuas gemeram sob o peso, e pó e terra soltos tombaram sobre Cato e Simeão.
Uma porta guinchou nas dobradiças, e Cato deu um pulo ao perceber que alguém acabara de entrar no quarto onde estivera até há pouco. A
- Oh, merda. - Sussurrou.
Simeão olhou para ele, alarmado, e levou um dedo aos lábios a exigir silêncio.
- A minha espada. - Disse Cato, tão baixo quanto conseguiu. - Ficou por baixo do colchão.
- O quê?
- Tirei-a do cinto e escondi-a lá.
- Porquê?
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- Não estava seguro acerca da Miriam e do rapaz. Ela contou-me que foram os romanos que executaram o pai dele.
Simeão franziu o sobrolho.
- Cato, não tens nada a recear da parte da Miriam ou do seu povo.
- Merda. - Cato olhou para ele, antes de se pôr a observar, aterrorizado, o ferrolho por baixo da enxerga. A qualquer instante um dos homens poderia descobrir
a espada e perceber que estivera ali um romano. Pior, podiam afastar o colchão e descobrir a entrada para o esconderijo. Nada podia contra isso, portanto resolveu
imitar Simeão, deixando-se ficar tão quieto quanto possível e aguardando. Sentia o coração a bater com força. A terrível dor de cabeça e a náusea regressaram,
pelo que teve de se concentrar em lutar contra a dor e em evitar qualquer gemido ou grito.
- Ponham-no na enxerga. - Ouviu-se Miriam dizer. - Tragam-me
água.
Tinha chegado o momento, pensou Cato. O ferido não deixaria de sentir a rija espada sob o colchão.
Em vez disso, sentiram-se passos apressados lá em cima, e ouviram Bano a falar.
- Miriam, nada de grego. Muitos dos meus homens não passam de simples camponeses. Só conhecem o dialecto do vale.
A conversa prosseguiu numa versão estranha de aramaico, e Cato lhou para Simeão.
- O que se passa?
O outro ergueu a mão, num sinal para ele se manter em silêncio, e apurou o ouvido para o que se passava no quarto por cima deles, tentando discernir a conversa.
Havia agora muitas vozes misturadas, enquanto os passos se multiplicavam à medida que os homens iam sendo tratados. O tempo parecia avançar a passo de caracol, e
Cato apercebia-se da passagem de cada instante, enquanto os ouvidos se lhe enchiam com os sons do quarto. Desejou que Miriam tratasse os homens tão depressa quanto
possível, de forma a que saíssem da casa e depois abandonassem a aldeia.
Quando a luz lá fora começava a diminuir de intensidade ouviu-se um grito na rua, e o facto gerou imediata comoção no interior da casa de Míriam; os homens reuniram-se
à entrada, e Bano lançou uma série de ordens. Simeão deu um toque em Cato.
- Avistaram uma coluna de cavalaria romana a caminho da aldeia.
- Macro. Só pode ser.
Simeão encolheu os ombros.
- Sinceramente, espero bem que sim.
Os homens de Bano começaram a levar os feridos para os cavalos. Enquanto ajudavam os primeiros a montar, ouviu-se um grito do homem
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deitado no colchão. As feridas tinham-no deixado fraco, e ele viu-se forçado a parar para respirar antes de continuar a falar.
- Encontrou a tua espada! - Sibilou Simeão. - Quando voltarem para o levar, vão vê-la.
Cato pensou depressa, e percebeu o que tinha a fazer. Fez uma careta. Arrastou-se até ao monte de equipamento, procurou às apalpadelas a adaga e extraiu-a da bainha
respectiva. A madeira da portinhola era antiga e gasta, e frágil. Cato reuniu todas as forças que lhe restavam, empunhou a adaga com ambas as mãos e empurrou-a através
da madeira, fazendo-a trespassar a lã que formava a base da enxerga e atingir as costas do ferido que nela jazia. Ouviu um som de surpresa, e sentiu um puxão na
lâmina quando o homem se agitou por momentos, antes de tombar de novo. Não se deram mais movimentos. Torceu ligeiramente a adaga, libertando-a do corpo do inimigo.
Voltou a agachar-se, e esperou. Pouco depois alguém entrou no quarto e parou um instante, antes de se dirigir ao homem deitado.
- Saul! - Gritou Bano, na rua. - Traz o último. Está no quarto do fundo.
- Sim, senhor.
Ouviram-se passos, e depois a voz de Miriam.
- Tarde demais. Está morto. Levem-no convosco.
- Bano! Este está morto. - Gritou o homem. - Levo o corpo?
- Deixa-o, temos de nos pôr a mexer. E depressa!
Na rua, os revoltosos voltearam os cavalos e arrancaram, a galope, dirigindo-se para a saída da aldeia. Levantou-se muita poeira, e Cato e Simeão só conseguiam perceber
o que se passava pelas vibrações dos cascos no terreno. Os sons afastaram-se rapidamente. Por momentos imperou o silêncio, e depois ouviu-se o esforço de Miriam
para afastar a enxerga. A portinhola foi aberta e a face dela surgiu na abertura.
- Já podem sair. Os romanos estarão aqui dentro de pouco tempo.
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IX

Macro espumava de raiva. O centurião Póstumo tinha-o encostado à parede. Sem a autorização escrita do palácio imperial, não possuía qualquer autoridade para destituir
o comandante temporário da Segunda Ilírica. Por isso, quando os oficiais da coorte tinha começado a aparecer, em resposta às suas instruções, tivera de assistir
acabrunhado às explicações de Escrofa, desconvocando a reunião. Mais uma vez naquele dia amaldiçoou Bano e os seus maltrapilhos, planeando submetê-los aos mais odiosos
e dolorosos tormentos que era capaz de imaginar. Por causa da emboscada, a carta de nomeação jazia algures no solo do deserto. Ou pior, podia ter caído nas mãos
dos comparsas de Bano, se estes se dessem ao trabalho de vasculhar as bagagens que ele, Cato e todo o esquadrão se tinha visto obrigado a a abandonar. O
embaraço da situação fazia-o tremer, mesmo considerando que na altura não tinha tido outra hipótese. Mesmo com as montadas aliviadas, mal tinham conseguido escapar
com vida. Aliás, Cato ainda não estava fora de perigo. Pensar no amigo fê-lo reagir e levantou-se, aproximando-se da seretária de Escrofa.
- Senhor? - Começou, tentando mostrar um respeito que não sentia. - Aceito que não posso apresentar qualquer evidência das minhas ordens, o que significa
que o comando é seu. Mas tem que enviar alguns homens para resgatar o centurião Cato. Antes que Bano o encontre.
- Tenho, realmente? - Escrofa sorriu, friamente. - Como tu mesmo apontaste, com toda a justeza, ainda sou eu o comandante. Nada me obriga a fazer o que quer
que digas.
Macro juntou as mãos atrás das costas, escondendo a raiva, e forçou-se a anuir, enquanto resistia à frustração. A ira só faria com que o outro o contrariasse.
- Compreendo, senhor. Mas estou a tentar imaginar o que se dirá em Roma quando se souber que o comandante da Segunda Ilírica se deixou estar quieto enquanto
um camarada era perseguido e morto por um
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bando de maltrapilhos. Uma coisa desse género mancharia para sempre a reputação da coorte, e provavelmente também a imagem do seu comandante.
O prefeito Escrofa encarou-o em silêncio por breves momentos, até que assentiu.
- Tens razão... Isso seria terrível para os meus homens. - Os olhos do oficial semicerraram-se enquanto se recostava e focava avista na parede oposta. - A
vida é injusta, porra. Servi como tribuno no Reno, uma boa temporada. Fui subindo a custo pelos postos civis menos importantes, gastei tempo e dinheiro a cultivar
os conhecimentos certos no palácio. - De repente, voltou a olhar para Macro, os olhos a brilhar de amargura. - Sabes quanto paguei para servir ovas de esturjão num
jantar que dei em honra de Narciso? Imaginas sequer?
Macro encolheu os ombros.
- Uma fortuna, foi quanto. E o sacana empurrou-as para o lado e queixou-se que estavam muito salgadas. - Calou-se por instantes, revivendo o passado, antes
de prosseguir em tom resignado. - Vai daí, decidi tentar colher o meu quinhão de glória nos campos de batalha. Pensei eu que assim conseguiria dar algum brilho ao
nome dos Escrofa. Não sabes, mas o meu bisavô combateu ao lado de Marco António em Áccio. O sangue militar corre-me nas veias. Portanto, o meu pai puxou alguns cordelinhos
até me conseguir uma nomeação como centurião de auxiliares. Imaginei que ia construir uma reputação nas batalhas da Britânia. Fora esse o meu pedido. E o que sucede?
Mandam-me para a Síria. Para uma guarnição tranquila. Imaginas esta? Um completo desperdício do meu potencial. Um ano metido num buraco esquecido na fronteira com
Palmira. E depois, nomeiam-me para aqui. Outro forte de fronteira, caralho. E o único inimigo que se me apresenta é o Bano e o seu grupo de rufiões. Que glória posso
eu conseguir nesta situação? - Fungou, desdenhoso. - Trabalho de policiamento. Porra, para isso mais valia ter ído para as coortes urbanas em Roma. Ao menos não
estava metido neste forno de merda! - Fez um gesto de irritação na direcção do escravo com o abano. - Mais depressa, porra...
- Deixou-se afundar na cadeira.
Os ombros de Macro mostraram bem o alívio que sentia perante o fim da tirada, o que o levou a tentar orientar o comandante da coorte para
o assunto premente de enviar uma força em busca de Cato e Simeão.
- Tem razão. Ninguém devia ter que suportar esta caloraça. Sobretudo um oficial romano ferido.
Escrofa voltou a olhar para ele com acuidade, e franziu o sobrolho. Depois, fez um gesto brusco com a mão, apontando a porta.
- Muito bem, Macro! Levaremos os quatro esquadrões de cavalaria.
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Havemos de encontrar o teu amigo e trazê-lo de volta o mais depressa possível.
- Sim, senhor. - Macro virou-se para sair, mas ainda não tinha alcançado a porta antes de Escrofa voltar a falar.
- Mas não poremos os meus homens em risco, percebes?
Macro estacou, olhou sobre o ombro e combateu a vontade de responder. Os soldados eram pagos para correr riscos. Aquela frase tinha-lhe permitido saber de que matéria
era Escrofa feito. O tipo limitava-se a brincar aos soldadinhos. A última coisa que queria era ter aquele forte perdido nos confins do Império atravancado com homens
feridos.
- Compreendo, senhor.
- Óptimo. Podes organizar os homens. Tenho de verificar alguma papelada. Quando a coluna estiver pronta para sair, juntar-me-ei a vocês.
- Muito bem, senhor.
Para um homem que se orgulhava do sangue militar que lhe percorria as veias, o prefeito Escrofa era muito mau cavaleiro, reflectiu Macro, enquanto observava a forma
como o comandante era auxiliado a subir para
a sela pelo seu escravo pessoal, um celta. Escrofa lançou uma perna sobre o dorso do animal e contorceu-se todo até ficar direito, e por fim ajustou
o capacete que lhe tinha tombado sobre a cara por não estar devidamente apertado. Não se portava melhor do que os recrutas das legiões que Macro treinara com a
devida dureza noutros tempos. Se se tratasse de um soldado comum, o centurião não lhe daria descanso: berrar-lhe-ia insultos na cara : aplicar-lhe-ia doses liberais
de cana como retribuição por tanta falta de jeito. Mas a verdade é que, dada a política imperial de nomear aristocratas nenores directamente para o centuriato, onde
se cruzavam com homens que tinham alcançado a mesma posição graças ao mérito e esforço de anos, era Escrofa quem comandava a Segunda Ilírica. Abanou a cabeça lentamente.
No que estaria Cássio Longino a pensar quando nomeara Escrofa para aquele posto? Teria por certo homens mais valiosos a apoiá-lo. Ou teria tanta falta deles que
se vira forçado a aproveitar os serviços daquele peneirento inútil?
O prefeito pegou nas rédeas e deu-lhes uma sacudidela, enquanto batia com os calcanhares no flanco do cavalo.
- Ora vamos lá.
Atrás dele, os decuriões que comandavam os quatro esquadrões montados escolhidos para aquela missão transmitiram a ordem em tons mais formais, e a coluna pôs-se
em movimento, deixando o forte e seguindo para ocidente pela estrada que serpenteava pela pedregosa superfície do deserto. Escrofa liderava, mantendo um passo
regular e lento, e Macro
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mais uma vez se sentiu frustrado e aflito pela morosidade com que a coluna progredia. Do deserto soprava uma brisa ligeira, que levantava uma nuvem de poeira em
torno dos homens, cegando-os e sufocando-os. Os oficiais, à frente da coluna, eram poupados ao pior, e de vez em quando Macro avistava silhuetas de cavaleiros à
distância na estrada. Percebeu que era Bano que lhes controlava os movimentos. Os batedores dos revoltosos mantinham-se fora do alcance da coluna romana, mas Macro
não tinha dúvidas de que, mesmo que esta tentasse um ataque repentino, os outros se escapuliriam com facilidade, já que estavam equipados de forma ligeira e montavam
cavalos pequenos mas velozes. Fosse como fosse, Escrofa não mostrava qualquer sinal de interesse na possibilidade de perseguir o inimigo.
Por fim, quando o sol começou a mergulhar para o horizonte a oeste, Macro decidiu que não podia aguentar mais aquele marasmo e levou o cavalo até junto do comandante
da coorte.
- Senhor, a este ritmo não conseguiremos voltar ao forte antes de anoitecer. Permita-me que leve metade dos homens e vá à frente.
- Dividir o meu comando? - Escrofa franziu o sobrolho e olhou para Macro com uma expressão desapontada. - Francamente, estou surpreendido. Supunha que os
princípios básicos das campanhas militares não te seriam estranhos.
- Senhor, isto não é uma campanha. É apenas uma missão de socorro. Posso perfeitamente adiantar-me, reconhecer o terreno e procurar sinais do centurião Cato
e do guia. Se avistar alguma força inimiga relevante, recuarei e juntar-me-ei de novo à coluna.
Escrofa ponderou a proposta e acabou por assentir, embora relutante.
- Muito bem. Tens razão. Não seria prudente avançar às cegas, correndo o risco de cair numa emboscada. Leva dois esquadrões e bate o terreno. E mantém-me
ao corrente dos acontecimentos, percebes?
Macro anuiu.
- E leva o centurião Póstumo contigo.
- O Póstumo? Porquê?
- Confio nele. Sei que posso contar com ele para ter cuidado com os homens.
Macro ficou a olhar para o comandante da coorte. Era evidente que Escrofa não confiava nele e, enquanto se forçava a aceitar a ordem, torcia-se todo por dentro.
Virou-se, procurando Póstumo com o olhar e acenando-lhe. O jovem oficial, cujo capacete era ornado por uma crista ondulada, aproximou-se, e Macro passou-lhe as instruções
rapidamente. Pouco depois, Escrofa colocou-se de lado enquanto via os dois esquadrões da frente avançar em passo acelerado. Quando já se tinham afastado um pouco,
o
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ainda prefeito acenou para que o resto da coluna se pusesse em movimento, no mesmo passo lento que tinha seguido até então.

Enquanto seguia pelo caminho, Macro nem olhava para trás. Lá à frente distinguia perfeitamente os batedores de Bano que faziam as montadas galopar para longe, mantendo-se
a uma distância segura da força romana. Macro puxou pelos homens, quilómetro após quilómetro, até alcançarem a junção onde se tinha separado de Simeão e Cato. Deixou
a estrada principal e seguiu pelo outro trilho até que este chegou a um longo e estreito desfiladeiro. Era o caminho para a aldeia que Simeão mencionara, e Macro
sentiu um arrepio quando avistou a quantidade de cavalos e homens que enchia o espaço vazio em pleno centro da povoação.
Refreou o cavalo e ergueu o braço para deter os dois esquadrões de auxiliares montados que o acompanhavam.
- Decuriões! A mim!
Os comandantes dos esquadrões adiantaram-se e Macro apontou-lhes a aldeia.
- É para ali que vamos. O guia disse-me que se ia abrigar ali com o centurião Cato. Aqueles cabrões já lá estão. Portanto, vamos avançar depressa e em força,
e expulsá-los antes de começarmos a procurar os nossos. Quintato, não é?
O decurião anuiu.
- Certo. Aposto que, assim que derem por nós, se vão pôr a andar. Leva o teu esquadrão, atravessa toda a aldeia e continua a persegui-los até estarem bem
longe. Depois recua e junta-te a nós. Sabe-se lá, por essa altura até o prefeito é capaz de já ter chegado.
Os decuriões sorriram, e Macro calcou os flancos do cavalo, incitando-o a prosseguir na direcção da aldeia.
- Vamos!
Assim que os dois esquadrões se lançaram pela encosta abaixo, os revoltosos entraram numa actividade frenética. Homens começaram a sair das casas onde se tinham
abrigado do sol e saltaram para os cavalos. Outros arrastaram-se, ajudados pelos camaradas, que os puseram nas selas, onde tentavam aguentar-se enquanto ensaiavam
a fuga da aldeia.
Alguns vultos mantiveram-se firmes, vendo a debandada e voltando-se para observar a chegada dos romanos. Macro adivinhou que deviam sr habitantes locais, assustados
e apanhados no meio de uma refrega com a qual nada tinham a ver mas que ameaçava o seu pequeno burgo. E algures por entre as habitações espalhadas, estavam Cato
e Simeão escondidos,
se ainda estivessem vivos. O pensamento levou-o a acelerar, e ele incitou o cavalo com gritos e movimentos, forçando os cascos a martelarem o solo pedregoso do caminho
que levava às casas. Mal reparou na mulher que gritou e correu a retirar do caminho uma criança, e que se meteu imediatamente em casa, trancando a porta. Já estava
em plena aldeia e só havia uma rua estreita à sua frente. Não conseguia ver os revoltosos, mas escutava os gritos ansiosos dos retardatários, ainda espalhados por
entre as casas.
A rua fazia uma esquina antes de desembocar no centro da aldeia. Macro empunhou a espada, todos os sentidos alerta, agora que se aproximava o embate com o inimigo.
Quando saiu da rua que seguira surgiu-lhe repentinamente à frente outro cavalo. O tempo pareceu parar quando cruzou o olhar negro e aterrorizado do outro cavaleiro,
mas logo os animais embateram, pescoço contra flanco. Macro foi lançado para a frente, saltando da sela mesmo de encontro ao outro homem, e os dois foram pelo ar
na direcção do largo. Macro aterrou violentamente, perdendo o fôlego, mas conseguiu enrolar-se e colocar-se quase imediatamente de pé, agachado, em busca do inimigo,
enquanto tentava respirar de novo. O outro homem ainda estava no chão, atordoado pelo impacto e a sacudir a cabeça. Virou-se e viu Macro, antes de reparar na espada
do centurião, no solo, mesmo ao seu alcance. Macro viu-a ao mesmo tempo, e saltou para a arma, mas demasiado tarde. O outro tinha-lhe pegado e assumira também uma
posição agachada, com os olhos fixos no centurião e um sorriso sinistro a dançar-lhe nos lábios.
- Calma aí, querido. - Macro recuou. O resto dos auxiliares vinha logo atrás, ouvia-se o som dos cavalos a aproximarem-se pela rua. O outro espreitou por
cima do ombro e voltou a encarar o romano. O sorriso tinha-se desvanecido, e ele avançou com um brilho determinado nos olhos. Macro sentiu as costas baterem contra
uma parede e, ao olhar de relance, apercebeu-se de que, se fosse para a esquerda, ficaria encurralado num canto. Saltou para a direita e correu para a esquina da
casa, precisamente quando o outro avançou para o atacar. Só conseguiu atingir a parede, fazendo saltar estuque, e correu atrás de Macro soltando um grito de frustração.
Na fuga, o centurião passou por uma porta que se abriu no instante seguinte, atingindo em cheio o perseguidor. Cato emergiu da escuridão a piscar os olhos. Quando
a porta voltou para trás viu-se obrigado a saltar, surpreso. Virou-se e foi então que viu Macro, e sorriu.
- Já estava a pensar quando é... - O sorriso de Cato interrompeu-se quando viu o amigo parar, voltar para trás com ar ameaçador e saltar para trás da porta
aberta. No chão estava outro homem, ainda atordoado. Macro pisou-lhe o pulso, obrigando-o a soltar a espada.
- Fico com isso, obrigado. - Macro inclinou-se para recuperar a
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espada, e aplicou um pontapé selvático na face lateral do crânio do outro, deixando-o inconsciente. Ouvia-se um clamor de gritos e relinchos, e o centurião virou-se
para o ponto em que a rua ia desembocar no centro da aldeia. Os cavalos que tinham chocado ainda se remexiam no solo, apavorados, o que forçara a cavalaria a parar
e a amontoar-se numa massa densa junto aos animais feridos. Por fim o cavalo de Macro rolou sobre o flanco e endireitou-se, dando uns passos nervosos para o lado.
Os auxiliares começaram a passar, incitados por Macro.
- Não parem! Apanhem-me esses sacanas! Vão! Vão!
Numa confusão de cavalos, botas, e escudos, os soldados lá foram passando, enquanto Macro se virava para Cato. Por trás deste surgiu Simeão, saindo da casa e ficando
a ver os cavaleiros passar, com ar aliviado. Acenou ao centurião, saudando-o.
- Bem jogado, Cato. - Macro apontou para o homem desmaiado, mas depois reparou na palidez da face do amigo, pela qual escorria sangue.
- Como estás da cabeça?
- Dói-me tudo. Sinto-me um tanto agoniado. Mas desta escapo. Chegou mesmo a tempo. Se tivesse demorado mais, tinham dado connosco de certeza.
- Quase não chegava cá. Tive uma trabalheira desgraçada para convencer o sacana do prefeito a mandar estes auxiliares à tua procura.
- Convencê-lo? - Cato franziu o sobrolho. - Mas se o veio substituir... O prefeito é você.
Macro soltou uma risada amarga.
- Não, enquanto não lhe mostrar o documento oficial. Sabes como o exército romano adora as suas regras. Infelizmente, a minha carta de nomeação perdeu-se
com o resto da bagagem.
Cato abanou a cabeça.
- Porra. Isso é uma grande complicação para nós.
Um pensamento atravessou a mente de Macro.
- E aquela nota do Narciso, dando-nos plenos poderes?
Instintivamente, Cato levou a mão ao peito, e sentiu o fino estojo de
cabedal que pendia do cordão que levava ao pescoço.
- Está aqui, em segurança.
- Óptimo. Podemos usá-la. Mostramo-la ao Escrofa e assumimos o omando da coorte.
- Não.
- Não? O que é que queres dizer?
- Pense bem. Se a usarmos agora, toda a gente vai ficar a saber quem somos. Não levará muito tempo a chegar aos ouvidos de Longino a notícia de que andam
dois espiões de Narciso pela região. Pôr-se-á imediatamente
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em guarda, e pode ter a certeza de que a primeira coisa que fará será tratar da nossa eliminação. - Fez uma pausa, e voltou a abanar a cabeça. - Não nos podemos
atrever a invocar a autoridade imperial, a não ser que seja absolutamente necessário.
Macro riu sem vontade.
- Ora merda! E o que vamos fazer então?
- Teremos de enviar uma mensagem ao procurador em Cesareia, a pedir uma confirmação da sua nomeação. Há-de estar nos arquivos.
- E até lá, o Escrofa continuará a ser o prefeito da Segunda Ilírica.
- Assim parece.
- Isso é estupendo, mesmo catita. - Macro virou as costas, tentando conter a frustração que sentia. E avistou Simeão, sentado num banco debaixo do toldo e
a conversar com uma mulher, uma habitante da aldeia. Inclinou-se para Cato e quase murmurou. - Quem é aquela?
- A Miriam. Foi ela que nos escondeu do Bano e dos seus homens.
- A sério? - Macro olhou para a mulher com mais atenção. - Ora ali está então uma velhota de coragem.
- Coragem? - Cato recordou a forma como ela tinha enfrentado Bano. - Sim, sem dúvida. Mas há muito mais por trás da coragem.
-Oh?
- Ela parece ser a líder da povoação. Ou, pelo menos, uma das líderes. - Cato mordeu o lábio, pensativo. - E também parece conhecer o Bano muito bem.
- Sem falar ali do nosso guia.
Cato olhou para Simeão, notando que ele segurava uma das mãos de Miriam enquanto lhe falava com intensidade.
- Sim. Acho que temos de saber mais sobre ela. Aliás, mais sobre tudo o que se está a passar por aqui.
- Achas que a devemos levar para o forte, para a interrogarmos?
Cato abanou a cabeça.
- Não me parece que seja boa ideia. Acho que ela nos poderá ajudar, se conseguirmos conquistar-lhe a confiança. Embora nas presentes circunstâncias isso seja
difícil.
- Quais circunstâncias?
- O filho dela foi crucificado, ao que parece.
- Ah, isso é mau. - Concedeu Macro. - Ainda assim, se nos esforçarmos, pode ser que consigamos o apoio dela.
- Não é essa a questão. Parece-me que ela perceberia facilmente a nossa intenção. Desta vez vamos ter que jogar com muito cuidado, Macro, se realmente queremos
que ela nos ajude. Bom, vamos deixar isso por agora. Vem aí o Simeão.
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O guia tinha-se levantado e dirigia-se aos dois romanos. Inclinou a cabeça com uma expressão apologética.
- Centurião Cato, a Miriam tem um pedido a fazer-te.
- Sim?
- Gostaria que tirássemos lá de casa aquele tipo que mataste. Tem de remendar a enxerga e limpar o corpo antes de o preparar para o enterro.
Quando Macro e Cato tinham acabado de remover o cadáver, deixando-o sob uma sombra nas proximidades, o prefeito e os dois esquadrões que o acompanhavam aproximavam-se
da povoação. Escrofa entrou na aldeia e deu ordem de alto junto à casa de Miriam, antes de desmontar com tanta inabilidade como a que demonstrara quando subira,
ou fora atirado, para a sela. Olhou para Cato e Simeão.
- O centurião desaparecido e o guia, presumo?
- Centurião Quinto Licínio Cato, senhor. - Cato inclinou a cabeça.
- Fico feliz por a nossa pequena expedição te ter encontrado antes dos homens do Bano.
Cato sorriu fugazmente.
- Eles estavam por cá faz pouco, senhor. Os homens de Macro é que os expulsaram da aldeia.
Escrofa encarou-o com frieza.
- Não são propriamente os homens do centurião Macro. São os meus homens, pelo menos até que ele possa apresentar alguma prova de que foi nomeado para me substituir.
Os meus homens, entendido?
- Sim, senhor.
- Óptimo. - Escrofa anuiu. Olhou então em redor da aldeia, até que se fixou em Miriam, que observava a cena sentada no banco sob o toldo. - Dizes tu que o
inimigo ocupava a aldeia antes da chegada do centurião Macro?
- Com efeito, senhor.
- E o que estavam cá eles a fazer, exactamente?
- A procurar tratamento para os feridos. - Retorquiu Cato, aflito.
- Quer isso dizer que os aldeãos os estavam a auxiliar?
- Não. Eles forçaram-nos a colaborar. Fizeram ameaças.
- Isso é o que vamos ver. - Escrofa apontou para Miriam. - Tragam-me aquela.
Miriam tinha ouvido a conversa. Levantou-se e dirigiu-se para junto los dois oficiais romanos, olhando desafiadora para o prefeito.
- Que me queres, romano?
Escrofa sentiu-se momentaneamente intimidado pelo tom da mulher, mas depressa recuperou a compostura e limpou a garganta.
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- Parece que deste abrigo aos bandidos.
- Sim, mas, como o teu centurião te explicou, não tive escolha.
- Há sempre escolha. - Ripostou Escrofa, com uma risada oca. - Sejam quais forem as consequências. Podias ter-lhes resistido. Aliás, era esse o teu dever.
- Com o quê? - Miriam fez um gesto com o braço, abarcando as habitações vizinhas. - Não temos armas; não as permitimos aqui. A minha gente acredita apenas
na paz. Não tomaremos partido na vossa luta com Bano.
Escrofa desdenhou da resposta.
- Não tomarão partido! Mulher, como te atreves? Bano não passa de um bandido, um criminoso comum. É um fora-da-lei. Se não estão contra ele, então estão por
ele.
Foi a vez de Miriam rir, e abanar a cabeça.
- Não. Não estamos por ele. Tal como não estamos por Roma.
- Então, o que defendem vocês? - Quis saber Escrofa, irritado.
- Uma fé, para todos, no temor do Deus único e verdadeiro.
Enquanto observava o confronto, Cato via o desprezo a crescer na
expressão de Escrofa, e compreendia-o. Como a maior parte dos romanos, o prefeito depositava fé em muitos deuses, e aceitava que os povos do mundo tinham direito
a adorar as suas próprias divindades. A insistência dos judeus na existência de um único deus, o deles, e na ideia de que todos os outros não passavam de ídolos
sem valor ou substância, não parecia a Escrofa mais do que arrogância pura e simples. Aliás, se o deus daquela gente era o ser supremo, como se explicava que a sua
terra fosse uma província romana, e não o oposto?
Um gemido profundo quebrou a tensão, e todos se viraram para o homem que se agitava no solo junto à porta da casa de Miriam. Os olhos do homem piscaram e arregalaram-se
quando reparou nos soldados e oficiais romanos que o rodeavam. Sentou-se repentinamente e encostou-se à parede quando Macro se adiantou na sua direcção, apontando-lhe
a espada.
- O que quer fazer com este?
Escrofa contemplou o homem um momento, e depois cruzou os braços.
- Crucifiquem-no. Aqui, no centro da aldeia.
- O quê? - Cato não acreditou no que ouvira. - É um prisioneiro. Tem de ser interrogado, pode muito bem ter informações valiosas.
- Crucifiquem-no. - Repetiu Escrofa. - E depois deitem fogo à casa desta mulher.
- Não! - Cato avançou para o prefeito. - Ela salvou-nos as vidas. E para isso arriscou a dela. Não pode destruir-lhe a casa.
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As sobrancelhas de Escrofa franziram-se, e ele inspirou fundo antes de continuar num tom grave e furioso.
- Esta mulher admitiu ter ajudado o inimigo, e renega a autoridade do Imperador. Não o tolerarei. Esta gente tem que receber uma lição. Ou estão connosco,
ou contra nós. - Voltou-se para Miriam. - Ela que pense nisso enquanto vê a sua casa a arder.
Miriam devolveu-lhe o olhar com o desprezo bem evidente nos lábios.
O coração de Cato tinha-lhe caído aos pés. A cruel injustiça da decisão do prefeito horrorizava-o. Não fazia qualquer sentido. Pior do que isso
- era deliberadamente errada. Se era assim que Roma recompensava os que tudo arriscavam para ajudar os seus soldados, o povo da Judeia nunca estaria em paz
com o Império. Mas havia mais ainda, considerou. Um castigo daquele calibre era errado em termos morais, e ele não o podia tolerar. Abanou a cabeça e manteve-se
firme em frente ao prefeito, enquanto se esforçava a falar da forma mais calma que conseguia.
- Senhor, não pode queimar-lhe a casa.
- Não posso? - Escrofa parecia estar a divertir-se. - Depressa o veremos, se posso ou não.
- Não pode! - Explodiu Cato. - Não o permitirei.
A expressão divertida apagou-se dos olhos de Escrofa.
- Centurião, como te atreves a questionar a minha autoridade? Só por isso podia mandar-te de volta às fileiras. Podia condenar-te. Aliás...
Antes que ele prosseguisse, Macro acercou-se, pegou em Cato pelo braço e levou-o dali para fora, até debaixo do toldo.
- Senhor, o miúdo levou uma forte pancada na cabeça. Não faz ideia do que está para aqui a dizer. Vamos, Cato, senta-te aqui à sombra, Tens que descansar.
- Descansar? - Cato olhou-o, furioso. - Não. Tenho que impedir esta loucura.
Macro abanou a cabeça. Empurrou o amigo para longe do prefeito, enquanto sussurrava.
- Está calado, idiota. Antes que tenha de te calar à estalada.
- O quê? - Cato olhou-o, chocado, enquanto era empurrado para o banco.
- Deixa-te estar aí sentado e não digas nem mais uma palavra. Cato abanou a cabeça, mas Macro agarrou-lhe o braço com força e avisou.
- Senta-te!
A mente de Cato estava mergulhada na confusão. Escrofa estava prestes a cometer uma tremenda injustiça, e ele sabia que devia resistir-lhe. Porém, Macro parecia
estar do lado do prefeito. Estava claramente de
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determinado a impedir que Cato continuasse a protestar, e o jovem acabou por se sentar, sentindo-se impotente, enquanto olhava para Miriam. A face dela mostrava
determinação, mas nada podia esconder o brilho das lágrimas que lhe dançavam aos cantos dos olhos. Depois de um momento de hesitação, Simeão pôs-lhe o braço em torno
dos ombros e levou-a para o interior da casa.
- Miriam, vamos salvar tudo o que pudermos. Enquanto ainda temos tempo.
Ela anuiu, e os dois desapareceram nas sombras.
A escuridão adensava-se quando a coluna deixou a aldeia. A cavalo entre Macro e Simeão, Cato olhou sobre o ombro uma última vez. As labaredas dançavam e rugiam enquanto
consumiam a casa de Miriam. Ela observava o desastre a alguma distância, abraçada ao neto. Um punhado de aldeãos assistia também, sem nada poder fazer. Ali perto,
a silhueta desenhada pelas chamas, o revoltoso pendia da improvisada cruz que os auxiliares tinham edificado com madeiras arrancadas da casa de Miriam. Uma mensagem
rabiscada à pressa numa tábua tinha sido pregada sob os pés do homem, avisando os aldeãos para que nenhuma assistência lhe fosse prestada, e para que o corpo não
fosse removido depois da sua morte. Em caso de desobediência, outro corpo, um deles, o substituiria.
Enquanto se virava de novo para a frente, Cato sentia-se enjoado, repleto de desespero e desprezo por si mesmo. Roma tinha tirado o filho a Miriam, e agora destruía-lhe
a casa. Se era assim que os romanos tratavam aqueles que nenhum mal lhes desejavam, nunca encontrariam paz naquela terra.
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X
- O que é que lhe passou pela cabeça lá atrás, foda-se? - Inquiriu Cato, de forma agressiva. - Porque é que não me ajudou?
Estavam sentados no quarto atribuído a Macro. Cato tinha sido colocado noutro quarto próximo. Escrofa explicara que, até que a questão da nomeação de Macro fosse
esclarecida, não seria sequer considerada a possibilidade de lhes atribuir aposentos de acordo com o estatuto que alegavam possuir. Portanto, o chefe da messe e
o seu assistente tinham sido convencidos a ceder temporariamente as suas instalações, e o pessoal tinha passado grande parte da noite a limpar os quartos e a equipá-los
com o mínimo de mobiliário que era exigível para os dois centuriões recém-chegados. A coluna tinha chegado ao forte pouco depois do anoitecer, sob a luz prateada
de um crescente, e só pela quarta hora da vigia nocturna ficaram terminados os preparativos dos seus novos aposentos. A Simeão fora atribuída uma cama na caserna
da cavalaria, e ele tinha-se ido deitar imediatamente, deixando os dois oficiais à espera que os quartos estivessem prontos, numa atmosfera de tensão silenciosa.
- O que é que eu estava a fazer? - Macro parecia atónito. - Estava a portar-me como um oficial, nem mais nem menos, porra. Em vez de barafustar como uma criança
mimada e indignada.
- Desculpe?
- Cato, quando um oficial superior te dá uma ordem, tens de obedecer sem hesitar.
- Macro, sei perfeitamente disso. Acontece que não é ele o oficial superior. Você é que é.
- Só a partir do momento em que o puder provar. Até lá, é o Escrofa que está no comando, e a palavra dele é lei.
- Por muito que essa palavra seja errada?
- Isso mesmo.
Cato abanou a cabeça.
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- Macro, isso é completamente ridículo. A Miriam não fez nada de errado. Nada que justificasse que lhe queimassem a casa.
- Concordo contigo. - Retorquiu Macro, com uma calma forçada. - Foi uma desgraça. Uma injustiça. Chama-lhe o que quiseres, terás sempre razão.
Cato estava exasperado.
- Então, porque é que não disse nada naquela altura?
- Sabes como é. Quando uma ordem é dada, não pode ser discutida, sejam quais forem os teus sentimentos.
- É uma loucura.
- Não - chama-se disciplina. É o que permite a um exército funcionar. Não há lugar a debates. Nem tempo para avaliar os prós e os contras. Uma ordem é emitida,
tu obedeces. - Macro fez uma pausa, para logo prosseguir, em tom duro. - O que não podes fazer - seja em que circunstâncias for - é questionar uma ordem de um oficial
superior, muito menos à frente da porra dos homens. Ficou claro?
Surpreso perante a hostilidade do amigo, Cato limitou-se a anuir.
Macro continuou.
- Segues por essa via, meu caro, e a disciplina esvai-se. Se os homens começarem a pensar nas ordens em vez de as seguirem, o exército desfaz-se, e os nossos
inimigos chamam-nos um figo. Não há propriamente falta deles neste mundo. E quem é que fica para defender o Império, hã? Portanto, força, pesa isso tudo contra uma
casa de uma mulher que desaparece nas labaredas. E da próxima vez, pensa nisto antes de pores em causa as ordens de um oficial superior.
Cato manteve-se em silêncio enquanto considerava as razões do amigo; por fim, ergueu o olhar e encolheu os ombros.
- Bom, suponho que é capaz de ter razão.
- Porra, é evidente que tenho. - Macro lançou um suspiro de irritação. - Cato, presta atenção. O exército é a tua vida também. Às vezes é uma vida de merda,
admito, mas eu adoro-a. E não permitirei a ninguém que a estrague, por muito bem-intencionado que esse alguém seja, e mesmo que seja o meu melhor amigo. Vê se metes
isso na cabeça.
Cato cerrou os lábios.
- Seja. Mas, ainda assim, punir aquela mulher foi errado.
Macro resmungou e deu uma pancada no ombro do seu jovem companheiro.
- Já chega. Temos mais com que nos preocupar. Não estamos por cá para passarmos umas férias agradáveis, Cato.
- Era bom, era.
Macro sorriu, e depois tornou-se pensativo.
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- Sabes, é capaz de haver alguma coisa por trás disto.
- O que quer dizer?
- Incendiar a casa. Crucificar aquele maltrapilho. - As sobrancelhas de Macro arquearam-se. - Agora que penso nisso, parece-me que pouco mais se poderia fazer
para provocar deliberadamente a gente daquela aldeia, e ao mesmo tempo atirar fora qualquer possibilidade de recolher informações preciosas de um prisioneiro.
- Já percebi. - Cato assentiu. - Visto dessa maneira, parece confirmar as suspeitas do Narciso sobre o que se passa por estas bandas.
- E se ele tem razão acerca do Escrofa e daquele estafermo do ajudante, o Póstumo, vamos ter que andar com muito cuidado, e sempre atentos ao que se passa
nas nossas costas. Não me apetece nada seguir o destino do antecessor do Escrofa.
Na manhã seguinte, assim que o sol nasceu, os sobreviventes da escolta montada partiram de regresso a Jerusalém. Escrofa nomeara um dos oficiais mais jovens para
o comando temporário do esquadrão, e ordenara a Simeão que o guiasse no regresso à capital por um caminho diferente do que haviam tomado anteriormente. Simeão era
também portador de uma mensagem de Macro para o procurador em Cesareia, solicitando a urgente confirmação da sua nomeação para o comando da Segunda Ilírica. Dadas
as distâncias envolvidas, uma resposta levaria por certo vários dias a chegar. Até esse instante, os dois centuriões seriam considerados supranumerários - sem serviço
distribuído, e livres de se deslocarem pelo forte como lhes aprouvesse. Conscientes da missão que lhes tinha sido secretamente atribuída, Macro e Cato juntaram-se
aos outros oficiais na reunião matinal com o prefeito, que tinha lugar sempre a seguir ao pequeno-almoço.
Os centuriões e os oficiais subalternos da coorte já ocupavam todos os assentos no salão do edifício do comando, e trocavam conversas enquanto esperavam pela chegada
de Escrofa e do seu ajudante; Cato aproveitou para, dissimuladamente, lhes tomar o pulso. Os oficiais pareciam pouco concentrados e nervosos, e falavam em tons quase
de murmúrio. De vez em quando um deles olhava na direcção dos recém-chegados, mas nenhum se aproximou e se apresentou aos dois centuriões. Era como se estivessem
desconfiados, decidiu Cato. Mas desconfiados de quê? Não tinham forma de saber que Macro e Cato estavam a trabalhar para Narciso. A nomeação de Escrofa fora temporária,
portanto deviam estar à espera de um novo comandante para o substituir. Não devia existir qualquer razão para a chegada dos dois amigos ser considerada suspeita;
todavia, Cato sentia que algo estava errado.
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As suas especulações foram interrompidas pela entrada do centurião Póstumo que fez um anúncio formal assim que cruzou a porta.
- Senhores, o comandante!
O ruído de muitos homens a levantarem-se em uníssono e a colocarem-se em sentido abafou os passos de Escrofa. Mal entrou, dirigiu-se para a secretária ao fundo da
sala e sentou-se por trás da mesma.
- Senhores, sentem-se.
Os oficiais relaxaram e sentaram-se nos bancos. Quando todos se acalmaram, Escrofa tossicou para limpar a garganta e deu início à reunião.
- Em primeiro lugar, gostaria de proceder à apresentação formal dos centuriões Macro e Cato. - Fez um gesto na direcção dos dois, que se levantaram para corresponder
à menção feita, enquanto Escrofa prosseguia. - Continuando, chegaram-me notícias de alguns rumores que circulam acerca da razão da chegada destes dois novos oficiais
a Bushir. Para que fique claro, os centuriões Macro e Cato reclamam ter sido enviados de Roma para me substituírem e ao centurião Póstumo. Infelizmente, com a pressa
de escapar aos seus perseguidores ontem, o centurião Macro viu-se obrigado a largar a bagagem, onde vinham as ordens do palácio.
Uma onda de risadas e expressões de gozo percorreu os oficiais, e Macro corou, embaraçado e furioso. Escrofa sorria ao prosseguir.
- Portanto, até haver confirmação da nomeação, damos-lhes as boas-vindas ao Forte Bushir, na qualidade de nossos hóspedes. Talvez todos possam aproveitar
a oportunidade para se darem a conhecer ao novo comandante designado para este posto, de forma a que tudo corra bem, como durante o meu período de comando. O centurião
Macro terá necessidade de perceber como fazemos as coisas por aqui, para que haja nos próximos meses um clima de confiança entre comando e subordinados...
Passou os olhos pelas notas que tinha rabiscado numa tábua encerada, e prosseguiu.
- Temos informação de que duas caravanas que se dirigem à Decápole vão passar pela nossa área de patrulha nos próximos dias. A primeira pertence a Silas,
de Antioquia. Enviar-lhe-emos a habitual comissão de boas-vindas, e não devemos ter problemas para alcançar um acordo para escoltar a caravana até Gerasa. A segunda
é de um cartel árabe novo, dos que se instalaram há pouco em Aelana. Uma vez que são novos neste negócio, o centurião Póstumo levará uma força significativa para
lhes dar as boas-vindas e explicar os procedimentos que devem seguir. Em seguida, escoltá-los-á até Filadélfia e regressará ao forte... Bom, tratemos de assuntos
mais complicados. Há um bando de salteadores do deserto que tem operado na orla da Decápole. O decurião Próximo levará uma patrulha até Azrakh, e vai oferecer ao
chefe local um prémio para perseguir e eliminar
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esses tipos. - Escrofa fez uma pausa, procurando Próximo pela sala com os olhos. - Vê lá se fazes bom negócio. Nada que faça diminuir as nossas margens de lucro.
O decurião respondeu com um sorriso e um anuir de cabeça.
- É isso mesmo. Bom, é tudo quanto às nossas questões comerciais. Há perguntas?
Um dos centuriões mais velhos levantou o braço, e Escrofa contemplou-o com ar cansado, antes de responder.
- Sim, Parmenião?
- E o que aconteceu ontem, senhor? Não vamos atrás de Bano e do seu grupo? Já era altura de ajustarmos contas com essa malta.
Escrofa deitou um olhar ao seu ajudante, e Póstumo inclinou-se para ele. Os dois conversaram em voz baixa, antes de Escrofa se voltar para o oficial que o questionara.
- Tens toda a razão, claro. Não podemos tolerar um ataque deste género a uma força romana. Os judeus precisam de uma lição. E para isso vou-te enviar com
uma centúria de infantaria e um esquadrão montado, para dares uma volta pelas povoações aqui da região. Se encontrares algum indício de que essa gente tem dado assistência
aos bandidos, seja de que género for, trata de arrasar e queimar umas casas. Se não encontrares nada, limita-te a escolher um grupo e a chicoteá-lo, para todos ficarem
com uma amostra do que os espera se alguma vez se sentirem tentados a ajudar Bano ou outro da sua laia. Vê se eles percebem a mensagem.
- Sim, senhor. - Replicou Parmenião. - Mas não seria mais sensato tentar encontrar a pista do próprio bando? Em vez de realizar outra expedição punitiva?
- Não há qualquer vantagem em expor os nossos homens ao perigo de um confronto armado com esse grupo. - Retorquiu Escrofa, com ar pouco convincente. O ajudante
deu um passo em frente e tomou a palavra.
- O grupo de Bano só consegue sobreviver graças ao apoio dos aldeãos. Se conseguirmos convencer estes a deixarem de os auxiliar, depressa eles se verão presas
da fome, e depressa também o bando se desmantelará, e o problema desaparecerá por si mesmo. - Póstumo sorria. - Satisfeito?
O centurião Parmenião deitou um olhar de incredulidade ao ajudante do prefeito, antes de inclinar a cabeça e fazer menção expressa de se dirigir de novo ao comandante.
- Senhor, peço desculpa, mas já há vários meses que andamos a castigar duramente os locais. E isso não nos levou a destruir Bano. Aliás, acho que as nossas
acções só serviram para fortalecer o apoio que ele tem. De cada vez que punimos os aldeãos, convencemos mais alguns deles a juntarem-se a Bano. De cada vez que ele
embosca uma das nossas patrulhas
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e mata alguns dos nossos homens, os aldeãos celebram. - Fez uma pausa e abanou a cabeça. - Desculpe, senhor. Mas não consigo acreditar que esta política venha a
obter bons resultados. Devíamos estar a tentar ganhar esta gente para a nossa causa, em vez de os punirmos pelas acções de um grupo de bandidos.
O centurião Póstumo apontou-o com o dedo, irritado.
- Centurião Parmenião, muito obrigado. Todos estamos conscientes da tua vasta experiência nesta província, mas já chega. Já recebeste as tuas ordens. Agora,
só tens que as cumprir. Acredita, quando os locais perceberem que Roma não tolerará qualquer sinal de desafio, a ordem regressará a esta região. Além disso, segundo
as minhas fontes, o número de homens ao dispor de Bano tem sido muito exagerado. Quase não têm equipamento, as roupas que possuem são as que têm em cima do corpo.
Não passam de um bando de maltrapilhos.
- Senhor, não estou certo de que possamos confiar nessas fontes. Até agora, não nos deram grande ajuda... Seja como for, tipos que são pagos para dar informações
tendem a dizer aquilo que pensam que os que lhes pagam querem ouvir.
- Eu confio neles. - Retorquiu Escrofa de forma áspera. - A ameaça que Bano representa é ínfima.
Parmenião encolheu os ombros e acenou com a cabeça na direcção de Macro.
- A mim parece-me que deram uma valente coça na escolta do centurião.
Póstumo sorriu.
- Digamos antes que a escolta do centurião teve uma percepção exagerada do perigo que a ameaçava.
Parmenião virou-se para Macro.
- Senhor, o que acha? Sofreu a emboscada. Como é que avalia o perigo que Bano representa?
Macro cerrou os lábios antes de responder.
- Foi uma armadilha bem montada. Apanhou-nos numa zona estreita, e devia ter uns trezentos ou quatrocentos homens. É verdade que o armamento deles era escasso,
e havia poucos tipos montados. Mas se conseguiu reunir tanta gente para uma simples emboscada, presumo que o efectivo que tem ao seu dispor deve ser respeitável.
Ou virá a sê-lo, se os conseguir treinar e equipar de forma adequada. Ainda assim, só conseguimos escapar porque eles não estavam à espera que nós carregássemos
sobre eles.
Enquanto o amigo falava, Cato sentia um arrepio a percorrer-lhe a espinha. O que tinha Bano dito à porta da casa de Miriam? Qualquer coisa
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sobre uns amigos que o iriam ajudar em breve. E que depressa disporia de um verdadeiro exército. Mas seria apenas bazófia? Palavras ocas de um homem desesperado,
condenado a passar o resto dos seus dias em fuga, proscrito? Porém, o prefeito Escrofa parecia contentar-se em deixá-lo em paz e atacar os que achava que o ajudavam.
Perante essa atitude, os que ainda não apoiavam Bano depressa passariam a fazê-lo.
Mais uma vez era o centurião Póstumo que respondia em vez do comandante. Um gesto da cabeça pareceu indicar que concordava com Macro, mas um sorriso fraco sugeriu
o contrário.
- É claro que, na pressa de fugir, pode ter sobrestimado a força inimiga.
Macro deitou-lhe um olhar funesto.
- Estás a chamar-me mentiroso?
- Não, senhor, evidentemente. Estou apenas a sugerir que no calor da, digamos, batalha, se deve ter tornado difícil perceber quantos homens é que estava realmente
a defrontar.
- Estou a ver. - A expressão de Macro tornou-se ameaçadora. - Se não me acreditas, podes perguntar aqui ao centurião Cato quantos tipos achou ele que estávamos
a enfrentar.
- E para que serviria isso, senhor? Ele estava envolvido na mesma situação. Porque haveria o julgamento dele de ser mais claro? Além de que tinha sido ferido
na cabeça. Facilmente se poderia equivocar quanto ao poder da força que encontraram. Asseguro-lhe que temos informações fidedignas que nos garantem que a ameaça
posta por Bano é insignificante.
Cato inclinou-se para a frente.
- Então para que se dão ao trabalho de conduzir estas expedições punitivas contra as aldeias próximas?
- Porque temos que os dissuadir de qualquer ideia de apoiarem Bano. Se os deixarmos em paz, isso dar-lhes-á a impressão de que somos fracos. E dará uma oportunidade
a Bano de proclamar que, com homens suficientes, conseguirá libertar o povo da Judeia do jugo de Roma.
- Mas, se tratarem os judeus desta forma, só vão conseguir lançá-los para os braços de Bano, como fez notar o centurião Parmenião. Talvez devêssemos antes
tentar conquistar o coração destas gentes.
- Não vale a pena. - Interrompeu Escrofa. - Já se tornou evidente que nos odeiam com paixão. Nunca conseguiremos a sua simpatia, pelo menos enquanto se agarrarem
àquela religião deles. Portanto, a única forma de os manter na linha é incutir-lhes temor.
Macro recostou-se e cruzou os braços.
- Estou a ver: que nos odeiem, desde que nos receiem, não é?
O prefeito encolheu os ombros.
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- Sim, o ditado parece ter toda a razão de ser.
Cato sentiu o coração a afundar-se no peito. A estratégia de Escrofa era perigosa e pouco inteligente, sobretudo tendo em conta a situação: Bano oferecia às vítimas
a possibilidade de se vingarem. Cada aldeia que fosse transformada num exemplo pelos romanos tornar-se-ia um amplo campo de recrutamento para Bano, e contribuiria
para engrossar as suas fileiras com fanáticos repletos de ódio a Roma e a todos os que vissem como servidores dos interesses romanos.
- Seja como for, tomei uma decisão. - Anunciou o prefeito. - As ordens mantêm-se, e como tal serão cumpridas. A reunião terminou. O centurião Póstumo distribuirá
as ordens escritas aos oficiais envolvidos. Senhores, tenham um muito bom dia.
Os bancos rasparam nas pedras do soalho quando os oficiais se levantaram e se colocaram de novo em sentido. Escrofa recolheu as tábuas de cera e deixou a sala. Assim
que saiu, Póstumo deu a ordem para os homens descansarem.
- À vontade!
Cato deu um toque no amigo.
- Parece-me que devíamos falar com o centurião Parmenião.
Macro assentiu, deitou uma olhadela aos outros oficiais que dispersavam lentamente e se preparavam para os deveres quotidianos.
- Sim, mas não aqui, à frente de todos. Podemos talvez pedir-lhe para nos levar numa visita guiada ao forte. Nada de extraordinário. Pelo contrário, é muito
natural que alguém que acabou de chegar queira conhecer os cantos à casa.
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Tal como a esmagadora maioria das fortificações edificadas pelos romanos, o Forte Bushir tinha sido construído de acordo com um plano pré-estabelecido. Os aposentos
do comandante, o edifício do comando, o hospital e os armazéns ocupavam uma posição central, ladeando as duas grandes avenidas que atravessavam o campo de lado a
lado, fazendo um ângulo de noventa graus. Nas zonas laterais estendiam-se as filas de cabanas baixas e alongadas correspondentes às casernas onde se acomodavam os
homens da coorte, oito em cada quarto, cada centúria ou esquadrão de cavalaria ocupando o seu próprio edifício. Os estábulos ocupavam um dos cantos do forte; o cheiro
forte dos animais permeava o ar quente e pesado que tudo cobria como se fosse uma manta. Enquanto o centurião Parmenião os guiava numa volta pormenorizada pelo campo,
Cato notou vários pormenores que denunciavam uma lassitude que não seria tolerada na maior parte das unidades de tropas auxiliares, muito menos nos imensos fortes
da legião a que estava mais habituado. Portas e portadas partidas, restos de comida espalhados por todo o lado, peças de equipamento claramente a precisar de manutenção;
entre estas avultava a madeira seca e rachada das máquinas montadas nas torres. Como estavam, eram praticamente inúteis; se alguma vez fossem necessárias e tivessem
que ser preparadas para disparar, rapidamente os braços se quebrariam com a tensão, assim que as rodas dentadas começassem a ser accionadas. Além disso, notava-se
um desinteresse óbvio nos soldados, que fez Cato perguntar-se se seria apenas uma reacção natural depois de anos passados num local tão desolado.
Os três centuriões subiam a escada de acesso ao torreão sobre os portões quando Macro entendeu que tinha chegado o momento de abrir o jogo.
- Parmenião, estiveste sempre nas unidades auxiliares?
- Nem pensar nisso. Sou um soldado a sério. Passei dezassete anos com a Terceira Gaulesa perto de Damasco; o último ano já como optio.
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Depois consegui uma transferência para a Segunda Ilírica, com promoção a centurião. Desde essa altura que estou aqui. Devo ser desmobilizado no próximo ano, ou no
outro.
- Estou a ver.
- Porque pergunta?
- Com alguém como tu por aqui, não percebo como é que o forte chegou a este triste estado.
Parmenião não respondeu à insinuação até os três chegarem à pequena plataforma de observação no cimo da torre, debaixo de um tecto de folhas de palmeira que fornecia
alguma sombra. A toda a volta o deserto estendia-se até ao horizonte, e o calor fazia tremer a paisagem. Mas o olhar de Parmenião estava fixo em Macro.
- Centurião Macro, não há nada de errado com esta coorte. Pelo menos com os homens. - Afirmou, de forma cautelosa.
- E quanto aos oficiais?
Parmenião continuou a encarar Macro, olhando de relance para
Cato.
- Porque é que me faz essa pergunta? O que é que anda a tentar descobrir?
- Nada. - Respondeu Macro, tentando diminuir a tensão. - É só porque devo assumir o comando da coorte daqui a pouco tempo, e vou provavelmente querer mudar
umas coisas... Fazer uns melhoramentos. Estava simplesmente a tentar descobrir como é que a coorte chegou a este estado. Na minha experiência, uma unidade é tão
boa como os oficiais que a dirigem.
Parmenião pareceu ficar satisfeito com a explicação, e inclinou ligeiramente a cabeça.
- Bom, a maior parte deles são bons oficiais. Ou eram, até aparecer por cá o centurião Póstumo. Isso foi ainda no tempo do anterior comandante.
- E que diferença fez o Póstumo? - Quis saber Cato.
- A princípio, nenhuma. O centurião-chefe anterior tinha falecido por doença. Mandaram-nos o Póstumo de Damasco para o substituir. Mais tarde veio o Escrofa,
da mesma maneira. Mas a princípio parecia um tipo zeloso, cumpridor. Depois começou a voluntariar-se para comandar as patrulhas pelo deserto. É fácil de imaginar
a popularidade que isso lhe granjeou entre os oficiais que não apreciavam particularmente a ideia de passar uns dias a cavalgar no meio da poeira e debaixo deste
sol ardente. E assim estavam as coisas quando o comandante da altura recebeu a visita de um representante de um dos cartéis de caravanas. Ao que parece, esse tipo
acusou o Póstumo de ter montado um esquema qualquer de protecção paga às
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suas caravanas. O prefeito quis ter algumas provas sólidas dessa acusação, pelo que se juntou à patrulha seguinte, também comandada pelo Póstumo. Nunca regressou.
Cato ergueu as sobrancelhas, admirado.
- Se eu fosse cínico, diria que, do ponto de vista do centurião Póstumo, isso veio mesmo a calhar.
- Por acaso, veio. - Parmenião não evitou um sorriso. - Seja como for, a seguir apareceu o Escrofa, e as acusações contra o Póstumo ficaram em nada.
Depois de um curto silêncio, Cato voltou à carga.
- Estás a dizer que o prefeito é parte desse negócio de protecção? E os outros oficiais?
Parmenião abanou a cabeça.
- Não quero falar disso.
- Disso, o quê? - Insistiu Cato.
Macro interrompeu, impaciente.
- Passa-se aqui algo de estranho. Os oficiais estão divididos, e os homens parecem estar-se a borrifar para os seus deveres. Qualquer idiota vê isso.
- Nesse caso, não precisará com certeza que eu denuncie ou faça comentários sobre os meus camaradas.
- Ninguém te está a pedir que denuncies o que quer que seja. - Retorquiu Cato. - Ainda assim, é claro que um veterano como tu percebe muito bem o que se passa.
Porque é que não te queixaste ao prefeito, ou não falaste a alguém mais acima na cadeia hierárquica?
- Fiz isso. Tive uma conversa com o Escrofa. Disse-lhe que os padrões de comportamento dos homens estavam a baixar. Pareceu-me ficar espantado com os meus
comentários. E a partir daí nunca mais fui nomeado para comandar patrulhas no deserto. Tem-me mantido bem longe das rotas das caravanas. E agora, em contrapartida,
exige-me uma dureza desnecessária nos contactos com as aldeias próximas. - Parmenião franziu o nariz, mostrando bem a sua opinião sobre as ordens. - Para que raio
servirá ser duro com esta pobre gente, que se esforça por sobreviver no meio desta desolação? Devíamos era perseguir Bano.
- Sim. - Assentiu Macro, pensativo. - Isso é precisamente o que devíamos fazer.
Parmenião voltou-se para ele.
- Senhor, é isso que pretende? Quando chegar a sua nomeação oficial?
- Parece-me o caminho lógico.
O veterano anuiu, satisfeito.
106
- Vai ser bom para os oficiais voltarem a ser soldados. E também fará maravilhas pelos homens.
- É verdade. Mas por enquanto não há nada que eu possa fazer. - Macro coçou o queixo e virou-se para contemplar o deserto. - Acho que é altura de dar uma
vista de olhos pelo território que é suposto ser controlado pela Segunda Ilírica.
Cato encarou-o, de olhos semicerrados.
- No que é que está a pensar?
- Acho que me vou juntar a uma dessas patrulhas que o Escrofa envia para o deserto. - Macro sorriu. - Tu podias acompanhar aqui o Parmenião e ver que tal
é a situação nas aldeias da região.
Cato encolheu os ombros.
- Acho bem. Não podemos fazer mais nada até termos notícias do procurador.
O prefeito Escrofa olhava-os com ar atónito.
- Mas porque querem vocês fazer isso? Ainda mal chegaram e já querem sair do forte?
Cato respondeu pelos dois.
- Senhor, como apontou, somos supranumerários. Pelo menos por agora. Portanto, podemos aproveitar para ganhar alguma experiência da região. E ver como se
portam os homens. Esse género de coisas.
Antes de responder, Escrofa trocou um olhar com o seu ajudante.
- Não tenho a certeza de que seja uma boa ideia. Quero dizer, temos uma maneira própria de fazer as coisas por aqui. Talvez seja melhor que vocês passem algum
tempo apenas a observar a forma como dirigimos a coorte, antes de se meterem ao barulho.
Macro respondeu com um sorriso.
- Não faz sentido perder tempo. Quando estava com a Augusta Segunda Legião, no Reno, tínhamos uma expressão. O melhor para um soldado é dar logo com o cu
na lama.
Escrofa franziu o sobrolho.
- Não estou a perceber.
- Experiência de campo. - Explicou Macro. - Nada a substitui. Embora, devo admiti-lo, a frase não tenha grande aplicação por aqui. Não há água suficiente
para fazer lama.
- Meter o traseiro no pó? - Sugeriu Cato.
Macro olhou-o irritado.
- Oportuno como sempre, centurião Cato.
- Sim, senhor. Desculpe, senhor.
- Bom, é por isso que acho que devo acompanhar o centurião
107
Póstumo na patrulha, e o Cato deve seguir com o Parmenião. Seremos apenas espectadores, não nos vamos envolver em nada.
- Hum. - Escrofa juntou as mãos e pousou o queixo sobre os nós dos dedos. - Mesmo assim, não sei se será boa ideia.
- E porque não? - Interrompeu Póstumo. - Sentir-me-ei honrado se o centurião Macro me acompanhar. E estou seguro de que, depois de ver como agimos, acabará
por optar por seguir a mesma linha de actuação. E assim a transição será assegurada sem sobressaltos, se chegar entretanto a confirmação da sua nomeação.
- Quando chegar. - Corrigiu Macro, com um brilho gelado no
olhar.
- Sim, senhor. Evidentemente. Quando a confirmação chegar. Entretanto, estou certo de que ficará satisfeito com a forma como lidamos com os que passam pelo
território que controlamos.
- Também estou certo disso.
- Tal como o centurião Cato acabará por compreender que a única autoridade que os judeus respeitam é a que é sustentada pela impiedosa aplicação da força.
- Póstumo inclinou a cabeça na direcção de Macro. - Uma excelente sugestão, senhor, se me permite dizê-lo.
Macro aquiesceu.
- Bom, vamos então buscar o material à messe e prepararmo-nos para acompanharmos as patrulhas.
- No sítio para onde vai, isto vai-lhe ser muito mais útil do que um capacete. - Explicou Parmenião, enquanto tirava um pano de uma das prateleiras do armazém.
- Deixe-me mostrar-lhe como se faz.
Sacudiu o pano e depois dobrou-o a partir de uma ponta, de forma a obter um triângulo. Colocou-o sobre a cabeça, com a ponta para trás, e prendeu-o no cimo com uma
fita dupla em torno do cabelo, à laia de coroa.
- Pronto, viu como fiz?
- Tudo o que vejo é que estás disfarçado de nativo. - Resmungou Macro. - Isso é mesmo necessário?
Parmenião encolheu os ombros.
- Não, a não ser que se importe que o sol lhe torre os miolos. Além disso, pode cruzar as pontas à frente da cara e pô-las para trás dos ombros, para afastar
a poeira da face, se isso se tornar necessário. Ou seja, isto dá muito jeito. E, por aqui, é mesmo necessário, de facto.
Removeu o lenço e passou-o a Macro, que o contemplou sem entusiasmo. Pelo seu lado, Cato aceitou um de bom grado, e experimentou-o imediatamente.
- Assim?
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- Não está mal. - Concedeu Parmenião. - E vais precisar de uma couraça de linho. Temos algumas reservadas para os oficiais. Essa armadura metálica pode ser
muito útil na Germânia ou na Britânia, mas aqui... Se tiveres de a usar durante muito tempo, vai acabar por te matar.
Vasculhou as prateleiras até encontrar o que procurava, e voltou para ao pé dos dois amigos com um conjunto de armadura ligeira. Era feita de pedaços de linho, colados
de forma a criar placas rijas e resistentes para o peito e costas, unidas por cordões.
- Cá está, Cato. Experimenta.
Depois de Parmenião ter apertado algumas das correias, Macro desatou a rir.
- O que é que é assim tão engraçado?
- Esses bocados soltos nas costas parecem mesmo asas.
Parmenião ajustou as placas sobre os ombros de Cato e prendeu-as
à parte frontal.
- Aí está. Vais achar que não tem a flexibilidade de uma armadura articulada, ou da cota de malha, mas é muito mais leve e quase tão resistente como elas.
Cato moveu-se, dobrando e rodando o tronco, alternando movimentos rápidos e mais lentos.
- Sim, estou a ver o que queres dizer. - Em seguida, testou a placa, e ficou satisfeito com a resistência que encontrou. Aguentaria a maior parte dos golpes
de espada, embora face a uma arremetida de lança ou a uma chuva de setas os problemas se pudessem tornar sérios. Olhou para Parmenião e assentiu. - Serve.
Parmenião virou-se para Macro.
- Senhor, é a sua vez.
Enquanto ele se afastava para procurar outra armadura, Macro não resistiu a um comentário.
- Esta história de capa e espada já cheira mal como está, e agora ainda tenho de gramar uma passagem de modelos.
As patrulhas deixaram o forte na manhã seguinte, logo após a alvorada. Cato aproveitou para saborear o ar fresco, sabendo perfeitamente o calor que iria enfrentar
durante o dia. A Parmenião tinham sido atribuídos um esquadrão montado e uma centúria, uma vez que faria uma ronda de aldeia em aldeia e não teria de se mover com
rapidez. A infantaria estava equipada com armaduras e capacetes ligeiros, mas ainda transportava os pesados escudos ovais e as lanças de combate, bem como as varas
onde seguiam penduradas as rações e todos os apetrechos para comer e dormir. A coluna atravessou os portões, com os cavaleiros à frente, os cascos dos
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cavalos a marcarem um ritmo barulhento. Do torreão, Macro deixou-se ficar um pouco a vê-los marchar, afastando-se pelo caminho, antes de se ir juntar aos dois esquadrões
montados que o centurião Póstumo se preparava para conduzir na direcção oposta, para o coração do deserto.
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A patrulha tinha parado para um breve descanso numa velha estação de muda dos nabateus, entretanto abandonada, e enquanto os homens tratavam dos cavalos na sombra
do pátio, Macro e Póstumo treparam à pequena torre sinaleira e perscrutaram o caminho que levava ao coração do território nabateu. À esquerda ficava uma planície
imensa, pejada de pequenas rochas negras que pareciam tremeluzir debaixo do sol do meio-dia. Apesar das reservas que tinha posto ao uso do lenço na cabeça, Macro
acabara por perceber a sua utilidade naquele clima poeirento e inclemente. Nunca experimentara temperaturas tão elevadas. Durante o dia, o calor parecia vir da porta
aberta de um forno, e à noite era substituído por um frio cortante, capaz de lhe recordar os invernos da Britânia. Na noite anterior a patrulha tinha acampado ao
relento, na diminuta protecção de uma ravina, e os homens tinham passado o tempo a tiritar, embrulhados nas capas. Mas naquele momento Macro limpava o suor da testa,
ao lado do centurião Póstumo, e observava a rota que os comerciantes utilizavam habitualmente.
- Do que é que estamos à procura? Não consigo distinguir nada, vejo tudo a tremer. Até parece água. - Macro suspirou. - Estava capaz de matar por um bom mergulho.
Póstumo sorriu.
- Também eu. Num sítio qualquer, longe daqui.
Macro assinalou a sua concordância com um resmungo, e contemplou o oficial mais novo. Póstumo parecia uns anos mais velho do que Cato, pelo que devia andar pelos
vinte e tal; era magro, moreno, com um aspecto que deixava adivinhar algum sucesso junto do sexo feminino.
- E então, qual é a tua história?
Póstumo virou-se para ele e ergueu um sobrolho.
- A minha história?
- Donde é que és?
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- Brindísio. O meu pai tem alguns navios. Navegam para cá e para lá, até ao Pireu.
- É rico?
- Safou-se bem, pelo que conseguiu erguer-se acima da plebe. Sim, suponho que se pode dizer que é rico.
- Então como é que vieste aqui parar?
- Não suportava a vida no mar. Mas achava que tinha algum gosto pela aventura, portanto alistei-me como legionário.
- Em que legião?
- Escolhi a Décima. - Fez um sorriso depreciativo. - Queria vir para o oriente e combater as hordas dos partos.
- Conseguiste?
Póstumo riu.
- Nem pensar! Nos últimos anos o palácio imperial tem alinhavado acordo atrás de acordo com os partos. E com Palmira a interpor-se entre os dois impérios,
suponho que será assim que as coisas se manterão.
Macro encolheu os ombros e calou os comentários. Pelas informações que lhes tinham chegado, a ele e a Cato, a Pártia tinha intenções bem claras quanto às províncias
orientais do Império. E se havia alguma ponta de verdade nos rumores acerca de Cássio Longino, então pouca dúvida restava de que as tropas partas irromperiam pela
fronteira oriental no momento em que as legiões que a guarneciam fossem retiradas para apoiar a tentativa do governador de alcançar o trono púrpura.
Póstumo prosseguiu.
- Portanto, com a Pártia fora de cena, tive de encontrar outra coisa para fazer. Candidatei-me a um curso de batedor.
Macro observou-o atentamente. Durante uma campanha, os batedores desempenhavam as funções tradicionais. Mas quando estavam colocados numa guarnição, os seus conhecimentos
eram geralmente aproveitados em artes obscuras como a espionagem e a tortura. Nunca apreciara os batedores, em nenhuma das legiões em que prestara serviço. Quanto
a ele, a vida militar não devia envolver subterfúgios nem actividades misteriosas, e olhava com desagrado o tipo de assuntos em que os batedores gastavam o tempo.
- Diverti-me bastante antes de chamar a atenção do Cássio Longino. - Prosseguiu Póstumo. - Ele tomou-me a seu cargo, promoveu-me para os auxiliares e enviou-me
para Bushir. Isso já foi há mais de um ano. Nem imagina como sinto a falta de Antioquia.
- Sou capaz de imaginar, sim. - Respondeu Macro, com ênfase. - Já ouvi muita coisa sobre essa cidade. É verdade o que se diz?
Póstumo assentiu.
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- Com todas as letras. Não há nada que não se possa comprar, virtude ou vício. É um verdadeiro paraíso para os epicuristas.
Macro lambeu os lábios.
- Quando terminar a minha missão por estas bandas, Antioquia será a minha primeira paragem no regresso a Roma.
O outro olhou-o sem esconder a curiosidade.
- Quanto tempo conta permanecer por cá?
Macro amaldiçoou-se por ter deixado escapar a inconfidência. Obrigou-se a sorrir.
- O menos possível. Ou seja, conhecendo o exército, isso quer provavelmente dizer que vou morrer de velho em Bushir. Muito depois de o gabinete lá em Roma
se ter esquecido que me mandou para cá. Se tiver mesmo muita sorte, pode ser que se lembrem de mim um dia, e até me atribuam uma pequena pensão.
- Pequena, isso é certo. - Respondeu Póstumo, antes de olhar para o horizonte distante e prosseguir. - Por isso é que um tipo tem que arranjar um pequeno
fundo de contingência, desde que as circunstâncias o permitam.
Macro olhou-o.
- O que é que queres dizer?
Os lábios de Póstumo desenharam um leve sorriso.
- Há-de ver. Tudo a seu tempo. Não... Espere. - Esticou repentinamente o braço, apontando para a distância. - Ali! Veja.
Macro olhou para o ponto assinalado, semicerrando os olhos para tentar trespassar a neblina de calor.
- O quê? Não vejo nada.
- Olhe outra vez. Com atenção.
A princípio, Macro não conseguiu distinguir o que quer que fosse, mas ao esforçar a vista notou um pequeno ponto escuro, seguido por outro, um pouco ao lado. Logo
a seguir surgiram vários outros, e o primeiro revelou-se como a silhueta distante de um homem montado numa estranha criatura. Levou algum tempo até Macro compreender
que devia ser um camelo.
- Quem são?
- Mercadores. - Retorquiu Póstumo. - Vêm de Aelana. Uma colónia na costa da Arábia. Recebem mercadorias do longínquo oriente e carregam-nas em caravanas para
a Palestina, a Síria, a Cilicia e a Capadócia. É uma longa viagem, e partes da rota levam-nos através de territórios complicados. Era aí que entravam os nabateus,
e agora entramos nós.
Macro franziu a testa.
- Não percebo.
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- Como é que pensa que os nabateus enriqueceram?
Macro encolheu os ombros.
- No negócio da protecção. O reino deles fica mesmo a meio de algumas das rotas de comércio mais lucrativas do mundo conhecido. Portanto, eles deixam-se ficar
lá por Petra e exigem um tributo a todas as caravanas que passam pelas suas terras. Ao mesmo tempo, oferecem os seus serviços de protecção, para garantir a segurança
das caravanas contra algumas tribos do deserto que de vez em quando se lembram de atacar as rotas comerciais.
- Estou a ver. - Comentou Macro. - E qual é o nosso papel nessa história?
- Bem, o nosso dever é policiar a rota que passa a leste do forte. É aí que começa o território romano e acaba o nabateu. É essa a razão porque aqui estamos,
para proteger caravanas como a que se aproxima. É um negócio de benefício mútuo.
- Já percebi. - Macro encarou o interlocutor. - Queres tu dizer que os protegemos, desde que eles paguem.
- Claro. - Póstumo riu. - Um serviço que a Segunda Ilírica presta de bom grado a todos os seus habituais clientes.
- Sim, já vi tudo. - Repetiu Macro. Contemplou a caravana, enquanto a mente trabalhava a toda a velocidade. As coisas passavam-se exactamente como suspeitara.
A questão era o que fazer, ou mesmo se aquela seria a altura para o fazer. - Como é que a coisa funciona?
Póstumo tinha estado a observá-lo, e respirou aliviado ao ver que Macro não parecia ser um daqueles oficiais que fazem tudo de acordo com as regras.
- É muito simples. Temos um acordo permanente com a maior parte dos cartéis de caravanas. Tal como os nabateus. Assim, as caravanas têm uma escolta desde
Aelana a Petra, e de lá até Machaeros, onde existe outra estação como esta. E onde se situa o limite da autoridade dos nabateus. Antigamente, escoltavam as caravanas
até Damasco, mas agora somos nós que nos encarregamos dessa parte da tarefa. Tentaram dar-nos o golpe, mas tornámos claro que este negócio agora era nosso, e eles
não se metem com Roma. Portanto, embolsamos a tarifa e escoltamos as caravanas até à Decápole.
- Isso não me parece muito regulamentar, pois não?
- Não. Mas também não é exactamente ilegal. - Apressou-se Póstumo a clarificar. - Nós cumprimos o nosso dever de patrulhar a fronteira, e as caravanas têm
a sua escolta. Todos ganham. O importante é não permitir que isto se saiba, porque nesse caso depressa o Cássio Longino começará a berrar pela sua parte, e depois
o procurador de Cesareia fará o mesmo. Portanto, isto é feito sem alarde.
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- Imagino que sim.
- É claro que isto se torna complicado quando lidamos com clientes novos. Cartéis que fazem as primeiras caravanas por esta rota. Como esta que se aproxima.
- Oh? E nesse caso, o que é que acontece?
- Já verá. - Póstumo virou-se para ele. - Quando eles chegarem ao pé de nós, deixe-me conduzir a conversa, senhor. Provavelmente alguns deles sabem grego,
mas geralmente preferem negociar na língua de trapos que usam, e eu conheço dela o suficiente para conseguir acertar o negócio.
- Muito bem. - Anuiu Macro. - Fala com eles, e eu seguirei as tuas indicações.
A caravana emergiu da neblina do calor e aproximou-se lentamente da estação. Da torre, Macro observava-os; reparou que deviam ser pelo menos uns cem camelos, carregados
com grandes cestas repletas de fardos de tecido, ânforas aconchegadas em palha, e outras mercadorias difíceis de identificar. Entre os primeiros elementos da caravana
vinham dois carros puxados por bois, carregados com pesados toros de madeira. Os camelos avançavam num passo regular, com o seu típico oscilar, incitados pelos condutores
que seguiam a pé ao seu lado, e que ocasionalmente lhes davam uns toques com as varas flexíveis que empunhavam. Nos dois flancos da caravana viam-se alguns guardas;
estes guerreiros envergavam vestes escuras, e as suas espadas e arcos podiam ver-se pendurados nas armações das selas das montadas. Tinham um aspecto aguerrido,
decidiu Macro, mas não passavam de uma dúzia, e pouco poderiam fazer contra um ataque decidido.
No pátio central da estação, Póstumo dava ordens para os soldados montarem; depois de um último olhar sobre a caravana, Macro desceu da torre para se juntar aos
homens. Assim que subiu para a sela Póstumo deu sinal para avançar, e os cavalos deixaram a relativa frescura da estação, enfrentando de novo a ofuscante luz do
exterior. Assumiram rapidamente a formação ordenada, ocupando toda a estrada com uma linha dupla, mantendo os estandartes dos dois esquadrões bem ao centro e ligeiramente
à frente.
- Só para eles terem a certeza de que somos romanos. - Explicou Póstumo. - Não vale a pena assustá-los.
Mesmo assim, a caravana interrompeu a marcha. A escolta armada reuniu-se aos responsáveis pela caravana, e aproximaram-se cautelosamente dos romanos. Pararam assim
que se viram à distância da voz, e um dos mercadores ergueu a mão, numa saudação.
- Lembre-se, senhor, deixe-me ser eu a falar. - Murmurou Póstumo.
115
- A patrulha é tua, fala à vontade.
Póstumo deu um estalo com a língua e fez o cavalo avançar a passo. Macro seguiu-o de perto. Detiveram-se a curta distância dos outros homens.
Póstumo sorriu e dirigiu-se-lhes em grego.
- Desejo-vos as boas-vindas à província romana da Judeia. Algum de vocês fala grego?
- Eu falo um pouco. - Um dos homens afastou o véu que lhe cobria a boca, de forma a que Póstumo soubesse quem falava em nome da caravana. - O que queres de
nós, romano?
- É mais o que posso fazer por vocês. - Póstumo inclinou a cabeça.
- Esta rota é assolada por salteadores do deserto. Vão precisar de uma escolta mais forte do que os vossos doze companheiros podem fornecer, por muito temíveis
que eles sejam. Eu e os meus homens podemos assegurar a vossa segurança até Gerasa, se assim o desejarem.
- É muito gentil da tua parte, romano. Suponho que há um preço a pagar por tal serviço?
Póstumo encolheu os ombros.
- Uma pequena lembrança, nada mais.
- Quanto?
- Mil dracmas.
O líder respondeu-lhe com um silêncio tumular, mas um dos outros mercadores quebrou-o com um comentário em tom áspero. Seguiu-se uma conversa, no decorrer da qual
Macro não teve dificuldade em perceber a ira nas vozes dos caravanistas. Por fim, o líder conseguiu acalmar os companheiros, e dirigiu-se de novo ao centurião.
- É demasiado.
- É o que pagam todas as caravanas que passam por aqui e que aceitam a nossa protecção.
- E se decidirmos não pagar?
- Podem passar, claro. Mas prosseguirão por vossa própria conta e risco. Não os aconselharia a tal. É a primeira vez que vêm por aqui, não é?
- Talvez.
- Não estão portanto conscientes dos perigos da viagem.
- Somos capazes de nos defendermos.
- Como desejarem. - Póstumo rodou na sela e ordenou aos seus homens que desimpedissem a passagem. Virou-se de novo para o líder da caravana, saudou-o com
um leve inclinar da cabeça e fez o cavalo dar meia-volta, preparando-se para se juntar aos seus homens. Macro alcançou-o e seguiu ao seu lado.
- Não me parece ter corrido lá muito bem.
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- Oh, ainda não terminou. De vez em quando temos este género de reacção, por parte de mercadores novos nesta rota. Mas depressa mudarão de opinião.
- Pareces estar muito certo disso.
- Tenho todas as razões para isso.
Póstumo não explicou a afirmação, e Macro ficou sentado e irritado a assistir à passagem da longa procissão de camelos carregados e de condutores. Os guardas mantiveram-se
entre a caravana e a cavalaria romana, encarando com hostilidade Póstumo e os seus homens e mantendo o olhar fixo neles até que toda a fila passou. Então viraram
os camelos e, a trote, foram-se dispor de novo nos flancos da caravana. Depois de eles partirem, Macro voltou a interrogar Póstumo.
- E agora?
- Esperamos um bocado, e depois seguimo-los.
Para Macro, já era suficiente.
- Ouve, é melhor que me digas o que se está aqui a passar. Já chega de brincadeira, Póstumo. Conta-me, e pronto.
- Bom, senhor, talvez nada aconteça. Talvez eles consigam chegar ao fim da viagem sem novidade, mas eu não apostaria nisso. A estrada entre este ponto e Gerasa
é o terreno de caça de vários bandos de assaltantes.
Assim que a retaguarda da caravana se afastou pouco mais de um quilómetro, Póstumo deu ordens aos seus homens para avançarem lentamente pela estrada, mantendo a
distância. As horas foram passando devagar, e Macro começou a sofrer os efeitos da falta de sono da noite anterior. Os olhos pesavam-lhe, e via-se obrigado a pestanejar
constantemente num esforço para os manter abertos. Lá à frente, as figuras ondulantes da caravana exerciam sobre ele um efeito hipnótico e aumentavam-lhe a vontade
de ceder ao cansaço. A tarde já começava a cair quando Póstumo deu uma repentina ordem para a coluna parar, de tal forma que Macro quase caiu. Sacudiu a cabeça,
tentando afastar a sonolência que lhe toldava a mente.
- O que foi? O que se passa?
- Tal como eu previ, senhor. - Póstumo sorria. - Atacantes, vindos do deserto. Olhe para ali.
Apontou para a direita, e Macro reparou numa linha de camelos que surgia de detrás de uma duna baixa e se dirigia velozmente para a caravana, que prosseguia no seu
passo lento. A mão do centurião dirigiu-se imediatamente à espada, e a mente clareou-se perante a perspectiva de um combate.
- Vamos a eles.
- Não.
- Como não? - Irritou-se Macro. - Aqueles tipos estão a atacar a caravana.
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- Precisamente. - Anuiu Póstumo. - E os mercadores estão a pensar que deviam ter aceite a nossa proposta. Agora vão ficar a saber que viajar sem escolta se
pode tornar muito dispendioso.
- Mas vão ser massacrados! - Notou Macro, furibundo. - Temos que fazer alguma coisa.
- Não. - Retorquiu Póstumo com firmeza. A coluna romana mantinha-se imóvel, enquanto os assaltantes carregavam sobre os mercadores.
- Para já, pelo menos, não vamos fazer rigorosamente nada.
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A povoação de Heshaba era a primeira a ser visitada, de acordo com a rota da patrulha liderada pelo centurião Parmenião; a coluna de cavalaria e infantaria romana
deixou a estrada principal e desceu a encosta ao fim da manhã. As ruínas carbonizadas da casa de Miriam eram evidentes, e de novo Cato se viu consumido pela culpa,
recordando o cruel preço que a mulher pagara por lhe ter salvo a vida. À medida que a coluna se aproximava da aldeia, Parmenião levou-a a descrever uma curva, mantendo-se
na periferia da povoação. Não deu ordens para qualquer paragem, levando a coluna a prosseguir a marcha pelo desfiladeiro e afastando-se de Heshaba.
- Pensava que íamos fazer uma paragem aqui. - Comentou Cato com o veterano, enquanto seguiam lado a lado, à cabeça do esquadrão de cavalaria.
- Devem estar um bocado fartos de nós, nesta altura. - Respondeu Parmenião. - Voltaremos pelo mesmo caminho, nessa altura poderemos ver em que pé estão as
coisas e lidar com eles.
Cato olhou-o com algum espanto.
- Ainda estás a tentar ganhar a amizáde da população?
Parmenião devolveu-lhe o olhar.
- Ou, se calhar, estou apenas a tentar resguardar a pouca boa vontade que resta entre nós. Se hoje entrarmos por ali à bruta, pode muito bem ser a última
gota para esta gente. Nessa altura juntam-se a Bano. E se os habitantes de Heshaba se virarem contra nós, que esperança teremos de aguentar o resto da província?
Estritamente aqui entre nós, Cato, há momentos em que duvido de que existisse mais alguma coisa que o prefeito pudesse fazer para provocar mal estar na região. É
quase como se quisesse levá-los a uma revolta aberta.
- E porque não haveria ele de o querer? - Foi a resposta desassombrada de Cato.
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Parmenião considerou a sugestão do jovem por momentos, e abanou a cabeça.
- Não sei. Não faço mesmo ideia nenhuma. Não faz sentido. Deve ser doido. Completamente louco.
- Parece-te mesmo?
- Não. De facto, não creio nisso. - Parmenião parecia confuso, e voltou a olhar para Cato. - O que é que tu pensas? Deve haver alguma coisa por trás disto.
Qualquer idiota perceberia o que estas ordens vão acabar por provocar. Uma revolta; ou, pelo menos, vão fazer com que muito mais gente se junte a Bano. Não, não
percebo.
Cato encolheu os ombros, e contemplou a povoação. Fez o cavalo sair do caminho e deter-se, deixando passar a coluna enquanto recordava a tremenda injustiça de que
Miriam fora vítima. Tomou uma decisão, e esporeou a montada para se voltar a juntar a Parmenião.
- Onde é que vamos acampar hoje?
- A meio do desfiladeiro há uma nascente com umas árvores. Mais uma meia-dúzia de quilómetros, pouco mais. Porquê?
- Vou lá ter convosco ao entardecer. - Retorquiu Cato, antes de voltar para trás e se dirigir à povoação.
- Onde é que vais? - Indagou Parmenião.
- Tenho de falar com uma pessoa! - Ripostou Cato, prosseguindo num tom baixo, mais para si mesmo. - Tenho de pedir desculpas.
Enquanto a sua montada voltava a subir a encosta, dirigindo-se ao grupo de habitações que formavam a pequena aldeia, Cato compunha mentalmente as palavras que queria
dirigir a Miriam. Tinha que deixar bem claro que o prefeito não representava todos os romanos. Que as suas acções não podiam ser vistas como típicas da política
de Roma. Talvez ainda fosse possível reparar alguns dos estragos provocados pelo comportamento de Escrofa.
Ao entrar na aldeia apercebeu-se imediatamente da hostilidade nas expressões faciais dos poucos habitantes que o observavam das portas e janelas abertas, enquanto
o cavalo percorria lentamente as ruas e se dirigia ao espaço aberto que constituía o coração da comunidade. No ar ainda se sentia o cheiro acre do incêndio que destruíra
parte da habitação de Miriam. O revoltoso ainda estava pendurado na cruz, e Cato desejou ardentemente que o homem já estivesse morto e não tivesse de continuar a
sofrer. A curta distância da ruína fumegante, Cato reparou em Yusef, o neto de Miriam, sentado sobre um pequeno cofre de aspecto familiar, junto a uma magra pilha
de artigos que tinham conseguido tirar da casa antes de os auxiliares lhe terem deitado fogo. Ao escutar o som dos cascos, Yusef olhou para cima e encarou o centurião
com os olhos muito abertos, aterrorizado. Cato desmontou e
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levou o cavalo até um dos postes enegrecidos que tinham sustentado o toldo junto à casa. Prendeu o animal e aproximou-se lentamente do miúdo.
- Yusef, sabes onde está a tua avó? - Perguntou, em grego.
Por momentos o rapaz não respondeu, e depois abanou a cabeça.
- Não está cá. Foi-se embora. Já não lhe podes fazer mais mal, romano! - A última palavra foi quase cuspida, e Cato resolveu manter-se a alguma distância
para não o alarmar ainda mais.
- Não lhe quero fazer mal. Dou-te a minha palavra, Yusef. Mas tenho de falar com ela. Por favor, diz-me onde a posso encontrar.
Yusef olhou para ele durante uns instantes, e ergueu-se lentamente. Apontou para o chão.
- Espera aqui. Não te mexas. Não tentes seguir-me.
Cato assentiu. Depois de mais uma cuidadosa olhadela ao romano, Yusef virou-se e correu, desaparecendo por trás da esquina da casa mais próxima. Cato olhou em volta,
reparando que não havia mais ninguém à vista. A aldeia estava tão silenciosa e calma como a grande necrópole que ladeava a Via Ápia, à saída de Roma. Uma comparação
pouco feliz, considerou o jovem, e concentrou a sua atenção na pilha de coisas no chão. Para lá de algumas trouxas de roupas e de utensílios de cozinha, viam-se
vários cestos contendo pergaminhos, e o cofre em que Yusef estivera sentado. Havia nele qualquer coisa de familiar, e lembrou-se então de que o tinha visto antes,
no esconderijo por baixo da casa. O que conteria de tão precioso que precisasse de ser mantido fora de vista? Despertada a sua curiosidade, Cato voltou a olhar em
redor, para se certificar de que ninguém o vigiava. Depois de mais um momento de indecisão aproximou-se e agachou-se para examinar a caixa com minúcia. Não tinha
nada de extraordinário, nenhuma ornamentação, um fecho simples.
Viu-se interrompido pelo som de passos, e pôs-se apressadamente em pé, mas não antes de Miriam e Yusef contornarem a esquina e o surpreenderem ainda agachado junto
às suas posses. Os olhos de Miriam dirigiram-se imediatamente ao cofre, enquanto avançava para o centurião.
- Agradecia-te que deixasses em paz as minhas coisas - o que resta delas. Foi o meu filho que me fez essa caixa. o que ela contém, são tudo o que tenho para
o recordar.
- Lamento. Eu... - Cato olhou para a mulher, sem saber o que fazer, até que se limitou a baixar a cabeça, envergonhado. - Tenho muita pena.
- O meu neto disse-me que querias falar comigo?
- Sim. Se mo permitires.
- Não sei bem se quero falar contigo. Não depois... - Miriam engoliu em seco, enquanto apontava para os restos carbonizados do que tinha sido a sua casa.
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- Compreendo. - Respondeu Cato, calmamente. - O prefeito nunca o devia ter ordenado. Tentei impedi-lo.
Miriam assentiu.
- Eu sei; mas não serviu de nada.
- O que te vai acontecer agora? Para onde vais?
Miriam reprimiu as lágrimas que lhe dançavam nos cantos dos olhos escuros, e fez um vago aceno na direcção da rua de que viera.
- Um dos meus arranjou um quarto para mim e para o rapaz. Construiremos uma nova casa, todos juntos.
- Ainda bem. - Cato inclinou ligeiramente a cabeça para o lado. - Falaste dos teus. És tu a chefe da aldeia?
Miriam cerrou os lábios.
- De certa forma. Sendo seguidores do meu filho, olham-me com algum respeito. Como se, de alguma forma, também fosse mãe deles. - Sorriu fracamente. - Suponho
que são uns sentimentais.
Cato sorriu-lhe em troca.
- Seja porque for, parece-me claro que tens algum ascendente sobre eles, bem como sobre o Simeão e Bano.
O sorriso de Miriam desvaneceu-se, e lançou um olhar desconfiado a Cato.
- Centurião, o que queres de mim?
- Conversar. Perceber o que se está a passar. Quero saber mais sobre o teu povo, sobre Bano, e preciso disso para tentar evitar que a ambição dele, a de provocar
um levantamento, se torne realidade; quero salvar vidas. Quer judaicas quer romanas.
- Queres compreender o meu povo? - Retorquiu Miriam com amargura. - Isso faria de ti um dos poucos romanos que alguma vez se esforçou por isso.
- Sei-o bem. Não posso pedir desculpas por tudo aquilo que já foi feito em nome de Roma. Não passo de um oficial subalterno. Nada posso fazer para influenciar
a política imperial. Mas posso tentar fazer as coisas de forma diferente. Só isso.
- Centurião, és muito honesto.
- Poderíamos começar a melhorar as nossas relações, se me chamasses Cato.
A idosa olhou-o atentamente, e depois voltou a sorrir.
- Muito bem, então, Cato. Vamos conversar. - Agachou-se para pegar no cofre e o colocar cuidadosamente debaixo do braço, antes de se erguer de novo e lhe
fazer sinal para a seguir. - Vem comigo. Tu também, Yusef.
Levou Cato pelas ruas tranquilas, e afastaram-se um pouco da aldeia
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até um pequeno reservatório que recolhia a água que corria pelo desfiladeiro no Inverno e na Primavera. Naquele momento estava praticamente seco, e algumas cabras
mastigavam os tufos de erva que cresciam na terra gretada junto à diminuta poça de água que restava. Miriam e Cato sentaram-se à sombra de umas palmeiras, enquanto
Yusef percorria a área em busca de pedras para usar na funda e praticava, alvejando um pedregulho distante.
- Tem olho para aquilo. - Comentou Cato. - Daria um excelente soldado para uma unidade de auxiliares, daqui a uns anos.
- Yusef não crescerá para ser um soldado. - Retorquiu Miriam firmemente. - É um de nós.
Cato olhou-a de relance.
- Um de quê, precisamente? Disseram-me que tu e os que vivem aqui contigo são essénios. Mas não me parece que adiras exactamente ao seu estilo de vida.
- Essénios! - Miriam soltou uma gargalhada. - Não, não somos como eles. Os prazeres que a vida nos oferece devem ser apreciados, não negados. Alguns do meu
povo foram essénios em tempos, mas chegaram à conclusão de que não queriam passar o resto das vidas mortos para as alegrias deste mundo.
- Desculpar-me-ás, mas Heshaba não me parece exactamente o paraíso.
- Talvez não. - Concedeu Miriam. - Mas é a nossa casa, e somos livres de a construir como bem nos aprouver. Foi sempre esse o meu sonho. Depois da execução
do meu filho, afastei-me da Judeia. Estava farta do facciosismo mesquinho que atirava uma seita contra outra. E os sacerdotes em Jerusalém eram os piores de todos.
Sempre prontos a discutir as mais ridículas minúcias nas interpretações das escrituras, enquanto as suas famílias se tornavam mais e mais ricas. Foi por isso que
o meu filho Jehoshua se viu envolvido na luta política. Não apenas contra Roma, mas também contra todos os que exploravam os desfavorecidos. Era um orador fantástico,
e acabou por ter grandes multidões sempre dispostas a escutá-lo. Foi aí que os sacerdotes decidiram que era preciso silenciá-lo. Antes que convencesse as pessoas
a porem um fim ao seu poder. Portanto, trataram de o prender e de garantir que era executado.
- Não tinhas dito que ele foi crucificado?
- Foi, sim.
- Mas só o procurador poderia autorizar uma coisa desse género.
- O procurador da altura era um homem fraco. Os sacerdotes ameaçaram-no com uma revolta contra a autoridade de Roma, a menos que o meu filho fosse executado.
Acabaram por chegar a um acordo, e ele foi morto. Os seus seguidores mais próximos foram perseguidos, e todo
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O movimento foi desmantelado. Alguns dos líderes queriam vingar Jehoshua. Fugiram para as montanhas e desde então dedicam-se a atacar as propriedades dos ricos
e as patrulhas romanas. Em nome de Jehoshua. O Bano tomou-se um chefe. Foi em tempos seguidor do meu filho, e proclamou a quem o quis ouvir que era a vontade de
Jehoshua que seguia.
- É por isso que o conheces, então.
Miriam assentiu.
- Já nessa altura era um jovem exaltado. Idealista até ao tutano. O Jehoshua costumava dizer, na brincadeira, que o Bano era o espírito vivo do movimento.
Muitas vezes os imaginei como irmãos. O Bano idolatrava o meu filho, e a sua morte transtornou-o fortemente. Passou a olhar com azedume para todos os que ainda defendiam
a resistência pacífica e esperavam por mudanças. Acabou por matar um colector de impostos e fugir. Havia muitos como ele espalhados por aí, e ele foi-lhes ganhando
a confiança. Imagino que deve ter aprendido alguns dotes oratórios com o meu filho. Durante uns tempos veio-me visitar com regularidade, tentando atrair-me para
a sua causa. Se a mãe da figura inspiradora do movimento se juntasse a ele, depressa conseguiria atrair muito mais gente. Recusei o convite, e hoje em dia ele já
não tem por mim a afeição que teve em tempos. Seja como for, conseguiu reunir uma força impressionante, como vocês, romanos, descobriram.
- É bem verdade. - Anuiu Cato. - Mas enquanto se esconderem pelas colinas, conseguiremos manter a situação sob controlo. O problema é aquele comentário que
ouvi, em que ele se vangloriava de uma ajuda vinda de fora, de uns amigos.
- Qual comentário? Quando é que isso foi?
- Naquele dia em que eu e o Simeão estávamos escondidos na tua cave. Ouvi-te a falar com ele na rua. Ele disse que esperava apoio de uns amigos.
- Já me lembro. Parecia muito excitado com essa perspectiva. Não percebi de quem é que estava a falar.
Cato contemplou o chão entre as botas, antes de responder.
- Os que mais têm a ganhar se equiparem o exército do Bano são os partos. É isso que temo.
- Partos? - Miriam encarou-o. - Mas porque lhes pediria Bano auxílio? Representam um muito maior perigo para nós do que os romanos alguma vez foram.
- Acho que tens razão. - Retorquiu Cato. - Mas parece-me que Bano nos odeia mais do que qualquer outra coisa. E deve acreditar naquela história de que "o
inimigo do meu inimigo meu amigo é". Não seria o primeiro homem na história a cair nessa. Mas, se assim for, ele é bem capaz de
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conseguir fomentar uma rebelião tão importante que acabe por fazer cair todo o poder de Roma sobre esta região. - No preciso momento em que pronunciou estas palavras,
Cato sentiu um toque de culpa pela sua duplicidade. Elas seriam verdadeiras apenas no caso de Cássio Longino não se revelar um traidor. Em caso contrário, não haveria
qualquer exército para contrariar Bano, nada mais do que as guarnições espalhadas pelo território, compostas por tropas auxiliares, como a coorte em Bushir. Sem
legiões na Síria, e se Bano atacasse de forma fulminante, a presença romana na Judeia podia ser facilmente erradicada. Não podia confiar uma informação desse género
a Miriam. Era preciso que ela pensasse que Bano não tinha qualquer hipótese de êxito, e que tudo o que conseguiria seria atrair o fogo e a espada de Roma sobre as
cabeças dos judeus. Só assim seria persuadida a tudo tentar para desmobilizar Bano e os seus seguidores. Cato decidiu mudar de assunto.
- Então, se Bano é um incendiário, o que é que tu e o teu povo defendem?
- O Bano não é propriamente um incendiário. - Ripostou Miriam, calmamente. - É sim uma alma atormentada, cuja amargura se transformou numa arma. Perdeu a
pessoa que lhe era mais próxima, e não sabe como perdoar. É essa a diferença entre nós, Cato. Ou pelo menos a diferença principal... O meu povo é praticamente tudo
o que resta do verdadeiro movimento. Quando percebemos o ninho de víboras em que Jerusalém se tinha tornado, decidimos procurar um sítio para viver em paz, afastados
dos outros. Por isso viemos para aqui. Não queria ser recordada dos que tiraram a vida ao meu filho... - O lábio tremeu-lhe pelo mais breve dos instantes, mas ela
engoliu em seco e prosseguiu. - Estamos para lá das suas leis, e acolhemos todos os que se quiserem juntar a nós.
- Todos? - Cato sorriu. - Mesmo que sejam gentios?
- Ainda não. - Admitiu Miriam. - Mas há entre nós quem queira alargar o movimento, e espalhar as nossas crenças entre outros povos. É a única forma de evitar
que o legado do meu filho acabe por lhe seguir o caminho, o do túmulo. - Fez uma pausa, e acariciou a caixa com gentileza. - Mas por agora esta aldeia é tudo o que
temos. Tal como disseste, está longe de ser o paraíso, mas pelo menos estamos a salvo das ideias que levam as pessoas umas contra as outras. E isso, Cato, é uma
forma de paraíso. Ou era, pelo menos, até apareceres por cá com o Simeão.
Cato afastou o olhar, contemplando a aldeia, onde mal conseguia distinguir a estrutura calcinada da antiga casa de Miriam.
- Fala-me do Simeão. Como é que o conheces também?
- O Simeão? - Miriam sorriu. - Era outro dos amigos do meu filho. Muito chegado. Suponho que é por isso que entre ele e o Bano não existe
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qualquer traço de amor. Eram bons amigos, antes de se tornarem rivais pelo amor do Jehoshua. E perto do fim parece-me que se tornou evidente que ele preferia o
Simeão. Tinha uma alcunha para ele. Como era? Ah, sim: kepha. - A recordação fê-la sorrir. - Na nossa língua, significa "rocha".
- E Bano sabia que era o Simeão o preferido do teu filho?
- Temo que sim. Aliás, estou certa que essa é uma das razões do seu azedume.
- Depois do teu filho morrer, o que aconteceu ao Simeão?
- Durante algum tempo ainda tentou manter o movimento vivo em Jerusalém. Mas os sacerdotes contrataram homens para o liquidar. Mataram-lhe a mulher e os filhos,
e o Simeão teve que fugir da cidade e desaparecer. Durante muito tempo. E depois voltou a aparecer por cá, há uns anos. Desde essa altura que tem andado a percorrer
a região. Mantém-se em contacto com os seguidores do meu filho sempre que pode, mas é raro vê-lo aqui na aldeia. Gostava de o ver mais vezes. É um bom homem. Tem
o coração no sítio certo, e um dia há-de assentar e empenhar-se a sério nalguma coisa. - Miriam sorriu de novo. - Pelo menos, assim espero.
- Posso então confiar nele. - Era mais uma pergunta que uma afirmação, e Cato ficou aliviado quando Miriam assentiu.
- Podes confiar nele, sim.
- Óptimo. Era isso que precisava de saber. Isso, e a localização de Bano e dos seus salteadores.
Miriam deitou-lhe um olhar arguto.
- Não faço ideia de onde fica o esconderijo do Bano, centurião. E mesmo que o soubesse, não te diria. Lá porque te salvei, não quer dizer que esteja do teu
lado. Não te entregaria o Bano mais depressa do te entreguei a ele. Se me surgir tal oportunidade, tudo farei para convencer o Bano e os seus seguidores a abandonarem
a luta e a regressarem para junto das suas famílias. Entretanto, recuso-me a tomar partido no vosso conflito. Ou a envolver nele o meu povo. Peço-te apenas que nos
deixes em paz.
- Bem gostaria. - Retorquiu Cato, calmamente. - Já sofreram mais do que a vossa parte. O problema é que não sei se poderão manter-se de fora desta questão.
Chegará um ponto em que terão de escolher um lado, nem que seja para se protegerem. E esse ponto pode chegar mais depressa do que pensas. Se fosse a ti, pesaria
bem a situação.
- E pensas que não o fiz já? - Respondeu Miriam, com cansaço na voz. - Penso nisso todos os dias, e não deixo de tentar adivinhar o que faria o Jehoshua...
-E?
- Não tenho a certeza. Diria por certo que não deveríamos tomar
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parte nesta luta. Que deveríamos procurar estabelecer a paz. Mas, e se ninguém nos escuta? Às vezes, parece-me que é o Simeão quem tem razão.
- E o que diz ele?
- Que, por vezes, procurar a paz através das palavras não resulta; às vezes é preciso lutar por ela.
- Lutar pela paz? - Cato sorriu. - Não sei bem se percebo como é que isso funciona.
- Nem eu. - Miriam soltou uma gargalhada. - Vocês, homens, não são propriamente muito coerentes quando se põem a desfiar as vossas filosofias. Seja como for,
ele garantiu-me que, quando chegasse o momento certo, tudo faria sentido.
Cato encolheu os ombros. Tudo lhe soava como o disparate habitual que surgia quando se misturava política e religião. Uma coisa era certa. Bano não parecia ser do
género de tipo com quem se podia conversar. Era inevitável um confronto com Roma. E portanto tudo o que importava era garantir que a revolta que liderava seria esmagada,
e que o homem não sobreviveria para fomentar mais confusão no futuro.
Levantou-se.
- Tenho que ir. Tenho que me juntar à patrulha antes que anoiteça. Queria apenas pedir mais uma vez desculpa pelo que sucedeu. Dentro em pouco será o centurião
Macro o comandante da Segunda Ilírica. Ele garantir-vos-á um tratamento justo daqui para a frente. Tens a minha palavra quanto a isso.
- Obrigado, Cato. Mas o que vai acontecer até lá?
- Até lá, o prefeito Escrofa continuará a dar as ordens.
- E portanto prosseguirá a violência contra as aldeias da região?
Cato encolheu os ombros, revelando a sua impotência.
- Enquanto ele estiver no comando, pode decidir como quiser. Tudo o que posso fazer é tentar atenuar os resultados.
- E porque é que esse teu centurião não toma imediatamente o comando?
- Não pode. - A mão de Cato sentiu o alto que revelava a presença sob a túnica do estojo com o pergaminho. - Não enquanto não tiver uma autorização superior.
Estamos à espera que chegue.
- Então será melhor que rezes para que chegue depressa, centurião Cato. Antes que o Bano e os seus amigos partos provoquem uma revolta geral. Se isso chegar
a acontecer, que Deus nos ajude a todos.
127
XIV
- Não podemos ficar aqui a ver sem fazer nada. - Afirmou Macro, furioso.
- E porque não? - Ripostou o centurião Póstumo. - Oferecemos-lhes a nossa protecção, e eles recusaram. Para a próxima talvez pensem duas vezes antes de desprezarem
a minha proposta.
- Para a próxima? - Os olhos de Macro estavam esbugalhados.
- Não haverá próxima. Estão a ser massacrados. - Apontou para onde os assaltantes se tinham lançado sobre a minúscula escolta armada da caravana. A diferença
numérica era tal que era evidente que os guardas seriam rapidamente dizimados. A curta distância, os condutores dos camelos largavam-nos e procuravam escapar, abandonando
os animais e as suas preciosas cargas às mãos dos atacantes. Os mercadores que dirigiam a caravana tinham feito as montadas dar meia-volta, e agora corriam na direcção
da patrulha romana, tão depressa quanto os seus camelos eram capazes. Póstumo olhava-os com uma expressão divertida.
- Mal posso esperar para ver as caras deles quando lhes disser que o preço passou para o dobro.
Macro virou-se para ele.
- O que é que disseste?
- É nesta altura que dobramos o preço para os escoltarmos no resto do caminho. Oh, não se preocupe, eles aceitarão o novo preço sem discussão.
- E então?
- Nessa altura, nós entramos no combate. Os salteadores fogem com aquilo que conseguiram apanhar, a coisa termina e temos mais um contrato no bolso. Uns meses
disto, senhor, e será dono de uma pequena fortuna.
- E se os bandidos decidirem ficar e lutar?
- Não acontecerá. Temos uma espécie de acordo tácito com eles.
- O quê?
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- Pense, senhor. É importante que exista uma verdadeira ameaça. Portanto, se eles nos vêem a seguir uma caravana a alguma distância, já sabem que podem realizar
um ataque rápido. E que, quando nós avançarmos para salvar a caravana, não os perseguiremos para o interior do deserto. Nenhum dos lados sofre baixas, e ambos beneficiam
desta situação. Perdem apenas os donos das caravanas, claro; portanto, da próxima vez que vierem por aqui não hesitarão em pagar o que pedimos.
Macro abanou a cabeça, sem acreditar no que ouvia. Contemplou ao longe a refrega: os bandidos já tinham liquidado a escolta e entretinham-se agora a saquear os camelos.
- Há quanto tempo é que isto se passa assim?
- Desde que aqui cheguei, senhor.
- E o antecessor do Escrofa alinhava neste negócio?
- Não. - Admitiu Póstumo, desconfiado. - Não aprovava, mas ao mesmo tempo fingia que não sabia de nada e não chateava quem aderia. Ainda acredito que acabaria
por o convencer a aceitar abertamente o esquema, se ele não tivesse sido morto naquela emboscada.
- Imagino que sim. - Macro já tinha ouvido o suficiente. Desembainhou a espada e agarrou firmemente as rédeas.
- Senhor, o que está a fazer? - Perguntou Póstumo, alarmado.
- O meu dever. - Ripostou Macro, antes de inspirar fundo e berrar na direcção dos homens. - Formar linha de combate!
- Não! - Contrariou Póstumo. - Não! Fiquem onde estão!
Macro fez rodopiar o cavalo e confrontou-o.
- Calado! Nem mais uma palavra. - Virou-se de novo para as tropas auxiliares. - Formem a linha!
- Sou eu quem comanda esta patrulha! - Gritou Póstumo.
Macro deixou cair as rédeas e deu um murro no outro, acertando-lhe
em cheio no rosto. A cabeça recuou, desequilibrando-o e fazendo-o cair do cavalo, aterrando no solo com estrépito. Macro abanou a cabeça.
- Não, meu lindo, já não és. - Voltou-se mais uma vez para os soldados e gritou. - Então? Porra, estão à espera de quê? Formem a merda da linha, já!
Os decuriões entraram em cena, obedecendo às suas ordens e formando os esquadrões numa linha de combate. Assim que ficaram prontos, Macro ergueu ao alto a espada
para lhes captar a atenção e baixou-a na direcção da caravana.
- À carga!
Os cavalos irromperam num trote que foi acelerando até um galope na direcção dos proprietários da caravana, que continuavam a afastar-se dos assaltantes. Mal tiveram
tempo para se surpreenderem e assustarem
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antes de fazerem as montadas sair do caminho, deixando o espaço livre para a carga da cavalaria romana. Depressa saíram do campo de visão de Macro, que se concentrou
na situação que se lhe deparava, enquanto os auxiliares soltavam gritos de guerra e aprestavam as lanças, à medida que se aproximavam dos bandidos. O mais afoito
destes já deixava para trás a caravana, apressando um grupo de camelos bem carregados na direcção do deserto profundo. Vendo a carga dos auxiliares, os outros assaltantes
aperceberam-se da ameaça, e apressaram-se a saltar para as suas montadas e a tentar afastar-se. Iam ter um choque quando a cavalaria romana não interrompesse a carga
e continuasse a persegui-los, pensou Macro. Incitou os homens que o seguiam com um brado.
- Continuem! Não parem! Atrás deles!
Queria ter a certeza de que a sua ordem era bem percebida, já que Póstumo os devia ter habituado a deterem-se assim que os assaltantes deixavam a caravana em paz.
Desta feita, porém, os auxiliares contornaram os últimos elementos da caravana e seguiram em diagonal pela planície, perseguindo os salteadores do deserto. A ganância
tinha-se apossado da maior parte destes, renitentes em abandonar o saque e os camelos de que se tinham apoderado. Macro sorriu. Deviam estar a pensar que a cavalaria
romana estava apenas a dar o espectáculo habitual. Depressa perceberiam o erro dessa ideia.
Ainda à frente das tropas romanas, Macro já estava ao alcance de um arco quando os bandidos entenderam finalmente o perigo. Um deles, que conduzia uma fila de camelos
pesadamente carregados, largou subitamente a corda e incitou a sua montada, lançando-a num galope desesperado para as dunas distantes. Os seus companheiros, vendo
isso, imitaram-no, abandonando os animais capturados e tentando fugir aos cavaleiros que carregavam sobre eles. Macro ignorou os camelos soltos e agitou a espada
na direcção das figuras de negro que escapavam para o deserto.
- Continuem! Não os deixem escapar!
O mais próximo dos bandidos estava já muito perto, e Macro puxou o escudo para cima, protegendo o seu lado esquerdo e mantendo a espada em riste na mão direita,
antecipando o embate. O assaltante, cuja cabeça estava envolta num turbante e lenço negros, olhou para trás, e não conseguiu impedir que os olhos se lhe arregalassem
ao ver o oficial romano prestes a abatê-lo. Reagiu de imediato, pegando numa das lanças curtas que tinha num saco pendurado da sela. Enquanto o camelo prosseguia
na sua corrida desconjuntada pelo deserto, o homem virou-se para trás, apontou e lançou o dardo contra Macro, já muito próximo. O projéctil dirigiu-se para o centurião,
num voo firme e bem dirigido. Este deu um puxão às rédeas para a esquerda e tentou encolher-se o mais possível, inclinando-se ao mesmo
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tempo para o lado. A lança passou-lhe junto ao ombro direito, provocando um grito de raiva do oponente, que não tardou em preparar outro dardo. O cavalo de Macro
vacilou enquanto lutava contra a inércia que lhe dificultava a mudança de direcção, e o centurião agarrou-se desesperadamente, fazendo força com as pernas contra
o flanco do animal e tentando passar o peso do corpo para o lado direito, para equilibrar. No instante seguinte, com um poderoso impulso das longas pernas, o cavalo
retomou o controlo dos seus movimentos, e recuperou o ritmo de perseguição.
A segunda lança foi lançada assim que Macro voltou a aproximar-se, mas desta vez o centurião utilizou o escudo para a desviar. O bandido já não tinha tempo para
mais lançamentos, pelo que empunhou a espada curva e lançou um golpe dirigido à cabeça de Macro. Este aparou-o com um choque metálico, e imediatamente dirigiu a
ponta da sua longa espada de cavalaria contra o flanco do homem, trespassando-lhe as roupas e o peito. O salteador arfou, deixando fugir todo o ar dos pulmões; quando
a lâmina se soltou ainda prosseguiu mais uns passos antes de deixar escapar as rédeas por entre os dedos e cair da sela, tombando sobre o chão pedregoso e rebolando
até se imobilizar. O camelo prosseguiu na sua correria, mesmo sem ninguém na sela.
Macro deteve o cavalo e olhou em volta. À sua frente, os assaltantes dispersos, tentavam a fuga. Virou-se enquanto os primeiros dos auxiliares passavam por ele.
Reparou que nenhum dos homens esforçava realmente
o cavalo, e sentiu uma raiva e desprezo profundos a subirem-lhe do fundo do seu ser. Os bandidos iam conseguir escapar. Era um facto que pouco teriam tido
a lucrar com aquele ataque, mas iam sobreviver, e portanto poderiam voltar a atacar noutro dia qualquer, e tudo graças a Póstumo e ao seu esquema.
- Não finjam que carregam! - Bradou Macro aos homens. - Vão atrás deles. Enfrentem-nos, caraças, ou arranco-vos os tomates!
Os mais próximos fizeram menção de incitar os cavalos, mas já havia poucas possibilidades de alcançar os bandidos, e Macro embainhou a espada e deixou-se ficar na
sela, a observar os acontecimentos. Os assaltantes já desapareciam apressados por entre as dunas. Lá atrás os homens da caravana empenhavam-se em dominar e acalmar
os animais espalhados pela planície. Alguns dos mercadores afadigavam-se a tentar recuperar parte dos seus bens, dispersos pela areia, e a tentar arrumá-los outra
vez nos cestos dependurados nos dorsos dos animais de carga.
Um ruído de cascos chamou-lhe a atenção, e reparou então que o centurião Póstumo se aproximava rapidamente. No último instante fez o cavalo estacar e lançar ao ar
uma nuvem de poeira e cascalho que provocou um agitar nervoso da montada de Macro.
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- O que diabo pensa que está a fazer? - Gritou-lhe Póstumo, apontando na direcção do assaltante abatido.
Macro deitou-lhe uma olhadela rápida e encolheu os ombros.
- Estou a fazer o teu trabalho, Póstumo. Ou melhor, estou a fazer aquilo que tu devias ter feito.
Póstumo rangeu os dentes e apontou um dedo a Macro.
- Lixou tudo, foi o que foi! Levou-me meses a montar isto. Corria tudo às mil maravilhas... E agora? - Olhou outra vez para o cadáver e abanou a cabeça. -
Não faço ideia do que se vai passar. Haverá represálias, isso é certo. - Voltou-se para Macro com um sorriso amargo. - Vai pagar caro por isto.
- Não me parece. Não quando se souber em Roma a história da negociata que tinhas com estes tipos. - Apontou para os últimos dos bandidos, já longe, meio escondidos
pela poeira que levantavam na fuga apressada.
- E o que o faz pensar que viverá o suficiente para contar a história?
Macro soltou uma gargalhada.
- Ameaças-me? - A mão desceu-lhe para o punho da espada, enquanto olhava Póstumo com intensidade. - Força, então, se tens tomates para isso. Pega na espada.
Póstumo encarou-o, e depois abanou a cabeça e desdenhou da pose de Macro.
- Não tenho de o enfrentar, Macro. Tenho amigos poderosos, capazes de o esmagar como um insecto.
- A sério? Eles que tentem, então.
- E seja como for, está-se a esquecer de uma coisa.
- Do quê?
- Bateu-me. A vista de todos os homens. Assim que chegarmos a Bushir, vou fazer uma queixa formal. Não tenha dúvidas, isto vai-lhe custar caro.
- Dizes tu. Veremos. Por agora, destituo-te do comando desta patrulha.
- Com que autoridade? - Desafiou Póstumo. - Não se está a esquecer de outra coisa? Até que a sua nomeação seja confirmada, não tem...
- Já sei. - Interrompeu-o Macro. - Mas, neste caso, isso não tem importância nenhuma. Em primeiro lugar, não cumpriste o teu dever. Podia acusar-te de cobardia
quando regressarmos a Bushir. Em segundo, sou eu o oficial mais graduado nesta unidade. Se tiveres algum documento escrito que contrarie o facto de eu ser mais antigo,
então calo-me. Mas parece-me que não tens um documento desse género contigo, pois não,
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centurião Póstumo? Não? Azar. - Macro sorriu. - Imagino a frustração que deves estar a sentir.
Furioso, Póstumo abriu a boca para protestar, e voltou a fechá-la. O veterano tinha razão. A mesma rígida obediência às regras que o tinha impedido de assumir o
posto para que fora nomeado tinha acabado de retirar a Póstumo o comando dos dois esquadrões de cavalaria. Macro necessitou de todo o seu autocontrolo para não desatar
às gargalhadas, ao ver a situação virar-se contra o arguto jovem oficial. Deixou-o espumar de raiva mais uns momentos, antes de prosseguir.
- Ficarei no comando até regressarmos a Bushir. Até lá, assumirás as funções de ajudante. Percebido?
- Não me pode fazer isto. - Insistiu Póstumo. Os decuriões tinham entretanto interrompido a perseguição e regressavam para junto dos dois centuriões.
- Já fiz. Quando chegarmos a Bushir, podes fazer as queixas que quiseres ao prefeito.
- Pode crer que o farei.
Quando os decuriões se aproximaram, Macro anunciou-lhes a alteração do comando. Viraram-se para Póstumo como se fossem pedir uma explicação mas, antes que o outro
centurião dissesse alguma coisa, Macro deu-lhes uma ordem ríspida.
- Ignorem-no! Eu sou o oficial mais antigo! A partir de agora, obedecem às minhas ordens. Quando voltarmos a Bushir, o centurião Póstumo será alvo de um inquérito
por grosseira negligência do dever. Se não quiserem sofrer a mesma sorte, sugiro que aceitem imediatamente a mudança no comando desta patrulha. Ou algum de vocês
quer pôr em dúvida a minha autoridade? Então?
Os decuriões limitaram-se a abanar as cabeças.
- Assim sim! Agora ponham os vossos homens a ajudar os tipos da caravana, para ver se a coisa entra na ordem. Depois disso, vamos escoltá-los até à Decápole.
Se se der outro ataque, espero que os vossos homens lhe respondam com mais vigor do que se fossem um bando de virgens num festival religioso. Quero vê-los atacar
com velocidade e força, senão vou-me encarregar pessoalmente de vos mandar de volta às fileiras. - Deu-lhes um olhar indignado, antes de concluir. - Fiz-me entender?
- Sim, senhor! - Responderam os decuriões em uníssono.
- Muito bem, então vão dar andamento às ordens. - Macro devolveu-lhes a saudação, e os dois rodopiaram, e dirigiram-se a trote às suas unidades. Macro virou-se
para Póstumo e indicou-os. - E tu, estás à espera de quê? Quero-te ali, a ajudar a limpar esta trapalhada.
- Eu?
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- Tu, sim. E a partir de agora diriges-te a mim com o respeito devido. Põe-te a andar, àntes que junte a insubordinação às acusações que te vou fazer oficialmente.
Póstumo calcou os flancos da montada e afastou-se a galope, juntando-se à caravana.
Macro viu-o a afastar-se e soltou um suspiro de alívio. A corrupção tinha estragado aqueles oficiais. Se tivessem tido a coragem de o enfrentar naquele instante,
teria muito possivelmente seguido o caminho do antecessor de Escrofa. Mas Macro empunhara o chicote, e eles tinham-seaccobardado. De certa forma, isso entristecia-o.
Se se dobravam tão facilmente perante a fúria de um superior, de pouco serviriam quando chegasse o nomento de combater Bano e o seu grupo. Assim que a sua nomeação
fosse confirmada, teria de lhes cair em cima, e ser mais duro com os oficiais lo que com os soldados. Tinham que enrijecer, e depressa, se queriam ter alguma hipótese
contra os rebeldes judeus e os seus presumíveis aliados partos.
Nos quatro dias seguintes, a caravana seguiu tranquilamente o caminho para Gerasa. Protegida por um esquadrão de auxiliares montados em cada flanco, não sofreu novos
ataques, e quando surgiram à vista as nuralhas da cidade, situada numa colina que dominava o Mar da Galileia, os mercadores vieram ter com Macro, para lhe apresentar
as despedidas.
- Vamos deixá-los. - Anunciou Macro. - Aqui já estão em segurança.
- Graças a si, centurião. - O mercador inclinou a cabeça, e depois levantou o olhar, algo acabrunhado. - Eu e os outros gostaríamos de lhe fazer uma oferta,
como agradecimento por ter salvo os nossos bens e, muito provavelmente, também as nossas vidas.
- Não. - Retorquiu firmemente Macro. Não queria seguir por aquela via. Não cederia às tentações, como Póstumo e a maioria dos oficiais da Segunda Ilírica.
- Apenas fizemos o nosso dever. Não há necessidade de qualquer oferta. Não haverá mais subornos ou extorsões envolvendo soldados romanos e caravanas que viajem por
esta rota. Isso acabou. Têm a minha palavra.
O mercador pareceu perturbado.
- Centurião, não está a compreender. Esta oferta faz parte das nossas tradições. Se não a aceitar, a vergonha cobrir-nos-á por muito tempo.
Macro olhou para eles e coçou a barba que começava a surgir-lhe no queixo.
- Envergonhados, é?
O mercador assentiu com vigorosos gestos da cabeça.
Macro sentia-se irritado com a situação. Não tinha grande tendência
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para aceitar facilmente os costumes de outros povos, e não fazia ideia de como resolver aquele dilema. Mas surgiu-lhe então de novo uma ideia em que andava a matutar
já há dias, e que oferecia a todos uma saída airosa e provavelmente útil.
- Não aceitarei qualquer oferta. - Repetiu. - Mas em breve terei ocasião de lhes pedir um favor. Quando esse momento chegar, gostaria de saber como entrar
em contacto convosco.
- Quando concluirmos os negócios aqui, regressaremos a Petra, centurião. Temos que preparar a próxima caravana. Ficaremos por lá um ou dois meses.
- Muito bem, então enviar-vos-ei uma mensagem para Petra.
Ficou a vê-los afastarem-se e juntarem-se à corrente de camelos que
subiam a encosta a caminho dos portões de Gerasa. Sorriu. Se o plano que gizara tivesse alguma possibilidade de ser posto em prática, os mercadores seriam vitais
para o seu sucesso.
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XV
No dia seguinte a ter deixado Bushir, a força comandada pelo centurião Parmenião atravessava a paisagem acidentada que rodeava Herodion, mantendo-se atenta aos olivais
em socalcos que preenchiam as encostas. Era o tipo de terreno que oferecia toda a vantagem às forças ligeiras que Bano tinha à sua disposição, e Cato conseguia facilmente
imaginar os danos que um pequeno destacamento equipado com dardos e fundas seria capaz de infligir à coluna romana. Afortunadamente não havia sinais dos revoltosos,
; por volta do meio-dia já tinham chegado a Beth Mashon, uma povoação de dimensões apreciáveis, rodeada por maciços de palmeiras empoeiradas. A chegada foi detectada
por um grupo de crianças que vigiavam cabras e enquanto algumas delas se afadigavam a afastar os ruidosos animais do caminho dos soldados, uma afastou-se a correr
na direcção das casas, para avisar os aldeãos.
Cato deitou uma olhadela a Parmenião.
- Não achas que devemos dispor os homens em formação de combate?
- Para quê?
- Para o caso de eles terem alguma surpresa preparada.
- Cato, quem é que pensas que estamos a enfrentar? - Perguntou Parmenião, em tom cansado. - Tropas partas de elite, ou coisa parecida?
- Quem sabe?
Parmenião soltou uma gargalhada amarga.
- Acredita, não há ali mais ninguém a não ser os camponeses do costume. E por esta altura devem estar é completamente acagaçados, e só devem pedir que não
lhes tornemos a vida ainda mais difícil. Quanto a isso, evidentemente, nada feito. As únicas alturas em que estes sítios perdidos recebem visitas são quando alguém
vem cobrar impostos ou armar confusão de outro género qualquer.
Cato perscrutou atentamente o semblante do veterano.
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- Parece-me que estás do lado deles.
- Do lado deles? - Parmenião arqueou as sobrancelhas. - Eles
nem sequer o têm. São demasiado pobres para isso. Não têm nada. Cato, olha à tua volta. Dificilmente algum dia estarás mais próximo da desolação completa. Esta gente
mal consegue arrancar o sustento da poeira que a rodeia. E para quê? Para pagarem impostos, dízimos, dívidas. No fim, quando os cobradores, os sacerdotes e os agiotas
já levaram os seus quinhões, quando já não há mais nada, vêem-se as mais das vezes forçados a vender as crianças. Eles só têm o desespero, e quando as pessoas estão
reduzidas a isso já só podem perder a esperança. E quando finalmente também ela se esgota, a quem é que eles se atiram? - Deu uma palmada no próprio peito.
- A nós. E lá temos de andar por aí a massacrar estes pobres desgraçados, até ficarem outra vez submissos, de forma a que os parasitas do costume possam voltar
a sugá-los e a arrancar-lhes as poucas moedas que eles consigam reunir.
Respirou fundo e fez menção de prosseguir, mas acabou por menear a cabeça, frustrado, e manter a boca fechada.
- Bom, ao menos aliviaste esse peso do peito. - Comentou Cato, tranquilamente.
Parmenião encarou-o, irritado, mas acabou por sorrir.
- Desculpa. Sirvo nestas paragens há demasiado tempo. E as coisas não mudam. - Fez um gesto largo na direcção da aldeia. - Espanta-me que esta gente aguente
isto tudo. Noutro sítio qualquer, teríamos uma revolta geral entre mãos.
- E temos. - Retorquiu Cato. - Pensava que era por isso que aqui estávamos. Para tratar de Bano.
Parmenião comprimiu os lábios.
- Bano? Apenas o último de uma linhagem de bandidos. Como os outros, assim que juntar um séquito razoável, proclama-se o mashiah, vindo para libertar as gentes
da Judeia das nossas garras. - Riu sonoramente.
- Ainda tenho que ver um que não se ache o mashiah. E continuam nessa linha... Digo-te, estou mesmo farto disto. Odeio este país. Odeio esta gente e a sua
pobreza, e o que ela lhes faz. Conto os dias que me faltam para sair do exército. E depois poderei finalmente sair deste buraco.
- Para onde irás?
- Para tão longe quanto me for possível. Algures com terra fértil e água, um sítio onde um homem possa ver alguma coisa crescer sem se matar a trabalhar.
Ouvi dizer que a Britânia é o melhor sítio para arranjar um terreno, nesta altura.
Foi a vez de Cato se rir.
- Se fosse a ti, não tinha tanta certeza quanto a isso.
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- Já lá estiveste?
- Sim. Dois anos, com o Macro, na Segunda Legião.
- E como é aquilo?
Cato ponderou por momentos.
- Em muitas coisas é tão diferente da Judeia como o dia da noite. De facto, seria um magnífico lugar para essa tua quinta, Parmenião, mas as gentes são tão
hospitaleiras como as de cá. Não me parece que venham a ceitar o nosso domínio tão cedo. É curioso, aqui estou eu, no outro extremo do Império, e o que me parece
é que cometemos os mesmos erros em todo o lado.
- O que é que queres dizer?
- Estes judeus. Seguem uma religião que não se verga, que não aceita compromissos. E os procuradores romanos, um atrás do outro, vêem-se forçados a recorrer
à violência para tentar que eles aceitem o nosso domíniio, da maneira que nós entendemos. Na Britânia passa-se a mesma coisa com os druidas. Enquanto eles defenderem
as suas velhas tradições e nós insistirmos numa nova forma de vida, pouca esperança de paz duradoura haverá em qualquer das províncias. Portanto, as perspectivas
parecem-me pouco animadoras, em qualquer das frentes.
- És capaz de ter razão. - Parmenião encolheu os ombros, num gesto que traía o cansaço psicológico que sentia. - Parece que aqueles que governam o Império
são incapazes de aprender. - Contemplou as casas mais próximas. - Bom, cá estamos. Vamos lá despachar isto.
A coluna penetrou na aldeia e Cato sentiu imediatamente o familar gelo da tensão a enrolar-se em torno da espinha, enquanto se mantinha atento a tudo o que se passava
na rua estreita que serpenteava entre os blocos de casas coradas pelo sol. A aldeia apresentava o mesmo padrão que todas as outras que vira desde a sua chegada
à Judeia. Grupos de casas organizavam-se em torno de pátios, nos quais existiam vários equipamentos partilhados pelos vizinhos: uma cisterna, um forno, um moinho,
um lagar; tudo o que lhes permitisse ser auto-suficientes. A maior parte das casas eram térreas, mas algumas tinham escadas internas que levavam aos telhados, nos
quais estavam instalados toldos. Nos pontos em que o estuque estava rachado e já tinha caído, podiam ver-se facilmente os blocos de basalto subjacentes; a construção
era impermeabilizada com uma massa de lama e pedras. A julgar pelo tamanho, Cato calculou que deviam existir umas mil pessoas na aldeia, mas quando mençionou as
suas contas a Parnenião o veterano sorriu.
- Ná, mais do que isso. Muito mais. As famílias menos abonadas vivem literalmente amontoadas. A terra cultivável não abunda. Quando um pai a deixa aos filhos,
é dividida igualmente por todos eles, portanto cada
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geração tem menos terra para trabalhar do que a anterior, e daí a pouco tempo já ninguém consegue construir casas decentes.
A coluna emergiu da rua, alcançando um largo pavimentado em frente a um edifício maior, com um telhado abobadado. Parmenião chamou um dos seus homens e passou-lhe
as rédeas.
- Isto é a sinagoga. - Indicou, enquanto desmontava. - É lá que deve estar o sacerdote. Deve ser o chefe da aldeia, ou pelo menos deve conhecê-lo. Optio!
- Berrou na direcção da coluna, fazendo com que um oficial subalterno surgisse a correr, saudando apressado.
- Sim, senhor.
- Passa palavra aos homens para desmontarem. Mas coloca grupos de vigia em cada uma das ruas que vem desembocar aqui. Uma secção em cada, deve chegar. Percebido?
O optio anuiu e foi cumprir as ordens. Cato deixou-se deslizar para fora da sela e passou as rédeas ao soldado chamado por Parmenião.
- Importas-te que vá contigo?
Parmenião encarou-o.
- Se queres mesmo vir. - Inspirou profundamente e dirigiu-se à porta da sinagoga, seguido de perto por Cato. A porta abriu-se para dentro quando ele se aproximou,
e deixou sair um homem alto, envergando uma longa túnica negra e mostrando algum cuidado de apresentação. Na cabeça usava um pequeno pano vermelho, e cachos de cabelo
negro tombavam-lhe sobre os ombros.
- Quem és tu? - Indagou Parmenião.
- Sou o sacerdote. - O homem empertigou-se, e tentou não mostrar qualquer receio perante o soldado. - O que desejas de nós, romano?
- Água para os meus homens e para os cavalos. E depois preciso de falar com os anciãos da aldeia. Convoca-os imediatamente.
A expressão do sacerdote tornou-se sombria ao escutar as exigências do centurião.
- A água está ali na cisterna pública. - Apontou para o largo, e para o bebedouro de pedra que não era mais alto do que o joelho de um homem.
- Podem saciar a vossa sede ali mesmo. Quanta aos anciãos... Não será fácil, romano. Alguns ainda estão em Jerusalém, no festival. E outros estão a tratar
das suas terras.
Parmenião interrompeu-o, erguendo a mão.
- Bom, vê se consegues reunir os que puderes. Vamos esperar no largo. Mas despacha-te.
- Farei o que for possível. - Os olhos do homem semicerraram-se, revelando a suspeita que o roía. - Mas diz-me, para que os queres reunidos?
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- Verás. - Ripostou Parmenião, sem mais. - Vai mas é buscá-los.
O sacerdote ainda ficou a olhar para ele mais uns momentos, antes de anuir, fechar a porta da sinagoga e dirigir-se a um dos becos que saía do largo. Quando deixou
de estar à vista, Parmenião acalmou-se. Sentou-se na borda do bebedouro, pegou no cantil e sorveu um bom trago. Cato imitou-o e ficaram os dois sentados a observar
como os soldados se abrigavam na primeira sombra que encontravam e conversavam em murmúrios. Alguns dos mais curiosos passeavam pelo largo, mas quando um deles resolveu
experimentar as portas da sinagoga, Parmenião repreendeu-o.
- Canto, nem penses nisso! Afasta-te do edifício.
O homem voltou imediatamente para trás.
- O que há de tão especial naquele templo? - Quis saber Cato.
- Para nós, nada. Não passa de uma sala quadrada onde eles se reúnem. Uma caixa com uns rolos de pergaminhos mais ou menos antigos, e é tudo. Agora, para
eles... - Abanou a cabeça. - Não fazes ideia de como estes tipos são susceptíveis. Já vi mais de um motim rebentar porque um dos nossos rapazes deu um passo a mais.
- Olhou para Cato intensamente.
- Sem pretender ofender-te, Cato, ainda não estás por cá há tempo suficiente para perceberes as regras. Portanto, cuidado com o que dizes e fazes ao pé dos
nativos.
- Vou tê-lo, sim.
Pouco depois, o sacerdote regressou com um pequeno punhado de anciãos, a maior parte idosos, e a maior parte com vestes longas e panos no alto da cabeça. Olharam
nervosamente para os soldados espalhados pelolargo, em frente à sinagoga, enquanto seguiam o sacerdote que se dirigia aos dois oficiais romanos. Parmenião olhou
para eles sem qualquer entusiasmo, e murmurou um aviso a Cato.
- Eu falo. Vê, escuta e aprende.
Os anciãos da aldeia e Parmenião trocaram um breve aceno de cabeça, à laia de saudação, e o centurião dirigiu-se ao sacerdote.
- Tenho de falar com eles, mas num sítio mais fresco. Para onde é que podemos ir?
- Para a sinagoga é que não.
- Já calculava. - Assentiu Parmenião. - Então, para onde?
O outro fez um gesto na direcção de uma das ruelas.
- A nossa eira. Vem comigo.
- Muito bem. - Parmenião virou-se para Cato e disse baixinho. - Forma a em duas secções e vem atrás de nós.
O jovem anuiu; ao ver Parmenião afastar-se rodeado pelos locais não pôde deixar de sentir alguma ansiedade quanto ao destino do homem, apesar de ele ter dito que
os aldeãos eram bastante submissos, parecia
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um risco exagerado juntar-se a eles sem qualquer apoio. Encolheu os ombros. Parmenião conhecia-os, o suficiente para saber até onde podia confiar neles. Chamou os
homens mais próximos, formou-os e seguiu em marcha rápida de forma a não perder de vista o outro centurião e os locais, que já dobravam a esquina mais próxima. Depressa
encontraram a eira, um largo espaço protegido da inclemência do sol. Lá dentro, os anciãos sentavam-se no chão em frente ao centurião; este olhou para Cato quando
o sentiu chegar com os soldados.
- Forma-os aí ao lado.
Quando o dispositivo estava instalado, Parmenião começou a dirigir-se aos locais em grego. Sem qualquer tipo de preâmbulo, deu-lhes notícia da ameaça de Escrofa,
de que quem quer que desse ajuda ou abrigo a Bano e aos seus seguidores seria punido. Os anciãos escutaram com expressões de desalento e alguns traduziram para aramaico,
para benefício dos que não entendiam o grego. Não pareceram demasiado intimidados, uma vez que já estavam habituados a ameaças do género, quer dos representantes
romanos quer dos de Herodes Agripa. Como de costume, viam-se divididos entre as exigências das poderosas forças da autoridade e a sua instintiva lealdade aos fora-da-lei
que provinham da mesma classe social que eles.
Parmenião concluiu lembrando-lhes que Roma esperava não apenas que eles não fornecessem ajuda aos foragidos, mas também que fosse prestado um auxílio activo aos
soldados romanos envolvidos na missão de localizar e destruir Bano e os seus homens. Qualquer omissão nesse particular seria considerada prova de assistência aos
criminosos, e o castigo seria rápido e severo. Fez uma pausa e inspirou, antes de seguir para a parte mais difícil das ordens que recebera.
- De forma a assegurar a vossa cooperação neste assunto, o prefeito Escrofa deu-me instruções para seleccionar cinco reféns na vossa aldeia. - Indicou rapidamente
os homens mais próximos de Cato e dos soldados. - Esses servem. Vão connosco. Forma os homens à volta deles.
Assim que as palavras de Parmenião foram escutadas levantou-se um coro de vozes iradas e vários dos locais levantaram-se e aproximaram-se dele, gritando-lhe na face.
A mão de Cato desceu para o punho da espada, mas o veterano não se deixou intimidar, e abriu de repente os braços, fazendo com que os mais próximos dos aldeãos recuassem
em desalinho.
- Já chega! - Gritou. - Quero silêncio!
Os aldeãos acalmaram, embora sem deixar de resmungar, e o sacerdote assumiu o papel de porta-voz do grupo. Indicou os cinco homens.
- Não podes levá-los.
- Não só posso, como o vou fazer. Tenho ordens a cumprir. Serão
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bem tratados, e regressarão em segurança no momento em que Bano for destruído.
- Mas isso pode levar dias, ou mesmo meses!
- Talvez. Mas com a vossa cooperação poderemos alcançar esse objectivo mais cedo em vez de mais tarde.
- Mas nada sabemos de Bano! - Protestou o sacerdote, tentando conter a raiva. - Não permitiremos que a nossa gente seja tratada desta forma. Levarei o meu
protesto até ao procurador.
- Farás o que quiseres, mas estes homens vêm comigo.
- E quem cuidará dos seus negócios e dos seus campos enquanto eles estiverem nas vossas mãos?
- Esse problema, sacerdote, é teu, e não meu.- Parmenião voltou-se para Cato. - Leva-os. Vamos regressar para junto da coluna.
Os cinco homens seguiram para o largo central ladeados por duas linhas de soldados. O sacerdote e os outros anciãos seguiram os romanos, criando o maior alvoroço
possível, gritando e gesticulando sem parar. Parnenião ignorava-os, e Cato tentou seguir-lhe o exemplo, mantendo o olhar fixo para a frente, sem se voltar para ver
como seguiam os soldados lá atrás. Quando chegaram ao largo já os outros soldados olhavam naquela direcção, curiosos quanto à confusão que se percebia à distância.
Parmenião ndicou à pequena coluna que escoltava os prisioneiros para os conduzir até junto dos cavalos dos centuriões. O sacerdote continuava a correr ao lado dos
soldados, argumentando que as famílias daqueles homens seriam levadas à ruína devido à sua ausência. As suas palavras, porém, não tinham qualquer efeito, e Parmenião
ignorava-o por completo, enquanto distribuía ordens para que a coluna se colocasse em ordem de marcha.
De súbito, o sacerdote calou-se e olhou para além de Parmenião, na lirecção da sinagoga; ao desatar a correr pelo largo, soltou um grito agudo de indignação e ultraje.
Surpreso, Cato voltou-se e reparou que a porta do templo estava aberta, e que havia homens a moverem-se no interior.
- Merda. - Parmenião deu um murro na própria perna, irritado.
- Idiotas!
Correu atrás do sacerdote, e Cato seguiu-o. Lá dentro havia uma sala quadrada, com assentos de pedra e uma coluna em cada canto, a suportar a abóbada. Ao fundo
havia uma espécie de armário em madeira, em torno lo qual se tinham juntado alguns soldados. As portas tinham sido abertas, os homens vasculhavam pelo meio dos rolos
de pergaminhos, tirando-os das prateleiras e lançando-os sobre as pedras do soalho, enquanto procuravam por qualquer coisa de valor.
- Afastem-se imediatamente! - Ordenou Parmenião. Mas já era tardde demais. O sacerdote como que voou pela sala, arrancando um
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pergaminho das mãos de um dos soldados, o mais próximo do armário. Gritou de raiva e agrediu com uma palmada o soldado, que Cato reconheceu como o homem que já antes
tinha andado a rondar a sinagoga. Antes que qualquer dos centuriões pudesse reagir, Canto lançou o punho contra a face do sacerdote, derrubando-o, e depois ergueu
no ar a ponta do rolo, deixando-o desenrolar-se pelo chão. Com um olhar de desprezo ao sacerdote, cuspiu no documento e rasgou-o ao meio.
- Já chega! - Parmenião correu para o grupo e empurrou o soldado para o lado. - Cretino de merda! Nem sabes o que fizeste!
O soldado olhou para o superior e limitou-se a apontar para o sacerdote judeu.
- Senhor, viu o que ele fez! O cabrão agrediu-me.
- Isso não é nada, comparado com o que eu te vou fazer. Desaparece daqui para fora, e forma no largo. Todos lá para fora!
Os homens escapuliram-se para o largo. O sacerdote sentou-se no chão, esfregando o queixo, mas quando reparou no estado do pergaminho imobilizou-se. Lançou um terrível
uivo e, de gatas, arrastou-se até junto do documento, pegando-lhe com um olhar horrorizado. Então levantou-se e correu para a porta, alertando toda a aldeia com
gritos lancinantes.
- Temos problemas. - Avisou discretamente Parmenião. - Temos que nos pôr daqui para fora, e depressa. Vamos!
Os dois oficiais apressaram-se para a porta. Lá fora, as tropas auxiliares estavam especadas a contemplar o sacerdote, que arengava de forma histérica. Parmenião
invectivou-os.
- Porra, estão à espera de quê? Mandei-os formar, e depressa!
Os homens agitaram-se, reconhecendo a falta de atenção, e organizaram-se em redor dos seus estandartes, apanhando pelo caminho as mochilas e o equipamento, enquanto
o sacerdote continuava a berrar. Os anciãos da aldeia espreitaram para o interior da sinagoga e saíram imediatamente, exaltados, juntando-se ao coro de lamentações.
Cato virou-se para o outro oficial.
- Achas que os cale?
- Não. Já fizemos estragos suficientes. Vamps mas é sair daqui.
Entretanto, engrossava o número de locais na praça, dirigindo-se à
sinagoga com expressões de angústia que depressa se transformavam em ira e os levavam a gritar impropérios aos soldados romanos.
- Vamos pôr a coluna em movimento! - Berrou Parmenião.
Mas já era demasiado tarde. Todas as entradas para a praça estavam
já repletas de gente, homens, mulheres e crianças, que jorravam das estreitas ruelas. Os soldados cerraram fileiras e ergueram os escudos, olhando desconfiados para
a turba que continuava a engrossar. Nesse momento,
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deles largou a mochila e desembainhou a espada. Outros o imitaram e se prepararam para entrar em acção assim que surgisse a ordem, ou que a multidão se aproximasse
demasiado. No meio da comoção, Cato virou-se mesmo a tempo de observar uma pedra a descrever um arco sobre as cabeis da turba e a dirigir-se para as linhas romanas.
No último instante, um os soldados levantou o escudo, encolhendo-se por trás dele e interceptano a pedra, que rolou para o solo sem provocar danos.
O centurião Parmenião recuou um passo, para mais próximo dos seus homens, e desembainhou também o gládio. As entranhas de Cato geram, ao aperceber-se da situação
tensa, prestes a escapar ao controlo de qualquer indivíduo. Se nada fosse feito naquele instante para recuperar um línimo de ordem pública, a praça tornar-se-ia
rapidamente o cenário de um banho de sangue. Reparou que o sacerdote estava próximo, e dirigiu-se
Ao homem.
- Diz-lhes para dispersar! - Assinalou a multidão, com gestos frenéticos. - Se não os tirares da praça, os soldados carregam!
O outro enfrentou-o com ar de desafio, e Cato receou por momentos que também ele estivesse consumido por uma raiva cega, e o ignorasse. Porém, o homem olhou em redor
e compreendeu o perigo que a sua gente corria. Avançou para o lado de Cato, lançou os braços para o alto, e fitou-os enquanto gritava aos aldeãos. Os soldados mantiveram
o ar deteerminado, enquanto a multidão sossegava a pouco e pouco, até que só se ouvia um murmúrio tenso entre as duas facções. Cato dirigiu-se de novo ao sacerdote,
cautelosamente.
- Diz-lhes para deixarem a praça. Diz-lhes para voltarem para as suas casas, ou os soldados obrigá-los-ão.
O sacerdote acenou em concordância e voltou a dirigir-se ao povo. Imediatamente se viram alguns movimentos inconformados, e vozes responderam indignadas, fazendo
com que a multidão rugisse em apoio aos oradores. O sacerdote conseguiu acalmá-los de novo, mas um homem precipitou-se para a frente, pegando no rolo rasgado e agitando
os fragmentos na face do outro. Logo a seguir virou-se, mirando Cato com desprezo e cuspindo no solo mesmo à frente das botas do centurião. Este forçou-se em manter
a calma e não mostrar qualquer reacção. Enfrentou o olhar do homem, antes de se virar para o sacerdote.
- O que é que ele quer?
- O que todos querem. O homem que fez isto. - Retorquiu. - O homem que profanou as escrituras.
- Impossível. - Cato não tinha qualquer dúvida sobre o que a turba faria ao responsável.
- O que se passa? - Quis saber Parmenião, juntando-se a Cato.
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- Querem que lhes entreguemos o soldado que rasgou o livro sagrado.
Parmenião sorriu de forma sinistra.
- É tudo?
- Não. - Exclamou o sacerdote. - Alguns exigem a libertação dos reféns. - Lançou um vislumbre sobre a multidão, antes de se dirigir de novo aos dois oficiais.
- Não aceitarão menos do que isso.
- Os reféns ficam em nossa posse. - Retorquiu Parmenião, firmemente. - E o mesmo com o nosso homem. Quando regressarmos à nossa fortificação, ele sofrerá
as consequências das suas acções. Tens a minha palavra.
O outro sacudiu a cabeça e mostrou a multidão com um gesto.
- Não me parece que eles aceitem a palavra de um romano.
- Quero lá saber. Não vamos entregar ninguém. E agora, será melhor que os persuadas a porem-se a mexer, antes que os meus homens o façam.
O sacerdote avaliou o oficial romano com o olhar, antes de responder.
- Não vos deixarão partir, a menos que nos entreguem o soldado.
- Veremos. - Ameaçou Parmenião.
Cato tossicou e fez um gesto discreto sobre as cabeças da mole humana.
- Olha para ali.
O olhar de Parmenião saltitou em redor da praça, de telhado em telhado, onde mais dos locais se tinham amontoado para cercar os romanos. Muitos, reparou, ostentavam
fundas - a arma preferida dos camponeses judeus.
- Parece que vamos ter que abrir caminho à força. - Concluiu Cato, desanimado.
- Isso não será necessário, desde que nos entreguem o vosso homem. - O sacerdote falou com urgência, mostrando a agitação da multidão. - É isso que eles querem.
Depois, podem partir, com os reféns e tudo.
- E deixar que o nosso homem seja despedaçado pela turba? - Cato abanou a cabeça.
- Romano, é a vida dele contra as de centenas da minha gente e dos vossos soldados.
Não havia saída para aquele impasse. A confrontação era portanto inevitável. Cato engoliu em seco e sentiu o coração a acelerar.
- Merda. - Resmungou Parmenião por entre os dentes. - Temos de lhes entregar o tipo.
Cato olhou-o assombrado.
- Não estás a falar a sério. Não podes.
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- Cato, estamos encurralados no centro da aldeia. Já assisti a cenas parecidas, quando estava em Jerusalém. Uma revolta. Perseguimos os cabecilhas pela cidade
velha, e eles caíram-nos em cima, de todos os lados. Perdemos dezenas de homens.
- Ainda assim, não podes fazer isso. - Disse Cato, desesperado.
- Tem de ser. Como disse o sacerdote, é uma vida contra muitas.
- Não! Ele limitou-se a rasgar um rolo. Nada mais.
- Para ele, e para aquela gente toda, foi muito mais do que isso. - Parmenião fez um gesto com o polegar na direcção da massa humana. - Se não lhes
entregarmos o tipo, teremos de abrir caminho para fora da aldeia e mbater todo o trajecto de volta ao forte. E assim que isto se souber, podes ter a certeza de
que todas as aldeias da região se revoltarão. Em poucos dias Bano terá aqui um exército ao seu dispor. É essa a alternativa.
O sacerdote concordou, e Cato abriu a boca para protestar. Mas o veterano tinha razão, e ele nada podia fazer para salvar Canto sem provocar um banho de
sangue. Derrotado, acenou em concordância.
- Seja.
Parmenião virou-se para os homens.
- Canto! À frente!
Depois de uma curta pausa, um homem abriu caminho por entre os soldados alinhados. De forma hesitante, dirigiu-se aos dois centuriões e ao sacerdote, que o olhava
com hostilidade óbvia, e colocou-se em sentido.
- Senhor!
- Soldado, estás dispensado de serviço. Entrega as tuas armas.
- Senhor? - Canto pareceu atordoado.
- Baixa o escudo e entrega-me a tua espada. Imediatamente. - Insistiu Parmenião, irritado.
Depois de mais uma hesitação, Canto dobrou-se e depositou o escudo sobre o solo. Desembainhou então a espada e entregou-a pelo punho ao superior. Parmenião guardou-a
debaixo do braço e bateu com a cana no chão.
- Agora, mantém-te em sentido! E não te atrevas a mexer-te até que te dê ordem para isso.
Canto empertigou-se e olhou em frente, inseguro sobre o que se estava a passar; Cato sentiu-se agoniado ao pensar no destino que esperava o soldado. Nesse instante,
Parmenião deu-lhe um toque.
- Põe a coluna em movimento. Sai da aldeia o mais depressa possível. Eu sigo-te.
Cato assentiu, desejoso de estar tão longe daquele sítio quanto fosse possível. Dirigiu-se ao cavalo, montou-o atabalhoadamente e deu ordens para a coluna se movimentar.
A princípio a multidão manteve-se firme,
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bloqueando o caminho que os romanos tinham seguido à chegada. Os cavaleiros que seguiam à frente conduziram os cavalos em passo firme na direcção dos aldeãos silenciosos,
mas nessa altura ouviu-se um grito do sacerdote, e a turba abriu uma passagem para a coluna romana, sempre com expressões de profunda hostilidade nos rostos. Cato
esperou que o último dos homens montados passasse pelo corredor humano, e então colocou o cavalo em posição, à frente do porta-estandarte que abria a coluna de infantaria.
- E o Canto? - Gritou uma voz.
Cato voltou-se para trás e avisou.
- Silêncio! Optios, quero o nome do próximo homem que se atrever a abrir a boca. Assim que chegarmos ao forte, será açoitado!
Os homens prosseguiram, trocando olhares ameaçadores com a turba que os ladeava. Mas os aldeãos limitaram-se a demonstrar o ódio que sentiam com o olhar, e nenhuns
movimentos de ameaça se produziram à passagem dos romanos. Depois de deixar o largo, Cato tentou ignorar as silhuetas que ladeavam a rua estreita, instaladas nos
telhados. Parmenião tinha toda a razão. Se se tivesse dado uma confrontação, os romanos ter-se-iam visto encurralados como ratos na ratoeira, sujeitos a um bombardeamento
incessante, e sem qualquer possibilidade de resposta. Estremeceu ao pensar nessa possibilidade, e imediatamente se empertigou sobre a sela, mantendo o olhar em frente,
recusando-se a dar a impressão de que se sentia intimidado.
Quando a coluna deixou a aldeia Cato levou a montada para o lado do caminho e dirigiu-se ao centurião que comandava a infantaria.
- Leva-os por este caminho. Vou esperar pelo Parmenião.
- Sim, senhor.
Enquanto os homens se afastavam, Cato, sentado na sela, olhou de novo para a aldeia. A multidão já não estava em silêncio; ouvia-se um tremendo coro de gritos indignados,
e Cato desejou que o veterano surgisse e deixasse aquele lugar perigoso. No instante em que Cato se preparava para voltar atrás e procurar por ele, ouviu-se um tropel,
e Parmenião surgiu a trote. Sobre a sela trazia uma cota de malha e também um escudo preso ao cinto. No rosto ostentava uma expressão de sombria determinação e mal
deu por Cato, seguindo no encalço da coluna que ainda estava próxima. Cato fez o cavalo dar meia-volta e seguiu-o. Quando alcançaram o cimo da pequena colina que
o jovem tinha indicado ao centurião da infantaria, os dois oficiais pararam e viraram-se para tentar perceber o que se passava no centro da aldeia.
A princípio, Cato não conseguiu divisar mais do que uma densa massa de cabeças escuras, todas viradas para a sinagoga, como que à espera.
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- O que fizeram eles com o Canto? - Perguntou em voz baixa.
- Não quis ficar para saber. O sacerdote e os ajudantes pegaram nele e eu vim-me embora. - Parmenião baixou o olhar. - Ele suplicou-me que não o deixasse
lá.
Cato não sabia o que dizer.
Da aldeia ergueu-se um novo clamor. Um grupo de homens tinha surgido no telhado da sinagoga, todos envergando as vestes largas típicas
Da região, menos um. A debater-se entre eles via-se a túnica vermelha de um soldado romano.
- É o Canto! - Gritou alguém, e os soldados mais próximos viraram-se para ver.
- Pouco barulho! - Gritou Parmenião. - Bocas fechadas, olhos para a frente, e continuem a marchar!
Ouviu-se um grito agudo à distância, seguido de novo clamor da multidão. Cato verificou que os braços de Canto estavam agora amarrados atrás das costas. Alguém lhe
tinha arrancado a túnica, pelo que o soldado estava Nu em frente à multidão. Outro homem baixou-se para pegar em algo, e quando se ergueu o sol fez refulgir o que
empunhava, uma lâmina recurva, uma foice, percebeu Cato. Enquanto ele e Parmenião olhavam horrorizados, o outro fez deslizar a lâmina no flanco de Canto, terminando
com um brutal corte sobre o estômago do soldado. Os intestinos jorraram pela abertura, misturados com uma torrente de sangue que se espalhou pela frente da sinagoga,
deixando uma mancha vermelha e brilhante a contrastar com alvo da parede. A turba soltou um uivo de prazer que ecoou pela encosta. -Cato sentiu a agonia a subir-lhe
pela garganta.
- Vamos. - Instou Parmenião, incomodado. - Já vimos o suficiente. Vamos embora. Temos de chegar à próxima aldeia antes do anoitecer.
- A próxima aldeia? - Cato abanou a cabeça. - Depois disto? Não é melhor regressar ao forte e apresentar o relatório ao Escrofa?
- Porquê? Por causa do Canto? Aquele idiota devia saber no que se estava a meter. Cato, as nossas ordens mantêm-se. - Parmenião deu um puxão brusco às rédeas,
fazendo o cavalo voltar-se, deixando para trás a cena macabra que se passava lá em baixo, na aldeia. - Talvez isto sirva de lição aos homens para a próxima vez.
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- Metemo-nos numa bonita. - Resmungou Macro, assim que Cato terminou de lhe relatar a patrulha pelas aldeias da região. Parmenião tinha constituído reféns
em todas elas, incluindo em Heshaba, pelo que havia agora quarenta homens presos num silo, alimentados e com acesso a água, mas obrigados a permanecerem no seu interior.
Nos dias que se tinham seguido ao incidente em Beth Mashon, Parmenião tinha-se recusado a mencionar o destino de Canto, e tinha desarmado sem reticências qualquer
tentativa de Cato para levantar o assunto. A morte do camarada tinha deixado os homens numa péssima disposição, que se reflectira na forma como tinham tratado os
habitantes das outras aldeias visitadas; como era previsível, as medidas de Escrofa, em vez de contribuírem para acalmar os locais, tinham servido apenas para exacerbar
o seu ódio a Roma. A Cato não restavam dúvidas de que as hostes de Bano se veriam enriquecidas nos dias seguintes com bandos de jovens das aldeias que tinham sido
visitadas pela patrulha.
Cato tinha-se despojado de todas as roupas, e entretinha-se a tentar remover a sujidade e a poeira que tinha entranhadas na pele. Estava com um humor sombrio, mais
do que Macro alguma vez se lembrava de o ver.
O veterano recostou-se na cama e contemplou o tecto.
- Cato, não estou a ver como é que podemos melhorar a situação por aqui. O Escrofa envolveu a maior parte dos oficiais no esquema de protecção das caravanas;
os que não estão metidos no negócio tentam fingir que não vêem nada e vão vivendo as suas vidas, esquecidos de qualquer réstia de garbo militar. Os homens estão
fodidos por não verem uma parte dos lucros e, para cúmulo, o cretino do Escrofa parece estar a fomentar a revolta dos nativos. Se ela se der, a Segunda Ilírica vai
estar mesmo no meio da merda, pelo menos enquanto aquele inútil estiver no comando; esperemos que isso esteja para acabar. Deve estar mesmo a chegar a mensagem do
procurador, a confirmar a minha nomeação.
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- Partindo do princípio de que a mensagem chegou mesmo a Cesareia. - Assinalou Cato, calmamente.
- O que é que queres dizer com essa?
- Se por acaso o oficial que levou a mensagem é um dos que estão metidos no esquema, calculo que não tenha grande pressa em ver o Escrofa substituído. E perder
uma mensagem seria extraordinariamente fácil.
- Não se atreveria a isso.
- A ver vamos. E se a mensagem se perdeu numa emboscada? Ou se chegou realmente ao procurador, mas as ordens desapareceram no regresso?
Macro soergueu-se sobre um cotovelo, e encarou o amigo.
- És mesmo animador, miúdo.
- Limito-me a assinalar as possibilidades. - Cato encolheu os ombros , e continuou a limpar-se com um pano de lã. - Além disso, deixou de fora mais de metade
dos nossos problemas.
- Oh, por favor, elucida-me. Estou mesmo a precisar de algo que me dê alento.
- Muito bem. - Cato sentou-se no cadeirão em frente a Macro e inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. - Tal como disse, a coorte está
num estado lastimável. Os locais querem ver-nos mortos. Se, de facto, Longino está a tentar provocar uma revolta, está quase a conseguir. E se ela ocorrer, ver-nos-emos
obrigados a enfrentar um Bano com um exército reforçado e armado até aos dentes, e nós sem grandes íipóteses de recebermos reforços ou até uma coluna de socorro
que nos permita recuar para um local seguro. Mas a minha preocupação principal : Bano. Por agora, não passa do chefe de um bando de meliantes, mas se conseguir reunir
uma força suficiente para nos enfrentar, com certeza que não deixará de aproveitar a ocasião para tentar apresentar-se aos seus como o mashiah. Não passará de mais
um numa longa linhagem de pretendentes ao título, claro. Mas se tiver às suas ordens um exército de milhares, equi->ado pelos partos, será realmente credível.
E se a revolta se espalhar para lá desta área, toda a Judeia pode explodir em rebelião.
- Ora, pois! - Riu Macro. - Vá lá, Cato, isso não vai mesmo acontecer.
- Porque não?
- Não teriam quaisquer hipóteses. Um grupo de camponeses e pastores de cabras contra soldados profissionais? Está certo que são tropas auxiliares, mas ainda
assim chegam e sobejam para os assustar e obrigar
A voltar à linha. Mesmo que estejam a pensar numa revolta, sabem muito bem que as legiões da Síria estão mesmo aqui à porta. E por muitos que fossem os revoltosos,
não estariam nunca à altura das legiões. Pelo que sabem
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os indígenas, assim que se armarem em espertos, as legiões caem-lhes em cima e desfazem-nos.
- Sim. - Admitiu Cato. - Tenho a certeza que é isso que eles pensam...
- Mas?
- Não sei bem. - Franziu o rosto. - Desde que chegámos a esta província que ando com a sensação de que este sítio é como uma pira pronta a ser incendiada.
Basta uma faísca para atear o fogo, e toda a Judeia deflagrará. E se as suspeitas de Narciso sobre Longino tiverem algum fundamento, da Síria não virá qualquer auxílio.
- Talvez. Mas Bano e os seus seguidores não sabem disso.
- Será que não? - Cato ergueu o olhar. - Tenho as minhas dúvidas.
Macro fungou.
- Bom, agora estás a sugerir o quê? Que Longino fez algum acordo com um bandido bárbaro de cu peludo, que se refugia nas montanhas? Não te parece um bocado
rebuscado?
- Nem por isso. - Cato olhou para o amigo com ar fatigado. - Se Bano souber que Longino se recusará a mandar avançar as legiões, pode lançar uma revolta,
sabendo muito bem que só terá de se haver com tropas auxiliares. E isso seria um forte incentivo para passar à acção. E assim, Longino tem a sua revolta e uma justificação
para um pedido de reforços. Os dois têm aquilo que querem. Coincidência? Não me parece.
Macro ficou em silêncio por instantes.
- Um general romano a negociar com um vulgar criminoso... Ora aí está um pensamento deprimente.
- Não. Apenas uma manobra política.
- Mas como teria Longino entrado em contacto com Bano?
- Deve ter alguma espécie de intermediário. Um trabalho perigoso, por certo, mas pelo preço adequado desconfio que Longino facilmente encontraria quem estivesse
disposto a desempenhá-lo, e a levar até ao Bano a sua proposta de não-intervenção. Bastaria então provocar os indígenas até os levar à revolta... E o Escrofa e o
Póstumo têm dado o seu melhor para atiçar as chamas do descontentamento.
- Atiçar as chamas do descontentamento? - Macro não evitou um sorriso. - Olha lá, não tens por acaso andado a escrever poesia às escondidas, pois não?
- Foi apenas uma forma de expressão. Macro, isto é sério. - Cato voltou a concentrar-se, antes de prosseguir. - O problema é que não sei se Longino percebe
muito bem aquilo que está a soltar. Voltemos aos contactos entre o Bano e os partos. Imagino que lhe devem ter prometido armas para
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os seus homens, para começar. Evidentemente que nunca o admitiriam. Tudo o que possam fazer para enfraquecer o poder de Roma no Oriente, quanto a eles, faz apenas
parte do jogo global. Mas se vierem a saber de um acordo entre Bano e Longino não deixarão de perceber que se lhes oferece uma oportunidade magnífica para acertarem
as contas com Roma, de uma vez por todas. No instante em que Longino deixasse a Síria com as legiões, a Pártia passaria a ter mão livre na região. Se se movimentassem
com rapidez, armariam a Síria, a Arménia, a Judeia, a Nabateia e muito possivelmente até o Egipto. - Os olhos do jovem arregalaram-se quando se apercebeu realmente
das implicações daquilo que acabara de dizer. - O Egipto! Se o conquistassem, passariam a controlar a origem dos cereais que alimentam Roma. Poderiam forçar-nos
a uma paz nos termos que ditassem, quaisquer que fossem.
- Aguenta aí os cavalos! - Macro ergueu a mão. - Estás a imaginar coisas. Lembra-te de que estás apenas a considerar as possibilidades.
- Sorriu. - Ainda falta muito até que a situação se torne realmente ameaçadora para Roma.
Cato não conseguiu deixar de sorrir ao verificar como se tinha deixado empolgar pelas suas especulações. Ainda assim, havia muito em jogo, e pouco tempo para fazer
alguma coisa para alterar a situação. Até que chegasse a confirmação da nomeação de Macro para o comando da Segunda Ilírica, os dois oficiais pouco podiam fazer,
para lá de observarem os eventos à medida que se desenrolavam.
- Seja, vou manter-me focado no aqui e agora.
- Para já, parece-me que essa seria uma boa ideia.
Cato assentiu, e pegou numa túnica de linho lavada, começando a vesti-la.
- E consigo? Como correu a sua patrulha com o Póstumo?
- Para lá de uma pequena escaramuça com uns salteadores do deserto, fiquei por dentro do esquema que o Escrofa e a maior parte dos oficiais montaram com as
caravanas vindas da Nabateia. Trata-se, muito simplesmente, de protecção paga. Se os mercadores não cederem à chantagem e não lhes pagarem, podem ter a certeza de
que os ladrões lhes vão caírem cima, trucidá-los e desaparecer com as mercadorias. Ao que parece, por aqui toda a gente tem negócios com o inimigo. E o Póstumo
teve a gentileza de me oferecer uma percentagem. Que evidentemente recusei, com toda a iducação... Apesar da oferta tentadora.
- Aposto que sim.
- Bem, tive uma ideia sobre uma maneira de lhes acabar com o arranjinho. Mas primeiro tenho que assumir o comando, e depois será preciso entrar em contacto
com algumas pessoas em Petra.
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Cato olhou-o, curioso.
- Mal chegou aqui, e já tem contactos com os locais? Estou impressionado.
- E fazes bem. - Macro estava claramente satisfeito consigo mesmo. - A melhor ideia que tive nos últimos tempos, e mal posso esperar para ver a cara dos bandidos
quando tentarem atacar a próxima caravana que passar por aqui.
Macro continuava a sorrir, até que Cato desistiu.
- Pronto. Confesso que estou intrigado. E agora, posso saber em que consiste esse plano brilhante?
Ouviu-se um toque na porta, e Cato abanou a cabeça, frustrado, antes de responder.
- Entre!
A porta escancarou-se e um dos escrivães de Escrofa entrou, empertigou-se e fez a saudação regulamentar.
- O prefeito envia-lhe saudações, e requer a sua presença de imediato.
Os dois amigos trocaram um olhar, antes que Macro respondesse.
- Muito bem. Já vamos. Assim que o centurião Cato acabar de se
vestir.
- Senhor? - O homem franziu o sobrolho. - As minhas instruções foram para o convocar a si.
- Pois bem, já o fizeste. Daqui para a frente é comigo. Desanda.
- Sim, senhor. - O homem saudou e saiu.
Cato virou-se para Macro.
- O que será?
- Imagino que o Escrofa queira tirar a limpo a confrontação que tive com o centurião Póstumo, enquanto andávamos em patrulha.
Cato nem se esforçou por esconder a exasperação.
- Oh, estupendo. Outra cena de pancadaria?
- Mais ou menos. O Póstumo tornou claro que, assim que chegássemos ao forte, ia repor as coisas no sítio. Parece que está a tentar fazê-lo através dos canais
oficiais. Seja como for, quero que lá estejas, serás testemunha do que se passar.
O prefeito Escrofa não estava só quando Macro e Cato foram mandados entrar para o seu gabinete no edifício do comando. Póstumo estava lá, de pé, ligeiramente atrás
e ao lado do comandante. Viraram-se ao notar a entrada dos outros dois oficiais.
- Já não era sem tempo. - Comentou Escrofa, irritado. - E o que está o centurião Cato aqui a fazer? Não o mandei chamar.
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- Está aqui porque eu insisti nesse facto. - Ripostou Macro. - Viemos assim que fomos convocados.
Escrofa encarou-o por momentos.
- Enquanto eu for o prefeito da Segunda Ilírica, sou o oficial mais graduado neste forte. Portanto, centurião Macro, tratar-me-ás com o devido respeito.
- Muito bem, senhor. - Macro inclinou a cabeça. - Enquanto for o prefeito, assim será.
Escrofa cerrou os lábios, tentando reprimir a vaga de fúria que a resposta de Macro lhe despertara. Inspirou profundamente e prosseguiu.
- Seja. Penso que nos entendemos perfeitamente. Mas, se fosse a ti, não estaria tão seguro de conseguir substituir-me. Pelo menos por enquanto.
O centurião Póstumo tossicou.
- Senhor, estou certo de que o centurião Macro conhece perfeitamente o protocolo a seguir nestas ocasiões. Poderemos talvez passar a assuntos mais importantes?
- O quê? - Escrofa voltou-se para o ajudante, irritado. - Oh, muito bem, sim. - Voltou-se de novo para Macro e recuperou a compostura antes de prosseguir
em tom mais formal. - O centurião Póstumo apresentou uma queixa oficial acerca da tua conduta relativamente a um incidente ocorrido durante a patrulha.
Macro não evitou um breve sorriso perante os modos pomposos e a iscolha de palavras do prefeito.
- Centurião, há algo de engraçado nisto?
- Não, senhor, de todo.
- Bom, então, ao que parece agrediste o centurião Póstumo à frente dos seus homens, tomaste o comando da patrulha e deste-lhe ordens para atacar uns árabes
que estariam a obstruir a passagem de uma caravana.
- A obstruir a passagem... - Macro não conseguiu evitar uma gargalhada. - Ora aí está uma bela utilização das palavras, centurião Póstumo. Queres tu dizer
que tomei o comando dos teus homens de forma a intervir e salvar a caravana do ataque de uns ratos do deserto, coisa que te tinhas recusado a fazer; e, assim sendo,
claro que confirmo a tua alegação.
Póstumo ergueu o queixo e retorquiu.
- Sejam quais forem as palavras, a verdade é que era eu o oficial no comando daqueles homens, e que usurpou a minha autoridade de forma ilegal.
- Apenas porque tu não estavas a cumprir com o teu dever de oficial. - Macro espetou um dedo na direcção do outro. - Por ti, deixavas-te estar sossegadinho
enquanto os bandidos destruíam completamente a caravana.
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- Isso é irrelevante para a queixa que apresentei contra si.
- Irrelevante? - Macro fingiu-se chocado. - Foi essa a razão que me forçou a tomar o comando.
- E quanto a teres agredido outro oficial? - Interrompeu Escrofa, debruçando-se sobre a mesa. - Sim, o que me dizes a isso? És capaz de o negar?
- Não. Fá-lo-ia de novo, aliás. - Retorquiu Macro. - E com boas razões. E agora, se querem mesmo avançar com isto, nada me faria mais feliz do que enfrentar
um verdadeiro tribunal militar, em Roma. Tenho aliás o direito de insistir nisso, como bem sabem. Portanto, prefeito, gostaria de saber se tenciona prosseguir com
esta fantochada.
Escrofa olhou-o com ódio por momentos, mas depois deixou-se recostar no cadeirão e esboçou um sorriso.
- Não, centurião Macro, não me parece que tal seja necessário. Queria apenas que estivesses consciente das medidas disciplinares que te podem ser aplicadas
a qualquer momento. Com razão ou sem ela, violaste gravemente o código militar, e está perfeitamente dentro dos meus poderes levar-te a corte marcial. E se o desejasse
podia muito bem fazê-lo de uma forma sumária, aqui mesmo no forte.
- Poderia fazê-lo, sim. - Concedeu Macro. - Mas eu poderia também insistir no meu direito a apelar ao Imperador para ser ouvido em Roma. E acho que ambos
sabemos como é que isso podia acabar, dada a forma como as coisas se passam por aqui.
Estavam num impasse, e todos os homens naquela sala o sabiam. Durante algum tempo ninguém falou, até que Escrofa prosseguiu, adoptando um tom conciliador.
- Centurião, não há qualquer necessidade disso. Concordemos apenas em que agiste de forma inaceitável, e aceitarei de bom grado a tua promessa de que não
voltarás a incorrer em violações do código militar. No fim de contas, ninguém gostaria que assumisses o comando desta coorte com esta questão tão desagradável ainda
a pairar no ambiente, não é? - Sorriu.
- Ora bem, compreendo perfeitamente que tenhas uma visão distinta das coisas. Tu e o centurião Cato acabam de chegar à província e ainda não estão habituados
à maneira como os assuntos são tratados por cá. Penso que o centurião Póstumo aceitará a ideia de que foi um tanto brusco na forma como te explicou os procedimentos
que adoptamos quanto às caravanas que atravessam o território policiado pela Segunda Ilírica.
- Senhor, isso é muito subtil.
Escrofa soltou uma breve risada, e lambeu os lábios.
- Asseguro-te que não há nada de extraordinário nesta situação. É uma prática comum entre as unidades colocadas nesta fronteira.
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- Senhor, não foi isso que nos disseram. - Interveio Cato. - Foi-nos dito que este procedimento só está em vigor desde a chegada do centurião Póstumo ao forte.
- Tinha caído em desuso, sim. - Explicou Póstumo. - Apenas me limitei a reatá-lo, para benefício dos oficiais desta coorte.
- Evidentemente. - Sorriu Macro. - Muito altruísta, centurião Póstumo.
- Se posso servir os nossos interesses ao mesmo tempo que sirvo os
O Imperador, não vejo o que possa ter de mal.
- Duvido um bocado que os cartéis de caravanas dos nabateus pensem da mesma maneira.
Póstumo encolheu os ombros.
- Eles alinham.
- Não têm escolha. - Sublinhou Macro. - Ou pagam, ou são deixados à mercê dos assaltantes. Tenho a sensação de que isto não está a fazer bem nenhum às relações
entre o reino dos nabateus e Roma. Se eu fosse dado a suspeitas, até era capaz de pensar que a intenção é precisamente destruir qualquer hipótese de boas relações
com o reino vizinho, da mesma maneira que tem sido destruída qualquer possibilidade de estabilidade no território em volta deste forte.
Uma expressão de alarme atravessou o rosto do prefeito, que olhou de relance para o ajudante, procurando ajuda, antes de responder.
- O que é que estás a tentar insinuar, centurião Macro?
- Estou simplesmente a afirmar que alguém vindo de fora poderia pensar que existe quem esteja a tentar deliberadamente sabotar a segurança nesta região.
Cato, de pé atrás de Macro, estremeceu. O amigo estava-se a arriscar
A expor a verdadeira natureza da missão que os tinha levado até ali. Agitou-se, remexendo os pés, e dando um ligeiro toque no calcanhar de Macro com a ponta da
bota. O visado lançou-lhe um olhar trespassante, e virou-se de novo para o prefeito, que soltava uma risada com ar de falsidade.
- E que razão poderia eu ter para fazer tal coisa?
- Veremos. Em breve. - Respondeu Macro tranquilamente. - Assim que eu assumir o comando, garanto que todos os vossos jogos serão ex-postos e talvez nessa
ocasião seja eu a avançar com alguma justiça sumária.
- Ah, isso lembra-me qualquer coisa. - Escrofa recostou-se na cadeira enquanto juntava as mãos e entrelaçava os dedos. - Talvez devesse tê-lo mencionado antes.
Pouco antes desta reunião, chegou ao forte uma mensagem vinda de Cesareia. Foi aquele vosso guia, o Simeão, quem a trouxe. Ao que parece, o procurador decidiu que
o vosso pedido de confirmação da nomeação está fora da sua jurisdição. Portanto, resolveu levar o
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assunto ao governador da Síria. Temo que vá passar muito tempo até termos novidades sobre este tema. Entretanto, vejo-me obrigado a permanecer no comando da coorte.
- Fingiu uma expressão desgostosa. - Garanto-vos que lamento este atraso, tanto como vocês. Mas estou seguro de que Cássio Longino dará imediatamente toda a sua
atenção ao assunto.
- Estou certo disso. - Murmurou Macro. - Onde está o Simeão? Gostava de falar com ele.
- Vou mantê-lo na nossa companhia, dá-nos sempre jeito um bom guia. Mas não há qualquer necessidade de conversares com ele. Pelo menos por enquanto. E por
agora vejo-me obrigado a confinar-vos aos vossos aposentos.
- Confinar-nos aos quartos? Quer dizer que vamos ficar detidos?
- Para já, não. Mas fá-lo-ei se arranjarem mais sarilhos. O centurião Póstumo tratará de organizar um serviço de guarda à porta do vosso quarto.
Macro virou-se para o amigo e sorriu com amargura.
- Vim para aqui para ser prefeito desta coorte. E agora parece que me vou antes tornar prisioneiro da coorte.
- Estão dispensados. - Concluiu Escrofa, decidido. - Póstumo, assegura-te de que os centuriões são escoltados até ao seu quarto, e por lá mantidos.
Póstumo respondeu exultante.
- Com todo o prazer, senhor.
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XVII
Póstumo tinha-os mudado para o mesmo quarto, para que fosse mais fácil nantê-los sob vigilância. Macro aguentou sem problemas os primeiros dias de confinamento,
enquanto Cato se sentava à janela e observava a vida no forte, e se indignava quanto à falta de actividade na preparação das defesas. Por todo o lado os homens se
dedicavam às suas tarefas habituais, da mesma forma rotineira e lenta de sempre. Os turnos de sentinelas mudavam às horas do costume. Os homens levantavam-se pela
alvorada, treinavam durante uma hora e tinham a primeira refeição do dia. Seguia-se mais treino, até que o sol subia o bastante para inundar o forte e o deserto
em redor com uma luz quase insuportável. Por essa altura os soldados recolhiam às sombras, e só as sentinelas ficavam à vista, patrulhando as muralhas debaixo de
um calor tão abrasador que os próprios lagartos o evitavam, deixando-se star colados às paredes em áreas de sombra, à espera que passassem as horas de maior canícula.
Os guardas traziam-lhes refeições duas vezes por dia, e anuíam prontamente a qualquer pedido de mais comida e bebida, uma vez que, tecnicamente, os dois centuriões
não estavam detidos. Pelo menos por enquanto. A janela do quarto que se tinham visto obrigados a partilhar dava para uma uela estreita entre o edifício do comando
e o hospital, uma construção de piso térreo. Cato tinha examinado a possibilidade de saltar para a rua e escapar à detenção, mas concluíra que não valia a pena.
O que haveria a ganhar? Não poderiam deixar o forte, e uma tentativa de fuga daria a Escrofa a desculpa perfeita para os lançar para uma verdadeira cela. Portanto,
Cato sentava-se à janela e reflectia sobre as circunstâncias com um crescente sentimento de frustração e ansiedade.
Os dias passaram, e de vez em quando uma patrulha deixava o forte : marchava para o deserto, levantando uma poeira fina que ficava a pairar no ar durante algum tempo,
mesmo por cima do torreão que protegia o ortão principal.
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Um dia, enquanto os homens da coorte se escondiam do sol do meio-dia, Cato estava sentado no lugar do costume, o queixo apoiado nas mãos enquanto contemplava as
distantes colinas que assinalavam a entrada no desfiladeiro que conduzia a Heshaba.
- Centurião... - Chamou uma voz, sem alarde.
Cato deu um pulo e virou-se para Macro.
- Ouviu isto? - O amigo, porém, roncava na cama.
- Centurião, aqui em baixo.
Com cuidado, Cato debruçou-se na janela e divisou Simeão, encostado à parede mesmo por baixo. O guia ergueu a mão numa saudação e esboçou um sorriso.
- Simeão! O que estás aí a fazer?
- Chiu! Mais baixo. Preciso de falar contigo. Apanha isto. - O guia apontou e atirou um laço a Cato; este agarrou-o desajeitadamente e procurou um sítio no
interior do quarto para amarrar a ponta da corda. Virou-se de novo para Simeão.
- Espera. - Atravessou o quarto e sacudiu Macro pelos ombros. O veterano agitou-se, e no instante seguinte estava sentado na cama, os olhos a piscar.
- O que é? O que se passa?
- Calado. - Disse Cato suavemente, e entregou-lhe a ponta da corda. - Segure aqui.
Macro franziu o sobrolho enquanto contemplava a corda.
- Para que raio é isto?
- Aguente o peso, já é uma ajuda. - Cato voltou para a janela e fez sinal para o beco, antes de agarrar também a corda e fincar um pé contra a parede por
baixo da janela. Macro sentiu a tensão na corda aumentar e agarrou-a firmemente, percebendo que alguém trepava pela parede lá fora, grunhindo de esforço. No instante
seguinte surgiram dedos por cima do peitoril e Simeão içou-se a pulso, lançando-se para o interior do quarto e rolando pelo soalho.
- O que raio estás tu aqui a fazer? - Perguntou Macro, incrédulo.
Simeão olhou para lá dele, para a porta, com uma expressão de alarme, e levou um dedo aos lábios.
- Centurião, fale baixinho.
- Desculpa. - Murmurou Macro. Agarrou o braço do guia, num cumprimento. - É bom ver-te! Sempre é melhor do que olhar para aqueles brutamontes que nos trazem
a comida. O que se passa lá por fora?
- Tentei entrar em contacto convosco quando regressei ao forte com a mensagem do procurador, mas o prefeito enviou-me em missão no
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dia seguinte, para fazer a ronda das aldeias e tentar saber alguma coisa das movimentações do Bano. Só voltei hoje de manhã.
- E? - Cato arqueou as sobrancelhas. - Que tal é o ambiente nas aldeias?
- Não é bom. Viajei a pé, como se estivesse a voltar a casa depois do festival em Jerusalém, mas mesmo assim despertei suspeitas por todo
o lado. Os poucos que falaram comigo foram muito relutantes em dar-me informações, mas pelo que consegui depreender as forças do Bano engrossam todos os dias. Dizem
que prometeu ao povo demonstrar que os romanos podem ser derrotados. Já correm até rumores de que talvez ele seja um profeta. Ou até o mashiah. E que tem ao seu
lado aliados poderosos, que o auxiliarão a limpar a nossa terra de romanos, e a lançá-los todos para o mar.
Cato assentiu com um gesto desanimado da cabeça. Tudo se passava como temia, e o tempo estava a esgotar-se rapidamente. A área em torno de Bushir podia explodir
numa revolta em larga escala, a qualquer momento. Olhou atentamente para o guia.
- Porque voltaste para o forte?
- O centurião Floriano mandou-me. Disse-me para tratar de vocês os dois. Para garantir a vossa segurança.
- Segurança? - Macro riu e fez um gesto abarcando o quarto. - Aqui enfiados como galinhas estamos seguros até mais não. Nada nos pode acontecer. A não ser
que essa revolta aconteça mesmo. Nesse caso, vamos todos parar com o pescoço ao cepo, evidentemente. Simeão, dá-nos um instante. - Virou-se para Cato e prosseguiu
em latim. - Chegou o momento de jogar a carta do pergaminho.
Por instinto, a mão de Cato foi à tira de couro que lhe rodeava o pescoço, enquanto Simeão os observava, curioso.
- Não tenho assim tanta certeza. Assim que o usarmos, o nosso verdadeiro papel nesta história ficará à vista. Longino depressa ficará a par dessa informação
e eliminará todos os rastos.
- Se é que está realmente a planear alguma coisa. - Lembrou-lhe Macro. - Olha, Cato. Se ele conspira contra o Imperador, o que é o pior que pode acontecer?
Finge que é leal, abandona todos os planos de traição a Cláudio. Passa o resto dos seus dias a olhar por cima do ombro e a fingir que é um cidadão modelo. Quanto
mais tempo esperarmos para revelar esse documento, menos hipóteses teremos de impedir que rebente a grande confusão que se prepara por estas bandas. Temos que assumir
o controlo da Segunda Ilírica agora, já. Temos que encontrar Bano e esmagá-lo antes que consiga a força suficiente para nos destruir e espalhar a rebelião. Que importa
que possamos perder a ocasião de provar que Longino é um traidor, partindo do princípio de que o é de facto? O que pesa isso contra a
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possibilidade de deixar que toda a Judeia se levante numa revolta geral se não fizermos nada?
Cato olhou para o amigo, ponderando as suas palavras por alguns momentos. Faziam sentido, mesmo que tomar aquele caminho significasse que não cumpririam a determinação
de Narciso, de expor a conspiração que nascia na orla oriental do Império. Anuiu.
- Muito bem, seja. Como vamos fazer? Não podemos limitar-nos a mostrar o documento ao Escrofa e a dizer-lhe para se chegar para o lado.
- E porque não?
- Imagine que ele decide ignorar o documento. Esconder tudo e atirar-nos para uma cela esquecida, e destruir o pergaminho?
- Bom, teremos então de garantir que há testemunhas.
- E como? Se estivermos aqui ou no gabinete dele, estaremos a sós com ele.
- É verdade. - Macro franziu o sobrolho, mas logo estalou os dedos. - Bem, então arranjamos maneira dos outros oficiais estarem no encontro.
- Como? - Cato fez um gesto para a porta. - Estamos sob guarda permanente.
Macro acenou na direcção de Simeão.
- Ele pode fazê-lo. Pode levar uma mensagem aos outros oficiais. Aos que ainda não foram comprados pelo Escrofa. A começar pelo Parmenião.
- Pode resultar. - Concedeu Cato. - Mas como é que ele saberá quando agir?
- Tem que ficar atento aos acontecimentos. Dizemos aos guardas que queremos falar com o Escrofa. Quando formos levados ou quando o Escrofa deixar os seus
aposentos para vir para cá, o Simeão vai buscar o Parmenião e os outros. Assim que aparecerem todas essas testemunhas exibimos o documento que nos concede a autoridade
imperial, e damos um pontapé no cu do Escrofa.
- Muito bem. - Cato afagou o queixo. - Mas o que sucede depois de assumir o comando da coorte?
- Teremos que tratar da saúde a Bano.
- Vamos precisar de reforços.
- Possivelmente. Podemos pedi-los a Longino.
- E porque nos ajudaria ele?
Macro sorriu.
- Confia em mim. Ele há-de estar ansioso pela oportunidade. Se souber que Narciso suspeita dele, quererá provar a sua lealdade ao Imperador de todas as formas
e feitios.
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- Pois. Mas do que precisamos é de tropa ligeira, cavalaria, esse género de reforços. E não de infantaria pesada. Longino deveria poder ínviar-nos algumas
tropas auxiliares. Seja como for, parece-me que poderemos recorrer a ajuda vinda de outras paragens. - Cato voltou-se para Simeão, que tinha estado sentado, a ver
os dois centuriões a conversar na sua língua com crescente impaciência. Cato mudou para o grego. - Simeão, disseste-nos que tinhas família na Nabateia? Em Petra?
- É verdade.
- E que eles gerem escoltas armadas para caravanas que vêm da Arábia?
Simeão anuiu.
- Haverá alguma possibilidade de os convencer a ajudar-nos a enfrentar Bano? No fim de contas, são os homens dele que têm atacado as caravanas entre esta
área e a Decápole.
Simeão sugou ar por entre os dentes.
- É difícil de dizer. Graças ao prefeito Escrofa, a Segunda Ilírica conseguiu angariar uma boa quantidade de má-vontade lá por Petra. Imagino que haverá por
lá vários mercadores que não se chateariam muito se a guarnição de Bushir fosse aniquilada.
- Bom, então temos que recuperar a sua amizade.
- É mais fácil dizer do que fazer. - Simeão sorriu. - Centurião, as palavras não chegam. Terão de ser persuadidos com acções.
- Ah! - Macro esfregou as mãos. - Terão as suas acções. Tive uma ideia sobre essas caravanas, e a forma de convencer os salteadores do deserto a deixá-las
em paz daqui para a frente.
Cato e Simeão olharam-no com expectativa.
- Ainda não. - Macro sorriu. - Antes de mais, temos que tratar do prefeito Escrofa. Chegou o momento de termos uma conversinha. Vou tratar de lhe mandar uma
mensagem por um dos guardas. Mas primeiro, simeão, preciso que faças uma coisa por nós. Escuta. - Baixou a voz e começou a detalhar o seu plano.
Póstumo bateu à porta, e o prefeito respondeu do interior.
- Entre!
O trinco foi levantado e a porta abriu-se para deixar entrar Póstumo, seguido pelos centuriões Macro e Cato. Os três homens aproximaram-se da secretária do prefeito
e Póstumo parou a alguma distância, no que foi imitado pelos outros. O ajudante do prefeito afagou a espada num gesto cheio de significado e encarou o seu superior.
- Macro e Cato, como foi ordenado, senhor.
- Obrigado, Póstumo.
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- Estão quatro homens ao pé da porta, senhor.
- Estou seguro de que não serão necessários, mas... Bom, uma vez que estão lá não vale a pena mandá-los embora. Ora muito bem, senhores.
- Escrofa empertigou-se na cadeira. - O que significa isto? Que informação têm que seja assim tão importante?
Macro deitou uma olhadela a Cato, que fez um quase imperceptível gesto na direcção da janela que dava para a parada. Mas no forte não se notava qualquer movimento.
Macro clareou a garganta.
- Temos que falar sobre a situação.
- Qual situação?
- A situação, hã, relativa ao comando desta coorte. - Macro falava de forma lenta e deliberada, como se pesasse cada palavra, enquanto tentava ganhar tempo.
- Ou seja, qual o protocolo que deve ser seguido, hã, para a correcta transmissão da autoridade do presente comando para, hã, o novo comandante, ou seja, eu. É isso...
Senhor.
- Centurião, vê se te explicas. - Irritou-se Escrofa, apontando-lhe o dedo em riste. - Espero que não estejas apenas a fazer-me perder tempo. Portanto, solta
lá o discurso. Diz-me lá o que é assim tão importante que justifique uma interrupção do meu descanso para te escutar, e depressa, porra, antes que te mande de volta
para onde vieste.
- Muito bem. - Macro serenou. - Digo-te já. Considera-te removido do comando desta coorte. A detenção a que me sujeitaste, bem como a este oficial, é ilegal.
O esquema de protecção que tens operado na rota das caravanas que passam pelo território sob a tua jurisdição é uma corrupção dos teus deveres, das tuas responsabilidades
e do posto que ocupas; quanto a isso, asseguro-te que no devido tempo, depois de assumir o comando da Segunda Ilírica, farei as necessárias participações sobre ti
e o centurião Póstumo. - Fez uma pausa para recuperar o fôlego e aproveitou para espreitar para a parada pela janela. Ao confirmar que ainda estava vazia, o coração
afundou-se-lhe no peito. Inspirou, e prosseguiu. - Além disso, incluirei nas acusações o facto de que, através de uma política de provocação deliberada, puseste
em risco a segurança da província romana da Judeia, e...
- Cala-te! - Interrompeu Escrofa. - O que dizes não faz sentido!
- Ainda não acabei.
- Acabaste, sim, podes ter a certeza. Centurião Póstumo!
- Senhor?
- Conduz estes dois de volta aos seus aposentos. E não permitas que voltem a fazer-me perder tempo.
- Sim, senhor.
Cato tinha assistido à troca de palavras com preocupação crescente. Sentiu o pulso a acelerar, uma vez que tinha chegado o momento de
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intervir. Contra a sua vontade, via-se mais uma vez forçado a tomar o comando da situação.
- Um momento!
Os dedos fecharam-se-lhe em torno do fio de cabedal que lhe rodeava o pescoço, e puxou o estojo que trazia debaixo da túnica.
- O que é isso? - Quis saber Escrofa.
Cato fez saltar a tampa do estojo, e extraiu o pergaminho que o ocupava. Aproximou-se da secretária, enquanto ia desenrolando o documento, e espalmou-o sobre o tampo,
na posição correcta para o prefeito o ler. O olhar de Escrofa foi imediatamente atraído para o selo imperial, e o oficial não pôde impedir-se de voltar a encarar
Cato com ar atónito. Este bateu com a mão no documento.
- Leia-o, senhor.
Enquanto o prefeito olhava assombrado para a autoridade que Narciso conferira a Macro e Cato, o centurião Póstumo aproximara-se e pusera-se por trás dele, lendo
também por cima do ombro do outro oficial.
Cato aguardou que Escrofa acabasse de examinar o documento antes de romper o silêncio.
- Como podes ver, recebemos poderes para agir em nome do Imperador em todas as áreas sob jurisdição romana nas províncias da Judeia e da Síria. Nos termos
deste documento, invocamos agora essa autoridade.
- Respirou fundo e prosseguiu. - A partir deste momento, deixaste de ser o comandante da Segunda Coorte Ilírica.
Escrofa levantou então os olhos do documento, com uma expressão de choque estampada no rosto.
- Não podes falar-me dessa forma!
Macro sorriu ao inclinar-se sobre a mesa e bater com os dedos no documento.
- Olha, espertinho, lê outra vez. Podemos fazer o que quisermos. Tudo o que quisermos. E agora, caro cidadão, apreciava que saísses da minha cadeira. Há trabalho
a fazer. Muito trabalho, graças a ti.
Escrofa não o ouvia. Os seus olhos percorriam de novo o documento, como se assim conseguisse alterar o que lá estava escrito. Pelo seu lado, o centurião Póstumo
endireitara-se, e ria.
- Esse documento é forjado, como é óbvio. Devem ter cozinhado isto enquanto estiveram fechados na vossa gaiola nos últimos dias.
- Forjado? - Macro abanou a cabeça e sorriu. - Póstumo, olha para o selo com cuidado. Não te deve ser difícil reconhecê-lo.
- Mantenho que é uma fraude. E se vocês os dois pensam que isto altera alguma coisa por aqui, são ainda mais parvos do que eu pensava.
Ouviu-se o som de vozes vindas da parada. Cato dirigiu-se
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apressadamente à janela e espreitou para baixo. O centurião Parmenião e outros oficiais atravessavam as arcadas, atrás de Simeão. Este olhou para cima e acenou.
Outros homens emergiam da ruela entre as casernas do outro lado do pátio e dirigiam-se para os aposentos do prefeito. Cato sentiu que os nós de tensão que lhe esmagavam
o estômago começavam a desfazer-se. Virou-se, voltou para junto da secretária e pegou no documento. Antes que Escrofa e Póstumo pudessem reagir, voltou para a janela
e exibiu-o para que todos o vissem.
- Senhores! Por ordem do Imperador Cláudio e do Senado de Roma, o prefeito Escrofa foi afastado do comando da Segunda Coorte Ilírica. A partir deste momento,
o centurião Macro substitui-o. E agora, agradecia-vos que se juntassem a nós nos aposentos do prefeito Macro, imediatamente.
Depois de uma brevíssima hesitação, e para grande alívio de Cato, os oficiais dirigiram-se em massa para a entrada do edifício, mesmo sob a janela. Ao virar-se para
o interior da sala reparou no ar estupefacto de Escrofa. Póstumo já tinha apreendido todas as implicações do que estava a suceder, e uma expressão de medo tomava
conta das suas esbeltas feições, o que fez Macro soltar uma gargalhada. Não conseguia conter o júbilo por ter virado a situação contra Escrofa e o seu ajudante.
Inclinou-se para este e deu-lhe um toque no peito.
- Então, quem é que é parvo, afinal?
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XVIII
O salão principal do edifício do comando estava repleto com todos os oficiais que podiam ser dispensados do serviço naquele momento. Cerca de metade dos centuriões,
decuriões, optios e porta-estandartes da Segunda Coorte Ilírica estava presente. Os mais graduados ocupavam os bancos e cadeiras no centro da divisão, enquanto os
restantes se amontoavam aos lados. Os homens trocavam impressões em tom de murmúrio, e da posição em que se encontrava, junto à porta, Cato notava com facilidade
as expressões preocupadas. Pouco mais de uma hora tinha passado sobre o momento em que ele e Macro tinham exibido a Escrofa a autoridade imperial de que estavam
investidos, e o tinham removido do comando. E já todo o género de boatos se espalhara pelo forte, mesmo antes de os oficiais serem convocados para aquela reunião.
Cato sorriu. Depressa todos ficariam a saber exactamente o que se passara. A questão era: aceitá-lo-iam? Escrofa e Póstumo tinham sido levados para uma cela nas
catacumbas, e colocados sob vigilância de uma secção de homens de confiança, escolhidos pelo centurião Parmenião. Não lhes seria dada ocasião de discursar contra
o novo comandante, e não lhes seria permitido o contacto com qualquer dos oficiais ou homens da coorte. Macro tinha deixado isso bem claro quando dera ordens a Parmenião.
- Que tal está o ambiente? - Quis saber Macro, por trás de Cato. Este virou-se e avistou o amigo a poucos passos, no corredor, fora da vista dos homens no
salão. Macro tinha o pergaminho na mão, enrolado, e batia com ele contra a perna.
Cato ergueu a mão para cobrir a boca, e respondeu num murmúrio.
- O tom geral parece mais ser de curiosidade do que de animosidade. Duvido que surja alguma verdadeira oposição à substituição do comando.
- Óptimo. - Macro encolheu os ombros e inspirou profundamente. - Bom, o melhor é despachar isto. Podes anunciar-me.
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Cato entrou na sala e colocou-se em sentido antes de falar.
- Atenção ao comandante!
De imediato todas as vozes se calaram, e as botas cardadas rasparam nas pedras do soalho quando todos os oficiais se levantaram e puseram em sentido, hirtos como
as hastes de lanças. Quando tudo se acalmou Macro fez a sua aparição, dirigindo-se ao estrado ao fundo da sala, de onde o comandante da coorte normalmente se dirigia
aos seus homens. Reparou nas expressões de surpresa que se viam em algumas das faces que o olhavam, e combateu a vontade de sorrir e mostrar como se sentia nervoso.
Tinha a boca seca e o estômago às voltas, sensações praticamente novas para ele e que o fizeram perceber, num choque repentino, que estava com medo. Aquilo era muito
pior do que enfrentar uma horda de bárbaros armados até aos dentes e a berrar pelo seu sangue. Tinha-se habituado a comandar uma centúria de legionários, ou até
uma força mais numerosa de recrutas nativos, mas aqueles tipos, oficiais, eram profissionais calejados, como ele próprio, e sabiam muito bem como haviam de o avaliar.
Engoliu em seco, limpou a garganta e começou.
- À vontade!
O som ecoou pelo salão, tão claro como se tivesse sido berrado na parada. Os homens imediatamente relaxaram a postura, e os mais antigos voltaram a sentar-se. Então,
todos os olhos se viraram para ele.
- Muito bem. Sei que tem havido alguma especulação, portanto vou começar por tornar a situação muito clara. Gaio Escrofa foi afastado do comando da coorte.
Lúcio Póstumo deixou de ser o centurião-ajudante. Essa função é agora desempenhada pelo centurião Cato, e eu sou o novo prefeito. Estas mudanças foram efectuadas
de acordo com o poder que em mim foi investido pelo Imperador Cláudio. - Macro exibiu o documento, desenrolando-o e mantendo-o bem alto, de forma a que todos pudessem
ver claramente o selo imperial afixado na sua base. - A minha autoridade é ilimitada. Se alguém tiver dúvidas, pode esclárecê-las no fim desta reunião, examinando
mais de perto este pergaminho.
Macro colocou-o sobre a mesa e encarou os oficiais, antes de prosseguir.
- Como vosso novo comandante, quero começar por dizer que esta coorte é uma das coisas mais mal amanhadas que alguma vez vi a fingir que eram unidades militares.
Cato torceu o nariz. O veterano tinha acabado de assumir o comando da Segunda Ilírica, e já não poupava as palavras para ofender os homens cuja lealdade precisava
absolutamente de conquistar.
- Ouviram bem. - Macro mostrava-se irritado. - Eu disse que esta unidade é uma merda. E a razão para isso não tem quase nada a ver
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com os homens que nela prestam serviço. Esses são tão bons como seria de esperar numa coorte estacionada aqui no olho do cu do Império. Mas vocês? - Macro abanou
a cabeça. - Espera-se dos oficiais que dêem o exemplo. E têm dado umas boas cagadas de exemplos, vocês. Uma metade passava o tempo a lamber as botas ao Escrofa,
para garantir a sua parte dos ganhos no esquema que ele tinha montado. A outra metade não é muito melhor. Por exemplo, ali o centurião Parmenião. Sabia muito bem
o que se andava a passar. E o que fez ele quanto a isso? Nada. Deixou-se estar quietinho, a fingir que não sabia de nada.
O olhar de Cato procurou o indigitado e viu como ele baixava a cabeça e fixava o solo entre as botas.
- Ora bem, meus senhores. - Prosseguiu Macro, cruzando os braços enquanto os olhava como um mestre-escola desapontado com os seus alunos. - As coisas aqui
em Bushir vão mudar. E digo-vos porquê. Não tem nada a ver com os esquemas corruptos que tantos de vocês abraçaram com entusiasmo, embora isso não fique esquecido,
garanto-vos. Não, a razão primeira para as mudanças é o facto de que estamos prestes a testemunhar a nossa própria revolta entre os nativos. E tudo graças ao jeitinho
especial que o anterior prefeito tinha para agradar aos habitantes locais, e que vocês tão entusiasticamente apoiavam. Enquanto aqui estamos, Bano não se cansa de
reunir à sua volta um grupo cada vez mais numeroso. E o que vocês não sabem é que, muito provavelmente, ele fez um acordo com os nossos amigos partos, e que estes
lhe vão fornecer armamento.
A novidade provocou uma onda de murmúrios ansiosos na assembleia.
- Calados! - Gritou Macro. - Não vos foi dada permissão para trocarem opiniões.
Os homens extinguiram de imediato as conversas, e Macro acenou, satisfeito.
Começava a gostar de comandar.
- Assim é melhor. Bem, parece-me que já devem ter uma ideia daquilo que enfrentamos. É à Segunda Ilírica que compete encontrar e destruir Bano e a sua pandilha,
antes que se tornem suficientemente fortes para nos virem desafiar e tentar destruir aqui à nossa casa. Ao mesmo tempo, não tolerarei que prossiga o tratamento ríspido
dos locais. Já fizemos o bastante para os lançar para os braços de Bano. Provavelmente já não conseguiremos recuperá-los para o nosso lado, portanto nem sequer vamos
tentar. O que não faremos seguramente é continuar a provocá-los. Daqui para a frente, qualquer homem ou oficial que afronte os locais terá o mesmo destino que o
Canto. Todos sabem o que lhe sucedeu. Sabem portanto o que acontecerá a quem lhe quiser seguir o exemplo de comportamento.
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Assegurem-se de que os vossos homens percebem a mensagem. Não aceitarei quaisquer desculpas. Não podemos continuar a portar-nos como agentes de recrutamento de
Bano.
Ouviram-se alguns murmúrios e alguns dos oficiais trocaram olhares reprovadores, mas quando se aperceberam de que o novo prefeito os estava a observar todos se acalmaram.
- Meus senhores, estou perfeitamente consciente de que nada do que acabo de dizer vos agradou. Paciência, é assim que tem de ser. A questão é: o que vamos
então fazer? Pela minha parte, vou esquecer tudo, e fazer tábua rasa dos vossos comportamentos anteriores. Não voltarei a mencionar a corrupção, o abandono dos deveres
que vos eram habituais. Terão portanto, todos vocês, a oportunidade de demonstrar o vosso valor. Não foi com certeza por aceitarem subornos que foram promovidos
às vossas patentes actuais, portanto algures no vosso passado todos devem ter sido bons soldados. E esse tempo voltou. Nos próximos dias todos terão de voltar a
sentir-se soldados de rija têmpera. Os vossos homens vão precisar que todos vós dêem o vosso melhor, e aviso já que não terei contemplações: qualquer um que eu veja
a mandriar será imediatamente degradado para as fileiras. Todos darão o melhor exemplo. Todos comandarão os seus homens na frente de combate. - Fez uma pausa para
deixar que as palavras assentassem. - Bom, pronto, é tudo. Já sabem o que quero de vós. Há muito a fazer, e todos receberão ordens tão depressa quanto possível.
Uma última coisa. Reparei que o estandarte da Segunda Ilírica não exibe quaisquer condecorações. Isso também vai mudar. Nunca deixei uma unidade antes de adicionar
um ou dois medalhões ao estandarte. O mesmo vai acontecer com esta coorte. Portanto, vamos fazer alguma coisa de que nos possamos orgulhar, sim? Esta reunião está
terminada.
Os oficiais puseram-se de pé e colocaram-se em sentido, saudaram, e começaram a destroçar, dirigindo-se à porta. Macro observou-os cuidadosamente, agradado com a
sua actuação e sentindo que tinha acabado de instigar nos seus novos subordinados um pouco de espinha. Mal o último tinha saído da sala quando Cato se acercou dele.
- Que tal correu, na tua opinião? - Indagou Macro.
- Um pouco brusco, mas pode dizer-se que pôs o dedo na ferida.
Macro franziu o sobrolho.
- Cato, estava a ver se os metia na ordem, foda-se, e não a tentar ganhar uma competição de retórica.
- Oh, sendo assim, correu bem. - Cato sorriu. - Não, a sério, acho que foi mesmo o que eles precisavam de ouvir. Gostei especialmente daquela parte sobre
o estandarte. É verdade?
- Não. Uma treta das antigas. Mas cai sempre no goto dos que só
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pensam na glória que podem alcançar. E vamos precisar deles se Bano se decidir a atacar a coorte.
- Acredito. - Concedeu Cato. - Bom, senhor, quais são as suas primeiras ordens?
Macro ficou um tanto abalado pela formalidade adoptada por Cato, mas compreendeu imediatamente que deviam habituar-se à nova posição de prefeito que acabara de assumir.
Fazia-o lembrar os tempos em que tinham servido na Segunda Legião, na Germânia e depois na Britânia, quando Cato fora o seu optio e depois um centurião recém-promovido
na mesma coorte. Muito se tinha passado desde então, e Macro tinha-se habituado a tratar o jovem como igual em quase todos os aspectos, mas agora que a situação
se alterara, o seu profissionalismo fazia-o aceitar a necessidade de um maior distanciamento entre eles.
- O Simeão já partiu para Petra?
- Partiu, mesmo antes da reunião começar.
- Asseguraste-te de que ele percebia exactamente o que eu pretendo
dele?
- Sim, senhor.
- Óptimo. - Macro assentiu. - Ora bem, então é altura de nos prepararmos para tratar da saúde a Bano e ao seu bando de ratos do deserto.
O novo prefeito da Segunda Ilírica tratou de assegurar que a sua presença era notada por todos. As casernas eram inspeccionadas à alvorada e ao entardecer, e qualquer
infracção às regras era punida de imediato. Os treinos tinham o dobro da duração a que os homens estavam habituados, e depois de cada centúria ter completado a ordem
unida passava o resto do tempo até ao meio-dia em marcha acelerada em torno do forte; só nessa altura era permitido que os homens dispersassem, derreados e sedentos,
submetidos ao impiedoso castigo do sol. Os oficiais depressa recuperaram os hábitos da profissão, e treinavam de forma tão árdua como os homens. Não foram feitas
mais patrulhas às aldeias vizinhas. Os batedores montados limitavam-se a vigiá-las de longe, e concentravam os seus esforços na busca de Bano e dos seus homens.
A geografia da região permitia que uma vasta força se ocultasse facilmente nas grutas e cavernas dos numerosos desfiladeiros que serpenteavam pela paisagem. O único
indício da sua presença seria a necessidade de adquirirem água e comida, e as únicas fontes possíveis seriam as povoações da área. Sempre que os batedores avistavam
um grupo suspeito a chegar a uma das aldeias faziam um esforço de os seguir quando partiam, mas a presa acabava sempre por lhes escapar nos contrafortes das montanhas
que se erguiam na margem oriental do Mar Morto.
O prefeito Macro concentrou os seus esforços na selecção de um
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destacamento para uma missão especial. Precisava dos melhores cavaleiros da coorte, e precisava também que a sua habilidade a cavalo fosse tanta como a sua destreza
com o arco. Tal como sucedia em muitas das coortes da região, havia já alguns homens capazes de usar o poderoso arco composto preferido pelos guerreiros orientais.
Macro fê-los treinar incessantemente na carreira de tiro que fora preparada apressadamente no exterior do forte. Ao fim de algum tempo todos se tornaram eficientes
no uso da arma a qualquer distância.
Ao mesmo tempo, o carpinteiro da coorte tinha recebido a incumbência de preparar uma armação para as selas que permitisse o transporte de cargas leves, e que pudesse
ser descartada num instante. Outros homens da coorte esforçaram-se na preparação de trouxas para serem colocadas nessas armações. Dez dias depois de Macro ter assumido
o comando da coorte, tudo estava pronto. Nessa mesma tarde chegou uma mensagem de Petra. Simeão tinha feito o que lhe fora pedido, e entrara em contacto com os mercadores
cuja caravana tinha sido salva por Macro. Tinham acedido a encontrar-se com Macro e os seus homens no mesmo sítio - a estação de muda dos nabateus - ao entardecer,
daí a três dias.
Na noite anterior à sua saída de Bushir com o destacamento, Macro jantou com Cato no salão dos aposentos do prefeito. Escrofa, graças sem dúvida às vastas somas
que extorquira aos cartéis de caravanas, tinha decorado ricamente os aposentos, pelo que as paredes do salão eram vivamente ilustradas por cenas de caça que decorriam
em paisagens verdejantes, tão diferentes da realidade árida e selvagem que se estendia em redor do forte que faziam os dois homens suspirar pelo clima mais temperado
da península itálica, ou mesmo pela humidade da Britânia.
- Podes dizer o que quiseres do Escrofa, mas o tipo pelo menos sabia viver. - Comentou Macro, enquanto devorava um naco de cabrito assado.
- Estou a ver. - Cato ainda estava aquartelado no mesmo sítio em que tinha sido confinado com Macro pelo antigo prefeito. Dada a atitude exibida por alguns
dos oficiais, tinha sido julgado prudente que Cato ficasse no edifício principal, onde se fazia a administração da coorte, e vigiasse assim as actividades dos outros.
Ao mesmo tempo, assegurava-se de que os dois prisioneiros não falavam com ninguém. A Escrofa e Póstumo era dada comida, os baldes eram recolhidos, passados por água
e devolvidos aos prisioneiros, e esse era todo o contacto que tinham com o exterior.
- Como se está ele a portar? - Quis saber Macro.
- Aguenta-se. Já desistiu de se armar em inocente ultrajado e exigir
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que o libertassem de imediato. O que me preocupa é que os outros oficiais não param de querer saber o que vai acontecer àquele par.
- Diz-lhes apenas que serão tratados com justiça, e que terão direito a um inquérito formal depois de tratarmos do Bano. Se não resultar, diz-lhes para não
meterem o bedelho naquilo que não lhes diz respeito, a não ser que queiram ir também conhecer as instalações.
- Acha que vai mesmo haver um inquérito formal?
- Se Narciso tiver alguma palavra a dizer, nem pensar. Um interrogatório para os fazer revelar o que sabem sobre Longino, e depois desaparecem de cena. Conheces
o Narciso.
- Sim, claro. Mas nesta altura não há qualquer prova concreta de que Longino esteja a preparar alguma. Os indícios são fracos. E nesse caso, o Escrofa e o
Póstumo não são culpados de conspirar contra o Imperador.
- Talvez não. - Concordou Macro, enquanto emborcava outro pedaço de carne. - Mas pelo menos contribuíram grandemente para aumentar a instabilidade na fronteira.
Mesmo que consigamos ultrapassar esta história do Bano, vai levar anos a recuperar a nossa relação com os locais. Se é que vamos conseguir.
Cato anuiu, pensativo, antes de retorquir.
- Talvez o Imperador devesse pensar em abandonar a Judeia.
Macro ia-se engasgando.
- Abandonar a província? Por que carga de água?
- Não vi por aqui nada que me leve a pensar que os judeus venham algum dia a aceitar a posição que ocupam no Império. São demasiado diferentes.
- Uma porra! - Ripostou Macro, de boca cheia, o que fez um pedaço de cartilagem quase acertar na orelha de Cato, depois de projectada sobre o cadeirão. -
A Judeia é igual a outra província qualquer. Selvagem e difícil ao princípio, mas dá-lhes tempo e vais reparar que acabam por ver o mundo à nossa maneira. Queiram
ou não, hão-de adoptar o estilo de vida romano.
- Acha mesmo? Quando é que a Judeia foi anexada? Na época de Pompeu. Há mais de cem anos. E os judeus estão tão intratáveis como nesse tempo. Agarram-se à
sua religião como se nada mais importasse.
- Sim, a situação melhoraria muito se os conseguíssemos convencer a adorar os nossos deuses, ou pelo menos a também adorarem os nossos.
- Concluiu Macro, impaciente.
- Pois, mas isso não vai acontecer. Portanto, talvez devêssemos desistir de os incluir no Império... Ou então arrasamos tudo, ilegalizamos a religião e liquidamos
todos os que a tentarem manter.
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- Sim, isso era capaz de resultar. - Concordou Macro.
Cato encarou-o.
- Estava a ser irónico.
- Irónico? A sério? - Macro abanou a cabeça enquanto se servia de mais uma tira de carne. - Bem, eu não estava. Caraças, se queremos garantir a segurança
do Império, temos que controlar esta região. Nós, e não os partos. Portanto, esta malta terá que aceitar o domínio de Roma e ficar contente, ou então sofrer as consequências.
Cato não respondeu. Distinguia claramente as limitações da política defendida por Macro. Como na maior parte das províncias, Roma tinha tentado estabelecer uma classe
dirigente, que pudesse recolher os impostos e administrar a lei na Judeia. Só que ali, o povo comum tinha-se apercebido do verdadeiro valor daqueles que se proclamavam
como os seus dirigentes naturais. Por isso se tinha tornado a Judeia uma chaga no corpo do Império. Não se conseguia que os judeus tratassem dos seus assuntos de
acordo com as regras romanas, já que a religião local não o permitia. Teria portanto de ser Roma a intervir directamente, e a assegurar o seu domínio. Infelizmente,
a escala dessa intervenção era tal que o custo de manter a Judeia como província romana era muito superior ao volume de impostos que se conseguia recolher; a menos
que se impusessem taxas asfixiantes, o que não deixaria de conduzir a uma revolta em larga escala. O que exigiria mais tropas, para restaurar e manter a ordem. E
mais impostos para pagar as guarnições reforçadas que seriam necessárias para manter os judeus na ordem, o que conduziria a um círculo vicioso de rebelião e repressão,
sempre a crescer e sem saída. Não era difícil de perceber porque é que o centurião Parmenião se sentia tão gasto e cansado depois dos seus anos de serviço naquela
província.
Num momento de compreensão, percebeu que fora essa a razão por que o centurião tinha entregue Canto à turba sem grande dificuldade. O soldado tinha enraivecido os
aldeãos, e Parmenião tinha-se visto face a uma escolha simples. Se tivesse decidido ignorar a ofensa do homem e protegê-lo a todo o custo, teria dado azo a mais
uma revolta e contribuído para a fricção constante que ameaçava destroçar aJudeia. A morte de Canto tinha servido como aviso, quer a romanos quer a judeus, que ninguém
estava acima da lei. Se esse princípio se pudesse impor como política geral, talvez fosse possível uma trégua e um ajuste entre Roma e a Judeia.
Macro vigiava-o atentamente.
- Miúdo, não amoleças agora. Pensa o que quiseres quanto ao que está certo e errado, mas lembra-te de que temos uma missão a cumprir. O trabalho mais difícil
que já nos calhou em sorte. Não posso permitir que te percas a pensar onde é que isto vai levar. Concentra-te naquilo que temos
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que fazer. Pensa no resto depois, quando for seguro fazê-lo. - Deu uma risada. - Se ainda estiveres vivo nessa altura.
Cato respondeu com um sorriso.
- Tentarei que assim seja.
- Estupendo. Sentir-me-ei muito melhor sabendo que ficas cá a zelar pelas coisas.
- Esta sortida é mesmo necessária?
- Precisamos de todos os amigos que conseguirmos aqui na região. Se o meu plano resultar, é garantido que as nossas relações com os nabateus vão melhorar.
O cabrão do Escrofa devia ser esfolado vivo por causa disso.
- É verdade. - Respondeu Cato, calmamente. - Tem a certeza que quer que eu fique cá?
- Absoluta. A maior parte dos oficiais não são maus tipos, mas já vimos que não é muito difícil tentá-los a esquecer as regras. E há um punhado deles em que
ainda não confio. Vai ser preciso mantê-los debaixo de olho. A última coisa de que precisamos agora é de uma espécie de contragolpe para devolver o comando ao Escrofa.
Porra, seria um desastre. Portanto, Cato, tens mesmo que ficar por cá. E pensava que ias ficar feliz por ter uma coorte só para ti. Por uns tempos.
- É uma grande responsabilidade, e dada a duvidosa lealdade de alguns dos homens, preferia mesmo andar lá por fora.
- Pois, imagino que sim. - A expressão de Macro tornou-se séria.
- Mas desta vez, Cato, tem que ser assim. Ficas no comando. Sabes em quem podes confiar. O Parmenião pode não se esforçar muito, mas é um tipo rijo, um veterano
honesto até ao tutano. Se me acontecer alguma coisa, terás de ser tu a tratar do Bano. Não te lembres de irromper pelo deserto em busca de vingança, percebido?
- Senhor, está tudo certo. Sei o que tenho que fazer. Garanta-me apenas que não correrá riscos desnecessários.
- Eu? - Macro tocou no peito com uma expressão magoada. - Correr riscos? Nem saberia por onde começar.
A alvorada espalhava-se sobre o deserto quando os portões do forte foram abertos com um gemido das dobradiças, e Macro saiu à cabeça de dois esquadrões de cavalaria.
Apesar do calor diurno as noites eram frias e, no patamar do torreão, Cato estava embrulhado num espesso cobertor enquanto observava o amigo a afastar-se pela trilha
pedregosa que saía do forte Bushir, para sul e este, na direcção da grande rota do comércio ao longo da qual as caravanas traziam bens preciosos para o Império,
de terras que nenhum romano alguma vez vira. Os primeiros raios do sol tingiam de vermelho as areias, e a poeira levantada pelos cascos dos cavalos rodopiava em
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pequenos turbilhões de tom alaranjado. As sombras espalhavam-se longas e trémulas pelo planalto, como línguas de água escura; Cato não conseguiu evitar um pressentimento,
enquanto via a pequena coluna a afastar-se ao encontro dos assaltantes do deserto. Quando deixou de conseguir distinguir Macro do resto dos homens, virou-se e contemplou
os blocos de casernas que se estendiam no interior da muralha. O forte estava sob o seu comando, e surpreendeu-se ao admitir que, sob toda a preocupação que sentia
relativamente às suas capacidades para tal papel, estava uma secreta satisfação por ser naquele momento o comandante interino da Segunda Coorte Ilírica.
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- Chegaram, senhor. - Avisou o decurião, num tom calmo.
Macro piscou os olhos, tentando despertar. Já era dia, e a silhueta do homem recortava-se contra um céu azul pálido. Tinham passado dois dias a cavalgar furiosamente,
depois de deixarem o forte, e na noite anterior tinham comido e dormido bem. Macro insistira nisso, mantendo uma crença firme no velho adágio militar que afirmava
que os homens combatiam melhor se tivessem o estômago confortado. Em redor ouviam-se os sons abafados dos primeiros dos soldados a acordar. Afastou o cobertor e
ergueu-se, presa da habitual rigidez matinal; espreguiçou-se, flectindo os músculos dos ombros até ouvir as articulações a estalar.
- Ahhh! Assim sim! - Fez rodar a cabeça, e voltou-se para o decurião. - Bem, mostra-me lá isso.
Os dois oficiais atravessaram o pátio do posto dos nabateus, e subiram pela escada de acesso à torre de vigia, construída sobre o portão. Macro manteve-se ao lado
do decurião enquanto este percorria com o olhar a região a sul do posto, ainda mal iluminada, e finalmente apontava para um ponto distante.
- Ali, senhor.
Macro esforçou a vista e conseguiu distinguir um vestígio de movimento, nada mais do que um dançar de partículas de poeira no horizonte do deserto: a cabeça da caravana
que aguardava, a emergir de uma depressão no planalto.
- Já vi.
Enquanto os dois oficiais observavam, os primeiros elementos da caravana conduziram um extenso comboio de animais de carga pela trilha, progredindo ao longo do caminho
habitual até ao posto. Quando se aproximaram um pouco mais, Macro notou que um pequeno grupo de cavaleiros se destacava da vanguarda e se dirigia a trote na sua
direcção. Voltou-se para o decurião.
176
f
- Põe os homens a pé. Todos têm que estar prontos no momento em que a caravana nos alcançar.
- Sim, senhor. - O decurião saudou-o, desceu para o pátio e começou a berrar ordens, fazendo saltar os últimos dorminhocos, que se levantaram dos seus cobertores
a resmungar. Macro espreitou para o pátio ainda mergulhado na penumbra e aprovou com gestos silenciosos da cabeça a forma como o decurião animava, a pontapé, os
mais preguiçosos dos homens. Quando os cavaleiros chegassem não seriam recebidos por madraços a representar o exército romano. Os auxiliares apressavam-se a calçar
botas e a empunhar armas antes que os visitantes se aproximassem. Dada a natureza da tarefa que os esperava, tinham deixado capacetes, escudos e lanças no forte,
mas ainda envergavam cotas de malha por cima das túnicas de linho acolchoadas, e ostentavam longas espadas de cavalaria penduradas dos cintos. Por fim, todos os
homens tinham um estojo pendurado ao ombro, do qual saíam a ponta recurva de um arco de longo alcance bem como as penas das extremidades das setas. Quando Macro
desceu da torre para conduzir uma rápida inspecção aos homens, ficou contente ao verificar que todos tinham afastado o langor do sono, e estavam alerta e prontos
para a acção.
O som dos cascos no solo ressequido atraiu os olhares para o arco da entrada; depressa as silhuetas escuras dos visitantes montados se recortaram na abertura; os
homens desmontaram e levaram os cavalos a passo para o interior. Eram quatro, envoltos em vestes escuras e com turbantes e véus que só deixavam à mostra os olhos
negros. Por momentos tudo se manteve imóvel, e só o arquejar dos cavalos e o bater dos cascos ecoou pela estação. Mas quando os seus olhos se ajustaram à penumbra
do interior o líder dos recém-chegados afastou o véu da cara e sorriu a Macro.
- Simeão! - Saudou Macro, com um sorriso. - É bom voltar a ver-te. Está tudo preparado?
- Sim, prefeito. - Simeão deixou-se escorregar da sela, desmontando, e com um gesto indicou aos acompanhantes que o deviam imitar. - Tudo pronto. A caravana
vem mesmo atrás de nós. Não foi difícil encontrar um cartel disposto a vingar-se dos bandidos do deserto.
- Excelente. - Macro sentia-se aliviado. O plano que gizara dependia de Simeão conseguir convencer os nabateus a castigar quem os tinha atormentado nos últimos
tempos. Agora todas as peças estavam nos seus lugares, e a armadilha estava pronta para ser armada.
Simeão fez menção de apresentar os homens que o acompanhavam. Todos tinham removido os lenços, e Macro distinguiu dois homens mais velhos, talvez da mesma idade
do guia, mas de pele mais escura. Simeão fez um gesto na direcção do par.
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- Tabor e Adul, que em tempos foram meus sócios. O Tabor representa o cartel a quem pertence esta caravana. Ele e o Adul ainda fornecem escoltas às caravanas
que vão da Arábia a Petra. Viajam com a caravana porque vão tentar expandir o negócio até à Síria. Mas desconfio que a verdadeira razão porque vieram é quererem
participar na destruição destes bandalhos. - Simeão sorriu, e depois colocou a mão sobre o ombro do terceiro homem, mais jovem. Era mais baixo do que Simeão, mas
entroncado. Os olhos negros brilhavam com ferocidade sobre um bigode cuidadosamente aparado. Simeão olhava para ele com orgulho. - Este é o Murad, que adoptei como
filho. Ficou com a minha parte do negócio quando resolvi voltar para a Judeia. Não existe homem mais capaz.
Dirigiu-se ao jovem em aramaico, e Murad sorriu, revelando uma dentadura branca e imaculada. Passou um dedo pela garganta e produziu um som gutural, dando ênfase
ao gesto.
- Parece-me que nos vamos dar muito bem, jovem Murad. - Macro sorriu em resposta e inclinou a cabeça, numa saudação formal aos companheiros de Simeão. - Trouxeram
roupas a mais?
- Claro, centurião. Vêm nos camelos da frente.
Macro deu-lhe uma palmada amigável no ombro.
- Magnífico! Agora, só falta mesmo dar àqueles pulhas a maior surpresa das suas vidas.
O sol estava a pino, e o brilho que se escapava da areia e das rochas era tão forte que Macro se via forçado a franzir a vista para tentar ver o que se passava à
sua volta. Seguia à cabeça da caravana com Simeão e os seus companheiros. Atrás deles vinha uma longa coluna de cavalos e camelos carregados com mercadorias. Os
homens de Macro, disfarçados nas vestes de guias da caravana, caminhavam ao longo do trilho, cada um encarregando-se de um pequeno grupo de animais. As armas vinham
escondidas debaixo das falsas bagagens transportadas pelas bestas; os arcos estavam preparados para entrar em acção. Os verdadeiros guias da caravana tinham ficado
na estação intermédia, a descansar à sombra das suas paredes e à espera de notícias de Simeão. Se a caravana levasse mais homens do que o normal, não deixaria de
provocar suspeitas. Macro olhou sobre o ombro. Aos seus olhos, a caravana parecia igualzinha à que se tinha aproximado da estação pela alvorada. Portanto, com alguma
sorte, também conseguiria ludir os assaltantes. Nos flancos tinham sido colocados alguns batedores, mas em pequeno número; Macro esperava que uma presa aparentemente
tão indefesa fosse irresistível para os ratos do deserto.
Depois de uma breve paragem, durante a qual os auxiliares tinham envergado as roupas providenciadas por Simeão e pelos seus amigos, a
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caravana tinha deixado a estação, tomando a direcção de Filadélfia. As horas passaram vagarosamente, enquanto os animais carregados mantinham o hipnótico passo ininterrupto
que era normal para aquele género de coluna. Temendo que algum batedor inimigo conseguisse ouvir vozes romanas, Macro tinha proibido as conversas entre os homens,
pelo que a caravana seguia quase em silêncio, à excepção do leve arrastar das patas dos camelos e do som de cascos e botas a palmilharem o solo pedregoso do deserto.
Nesse momento, Murad disse qualquer coisa, e seguiu-se uma conversa murmurada com Simeão, antes deste se voltar de novo para Macro.
- Centurião, estamos a ser vigiados, mas não olhe em volta. O Murad viu um tipo nas dunas agora mesmo. Foi só uma espreitadela e desapareceu.
- Um dos nossos amigos do deserto? - Inquiriu Macro.
- Quase de certeza. Acho que nos vão atacar daqui a muito pouco.
Macro contemplou o trilho que se estendia à sua frente, e reparou
que daí a pouco passariam por uma depressão pouco funda, mas com paredes de rocha de ambos os lados. Um sítio ideal para uma emboscada, notou. Simeão tinha toda
a razão.
- Vou passar a palavra aos meus homens, para que se preparem.
Simeão anuiu quase imperceptivelmente, enquanto Macro fazia o cavalo parar e desmontava sem pressa. Debruçou-se, como se estivesse a examinar a pata da frente do
animal. Os primeiros soldados passaram por ele.
- Preparem-se. - Disse, em tom quase de murmúrio. - Eles estão por perto.
Foi repetindo o aviso à medida que os homens iam passando; depois endireitou-se, como se estivesse satisfeito quanto à condição do cavalo, e conduziu-o a passo até
ao fim da caravana, avisando o resto dos soldados, até se cruzar com o último grupo de animais de carga. Voltou então a montar e foi a trote até à frente da coluna,
precisamente quando esta começava a entrar na depressão do terreno. O brilho do sol reflectia-se nas encostas e tornava o ar ainda mais quente e opressivo, enquanto
a coluna desordenada de homens e animais passava entre as duas cristas rochosas. Macro não conseguia parar de olhar para um lado e para o outro, embora tentasse
fazê-lo de forma discreta; a antecipação dava-lhe a habitual secura na boca, e mal podia esperar pelo momento em que os bandidos lançassem o seu ataque. Mas nada
parecia perturbar a calma do deserto enquanto a caravana continuava a avançar pela depressão. O sol encetou a sua descida do zénite, e o terreno começou a inclinar-se
de novo para se voltar a juntar à planície imensa. Macro sentiu a tensão nos músculos a diminuir e virou-se para Simeão, tencionando lançar um comentário mordaz
sobre a falta de iniciativa dos bandidos, incapazes de se apoderar do que parecia uma presa
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fácil. Mas ao fazê-lo como que gelou na sela; ao olhar por cima da cabeça de Simeão para a crista que se erguia à direita do caminho, avistou um enxame de homens
envoltos em vestes negras, incitando os camelos que montavam a avançar sobre a caravana. A princípio não se ouviu qualquer som, mas assim que os atacantes começaram
a descer a encosta numa vaga desordenada romperam o silêncio, soltando um prolongado grito ululante. Os homens de Macro responderam da forma que lhes tinha sido
recomendada, e debandaram, arrastando consigo as suas montadas, também elas disfarçadas de animais de carga. Os que estavam postados na cabeça e na retaguarda da
caravana exibiram uma reacção mais lenta, parecendo lutar com os seus animais na tentativa de os impedir de se juntarem à fuga.
Simeão lançou uma ordem, e o pequeno grupo de guardas acorreu na sua direcção, enquanto Macro desembainhava a espada e tinha o cuidado de a manter numa posição baixa,
de forma a que os assaltantes não se apercebessem de que não era a espada curva típica das escoltas. Ao seu redor, Tabor, Abdul e Murad desfizeram-se das camadas
exteriores de vestes e impunharam as espadas, fazendo as lâminas polidas faiscar sob o brilho do sol. Ergueram-nas acima da cabeça e agitaram-nas, num evidente desafio
aos assaltantes que desciam a encosta e se precipitavam sobre a caravana, enquanto a escolta detinha os cavalos e se juntava em massa por trás dos seus líderes,
Simeão virou-se para Macro com um ar excitado.
- Agora é que vamos ver do que são feitos estes bandidos! Hah! Arrancou a espada da bainha e, imitando os outros, lançou um grito de guerra e desafio aos
atacantes.
Seguindo as ordens que tinham, os auxiliares que ocupavam o centro da caravana continuavam a fingir que tentavam escapar, levando os cavalos pela encosta oposta,
tentando não tropeçar na areia e pedras soltas. Ao verem a suposta tentativa de fuga sem combate, os ladrões incentivaram ainda mais as suas montadas, soltando gritos
que se pretendiam assustadores. Os homens nas extremidades da caravana mantiveram-se firmes nas suas posições, fazendo menção de lutar com as suas montadas para
as impedir de fugir em pânico. Como Macro previra, os assaltantes ignoraram-nos, jreferindo concentrar-se nos despojos sem guarda que se viam no centro da caravana.
Assim que chegaram ao pé dos camelos, saltaram das selas e correram para os animais carregados, tentando identificar os que levavam cargas mais valiosas. Macro esperou
que a maior parte dos assaltantes já tivesse desmontado e estivesse entretida a escolher os despojos; só um punhado de bandidos se mantinha na sela, de espadas aperradas
e atentos los movimentos da escolta armada. Tinha chegado o momento por que esperara, e inspirou profundamente, enchendo os pulmões antes de soltar um brado poderoso.
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- Segunda Ilírica! Às armas!
O grito ecoou pela depressão do terreno, e todos os homens que se tinham entretido a fingir escapar atabalhoadamente pela encosta pedregosa interromperam os movimentos
e libertaram-se dos disfarces que envergavam. Apressaram-se em seguida a desfazer os supostos fardos de mercadorias pendurados das selas, e montaram imediatamente,
fazendo os animais retomar o caminho para o centro da caravana e empunhando as espadas; pouco depois carregavam em boa ordem contra a confusão de homens e animais
que se via no núcleo da caravana, enquanto soltavam os seus próprios gritos de combate. Responderam-lhes os homens que tinham permanecido nas extremidades da coluna,
também eles já libertos do fingimento relativo às dificuldades de controlar as montadas e preparados para atacar os ladrões.
- Vamos! - Gritou Macro a Simeão, enquanto agitava a espada na direcção dos assaltantes. - A eles!
Com um grito selvagem, Simeão deu a ordem aos seus homens, e a armadilha fechou-se. Por cima da cabeça do cavalo, Macro viu as figuras escuras dos bandidos estacarem
quàndo se deram conta da ameaça que sobre eles se abatia, vinda de três lados em simultâneo. Os mais rápidos a reagir lançaram-se de volta às selas e incitaram de
imediato as montadas a regressar pelo caminho que tinham seguido pouco tempo antes, subindo em direcção à crista. Outros, menos inteligentes, continuaram a lutar
para dominar os animais de carga abandonados, tentando desesperadamente conseguir alguns despojos de valor antes de escapar para o deserto. À medida que Macro e
a escolta percorriam à desfilada o comprimento da caravana, começaram a alargar a linha de batalha, criando uma frente biselada que lhes oferecia maiores possibilidades
de alcançar os bandidos situados nos flancos. Macro notou que o assaltante mais próximo o olhava assustado antes de castigar a garupa da sua montada com uma intensidade
desesperada. Macro ergueu a espada e levou o cavalo a dirigir-se para o homem, mas antes que o pudesse atingir foi distraído pelo esvoaçar de panos que lhe passou
ao lado quando Murad o ultrapassou, de dentes cerrados e expressão de triunfo, e se meteu entre Macro e a sua vítima em perspectiva. A lâmina empunhada por Murad
faiscou de forma deslumbrante ao cruzar o ar, antes de se cravar profundamente na junção entre a cabeça e o ombro do outro. Este lançou um grito agudo, seguido por
um espasmo que pareceu lançá-lo para fora da sela, e tombou para o solo com o sangue a esguichar da terrível ferida que sofrera.
Murad lançou um brado de triunfo, seguido de uma gargalhada louca na direcção de Macro; depois fez o cavalo mudar de direcção, lançando-se contra novo adversário.
O centurião sentiu um princípio de fúria perante a
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forma como o outro se tinha posto entre ele e o inimigo que escolhera, mas depois sorriu para si mesmo, um sorriso fúnebre. Pouco importava. Que fosse de Murad o
primeiro momento de triunfo. O que era fundamental era que a armadilha resultasse plenamente, e permitisse aniquilar os bandidos. Endireitou-se na sela, esticando
o pescoço para ter uma visão abrangente da refrega. No centro da caravana havia uma densa nuvem de poeira, e mal se distinguiam os vultos escuros que trocavam golpes
no seu seio. Havia alguns bandidos a tentar escapar, subindo a encosta, mas eram perseguidos pelos homens de Simeão e pela cavalaria romana. Impeliu o cavalo, dando
um golpe às rédeas de forma a galopar mesmo para o meio da confusão no centro do campo de batalha. Um camelo sem cavaleiro atravessou-se de repente à sua frente,
e Macro desviou o cavalo mesmo à justa, não sem que o animal se empinasse, assustado. Mas o centurião retomou o controlo e depressa se viu no meio da nuvem de poeira,
forçado a piscar os olhos por causa dos materiais suspensos no ar. Outro camelo surgiu por entre a confusão, mas desta vez havia alguém em cima dele, cujos olhos
se arregalaram ao reparar no romano que sobre ele investia. O homem reagiu, agitando a espada curva que empunhava, e quando o flanco do cavalo de Macro embateu contra
o camelo aproveitou para lançar um rápido golpe dirigido ao crânio do romano. Este, momentaneamente afectado pelo pungente cheiro do animal que o outro montava,
mal teve tempo para levantar a espada e bloquear o ataque do inimigo, evitando que este lhe rachasse ao meio a cabeça. Apesar de sentir o golpe ao longo do braço,
aproveitou o instante em que o outro puxava atrás a espada para voltar a atacar, inclinou-se para a frente e espetou a sua lâmina no corpo do oponente, por baixo
do braço que empunhava a espada. O golpe foi bem dirigido, e atravessou vestes, carne e costelas antes de penetrar pelos pulmões e lhe trespassar o coração. O homem
dobrou-se para a frente, caindo sobre Macro antes de largar a espada por entre os dedos. Balbuciou uma maldição e acabou por tombar sobre a parte frontal da sela.
Antes de ter tempo de reagir, Macro viu outro vulto emergir da poeira e carregar sobre ele, com a espada já a rodar pelo ar para o atingir. Conseguiu desviar-se,
enquanto gritava.
- Idiota de merda! Sou romano.
Os olhos do homem esbugalharam-se, em pânico, e ele recolheu a espada e esporeou a montada antes que o prefeito pudesse reconhecê-lo.
- Filho da puta! - Proclamou Macro, antes de olhar em redor e se dirigir a outra figura que parecia um alvo promissor; nesse momento, um dos bandidos passou
por ele a toda a brida, tentando escapar para o deserto. Logo outro o imitou, e depois outro ainda, e os sons da refrega amainaram repentinamente. Macro inspirou
profundamente e gritou aos seus homens.
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- Estão a fugir! Embainhar espadas! Preparar os arcos!
Fez o cavalo dar meia-volta e afastar-se da nuvem de poeira. À sua frente, a encosta estava coberta de bandidos que tentavam salvar a vida, enquanto Simeão e os
seus homens os perseguiam impiedosamente. Quando os auxiliares começaram também a emergir da poeira, o centurião apontou com a espada o inimigo em fuga.
- Acabem com eles! Não os deixem escapar!
Os homens guardaram as espadas, prepararam os arcos e lançaram as montadas atrás dos camelos dos assaltantes do deserto. Os cavalos eram mais rápidos, e depressa
começaram a recuperar terreno, enquanto os soldados ajustavam as setas nos arcos. No último momento detiveram as montadas, apontaram, e retesaram as cordas. A distância
era já curta, e todos os homens tinham sido seleccionados para aquela missão devido à sua perícia com o arco. Por todo o lado, se viram assaltantes a tombar das
selas; alguns, apenas feridos, prosseguiram, com esforço, agarrados às rédeas, até que uma segunda e terceira flecha os atingiram. Pouco mais do que um punhado conseguiu
trepar até ao cimo da crista e desaparecer de vista, embora ainda perseguidos pelos homens de Simeão e por alguns auxiliares.
Macro embainhou a espada e deixou-se cair sobre a sela, percebendo de súbito como estava tudo calmo e silencioso à sua volta. O coração galopava-lhe pelo peito,
e o sangue martelava-lhe aos ouvidos. Tinha a garganta seca e irritada, e voltava a notar como aquela maldita terra era quente durante o dia. A poeira assentava
lentamente no fundo da depressão em que encontravam, e os animais esperavam pacientemente, aguardando que alguém os ordenasse na fila a que estavam habituados e
os levasse a prosseguir jornada. Aos seus pés viam-se os corpos dos que tinham tombado na curta escaramuça, rodeados por manchas escuras de sangue que empapara a
areia. Alguns dos homens de Macro andavam de corpo em corpo, a liquidarem os inimigos ainda vivos com um rápido corte na garganta que os fazia agitarem-se brevemente,
em desespero, antes de perderem a consciência e morrerem. Poucos romanos tinham sido feridos, e nenhum morto, e Macro deu ordens para que fosse erguido um abrigo
provisório para proteger os feridos do sol inclemente. Foi despachado um mensageiro para a estação, para que de lá fosse enviado um vagão para levar os feridos e
para que os homens da caravana fossem ali ter. A maior parte dos feridos sobreviveria por certo. Um homem tinha tido o joelho desfeito por um golpe de espada, e
era claro que a sua carreira militar estava terminada, mesmo que no forte conseguissem salvar-lhe a perna.
Enquanto os auxiliares repunham ordem na caravana, Macro aguardou que o resto dos seus homens e a escolta regressassem. Durante uma hora foram chegando, quer sozinhos
quer em pequenos grupos, cansados
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mas jubilantes perante a completa e rápida derrota que tinham infligido aos ladrões do deserto. os homens reintegraram a caravana e descansaram os cavalos, antes
de os alimentarem e lhes darem de beber. Simeão e os amigos foram os últimos a aparecer, descendo da crista rochosa num grupo compacto, à conversa e rindo a bom
rir. O braço de Abdul tinha sofrido um golpe e tinha sido ligado à pressa, mas o homem estava tão bem disposto que parecia nem sentir qualquer dor. Ao aproximar-se
de Macro, Simeão sorriu abertamente.
- Levaste tempo. - Comentou Macro, algo irritado.
Simeão ignorou o traço de ira na voz do centurião, e respondeu, animado.
- Apanhámo-los todos, menos um, como pediste. A esse só lhe cortámos o nariz, e mandámo-lo de volta, a cavalo. Disse-lhe para avisar todos os ladrões que
vagueiam pelo deserto, que é esse o destino que espera quem se atrever a atacar a rota das caravanas nesta província romana.
- Excelente. Esperemos que eles percebam o aviso.
Tabor aproximou o cavalo do de Macro e, depois de inclinar a cabeça, começou a falar em tom formal.
- Espera! Espera! - Macro fez sinal ao outro para parar, e virou-se para Simeão. - O que está ele a dizer?
Simeão traduziu.
- Tabor quer agradecer-te por esta vitória sobre a escumalha que tem atacado a rota para a Decápole. E afirma que ele e todos os cartéis de caravanas de Petra
ficam em dívida para contigo, centurião.
- Oh, está bem. - Macro encolheu os ombros, pouco impressionado. - Diz-lhe... - Franziu o sobrolho, inseguro sobre a melhor forma de responder num tom semelhante.
- Diz-lhe que, daqui em diante, a guarnição romana de Bushir garantirá a segurança desta rota. Não haverá mais esquemas corruptos. E que espero que isto ajude a
restabelecer boas relações entre Roma e a Nabateia.
Tabor assentiu graciosamente quando Simeão lhe traduziu as palavras de Macro, e voltou a falar.
- Lembra-te, centurião, se alguma vez precisares da sua ajuda, não tens mais do que enviar uma mensagem à casa de Tabor, em Petra.
- Sim. Bom. É muito gentil da sua parte. - Macro fez um gesto na direcção da caravana. - Entretanto, vamos acompanhá-los até Filadélfia. Depois, regresso
ao forte. Agora que este flanco está consolidado, é tempo de pensar em Bano. - Olhou para Simeão. - Não vou fingir que vai ser fácil. Haverá mais combates no futuro.
Dava-me jeito um homem como tu do nosso lado. Interessado?
- Centurião, será uma honra.
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Depois de os feridos terem sido colocados num vagão coberto que foi enviado de volta a Bushir sob a protecção de um dos esquadrões de Macro, a caravana prosseguiu
a caminho de Filadélfia. A viagem ainda levou mais dois dias, durante os quais nenhum sinal de assaltantes foi notado. O deserto espraiava-se em redor, numa calma
desoladora, e os homens e animais da caravana pareciam ser as únicas criaturas vivas a atravessar aquele fim do mundo. Ao entardecer do segundo dia alcançaram uma
pequena povoação junto a um oásis. Crianças irromperam do meio das casas assim que notaram a aproximação da caravana, seguindo em animada correria ao lado dos cavaleiros.
Macro e os seus homens tinham-se libertado dos disfarces, e os soldados romanos provocavam a curiosidade dos miúdos, que não paravam de os apontar e descrever em
voz alta, excitados. A caravana acampou junto ao oásis, e os amigos de Simeão compraram algumas ovelhas a um dos aldeãos, mataram-nas e assaram-nas, oferecendo um
festim de despedida aos seus amigos romanos. À medida que as chamas se apagavam e os homens, extenuados mas bem alimentados, se enrolavam nos seus cobertores para
passar a noite, Macro mantinha-se deitado de costas, as mãos por trás da cabeça, contemplando o céu repleto de estrelas. A ocidente, na direcção de Bushir, via-se
um fino crescente de Lua, que o fez recordar o brilho da lâmina curva que Murad tinha empunhado, no dia da emboscada. A justaposição entre essa imagem e a forma
como a Lua flutuava sobre o distante forte da Segunda Ilírica trouxeram-lhe à mente todos os problemas e dificuldades que ele e Cato teriam que enfrentar nos dias
que se aproximavam; de repente, apeteceu-lhe deixar para trás aquele idílico oásis e estar de volta ao forte, onde os homens precisavam dele.
Na manhã seguinte, os cavaleiros romanos estavam em cima das montadas mal o sol acabava de despontar no horizonte. O ar estava frio, e a respiração dos homens e
dos animais dava origem a rolos de vapor que se espalhavam pela paisagem ainda sombria. Macro e Simeão trocaram saudações.
- Vejo-te no forte, então. - Disse o romano em tom de pergunta, o que levou o interlocutor a anuir.
- Lá estarei, centurião. Tens a minha palavra.
- Óptimo. Precisamos de homens como tu ao nosso lado.
Nada mais havia a dizer. Macro ordenou aos seus homens que se pusessem em marcha, e a coluna deixou o oásis, tomando a estrada que levava ao forte Bushir. Três dias
depois aproximavam-se das espessas muralhas do forte, e Macro reparou imediatamente que havia mais homens nelas dispostos do que o habitual num turno de sentinelas.
A medida que a coluna se acercava dos portões, estes foram abertos, e lá estava Cato, de lado, à sua
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espera. O prazer que Macro sentiu ao rever o amigo depressa foi substituído pela preocupação, ao notar a expressão de cansaço e tensão que este mostrava. Percebeu
imediatamente que algo se passara.
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- O Póstumo escapou.
Cato e Macro estavam de pé a um lado do portão enquanto os homens exaustos e cobertos de poeira recolhiam à fortaleza. Alguns ainda exibiam ligaduras sangrentas
a cobrir as feridas que tinham sofrido no combate contra os salteadores do deserto.
- O que é que aconteceu? - Indagou Macro.
- Adoeceu. Ou assim parecia. Desfaleceu, começou a vomitar e a espumar da boca. O oficial de dia mandou-o para o hospital. Quando fui informado da situação,
na manhã seguinte, já ele tinha escapado. Com um dos cavalos. Deve ter-se escapulido por uma das portas de serviço. Mas quando fui verificar, encontrei-as todas
trancadas por dentro.
- Pois, mas com certeza que ele não saltou por cima da muralha; portanto, alguém lhe abriu a porta.
- Sou capaz de arriscar que alguns dos oficiais ainda são leais ao Escrofa. - Comentou Cato, calmamente.
- Escrofa? Esse ainda está por cá?
- Sim. Com guarda reforçada, agora.
- Quando é que aconteceu a fuga?
- No dia a seguir à sua partida.
Macro encarou o jovem, e os dois amigos trocaram um olhar que denunciava a imediata compreensão da situação.
- Merda. - Concluiu Macro, sem emoção. - Sabes onde é que ele foi, não é?
- Apostava que para o norte, para a Síria. Ao encontro de Longino.
- Como é evidente. - Macro deu uma palmada na perna. - Se se despachar, pode chegar lá em quatro ou cinco dias. Podemos portanto assumir que a esta hora já
Longino sabe que eu tomei o comando. E a autoridade imperial que está por trás disso, e tudo o que ela implica.
Cato assentiu.
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- Como é que acha que ele vai reagir?
- Foda-se, sèi lá. - Repentinamente, Macro sentiu-se mais cansado do que nunca, com as notícias deste novo contratempo. Precisava de descansar. Um banho e
umas horas de repouso, decidiu. Mas logo afastou tal necessidade. Era o prefeito interino daquela coorte, e não se podia permitir a lassidão enquanto estava no comando.
Havia demasiado em jogo. Esfregou a face e voltou a olhar para Cato. - O que é que tu pensas?
- Assim que Longino perceber em que pé estão as coisas, vai querer falar connosco. Para ver se descobre o que é que nós sabemos, e do que é que suspeitamos.
O meu palpite é que a esta hora já despachou um mensageiro a convocar-nos para lhe irmos fazer um relatório em Antioquia.
- Que pode chegar a qualquer momento.
- Pois.
- Merda. - Macro abanou a cabeça. - Uma chatice atrás da outra. Não podemos perder esse tempo todo. Pelo menos enquanto Bano andar por aí à solta.
- Mas também não podemos ignorar a convocatória. A não ser que queiramos pôr em causa a autoridade de um governador.
- A nossa autoridade sobrepõe-se à dele, parece-me.
- Evidentemente. Mas não me parece que Narciso apreciasse particularmente que confrontássemos abertamente o mais poderoso oficial dos que estão longe de Roma.
Acabávamos por precipitar precisamente os acontecimentos que tínhamos vindo investigar e impedir de ocorrer. Se Longino exigir a nossa presença, parece-me que será
melhor que vamos lá apresentar o relatório.
- Talvez. - Foi a resposta de Macro, antes que lhe ocorresse uma esperança. - Bom, pode ser que o Póstumo tenha sido apanhado pelos homens de Bano. No fim
de contas, era um viajante solitário. E duvido muito que alguma das aldeias aqui à volta lhe oferecesse abrigo para a noite.
- Se Bano o tivesse apanhado, suponho que já o saberíamos. Ou teríamos recebido um pedido de resgate, ou ele teria sido usado como exemplo, para apreciarmos
o destino de qualquer romano que lhe caia nas mãos. Seja como for, isso é apenas uma forma de nos iludirmos. Temos que acreditar que ele conseguiu passar. E que,
a qualquer momento, vamos saber qual a resposta de Longino.
- A não ser que o mensageiro seja apanhado pelo Bano.
- Bom, isso já é exagerar. - Um sorriso aflorou brevemente aos lábios de Cato, mas logo a expressão séria regressou. - Vamos supor que a convocatória nos
encontra mesmo. Nesse caso, convém que nos asseguremos de que a coorte ficará em segurança na nossa ausência.
- Como em segurança?
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- Ou seja, de que o Escrofa não voltará a assumir o comando. O melhor será levá-lo connosco. E deixar o Parmenião como prefeito interino.
- Achas que podemos confiar nele?
- Acho que sim. E outra coisa. Se formos mesmo convocados pelo Longino, convém termos uma conversa com o Escrofa e descobrir até que ponto é que ele está
metido na conspiração, bem como o que pode ele dizer-nos sobre o governador.
- Muito bem, haveremos de falar com o Escrofa. - Concordou Macro. - Mas só depois de tomar banho e descansar um bocado. Nesta altura estou tão cansado que
nem consigo pensar a direito.
Cato franziu o sobrolho, algo desapontado, mas nesse momento apercebeu-se de que o amigo estava realmente extenuado.
- Muito bem, senhor. Assegurar-me-ei de que não é perturbado.
Macro sorriu e deu um toque amigável no braço do jovem.
- Obrigado.
Virou-se e dirigiu-se pesadamente para os seus aposentos, antes de estacar e olhar para trás, na direcção de Cato.
- E houve alguns desenvolvimentos quanto ao Bano?
- Nada enquanto esteve ausente, senhor. Aliás, há já algum tempo que os rebeldes não são avistados. Tenho algumas patrulhas montadas à procura deles neste
momento. Devem regressar amanhã. Se houver novidades, saberemos nessa altura.
Macro concordou com um gesto cansado, e retomou o caminho para o conforto dos aposentos do prefeito.
Nessa noite, Macro e Cato desceram pelos estreitos degraus que conduziam às celas, localizadas sob um dos cantos do edifício do comando. Cato levava uma tocha para
iluminar o caminho, e a luz reflectia-se nas pedras mal acabadas das paredes enquanto os dois oficiais percorriam a fila de celas. Só uma estava ocupada, a última,
com dois guardas à porta. Estavam sentados em bancos, entretidos a jogar aos dados, e quando se aperceberam da aproximação de Macro e Cato saltaram e puseram-se
imediatamente em sentido. A
- A vontade. - Ordenou Cato, e indicou a porta. - Como está o prisioneiro?
- Calmo, senhor. Já desistiu de exigir comida e melhores instalações.
- Excelente. - Cato anuiu. - Porque não as vai ter. Abram a porta. Temos que falar com ele.
- Sim, senhor. - O guarda levantou a pesada barra de ferro, abriu o ferrolho e empurrou a porta. Cato baixou a cabeça para passar pela portada e entrou, seguido
por Macro. O quarto era pequeno mas limpo, uma cama
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de cada lado e um balde junto à porta. Ao cimo da parede havia uma janela com grades, por onde entrava alguma luz, durante o dia. À noite, como naquele momento,
havia uma lamparina de óleo num suporte sobre a cama onde se via Escrofa, recostado, a tentar ler um rolo de pergaminho à fraca e trémula luz. Ao vê-los entrar,
sentou-se e olhou-os, desconfiado.
- O que querem?
Macro sorriu.
- Só uma pequena conversa, Escrofa. Nada mais. - Sentou-se na outra cama. Cato colocou a tocha que empunhava num suporte na parede e sentou-se também ao lado
de Macro. O olhar do antigo prefeito saltava de um para outro, nervoso.
- Não há razão para alarme, Escrofa. - Confortou-o Macro. - Só queremos falar.
- Por agora. - Acrescentou Cato, com ar ameaçador.
- Já chega. - Disse Macro, um tanto irritado. - Não é preciso assustá-lo.
- Não me assustam. - Escrofa tentou parecer valente, encarando Cato sem receio. - Não me metes medo, rapazola.
Cato inclinou-se para a frente e fez menção de empunhar a adaga, o que fez Escrofa encolher-se com um gemido de pânico.
Macro deitou a mão ao braço do amigo.
- Tem calma!
Durante um longo momento os três homens ficaram imóveis: Cato inclinado para a frente, com um olhar de intensa e determinada fúria, Escrofa a observá-lo ansiosamente,
e Macro, a lutar para se manter sério perante a actuação do amigo. Ou, pelo menos, perante o que julgava não passar de fingimento. Pigarreou.
- Escrofa, chegou a altura de seres honesto connosco.
- Honesto?
- Sim. Estou certo de que não é fácil para ti, mas desta vez vais ter que nos contar toda a verdade. Ora muito bem, dada a forma pouco usual como te substituí
na posição de prefeito da Segunda Ilírica, e uma vez que no documento que viste estava bem expressa a autoridade pessoal do Imperador, presumo que já percebeste
para quem é que eu e o Cato estamos a trabalhar.
- Narciso.
- Esse mesmo. E como também sabes, ele é responsável pela segurança do Imperador. Portanto, não te deve ser difícil perceber que ele se sinta um tanto ou
quanto preocupado com a forma como as coisas se estão a passar aqui no oriente. Sobretudo com as pouco razoáveis ambições do teu amigo, Cássio Longino, o governador
da Síria.
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i
As sobrancelhas de Escrofa franziram-se, traduzindo o espanto que
sentia.
- O que queres dizer com isso?
- Vá lá, não nos tomes por parvos, Escrofa. Longino anda a ver se fomenta uma rebelião em larga escala, para justificar a chamada de mais legiões para reforçar
o seu exército. Por isso é que te pôs à frente da Segunda Ilírica. A tua função era acicatar os locais, levá-los à revolta. E, admito-o, fizeste um bom trabalho.
E ainda conseguiste reunir uma fortuna pessoal interessante, graças ao esquema de extorsão que tu e o Póstumo montaram. Chatear os nabateus deve ter sido visto pelo
Longino como um verdadeiro bónus. - O tom de Macro endureceu. - Pelo caminho que as coisas tomaram, diria que vamos ter algum derramamento de sangue nos próximos
dias, se não meses. Graças a ti e ao Póstumo. Talvez devesses meditar nisso.
Escrofa abanou a cabeça.
- Não tenho a mais pequena ideia do que estás para aí a dizer.
- Mentiroso! - Cato cuspiu-lhe em cima. - Estás metido na conspiração! Até ao teu nojento pescoço.
- Não! Não tenho nada a ver com esses planos.
- Uma porra é que não tens! - Contrapôs Macro. - Foste nomeado para o comando da coorte pelo Longino. Ele deu-te instruções precisas para provocares a revolta,
e tu fizeste tudo o que ele pediu e mais ainda. Não tentes sequer negá-lo.
- Mas não é verdade! - Gemeu Escrofa. - Nunca me deram ordens dessas. Juro-o. Era suposto ser uma nomeação temporária. Ele disse que ficaria bem no meu registo
militar. Disse que me havia de ajudar a conseguir o comando de uma coorte colocada num sítio melhor do que este.
- Não acredito em ti. - Ripostou Macro. - Disseste-me que aguardavas que a nomeação se tornasse definitiva.
- Menti! Eu só era para ser prefeito até que o tipo que ele queria no lugar fosse aprovado.
- E quem era essa personagem misteriosa? - Interrompeu Cato. - Quem é que ele queria como prefeito?
Escrofa pareceu mais uma vez admirado.
- O Póstumo, claro. Quem mais?
Macro e Cato entreolharam-se, surpresos, e o veterano franziu o sobrolho.
- O Póstumo? Isso não faz sentido. O governador podia ter nomeado quem muito bem entendesse como prefeito interino. Se queria o Póstumo, porque raio não o
nomeou logo? Estás a mentir, pá.
- Não. Porque o faria?
- Para proteger o teu pescoço maldito. O Póstumo era um centurião
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sem qualquer experiência. Se Longino estivesse à espera que ele chegasse a comandante de uma coorte de auxiliares pelas vias normais, tinha muito que esperar. Porque
é que insistes em mentir-nos?
- Não estou a mentir, já disse. - Afirmou solenemente Escrofa.
- Estás, sim. Declaradamente. E já é altura de perceberes que isto não é nenhuma brincadeira. Há demasiado em jogo. Portanto, agora vais dizer-nos tudo o
que queremos saber, e sem aldrabices. Mas para isso, vou ter que te fazer compreender que estamos a falar muito a sério. Cato, passa-me a adaga.
Cato tirou a lâmina da bainha com um ligeiro raspar, e entregou-a ao amigo.
- Obrigado. - Macro sorriu e depois lançou-se repentinamente pelo espaço entre as camas, agarrando Escrofa pelo pescoço com a mão livre e empurrando-lhe a
cabeça contra as pedras pontiagudas da parede da cela. - Cato, agarra-lhe as mãos!
Cato levou um instante a recuperar do súbito ataque do amigo ao prisioneiro. Então inclinou-se, agarrou na mão esquerda do homem e manteve-a presa nas suas, apesar
dos esforços de Escrofa para se libertar. Macro empurrou brutalmente o punho da adaga contra os rins do prisioneiro, que gemeu em agonia.
- Pára de te debateres, entendido? - Rosnou Macro, e esperou que o outro assinalasse o acordo com um gesto de cabeça. Virou-se então para Cato. - Mantém-lhe
a mão ali contra a parede, bem à vista. Isso. Muito bem, Escrofa. É a tua última oportunidade. Ou me dás as respostas que quero, ou corto-te o polegar. E para começar...
Manteve o pescoço do ex-prefeito bem apertado numa das mãos, enquanto com a outra pegava firmemente na adaga e aproximava a lâmina larga da junção entre o polegar
e o resto da mão de Escrofa. Os olhos do homem estavam esbugalhados de terror, e durante largos momentos não conseguiu emitir mais do que alguns sons de pânico.
Finalmente retomou algum controlo.
- Juro-te - pela minha vida - que não sei nada! Nada! Juro!
Macro afastou a lâmina e perscrutou a face do prisioneiro, avaliando-o. Deu um estalo com a língua.
- Lamento, mas não estou convencido. Talvez a perda de um dedo te convença a falar a verdade. Cato, agarra-o bem.
Voltou a aproximar a lâmina, pressionando-a contra a pele do outro. Esta rasgou-se, e um fino fio de sangue surgiu, enquanto Escrofa lançava um grito. Macro preparou-se
para cortar através de músculo e osso.
- Espere. - Interveio Cato. - Parece-me que ele está a dizer a verdade.
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- Não, mente.
- Não, não minto! - Protestou Escrofa com voz sumida.
- Tu, calado! - Macro sacudiu-o pelo pescoço, e voltou-se para Cato. - O que é que te faz pensar que este verme nos está a dizer a verdade?
- Acho que ele foi tramado pelo governador. Pense bem. Longino é astuto, e sempre que pode não deixa rasto da sua intervenção. Portanto, manda para cá o Póstumo,
para agitar as coisas com a população local. Só que o anterior prefeito não alinha na jogada, e torna-se um obstáculo para o plano. Logo, o Póstumo trata-lhe da
saúde. E o Escrofa é nomeado para a posição...
- Porquê ele?
- Porque o Longino sabe perfeitamente que ele não passa de um idiota vaidoso e ganancioso. Aposto que lhe disse que o tinha escolhido por ser um oficial promissor.
E que o aconselhou a ser duro com os locais, para deixar bem vincado o material de que era feito. Não tenho razão?
Escrofa anuiu em silêncio.
- Portanto, o Escrofa aparece por cá, e o Póstumo faz dele o que quer. Encoraja-o a maltratar os locais, dá-lhe entrada no esquema de protecção das caravanas,
e age como o verdadeiro comandante da coorte. E se o plano de Longino acabasse por falhar, a culpa do estado a que as coisas chegaram poderia ser sempre atribuída
ao Escrofa. A revolta? Nasceu por causa do comandante da coorte, que infelizmente não viveu o suficiente para voltar a Roma e enfrentar uma investigação séria. Longino
é visto como o salvador da situação, os judeus vêem como somos capazes de punir o responsável pela situação, mesmo sendo um dos nossos, e o Póstumo continua na mesma
posição. Fosse como fosse, Longino ganhava. - Cato abanava a cabeça. - Apanhámos o tipo errado. O Póstumo é que nos interessa. É ele o agente de Longino.
Macro ponderou as palavras do amigo; finalmente libertou Escrofa e afastou-se, voltando a tomar assento na outra cama. Devolveu a adaga a Cato e acenou na direcção
do antigo prefeito.
- Bom, então o que fazemos com este?
- Mantemo-lo aqui em segurança. Para o caso de ser necessário como testemunha contra Longino. - Cato deitou um olhar ao prisioneiro.
- Já percebeste o que se passou? Foste usado, o tempo todo.
- Não acredito. - Escrofa continuava incrédulo. - O Póstumo é meu amigo. Meu patrono.
- Grande amigo! - Desdenhou Macro, olhando para Cato com um ar divertido. - Dá para perceber porque é que este inteligente foi escolhido para o lugar, oh
se dá.
- Por acaso. - Cato não tirava os olhos de Escrofa. - Ouve, sabes
193
muito bem que o que eu disse faz sentido. Nada deves a Longino. O tipo traiu-te. Tal como trairá Roma e o Imperador, se tiver oportunidade para isso. Tens que nos
ajudar.
- Ajudar-vos? - Foi a vez de Escrofa sorrir. - Porque havia eu de fazer isso? Antes de vocês aparecerem, tudo me corria bem. Agora, fui removido do meu comando,
atirado para esta cela, torturado. Porque é que vos havia de ajudar?
- Ele tem uma certa razão. - Admitiu Macro.
- Pois, mas também não tem escolha. - Retorquiu Cato. - Longino não se pode dar ao luxo de o deixar vivo. Ele sabe demais, mesmo que não acredite nisso. Ou
nos ajuda, ou é como se já estivesse morto. É simples.
Escrofa olhou para ele, e mordeu o lábio.
- Estás a dizer a verdade, quanto ao Longino?
- Podes crer.
Escrofa abanou a cabeça.
- Não acredito.
Por momentos ninguém disse palavra, e Macro não conseguiu deixar de sentir alguma pena pelo desgraçado que ocupava a outra cama. Escrofa era o tipo de homem que
não tinha lugar num exército. Era preguiçoso, corrupto, incompetente e demasiado estúpido para ver alguma coisa para lá dos seus sonhos de glória. Mas ainda podia
vir a tornar-se útil. Talvez ainda se redimisse. Levantou-se.
- Bem, Cato, vamos embora. Aqui já não aprendemos nada.
No instante antes de a porta da cela se fechar de novo, Escrofa lançou-lhes um apelo.
- Por favor, deixem-me sair daqui. Juro que não causarei quaisquer problemas.
Macro considerou o pedido um breve instante, e abanou a cabeça.
- Lamento. Vou precisar de toda a lealdade e obediência pronta dos homens. Se te virem a passear pelo forte, vão ficar confusos. Tens que ficar aqui, longe
da vista e da lembrança. Pelo menos por agora. É para o bem de todos.
Fechou a porta e voltou a colocar a tranca no lugar, enquanto Escrofa lhe lançava insultos. Macro virou-se para os guardas.
- Se ele continuar com isto, têm a minha permissão para ir lá dentro e lhe darem uns tabefes.
- Sim, senhor. Obrigado, senhor.
- Cato, vamos.
Enquanto subiam as escadas de volta ao piso térreo do edifício, Cato rompeu o silêncio.
- E agora? Longino já deve saber que o Narciso desconfia dele. Vai
194
tornar-se ainda mais cauteloso; aliás, aposto que a esta hora já deve estar a tratar de apagar os rastos que possam levar a ele. Não temos muitas provas contra ele.
Só o pouco que o Escrofa nos pode dar, garantir que recebeu ordens para tratar duramente os locais. O máximo de que o Narciso poderá acusar Longino será de incompetência
e casmurrice.
- O que já chegará para o afastar do posto.
- Talvez.
- Bem, o que sugeres então?
- Parece-me que o melhor será concentrarmo-nos no Bano. Se conseguirmos destruir as forças rebeldes poderemos devolver a paz à região. E, nesse caso, arruinamos
qualquer tentativa de Longino para pedir reforços.
Macro concordou.
- Bom, então que seja o Bano. De manhã conversamos sobre isso. Agora, estou tão cansado que nem consigo pensar bem nas coisas, caraças. Será boa ideia também
tirares uma boa noite de sono, Cato. Tenho a sensação de que tão cedo não voltaremos a ter oportunidade de descansar decentemente. Portanto, o melhor é aproveitarmos
enquanto podemos.
- Sim, senhor.
Macro sorriu ligeiramente.
- Não sejas parvo. Quando não há ninguém por perto, podes pôr as formalidades de lado.
Cato fez um sinal na direcção de algo sobre o ombro de Macro, e este virou-se, reparando então na silhueta discreta de um dos porta-estandartes, que montava guarda
à entrada da sala onde eram mantidos os estandartes da coorte. Limpou a garganta e retomou o discurso oficial.
- Muito bem, centurião. Vou-me deitar. Vemo-nos de manhã.
- Sim, senhor. - Cato fez a saudação regulamentar e Macro virou-se e afastou-se, saindo do edifício e dirigindo-se aos seus aposentos, estafado. Quando chegou
ao quarto do prefeito deixou-se cair em cima da cama e fechou os olhos por um instante. Caiu imediatamente num sono profundo. Tão profundo que nem notou quando o
escravo de Escrofa lhe retirou as botas, lhe pôs as pernas na cama e o cobriu com um cobertor espesso. Quando o escravo saiu e fechou a porta já as profundas notas
do ressonar de Macro ecoavam pelo quarto.
Acordou tarde, já o sol ia alto, e amaldiçoou-se imediatamente por não ter dado ordens para o despertarem pela alvorada. Não se ia deixar contaminar pelos hábitos
do anterior prefeito. Orgulhava-se de viver de forma tão dura como os homens que comandava, e portanto ao sair do quarto ia de mau humor, o que o levou a ignorar
a refeição que o escravo lhe preparara e deixara na sala. Cato esperava-o no gabinete do prefeito, e
195
debruçava-se sobre um mapa esticado em cima da secretária quando ele entrou.
- Raios partam, porque é que ninguém me acordou?
- Senhor, sem ordens específicas, não podemos perturbar o descanso do prefeito, a menos que surja alguma emergência. Além disso, precisava do descanso.
- O que preciso ou não, sou eu quem decide, de acordo?
- Sim, senhor.
- Óptimo. - Macro deitou uma olhadela ao mapa. - Já estás a planear alguma movimentação contra Bano?
- Estava só a pensar, senhor.
- Ah sim? Isso parece-me perigoso. - Sorriu ao ver a expressão magoada do jovem. - Quando começas a pensar, Cato, já sei que vamos ter sarilhos. Diz lá então.
Cato concentrou-se e voltou a olhar para o mapa. Fez um gesto, abarcando as aldeias situadas entre Bushir e o rio Jordão, quase alinhadas.
- Dadas as dimensões da força que julgamos estar à disposição do Bano, ele vai precisar de garantir o acesso a água e comida. Já nada tem a temer das nossas
patrulhas. O único perigo para ele é ser encurralado por toda a força da coorte e obrigado a combater nos nossos termos. O meu palpite é que ele tenha deixado as
colinas e tenha acampado junto a uma destas aldeias.
- E como é que sabes disso?
- Não sei. Pelo menos até que as patrulhas a cavalo regressem. Dei ordens para baterem a área. Devem chegar hoje. Logo ficaremos a saber se o encontraram.
Se for o caso, teremos de arranjar maneira de o forçar a um combate em campo aberto, senhor.
- Não vai ser fácil. - Resmungou Macro. - Já sabes como combatem estes bandos. Ataque e fuga, é o estilo deles. E então? Alguma ideia brilhante?
Cato inclinou a cabeça para o lado, e considerou a situação. Antes que pudesse responder, ouviu-se um tropel de botas no exterior da sala, seguido de um bater urgente
à porta.
- Entre!
Um ordenança entrou e fez a saudação.
- Senhor, uma informação enviada pelo centurião de serviço.
- E que é?
- Aproxima-se do forte uma coluna montada, senhor.
- Deve ser uma das nossas patrulhas, Cato. Boa. Com alguma sorte, vamos ter notícias do Bano.
O ordenança interrompeu-o.
196
- Senhor, peço desculpa, mas os cavaleiros vêm do norte. E as patrulhas foram todas para ocidente.
- Do norte, então? - Macro começou a sentir um peso no estômago. Virou-se para Cato. - Será melhor irmos ver o que se passa.
Quando chegaram ao torreão sobre o portão norte, a pequena coluna já só estava a pouco mais de um quilómetro do forte, e notavam-se perfeitamente os reflexos do
sol nas armaduras e nos capacetes polidos. Cato protegeu os olhos com a mão e esforçou a vista, apercebendo-se de um estandarte vermelho a esvoaçar sobre a cabeça
da coluna.
- São dos nossos. Pelo menos, são romanos.
- Então o que raio estão a fazer, vindos daquela direcção? - Quis saber Macro.
- Não faço ideia.
Observaram em silêncio a aproximação dos cavaleiros, até que a identidade dos mesmos se tornou clara; foi com um arrepio nas entranhas que Cato os viu afrouxarem
a corrida das montadas e percorrerem a passo as últimas centenas de metros que os separavam do portão. À frente da coluna vinha um homem com uma placa peitoral ricamente
trabalhada. Trazia uma capa vermelha, e um capacete prateado, ornado com uma pluma também vermelha.
- É o governador. - Murmurou Macro. - O sacana do Longino, em carne e osso.
- Ele mesmo, e repare bem em quem vem ao seu lado.
Os olhos de Macro encontraram um oficial que seguia próximo do governador, ligeiramente atrás, e ele inspirou profundamente.
- O filho da puta do Póstumo.
197
XXI

Cássio Longino era suficientemente astuto para não enfrentar Macro antes de chegarem à privacidade dos aposentos do prefeito. Quando o ordenança fechou a porta,
o governador da província da Síria atravessou a divisão até à secretária e instalou-se no cadeirão. Observou Macro e Cato, que se tinham deixado ficar de lado. Póstumo
tinha-se esgueirado para o lado contrário da sala e a sua sombra derramava-se sobre o soalho, já que se tinha colocado junto à janela. Longino deixou-se estar a
apreciar Macro antes de falar.
- Segundo o que me disse o centurião Póstumo, assumiste o comando desta coorte sem que possuísses autoridade para tal. E atiraste-o, a ele e ao prefeito Escrofa,
para uma cela de prisão. É verdade?
- Senhor, se foi isso que ele lhe contou, então o Póstumo não passa de um miserável mentiroso. - Macro sorriu. - Como é evidente, agora bem desejo tê-lo de
facto atirado para a prisão. Talvez assim ele não tivesse conseguido raspar-se na primeira oportunidade.
Um sorriso perpassou pela face de Longino.
- Não me parece uma atitude muito construtiva, essa. Se queremos chegar ao fundo desta questão, precisamos que sejas mais cooperante, centurião Macro. Passei
dois dias na sela e, uma vez que tenho uma província para governar, apreciava bastante que despachássemos este assunto, de modo a poder dedicar-me aos meus deveres.
- Tenho a certeza disso, senhor.
- Espero bem que não seja insolência, isso que detecto na tua voz.
- Não, senhor. É apenas a minha forma de falar. Sou um soldado há demasiado tempo.
Longino perscrutou-o com o olhar.
- Não te atrevas a tentar gozar comigo. Não tolerarei essa atitude... Sei que tens em tua posse um certo documento. Que, na tua opinião, te dá poderes para
destituir o prefeito que eu nomeei e tomares o seu lugar.
198
- É verdade, senhor.
- Nesse caso, gostaria de o ver.
- Muito bem, senhor. - Macro indicou um pequeno cofre, próximo da secretária. - Se me permite...
- Faz favor. - Longino reclinou-se na cadeira enquanto Macro se aproximava, abria o cofre e retirava o estojo de cabedal que protegia o pergaminho. Abriu-o,
extraiu o documento e colocou-o sobre a secretária, em frente a Longino. O governador pegou-lhe como se não estivesse interessado no conteúdo, desenrolou-o e deu-lhe
uma olhadela rápida. Depois voltou a colocá-lo sobre a mesa.
- Bem, centurião Macro e centurião Cato, as vossas credenciais são insuspeitas. O documento parece genuíno, e nesse caso possuem toda a autoridade para procederem
como fizeram.
Póstumo, que estivera a observar a cena com um ténue ar de vitória, deu um pulo, e aproximou-se também da mesa.
- Senhor, devo protestar! Sois o governador da Síria, nomeado pelo próprio Imperador. Estes dois desafiaram de forma evidente a vossa autoridade.
Longino batia os dedos sobre o pergaminho.
- Nos termos deste documento, a autoridade deles sobrepõe-se à minha. Portanto, as suas acções foram legais, e apreciaria sobremaneira se, daqui em diante,
te calasses e esperasses que te pedissem para falar, centurião Póstumo.
O indigitado abriu a boca para continuar com os protestos, mas imediatamente reconsiderou e deixou-se estar em silêncio. Com um gesto desalentado da cabeça, recuou
de forma atabalhoada para junto da janela.
- Assim é melhor. - Longino sorriu. - Ora bem, centuriões Macro e Cato, estamos numa situação deveras invulgar. Não é habitual que oficiais da vossa graduação
surjam numa província longínqua com uma autorização do Imperador debaixo do braço que lhes permite agirem de acordo com o próprio julgamento. Portanto, ficar-vos-ia
muito reconhecido se me explicassem o que de facto se passa aqui.
Macro virou-se para Cato e franziu um sobrolho. Era, de facto, uma situação embaraçosa. Tinham sido enviados de Roma para conduzirem uma discreta investigação sobre
as actividades do governador da Síria mas desde que tinham posto o pé em Jerusalém que a missão se tinha visto afligida por uma série de azares. Se Macro não tivesse
perdido a carta original de nomeação, aquela situação poderia ter sido evitada. Naquelas circunstâncias, tinham-se visto obrigados a recorrer à carta do secretário
imperial, e tinham portanto sido forçados a revelar que agiam com a autoridade
199
directa do Imperador Cláudio. Cato compreendeu que já nada havia a ganhar se negassem a evidência.
- Senhor. - Aconselhou a Macro. - Penso que será melhor revelarmos tudo.
- O quê? - Macro não apreciou a sugestão. Como raio podia ele dizer na cara a um dos mais altos agentes da administração romana que o Imperador suspeitava
que ele se preparava para o trair? - Estás doido?
- Centurião Macro. - Interrompeu Longino, que pareceu lembrar-se então de algo e se fingiu embaraçado. - Peço desculpa. Prefeito. Parece-me que seria muito
melhor que todos falássemos abertamente. Já nada há a esconder. E penso que seria bom começar por me explicar o que estão exactamente a fazer aqui na Judeia.
Macro engoliu em seco.
- Muito bem então, senhor. Uma vez que assim o deseja. Narciso recebeu informações de que se preparava para fomentar uma revolta no leste, de forma a obter
reforços para as suas forças. A mesma fonte garantiu que a sua intenção era a de usar esse exército para depor o Imperador e reclamar para si o manto púrpura.
Seguiu-se um longo silêncio, antes de Longino resolver adoptar uma expressão de divertimento.
- Absolutamente fantástico. Quer-me parecer que alguém quis pregar uma boa partida ao nosso amigo Narciso.
- Bem, senhor, então ele não lhe está a achar piada nenhuma. Foi por isso que fomos enviados. Para avaliar se são realmente essas as suas intenções.
- E quais são as vossas conclusões?
Macro limpou a garganta. Há muito tempo que não se sentia tão nervoso.
- Por aquilo que pudemos ver até agora, diria que a conduta do governador da Síria parece confirmar a veracidade das acusações que lhe foram feitas.
- Dirias portanto isso? - Respondeu Longino, sem emoção. - Se é isso que pensam, será bom que possam justificar essas vossas conclusões. Porque se não o fizerem,
farão o Narciso passar por parvo. E nesse caso, só vos digo que não gostaria de estar na vossa pele. Assim sendo, Macro, que provas tens contra mim? - Antes que
este pudesse responder, Longino ergueu a mão para o manter em silêncio, e prosseguiu. - Deixa-me dizer-te o que tens. Nada. Nada mais do que suspeitas e coincidências.
Não existem quaisquer documentos que comprovem a tua versão dos acontecimentos. Nem testemunhas.
- Não? - Foi a vez de Macro sorrir. - Que tal ali o Póstumo? Estou
200
certo de que Narciso tem às suas ordens alguns homens mais do que capazes de lhe arrancar algumas informações.
- Isso é partir do pressuposto de que ele estará por aí à espera de ser interrogado. - Respondeu Longino também com um sorriso, antes de dirigir um breve
olhar ao indigitado. - Quero dizer com isto, evidentemente, que ele pode fugir, ou esconder-se algures, antes de ser interrogado.
- Sim, claro, era isso que queria dizer. - Zombou Macro. - Com certeza que não quereria perder um leal servidor.
- Precisamente. Portanto, em que ficamos?
Seguiu-se um novo período de silêncio, enquanto Macro ponderava a questão. Não existiam provas concretas contra o governador, e todos ali o sabiam. Tanto como sabiam
que ele liderava de facto uma conspiração contra o Imperador. Foi Cato quem rompeu o silêncio.
- Bom, suponhamos que todos aceitamos o facto de que, neste momento, Narciso nada pode fazer contra si?
Longino arqueou as sobrancelhas.
- E então?
- O próprio facto de nos ter enviado para investigar a situação demonstra que ele deve ter fortes suspeitas, e que portanto tomará todas as medidas para frustrar
qualquer plano que exista para atacar o Imperador.
- Portanto?
- Portanto, não há qualquer hipótese de a Síria vir a receber os tais reforços. Por muito gravosa que pareça a situação para os interesses romanos, Narciso
não lhe atribuirá quaisquer forças suplementares. E nesse caso, qualquer plano que existisse estará condenado ao fracasso. Não concorda, senhor?
- Talvez. Partindo do princípio de que existia esse plano qualquer.
- Partindo deste ponto, creio que ainda se pode salvar algo desta situação.
Longino ficou a olhar para Cato, e depois fez um gesto largo com a mão, convidando-o a continuar.
- Por obséquio, explica-te.
- Sim, senhor. - Cato concentrou-se, e começou. - Conhece perfeitamente o perigo que Bano representa. Se a revolta que ele lidera se espalhar para além desta
região, toda a província da Judeia pode vir a rebelar-se contra Roma. O que pode não saber é que ouvimos alguns rumores de que a Pártia lhe ofereceu assistência.
Com armas, sem dúvida, mas talvez mesmo com homens. Se for esse o caso, a parada torna-se ainda mais alta. Para lá de ter que esmagar a revolta judaica, será necessário
confrontar os partos e persuadi-los a retirarem a ajuda. Se eles tiverem alguma dúvida sobre a sua lealdade ao Imperador, senhor, pode imaginar o que pensarão da
presença
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de um general romano rebelde na sua fronteira; o conflito diplomático pode muito bem servir para a Pártia provocar uma nova guerra com Roma.
- Cato fez uma pausa, repentinamente preocupado com a possibilidade de ter dado asa demasiado livre à sua imaginação. - Essa possibilidade existe realmente,
senhor.
- É muito mais do que uma possibilidade. - Longino apresentara agora uma expressão preocupada. - Os meus espiões dizem-me que tropas partas têm sido avistadas
ao longo do Eufrates, dirigindo-se para Palmira. O embaixador assegura-me de que se trata apenas de exercícios nilitares. Pode não passar de uma infeliz coincidência.
- Talvez, senhor. Mas seria arriscado não tomar precauções para deter esta possível ameaça.
- Se ela existir. Como poderiam eles saber dos planos de Bano para uma revolta generalizada?
- Senhor, estou certo de que também eles têm espiões ao seu serviço.
- Falaste de haver ainda algo a ganhar com a situação. - Relembrou Longino.
- Sim, senhor. Se nos enviar os reforços que nos permitam encontrar e destruir Bano, o perigo que ameaça a Judeia pode ser evitado. O que lhe deixará as mãos
livres para enfrentar a Pártia. Uma demonstração clara de poder militar deve ser o suficiente para os fazer pensar duas vezes antes de quebrarem a paz. Quando a
situação acalmar, pode relatar os seus feitos ao Imperador e ao Senado. Tenho a certeza de que o verão como um herói, pelo menos o suficiente para eliminar qualquer
dúvida que possa restar sobre a sua lealdade, senhor.
Longino ponderou sobre as perspectivas que Cato tão bem lhe apresentara, e depois dirigiu-se ao jovem centurião com um sorriso gélido.
- Centurião Cato, tens uma mente tortuosa. Detestaria ter-te como adversário político. Ou, pior ainda, como um dos conselheiros do Narciso. Nessa condição,
serias um homem a temer, de facto.
- Senhor, sou um soldado. - Respondeu Cato, de forma firme. - Nada mais.
- Assim o dizes, porém este documento desmente-o. Vocês os dois apresentam bastante mais do que aquilo que deixam transparecer. Mas pouco importa. - Tamborilou
os dedos no tampo da mesa, antes de assentir. - Muito bem, faremos como sugeres. Mas há algo que ainda me apoquenta.
- Senhor?
- Aceito que os partos tenham tido informações dos seus espiões sobre Bano, mas como raio poderiam eles saber das suspeitas que o Narciso tinha sobre a minha
pessoa? Só se possuem espiões no coração dos serviços do Império. Ou isso, ou entre o meu pessoal mais próximo... - Um breve
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olhar de suspeita atravessou a face do governador, mas antes que pudesse elaborar a ideia ouviu-se uma nota estridente vinda de uma trombeta, o som atravessando
todo o forte, vindo da direcção do portão de ocidente.
Longino olhou para Macro.
- O que é isto?
- O sinal de alarme, senhor. - Macro virou-se para Cato. - Temos
que ir.
- Esperem! - Longino levantou-se da cadeira. - Vou convosco. E tu também, Póstumo.
No exterior ainda havia homens a sair das casernas, agarrando de passagem no equipamento enquanto se dirigiam às suas posições na muralha. Afastaram-se para abrir
caminho aos oficiais; Macro e os outros chegaram ao torreão a transpirar e ofegantes. Nas duas zonas laterais, as tropas auxiliares formavam por secções, o sol a
rebrilhar nos capacetes polidos enquanto apertavam e ajustavam as últimas peças de equipamento, antes de erguer os escudos e esperar ordens. Várias secções tinham
recebido arcos, e apressavam-se a prepará-los, uma das pontas da arma apoiada na bota e a outra a ser dobrada com esforço, de modo a encaixar na outra ponta da corda.
Os oficiais debruçavam-se no parapeito e tentavam distinguir o que se passava no caminho que levava ao forte; a alguma distância aproximavam-se um grupo de cavaleiros
à desfilada. Uma força muito mais numerosa perseguia-o.
- Quem são estes, com mil raios? - Indagou Longino.
Os dois grupos de cavaleiros ainda estavam demasiado distantes para poder haver certezas mas, à medida que se acercavam do forte, Cato esforçou a vista e conseguiu
identificar detalhes suficientes para perceber quem eram os homens que se aproximavam.
- É uma das nossas patrulhas. - Virou-se, apressou-se a atravessar a torre e deu ordens à secção que vigiava o portão. - Abram! Os homens que vêm em fuga
são dos nossos.
Macro também já tinha apreendido toda a situação, e distribuía ordens aos oficiais na muralha.
- Tenham os arqueiros prontos para cobrira nossa patrulha! Disparem assim que aqueles cabrões estiverem ao vosso alcance!
Quando Macro e Cato regressaram para junto do governador, Longino quis satisfazer a curiosidade.
- Bom, e quem são os perseguidores, afinal?
Cato sentiu um arrepio levantar-lhe os pelos da nuca, enquanto respondia.
- Senhor, temo bem que sejam partos.
203
XXII
- Partos? - Longino olhou-o, perplexo. - Disparate! Podem lá ser partos! Alguma vez viste algum?
- Não, senhor. - Admitiu Cato. - Mas já li sobre eles. Ouvi algumas descrições.
Longino fungou, com evidente desprezo, enquanto os oficiais se viravam para observar a tremenda perseguição que se desenrolava no deserto, a caminho do forte. Quando
os cavaleiros se aproximaram mais, o centurião Parmenião lançou um rápido olhar na direcção de Cato, antes de se pronunciar.
- Senhor, temo que sejam realmente partos.
Os cavaleiros já eram claramente visíveis, e todos os que se encontravam na torre eram capazes de distinguir os capacetes cónicos e as franjas das selas que esvoaçavam
ao vento. De vez em quando, um deles apontava cuidadosamente o arco e disparava uma flecha contra os sobreviventes da patrulha romana que seguiam à sua frente. Mas
a distância que separava os dois grupos era ainda grande, e com os cavalos à desfilada era difícil ter precisão, pelo que apenas um dos projécteis encontrou um alvo
no período em que os oficiais romanos observaram a cena. Um dos cavalos empinou-se de súbito, quase atirando o cavaleiro ao chão, e Cato reparou na haste escura
da seta que lhe rasgara um dos quartos traseiros. Enquanto o cavalo prosseguia à desfilada, a seta bateu na outra perna e foi arrancada, fazendo nascer um jacto
de sangue brilhante. Parecia óbvio que a ferida afectara uma das veias principais, já que o sangue não parava de correr enquanto o cavaleiro tentava desesperadamente
incitar a montada. Depois de mais umas passadas atabalhoadas, as pernas do animal falharam por completo, e ele desabou sobre o peito. O cavaleiro desmontou de imediato
e voltou-se contra os perseguidores, ajoelhando-se por trás do escudo e erguendo a ispada. Os outros aproximaram-se rapidamente, desviando-se do homem
do cavalo moribundo no último instante. Uma rápida chuva de setas fez
204
o auxiliar romano estrebuchar com os impactos, e rodar antes de tombar sobre o solo, morto.
Um lamento colectivo ergueu-se das gargantas dos soldados na muralha, e Macro aproveitou para lhes lançar um incentivo.
- Arqueiros! Não fiquem aí especados! Dêem-lhes - assim que estiverem ao vosso alcance!
Os homens que já tinham os arcos preparados equilibraram-se, inclinaram-se ligeiramente para trás e retesaram os arcos, ajustando o ângulo de disparo para maximizar
o alcance. Esperaram mais um momento, até que a patrulha romana se aproximou o suficiente do forte para garantir que as flechas os sobrevoariam sem perigo. O primeiro
arqueiro libertou a corda, e a sua flecha subiu bem alto no céu, até um momento em que pareceu pairar, quase imóvel; depois começou a descrever a parte descendente
da trajectória, acelerando em direcção ao solo. Da posição de Cato, parecia evidente que iria cair sobre os homens da patrulha que se apressavam para o forte. Cerrou
os dentes enquanto observava o voo. Só no último instante se tornou claro que a flecha ia passar sobre a patrulha, e acabou por se enterrar no solo, com uma pequena
explosão de poeira, mesmo à frente dos perseguidores.
- Estão ao nosso alcance! - Gritou Macro. - Disparem!
Inúmeras flechas foram lançadas para o céu, e quando desceram encontraram os alvos pretendidos. Cato viu um dos atacantes ser atingido na face, lançar as mãos ao
rosto e tombar do cavalo, desaparecendo de imediato sob os cascos dos que o seguiam. Um grito cortou o ar, e os partos dispersaram de imediato, tomando trajectórias
distintas, de forma a dificultar a tarefa aos arqueiros romanos. Mas isso custou-lhes a presa. O portão estava aberto, e os sobreviventes da patrulha não perderam
tempo a recolher à segurança do forte.
- Fechem o portão! - Berrou Macro no instante seguinte, e as dobradiças rangeram à medida que o pesado portão era devolvido à posição de cerrado, culminando
com um choque surdo que se pôde sentir claramente na torre. A resposta dos partos foi imediata: fizeram as montadas dar meia-volta, dirigindo-se para o deserto e
saindo do alcance dos arqueiros. Cato observou-os por momentos, antes de se virar para os outros oficiais.
- Parece-me que a situação acaba de se tornar bastante mais séria.
- Partos. - Resmungou Longino. - Malditos partos. Sempre a merda dos partos.
Macro acenou na direcção de Cato.
- Anda daí. Temos que falar com os tipos que iam naquela patrulha.
Desceram da torre e juntaram-se ao aglomerado de gente que rodeava os sobreviventes, ainda montados. Os apetrechos dos cavalos estavam
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manchados por suor e espuma, e os flancos dos animais arfavam enquanto eles recuperavam do esforço. Macro empurrou os soldados.
- Deixem passar! Saiam daí!
Os homens afastaram-se para dar passagem aos oficiais, que depressa se viram junto ao decurião que comandava a patrulha. O braço do homem tinha um rasgão profundo,
e um enfermeiro tentava juntar as margens da ferida enquanto outro procurava enrolar uma ligadura em volta da região ferida. Interromperam o trabalho ao notar a
presença de Macro, e colocaram-se em sentido. O centurião indicou-lhes que deviam prosseguir na sua tarefa, antes de se dirigir ao decurião.
- Apresenta o teu relatório.
- Sim, senhor. - Olhou para Cato. - Vigiámos as aldeias que nos tinham sido indicadas. Pus cinco homens a observar cada uma. Nãofoi assinalado nada
de estranho ao longo dos dias. E então, ontem à tarde, quando reuni os homens e nos preparávamos para regressar ao forte, avistámos uma nuvem de poeira, para norte,
a descer das colinas. Nesta direcção.
- Colinas? - Interrompeu Cato. - Quais colinas?
- Perto de Heshbon, senhor. Resolvi investigar. Seriam precisos Muitos homens ou animais para levantar toda aquela poeira. Portanto, aproximámo-nos, até conseguirmos
perceber alguns detalhes. Senhor, trata-se de um exército. Milhares de homens, centenas montados, e no fim da coluna um comboio de vagões, suponho que com todo o
material e abastecimentos, embora não tenha conseguido distinguir muito bem. Foi nessa altura que os batedores da coluna se aperceberam da nossa presença. Mal demos
por isso, atacavam-nos por todos os lados, e atiravam-nos flechas. E essa altura percebi que os cavaleiros eram partos. Abateram a maior parte dos meus homens, mas
eu e estes conseguimos esgueirar-nos por uma ravina e fugir-lhes ao crepúsculo. Cavalgámos toda a noite, tentando regressar ao forte. Eles apanharam-nos outra vez
a uns quilómetros daqui. -esclareceu. - Mas cá estamos, senhor.
Macro olhou-o uns momentos, e depois deu-lhe um toque amigável no braço são.
- Podes ir, decurião. Assim que te tratarem dessa ferida, cuida dos teus homens. Vê se têm comida e se vão descansar.
- Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Macro arrastou Cato para longe dos homens, levando-o para perto do portão, e baixou o tom de voz.
- Que é que achas, vêm atacar-nos?
- Com toda a certeza. Bano precisa de uma vitória, para provar que é capaz de derrotar os soldados de Roma. As aldeias aqui à volta só precisam
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da mais ínfima desculpa para se lhe juntarem. Se conseguir destruir-nos, vão-se todos juntar a ele.
- Mas porquê nós? Porque não começar por um posto avançado, com uma guarnição minúscula?
- Bem, nós estamos tão longe de uma força romana de relevo quanto se pode estar nesta região. Pode facilmente isolar-nos, cortando as linhas de abastecimento
e impedindo a chegada de quaisquer reforços. Da mesma forma, a nossa única possibilidade de fuga é atravessarmos as suas linhas. Para o outro lado, só há deserto.
- Merda. Estamos aqui encurralados. - Por momentos, Macro cerrou os lábios, exasperado. - O governador pode dar uma ajuda. Se partir agora, pode ter tempo
de regressar para junto das legiões, e enviar uma coluna de reforço para cá.
- Sim, pode. Se puder dispensar tantos homens. Não se esqueça, também há aquela coluna de partos a caminho de Palmira.
- Tenho a certeza de que ele nos pode dispensar alguns homens. Os suficientes para tratarmos do Bano antes que o exército dele aumente ainda mais. Ficamos
aqui até chegarem os reforços.
- Ficar aqui? - Cato parecia pouco seguro. - Será aconselhável?
- Que mais podemos fazer? Aqui no forte estaremos em segurança.
- Acha?
- Porque não? Ele tem um bando de meliantes, e agora, ao que parece, uns tantos partos. Não me parece que chegue aqui e trepe pelas muralhas como se elas
não existissem. Pelo menos sem ter máquinas de cerco.
- E o que o faz pensar que ele não as tem?
Macro sorriu.
- Onde é que as teria ido desencantar?
- À Pártia, por exemplo.
- Cato, fazes ideia de como seria difícil arrastar uma máquina daquelas através do deserto?
- Não. Como seria?
Atónito, Macro lutou para encontrar uma resposta.
- Bom, de facto não sei, mas não me custa immaginar que deve ser duro transportar material pesado através deste terreno. Chega-te? - Fez um gesto vago na
direcção do trilho seguido pelas caravanas, e do deserto que ficava para lá dele. - Digo-te, eles não têm máquinas de cerco. Quanto a isso, estamos seguros.
- Espero que tenha razão.
- Tenho razão. Mas, seja como for, vamos tomar algumas precauções. - Fez alguns cálculos mentais. - Ora bem, são uns cinquenta quilómetros. Portanto, devem
chegar cá amanhã, depois do almoço.
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Cato assentiu.
- Sim, deve ser mais ou menos isso.
- Portanto, não temos muito tempo. Temos que falar com o governador. Vem daí.
Voltaram a subir à torre. Longino e Póstumo observavam a nuvem de poeira que os cavalos dos partos levantavam e que ia diminuindo rapidamente com a distância, enquanto
discutiam em voz baixa. Assim que. Macro e Cato surgiram do alçapão, calaram-se. Macro fez uma breve descrição daquilo que a patrulha tinha avistado. Um breve ar
alarmado passou pela face do governador, mas ele controlou-se e manteve-se calmo, avaliando a situação enquanto afagava o queixo.
- Tenho de regressar ao posto de comando antes que o forte fique isolado.
- Sim, senhor. - Concordou Macro. - Quanto mais cedo partir, melhor. Nós aguardaremos aqui pela coluna de socorro.
- Coluna de socorro? - Repetiu Longino. - Pois. Sim, claro. Terei que vos enviar mais alguns homens. Os suficientes para derrotar Bano. Assim que chegar ao
meu gabinete, tratarei disso.
- Excelente, senhor. - Assentiu Macro.
- Bom, então será melhor que parta imediatamente. - Voltou-se na direcção do alçapão. Mas imediatamente interrompeu o movimento e voltou-se para Póstumo,
olhando-o com firmeza. - Tu ficas.
- Como? - Póstumo reagiu com horror. - Ficar? Desculpe, senhor, mas o meu lugar é ao seu lado. A viagem de regresso vai ser perigosa. Precisará de todos os
homens disponíveis para garantir a sua segurança.
- Pelo contrário, mais homens só me atrasarão. O prefeito tem maior necessidade de ti do que eu, nesta ocasião. Portanto, ficarás aqui para auxiliar na defesa
do forte.
- Mas, senhor! - Havia um tom de súplica na voz do oficial, o que fez Macro arrepiar-se com desprezo.
- Basta! - Disparou Longino. - Ficas cá! Percebido?
Póstumo encarou o superior, e não disfarçou o azedume ao responder.
- Oh, perfeitamente, senhor. Percebido.
- Póstumo, não me vou esquecer de ti. Nunca esqueço aqueles que tme serviram bem.
- Senhor, essas palavras dão-me grande conforto.
- Então, adeus. - Longino acenou-lhe, pareceu disposto a um aperto de braço, mas deixou que o seu tombasse para junto do corpo, enquanto se virava e descia
da torre.
Pouco depois, Macro, Cato e Póstumo observavam o governador e a sua escolta a afastarem-se da fortificação romana, tomando o caminho do
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norte, de forma a evitarem os rebeldes que para ali se dirigiam; mais tarde retomariam a direcção que os levaria para junto das legiões que, na Síria, estavam às
ordens de Longino. Macro reparou no ar de profunda amargura que Póstumo exibia, enquanto via o pequeno grupo a cavalgar pelo deserto.
- Meu caro, é isso que se ganha quando nos metemos em jogos políticos.
Póstumo virou-se para o prefeito e riu.
- Senhor, não está a perceber. Ele não nos vai enviar quaisquer reforços.
- Porquê? - Indagou Cato. - O que é que queres dizer?
- Se vocês os dois são o melhor que o Narciso pode arranjar, então que os deuses protejam o Imperador. Suponho que, fora de Roma, só nós os três sabemos até
onde vai a traição de Longino. Deixando-nos aqui para morrer, está safo. Evidentemente, assim que Bushir cair e nós formos massacrados, não deixará de montar uma
expedição punitiva e lamentar a nossa perda, criticando-se por não ter conseguido chegar a tempo de nos salvar.
Macro e Cato contemplaram-no por instantes; Então, Macro encolheu os ombros.
- Muito bem. Portanto, a única maneira de lixarmos o sacana do patrício é garantirmos que nos safamos desta.
- Oh? - Póstumo sorriu sem entusiasmo. - E como propõe que consigamos fazer isso, senhor?
- Da forma como o fazemos habitualmente. Arrasando o inimigo à pancada, e dançando sobre os túmulos desses cabrões. Cato?
- Senhor?
- Quero todos os oficiais no quartel-general, imediatamente. Há trabalho para fazer, e ao que parece não vamos ter muito tempo antes de termos o bafo de Bano
a atormentar-nos.
- Isso inclui o Escrofa? Mando libertá-lo?
Macro encolheu os ombros.
- Porque não? Já agora, pode tornar-se útil antes de morrer.
209
XXIII

Macro olhou para os rostos dos seus oficiais, aguardando que voltassem a dar-lhe atenção, antes de prosseguir.
- Daqui a dois dias, Bano e os seus homens estarão acampados em frente ao Forte Bushir. Não sabemos exactamente de quantos homens ele dispõe, mas os nossos
batedores asseguram-nos de que estamos em clara inferioridade numérica. Pior ainda, os revoltosos foram equipados pelos partos, que também lhes mandaram um contingente
de arqueiros a cavalo, ínviei mensagens à guarnição de Jerusalém e ao procurador em Cesareia. Duvido muito que haja tropas disponíveis para serem enviadas em nosso
auxílio. Para cúmulo, também não é de esperar que venha alguma coluna da Síria para nos ajudar.
Este comentário provocou olhares de surpresa, e um murmúrio irado percorreu o salão. Macro levantou a mão para lhes chamar a atenção.
- Senhores! Acalmem-se... O governador da Síria enfrenta uma séria ameaça dos partos na fronteira. Não nos pode dispensar quaisquer tropas. Só podemos contar
connosco. Não vou fingir que a situação nos é favorável, mas temos de facto algumas vantagens. É o inimigo que tem que ir ao nosso encontro, portanto podemos preparar-lhe
algumas armadilhas. Bano comanda uma força maioritariamente composta por aldeãos e camponeses sem qualquer treino militar. Não duvido de que sejam capazes de exibir
coragem quando chegar o momento, mas só isso não chega para nfrentar a experiência e o treino árduo. Além disso, temos boas defesas. As muralhas de Bushir são fortes,
não conheço nenhuma fortaleza destas dimensões mais bem construída. Uma vez que não têm com certeza máquinas de cerco, terão que ultrapassar as muralhas, e todos
os que já viram um assalto desse género sabem quantas vidas ele pode custar. - Fez uma pausa para permitir que as suas palavras fossem assimiladas, e prosseguiu.
- Essas são as boas notícias. As más são que o Bano não se pode permitir falhar aqui em Bushir. Portanto, lançará contra nós tudo o que tiver. Não
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podemos ter a certeza de que o venceremos. Mas se por acaso formos derrotados por este exército de maltrapilhos, temos que nos assegurar que a sua vitória terá um
tal custo que os seus homens tão depressa não estarão prontos para o seguir contra outra unidade romana. Se conseguirmos estancar esta revolta aqui e agora, antes
que se espalhe, então a derrota de Bano será certa, mesmo que não estejamos cá para a testemunhar.
- Eu e o centurião Cato já traçámos os planos para o combate que se avizinha. Há muito trabalho a fazer antes da chegada do inimigo. Os meus assistentes distribuir-vos-ão
as ordens. Esta reunião terminou.
Os oficiais encaminharam-se para a saída. Póstumo olhou para o prefeito com ar resignado.
- Senhor, o que me destinou?
- Ainda não decidi. - Macro sorriu. - Uma vez que gostas tanto de te misturar com o inimigo, quero que estejas bem no coração da acção quando o combate começar.
Agora, espera por mim lá fora.
- Sim, senhor. - Póstumo fez a saudação regulamentar e saiu.
- Quer mesmo tê-lo a seu lado num combate? - Duvidou Cato. - Isso é pedir sarilhos.
- Dou conta deles. Nem pensar em dar a este pulha uma oportunidade de se escapulir. Ele é que acicatou os camponeses contra nós. Agora, pode muito bem arcar
com a sua parte das consequências.
Cato anuiu.
- Ainda assim, eu tomava muito cuidado.
- Vou fazê-lo, não te preocupes. - Afiançou Macro. - Achas que ele tinha razão quanto ao governador?
- Sim. Faz sentido. Desse lado, não podemos esperar grande ajuda.
- Quem me dera ter mais homens. Estive a verificar o relatório de efectivos antes da reunião. A coorte já tem menos de setecentos homens. A coisa está negra.
- Sim, senhor. Está mesmo. Quais são as minhas ordens?
- Preciso de um bom par de olhos lá fora. Quero-te no comando dos batedores. Leva dez homens e vai ao encontro da força do Bano. Manda-me relatórios regulares
sobre o avanço deles. Nada de escaramuças com os batedores inimigos. Nada de heroísmos, Cato. Percebes?
- Sim, senhor. Teremos tempo para lutar depois.
Macro lançou uma gargalhada.
- É essa a ideia! Bom, agora tenho mesmo de tratar dos preparativos no forte. E tu tens que partir o mais cedo possível.
- Sim, senhor. - Retorquiu Cato, mas não fez menção de se dirigir para a porta.
- O que se passa?
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- Aquela gente em Heshaba. Acho que lhes devo oferecer abrigo no forte. Salvaram-me a vida.
- Não. Estão mais seguros na aldeia, sobretudo se Bano conseguir tomar o forte.
- Não estou assim tão certo. Os partos não são propriamente admirados pelo amável tratamento que dão aos não-combatentes. E parece-me, além do mais, que não
há grande amizade entre Bano e aquela gente. Se os deixarmos lá fora, ficarão à mercê dos malfeitores e dos partos.
Macro encarou-o e tomou uma decisão rápida.
- Seja. Oferece-lhes abrigo então. Mas se decidirem aceitá-lo, terão que vir para o forte esta noite. Não os quero no meio quando começar o combate.
- Obrigado, senhor.
- Cato, podes oferecer-lhes abrigo, mas duvido muito que aquela mulher, a Miriam, e os seus seguidores, aceitem a oferta. Os que marcham contra nós fazem
parte do seu povo. Parece-me mais provável que se juntem a eles no assalto ao forte.
Cato abanou a cabeça.
- Isso não me parece que suceda. Há algo de diferente quanto a eles. Não me parece que queiram lutar contra nós. Nem contra ninguém, aliás.
- Muito bem. - Macro acenou na direcção da saída. - Faz-lhes a tua proposta, e pronto. Mas despacha-te. O tempo escasseia.
Quando a coluna de batedores liderada por Cato deixou o forte, já vários grupos de homens trabalhavam arduamente, lançando as picaretas contra o rijo solo do deserto
e escavando pequenas covas em redor do forte. Era um trabalho extenuante, sob o escaldante brilho do sol, mas estava fora de causa conceder-lhes intervalos para
descanso. Os homens cavavam para tentar salvar as próprias vidas. Tudo o que ajudasse a estancar a maré avassaladora do inimigo que se aproximava poderia contribuir
para salvar os soldados romanos. E assim, com os chapéus de palha como única protecção contra o sol, os homens esforçavam-se no calor abrasador, numa tentativa desesperada
de preparar contra-medidas para o ataque que se desenhava para daí a poucos dias.
Os habitantes de Heshaba descansavam nas suas casas quando Cato e os seus homens cavalgaram até ao pequeno largo no centro da aldeia.
O homem que Escrofa mandara crucificar ainda estava dependurado da cruz. Ou melhor, o que restava dele. O sol tinha-o cozido, extraindo toda e qualquer humidade
do corpo, o que fizera o cadáver mirrar sob a pele seca.
Os corvos e outros necrófagos tinham atacado as partes mais moles, e eram órbitas vazias que contemplavam a aldeia. Cato ordenou à coluna que
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desmontasse. Passou as rédeas a um dos homens e indicou-lhes que dessem de beber aos cavalos e que esperassem por ele ali no largo. Dirigiu-se então à ruela mais
próxima, chegou a uma porta e bateu. Abriu-se uma fresta e um homem espreitou para a rua banhada pelo sol, com ar assustado.
- Procura a Miriam. - Disse-lhe Cato em grego. - Diz-lhe que o centurião Cato precisa de lhe falar sobre um assunto da máxima urgência. Estarei junto ao reservatório.
Compreendes?
O homem assentiu, e Cato deixou-o e subiu a colina que se desenhava para lá das últimas casas da aldeia, até chegar à sombra de uma das palmeiras empoeiradas que
cresciam junto ao reservatório. Havia agora ainda menos água neste, pouco mais do que um charco rodeado por terra ressequida, e mais uma vez se interrogou como seria
possível a alguém sobreviver no meio daquela aridez. O deus dos judeus, Jeová, devia ser realmente cruel, se sujeitava os seus adoradores a uma vida tão árdua. Tinha
que haver uma vida melhor. Talvez fosse essa a razão da intensidade das crenças religiosas daquela gente - a necessidade de encontrar uma compensação espiritual
para uma existência física tão difícil e pobre.
O som da gravilha a ser pisada alertou-o para a aproximação de Miriam, e Cato pôs-se rapidamente de pé, inclinando a cabeça em sinal de respeito.
- Fui avisada que querias falar-me. - Miriam sorriu. - Meu caro jovem, não tens de te pôr em pé por minha causa. Senta-te.
Cato seguiu a indicação e Miriam ajoelhou-se junto a ele, arranjando uma posição confortável.
- Fomos avisados de que Bano se dirige para aqui com um numeroso exército. Vim alertar-te.
- Já o sabemos. Um cavaleiro passou pela aldeia esta manhã. Fomos informados de que deveremos prestar todo o auxílio ao exército do Bano, sob pena de sermos
considerados colaboradores, e tratados dessa forma.
Cato encarou-a.
- E o que farão?
- Não faço ideia. - Abanou tristemente a cabeça. - Se lhe resistirmos, o Bano destruir-nos-á. Se o ajudarmos, serão vocês, romanos, a tratar-nos como seus
cúmplices. Onde está o meio-termo, Cato?
- Também não sei. Nem sequer sei se ele existe. Vim oferecer-te, a ti e ao teu povo, protecção; no forte.
Miriam sorriu.
- Uma oferta caridosa, estou certa. Diz-me, quais são as vossas hipóteses de sobreviver ao ataque do Bano?
- Miriam, não te vou mentir. Somos muito menos, e não receberemos reforços. Podemos muito bem ser varridos do mapa.
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- Nesse caso, não seria muito saudável para o meu povo ser encontrado abrigado no vosso forte.
- Concordo. No caso de sermos derrotados, claro. Mas se ficarem aqui, mais cedo ou mais tarde serão vistos como inimigos, por um lado ou pelo outro.
Miriam contemplou as próprias mãos.
- Foi para escapar a esses conflitos que viemos para aqui. Tudo o que pedíamos era paz, e a possibilidade de vivermos as nossas vidas como desejávamos. Parece
porém que não há fuga possível aos conflitos que afligem os homens. Eles levá-los-ão a todo o lado, até aqui, a este ermo. Centurião, olha à tua volta. O que há
por aqui que valha a pena possuir? O que há por aqui que seja capaz de despertar a avareza dos homens? Nada. Foi por isso que a minha gente escolheu esta região
esquecida para se instalar. Desprezámos qualquer pedaço de terra que outro homem pudesse cobiçar. Abandonámos tudo o que pudesse despertar a inveja ou a cobiça dos
outros. Somos apenas aquilo que somos, nada mais. E nem assim deixamos de atrair a maldita atenção dos outros. E mesmo que nenhum mal lhes desejemos, não hesitarão
em destruir-nos. - Ergueu uma mão, levando-a ao peito. - Foi esse o destino do meu filho. Não permitirei que seja também o destino do meu neto. Yusef é tudo o que
me resta. Ele, e as fugazes memórias de uma velha.
A cabeça tombou-lhe para a frente, e calou-se. Cato não conseguia pensar em quaisquer palavras honestas de conforto, pelo que se deixou estar sentado e esperou.
Os ombros da mulher estremeceram, e uma lágrima tombou sobre a areia entre os pés dela, deixando uma marca escura no solo. Cato limpou a garganta.
- Aceitarás a nossa protecção, por ténue que seja?
Miriam limpou os olhos à manga do casaco e encarou-o.
- De todo o coração, não. Esta é a nossa casa. Não há outro sítio para onde possamos ir. Ficaremos, e seremos poupados ou destruídos. Mas agradeço-te a oferta.
Cato assentiu.
- Tenho de partir. - Levantou-se e olhou-a nos olhos. - Boa sorte, Miriam. Que o teu deus vos proteja a todos.
Ela olhou para o céu e fechou os olhos.
- Seja feita a vossa vontade...
- Desculpa?
Sorriu.
- Uma coisa que o meu filho costumava dizer.
- Oh.
- Adeus, centurião. Espero voltar a ver-te.
214
II
Cato voltou-se e dirigiu-se de novo para a aldeia, para se reunir aos seus homens; quando ele desapareceu por entre as casas, Miriam lançou um lamento profundo e
deixou então correr livremente as lágrimas.
Bano e os seus aliados partos não se tinham dado ao trabalho de disfarçar os seus movimentos com patrulhas em todas as direcções. Ao invés, marchavam directamente
para o forte, bem à vista de Cato e dos seus homens. O centurião sorriu tristemente. Se Bano estava a tentar aterrorizá-los com a dimensão das suas forças, estava
efectivamente a consegui-lo. Segundo a sua estimativa, teriam que enfrentar mais de três mil homens, sendo que haveria uns quinhentos montados, a maior parte deles
partos por certo, mortíferos com os seus arcos mas também perfeitamente capazes de manejar a espada num combate homem-a-homem. A coluna inimiga tinha sido fácil
de localizar, graças à densa coluna de poeira que se erguia no ar depois da sua passagem. Na retaguarda vinha um pequeno comboio de bagagens, não mais de meia-dúzia
de carroças que mal se viam no meio da poeira, tornando impossível perceber o que transportavam exactamente. A coluna avançava num passo medido, sem pressa, mas
confiante numa passagem impune pela região.
Assim que tinha realizado uma estimativa dos números inimigos e anotado os equipamentos e tipos de armas disponíveis, Cato passou a informação para uma tábua encerada
que levava no alforge na sela, e chamou um dos homens.
- Leva isto ao prefeito. Informa-o de que, no momento em que este relatório foi redigido, o inimigo se encontrava a cerca de trinta quilómetros do forte.
A este passo não devem alcançá-lo antes do anoitecer de amanhã. Percebido?
- Sim, senhor.
- Então, vai.
Quando o homem se afastou rapidamente, fazendo com que o cavalo levantasse uma nuvem de poeira, Cato reparou que alguns dos batedores da coluna inimiga o tinham
localizado e apontavam para o pequeno grupo de romanos, mas ninguém se deu ao trabalho de os perseguir e durante todo o resto do dia mantiveram-se ligeiramente
à frente de Bano e dos seus homens, com margem suficiente para escapar se a cavalaria parta resolvesse atacá-los de súbito. Quando caiu a noite, a coluna inimiga
parou. Não conseguiram recolher material para mais do que uma meia-dúzia de fogueiras, já que lenha era coisa que quase não se divisava na paisagem estéril. Cato
não permitiu que os seus homens acendessem qualquer fogueira. Seria demasiado perigoso assinalar a sua localização de forma tão óbvia. Em vez disso, esperou que
a noite caísse por completo e mudou de
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posição, passando para o outro flanco da coluna inimiga, para o caso de Bano decidir tentar surpreender os batedores romanos que todo o dia lhe tinham acompanhado
os movimentos. Só então, depois de todos os homens desmontarem e terem sido distribuídos os turnos de vigia, Cato se embrulhou no seu cobertor e tentou encontrar
um pedaço de solo menos desconfortável para dormir, enquanto a temperatura descia rapidamente até o ar se tornar gélido.
* * *
Pela alvorada seguinte, Macro saiu do forte para inspeccionar o trabalho que os homens tinham realizado no dia anterior. Os buracos estavam prontos, e constituíam
um obstáculo perigoso para qualquer carga de cavalaria. Por trás deles estava a segunda linha de defesa. Os homens tinham espalhado armadilhas com pontas metálicas,
trazidas dos armazéns do forte, num vasto perímetro. As pontas trespassariam facilmente os cascos de qualquer cavalo, bem como as botas ou os pés de qualquer atacante
que avançasse sem cautelas contra a fortaleza romana, e deixá-lo-iam impossibilitado de se mexer. Depois de ultrapassada essa segunda linha de defesa, só as muralhas
impediriam o avanço dos assaltantes. Macro ofereceu uma prece rápida a Marte e a Fortuna, pedindo-lhes que o inimigo não tivesse trazido muitas escadas de assalto,
nem aríretes. Se fosse o caso, seria apenas uma questão de tempo até que a superioridade dos números se impusesse e decidisse o resultado da refrega que se avizinhava.
O ar ainda estava frio, e Macro estremeceu ao completar a inspecção e encetar o caminho de regresso ao interior do forte. Ao aproximar-se do portão reparou num cavaleiro
que vinha do norte e refreava a montada; esforçou a vista, tentando identificá-lo. Não era seguramente um romano, a julgar pela forma como tinha um pano a cobrir-lhe
o corpo e a cabeça. A mão livre de Macro dirigiu-se ao punho da espada, enquanto torcia as rédeas e fazia o cavalo voltar-se para o cavaleiro que se aproximava.
As sentinelas tinham-no também avistado, o que era evidente pelo tropel de botas ao longo das muralhas, produzido pela centúria de piquete que se apressava a tomar
posições. Macro franziu o sobrolho perante o atraso. As sentinelas deviam ter visto o homem muito antes dele. Alguém ia levar com uma participação em cima por causa
daquilo, decidiu Macro.
Subitamente, o cavaleiro acenou com a mão a Macro, à laia de saudação, e depois libertou-se do pano que lhe cobria a face e gritou.
- Centurião! Sou eu! O Simeão!
Macro relaxou, soltando o punho da espada e deixando escapar um suspiro de alívio. Ergueu a mão, retribuindo o cumprimento do outro, e
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levou o cavalo ao encontro do guia, enquanto Simeão escolhia cuidadosamente o caminho por entre as defesas do forte.
- Escolheste um péssimo momento para nos vires visitar. - Avisou Macro.
- Mas alguma vez há um bom momento? - Riu Simeão, e fazendo um gesto que abarcava os homens ocupados a espalhar as armadilhas, inquiriu.- Diz-me, centurião:
porque é que andam a espalhar estes brinquedos à volta do forte?
- Bano está para chegar. Esperamo-lo em frente às nossas muralhas esta noite.
Simeão sugou o ar.
- Como é que ele conseguiu tanta gente em tão pouco tempo?
- Fez uns novos amigos. Os partos enviaram-lhe reforços.
- Partos? - A expressão de Simeão toldou-se. - O Bano é um idiota. O que pensará ele que a Pártia fará se alguma vez os romanos forem forçados a deixar a
região? O seu ódio aos Kittim cega-o. A Judeia, a Síria, a Nabateia, todas cairão nas mãos dos partos. - Agarrou Macro pelos ombros. - Temos que o deter! Aqui mesmo!
- Mais facil de dizer do que de fazer. - Respondeu Macro, abatido. - As forças dele são muito mais numerosas. O governador da Síria abandonou-nos. Não sei
se conseguiremos evitar que Bano destrua o forte.
- Fez uma pausa, dado o pensamento que lhe ocorrera. Um pensamento desesperado, sem qualquer dúvida. - A não ser que tenhamos ajuda. Quanto tempo levarias
até Petra?
- Posso partir de imediato, centurião. Seriam dois dias a cavalgar, sem paragens. Porquê?
Macro sorriu.
- Tenho que cobrar uma dívida.
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XXIV

- Bem, cá estão eles. - Macro coçou o queixo, e olhou para a distância, franzindo os olhos. O Sol estava baixo e a luz fê-lo lacrimejar enquanto avaliava
o inimigo. A poucos quilómetros dali, um numeroso grupo de cavaleiros atravessava uma crista do terreno. Estacaram e pareceram ficar a observar o forte. - Esta noite
já não vão fazer nada. Vão instalar o acampamento, dispor umas sentinelas e descansar um bom bocado.
- Senhor, isso parece-me um palpite. - Respondeu Cato, cauteloso. - Se a minha avaliação da situação vale alguma coisa, acho que Bano tentará esmagar-nos
o mais depressa possível.
- Porquê a pressa?
- Ele deve supor que, assim que nos apercebemos da sua aproximação, enviámos mensagens a pedir reforços. Para conseguir a adesão do resto da província, tem
que demonstrar que Roma pode ser derrotada. Se não conseguir triunfar aqui em Bushir, parece-me que o apoio de que por enquanto dispõe depressa desaparecerá.
- Mas não há grandes hipóteses de recebermos ajuda. Pelo menos, não do lado do Longino.
- Pois, mas o Bano não sabe disso, senhor. Pelas contas dele, deve ter uns seis ou sete dias antes da chegada de uma coluna de reforços. O que significa que
vai ter que se despachar na tomada do forte. - Cato pensou um instante, e prosseguiu. - Deve estar a contar com a ameaça da Pártia para impedir o Longino de enviar
uma força numerosa para resolver a situação por aqui. E deve pensar que, depois de tomar Bushir, vai conseguir atrair mais recrutas para as suas forças, de forma
a enfrentar quaisquer tropas que o Longino envie.
Macro olhou para Cato.
- Como é que sabes isso tudo?
- Senhor, limito-me a apreciar a situação do ponto de vista do inimigo. - Cato anuiu para si mesmo. - E parece-me que faz sentido. E nesse
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caso, acho que não podemos descurar a situação. Ele pode decidir tentar o assalto ainda hoje.
- Ele que tente. - Macro sorriu ao pensar na preparação que tinha sido feita no terreno em redor do forte. Qualquer tentativa de assaltar as muralhas a coberto
da noite levaria as tropas inimigas mesmo contra os obstáculos que a coorte espalhara. Gozou o momento, imaginando as baixas e os atrasos que o inimigo sofreria.
Mas depressa a expressão do seu rosto endureceu. - Ainda assim, pode ser que tenhas razão. Vou pôr duas centúrias em permanência nas muralhas.
- Sim, acho que seria mais prudente, senhor. - Concordou Cato.
- Há ainda outra coisa.
- Sim?
- Aquela história de permitir que o Póstumo e o Escrofa regressem ao serviço.
- Precisamos de todos os homens capazes de empunhar uma espada.
- Pode ser que sim, mas continuo a não confiar nesses dois. Os sacanas são bem capazes de nos trair assim que lhes dermos as costas.
- Como fariam eles isso? Estão na mesma situação que nós. Ou lutam pelas suas vidas, ou são massacrados pelas forças de Bano. Hão-de escolher lutar, vais
ver.
Cato ficou calado uns instantes, antes de lançar um suspiro e um comentário.
- Espero bem que tenha razão, senhor.
Aquela conversa estava a chatear Macro. Cato não tinha nada que estar a preocupar-se com Póstumo e Escrofa, numa altura em que devia estar concentrado em questões
bem mais importantes. Pigarreou e virou-se para o amigo.
- Queres que os mande deter de novo?
- O quê? - Cato franziu o sobrolho. - Não, senhor, acho melhor não. Já imaginou o que isso faria os homens pensar? O prefeito não sabe para onde se há-de
virar. Seria o comentário nas fileiras. Portanto, ficamos com o Póstumo e o Escrofa nos efectivos. Penso que não deverão causar grandes problemas se forem mantidos
na reserva.
Os dois oficiais tinham sido destacados para comandar cada um o seu esquadrão de cavalaria. Estes seriam mantidos longe das muralhas, prontos para reforçar qualquer
ponto que fraquejasse nas defesas. Tinha sido essa a decisão do prefeito.
Macro esfregou as mãos de contentamento.
- Mesmo que Bano tente um assalto directo às muralhas, não conseguirá grande coisa sem engenhos de cerco. Parece-me que desta vez não vamos ter muito trabalho,
Cato. Não têm hipóteses de nos vencer pela
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fome. Temos provisões para dois meses para os homens e um mês para os cavalos. E se comermos os cavalos, ainda nos aguentaremos mais uns tempos. As cisternas estão
praticamente a deitar por fora, portanto também não nos faltará a água. Quase tenho pena é daqueles cabrões ali em frente. Não me parece que Bano os consiga manter
alimentados e felizes por muito tempo. E hão-de ter saudades de uma bebida fresca. - Apontou para o reservatório a alguma distância do forte. A superfície da água
era quebrada, pelas carcaças de ovelhas e cabras mortas, que Macro ordenara que para lá fossem lançadas depois das cisternas do forte estarem repletas.
- Só temos de os aguentar até que os camponeses fiquem com fome e com saudades de casa. - Concluiu o veterano. - Nessa altura, quando o apoio dele se esfumar,
só teremos que sair daqui e caçá-lo. E quando estiver pregado numa cruz, estes tipos vão ver que não devem desafiar Roma.
- Espero que tenha razão. - Retorquiu Cato. Olhou para os cavaleiros distantes. Por trás deles surgia a vanguarda da coluna inimiga, cruzando a crista e espalhando-se
depois, vagarosamente, pela planície vazia em frente ao forte. Milhares de homens, acompanhados por cavalos e animais de carga. A poeira que esta horda levantava
filtrava a luz solar, dando-lhe um tom avermelhado que fazia lembrar uma nuvem de sangue a acumular-se no céu. Cato estremeceu ao sentir um frio a subir-lhe pela
espinha. Macro reparou no estremeção do amigo.
- Deves estar fatigado. Quando acabar o primeiro turno, vê se vais dormir. É uma ordem. Vou precisar de ti em forma nos próximos dias.
- Sim, senhor.
Cato agradeceu aos deuses por o amigo ter interpretado mal o seu gesto, e repreendeu-se a si mesmo, furioso por ter deixado transparecer de forma tão óbvia o medo
que sentia. Se Macro o notara, também os homens da coorte o fariam, e estremeceu por dentro ao imaginar a impressão de fraqueza que daria aos soldados, sendo ainda
por cima um oficial acabado de chegar à Segunda Ilírica. Deitou uma olhadela aos auxiliares que guarneciam a muralha, de ambos os lados do torreão. Alguns trocavam
calmamente impressões enquanto assistiam ao avanço do inimigo, mas a maior parte limitava-se a contemplar as areias do deserto com expressões impenetráveis. Outros
pareciam calmos, avaliando a força do inimigo que combateriam nas horas seguintes. Alguns mostravam-se impacientes, denunciando a ansiedade que sentiam através de
tiques nervosos, enquanto as suas mentes estavam completamente absortas no perigo que se aproximava: dedos que batiam ritmadamente na orla de bronze dos escudos
ou no punho da espada; um pé que batia no solo repetidamente; um lamber de lábios incessante, e outros gestos do mesmo género, que Cato já tinha visto em milhentas
ocasiões semelhantes.
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Forçou-se a olhar de novo para o inimigo em aproximação. Tentou imaginar como se sentiriam aqueles homens. A maior parte deles não passava de camponeses, que tinham
sido levados àquele extremo pela infindável dureza e injustiça nas suas vidas. Isso dar-lhes-ia ímpeto por algum tempo, mas a verdade é que não possuíam o treino,
a experiência e a confiança dos soldados profissionais, como os auxiliares da Segunda Coorte Ilírica. No que pensariam enquanto atravessavam a planície poeirenta
e contemplavam as altivas e espessas muralhas do Forte Bushir, com as suas formidáveis torres nos cantos e os torreões a proteger cada um dos portões? Não sentiriam
eles uma ponta de medo, apesar da sua esmagadora superioridade numérica? Cato esperava bem que assim fosse, para o bem de todos. Não havia qualquer prazer, e muito
menos glória, na chacina de camponeses. A perspectiva era portanto de uma tarefa dura, suja e ignorada, que nada mais conseguiria do que aumentar a miséria da vida
do povo da Judeia. Se fossem derrotados, mais achas seriam lançadas para a fogueira da raiva e do ódio aos romanos que ocupava os seus corações. Nada mais seria
ganho por Roma, mesmo que Cato, Macro e os outros conseguissem manter o inimigo à distância. Porém, se Bano triunfasse, o exemplo de Bushir alastraria por toda a
província. Os seus números engrossariam de forma imparável, e nenhuma guarnição romana entre o Egipto e a Síria estaria em segurança. E o que sucederia então? Pelo
pouco que Cato compreendia daquele povo, a paz não seria uma possibilidade. Nenhuma nação judaica independente e unificada surgiria. Eles estavam demasiado divididos,
por classe e por facção religiosa, para serem capazes de trabalhar em conjunto. E nesse caso seria apenas uma questão de tempo até que a Judeia fosse dilacerada
por uma guerra civil e então assimilada por um qualquer império, fosse ele novamente o de Roma ou o da Pártia. Como sempre tinha acontecido ao longo da história
da Judeia.
Cato sorriu ao descobrir que afinal era pena o que sentia pelos miseráveis camponeses que se aproximavam com as suas rústicas armas.
Bano levou o seu exército até pouco mais de quinhentos metros do forte, e só então ordenou a paragem e a edificação de um acampamento, antes que a noite caísse.
O céu estava limpo, e à medida que o brilho alaranjado do sol desaparecia a poente, as estrelas começavam a reluzir na abóbada celeste. Os sons feitos pelo inimigo
chegavam facilmente ao forte, e se esforçasse os ouvidos, Cato percebia perfeitamente os risos e as canções de vez em quando interrompidas por ordens gritadas. Uma
a uma foram acesas fogueiras, e daí a pouco surgiram pelo deserto focos de luz e calor, cada um a iluminar o seu grupo humano, amontoado, denso, tentando resistir
ao abraço gelado da noite do deserto.
221
Macro aguardou até se certificar de que o inimigo se estava apenas a acomodar para passar a noite, antes de dar ordens para que todas as unidades que não estavam
de guarda fossem descansar. Os homens recolheram das muralhas, dirigindo-se às casernas com ar sombrio. Alguns não teriam dificuldades para dormir. Outros não conseguiriam
libertar-se da agitação que Cato detectara enquanto observavam a aproximação das forças inimigas e antecipavam as aflições dos próximos dias. Daí a pouco Macro fez-lhe
sinal, e regressaram os dois aos aposentos do prefeito, onde se juntaram aos outros oficiais na refeição da noite. Escrofa e Póstumo sentavam-se o mais longe possível
do comandante da coorte, e mantinham o olhar em baixo, recusando-se a enfrentar os olhos de Macro ou Cato. O ambiente era pesado, embora o prefeito tivesse dado
ordens para que fossem servidos os últimos jarros dos melhores vinhos que Escrofa tinha tido em armazém. Perfeitamente ciente de que todos os olhos o observavam,
Macro fez o possível por se mostrar calmo e despreocupado na presença do inimigo. Tentou mesmo lançar algumas piadas, e acabou a refeição com um brinde à inevitável
vitória que se aproximava. Os oficiais responderam com um entusiasmo forçado, e a festa acabou com toda a gente a regressar aos seus aposentos, normalmente situados
na extremidade de cada bloco de casernas.
- Bom, foi um verdadeiro sucesso. - Queixou-se Macro, depois do último dos oficiais sair e só Cato se deixar ficar, a petiscar as tâmaras que enchiam uma
taça à sua frente. - Vale mais rendermo-nos já a Bano, entregar-lhe o forte, e não se fala mais nisso.
- Quando chegar o momento, senhor, eles combaterão com ardor.
- Ah, sim? E o que te faz pensar dessa forma, meu estimado e veterano amigo?
Cato olhou-o.
- Simples: não terão escolha. Será lutar ou morrer.
- Que grande novidade. - Resmungou Macro. - Digo-te, Cato, se fossem legionários em vez de auxiliares, reinaria outro espírito. Mal poderiam esperar para
se atirar ao Bano e ao seu magote.
- Talvez estes tivessem a mesma vontade, se não fosse pelo Escrofa e pelo Póstumo. É tudo uma questão de liderança. Há meses que eram comandados por dois
trastes, antes de chegarmos. E o tempo foi curto para os pôr outra vez em condições de combater.
- Pode ser que sim. - Reflectiu Macro. - Talvez o primeiro assalto lhes meta um bocado de espinha no corpo.
Cato sorriu.
- Espero bem que não. Uma ferida é mesmo a última coisa de que eles precisam.
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Macro não ficou muito satisfeito com a tentativa humorística do amigo.
- Cato, não há razão para piadas. As nossas vidas dependem disto.
- Fungou. - O futuro desta merda de província depende disto. Portanto, por favor, chega de graças. Pelo menos enquanto não acabarmos este jarro, está bem?
E mesmo depois...
- Seja, senhor, muito bem. Não haverá mais piadas.
- Óptimo. - Absorto nos seus pensamentos, Macro manteve-se em silêncio durante um largo período. Virou-se então para Cato. - Como é que achas que o Vespasiano
faz?
- Faz o quê, senhor?
- Preparar Os seus oficiais para a batalha. Lembras-te, nos tempos da Augusta Segunda, sempre que nos preparávamos para um combate, o legado dirigia-nos umas
palavras, fazia um brinde, e lá íamos nós ter com os homens, ansiosos por os conduzir para o terreno? Como é que ele conseguia?
Cato recordou o seu anterior comandante, a figura encorpada, o cabelo rarefeito que emoldurava uma face de feições bem marcadas. A voz firme e profunda com que Vespasiano
conquistava ou castigava os seus homens. Era difícil definir o que fazia com que o legado fosse o tipo de homem por quem se lutaria até à morte. Talvez o facto de
que qualquer homem podia acreditar que, se surgisse a ocasião, também ele lutaria até à morte por si. Fosse qual fosse o segredo da liderança, concluiu Cato, era
evidente que alguns homens o possuíam, e muitos outros não. Macro fazia parte do primeiro grupo; tinha era um estilo diferente do de Vespasiano.
Cato sorriu.
- Não sei responder a essa.
- Boa. Obrigadinho. - Retorquiu Macro, chateado.
- Senhor, não se preocupe. Há-de safar-se. Por mim, segui-lo-ia até aos confins do mundo.
Macro encarou-o, uma expressão de perplexidade no rosto.
- Dizes isso mesmo a sério, não é?
- Evidentemente, senhor. E quando estes tipos o conhecerem melhor, dirão o mesmo. Agora que temos uma batalha na agenda, depressa perceberão a qualidade do
novo prefeito. Talvez fosse isso que Vespasiano tinha.
- O quê?
- O benefício do exemplo. Seguíamo-lo porque já o tínhamos visto a combater. Já tinha demonstrado o seu valor. E quando um comandante o consegue, bem, eu
diria que a partir desse ponto tem os homens na palma da mão. Tem aqui a oportunidade de fazer o mesmo com a Segunda Ilírica.
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Macro afagou o queixo, pensativo, e então encheu de novo o copo de Cato e o seu, antes de o erguer num brinde.
- A todos os que lideram sem medo a partir da frente.
Cato anuiu.
- Bebo a isso.
Cato foi acordado uma hora antes da alvorada. Um auxiliar sacudia-o pelos ombros.
- Senhor, o prefeito quer falar consigo.
Piscou os olhos, bocejou e esfregou os olhos.
- Bem, onde está ele?
- No portão principal, senhor.
- Muito bem, então transmite-lhe os meus cumprimentos. E diz-lhe que vou a caminho.
- Sim, senhor.
O soldado saudou-o e deixou o quarto. De imediato, Cato lançou para trás as mantas e pôs as pernas para fora da cama. À luz da lamparina que o homem deixara sobre
a mesa calçou as botas, atou-as e espreguiçou-se antes de se pôr de pé. Enfiou a cota de malha pela cabeça, pegou no capacete e no cinto com a espada e foi ter com
Macro. Lá fora o ar estava fresco, e a pálida luz das estrelas mal dava para Cato ver as casernas dos dois lados da via que seguia na direcção do portão principal
da fortaleza. Das frestas de portas e janelas de algumas das casernas escapavam-se pequenas tiras de luz, com origem nos grupos de auxiliares que não tinham conseguido
conciliar o sono e passavam o tempo a jogar aos dados, ou a esculpir madeira, ou em qualquer outra actividade das muitas com que os soldados se entretinham enquanto
esperavam pelo momento de passar à acção.
Quando Cato abriu a portinhola do torreão e subiu para a plataforma sobre o portão, avistou a larga silhueta de Macro junto às ameias.
- Chamou-me?
- Sim, achei que devias ver isto. Olha para ali. - Macro esticou o braço na direcção do campo inimigo e apontou para uma zona, a cerca de trezentos passos,
onde se viam várias tochas que espalhavam uma luz bruxuleante. À frente das tochas havia uma espécie de barricada de juncos que escondia o que se passava por trás
dela. Mas os sons de ferramentas e os gritos dos homens envolvidos no trabalho chegavam com facilidade aos ouvidos dos dois centuriões.
- Alguma ideia do que se está a passar? - Indagou Cato.
- Podem estar a montar escadas de assalto, ou até um aríete. O que não me preocupa muito. Para usarem equipamento desse género têm de se aproximar, e atravessar
a zona armadilhada.
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- Por outro lado, podem estar a construir outra coisa qualquer. - Especulou Cato.
- Foi isso que pensei. Os partos podem ter fornecido ao Bano uma companhia de engenheiros.
- Para lá do equipamento e daqueles arqueiros? Estranhamente generoso da parte deles. Mas é verdade que estamos todos a apostar muito alto neste jogo.
- Exacto. Bom, não podemos fazer nada quanto a isto, por agora. - Macro virou as costas ao campo inimigo e olhou para o horizonte oposto.
- Daqui a pouco já estará luz. Nessa altura veremos o que eles preparam.
Não tiveram que esperar muito para que a escuridão se começasse a dissipar, e pouco a pouco a paisagem em torno do forte começou a revelar-se. Pouco depois o inimigo
fez extinguir as tochas e os jovens olhos de Cato, muito superiores aos de Macro, esforçaram-se para perceber os detalhes das duas estruturas de madeira com aspecto
maciço que se viam por trás das protecções. Ao aperceber-se do que estava a ver, o jovem sentiu um baque. Aguardou ainda uns instantes para se assegurar do que contemplava,
e então virou-se para o amigo.
- Onagros. Dois.
- Onagros? - Respondeu Macro, atónito. - Mas onde raios foi Bano arranjar onagros? - Enquanto falava, uma memória indistinta passou-lhe pela mente. Semanas
antes, quando aquela caravana tinha recusado a oferta de protecção feita por Póstumo. No meio dos camelos seguiam duas carroças cobertas, puxadas por juntas de bois,
e que levavam grossos toros. Os mecanismos metálicos e outras peças deviam seguir escondidos por baixo do resto da carga, sem dúvida. Extraordinariamente bem pensado
pelos partos, concedeu Macro. Em vez de enviar as máquinas através do deserto, tinham-nas mandado pela Arábia e feito chegar a Bano sob a forma de mercadorias numa
caravana. Fechou as mãos e deu uns murros valentes no cimo da muralha. - Eu vi aquelas coisas, desmontadas, a serem transportadas. Naquela primeira patrulha com
o Póstumo. E, evidentemente, fui um idiota e não percebi que eram componentes de uma máquina de cerco. Merda.
Cato abanou a cabeça.
- Bom, agora é tarde demais para fazer alguma coisa quanto a isso.
Macro preparava-se para responder quando ouviram um grito vindo
do campo inimigo. Viraram-se em uníssono, mesmo a tempo de verem os braços de lançamento dos dois onagros subirem velozmente até embaterem nas barras de amortecimento
transversais. O som desse impacto alcançou-os no instante seguinte. Cato viu os dois primeiros projécteis a serem atirados pelo frio ar da manhã. Alcançaram o cimo
do arco que a
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sua trajectória desenhava, pareceram pairar lá em cima por um momento, e depois começaram a descer a uma velocidade alarmante, aumentando de tamanho à medida que
se aproximavam do torreão que guarnecia o portão principal do forte.
Cato agarrou Macro e puxou-o dali para fora.
- Abaixe-se!
Encolheram-se e, de dentes cerrados, esperaram pelo embate. A primeira pedra passou sobre o torreão e irrompeu com estrépito pelo telhado de um dos blocos de casernas.
As telhas estilhaçadas pelo choque voaram em todas as direcções, chovendo sobre as imediações do edifício atingido. O segundo projéctil abateu-se sobre o solo a
curta distância do forte, projectando pedras e gravilha contra a muralha e fazendo surgir uma nuvem de poeira sobre o ponto de impacto. Cato e Macro sentiram o impacto
no corpo, e o veterano olhou para o amigo com um sorriso nervoso.
- Porra, têm ali uma bela máquina. Alcance e precisão, e projécteis de bom tamanho. Vai ser uma chatice, isto.
Cato ergueu-se e arriscou uma espreitadela aos onagros. As equipagens já preparavam um novo par de lançamentos. Ouvia perfeitamente as engrenagens a acumularem tensão
à medida que o braço de arremesso era puxado para trás. Macro tinha-se esgueirado até ao outro lado do torreão e contemplava o bloco de casernas que tinha sido atingido
pela primeira pedra. Havia um enorme buraco no telhado e uma nuvem de poeira ainda pairava sobre a edificação.
- Ei, tu aí! - Gritou para um dos soldados na rua. O homem olhou em volta e colocou-se em sentido.
- Sim, senhor!
- Vai lá espreitar dentro. Vê se está toda a gente bem. Se houver feridos, os enfermeiros que vão cuidar deles. Mexe-te!
Macro voltou para junto de Cato. O primeiro dos onagros já estava pronto para ser carregado e, à luz que aumentava a cada instante, conseguiam ver um par de homens
a esforçar-se para levantar um pedregulho e para o colocar na colher que constituía a extremidade do braço de arremesso. Ouviu-se uma ordem e no instante seguinte
a maciça trave subiu, bateu contra a barra transversal, e libertou o míssil que saiu disparado pelo ar a caminho do forte. Tal como no caso anterior, parecia vir
directamente
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na direcção dos dois oficiais, e Cato não resistiu a olhar para Macro. Este acompanhava atentamente a trajectória da pedra, pelo que Cato se obrigou a manter a compostura
e a resistir à vontade de mergulhar para o solo. O projéctil atingiu a base do torreão, e Cato sentiu o impacto por todo o corpo. Um pedaço de estuque tombou da
parede ali perto e poeira desabou do telhado de folhas de palmeira.
Macro olhou para ele.
- Estás bem?
Cato confirmou com um gesto.
- Será melhor verificar os danos.
Espreitaram sobre a muralha, apreciando a situação. A pedra tinha-se mantido intacta; ricocheteara da parede, deixando uma cratera na face da fortificação, junto
ao arco de entrada; e havia um verdadeiro enxame de fendas que se espalhavam a partir do ponto de impacto.
Macro franziu o nariz.
- Espero sinceramente que tenha sido um tiro de sorte.
O segundo onagro entrou em acção, e outra pedra cruzou os ares, descrevendo um arco a caminho do forte. Mais uma vez o lançamento foi curto, pelo que o projéctil
saltou ao embater no solo e veio morrer, inofensivo, contra a base da muralha ao pé do torreão. Enquanto o dia nascia sobre o deserto, o bombardeamento prosseguiu,
numa rotina sonora que denunciava a preparação das máquinas, seguida do choque do braço com a barra, que assinalava o arremesso, e depois o estrondo do impacto.
Cerca de metade dos disparos foi curto, acertou noutra parte da muralha ou ultrapassou-a, tombando sobre os edifícios do interior do forte. Mas de cada vez que uma
pedra atingia o torreão as paredes tremiam e fragmentavam-se e as fendas, primeiro finas como cabelos, alargavam-se sem cessar. Um disparo feliz atingiu a base do
próprio portão, fazendo retinir as dobradiças. Macro apressou-se a dar ordens para que a maior parte dos homens se abrigasse por trás das espessas muralhas, deixando
apenas um punhado deles nas torres de esquina, para vigiar as movimentações do inimigo. Daí a pouco Macro e Cato desceram do torreão e sentaram-se na sala da guarda,
junto aos pesados barrotes que constituíam o portão.
- Já alguma vez tinha estado do lado bombardeado? - Indagou
Cato.
- Não. Não se pode dizer que esteja a gostar. - Macro fez um sorriso débil. - Tenho que admitir - Bano e os seus amigos partos conseguiram pregar-nos uma
boa partida. E a merda daqueles onagros passou-me mesmo debaixo do nariz sem eu dar por isso.
- Não se censure, senhor. Ninguém teria podido adivinhar uma destas.
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- Pode ser que sim, mas isso será um fraco consolo se eles conseguirem deitar isto abaixo e nos esmagarem como insectos.
- Podíamos tentar destruir as máquinas...
- E como propões tu que façamos isso?
- Com a cavalaria, uma carga rápida que não lhes dê tempo para responder, e deitamos fogo aos onagros, ou pelo menos destruímos os mecanismos.
Macro abanou a cabeça.
- Não ia resultar. Só há um caminho livre para os cavalos, depois de todas as armadilhas que espalhámos pelo terreno, e fica mais para a face leste. Teríamos
de aguentar o terreno enquanto o limpávamos, e só depois poderíamos usar a cavalaria para atacar os onagros. Isso dar-lhes-ia tempo suficiente para disporem uma
força considerável entre nós e os seus preciosos engenhos. Seria apenas um desperdício de homens.
- E se tentássemos a pé, esta noite?
- Não seria muito diferente. Há uma passagem estreita por entre os obstáculos e armadilhas a oeste, e outra a norte. Se perdêssemos a noção desses caminhos,
ficaríamos encurralados entre o inimigo e as nossas próprias defesas. No escuro, seria praticamente impossível dar com o caminho. Ou seja, seria um desperdício de
homens.
Apesar de animado por uma enorme vontade de destruir as máquinas inimigas, Cato tinha que admitir que o amigo tinha razão. Seria uma operação arriscada, de noite
ou de dia. Passou a mão pelo cabelo.
- Bom, se não temos hipóteses de os obrigar a parar, então suponho que teremos de tomar algumas contra-medidas.
Macro assentiu.
- Sim, vamos.
Deixaram a muralha e Macro pegou num dardo, que tirou das mãos de um dos auxiliares. Pondo-se ao lado do torreão, verificou a posição e começou a traçar uma linha
na areia e no cascalho com a ponta da arma. Continuou até ter descrito um arco nas traseiras do torreão, e depois devolveu o dardo ao soldado.
- Acho que isto deve chegar, Cato. Quero uma barricada ao longo desta linha. Façam-na tão alta quanto possível. E coloquem-lhe umas plataformas elevadas e
protegidas dos dois lados. Se eles tentarem penetrar pela brecha, mandamos-lhe flechas e dardos de três lados ao mesmo tempo. Percebeste?
- Sim, senhor.
- Então, ao trabalho.
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Cato organizou um grupo de trabalho e deu ordens para a demolição do bloco de casernas mais próximo do torreão. Além de garantir assim o fornecimento de materiais
para a programada linha defensiva, garantia-se a existência de uma área livre por trás da barricada onde se podia concentrar uma força defensiva suficiente para
enfrentar qualquer ataque à brecha que depressa existiria no local. Os auxiliares usaram ganchos de ferro e cordas para derrubar as traves-mestras e as paredes do
bloco. Outros pegaram em picaretas e começaram a fazer buracos onde instalar as traves, de forma a servirem de postes. Outras tábuas foram pregadas transversalmente
nesses postes, e os maiores pedaços de entulho foram usados para preencher a base da muralha improvisada. O trabalho durou toda a manhã e entrou pela tarde, debaixo
do sol castigador, e sempre sob o implacável bombardeamento dos onagros, que continuavam a demolir o torreão. De vez em quando uma das pedras vinha cair no interior
da muralha, esmagando-se com um estrondo ensurdecedor contra um dos edifícios, o que levava os homens a procurar abrigo até que os berros dos oficiais os forçavam
a regressar ao trabalho. Tiveram a felicidade de evitar baixas até perto do meio-dia, altura em que um projéctil se abateu sobre um grupo de soldados, esmagando
um homem e transformando-o numa massa sanguinolenta quase irreconhecível, e ferindo os outros com os estilhaços que se projectaram para o ar depois do impacto no
solo. Cato reagiu de imediato com uma série de ordens para a remoção do cadáver, a condução dos feridos ao hospital e a continuação do trabalho.
Depois, já ao entardecer, a seguir a mais um impacto no torreão, ouviu-se um ruído surdo e abriu-se uma racha na diagonal, do cimo da parede até quase ao solo. Os
homens fizeram uma pausa para contemplar o acontecido e voltaram ao trabalho com renovada determinação. Cato aproximou-se de Macro e falou com discrição.
- Já não falta muito, senhor.
- É provável. - Retorquiu Macro. - Mas por agora ainda se vai aguentando. Só espero que dure até ao anoitecer. Duvido muito que eles se lancem ao assalto
sem conseguirem ver bem o que estão a fazer. Entretanto, teremos que fazer o melhor possível com esta paliçada.
Poucos disparos depois, um dos cantos exteriores do torreão ruiu; quando o barulho das pedras a rolar se dissipou ainda se conseguiu ouvir a aclamação triunfante
no campo inimigo. Cato contemplou a torre e reparou na grande brecha no cimo da muralha junto à parte que colapsara, como se um dos Titãs tivesse arrancado uma parte
das defesas à dentada. E o bombardeamento prosseguia sem interrupção. Aliás, depois daquela primeira derrocada, Cato pôs-se a contar para avaliar o espaçamento dos
disparos e chegou à conclusão que o inimigo tinha acelerado o ritmo do
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ataque. Cada choque na estrutura debilitada provocava a queda de mais material e fazia crescer a pilha de entulho, constituída por estuque e por pedras de todas
as dimensões. À medida que o sol desaparecia no horizonte por trás do acampamento inimigo, as ruínas do torreão transformaram-se numa silhueta angulosa, até que
por fim o arco que constituía a entrada do forte se abateu também, deixando apenas um monte de entulho e vigas despedaçadas.
Enquanto as trevas se abatiam sobre o deserto, Macro e Cato ascenderam a uma das torres para avaliar a situação. Alguns elementos inimigos, tornados mais audazes
pela destruição do torreão, tinham-se aventurado até próximo do forte, atraindo assim a atenção dos arqueiros romanos dispostos na muralha a espaços regulares; de
vez em quando ouvia-se o silvar de uma flecha disparada do forte contra os mais próximos dos sitiantes, levando-os a correr em busca de protecção. Macro festejou
ao ver como um dos homens, mais lento a reagir, olhava para cima no preciso momento em que uma flecha o atingia, trespassando-lhe a face e levando a pesada ponta
a emergir na parte de trás do crânio.
- Grande tiro! - Gritou Macro para os homens na muralha, e um dos arqueiros virou-se ligeiramente, aceitando o cumprimento com um aceno rápido, antes de colocar
outra flecha no arco e procurar novo alvo.
A luz desaparecia por completo, mas antes de suspender o bombardeamento, o inimigo ainda arrasou o que restava do torreão. Pela manhã retomaria por certo o mesmo
ritmo, e depois de mais umas horas daquele tratamento a brecha ficaria acessível a um assalto directo de Bano e dos seus homens. Surgiram fogueiras no acampamento
inimigo, e os sons de cantorias e gargalhadas eram facilmente escutados pelos defensores, que continuavam a afadigar-se na preparação da improvisada barricada no
interior do forte. Macro e Cato inspeccionaram o trabalho à luz dos archotes. A paliçada erguia-se até uns dois metros e meio de altura, e era suficientemente espessa
para resistir à pressão de uma massa humana que tentasse derrubá-la. Na face interna havia uma plataforma estreita, a partir da qual os defensores podiam lançar
sobre os inimigos toda a sorte de projécteis, enquanto eles tropeçavam no entulha espalhado na área em frente à barricada.
Macro afagou a superfície áspera da nova muralha.
- Vai aguentar.
- Terá de aguentar. - Replicou Cato, resignado. - Quando eles acabarem de demolir o torreão, isto será a única coisa que os impedirá de entrar no forte.
À luz tremeluzente da tocha que segurava, Macro virou-se para o amigo.
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- Tens razão, de facto. Pela manhã terminarão o serviço.
- A não ser que se faça alguma coisa acerca daqueles onagros, ainda esta noite.
- Já te disse. - Contrariou Macro, com ar desgastado. - É demasiado arriscado.
- Do risco não nos safamos, seja como for. - Insistiu o jovem. - Ao menos se tentarmos alguma coisa pode ser que os atrasemos um dia ou perto disso; podemos
ganhar um tempo precioso. Senhor, acho que vale a pena tentar.
Macro não se deu por convencido.
- Já te disse, quem quer que saia no meio desta escuridão vai acabar por se perder no meio das armadilhas.
Cato tinha o olhar fixo na tocha que Macro empunhava, e este reparou no brilho excitado que sempre acompanhava a torrente de pensamentos em que se baseavam os esquemas
malucos do jovem centurião. Sentiu a habitual sensação de derrota iminente.
- Senhor, permita-me que lidere uma sortida.
- Cato, já estás assim tão farto de viver?
- Não, só não me apetece muito ficar aqui sentado à espera de ser morto. Além disso, parece-me que arranjei maneira de passar em segurança pelas nossas linhas
defensivas...
- Tens a certeza disso? - Perguntou Macro, enquanto olhava para Cato. O jovem tinha escurecido a face e o resto do corpo que não estava coberto pela túnica
castanho-escura que envergava. O cinto da espada estava em volta do peito, e levava ainda uma mochila ao ombro com uma acendalha e alguns frascos de óleo. Por trás
dele via-se uma vintena de homens equipados de forma similar para a excursão nocturna.
- Vai correr tudo bem, senhor. Tem é que garantir que aquelas candeias se mantêm acesas. - Acenou na direcção da muralha, onde a trémula chama oscilava na
escuridão. Uma outra lamparina tinha sido acesa no edifício de comando e colocada na mais alta das janelas, alinhada com a da muralha e com a passagem estreita que
permitia a travessia do campo armadilhado que se estendia do lado de fora da muralha norte do forte.
Macro apertou o braço do amigo.
- Faz o que tens a fazer e regressa de imediato. Não te entusiasmes. Conheço-te bem.
- Acredite em mim, senhor. Não me apetece nada ficar lá fora mais tempo do que for preciso.
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Macro voltou a apertar o braço do jovem.
- Então, boa sorte.
Afastou-se e acenou à sentinela. Tentando manter o silêncio, o homem soltou os ferrolhos de uma portinhola dissimulada na muralha e abriu-a. As dobradiças queixaram-se
por momentos, rangendo; Macro suspendeu a respiração perante um som que lhe pareceu demasiado elevado quando contrastando com o silêncio que reinava para lá das
muralhas. O soldado fez uma pausa e continuou a abrir a porta mais devagar, a té que o espaço se tornou suficiente para permitir a passagem de Cato e dos seus homens.
- Vamos. - Murmurou o centurião e, dando uma última olhadela na direcção do vulto escuro do prefeito, saiu do forte. Não havia luar, e alguns farrapos de
nuvens escondiam até a maior parte das estrelas, pelo que reinava a escuridão na paisagem, fornecendo a cobertura perfeita ao grupo de romanos. Ao mesmo tempo, as
trevas eram também a maior ameaça para o grupo. Facilmente poderiam esbarrar com uma sentinela ou patrulha inimiga no meio da escuridão. Por isso, Cato estava decidido
a progredir com extrema cautela. Depois de o último homem sair, a portinhola do forte voltou a ser encerrada. Cato aguardou para ver se havia algum sinal que denunciasse
que tinham sido descobertos, e fez então sinal ao homem que o seguia, começando a avançar cautelosamente ao longo da base da muralha. Ao longe escutavam o barulho
que os homens faziam junto ao portão principal, tentando reparar alguns dos danos que o torreão sofrera ao longo do dia. Todo aquele trabalho seria rapidamente obliterado
às primeiras horas da manhã, quando o bombardeamento se reiniciasse, mas permitiria à guarnição ganhar mais algumas horas. Cato dirigiu-se para a estreita vereda
que permitia a passagem entre os obstáculos e armadilhas espalhados em frente ao forte.
Ao chegarem ao ponto directamente sob a candeia que brilhava no cimo da muralha, Cato deteve-se e esperou que os homens o alcançassem. Já estava a tremer, em parte
devido ao frio penetrante e em parte devido à excitação que sentia por estar a conduzir aquela perigosa sortida ao acampamento inimigo. Respirou fundo, tentando
acalmar-se, e depois desceu a face interna do fosso que circundava o forte e trepou para o outro lado. Escolheu um alvo, um distante e negro afloramento rochoso,
e começou a dirigir-se para lá, de gatas, lentamente, sempre a apalpar o terreno. A mão esquerda foi de encontro à aguçada ponta de uma armadilha, recuando de imediato;
avançou-a de novo, até encontrar outra ponta aguçada que lhe permitiu adivinhar onde estava exactamente a estrela metálica e perceber por onde devia seguir. Já se
tinham afastado uns cem passos da muralha, calculou o centurião, e olhou para trás, avistando também a luz no edifício
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de comando, num alinhamento quase perfeito com a da muralha. Ajustou a posição até o alinhamento ser o ideal, e prosseguiu com todas as cautelas.
Levou muito tempo a alcançar o perímetro das defesas que Macro preparara. Cato sentiu uma mão no ombro; era o homem que o seguia a chamar-lhe a atenção. Virou-se
e notou que o soldado apontava para a direita. A menos de cem metros distinguiam-se com esforço contra a fraca luminosidade do céu nocturno as silhuetas de dois
dos sitiantes. Ouviu-se uma breve conversa seguida de algumas gargalhadas, e os dois vultos seguiram lentamente caminho, prosseguindo a sua patrulha em torno do
forte. O pequeno grupo romano seguiu por sua vez, deixando para trás as defesas; Cato adoptou uma trajectória paralela à muralha, na direcção do brilho avermelhado
das fogueiras no acampamento inimigo.
Todos os seus sentidos estavam alerta, tentando descortinar qualquer presença próxima, qualquer ameaça. O frio tinha-se-lhe entranhado no corpo, e sentia o peito
apertado, pelo que tremia de forma incontrolável enquanto se aproximava do perigo, progredindo lentamente, agachado, através da escuridão. Por fim avistou as estruturas
angulosas das máquinas de cerco, tenuamente iluminadas pelas fogueiras mais próximas. Deu sinal de alto aos homens, indicando-lhes que deviam formar uma roda à sua
volta.
- Sicorax? - Perguntou, num murmúrio.
- Aqui, senhor.
Virou-se para a figura ajoelhada ao seu lado.
- Os vagões e os animais estão para ali. - Indicou uma pequena elevação do terreno, a umas centenas de metros dos onagros. - Livra-te das sentinelas, e incendeia
tudo. Vê se fazes uma bela fogueira, e assim que lhes atraíres a atenção faz o chinfrim todo que conseguires. Depois retira para o forte.
- Não se preocupe, senhor. Sabemos o que temos a fazer.
- Boa sorte, então. Podem seguir.
Ficou a ver Sicorax e os seus homens a afastarem-se e a serem rapidamente tragados pelas trevas. Fez sinal ao seu esquadrão, e começaram a acercar-se dos onagros.
À medida que se aproximavam com todas as cautelas, o ruído que vinha do acampamento inimigo crescia em volume, e Cato começou a recear que esse barulho, embora ajudasse
a ocultar a sua aproximação, não lhes permitisse, em contrapartida, reconhecer a posição das sentinelas que guardavam as máquinas. Assim que avistou a primeira,
de pé junto a um dos engenhos, travou o avanço dos seus homens.
- Esperem aqui.
Deitou-se sobre o estômago e rastejou, mal se atrevendo a levantar a cabeça para reconhecer o terreno. Progrediu assim até junto de um dos
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onagros, apercebendo-se de que havia pelo menos uns dez homens a vigiar as máquinas; se os elementos inimigos não se sentissem tentados a abandonar aquela posição
quando Sicorax e o seu grupo dessem início à manobra de diversão planeada, ele e os seus homens enfrentariam um tremendo desafio. Rastejou de volta ao grupo e esperaram,
deitados no solo, em plena escuridão.
Não tiveram de aguardar muito tempo; ouviu-se um grito distante e logo a seguir surgiram grandes labaredas de cores vivas a envolver um vagão pesado. No clarão que
o incêndio projectava Cato avistou cavalos e mulas a tentarem desesperadamente rebentar as cordas que os prendiam, para fugir ao calor das chamas. Os guinchos e
relinchos depressa se juntaram num terrível som agudo. Voltou toda a atenção para os onagros. Os guardas tinham-se juntado todos do mesmo lado, para apreciarem o
fogo. Ao longe soou uma trombeta, e num ápice o acampamento ficou repleto de figuras que se moviam rapidamente para o incêndio, correndo sobre o escuro chão do deserto.
Um dos guardas lançou um grito, deu algumas passadas apressadas na direcção do fogo, parou e fez sinais furiosos aos outros para que o seguissem. Um deles gritou
em resposta, meneando a cabeça e apontando para o chão junto aos pés, numa clara recusa da ideia de abandonar o posto que lhe tinha sido designado. Mas um punhado
de homens correu ajuntar-se ao primeiro, e todos juntos desapareceram na escuridão.
Cato virou-se para os seus homens.
- Sigam-me. Ninguém faz nada sem eu dizer.
Semi-erguendo-se, Cato correu para a máquina mais distante dos
guardas, no que foi seguido pelos homens. Quando alcançaram a sombra do onagro, o centurião abriu a mochila que transportava.
- Assim que eu acender isto, eliminem os guardas. Peguem nas espadas.
Seguiu-se um coro de sons de metal a raspar, quando os homens desembainharam as espadas. Enquanto dois deles se ocupavam a ensopar em óleo a estrutura e as cordas
do onagro, outros procuravam mais materiais combustíveis para ajudar à propagação do incêndio. Cato preparou a acendalha, feita de linho e casca de árvore bem seca,
e usou a pederneira. Depois de algumas tentativas falhadas uma pequena faísca apanhou o tecido, e ele soprou cuidadosamente até conseguir que surgisse uma chama.
Com toda a cautela, alimentou-a com pequenos pedaços de madeira e quando ela se mostrava já robusta levou-a até aos materiais preparados para atear o fogo à máquina.
Depois de uma desesperante espera, as chamas começaram finalmente a alastrar pela base do onagro, e subiram rapidamente pelas cordas oleadas, banhando toda a zona
numa luz tétrica.
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Ouviu-se um grito de alarme dos guardas quando se aperceberam do fogo.
- Apanhem-nos! - Gritou Cato aos seus homens, que se lançaram de imediato sobre o grupo de guardas. Cato pegou num tição do fogo que rodeava o onagro e correu
atrás do grupo de incendiários que se tinha dirigido à segunda máquina. Já não havia necessidade de acendalhas, pelo que atirou a madeira ardente para a pira que
os homens tinham preparado rapidamente sob os cabos de torção. O fogo espalhou-se num ápice, mas Cato ficou a ver como evoluía para se certificar de que atingia
toda a estrutura, antes de pegar na espada e tentar perceber o que se passava em redor.
Os guardas tinham sido rapidamente abatidos, mas à luz das chamas viam-se muitos mais elementos do inimigo que saíam da escuridão e se dirigiam para os onagros ardentes.
Era fundamental que fossem detidos, pelo menos o tempo suficiente para garantir a destruição das máquinas de cerco.
- A mim! - Gritou. - Segunda Ilírica, a mim!
À medida que os homens se lhe reuniam, Cato formou-os num cordão em frente aos onagros, e esperaram de espadas aperradas, em posição de combate, aguardando pelo
inimigo que acorria para tentar extinguir o fogo. Com as labaredas pelas costas, os romanos recortavam-se como negras e aterradoras silhuetas que projectavam longas
sombras para a frente, e a visão fez hesitar os primeiros judeus a chegarem à área. Mas depressa um parto lançou um urro de desprezo e raiva, furou por entre os
judeus amontoados e se lançou directamente contra a linha romana. O auxiliar que o confrontou preparou-se para o embate mas no último instante, com um pontapé repentino,
lançou areia contra a face do parto. Por instinto, este refreou o ímpeto e protegeu os olhos com o braço. Foi a sua morte, já que o romano aproveitou a situação,
dando um passo em frente e cravando a espada nas entranhas do outro, antes de a retirar com um berro selvagem. O parto tombou de joelhos, contemplando em choque
o sangue e os intestinos que jorravam da terrível ferida que sofrera.
Os outros estacaram ao ver tal cena, com pouca vontade de enfrentar os soldados romanos, e Cato apercebeu-se imediatamente da oportunidade. Inspirou e soltou um
grito.
- À carga!
Correu em frente, seguido pelos homens, que juntavam os seus gritos aos do oficial. Antes de embater contra o inimigo a mente de Cato nada mais registava do que
uma voragem louca, e corria-lhe nas veias uma energia feroz, como um rio de fogo. Ao golpear o mais próximo dos oponentes, um tipo pequeno, de feições escuras e
aterrorizado, ouviu-se a gritar de forma incoerente. O outro lançou o braço para a frente, os dedos a tentarem alcançar o punho da espada de Cato quando esta se
abateu sobre
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ele. O gume da lâmina esmagou a mão do homem e prosseguiu na sua trajectória, despedaçando-lhe o pescoço e cravando-se no seu ombro. Gritou de medo e dor enquanto
Cato arrancava a lâmina e o empurrava para o lado, já à procura de novo inimigo. Em redor, a pequena força romana tinha investido sobre os revoltosos e os homens
cortavam e golpeavam com todo o vigor, lançando gritos e imprecações enquanto a luz vermelha dos incêndios dava origem a um macabro jogo de luz e sombras irrequietas
sobre o solo.
Cato fixou a vista num tipo forte e de longa barba escura. Empunhava uma pesada espada recurva que segurava com ambas as mãos, e quando notou a atenção do oficial
romano fez rodar a lâmina sobre a cabeça e correu na direcção de Cato. A face da lâmina refulgia em tons laranja ao captar a luz das chamas, e tornou-se uma mancha
quando foi dirigida contra o centurião. Este percebeu que não conseguiria bloquear aquela investida. Tentá-lo seria uma sentença de morte. Em vez disso, saltou para
o lado, chocando contra outro homem e tombando pelo solo com ele. A lâmina recurva abateu-se sobre a terra mesmo junto a Cato, lançando faíscas ao atingir uma pedra.
Cato lançou a perna num pontapé que atingiu em cheio o pulso do outro com os pregos da sola da bota. O judeu soltou um berro e perdeu o controlo da pesada espada,
que caiu para o solo. Mas antes que Cato lhe pudesse aplicar um golpe mortal, o homem com quem chocara lançou-se sobre ele, prendendo-o ao solo e tentando feri-lo
na face e na garganta com mãos desesperadas. A espada do centurião estava presa ao lado do corpo; fechou o punho esquerdo e deu um forte murro na cabeça do outro.
Apesar de abalado, o adversário não o libertou, mantendo a pressão sobre a traqueia do jovem, esforçando-se ao máximo e deixando bem marcados os polegares na pele
de Cato.
- Não! - Rosnou Cato. - Nem penses, filho da puta!
Aplicou uma forte joelhada entre as pernas do outro, sentindo a rótula a esmagar-lhe os órgãos genitais. O homem arfou, rebolou os olhos e afrouxou momentaneamente
a pressão. Aproveitando a ocasião, Cato usou todo o peso do corpo para o lançar para o lado e, assim que os movimentos da mão se voltaram a tornar possíveis, cravou-lhe
a espada no flanco. A lâmina saiu da ferida com um ruído de sucção, e Cato voltou a pôr-se de pé. À sua volta, os auxiliares tinham liquidado vários inimigos, mas
já muitos outros se aproximavam, bem visíveis ao brilho das labaredas. Demasiados, para lá da capacidade da sua pequena força, e conscientes da sua superioridade,
pelo que atacavam sem cessar. Cato percebeu que já tinha feito tudo o que podia. Ficar ali por mais um instante que fosse seria pedir a morte.
- Recuem! - Gritou. - Agora!
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Virou-se e correu para longe, passando pelos onagros em chamas e escapulindo-se para a segurança da escuridão. Os homens seguiram-no, respirando pesadamente devido
a toda a excitação e correria. O inimigo perseguiu-os, avançando como uma onda imparável. Alguns perceberam as prioridades e preferiram deter-se junto aos onagros
para, esquecendo o terrível calor que se soltava das labaredas, tentar desesperadamente afastar as pilhas de material combustível que os romanos tinham acondicionado
em volta das pesadas estruturas das máquinas. Houve quem lançasse areia sobre as chamas, tentando abafá-las, enquanto outros despiram as pesadas vestes e bateram
com elas nas labaredas. Mas uma larga maioria dava asas ao desejo de vingança contra os romanos que tinham ousado sair do forte e atacar o acampamento. Correram
para lá dos onagros e continuaram a perseguir Cato e o seu grupo, entrando pelas trevas que dominavam a paisagem.
- A mim! - Gritou Cato. Queria que os homens se mantivessem juntos, para ter a certeza de que todos passavam pelas defesas sem problemas. À direita via-se
a massa escura do forte, com tochas a arder em cada uma das torres de canto. A meio da muralha via-se a trémula luz da candeia e, mais atrás ainda, fazendo um ângulo
com ela, a luz ainda mais fraca da outra lamparina, na janela do edifício de comando.
- Continuem. - Sussurrou Cato aos vultos que o rodeavam. Ouvia claramente os gritos dos perseguidores, pouco atrás. - Fiquem ao pé de mim.
Os homens correram, dirigindo-se para o forte quase por instinto, enquanto o ângulo entre as duas luzes sinalizadoras se estreitava. Por fim, o inevitável aconteceu.
Precisamente quando Cato alcançou a posição em que as luzes ficaram alinhadas, ouviu um grito de dor mesmo atrás de si. Rodou sobre os calcanhares e viu um vulto
a rebolar no solo, a gemer por entre dentes cerrados.
- O que foi?
- O Petrónio, senhor. Pisou uma das armadilhas.
Cato agachou-se ao lado do homem e avaliou a ferida, seguindo pela barriga da perna até à bota, até encontrar as pontas aguçadas. Não havia tempo a perder, pelo
que agarrou firmemente na peça metálica e fê-la deslizar pela carne do soldado. Petrónio soltou um grito de surpresa e dor, que teve resposta imediata da parte dos
perseguidores, alertados para a origem do som.
- Merda. - Murmurou Cato. - Levanta-o. Estamos mesmo na passagem. Dirige-te para a muralha, e mantém as luzes alinhadas na tua frente.
Cato contou sete homens e resolveu esperar mais um bocado pelos outros, mas apercebeu-se, pelos gritos que escutava, de que o inimigo se encontrava próximo, pelo
que seguiu o grupo de sobreviventes. Os
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perseguidores estavam mais perto do que ele pensava, e irromperam pela escuridão, gritando uns para os outros assim que avistaram o vulto de Cato a esgueirar-se,
tão depressa quanto se atrevia, pelo meio das defesas do forte. Com a presa à vista, os judeus lançaram-se sobre ela sem tomar quaisquer precauções, cortando a direito
pelo meio das defesas, num esforço para cortar a passagem aos romanos, sem saber que estes seguiam um caminho pré-determinado. Cato deu mais alguns passos antes
de se virar e se agachar, preparado para lutar pela vida. Ouviu-se um uivo de dor, e o mais próximo dos judeus caiu, agarrado ao pé. Logo outro homem tombou, e um
terceiro afundou-se noutra das armadilhas. Só um se conseguiu aproximar de Cato, lançando-se contra o centurião e tentando alcançá-lo com a longa espada que empunhava.
Cato mal teve tempo de bloquear a estocada lançada contra o seu corpo, mas o adversário voltou a atacar com um golpe horizontal, obrigando-o a agachar-se sobre o
joelho e a desviar a cabeça. Quando a lâmina lhe passou por cima, Cato lançou um golpe aos joelhos do outro; sentiu a arma atingir a articulação, cortando tendões
e esmagando ossos, e obrigando o oponente a cair de costas, com um grito. Cato deixou-o e procurou reencontrar o alinhamento das luzes. Só então prosseguiu em direcção
à muralha.
Atrás dele, os judeus tinham finalmente percebido o perigo que corriam e tinham-se detido no perímetro externo das defesas. Cato sorriu para si mesmo. O plano tinha
corrido como esperara. Só faltava chegar à muralha e andar junto a ela até à portinhola, e a sortida estaria concluída. Qualquer coisa se abateu sobre a areia perto
dele. E logo a seguir o efeito repetiu-se junto à sua bota esquerda, fazendo saltar gravilha, que o atingiu. Frustrados pela presença das armadilhas, os sitiantes
atiravam pedras às cegas, na esperança de atingir algum dos romanos.
Cato baixou a cabeça e acelerou o passo, temendo sentir a qualquer momento um ferro aguçado a trespassar-lhe as solas das botas, o que o deixaria ferido e indefeso.
De repente deu de caras com os seus próprios homens, e teve que parar subitamente, quase caindo por cima deles.
- Foda-se, estão à espera de quê? Toca a mexer.
- Senhor, não podemos. - Quem faloufoi um dos homens que ajudava Petrónio. - O Glábaro levou uma pedrada. Apagou-se.
Cato sentiu um momento de pânico quando olhou para os três homens: um estava prostrado no solo, Petrónio estava semi-ajoelhado e o terceiro homem segurava-o sob
os braços, tentando mantê-lo em pé. Um rápido olhar para trás revelou-lhe que os judeus se movimentavam ao longo da linha de defesas. A qualquer instante chegariam
à entrada da passagem, e era bem possível que um deles, mais perspicaz, adivinhasse o significado do alinhamento das lamparinas. Depressa os seus piores temores
se viram
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confirmados, já que o mais adiantado dos inimigos se aventurou cuidadosamente pela estreita vereda que serpenteava em segurança por entre as armadilhas. Cato engoliu
em seco, só então reparando que tinha a boca tão seca como a areia que os rodeava por todos os lados. Tomou a única decisão que lhe era permitida pelas circunstâncias,
e pegou em Petrónio pelo lado desamparado, erguendo-o.
- Vamos embora.
- Senhor, e o Glábaro?
- Temos que o deixar.
- Não!
- Cala-te e anda.
- Mas ele é meu amigo.
Cato lutou para controlar a cólera que ameaçava explodir, e falou no tom mais calmo que conseguiu.
- Não os podemos levar aos dois. Temos que o deixar. Senão, ficamos cá todos. Vamos embora.
Avançou; o peso de Petrónio forçou o outro homem a avançar, sem tempo para mais do que um último olhar ao amigo desacordado. Cato não desviava o olhar das candeias,
para garantir que não saíam do caminho seguro, e nem se atrevia a olhar para trás para avaliar a proximidade dos perseguidores. Alcançaram o fosso e desceram em
desalinho, meio a andar e meio a escorregar até ao fundo; começaram a subida da outra face lutando com o peso morto do ferido. Finalmente viram-se na estreita faixa
de terra lisa na base da muralha, e dirigiram-se à portinhola. Cato entrevia as silhuetas dos outros homens do grupo que liderara, e forçou-se a prosseguir. A segurança
oferecida pelas muralhas do forte estava a poucos momentos de distância.
Lá em cima surgiu um clarão, seguido pelo ruído de madeira a queimar, e uma bola de chamas desceu do alto da muralha, tombando para o fosso e iluminando toda a área
em redor. Cato olhou para trás e avistou os primeiros dos perseguidores; já tinham ultrapassado a linha de defesas e desciam para o fosso quando foram apanhados
pela súbita iluminação. Ouviu a voz de Macro a dar ordens.
- Arqueiros! Apanhem-me aqueles cabrões!
Hastes decoradas com penas voaram pelo ar e foram encontrar os homens que perseguiam Cato e a sua força, fazendo tombar vários e obrigando os outros a deter-se e
tomar em consideração a nova ameaça. Depressa outras flechas fizeram vítimas, e os sitiantes interromperam o avanço. Cato voltou de novo a sua atenção para a muralha,
apressando-se até à entrada. A pesada e espessa porta já estava aberta; lançaram Petrónio lá para dentro e seguiram-no rapidamente, tombando por fim para o solo
num esforço para recuperar o fôlego.
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- Fechem a porta. Depressa. - Ordenou Cato.
O optio que comandava a secção de guarda à entrada espreitou para o exterior.
- Senhor, o resto dos seus homens?
- Já cá deviam estar. O Sicorax e os outros.
- Senhor, não tivemos sinal deles.
- Fechem a porta. - Repetiu Cato. - Se ainda não chegaram, isso quer dizer que nunca regressarão.
O optio hesitou brevemente, mas acabou por anuir e fechar a pesada porta, colocando em seguida as trancas no seu devido lugar. Cato obrigou-se a pôr-se de pé, respirou
fundo algumas vezes e indicou Petrónio.
- Levem-no imediatamente para o hospital.
Enquanto o optio fazia executar as suas ordens, Cato dirigiu-se à muralha, passando pelos arqueiros até encontrar Macro. O prefeito sorriu ao vê-lo.
- Cato! Safaste-te. E os outros?
- Tive seis baixas no meu grupo, e não há sinal do Sicorax.
- Já sei. - Retorquiu Macro, pesaroso. - Mas vamos continuar à espera que ele e os seus homens cheguem. Entretanto, dá aqui uma espreitadela. - Apontou por
cima da muralha, para os onagros. Uma das máquinas era devorada por chamas cujo crepitar era perfeitamente audível. A outra também estava a arder, mas o inimigo
afadigava-se em torno dela e acabou por conseguir extinguir as labaredas.
- Pouco importa. - Comentou Macro, com ar satisfeito. - Vai estar fora de combate por algum tempo, e o outro está completamente destruído. As nossas probabilidades
de sobrevivência aumentaram, e muito. Bom trabalho, Cato.
O jovem tentou sentir-se satisfeito perante o sucesso da missão, mas na verdade sentia-se vazio, desanimado e completamente extenuado. Se Sicorax e os seus homens
tinham sido mortos, a sortida tinha tido custos demasiado elevados, quaisquer que tivessem sido os resultados. Sentia-se culpado por ter causado a morte de todos
aqueles homens, e por momentos dirigiu o olhar sobre a muralha, para lá da bola de fogo no fosso e dos corpos espalhados em seu redor, para o deserto, tentando penetrar
a escuridão e avistar o sítio onde se vira forçado a abandonar Glábaro, como se esperasse que, de alguma forma, o homem surgisse da escuridão, a salvo. Mas estava
com toda a certeza morto. Tal como Sicorax e todos os outros. Percebeu de súbito que seria melhor que tivesse sido esse o seu destino. Se tivessem sido capturados,
não poderiam esperar qualquer misericórdia por parte do inimigo.
Abriu os braços, impotente, e deixou que a cabeça lhe pendesse enquanto se apoiava na muralha. Macro reparou no gesto.
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- Miúdo, estás estourado. Vai descansar um bocado.
- Senhòr, gostaria de esperar um pouco mais. Para o caso do Sicorax aparecer.
- Eu encarrego-me disso. - Afiançou Macro, em tom conciliador.
- Tu vais descansar, centurião. É uma ordem.
Cato olhou o amigo nos olhos. Pensou em protestar, mas apercebeu-se de que ele tinha razão. Não havia qualquer vantagem em ficarem os dois ali, a cansarem-se.
- Muito bem, senhor. Obrigado.
Lançou um último olhar ao onagro em chamas, e desejou que o sacrifício de Glábaro, Sicorax e todos os outros tivesse permitido à guarnição ganhar o tempo suficiente
para sobreviver ao cerco. Depressa o saberiam, assim que o dia nascesse.
242
XXVI

Assim que as chamas que lambiam o último dos onagros foram extintas, os engenheiros partos começaram as reparações, e o som dos trabalhos ouviu-se ao longo de toda
a noite. Pela alvorada, Macro e Cato subiram à torre para avaliar de novo os resultados do contra-ataque nocturno. Do primeiro onagro nada mais restava do que um
esqueleto arruinado e calcinado. A curta distância, porém, a outra máquina de guerra parecia praticamente intacta, e os soldados inimigos continuavam a afadigar-se
ao seu redor. Tinham sido instalados novos cabos de torção, que estavam a ser esticados com a ajuda de alavancas; vários homens actuavam em cada uma delas, esforçando
cada fibra de músculo para conseguir o poder máximo do braço de arremesso do engenho.
- Já não falta muito para estar pronto para retomar a acção. - Murmurou Cato. - Têm estado entretidos.
- Não sabes da história a metade. - Retorquiu Macro, e apontou para o solo em frente ao forte. - Logo a seguir a teres ido descansar começaram a remover as
armadilhas. Tentámos atirar archotes para que os arqueiros os conseguissem ver, mas eles levavam painéis de protecção, e assim que avistavam as flechas escondiam-se.
Só pararam quando o dia começou a nascer.
Cato olhou para baixo e percebeu que um grande número de protecções tinha sido neutralizada, as covas preenchidas com terra e as estacas removidas. Naquelas condições,
Bano e os seus homens podiam facilmente aproximar-se até ao fosso externo, perto das ruínas do torreão. Quando o inimigo resolvesse lançar um ataque, pouco ou nada
se interporia entre ele e os homens da coorte. Cato olhou de relance para o que tinha sido o portão do forte. Tinha sido feita uma tentativa de construir uma barricada,
usando os destroços da anterior edificação. Estava na continuação da muralha, e Macro tinha lá colocado homens suficientes para convencer o inimigo de que os romanos
não cederiam a posição sem luta. Um truque sem grande
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sustentação, compreendeu Cato. Assim que o onagro estivesse pronto para retomar o bombardeamento, destroçaria a muralha improvisada e obrigaria os soldados a recuar
para o interior do forte.
- Não há sinais do Sicorax e dos outros?
- Ainda nada. - Respondeu Macro, sem emoção. - Não me parece que os voltemos a ver.
Cato abanou a cabeça, desolado.
- Tantos homens perdidos, e só conseguimos destruir uma das máquinas.
- Uma destruída, outra danificada. Cato, sob qualquer ponto de vista, foi um bom resultado. Conseguiste fazê-los perder metade da eficácia do bombardeamento,
e atrasá-los bastante, até acabarem as reparações. Tu e os outros fizeram tudo o que se podia razoavelmente esperar. Portanto, nada de te apoucares, e nada de menosprezares
o esforço de todos os homens que não conseguiram regressar. - Repreendeu o veterano. - Nestas circunstâncias, tínhamos que tentar qualquer coisa; a alternativa era
ficarmos aqui sentadinhos à espera que eles viessem ter connosco. Tomámos a decisão correcta.
- Pode ser que sim, mas tudo o que conseguimos foi adiar o inevitável, e isso pouco consolo me dá. E pergunto-me se os homens que não...
- A voz de Cato interrompeu-se quando o seu olhar foi atraído para um grupo de homens que trabalhavam junto ao onagro destruído. Tinham-se entretido a resgatar
alguma da madeira e a construir algo no chão, junto à máquina destroçada. Naquele momento, vários grupos de soldados inimigos brandiam pedaços de madeira, ligados
em formas de cruz. Apontou-os.
- O que é agora aquilo?
O veterano semicerrou os olhos e depois abanou a cabeça.
- Não faço ideia. A estrutura para um aríete, talvez.
Enquanto observavam deu-se alguma agitação no campo inimigo, e logo um grupo de homens se dirigiu para a área onde estavam os engenhos de cerco. Quando se aproximaram,
Cato apercebeu-se de que conduziam um pequeno grupo de prisioneiros, com as túnicas escurecidas e a pele em chagas. Sentiu um arrepio nas entranhas quando reconheceu
um dos cativos.
- Parece-me que aquele é o Sicorax...
Enquanto observava a forma como o grupo se aproximava das armações improvisadas estendidas no solo Cato adivinhou o que se ia passar e sentiu o estômago a revoltar-se;
temeu não aguentar e vomitar. Os prisioneiros foram separados, e cada homem encaminhado para uma das cruzes. As túnicas foram-lhes arrancadas e foram forçados contra
a madeira, enquanto lhes eram cravados pesados pregos de ferro nos pulsos e nos tornozelos. Os sons dos golpes de martelo espalharam-se
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pelo campo aberto, acompanhados pelos alucinantes gritos de agonia dos prisioneiros romanos.
Nem Macro nem Cato pronunciaram qualquer palavra enquanto a primeira cruz era colocada em posição, apoiada na cova que tinha sido preparada para acolher a base.
O encaixe foi claramente audível, e o pesado impacto fez com que o pulso do prisioneiro crucificado se soltasse, o que lhe fez tombar o braço como um apêndice inutilizável,
e provocou um grito de dor. Os sitiantes não se mostraram de todo desconcertados pelo incidente. Um deles limitou-se a encostar uma escada de assalto à parte de
trás da cruz, subiu, agarrou no braço estropiado e voltou a pregá-lo no sítio. A agonia do prisioneiro era de tal ordem que, felizmente, ele desmaiou ao fim de poucos
golpes, para alívio dos camaradas que assistiam horrorizados das muralhas. O alívio foi porém de curta duração, já que depressa as outras cruzes foram erigidas,
cada uma com o seu prisioneiro, até formarem uma linha extensa mesmo em frente do onagro operacional.
Cato sentiu um sabor acre na boca, enquanto tentava engolir.
- É o destino que nos reservam, se apanharem algum de nós vivo, suponho.
- Pois. - Confirmou Macro. - O Bano está a ver se acagaça os rapazes.
- Se é isso, parece-me que está a conseguir. - Cato passou a vista de relance pela muralha, e reparou num dos homens, dobrado e a vomitar no passadiço.
- Evidentemente, para eles isto tem um toque de ironia. - Prosseguiu Macro, sem emoção. - Depois de termos crucificado tantos rebeldes nos últimos tempos,
agora é a nossa vez. Escuta-os! Adoram isto.
Quando a última cruz foi erguida, os combatentes inimigos soltaram gritos de alegria, depressa substituídos por gargalhadas cruéis, provocações e gozo impiedoso
às vítimas que se contorciam, moribundas, sangrando abundantemente, de tal forma que os peitos desnudos se tornavam vermelhos.
- Já se divertiram. - Rosnou Macro. - Agora é a nossa vez. Arqueiros! - Virou-se para os homens na muralha. Entre eles havia várias secções armadas com arcos
de longo alcance. - Arqueiros! Disparem sobre aquela malta! Disparem, porra!
A intensidade da sua raiva fez com que os homens entrassem em acção. Prepararam rapidamente os arcos, e os mais despachados colocaram as setas, retesaram as cordas
e apontaram para o céu antes de libertar as cordas tensas. A primeira rajada, pouco disciplinada, tombou sobre a turba e derrubou alguns dos inimigos, antes de todos
dispersarem e se protegerem. A intensidade do ataque aumentou, e mais homens foram abatidos. Nessa altura, uma das setas atingiu um dos romanos nas cruzes, trespassando-lhe
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a garganta e fazendo-o ter um espasmo, lutar por um momento e ficar depois inerte e abatido.
- Estão a atingir os nossos! - Gritou Cato, horrorizado. - Diga-lhes para parar!
- Não. - Contrariou-o Macro. - Era isso que eu queria.
Cato virou-se, sem compreender.
- O quê?
Macro ignorou-o, e voltou-se novamente para os arqueiros.
- Muito bem, rapazes! Continuem! Dêem-lhes!
Os soldados continuaram a disparar tão depressa quanto lhes era possível, sem tempo para apreciar as trajectórias dos projécteis que enviavam, pelo que a princípio
nem se aperceberam de que estavam a atingir os seus camaradas. Macro aguardou até que o inimigo dispersasse e que todos os prisioneiros tivessem sido silenciados,
antes de dar ordem de cessar-fogo. Só nessa altura os homens perceberam todos os resultados das suas acções, o que os fez contemplar o campo inimigo com estupefacção
e silêncio, só interrompido pelos berros de Macro, a distribuir ordens.
- A primeira centúria fica de guarda! Todas as outras, ao pequeno-almoço!
Ao notar que os homens respondiam lentamente às ordens, Macro não se impediu de assentar um murro no parapeito da muralha.
- Oficiais! Ponham os vossos homens a mexer! Ninguém aqui é pago à hora!
Encarou os oficiais de mau-humor, forçando-os a apressar os homens, pelo que depressa a muralha ficou semi-deserta, ocupada apenas por um punhado de soldados, espalhados
pelo perímetro. Nesse instante acenou, satisfeito.
- Não quero os homens a apreciar aquele espectáculo por mais tempo do que for realmente necessário. Quero que se concentrem no combate, não no que pode suceder
depois.
- Se souberem o que Bano lhes reserva, não terão problemas em combater até à morte.
- Pode ser que sim. - Retorquiu Macro. - Mas o mais provável é que não combatam com muita alma, se lhes der tempo para pensarem no destino daqueles desgraçados.
Cato percebia a lógica do pensamento do amigo. Macro conhecia perfeitamente a forma como as mentes dos soldados funcionavam, e mesmo que os homens no forte Bushir
estivessem condenados, tratava de garantir que eles estariam concentrados em provocar o maior número de baixas possível ao inimigo antes de serem aniquilados. Profissional
até ao derradeiro fôlego, admirou Cato. E havia todas as probabilidades de que o
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momento desse fôlego final chegasse mesmo, algures nos próximos dias. Olhou de novo para os corpos expostos nas cruzes.
- Era mesmo necessário matá-los?
Macro fungou.
- O que terias tu feito? Deixá-los ali, para morrerem lenta e dolorosamente? Cato, foi um gesto de misericórdia.
O jovem franziu a testa, já que um pensamento assustador lhe tinha ocorrido. Virou-se para o amigo.
- E se eu tivesse sido também capturado com o Sicorax e os outros? Teria dado ordens aos arqueiros para me abaterem também?
Um olhar de surpresa atravessou o rosto do veterano.
- Sem qualquer ponta de dúvida, Cato. Nem hesitava, e olha que se lá estivesses, na cruz como um deles, bem mo agradecerias, acredita.
- Não estou assim tão certo.
- Fosse como fosse, não terias escolha. - Macro sorriu de forma cruel, antes de continuar, em tom confidencial. - E se por acaso fosse eu a estar naquela
situação, esperaria que fizesses o mesmo por mim. O problema é que não sei se terias tomates para isso... Que dizes?
Cato olhou para ele por momentos, e depois abanou a cabeça.
- Não sei. Não sei mesmo se seria capaz de o fazer.
Macro cerrou os lábios, pesaroso.
- És um bom homem. Um excelente soldado, e um grande oficial, durante a maior parte do tempo. Se nos safarmos desta, um dia hás-de ter o teu próprio comando,
e eu não estarei lá para te ajudar. E nessa altura, Cato, hás-de ter que tomar decisões realmente difíceis. Podes ter a certeza. E a questão é: estás pronto para
isso? - Olhou fixamente para o seu jovem amigo, antes de lhe dar um suave murro no ombro. - Pensa nisso. Entretanto, quero que vás ver se o que resta do torreão
da entrada está nas melhores condições possíveis, antes que Bano volte a pôr o onagro em acção.
- Senhor, parece-me que isso é trabalhar para nada. Ele destruirá rapidamente todas as reparações que pudermos fazer agora.
- Pois, mas servirá para manter os homens ocupados, sem pensar em coisas tristes. E isso inclui-te a ti. Além de demonstrar ao Bano e aos seus amiguinhos
que a Segunda Ilírica nunca há-de desistir de lutar, que não vamos rolar pelo chão e esperar que nos ponham a bota em cima. Somos muito melhores do que isso. Percebes
o que estou a dizer?
- É claro. - Ripostou Cato, magoado. - Não sou parvo.
- Muito longe disso. Mas até as mais brilhantes mentes podem aprender alguma coisa com os que têm mais experiência, hã? - Macro sorriu. - Agora vê lá se fazes
um trabalho decente naquelas fortificações.
- Sim, senhor. - Assentiu Cato. - Darei o meu melhor.
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- Evidentemente. Nem esperaria menos. Vá, centurião, não fiques aí especado. Mexe-te!
Toda a manhã os homens se empenharam na construção de um diminuto muro de defesa sobre as ruínas do torreão, e no reforço da barricada interna. Recordando as palavras
de Macro, Cato não lhes deu descanso, permitindo apenas algumas curtas pausas no trabalho de tornar o muro mais espesso e fazer a barricada mais alta. Se o inimigo
conseguisse forçar a passagem por aquele último obstáculo, a Segunda Coorte Ilírica deixaria de existir. Enquanto os soldados romanos se afadigavam no interior do
forte, as forças inimigas continuavam a limpar o terreno de armadilhas, com um grupo de homens protegido por arqueiros prontos a alvejarem quem, do forte, se atrevesse
a pôr a cabeça de fora nas ameias. Mais atrás, os engenheiros suavam sob o sol inclemente, na tentativa de repor o onagro sobrevivente em condições de funcionamento.
Pouco depois do meio-dia, os homens envolvidos nessa tarefa recuaram, admirando o serviço, e o braço de lançamento foi cuidadosamente preparado enquanto todos procuravam
qualquer sinal de danos não assinalados anteriormente, antes de recomeçar o bombardeamento do forte. Finalmente, todos se deram por satisfeitos. Uma ordem curta
foi emitida, a alavanca libertada e o braço elevou-se até embater na barra de travão com um estrondo, soltando o míssil pelo ar; o projéctil descreveu o habitual
arco e precipitou-se sobre o alvo do costume: o que restava do torreão. Cato e o grupo que trabalhava no reforço do muro reagiram de imediato, largando todas as
ferramentas e correndo para trás da barricada.
Os engenheiros partos eram realmente muito bons, ou pelo menos muito sortudos, pensou Cato, precisamente no momento em que aquele primeiro projéctil se abatia sobre
o muro e abria um considerável buraco nas defesas que tanto trabalho tinham dado a reconstruir. O bombardeamento prosseguiu, num ciclo infindável de sons repetidos
enquanto o braço era puxado para trás, libertado, travado e depois se ouvia o impacto que provocava a derrocada das fortificações romanas. Depois do primeiro impacto,
Cato tinha dado ordens para os homens se recolherem por trás da barricada, e acorrera a uma das torres de canto para observar os acontecimentos à medida que a tarde
quente se alongava. A destruição do que restava do torreão prosseguiu de forma metódica e gradual, começando pelo muro e prosseguindo até deixar apenas uma pilha
de entulho, criando no processo uma brecha ideal para o assalto de Bano e dos seus homens. Quando a luz começou a fraquejar e as areias do deserto já brilhavam e
ondulavam sob o calor do poente o onagro foi finalmente silenciado, e os homens no interior do forte puderam enfim abandonar o abrigo
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da barricada, onde tinham passado o dia encolhidos e temerosos, a ver as pedras a voarem na sua direcção. Quando ficou certo de que o bombardeamento terminara, Cato
mandou chamar Macro. O prefeito juntou-se a ele junto ao torreão destruído, e deu uns passos tímidos no monte de entulho.
- Vão passar facilmente por cima disto.
- Quando pensa que lançarão o assalto? - Indagou Cato.
- É difícil dizer. - Macro olhou para o céu, que já escurecia, tomando um tom anilado apenas trespassado pelo brilho de uma primeira estrela. - Acho que vão
esperar pela luz da manhã, para poderem avaliar a progressão do assalto. - Encolheu os ombros. - Pelo menos, seria assim que eu faria, se estivesse na posição deles.
Nesse momento ouviram o som de tambores e a nota estridente de uma trombeta.
- O que é isto? - Admirou-se Cato. - O que é que estarão a preparar?
- Como hei-de eu saber? - Resmungou Macro. - Vamos mas é espreitar.
Fez sinal a Cato para o seguir e começou a trepar pela pilha de calhaus soltos, placas rochosas, e traves partidas. Quando alcançaram o cimo do monte, Cato espraiou
o olhar sobre o campo inimigo. Um grande número de homens estava a formar em frente ao que tinha sido o portão do forte, mantendo-se fora do alcance dos arqueiros
romanos. O sol, já muito baixo, banhava-os numa luz alaranjada que se reflectia no equipamento e os fazia parecer de bronze.
- Bonito! - Comentou Macro, assinalando o contraste entre a cor das tropas e o tom do céu distante. - Mas parece-me que este espectáculo é desperdiçado naqueles
amigalhaços. Tem outras coisas com que se ocupar.
- Virou-se para Cato com uma expressão de quem lamenta ter enganado outrem. - Olha, parece-me que estava enganado. Não estão para esperar até amanhã de manhã.
Vão lançar um assalto imediatamente.
249
XXVII

Enquanto o inimigo concentrava as suas forças no exterior, Macro dava ordens apressadas para a defesa do forte. O alarme foi dado, e os homens jorraram das casernas,
com o equipamento na mão, dirigindo-se às posições que ocupavam na parada enquanto as sombras dos edifícios do forte se alongavam pelo solo. Para lá da centúria
de serviço que guarnecia naquele momento as muralhas, estavam a postos mais nove centúrias de infantaria e quatro esquadrões de cavalaria, que combateriam a pé.
Não haveria oportunidade para o habitual discurso de motivação, para despertar o espírito de luta da unidade. Sem perder tempo, Macro deu ordens para que os esquadrões
de cavalaria se mantivessem formados, como força de reserva pronta a ser chamada à frente. Foi destacada uma centúria para cada frente da fortaleza, e as outras
seis foram designadas para a face que enfrentava o inimigo.
Macro virou-se para Cato.
- Ficas a comandar a barricada. Não me vou poder envolver directamente neste combate, uma vez que tenho que prestar atenção a todas as posições. Portanto,
quero o meu melhor oficial no ponto mais crítico.
- Obrigado, senhor. Prometo que não o deixarei ficar mal.
- Se isso acontecer, nenhum de nós ficará vivo para o lamentar. - Macro obrigou-se a soltar uma gargalhada. - Ou seja, vê lá se não deixas passar aqueles
sacanas.
- Não deixarei. - Retorquiu Cato. - Havemos de os aguentar até à chegada de Simeão e dos seus amigos.
- Oh, ele há-de aparecer, sim - Confirmou Macro, com confiança na voz. - Se sei julgar o carácter de um homem, ele é do tipo dos que nunca deixam passar uma
boa batalha. Portanto, teremos de lhe deixar alguns partos, para ele ainda ter alguma coisa com que se entreter quando chegar.
Cato sorriu.
- Verei o que se pode arranjar.
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Macro ofereceu-lhe a mão.
- Boa sorte, miúdo. Bem vamos precisar dela, esta noite.
Cato apertou firmemente o braço do amigo.
- Boa sorte para si também, senhor.
Macro acenou brevemente, e instalou-se entre os dois um silêncio incómodo, enquanto o veterano se perguntava se ainda estariam os dois vivos pela manhã. Cato pareceu
adivinhar-lhe os pensamentos, e rompeu a quietude.
- Senhor, já enfrentámos juntos inimigos bem piores.
- Ah, mas isso foi na Segunda Legião. - Macro passou a vista em redor, sobre os homens que atravessavam a parada e se preparavam para ocupar as posições que
lhes tinham sido atribuídas. - Estas tropas auxiliares estão muito longe de serem legionários. Bom, ao menos parecem competentes. - Concedeu, a contragosto. - Depressa
saberemos de que têmpera são feitos. Bom, vai lá para o teu posto.
Enquanto Cato se juntava aos seus homens e os levava para a posição designada na barricada em frente ao inimigo, pensou mais uma vez em Simeão e desejou ardentemente
que a avaliação que Macro fizera do homem estivesse correcta. Mas, mesmo que fosse o caso, estariam os homens que Simeão conhecia em Petra dispostos a honrar a promessa
que tinham feito aos romanos? Não se sentia seguro quanto a esse pormenor. Pouco conhecia dos povos da fronteira oriental, e não se sentia capaz de julgar o seu
carácter. Tudo o que podia fazer, ele e todos os homens da coorte, era ter esperança. A solução era simples: ou Simeão e os nabateus os salvavam, ou morreriam a
combater. As forças romanas da Síria não viriam em seu auxílio. Isso era praticamente certo. Longino contava com Bano para destruir aquele forte, e com ele todos
os homens que sabiam da sua deslealdade ao Imperador. Cato sorriu para si mesmo. Sobreviver àquilo valeria a pena, nem que fosse só para ver a expressão na face
do governador.
Quando alcançou a barricada, Cato dispôs duas centúrias na plataforma por trás das ameias improvisadas. Os homens que tinham arcos foram colocados dos dois lados
do torreão semi-arruinado e nos telhados das edificações mais próximas. Todas as setas e dardos que podiam ser dispensados pelas outras centúrias foram empilhados
e postos à disposição das quatro centúrias de reserva, comandadas por Parmenião e prontas a avançar para a frente de combate assim que necessário. A primeira vaga
de rebeldes judeus a penetrar pela brecha encontraria uma barragem de projécteis vindos de três direcções. Cato já imaginava os resultados devastadores dessa táctica,
e esperava ardentemente que fossem o suficiente para lhes quebrar o espírito de conquista. Talvez pudessem ser persuadidos a abandonar o cerco e a regressar para
as suas aldeias, imediatamente, antes que
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corresse sangue suficiente para despertar uma insaciável sede dele, quer em Roma quer na Judeia. Se Bushir tombasse, toda a província se veria condenada a anos de
fogo, espada e morte, numa escala inimaginável. E portanto, por muito dura que fosse a realidade, Cato e os seus homens tinham de se assegurar de que provocariam
a máxima mortandade na primeira onda de atacantes e de que o fariam da forma mais brutal possível.
Enquanto os últimos homens se acomodavam na posição designada, o sol mergulhava no horizonte, banhando rostos e armaduras numa luz calorosa e avermelhada. Era um
pequeno favor da natureza, já que o brilho do astro-rei tornava impossível distinguir com precisão a massa da força inimiga que se preparava para se abater sobre
eles; porém, os romanos escutavam com facilidade os gritos e brados de triunfo que os rebeldes soltavam enquanto se aproximavam da brecha na muralha da fortaleza.
À medida que se abeiravam do forte começou a ouvir-se o bater ritmado de espadas e lanças contra as bordas dos escudos, e o ar encheu-se do estrépito anterior à
batalha, contribuindo para aumentar a sensação de que uma terrível ameaça se acercava por trás do monte de entulho, tudo o que restava do torreão.
Cato saltou para a plataforma e furou por entre os homens até se ver no centro da muralha improvisada. Puxou o escudo para a frente e empunhou a espada, notando
que o som da aproximação do inimigo se tinha tornado um urro ensurdecedor. Na muralha, alguns dos arqueiros já tinham começado a disparar contra a hoste ainda escondida
da vista dos que guarneciam aquela linha de defesa. Respondeu-lhes a metralha dos fimdibulários inimigos, que depressa encontrou alvos por entre os romanos e provocou
as primeiras baixas daquele assalto; um chumbo esmagou a mão de um dos arqueiros. Cato viu o homem largar o arco e levar a mão ao peito, esquecendo-se de se proteger
enquanto se erguia. Foi imediatamente atingido por outro projéctil, na face, e tombou, mergulhando para o solo.
Observando os homens à sua volta, Cato sentiu-se agradado ao vê-los prontos para o combate, sem despegarem os olhos do monte de entulho à sua frente, de onde o inimigo
surgiria daí a pouco. Alguns pareciam estar tão nervosos como o jovem centurião, e ele percebeu que tinha que dizer qualquer coisa para os animar.
- Aguentem, rapazes! Eles são como reses a caminho do matadouro. Não os vamos desapontar!
Ficou aliviado ao verificar que o comentário tinha provocado alguns sorrisos e até mesmo uma ou duas gargalhadas. Mas o bom humor dos soldados foi de curta duração,
já que a troca de projécteis aumentou subitamente de intensidade, e mais três romanos tombaram das muralhas. Nesse momento Cato avistou as pontas das primeiras lanças
do inimigo, a surgir por sobre o monte de entulho e blocos rochosos, recortadas a negro contra
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o horizonte avermelhado. Agarrou com mais força na espada e virou-se para dar uma ordem aos homens que aguardavam por trás da barricada.
- Tratem de passar os dardos para a frente, e não parem!
Voltou-se mesmo a tempo de ver os primeiros oponentes sobre a
crista, a levantar nuvens de poeira enquanto se precipitavam para a brecha. Sobre eles choveram flechas, vindas de ambos os flancos, e muitos tombaram, desaparecendo
da vista, mas outros os substituíram, correndo pela encosta irregular na direcção do forte enquanto soltavam agudos gritos de guerra. Uma onda de silhuetas negras
ameaçava submergir os defensores, ultrapassando a crista e inundando a zona de combate mesmo à frente da barricada.
- Preparar dardos! - Gritou Cato. Os homens nas ameias prepararam o lançamento, puxando os braços atrás. O jovem esperou ainda um momento, permitindo que
mais elementos do inimigo passassem pela crista e assim aumentasse a densidade do alvo para os seus homens. Ergueu então a espada.
- Prontos!... Lançar!
Um grunhido de esforço colectivo soltou-se das gargantas dos auxiliares quando lançaram os braços para a frente, soltando os pesados dardos de ponta metálica contra
a multidão de adversários que se acotovelavam no apertado espaço da brecha em frente à barricada. Dúzias de homens foram abatidos, trespassados pelas lanças romanas.
Os gritos de triunfo que lhes ocupavam as gargantas um momento antes morreram com eles, e um brevíssimo instante de silêncio assinalou a perda de ímpeto dos atacantes
face aos resultados do primeiro ataque de dardos. Na muralha, os soldados já preparavam um segundo lançamento, graças aos dardos que lhes tinham sido passados de
trás.
Cato encheu os pulmões e soltou um brado.
- Lancem à vontade!
Uma chuva constante de dardos abateu-se sobre a massa inimiga concentrada à frente da barricada, e mais e mais corpos foram tombando sobre o solo, enquanto as hastes
das lanças se projectavam para o céu, assemelhando-se a um estranho jardim de juncos. Mas os revoltosos não paravam de avançar, saindo da nuvem de poeira e precipitando-se
contra o forte, criando uma tão densa aglomeração que aos lançadores romanos era praticamente impossível falhar. Cato sentiu-se enjoado ao observar o massacre. O
chão já estava coberto de mortos e feridos, ensopados em sangue, e o centurião teve de combater um impulso de ordenar aos seus homens que parassem a carnificina.
A matança tinha de prosseguir, se queriam ter alguma hipótese de destruir definitivamente a vontade de lutar do inimigo.
Os judeus insistiram no assalto pelo que pareceu uma eternidade, apesar dos gritos de pânico dos que se viam apanhados naquela ratoeira letal, e da raiva e frustração
que sentiam ao verem-se impedidos quer de avançar e enfrentar os romanos, quer de recuar e de fugir à terrível chuva de dardos. A pressão constante dos que vinham
a seguir, que ainda não se tinham apercebido do massacre que estava a ocorrer à entrada do forte, obrigava os homens na frente a permanecerem amontoados e a morrerem
ali mesmo.
Por fim, sem se perceber bem como, as notícias chegaram às fileiras mais recuadas, e foi dada ordem para interromper o ataque. Ainda debaixo de uma chuva de dardos
e setas, os judeus começaram a retirar-se em desalinho, trepando sobre o entulho e os corpos dos seus camaradas até deixarem vazia a área em frente à brecha, recuando
sob a diminuta luz do entardecer. Cato embainhou a espada e contemplou uma cena grotesca, com cadáveres empilhados, hastes de dardos a projectarem-se em todas as
direcções e sangue escuro espalhado por todo o lado. Mas havia ainda vida no meio da destruição. Aqui e ali corpos contorciam-se em agonia, e escutavam-se gemidos
e pedidos de ajuda ou morte misericordiosa por parte dos feridos. Cato virou as costas à cena e desceu da plataforma, percorrendo o contorno da barricada até chegar
à escada que levava à muralha principal. Subiu-a. De lá de cima conseguia ver até ao campo inimigo. Os judeus afastavam-se do forte, com o incentivo das setas que
ainda se precipitavam sobre eles. Alguns, mais aguerridos, mantinham-se próximos e respondiam com fundas aos disparos dos romanos.
Cato observou a zona próxima da brecha, reparando na quantidade de cadáveres empilhados junto à barricada. Eram seguramente mais de cem, a que se juntavam uns vinte
ou trinta abatidos mais longe, para lá das ruínas do torreão. As baixas sofridas por Bano neste primeiro assalto tinham sido terríveis, e o comandante inimigo teria
com certeza dificuldade em persuadir os seus homens a atacarem de novo a brecha, cogitou Cato. Pôs a cabeça de fora e contemplou o campo adversário, tentando adivinhar
o que estaria Bano a pensar enquanto contemplava o falhanço total e absoluto em que se transformara a sua primeira tentativa de tomar o forte.
- Senhor! - Um dos arqueiros próximos fazia gestos ansiosos para que Cato se baixasse. - Se um daqueles cabrões das fundas avista a crista do seu capacete,
vai ser pior do que um enxame de abelhas em roda de mel.
Como se o tivessem escutado, o ar encheu-se dos típicos zumbidos dos projécteis de funda, e Cato mergulhou para o solo. Acenou ao arqueiro, agradecido.
- Obrigado pelo aviso.
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- Aviso? - As sobrancelhas do homem ergueram-se em surpresa.
- Senhor, não estava a avisá-lo. Só não queria aqueles sacanas a atirar na minha direcção.
- Oh. - Cato soltou uma risada. - Obrigado, de qualquer maneira.
O homem encolheu os ombros, colocou outra flecha no arco e espreitou cautelosamente sobre a muralha, em busca de um possível alvo. De repente, inclinou o tronco,
soltou a seta e agachou-se rapidamente. No instante seguinte, um projéctil de chumbo ressaltou com estrondo contra a muralha. Os últimos fulgores do dia ainda iluminavam
o forte, enquanto o deserto à sua frente já estava mergulhado nas sombras, pelo que Cato se apercebeu de que a vantagem estava ainda do lado dos fundibulários inimigos.
Virou-se para os arqueiros.
- Mantenham a pressão até eles estarem fora de alcance. Escolham bem os vossos alvos! Não vos quero a desperdiçar setas. Ainda vamos precisar delas.
Trocaram uma rápida saudação e Cato desceu da muralha, juntando-se de novo aos homens na barricada. Havia tantos corpos abatidos à frente da fortificação improvisada
que até podiam servir de rampa de ataque, e Cato resolveu lidar de imediato com esse problema. Procurou por Parmenião na escuridão crescente e fez-lhe sinal para
se aproximar.
- Temos de tirar dali aqueles corpos. Pega em duas das centúrias de reserva e leva os mortos dali para fora. Deixem-nos bem à vista dos outros. Empilhem-nos,
de forma a que os rebeldes os vejam bem. Depois disso, procurem os dardos que ainda estejam em condições de ser utilizados e tragam-nos de volta. Percebido?
- Sim, senhor. - Retorquiu Parmenião. - Depois do que aqueles filhos da puta fizeram ao Sicorax, havemos de lhes mostrar que também podemos brincar com o
moral das tropas.
Cato deu-lhe uma palmada no ombro.
- É isso mesmo. Põe os homens a trabalhar.
Enquanto Parmenião berrava ordens, Cato regressou à muralha principal para vigiar as actividades do inimigo. Os judeus tinham-se retirado até uma distância segura,
e os líderes davam o seu melhor para animar as tropas a lançar um novo assalto. Já havia algumas fogueiras acesas no acampamento, e havia tochas a iluminar homens
que empurravam pilhas de paus na direcção do forte. Ao mesmo tempo, soldados com os capacetes cónicos dos partos esforçavam-se para empurrar o onagro sobrevivente
para mais perto do alvo. Cato olhou para baixo e viu que Parmenião e os seus homens tinham colocado escadas e já se ocupavam a transportar os corpos, subindo o monte
de entulho e lançando-os para o outro lado, onde formavam uma nova pilha mesmo em frente à brecha na muralha. Alguns
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dos soldados inimigos ainda estavam vivos, e os auxiliares romanos tratavam de os despachar com uma estocada ao coração ou um corte de goelas antes de os arrastar
para longe.
Enquanto a escuridão se abatia sobre o deserto e as primeiras estrelas cintilavam friamente no negrume do céu, os sitiantes voltaram à carga. Ouviu-se um grito de
aviso e no momento seguinte os homens que tinham estado a limpar os corpos inimigos apressaram-se a regressar para trás da muralha, trazendo consigo as escadas.
Desta vez não houve nenhum clamor de triunfo, nem o coro arrogante de espadas e escudos, apenas a aproximação silenciosa e decidida da massa escura de homens. Pararam
mesmo no limite do alcance das flechas romanas, e aguardaram até que o onagro chegasse a essa posição. Uma tocha foi passada de mão em mão até acender um braseiro
próximo da máquina, e a luz revelou o grande grupo de homens que a rodeava.
Não foi preciso muito tempo para perceber do que estavam eles à espera. Um estopim foi posto na colher e incendiado, e logo arremessado na direcção do forte. A chama
atravessou o céu lançando línguas de fogo e precipitou-se sobre o cimo das muralhas, lançando fagulhas brilhantes em todas as direcções e tombando depois para um
arruamento interior, junto aos estábulos. Logo a seguir começaram a chover flechas incendiárias, num bombardeamento constante que era de vez em quando amplificado
pela chegada de fardos de lenha em chamas que espalhavam o fogo por todo o lado, já que vinham encharcados em óleo. A falta de chuva tinha transformado os edifícios
de madeira do forte numa verdadeira pilha de combustível, pelo que depressa os incêndios se espalharam.
Cato contemplou o panorama, enquanto mais um bloco de casernas se via envolvido nas labaredas. Desceu da plataforma e foi ter com Parmenião, que comandava as tropas
de reserva. A maior parte dos soldados estava agachada, presa dos nervos, enquanto esperava a chegada de mais um míssil incendiário. Cato aproximou-se.
- Temos que tratar daquele fogo antes que se torne incontrolável. Leva duas centúrias da reserva, forma brigadas e põe-nos a combater o incêndio.
- Sim, senhor.
Enquanto Parmenião dispunha os homens para combater o fogo, Macro apareceu para avaliar a situação. Acenou na direcção das chamas com ar preocupado.
- Faz-me lembrar aquela batalha com os germanos naquela aldeia junto ao Reno.
- Lembro-me bem disso, senhor. Foi a primeira vez que enfrentei um inimigo. Não passava de um optio inexperiente.
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- Pois eras. - Reflectiu Macro. - Isso foi há pouco mais de três anos. Parece mais. Muito mais. Mas dessa vez foste tu que deitaste fogo às nossas defesas.
- E cá estamos, mais uma vez prestes a ser desalojados do nosso reduto pelas chamas.
- Isso é o que vamos ver. - Macro fez um gesto de cabeça na direcção da muralha. - Como foi isto? Vi o princípio do ataque de uma das torres.
Com uma expressão sombria, Cato relembrou o massacre que ocorrera antes.
- Apanhámo-los como queríamos, mesmo em frente à barricada.
- Deram-lhes uma boa lição, não foi?
- Sim.
- E do nosso lado? Muitas baixas?
- Não, poucas.
- Óptimo. - Retorquiu Macro, satisfeito. - Tenho a certeza que eles voltarão. Mais cautelosos, garantidamente, portanto vais ter um combate renhido entre
mãos não tarda.
- Não duvido. Tentaram alguma coisa nas outras muralhas?
Foram interrompidos quando uma seta em chamas se precipitou sobre o solo na sua proximidade, lançando uma chuva de fagulhas ao desfazer-se. Os dois oficiais encolheram-se
instintivamente, antes de prosseguirem a conversa. Macro apontou com o polegar sobre o ombro.
- Houve ali uma ameaça na muralha leste. Mas nada sério, apenas uma tentativa de afastar homens desta frente.
- Aí vêm eles! - Anunciou uma voz da muralha principal.
Cato rodopiou, levando de imediato a mão em concha à boca.
- Às armas! Todos para a muralha! Brigadas de incêndio, continuem o trabalho!
Os auxiliares postados na barricada levantaram os escudos e prepararam os dardos enquanto perscrutavam as trevas que rodeavam o torreão arruinado.
- Vou ficar por aqui. - Avisou Macro, em ton baixo. - É aqui que se vai decidir este combate.
- Senhor, a sua ajuda é bem-vinda.
Macro deu-lhe uma palmada de incentivo no ombro, e bradou aos soldados que o rodeavam
- Vamos a isto! Vamos fazer com que estes sacanas se arrependam do dia em que resolveram meter-se com a Segunda Ilírica!
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XXVIII

Os dois centuriões pegaram em escudos de reserva, empilhados junto aos dardos, e dirigiram-se para a plataforma. Por trás das muralhas os incêndios continuavam a
lavrar, apesar dos esforços do centurião Parmenião para os controlar. Cato sabia que os defensores iam ficar claramente recortados contra o fulgor do incêndio e
por isso apresentar magníficos alvos para os arqueiros e fundibulários inimigos, mas ao menos as chamas também iluminavam a pilha de entulho que se estendia à frente
da barricada. Os arqueiros romanos dispostos na muralha principal já lançavam os seus projécteis contra o inimigo que avançava. Da escuridão respondia-lhes a habitual
metralha das fundas, e a barragem de flechas incendiárias e fardos em chamas lançados pelo onagro prosseguia ininterrupta, ultrapassando facilmente a muralha e precipitando-se
sobre os edifícios para além dela.
Tal como no assalto anterior, os judeus subiram o monte de entulho, mas desta vez detiveram-se mesmo por trás da crista, fora do alcance dos dardos, e começaram
a fazer zunir as fundas.
- Metralha! - Gritou Cato, avisando os homens. - Escudos bem ao alto!
Imediatamente o ar se encheu dos assobios dos projécteis, logo seguidos pelos estrondos dos impactos na face da muralha e nos escudos dos auxiliares, numa verdadeira
cacofonia. Os atacantes não fizeram qualquer tentativa de avançar, mantendo porém o intenso bombardeamento sobre os soldados que guarneciam a barricada, enquanto
outros concentravam esforços nos grupos de arqueiros que estavam postados dos dois lados do torreão arrasado. Não levou muito tempo até que estes desaparecessem,
abatidos pelos projécteis ou forçados a recuar para trás da muralha. Eliminada essa ameaça, todos os fundibulários inimigos viraram a atenção para a fortificação
improvisada à entrada do forte. De vez em quando um dos projécteis conseguia atravessar a barreira de escudos e atingia um alvo humano com a potência suficiente
para lhe quebrar os ossos.
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Macro arriscou uma espreitadela rápida sobre a orla do escudo. Satisfeito por o inimigo ainda se manter do outro lado do monte de entulho, voltou a abrigar-se e
inspirou fundo, de forma a ser audível sobre o ruído do bombardeamento.
- Segunda Ilírica! Tudo escondido por trás da muralha!
Os homens mal precisavam de encorajamento para se abrigarem e desaparecerem da vista dos fundibulários inimigos, pelo que rapidamente se amontoaram por trás da barricada,
deixando os escudos bem à mão. Macro virou-se e olhou para Cato.
- Parece que aqueles bandalhos aprenderam bem a lição. Nada de assaltos frontais enquanto não nos amolecerem um bocado.
Cato deitava uma última olhadela ao inimigo, usando o escudo como protecção. Uma pedra ressaltou na bossa central com estrondo. Sentiu o impacto no braço que suportava
o escudo, e pestanejou enquanto se abrigava de novo.
- Amolecer? Estão mas é a triturar-nos.
Macro riu.
- Eles que tentem. Enquanto esta muralha estiver entre nós, não poderão fazer grande coisa para reduzir os nossos números.
- De facto. - Retorquiu Cato, sem alarde. - Mas eles também sabem disso.
- O que é que queres dizer?
- Quero dizer que deve haver uma boa razão para eles nos fazerem esconder as cabeças.
Macro colocou o escudo sobre o passadiço.
- Sim, devem estar a preparar alguma. Já volto.
Desceu da plataforma e correu por trás dela até chegar à escada que levava à muralha principal. Ia haver um instante perigoso, em que ficaria claramente à vista
dos fundibulários; preparou-se, e lançou-se pelos degraus acima. Ouviu-se um grito e logo dois puojécteis lhe passaram a zunir sobre a cabeça encolhida, mas no instante
seguinte Macro lançou-se sobre a plataforma de pedra, rolando sobre si mesmo e saindo da mira dos inimigos. Um dos auxiliares apressou-se a vir ter com ele, usando
o escudo para proteger o oficial. Enquanto recuperava o fôlego, Macro agradeceu ao soldado, e dirigiu-se à muralha. Protegendo-se atrás de uma das ameias, espreitou.
Por trás dos fundibulários que ocupavam a brecha via-se a pilha de corpos que resultara do primeiro assalto, e mais atrás ainda uma massa silenciosa de rebeldes,
à espera do momento de atacar. À luz tremeluzente dos archotes que rodeavam o onagro, Macro notou que havia uma movimentação na turba, para abrir passagem a algo.
Mas não conseguia ainda
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perceber do que se tratava. Nesse instante um dos inimigos, de vista mais aguçada do que os seus camaradas, descobriu o prefeito romano, e de imediato lançou um
projéctil na sua direcção. Atingiu a muralha junto a Macro, fazendo saltar pequenos estilhaços que atingiram a face do romano, provocando-lhe um pequeno golpe ao
canto do olho esquerdo.
- Foda-se! - Encolheu-se, agarrando o rosto. - Merda. Filho da
puta!
Os dedos ficaram cobertos de sangue, e Macro apressou-se a desapertar o lenço que levava ao pescoço e a tentar estancá-lo. Ainda conseguia ver do olho esquerdo,
mas estava tudo turvo, e a dor na órbita era tremenda.
- Senhor? - O homem que o tinha protegido com o escudo apressou-se a acorrer de novo. - Chamo um enfermeiro?
- Não! - Macro pestanejou. - Já levei piores. Estou bem.
O soldado olhou para ele com ar de dúvida, mas afastou-se. Macro esforçou-se por parar a hemorragia antes de voltar a tentar perceber o que estava o inimigo a preparar.
As fileiras da frente abriram-se e deixaram passar uma dúzia de homens que transportava um grosso toro de madeira com uma ponta metálica. Era isso, então, percebeu
finalmente. Um aríete. Deixou-se escorregar de novo para a protecção da muralha, e decidiu que era melhor não arriscar de novo a escada, pelo que se aproximou da
borda da plataforma e saltou pesadamente para o solo. Reuniu-se rapidamente a Cato. O amigo fez uma careta ao ver a ferida no rosto de Macro.
- Senhor, será melhor tratar disso.
Macro abanou a cabeça.
- Não temos tempo para isso. Isto vai aquecer. Estão a trazer um aríete. Vai chegar aqui a qualquer momento.
Voltaram a espreitar rapidamente, notando que os fundibulários já se aprestavam a abrir espaço para os homens que se esforçavam a subir o monte de entulho com a
sua pesada carga; lentamente, chegaram à crista e prepararam-se para começar a descer para o que restava da entrada da fortaleza. Logo atrás vinha a grande massa
dos sitiantes, empunhando um variado arsenal de escudos e armas, bem como escadas de assalto; tudo isto era iluminado por um fulgor amarelado proveniente dos incêndios
que lavravam no interior do forte. Apesar de terem sido deslocados para os flancos, nem assim os fundibulários cessaram a sua actividade. Os homens que empunhavam
o aríete ultrapassaram por fim a crista do monte e dirigiram-se de forma deliberada para o centro da barricada, onde Cato e Macro se tinham posicionado.
- Muito bem! - Gritou Macro aos homens em redor. - Quando der a ordem, quero toda a gente de pé. Guardem os dardos para os tipos que trazem o aríete.
260
Pediu um dardo com um gesto, e virou-se para Cato, que também já manejava a haste de uma das pesadas lanças.
- Pronto?
- Sim, senhor.
- Segunda Ilírica! De pé, e vamos a eles! - Macro ergueu-se por trás do escudo, no que foi prontamente imitado por Cato e pelo resto dos homens.
Lá em baixo, os homens que transportavam o aríete olharam para cima ao notar movimento, mas não se detiveram. Macro ergueu o braço, sopesou o dardo e apontou bem
antes de o lançar com toda a força. O míssil dirigiu-se ao homem que liderava o grupo do aríete, mas este apercebeu-se do perigo e desviou-se; o dardo foi atingir
o braço do homem que o seguia, trespassando-o. Macro praguejou e pegou noutro dardo. Apesar de ter errado o seu alvo, muitos dos homens tinham tido melhor sorte,
e já se viam vários dos atacantes no solo, com as letais pontas de ferro cravadas no corpo. Porém, assim que um tombava logo outro judeu avançava da densa massa
que seguia o aríete, pegando nas cordas que o suportavam e prosseguindo o avanço determinado. O reaparecimento dos romanos na muralha tinha entretanto levado a um
renovar de esforços dos fundibulários; um grito agudo assinalou a Cato o momento em que o homem ao seu lado foi atingido em plena face, deixando cair o dardo que
empunhava e largando o escudo. Foi imediatamente atingido de novo, desta vez no ombro; o impacto fê-lo rodar, enquanto os joelhos se dobravam. Não havia nada que
Cato pudesse fazer para o ajudar, pelo que se limitou a lançar o seu segundo dardo. Enquanto pedia outro aos homens que estavam na linha recuada, sem sequer se preocupar
com o resultado do arremesso, avisou-os acerca do ferido.
- Levem esse homem para tratamento!
Mãos pegaram no auxiliar ferido e levaram-no da plataforma. No instante seguinte, o seu lugar já tinha sido ocupado por outro soldado, de dardo preparado para o
lançamento. Do outro lado da muralha o solo estava juncado de corpos, feridos e mortos, mas os sobreviventes tinham finalmente alcançado a base da barricada e, obedecendo
ao ritmo marcado por alguém que não estava à vista, puxaram o aríete atrás e lançaram-no então para a frente com toda a força. Cato sentiu a plataforma a oscilar
debaixo dos pés, e uma secção do parapeito ruiu.
- Acertem-lhes! - Gritou aos seus homens, desesperado. - Apanhem-nos!
Os homens responderam à ordem com uma frenética chuva de dardos, abatendo tantos elementos do grupo de ataque que os sobreviventes já não conseguiram aguentar o
peso do aríete e este caiu para o chão; mas logo
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mais judeus se precipitaram para a frente, pegando nas cordas e voltando a fazer balançar o toro de forma a atingir a fortificação. Desta vez o impacto quase fez
cair Cato e Macro, e outro grande pedaço da muralha improvisada ruiu. Macro pegou em Cato pelo braço e obrigou-o a abaixar-se por trás do muro.
- Esta espécie de muralha vai-se desfazer, e depressa. Mantém-te abrigado, e prepara os homens no solo para aguentarem a brecha. Não os podem deixar entrar.
Vai!
Cato saltou da plataforma. Lançou uma olhadela quando sentiu outro embate e reparou em pedaços soltos de pedra a cair da muralha. Voltou-se para os homens que constituíam
a reserva, e só então notou que havia uma linha de feridos a serem tratados pelos enfermeiros, junto à parede do bloco de casernas mais próximo. Virou-se para um
optio.
- O que estão estes homens aqui a fazer? Levem-nos para o hospital.
O optio abanou a cabeça.
- Senhor, não é possível. O fogo não nos deixa chegar ao centro do forte. Tem que ser tratados aqui mesmo.
Cato olhou para lá do optio, para a rua formada pelos blocos de casernas. Lá ao fundo, as chamas e o fumo não deixavam ver mais nada. Nesse instante um grupo de
homens do grupo de combate a incêndios que o centurião Parmenião tinha formado emergiram do meio do fumo e ficaram a tossir, dobrados sobre si mesmos. Nas mãos tinham
cobertores fumegantes, e rapidamente voltaram ao esforço de tentar apagar as chamas, abafando-as. Cato voltou-se de novo para o optio.
- Vê se achas o centurião Parmenião. Diz-lhe que tem que abrir um caminho para o centro do forte. Não quero saber como, mas tem que ser feito, senão vamos
acabar encurralados entre o fogo e o inimigo. - Deu um ligeiro empurrão ao homem e virou-se para os outros soldados, a postos junto à muralha.
- Unidade de reserva! Comigo!
Os homens apressaram-se a formar uma coluna sólida, com uma frente compacta de escudos e os dardos empunhados como lanças, apoiadas no solo e inclinadas para a frente.
À sua frente a muralha voltou a tremer e a fazer chover bocados de pedra sobre o solo, depois de sofrer um novo embate do aríete. Na plataforma elevada, Macro apressava
os homens a afastarem-se da zona cuja ruína se adivinhava a todo o instante. Veio outro golpe, e outro ainda, e depois de uma breve pausa a parede tombou para fora,
levantando uma enorme nuvem de poeira e fazendo espalhar-se o entulho. Cato agarrou firmemente na haste da sua lança e ergueu-a na direcção da brecha da barricada,
suficientemente larga para permitir a passagem de dois homens em simultâneo.
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- Em frente! - Gritou, e a força de reserva avançou para a brecha, a um só homem, de escudos erguidos e apontando as pontas das lanças para o ponto por onde
surgiria em breve o inimigo. O primeiro judeu irrompeu por entre a nuvem de poeira tingida de vermelho, soltando um grito de guerra que depressa lhe morreu nos lábios
quando se foi empalar nas pontas de duas lanças empunhadas pelos homens de Cato. Estes recolheram-nas de imediato, arrancando-as das entranhas do oponente, e voltaram
a cerrar as fileiras no preciso instante em que outros homens se lançavam pela brecha, urrando e agitando as espadas ao brilho das labaredas que dançavam e se erguiam
para o céu nocturno por cima do forte. Num momento havia ainda um espaço a separar os dois grupos de homens, mas no instante seguinte já os revoltosos pressionavam
os grandes escudos ovais dos romanos, golpeando-os com os punhos das espadas, tentando alcançar qualquer parte desprotegida dos defensores. A primeira linha dos
auxiliares não tinha possibilidade de manobrar as lanças no espaço reduzido, pelo que os homens passaram as armas para trás e empunharam as espadas, passando a combater
com elas. Os soldados das segunda e terceira linhas operavam as lanças de forma a tentar atingir as faces dos atacantes na frente inimiga, que tentavam por sua vez
forçar a passagem.
Sobre a confusão e os ruídos dos choques de armas e os gritos dos homens que o rodeavam, Cato ouviu a voz de Macro a lançar um aviso aos homens ainda na barricada.
- Escadas! Estão a trazer escadas de assalto! Preparar espadas!
A concentração de Cato no combate que se travava na brecha caiu bruscamente quando sentiu uma ponta afiada a trespassar-lhe a barriga de uma das pernas. Gemeu de
dor e raiva, cerrando os dentes, e espreitou para baixo. Um ágil jovem tinha-se agachado e esgueirara-se por baixo do seu escudo, mesmo correndo o risco de ser pisoteado.
Tinha uma adaga curva na mão e preparava-se para voltar a golpeá-lo. Quase sem pensar, o centurião abateu o pesado escudo sobre o pescoço do rapaz. Este agitou-se
num espasmo, deixou cair a faca e ficou prostrado sobre o solo. Antes que a mente de Cato registasse o tenebroso facto de ter acabado de matar uma criança, surgiu-lhe
sobre o escudo, ainda em baixo uma horrível face cheia de cicatrizes, seguida pelo rápido faiscar de uma lâmina dirigida à sua cabeça. Mal teve tempo de se desviar,
e a espada atingiu a guarda lateral do capacete, sendo depois desviada por cima do ombro. Ficou atordoado pelo golpe, mas antes que a visão lhe voltasse a clarear
já um dos seus homens tinha praticamente decepado o braço do inimigo, que gritou e recuou. O jovem centurião sacudiu a cabeça, tentando clarear o pensamento, e voltou
a concentrar-se na refrega, lançando o escudo contra a massa densa de corpos que tentavam descobrir uma entrada para o forte. Já não havia espaço
263
para um combate corpo-a-corpo digno desse nome, já que os homens das duas facções se amontoavam uns contra os outros, forçados à proximidade pela pressão das fileiras
mais recuadas, e o confronto tornou-se apenas uma questão de força. Cato encostou o ombro à parte de trás do escudo, fincou os pés no chão, e continuou a pressionar
os oponentes.
Na plataforma, Macro olhou para baixo e deu-se por satisfeito por os judeus não terem ainda conseguido penetrar pela brecha. A crista do capacete de um centurião
agitava-se no meio da turba, e isso era sinal de que Cato ainda estava vivo e liderava os homens, dando o exemplo na linha da frente. Deu então atenção ao que se
passava no centro do forte. Em redor da área de combate havia fogos a lavrar e, apesar dos esforços do centurião Parmenião e dos seus homens, novas revoadas de flechas
incendiárias e materiais inflamáveis passavam sobre as muralhas em arcos pronunciados que as levavam alto antes de se precipitarem sobre o forte e ajudarem na criação
daquele inferno. Os homens junto a Macro corriam o sério risco de se verem presos entre o fogo e a força que atacava a brecha. Só havia uma coisa a fazer, decidiu
o prefeito, determinado. Tinham que manter o controlo da barricada a qualquer preço, e depois conseguir pôr em debandada o inimigo, para se poderem dedicar a combater
os incêndios antes que os judeus recuperassem o ânimo e voltassem a tentar penetrar no forte.
Entretanto, dos dois lados da brecha, os atacantes faziam grandes esforços para colocar as escadas de assalto. De cada vez que uma delas tocava na muralha, os auxiliares
apressavam-se a empurrá-la para longe, antes que alguns dos inimigos conseguissem trepar por ela e pôr o pé sobre a barricada. Mesmo à frente de Macro surgiram duas
rústicas tábuas e ele lançou-se para a frente, de escudo erguido e espada em riste. Apareceu-lhe uma cabeça coberta por um turbante que acabava numa ponta cónica
e metálica. Olhos negros avaliaram o prefeito, e o atacante rugiu através dos dentes cerrados enquanto subia outro degrau e tentava lançar um golpe com a pesada
espada que levava na mão livre. Macro usou a sua própria espada para bloquear o golpe e de imediato fez com que o sólido punho da arma encontrasse o rosto do outro,
inanimando-o e fazendo-o tombar sobre os homens que, lá em baixo, amparavam a escada, enquanto a arma ficava aos pés de Macro. Apressou-se a empurrar a escada e
depois olhou para a esquerda, avistando outra, no topo da qual um judeu combatia um auxiliar. Virou-se, deu um passo e espetou a espada no peito do inimigo. O impacto
fez-se sentir ao longo do seu braço e o outro morreu com um gemido explosivo ao perder o ar dos pulmões. Macro libertou a espada e o corpo tombou pelos degraus.
Livre de ameaça imediata, olhou em redor, constatando que os auxiliares estavam a conseguir aguentar a pressão do inimigo. Os judeus não
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tinham conseguido estabelecer nenhuma posição na muralha, e Cato continuava a mantê-los imobilizados na área da brecha. Era o momento de lhes quebrar o ímpeto. O
pé de Macro embateu numa pedra solta no chão da plataforma, e ele olhou para baixo, irritado, mas de repente sorriu. Embainhou a espada ensanguentada e pegou na
pedra. Fez rapidamente pontaria e atirou-a na direcção da turba que pressionava Cato e os seus homens. Atingiu um tipo na cabeça, fazendo-o rolar os olhos e tombar
inconsciente, o sangue a jorrar da ferida no escalpe. Pegou noutra pedra, arrancando-a da própria muralha, e lançou-a também. Olhou para o outro lado da brecha,
para um punhado de auxiliares que se preparava para o combate, já que os grupos com as escadas de assalto se tinham movimentado e se concentravam agora naquela área
da barricada.
- Vocês! - Berrou Macro através da brecha, e os homens olharam de imediato para ele, condicionados como estavam, por incontáveis horas na parada, a obedecer
à voz de um superior. - Usem pedras, dardos, tudo o que apanharem ajeito, e mandem-lhes para cima. Assim!
Olhou para baixo, viu a espada que a sua última vítima tinha largado, pegou-lhe e lançou-a contra a turba, sorrindo satisfeito ao verificar que tinha acertado no
ombro doutro judeu. Os auxiliares começaram a arrancar pedaços da parede e a atirá-los sobre a massa de soldados inimigos que se agitava impotente por baixo deles.
Era impossível falhar. E os assaltantes nada mais podiam fazer do que vê-los a escolher alvos e a abatê-los, num frenesim assassino. Alguns tentaram ripostar lançando
também pedras, mas os seus esforços eram dificultados pela massa humana em redor. Por fim, os que estavam na parte menos densa do grupo que tentava forçar a brecha
começaram a debandar. Em consequência, a pressão afrouxou, e Cato e os seus homens começaram a avançar, empurrando os escudos com todo o peso. À medida que a pressão
à sua frente diminuía, aumentavam o passo, varrendo os atacantes e forçando-os a recuar. Quando a crista do capacete de Cato emergiu do entulho da barricada, seguida
por todos aqueles romanos, um gemido surdo de desespero ergueu-se das fileiras inimigas. Começaram a recuar em desalinho, sem atender aos brados dos mais corajosos
dos seus camaradas, que os instavam a continuar o combate. Porém, quando o medo e a incerteza se espalharam, tornaram-se imparáveis, e o inimigo debandou, trepando
apressadamente pelo monte de entulho e abandonando o forte.
Enquanto eles recuavam, Cato apercebeu-se da oportunidade de vibrar um bom golpe no inimigo, e incitou os seus homens.
- Estão em fuga! Atrás deles! Dêem cabo dessa escumalha!
Os homens seguiram-no através da brecha, e depressa se espalharam pela área adjacente, repleta de cadáveres, continuando a perseguir os mais
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atrasados dos inimigos. Poucos instantes antes os judeus estavam em pleno ataque, mas agora fugiam em pânico, tentando salvar as vidas. Cato estava atónito com a
repentina mudança da fortuna das armas, mas manteve-se concentrado, liderando os seus homens na caça ao inimigo. Ao alcançar o ponto mais alto do monte de entulho,
parou, a observar a forma como os revoltosos fugiam como ratos, uma cena iluminada pelas chamas no interior do forte e pelas tochas que davam luz ao campo inimigo.
Não podia arriscar-se a que aquele momento de vitória subisse às cabeças dos homens, já que podiam ser facilmente aniquilados se se precipitassem em perseguição.
Embainhou a espada e levou a mão em concha à boca.
- Segunda Ilírica! - Gritou, tão alto quanto conseguiu. - Segunda, a mim! Para trás, de volta ao forte! Agora!
Os mais próximos dos homens ouviram-no e pararam, desistindo com relutância da perseguição e da possibilidade de abater mais alguns inimigos. Outros, mais afastados,
ainda deram alguns passos antes que a fúria sanguinária que os possuía amainasse e começassem a voltar para trás. Porém, alguns dos auxiliares, enlouquecidos pela
febre da batalha, prosseguiram e foram engolidos pela massa escura das fileiras judaicas. Cato esperou que o último dos seus homens descesse o monte de entulho antes
de os seguir a caminho do forte, abaixando-se para escapar a um projéctil que foi lançado por uma funda. Macro esperava-o junto à brecha, sorrindo abertamente.
- Digo-te, Cato, estás a tornar-te uma fera. Mais umas cargas desse género e mando-te para a arena. Farias qualquer gladiador borrar-se de medo.
Cato sentiu-se corar, imediatamente furioso consigo mesmo por se ter mostrado tão audaz.
- Oh, pá, vá lá. - Macro deu-lhe uma palmada no ombro. - Estiveste bem, tu e os rapazes. Tão cedo não voltam a tentar...
- Talvez não. - Concedeu Cato. - Mas voltarão.
- Evidentemente. - Macro acenou por cima do ombro, para as chamas que consumiam os edifícios próximos. - Entretanto, temos outras coisas com que nos preocupar...
266
XXIX

Regressaram ao interior da fortaleza, atravessando a brecha, e foram procurar o centurião Parmenião. O veterano afadigava-se ao lado dos homens, fazendo ruir uma
parte dos estábulos, na esperança de criar um corta-fogo que permitisse aos soldados empenhados na defesa da brecha o eventual recuo para o que restava do forte.
A curta distância, o fogo consumia o celeiro, e o troar das chamas era de vez em quando interrompido por breves explosões de fagulhas quando uma das vigas do edifício
tombava. Cato e Macro sentiram o calor a atingi-los quando se aproximaram de Parmenião, e Macro teve que semicerrar os olhos, enquanto sentia a face a arder. Parmenião
ordenou aos homens que prosseguissem nos seus esforços enquanto apresentava o relatório ao prefeito. O seu rosto era uma mancha de suor e sujidade.
Macro apontou para os estábulos.
- Onde estão os cavalos?
- O Escrofa levou-os para o outro lado do forte, senhor. Foi prendê-los junto à muralha leste.
- Muito bem. - Concedeu Macro. - Bom trabalho. Será melhor levar também para lá os reféns, antes que o fogo atinja as celas. E quanto ao incêndio, como vão
as coisas?
- Senhor, não vamos conseguir evitar a propagação das chamas. Este corta-fogo só serve para as dividir, para manter um corredor aberto para si e para os rapazes
que defendem a barricada, no caso de se verem forçados a recuar.
- Se perdermos o controlo da muralha, perdemos o forte. - Respondeu Macro, com amargura.
- Talvez não. - Interveio Cato. - Pelo menos, não instantaneamente. Se perdermos a barricada, teremos que usar o fogo como linha de defesa. Ainda levará umas
horas a extinguir-se por si mesmo.
- E depois? - Inquiriu Macro, de cabeça levemente inclinada. - Sim, e depois, o que se seguirá?
267
Era uma boa pergunta, compreendeu Cato. E a resposta, evidente.
- Bom, nessa altura eles atravessam as cinzas e massacram-nos. Ou tentamos nós uma sortida. Deixamos alguns homens a fingir que ainda há uma resistência organizada,
enquanto os outros saem pelo portão de leste e se afastam o mais possível do forte antes do nascer do dia. E depois, para norte, para a Decápole.
Parmenião abanou a cabeça.
- Se nos apanhassem lá fora faziam-nos em tiras. Aqueles partos enchiam-nos de flechas, de forma que teríamos de parar para nos protegermos com os escudos.
Ou seja, forçavam-nos a ficar imóveis até que chegasse o grosso do exército de Bano, para acabar com a história. A batalha de Carras, repetida.
- Seja. - Retorquiu Cato. - Então, tentamos outra coisa. Algo de que eles não estejam de todo à espera. - Os olhos brilhavam-lhe de excitação.
- Lá vamos nós outra vez. - Resmungou Macro, para Parmenião.
- Prepara-te... Bom, Cato, explica lá a tua ideia.
- Se nos mantivermos na barricada, as chamas vão acabar por nos apanhar, ou pelo menos forçar-nos-ão a abandonar a protecção do forte, e vamos ter que os
enfrentar em campo aberto, fora das muralhas. Se retirarmos pelo corta-fogo e o fecharmos com tudo o que possa arder, tudo o que conseguiremos será adiar o massacre
por umas horas.
- Pois. E então?
- Então... Deixamos alguns homens a guarnecer as muralhas, levamos o grosso da coorte pelo portão de leste, contornamos o forte e atacamos o campo deles.
- Cato olhou de um dos interlocutores para o outro.
- Que acham?
Parmenião abanou a cabeça.
- Essa é a ideia mais tonta que alguma vez ouvi. Sem ofensa, claro.
- Não me ofendeste. Mas que alternativa temos? Já concordaste que não nos podemos limitar a ficar à espera a ver o que sucede. A última coisa que Bano espera
é que tomemos a iniciativa.
- E tem boas razões para isso! - Assinalou Parmenião. - Eles são uns quatro ou cinco para cada um de nós.
- E por isso não admitirá sequer que sejamos nós quem o está a
atacar.
Parmenião franziu o sobrolho.
- O que é que queres dizer?
- Acho que já percebi a ideia do miúdo. - Interrompeu Macro. - Atacamo-los do norte, fazendo a maior algazarra possível, e Bano é capaz de pensar que somos
uma coluna de socorro vinda da Síria. Cato, é isso?
268
Cato assentiu.
- Pode muito bem suceder.
Parmenião deu uma risada sem vontade.
- E quando chegar a manhã e perceberem quantos somos, estarão sempre a tempo de nos tomar por lunáticos.
Cato ignorou o comentário, e focou a atenção no amigo.
- Senhor, isto pode resultar. Se atacarmos a coberto da escuridão, o inimigo não fará ideia do tamanho da força que o ataca. Vão assumir o pior, e facilmente
entrarão em pânico. Vai levar algum tempo até que comecem a suspeitar da verdade, e por essa altura talvez já os tenhamos conseguido dispersar, destruir o onagro
e arrasar o acampamento. Bano levará dias a recuperar de um golpe desses.
Macro ainda não estava totalmente convencido.
- E se der para o torto? Se eles não debandarem, se aguentarem as posições, levamos uma coça das antigas.
- Que não poderá ser pior da que nos espera se ficarmos aqui quietinhos à espera da morte.
- Bom ponto. - Concedeu Macro. - Seja, vamos tentar. No fim de contas, não temos nada a perder.
- Para lá da nossa sanidade mental. - Resmungou Parmenião. - E das nossas vidas.
Macro olhou em redor para os seus oficiais, todos os que podiam ser usados naquela operação. Parmenião e os outros guarneciam a muralha ocidental e as torres, fazendo
o possível por se movimentar de forma a dar a impressão de que havia muitos mais homens a defender a brecha do que havia na realidade. Macro estava reunido com os
restantes no pátio do edifício de comando. Durante a noite, Escrofa, Póstumo e os homens do esquadrão de reserva tinham-se afadigado a criar um corta-fogo ao longo
da rua que bissectava o forte, derrubando os edifícios de ambos os lados e removendo todos os materiais combustíveis. O fogo já tinha corrido metade do forte, e
parecia dar mostras de diminuir de intensidade, agora que tinha menos por onde queimar. Infelizmente, tinha tido tempo para destruir as acomodações do prefeito.
Todos os belos murais e a mobília de que Escrofa se tinha rodeado já tinham sido pasto das chamas.
- O segredo está em conseguir colocar os nossos homens em posição antes que as sentinelas que Bano colocou em torno do forte percebam o que se está a passar.
Por isso é que tivemos de esperar que o incêndio amainasse - não podemos permitir que nos vejam a deixar o forte. Um grupo de batedores sairá primeiro e eliminará
as sentinelas do lado norte, de modo a que Bano não seja avisado. Teremos que avançar com cuidado
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até saírmos do perímetro das nossas próprias defesas, mas depois é preciso que a cavalaria trate das sentinelas inimigas mais próximas do acampamento. Os centuriões
Escrofa e Póstumo comandarão os esquadrões montados. Depois de eliminadas as sentinelas inimigas, avançarão até uns oitocentos metros a norte do campo, e ocuparão
os flancos do nosso dispositivo de combate. O Centurião Cato e eu próprio seguiremos com a infantaria. Quando a formação estiver completa avançaremos em silêncio
absoluto, mas quando eu der a ordem faremos todo o barulho de que formos capazes. Assegurem-se de que os homens respondem com entusiasmo nessa altura. Quero que
Bano pense que todos os soldados romanos daqui até à Arménia estão a carregar sobre ele. Digam aos vossos homens para atacarem sem quartel. E que continuem o ataque
até ouvirem o toque de retirada. Nessa altura, quero toda a gente deste lado da brecha e depressa, sob a protecção da cavalaria. - Abriu as mãos. - É tudo. Alguma
questão?
O centurião Póstumo levantou o braço.
- Sim? - Rosnou Macro.
- Quem é que se lembrou deste pesadelo?
Macro não lhe respondeu, limitando-se a lançar-lhe um olhar assassino, antes de se dirigir ao resto dos oficiais da coorte.
- E pronto, é isto. Sei que vai ser duro, mas a verdade, senhores, é que estamos numa situação fodida, e pouco mais podemos fazer. Se isto resultar, teremos
conseguido mais uns dias, e talvez consigamos assustar muitos dos tipos que Bano recrutou nas aldeias aqui da região. Muito bem. Peguem nas vossas coisas e regressem
às vossas unidades. Dispensados!
Os oficiais deixaram o pátio, e Cato aproximou-se de Macro, murmurando.
- Senhor, parece-me que vamos ter de manter o centurião Póstumo debaixo de olho.
- Tens alguma razão, mas ele está no mesmo barco que nós. Ou luta, ou morre. Pelo menos quanto a isso estamos garantidos.
Cato olhou para Macro, desconfiado.
- Se acha.
Macro franziu o sobrolho.
- Cato, há quanto tempo é que não descansas?
- Há uns dois dias, acho eu. Descansámos na mesma altura.
- Eu aguento. Mas tu pareces estourado.
- E estou. - Admitiu Cato. - Mas não posso fazer nada quanto a isso antes do ataque ao acampamento deles.
- Pois não. Talvez depois possas dormir um bocado.
- Sim. Depois. - Forçou-se a sorrir. - De uma forma ou doutra.
270

A coluna romana esgueirou-se pelo portão oriental na terceira hora antes da alvorada. Os homens tinham pintado faces e membros de negro, com cinzas e bocados de
madeira queimada. Como teriam de marchar rapidamente até à posição combinada e depois, presumivelmente, perseguir a infantaria ligeira de Bano, tinha-lhes sido ordenado
que não envergassem as armaduras pesadas. Cada homem levava o escudo, uma lança e a espada curta. No braço que empunhava a arma todos tinham atado uma fita branca,
para facilitar a identificação no calor da refrega. Os quatro esquadrões de cavalaria adiantaram-se, seguindo a trote, virando para a esquerda e circundando as defesas
no terreno, e a infantaria seguiu tão depressa quanto lhe era possível, sem cadenciar o passo de forma a não denunciar a sua movimentação. Macro e Cato seguiam à
cabeça da coluna. O jovem tremia no ar frio da noite e esperava que a marcha rápida em torno do forte o aquecesse, e evitasse a necessidade de cerrar os dentes para
evitar que batessem. Tinham sido prometidas terríveis punições aos soldados que se atrevessem a abrir a boca, pelo que a coluna seguia num silêncio disfarçado apenas
pelo ruído das botas no solo; mas mesmo esse deixou de se escutar assim que abandonaram o caminho pedregoso e se internaram pela areia solta do deserto.
Quase de imediato deram com dois cadáveres, de borco sobre o solo. Macro fez parar a coluna e virou um deles com a bota.
- Parece que os nossos batedores fizeram um bom trabalho. - Afirmou em surdina. - Só espero que consigam apanhá-los todos sem confusão. Se não...
- Vai correr bem. - Afiançou Cato. - Todos os homens da coorte sabem o que está em jogo.
- Entreguemo-nos nas mãos dos deuses, então. - Concluiu Macro, enquanto levantava o braço e dava sinal para a coluna avançar de novo. - Espero que Fortuna
não pense que já gastei toda a minha sorte.
- Não me parece que a tenha esgotado. - Replicou Cato, confiante. Já se tinha habituado às superstições de Macro, e tinha desistido há muito de tentar instilar
no amigo uma visão mais racional do mundo. Por si, duvidava mesmo que existissem as entidades a que chamavam deuses. Mas a crença nessas criaturas servia um propósito,
e ajudava a maior parte das pessoas a preencher o vazio entre a experiência e o conhecimento, pelo que Cato se resignara a suportar as superstições dos outros e
até a demonstrar que as seguia, quando necessário.
- Não achas mesmo que já a esgotei? - Sussurrou Macro. - Isso preocupa-me, sobretudo com tudo o que tem sucedido desde que chegámos à Judeia.
- Não, senhor. - Retorquiu Cato, pacientemente. - Na maior parte
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das vezes, fez a sua própria sorte. Creio que a Fortuna só teve que a completar um pouco, de tempos a tempos. E devíamos mesmo parar de falar.
- Tens razão. - Macro acelerou ligeiramente o passo, adiantando-se um pouco a Cato, e prosseguiu, de olhos e ouvidos bem atentos, para tentar detectar qualquer
movimento nas proximidades. À esquerda, as muralhas do forte eram claramente visíveis à luz dos incêndios que ainda lavravam, e as silhuetas dos homens de Parmenião
distinguiam-se perfeitamente enquanto guarneciam as torres e patrulhavam o passadiço. À medida que rodeavam o forte, o acampamento inimigo ia-se tornando visível:
uma série de fogueiras distantes, espalhadas pela planície. A uns oitocentos metros para norte do forte havia uma ligeira dobra no terreno, que tinha sido escolhida
como local ideal para formar as tropas. Quando Macro achou que já estavam suficientemente longe para não serem detectados, mudou de direcção e dirigiu a coluna para
o campo inimigo, traçando uma tangente à área. Aquele era o momento mais perigoso. Se fossem avistados antes de formarem o dispositivo de ataque, Bano poderia facilmente
lançar contra eles todo o peso do seu exército e depressa os romanos seriam varridos do mapa.
Enquanto se aproximavam da dobra do terreno não escutaram qualquer grito de aviso, e nenhuma trombeta deu o alarme no campo inimigo. Por fim o solo começou a descer,
e pouco a frente avistaram duas massas escuras separadas por uma extensão de terreno limpo: eram os diminutos esquadrões de cavalaria, que tinham sido enviados antes
da coluna principal. Cato apontou-as a Macro, que acenou em resposta e levou a coluna para o meio dos dois grupos de cavaleiros. Enquanto as tropas a pé assumiam
a formação de ataque, um cavaleiro aproximou-se e parou ao ver as cristas dos capacetes de Macro e Cato.
- Senhor?
Macro reconheceu imediatamente a voz calma como pertencendo a Escrofa.
- É o prefeito?
- Sim. Chega cá. - Macro acenou-lhe. - Alguma coisa a relatar?
- Tratámos da saúde às sentinelas, senhor. Os substitutos surgiram pouco depois, e também foram eliminados. Surpreendemo-los, de forma que ninguém teve tempo
de dar o alarme.
- Bem feito. Mas os tipos que deviam ter saído de serviço devem ser aguardados no acampamento. Temos que atacar imediatamente.
Cato teve um lampejo.
- Espere. Talvez haja uma forma de maximizar a surpresa do ataque.
- Como? - O vulto escuro de Macro virou-se para ele. - O que é que estás agora a pensar?
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Cato olhou para Escrofa.
- Os corpos dos substitutos. Onde estão?
- Ali mesmo. - Escrofa apontou para o terreno, na direcção do acampamento.
- Cato. - Interrompeu Macro. - Que é que tens na ideia?
- Eles estão à espera de um grupo de homens, saídos de serviço. E que tal se eu e mais uns dos nossos tomássemos o lugar deles? Tratamos das sentinelas à
entrada do acampamento, e dou sinal para avançarem. Senhor, podemos conseguir entrar no campo antes até que eles percebam a nossa aproximação.
Macro analisou rapidamente o plano.
- Acho que sim, Cato. É de tentar. Que sinal é que vais usar?
Cato pensou rapidamente. Quando se tinha aproximado antes do
acampamento inimigo tinha reparado nos braseiros que ardiam no perímetro do espaço ocupado pelo exército de Bano.
- Abano uma tocha. Deve chegar.
- Uma tocha. Seja, mas nada de riscos desnecessários. Se forem detectados, gritem, e nós atacamos de imediato.
- Sim, senhor. Bom, é melhor pormo-nos a caminho.
Cato saudou o prefeito e virou-se para o mais próximo dos homens na formação romana.
- Esta secção! Sigam-me.
Levou os homens pela ligeira encosta na direcção indicada por Escrofa, e encontrou os cadáveres mesmo antes de uma crista. Dez homens, amontoados numa enorme confusão,
mortos das feridas recebidas na escaramuça, embora alguns tivessem as gargantas cortadas: alguns deviam ter sido apenas feridos, mas não tinham sido poupados, para
evitar que dessem o alarme.
- Vistam as roupas deles. - Ordenou Cato. Pegou no corpo mais próximo e pestanejou quando sentiu os dedos tocarem num pano húmido e pegajoso. Obrigou-se a
continuar, e despiu a pesada veste de lã ao cadáver, lançando-a sobre os próprios ombros. Compôs o disfarce com o capacete de cabedal do homem e virou-se para inspeccionar
o resto do seu grupo. Todos envergavam já roupas típicas dos nativos, com capuzes, turbantes e capacetes. Na escuridão passariam com alguma facilidade por membros
do exército inimigo. Pelo menos ninguém suspeitaria que se tratava de soldados romanos. Voltou-se na direcção do acampamento judeu.
- Vamos.
Iniciaram a marcha através da areia e das pedras, dirigindo-se ao canto mais próximo do campo, a posição original dos dois onagros. Não parecia ter havido qualquer
tentativa de dar organização àquele acampamento.
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A única concessão era o grupo de grandes tendas no centro do campo, reservadas a Bano e aos seus tenentes. Alguns dos membros do exército tinham construído abrigos
provisórios feitos de peles esticadas por cima de armações de madeira flexível, cujos componentes tinham trazido consigo. Outros dormiam ao relento, perto das fogueiras.
Ao pé do onagro ainda intacto viam-se cinco homens rodeando um braseiro, todos eles mais preocupados em manterem-se quentes do que em vigiar os arredores. Cato baixou
a cabeça ao dirigir-se para eles, preocupado com a possibilidade de que conseguissem avistar-lhe a face àquela distância na escuridão e concluir que não era um judeu.
Ao entrarem na área iluminada, um dos homens avistou-os e lançou-lhes uma saudação. O tom era amigável e despreocupado, pelo que Cato ergueu a mão e correspondeu
com um aceno, rodando o escudo de forma a que só se notasse o seu perfil. O outro continuou a falar enquanto os romanos se aproximavam e fez uma pausa, como se esperasse
uma resposta. Cato acelerou o passo e concordou com um gesto de cabeça. O outro franziu o sobrolho; assim que o centurião e os outros se aproximaram do braseiro
os olhos abriram-se-lhe muito de espanto, e lançou a mão à espada que usava ao cinto. Cato saltou enquanto desembainhava a espada e a lançava num arco para cima
de forma que o gume atingiu a cabeça do judeu com um som húmido, derrubando-o de pronto. Os outros homens em redor do braseiro assistiram à cena surpresos, até
se aperceberem subitamente do que se estava a passar. Nessa altura já era demasiado tarde. Os hhomens de Cato atacaram-nos e num ápice todos tinham sido mortos e
não passavam de cadáveres prostrados no solo. Cato apontou para um vagão estacionado junto às ruínas carbonizadas da outra máquina de cerco.
-Escondam os corpos.
Enquanto os soldados se apressavam a arrastar os cadáveres e a voltar, assumindo as posições das sentinelas abatidas, Cato improvisou uma tocha com os pedaços de
lenha amontoados ao pé do braseiro. Mergulhou-a no fogo, esperou que ateasse e tirou-a, deu um passo na direcção do ponto em que Macro e os outros aguardavam na
escuridão, levantou-a e fê-la oscilar conforme combinado. Depois deitou os paus para o braseiro e aguardou junto aos seus homens. Macro ainda levaria algum tempo
a conduzir a coorte atéà orla do acampamento judaico. Até esse momento, Cato e o seu grupo tinham de continuar a desempenhar o papel de sentinelas do inimigo. Lançou
o olhar para leste, bem para lá do forte, e fixou a vista. Já havia uma muito ligeira luminosidade na linha do horizonte, que permitia separar a terra do céu. Virou-se
para ver se a coorte já estava próxima, mas ainda estava demasiado escuro para o perceber. Pouco depois surgiu um homem vindo do interior do campo. Ao passar por
eles acenou despreocupado e prosseguiu, cantarolando para si mesmo enquanto se embrenhava na escuridão.
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- Onde vai aquele? - Sussurrou um dos homens de Cato.
O centurião virou-se para ele, zangado.
- Onde é que achas? Vai cagar, com certeza.
Outro dos homens soltou uma risada.
- E vai ter a maior surpresa da puta da vida.
- Calado! - Avisou Cato.
No meio da escuridão, o som da cantoria do homem prosseguiu, até que se calou abruptamente. No momento seguinte ele surgiu a correr, juntando-se aos homens que rodeavam
o braseiro enquanto puxava apressadamente as vestes para baixo, cobrindo as pernas. Estendeu o braço na direcção do deserto e desatou a falar, excitado. Cato não
respondeu, e quando os olhos do homem se centraram na face do jovem, arregalaram-se-lhe de espanto.
O centurião tinha desembainhado a espada, que ergueu rapidamente, atingindo o outro no nariz com o punho. O homem vacilou e Cato atingiu-o de novo com uma forte
pancada nas têmporas que o derrubou.
- Desculpa lá esta. - Murmurou.
Momentos depois, os primeiros romanos emergiram da escuridão, aproximando-se do perímetro do acampamento inimigo. Cato avisou os homens que o acompanhavam.
- Chegou o momento de nos livrarmos dos disfarces.
Despiram as roupas inimigas e voltaram-se para o interior do campo.
Cato observou a aproximação da coorte. Distinguia o capacete de Macro no centro da linha que se aproximava a passo cadenciado, de forma a manter a formação. Depressa
ficaram banhados na luz dos fogos mais próximos.
- Segunda Ilírica! - Berrou a voz de Macro, quebrando o silêncio da noite. - À carga!
De imediato o ar foi rasgado pelo som das trombetas a incitar ao ataque, e pelo urro colectivo dos auxiliares enquanto se lançavam sobre o acampamento adormecido.
Antes que se desse qualquer reacção já as primeiras fogueiras tinham sido varridas, e todos os homens que dormiam junto a elas trespassados pelas lanças romanas.
O resto do campo começou a despertar; os homens acordavam surpresos, pestanejando e olhando horrorizados e amedrontados para os soldados romanos que irrompiam do
deserto. Cato e o seu grupo apressaram-se a reunir-se aos seus camaradas, lançando as suas lanças contra os judeus que lhes apareceram no caminho. Um dos auxiliares
parou para se agachar e puxar uma corrente de prata que rodeava o pescoço de um homem que acabara de matar; Cato pegou-lhe no braço e puxou-o para cima, empurrando-o
na direcção do centro do campo.
- Não parem por nada! Continuem em frente. Liquidem-nos e prossigam.
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Ouviu o som de cascos no flanco; era o esquadrão de Escrofa que tinha seguido por momentos ao longo do limite do campo antes de se virar e carregar sobre os homens
que tentavam equipar-se para enfrentar a infantaria romana. No outro flanco, o centurião Póstumo devia estar a fazer a mesma coisa com os outros dois esquadrões
montados, e Cato sentiu que finalmente se desapertava o nó de ansiedade que lhe apertava o peito. O seu plano tinha tido sucesso, a surpresa para o inimigo fora
completa. Tinham agora de a explorar da forma mais brutal possível. Correu, espetando o dardo em qualquer figura inimiga que ainda se contorcesse no solo ou que
lhe surgisse pela frente, enquanto se dirigia para o centro da linha romana que avançava pelo acampamento. De acordo com as ordens de Macro, todos os trombeteiros
continuavam a fazer troar os seus instrumentos com todo o poder dos pulmões, e a atmosfera estava repleta de repetidos toques apelando à carga. Os homens juntavam-se
ao alarido, berrando gritos de guerra enquanto despachavam inimigos sem piedade. Cato já se movimentava por entre pilhas de corpos, mortos e feridos, contorcendo-se
e gemendo à trémula luz das fogueiras espalhadas pela planície.
Os romanos continuaram a avançar como uma vaga de morte a cruzar o campo inimigo, deixando atrás de si um rasto de sangue e destruição. A leste, a quase indistinta
luz que Cato notara pouco antes já tinha dado lugar a um brilho pálido que se espalhava pelo horizonte, e um momento de pânico apertou-lhe o coração. Assim que os
judeus percebessem a realidade da força que os atacava voltar-se-iam de novo contra eles. No momento, porém, quer os judeus quer os seus aliados partos ainda se
preocupavam apenas com a fuga, enquanto os romanos dominavam os acontecimentos. Cato alcançou Macro quando a linha romana se aproximava do grupo de grandes tendas
no centro do campo. O prefeito exultava e sorriu com prazer quando avistou o seu jovem amigo.
- Conseguimos! Os sacanas fogem em todas as direcções.
Por momentos, Cato partilhou o sentimento de triunfo do amigo, mas depressa reparou que já quase conseguia avistar toda a extensão do acampamento. Olhou para Macro
com um ar funesto.
- Está a clarear.
- Melhor os veremos a fugir!
- Funciona para os dois lados, senhor. Depressa perceberão que somos muito poucos. Será melhor que retiremos, e depressa.
- Retirar? - Macro abanou a cabeça, e assinalou os homens que tinham passado por eles, correndo sem problemas através do acampamento inimigo, limpando tudo
o que encontravam. - Ganhámos, digo-te. Temos que continuar a atacar, agora que eles estão desanimados.
276
- Claro, senhor. Mas temos que estar preparados para dar a ordem de retirada quando chegar o momento.
Macro anuiu e virou-se para seguir os homens, acenando a Cato para ir com ele. Quando alcançaram a extremidade oposta do acampamento a alvorada já se espalhava pelo
céu e apesar de o Sol ainda não ter surgido no horizonte já havia luz suficiente para iluminar o terreno que circundava o forte. O campo estava semeado de cadáveres,
e havia romanos a perseguir os que se tinham escondido no início do ataque e tentavam agora escapar para o deserto, correndo num esforço para aproveitar as falhas
nas linhas romanas. Espalhados pela planície viam-se milhares de homens e cavalos, alguns montados pelos aliados partos de Bano. O inimigo já dava mostras de refrear
a fuga, de se reagrupar e encetar a luta contra os romanos que se viam também dispersos. Os esquadrões de cavalaria de Escrofa e Póstumo também estavam fragmentados;
muitos dos homens tinham cavalgado por entre as linhas inimigas e viam-se agora em risco de não conseguir retirar.
Macro e Cato estacaram no limite do campo, ofegantes, e analisaram a situação com crescente ansiedade.
- Senhor, já fizemos aqui tudo o que podíamos. - Sugeriu Cato. - Conseguimos a nossa vitória. Não a vamos agora perder. Dê ordem para recuar.
Macro hesitou, preso entre a vertigem do ataque decisivo, que aniquilasse a vontade de luta do inimigo, e a consciência do risco que os seus homens estavam a correr.
- Seja, tens razão. - Acabou por conceder, e virou-se para o grupo de porta-estandartes e trombeteiros que o tinham seguido desde o forte. Inspirou e deu
a ordem.
- Toquem a retirar!
Momentos depois, o sinal sonoro foi emitido e os auxiliares começaram a obedecer-lhe, abandonando a perseguição que moviam ao inimigo. Alguns homens, mais entusiasmados,
prosseguiram ainda, mas depressa mudaram de ideias ao notar que os revoltosos interrompiam a fuga ao ver os romanos começarem a recuar e a formar junto aos seus
estandartes. Cato já se tinha apercebido de que os comandantes inimigos se afadigavam, tentando suster a fuga dos seus homens, e que os partos, montados, se agrupavam
e depressa reuniriam números suficientes para enfrentar os atacantes. Era fácil de imaginar a carnificina que produziriam se lhes fosse dada a possibilidade de alvejar
os romanos com os seus temíveis arcos antes que estes conseguissem recolher para trás das muralhas do forte Bushir.
- Vamos! - Berrava Macro, acenando furioso aos homens que se tinham atrasado por terem levado a perseguição para lá do razoável. - Despachem-se!
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A sorte da batalha estava a mudar perante os seus olhos. Os judeus já começavam a ripostar e perseguiam os romanos que se tinham deixado levar longe demais pela
sua febre guerreira. Cato viu um grupo de sitiantes alcançar um auxiliar e derrubá-lo. O homem rebolou pelo solo e tentou cobrir-se com o escudo, mas deixou de se
ver quando os outros se aglomeraram em torno dele, golpeando-o sem cessar, as lâminas a trabalhar num frenesim assassino.
Cato voltou-se para Macro.
- Se não voltarmos para o forte agora, podemos nunca lá conseguir chegar.
Macro olhou em volta. Estavam a algumas centenas de metros da brecha na muralha que marcava a antiga localização do torreão de entrada. Se se demorassem, o inimigo
alcançá-los-ia e facilmente os aniquilaria muito antes de lá chegarem. Virou-se para os homens.
- Segunda Ilírica! De volta ao forte, em passo acelerado! Escrofa! Póstumo! Aqui!
Enquanto os centuriões e optios de infantaria transmitiam as ordens e dirigiam os homens de volta ao forte, os dois comandantes da cavalaria aproximaram-se de Macro.
Não tinham perdido mais do que um punhado de homens na perseguição ao inimigo, e a maior parte já tinha regressado para junto do seu estandarte, embora alguns ainda
travassem escaramuças no meio da massa de judeus.
Macro falou depressa, mantendo-se atento ao regresso do inimigo, que recuperava o terreno do acampamento.
- Quero a cavalaria a proteger a nossa retirada. Levem os vossos homens para a extremidade do campo mais próxima do forte. Formem uma linha e carreguem sobre
quem quer que se aproxime. Assim que chegarmos à brecha, vocês recuarão sob a protecção dos arqueiros.
Póstumo trocou um rápido olhar com Escrofa antes de responder.
- É uma loucura. Vai fazer com que nos matem.
- Acontece às vezes aos soldados. - Afirmou Macro, friamente. - Meus senhores, isto não é nenhuma porra de nenhum grupo de debate. Tem as vossas ordens, e
vão cumpri-las. É tudo!
Escrofa fez a montada dar meia-volta e conduziu-a para junto dos seus homens. Póstumo deixou-se ficar a encarar Macro ainda um instante, antes de seguir o seu antigo
comandante.
- Vamos. - Macro deu um toque no ombro de Cato, e correu atrás da coluna de infantaria que se apressava na direcção do forte. Em volta, os retardatários corriam
também. Ouviu-se o troar de cascos, e a cavalaria passou, a caminho da posição que lhe tinha sido destinada, deixando no ar uma nuvem de poeira. Depois de saírem
do campo judeu
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pararam e formaram uma linha de combate, com os homens de Escrofa do lado esquerdo da brecha e os de Póstumo à direita, deixando um espaço para a infantaria passar.
Cato e Macro alcançaram a última das centúrias e integraram-se nas fileiras. Olhando sobre o ombro, Cato ficou surpreso ao ver que alguns judeus corriam atrás dos
romanos, a não mais de cinquenta passos. Alguns detiveram-se e começaram a fazer girar as fundas.
- Atenção! - Gritou o centurião. - Fundas!
Virou-se e ofereceu o escudo ao bombardeamento, mesmo a tempo de evitar ser atingido por uma pedra que lhe rachou a orla do escudo e ressaltou, batendo-lhe ainda
no capacete. Um dos outros homens não teve tanta sorte e foi atingido na base da espinha. As pernas ficaram imediatamente inertes e ele tombou com um grito de dor
e surpresa. Um dos seus camaradas parou e apressou-se a tentar ajudá-lo.
- Deixa-o! - Ordenou Macro, empurrando o homem de volta às fileiras. Cato virou-se e correu, tentando recuperar a posição, contraindo os músculos dos ombros
e baixando a cabeça, como se isso o tornasse um alvo menos evidente. Mais projécteis passaram próximos, e desta vez quis o destino que não fizessem outras baixas.
Estavam a aproximar-se da protecção da cavalaria, e Macro gritou.
- Cavalaria! Carreguem! Agora!
Escrofa e Póstumo agitaram as espadas e os homens, de faces determinadas, fizeram avançar as montadas. Passaram por Macro e Cato, e os judeus que os perseguiam estacaram
ao aperceber-se do perigo, recuando de imediato. Porém, lá mais atrás Cato via um grupo montado que se dirigia contra a cavalaria romana. Eram os partos que atacavam,
de arcos retesados e com as bainhas das espadas a castigar os flancos dos seus cavalos. Os homens encurralados entre as duas forças de cavalaria correram para a
abertura, tentando desesperadamente escapar ao embate. Macro e Cato continuaram a correr para o forte, lançando olhares sobre os ombros. Abruptamente, Macro parou
e virou-se para trás.
- Mas o que raio está ele a fazer?
Cato estacou por sua vez e juntou-se ao amigo a tempo de ver como o esquadrão de Póstumo virava para a direita, fazendo uma diagonal em frente à linha do inimigo.
O braço do centurião apontava para a frente, e ele soltou uma ordem que os outros dois centuriões, distantes, não conseguiram distinguir claramente. Os seus homens
aceleraram e afastaram-se do acampamento, seguindo para norte. Ao ver isto, Escrofa deteve-se e todo o seu esquadrão parou, a menos de cem passos da linha inimiga,
ficando a assistir à fuga de Póstumo e dos seus homens.
- Aquele filho da puta está a fugir! - Exclamou Macro, atónito.
279
- Idiota. - Comentou Cato. - Para onde é que ele pensa que vai escapar?
- Quero lá saber. - Macro virou-se para os perseguidores. Escrofa e os seus homens eram agora tudo o que restava entre a infantaria que seguia para a protecção
do forte e a horda inimiga, desesperada por alcançar os romanos e aniquilá-los por completo. - Só o Escrofa nos pode salvar agora.
Escrofa olhou para os partos que se aproximavam, e olhou de novo para Macro, como se esperasse mais instruções. Macro praguejou e incitou-o.
- Porra, tens as tuas ordens. Cumpre-as, foda-se!
- Ele vai é pôr-se na alheta também. - Decidiu Cato, agarrando no braço do amigo. - Temos de retirar. Agora!
- Espera! - Macro ergueu o braço e apontou-o decidido na direcção do inimigo. Escrofa manteve-se imóvel ainda por um instante, e por fim assentiu. Depois
de uma última e formal saudação militar a Macro, dirigiu a sua espada contra os partos e deu ordem de carregar. Os seus homens esporearam os cavalos e, de escudos
aperrados e pega firme nas lanças, lançaram-se contra os partos. Macro abanou a cabeça, incrédulo, enquanto Cato continuava a puxá-lo pelo braço. Os dois oficiais
correram pela estrada para se juntarem ao resto da coluna que tentava acoitar-se na relativa segurança do forte. Por trás deles ouviu-se ainda brevemente o matraquear
dos cascos, depressa substituído por outros sons: o choque das lâminas, o estrondo de golpes atingindo escudos, o relinchar de cavalos aterrorizados, os gritos selvagens
de homems envolvidos num combate mortal, e os gemidos dos feridos.
Entretanto já a primeira centúria de infantaria tinha alcançado a brecha e subia agora a encosta de entulho ensanguentado. Parmenião tinha vindo recebê-los junto
à barricada e tentava desesperadamente apressar os homens. À medida que mais unidades alcançavam aquela área, iam-se acumulando numa mole imensa que tentava freneticamente
entrar para o forte, sob a pressão dos camaradas que continuavam a chegar, espreitando amedrontados sobre o ombro. Quando Macro e Cato ali chegaram olharam ainda
uma vez para trás, apercebendo-se de que Escrofa e os seus homens estavam a travar um combate desigual com os partos, e que seriam seguramente dizimados, pagando
o mais elevado dos preços pela salvação
281
dos seus camaradas. Cato olhou para o norte e notou que Póstumo e os seus amigos já não passavam de minúsculos pontos negros no meio de uma nuvem de pó. Eram porém
perseguidos por uma força considerável de partos, determinados a não permitir que escapassem, e Cato deu por si a desejar ardentemente que o traidor fosse capturado
vivo e sofresse a mais horrível das mortes que os partos pudessem conceber.
Regressou ao presente e notou que os auxiliares continuavam a tentar trepar pelo declive.
- Se isto continua, ninguém da cavalaria vai sobreviver.
- Vamos lá, homens! - Berrou Macro, frustrado. - Mexam-se!
- Prefeito!
Macro virou-se para a voz e viu o centurião Parmenião a acenar-lhe da barricada, com uma expressão excitada no rosto.
- O que se passa?
- Ali, senhor! Olhe para ali! - Parmenião ergueu o braço, apontando com o dedo para o sul.
Macro abriu caminho por entre os homens e trepou parte do monte para ver melhor. Cato juntou-se-lhe imediatamente, e os dois oficiais perscrutaram o deserto na direcção
indicada por Parmenião. A princípio, a poeira levantada pelo exército de Bano não lhes permitiu perceber o que levara o veterano a tanta animação. Mas nesse momento
uma ligeira mudança no vento permitiu a Cato ver para lá do campo inimigo, por entre a poeira. Havia outra força, centenas de homens, em cavalos e camelos, que vinha
do deserto direita aos judeus. Macro também já os tinha visto, e erguia o punho no ar.
- É o Simeão! Simeão!
Os homens na proximidade de Macro pararam, virando-se para ver e entoando o grito de Macro. Cato, sempre cauteloso, observou cuidadosamente os cavaleiros que se
aproximavam, sem se juntar aos festejos. Àquela distância era completamente impossível perceber quem seriam. Mas os sitiantes já se tinham apercebido da chegada
da nova força que os atacava, e as suas atenções desviavam-se do forte. O assalto aos odiados romanos era esquecido e rapidamente se viam forçados a, mais uma vez,
fugir para tentar salvar a vida. Havia luz suficiente para perceber toda a situação, e alguns dos chefes judeus tentavam organizar os seus homens, fazendo-os formar
de forma a enfrentar a nova ameaça. A maior parte, porém, fugia em debandada, atravessando o acampamento, dirigindo-se instintivamente na direcção das aldeias que
tinham abandonado para se juntarem a Bano no combate aos romanos. Só quando viu os revoltosos a fugir em completo desalinho é que Cato se permitiu acreditar que
era Simeão, ou pelo menos alguma força amiga, quem chegava. Os homens à sua volta davam vivas
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de contentamento, e os auxiliares começavam a organizar-se para avançar sobre o terreno inimigo, abandonando de novo o forte. Macro e Cato seguiram-nos na descida
do monte de entulho.
A curta distância, os sobreviventes do esquadrão de cavalaria que Escrofa liderara deixaram-se cair nas selas, exauridos e surpresos quando viram os seus oponentes
partos dar meia-volta e abandonar o combate, galopando para longe a toda a brida, esquecendo os seus aliados do momento anterior, passando-lhes literalmente por
cima sempre que necessário. Quando Macro chegou à cena da batalha, olhou em redor.
- Onde está o Escrofa? - Virou-se. - Escrofa!
- Ali, senhor. - Apontou Cato. Ali perto, por baixo de um cavalo sem cavaleiro, jazia um corpo, encolhido, com uma rica capa escarlate e com um capacete com
a marca de um oficial. Junto a ele viam-se os cadáveres de dois partos. Macro e Cato apressaram-se para junto do corpo e ajoelharam-se, virando Escrofa de forma
a apoiá-lo nas costas. Os olhos do homem abriram-se por momentos. Olhou em redor com uma expressão assombrada ao reparar nos dois oficiais que o amparavam.
- Macro... - Reconheceu, com voz sumida. - Tinha esperança que eles também te tivessem apanhado.
Macro sorriu.
- Ná, não tiveste essa sorte.
Cato chamou a atenção do amigo, e acenou na direcção do flanco de Escrofa. A haste quebrada de uma seta saía do peito do antigo prefeito, mesmo por baixo do coração.
Da ferida escorria um sangue espumoso. Macro voltou a encarar o rosto do outro homem.
- Foi uma carga e tanto. Salvaste-nos.
- Assim parece. - Um sorriso fraco foi substituído por um esgar de agonia, até que a dor retrocedeu por momentos. - Quem diria que ia eu acabar por salvar-vos
as vidas? Não há justiça neste mundo.
- Escrofa, já chega de te armares em duro. Não te fica bem.
O moribundo voltou a sorrir.
- Mas no fim acabei por me revelar um verdadeiro soldado, não foi?
- Sim, foi. Garanto-te que todos o saberão.
- Agradeço-te... Outra coisa.
- O que é?
- O Póstumo... - Escrofa lutou para erguer a cabeça, e repentinamente agarrou na mão de Macro com uma força inesperada. - Jura-me que hás-de fazer aquele
cabrão pagar. Por ter fugido. Por nos ter traído...
- Não te preocupes com o Póstumo. A última vez que o vi tinha uma boa centena de partos atrás dele. Não há-de escapar. E se isso por acaso acontecer, e se
o capturarmos vivo, garanto-te que há-de ficar a saber o que
283
pensavas dele antes dé... - Interrompeu-se, embaraçado. - Bom, hás-de dizer-lho tu mesmo. Assim que recuperares.
Escrofa deixou-se abater, e murmurou.
- Não terei essa sorte...
- Espera! - Cato inclinou-se sobre ele. - Escrofa! Falaste em traição. Que traição?
Os olhos do outro pestanejaram e ele sofreu um espasmo, arqueando o corpo em resposta à tensão dos músculos. Então, de repente, relaxou e tombou sobre a areia, e
a cabeça rolou-lhe para o lado. Cato pegou-lhe no braço e tentou detectar a pulsação, mas não sentiu nada, e acabou por o deixar repousar ao lado do corpo.
- Foi-se.
Macro olhou-o por momentos, e então abanou a cabeça.
- Sabes, nunca supus que este fosse capaz de se transformar num herói. Fazer o que ele fez revela uma enorme coragem. Enganou-me, o Escrofa.
- Não, não se enganou quanto a ele. - Cato ergueu-se. - Foi o seu gesto de redenção. E ele sabia-o. Percebi isso quando ele fez aquela última saudação. Teve
a sorte de poder fazer algum bem antes de partir.
- Sorte? - Macro pôs-se também de pé. - Cato, tens uma estranha noção da sorte.
- Pode ser que sim. - Olhou em redor. Os auxiliares estavam espalhados pela área, perseguindo os judeus que se tinham atrasado na fúga. Desta vez, não se
tratava de qualquer estratagema para ganhar tempo. O inimigo estava derrotado, e o triunfo dos romanos traduzia-se numa sede de sangue que ainda levaria algum tempo
a ser saciada. À frente de todos seguiam os reforços recém-chegados, caçando impiedosamente todos os rebeldes e os seus aliados partos que se tinham visto privados
de montadas.
Macro reparou num grupo de cavaleiros que se dirigia na sua direcção. À cabeça vinha Simeão, e quando se aproximaram e detiveram os cavalos, o centurião reconheceu
Murad entre eles; trocou um sorriso com o jovem. Simeão deixou-se escorregar da sela, abraçou fortemente Macro e plantou-lhe um beijo em cada bochecha.
- Prefeito. Graças a Jeová, estás a salvo! E tu, centurião Cato. - Simeão fez um gesto largo que abrangeu os cavaleiros que varriam o deserto, perseguindo
o inimigo. - As minhas desculpas por não ter chegado mais cedo, mas viemos o mais depressa possível.
- Quem são estes tipos? - Quis saber Macro. - Estava à espera de alguma ajuda, mas não de um exército, caramba.
- São homens que trabalham para os cartéis de caravanas. Como escolta armada, claro. Mercenários, na maioria, mas boa gente.
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- Bem, pelo menos parecem ter algum prazer no trabalho. Como é que conseguiste reunir tantos?
- Os meus amigos juraram que haviam de te retribuir o facto de teres salvo a sua caravana.
- Considera o gesto pago. - Respondeu Macro. - Agora temos que encontrar Bano e garantir que o levamos vivo, se não estiver já entre os cadáveres. Tem que
ser usado como exemplo.
- Bano? - Simeão virou-se e apontou para a estrada de Heshaba.
- Enquanto atacávamos, reparei num grupo que se escapou por ali. Uns vinte ou trinta. Partos, na maioria. Mas ele podia ir com eles.
- É muito provável. - Retorquiu Macro. - Lá terei que ir atrás dele.
- Vem connosco. - Ofereceu Simeão. - Conhecemos o terreno. Sozinho, não conseguirás grande coisa. Nenhum romano o conseguiria. Além disso, tenho as minhas
próprias contas a ajustar com Bano.
Macro considerou a proposta.
- Seja, aceito. Mas primeiro, diz aos teus homens que se podem aquartelar no forte, se assim o desejarem. Temos água e comida para eles. Vou deixar o centurião
Parmenião no comando, e dar-lhe ordens para cuidar dos teus homens. Também poderá libertar os reféns, já não precisamos deles. Espera aqui. Cato!
- Senhor?
- Arranja-nos dois cavalos decentes, e equipamento e mantimentos para perseguirmos Bano.
- Sim, senhor. - A expressão no rosto do jovem era de ansiedade.
- O que é que te preocupa?
- Senhor, é por causa daquela aldeia. Aquela em que eu e o Simeão nos abrigámos.
- O que tem?
- O Simeão disse que Bano seguiu nessa direcção, e ele vai precisar de água e mantimentos também, antes de prosseguir. Nesta altura é um homem desesperado.
Sei lá o que fará quando lá chegar.
- Bom, depressa o saberemos. - Respondeu Macro, de forma controlada. - Por agora, não vamos perder mais tempo.
Virou-se e encaminhou-se para o forte.
Quando, ao início da tarde, fizeram a última curva do caminho que levava pelo desfiladeiro até Heshaba, Cato tinha o estômago cheio de nós. Mesmo à distância tinham
notado a coluna de fumo, e agora já se avistava a aldeia sob uma nuvem negra. Várias das casas do centro da povoação ardiam ainda de forma incontrolável, apesar
de alguns dos habitantes tentarem combater as labaredas com trapos, e outros terem formado uma cadeia
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desde a fonte na praça central e se atarefarem a atirar baldes de água para as chamas. Simeão mostrou-se exasperado e assim que viu a cena lançou a montada a galope,
levando atrás de si toda a pequena coluna. Prenderam os cavalos num pequeno olival junto à aldeia e correram para o largo. Vários aldeãos jaziam mortos a um dos
lados, no meio de grandes poças de sangue; todos tinham a garganta cortada. Simeão deu uma série de ordens aos seus homens que se apressaram a ajudar conforme podiam
no combate aos incêndios. Cato olhou em volta, alarmado.
- Onde está a Miriam? Não a vejo.
Simeão olhou também em redor, com uma expressão de ansiedade, e apontou para uma rua, onde se via uma mulher sentada contra a parede de uma casa, à sombra, desalentada.
- Julgo que é ela. Anda.
Correram até junto da mulher, que se sentava de pernas cruzadas e agarrava a cabeça com ambas as mãos enquanto chorava.
Simeão ajoelhou junto a ela.
- Miriam?
Ela limpou os olhos e olhou para ele, revelando a face cortada e pisada. Parecia confusa, e distante, até que pareceu regressar-lhe o pensamento claro. Engoliu em
seco e tentou limpar a garganta.
- O que fizemos nós para merecer isto?
- O que aconteceu? - Indagou Simeão, gentilmente. Pegou-lhe na mão e afagou-a. - Miriam, conta-nos.
Ela olhou para ele com os lábios trémulos.
- O Bano. Veio com alguns homens. Exigiram comida e todo o ouro e prata que tivéssemos. Quando alguns protestaram, o Bano pegou na família mais próxima e
matou-os, um a um, até lhe darmos o que queria. - Olhou para os dois centuriões. - Levou o cofre do meu filho... E... E levou... Levou o meu Yusef. - Não aguentou
mais as lágrimas, e desatou a chorar, os ombros a tremerem e o desespero a ameaçar quebrar-lhe o frágil corpo. Ternamente, Simeão pôs-lhe um braço em redor dos ombros
e afagou-lhe o cabelo com a outra mão.
- Yusef? - Cato franziu o sobrolho. - Para que quer ele o Yusef? Não faz sentido. Se está a tentar escapar, para quê dificultar as coisas com um prisioneiro?
- Não é um prisioneiro. - Sussurrou Miriam. - É um refém. Ele reconheceu-te, Simeão, no ataque desta manhã. Sabe que o vais perseguir, e sabe que nunca poderás
permitir que algum mal aconteça ao Yusef. Portanto, levou-o com ele.
- Bem. - Disse Macro. - O rapaz ainda percebo, mas esse cofre? O que é que tem a ver com a história?
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Miriam respondeu calmamente.
- O Bano proclama ser quem dá continuidade ao trabalho do Jehoshua. Ele tinha um grande grupo de seguidores entre o nosso povo. O conteúdo do cofre tem um
enorme valor para todos eles.
- Um tesouro?
Miriam encolheu os ombros.
- Uma espécie de tesouro. Que agora está nas mãos do Bano, que o usará sem dúvida para se proclamar como o verdadeiro sucessor do meu filho.
- O que contém a caixa? - Perguntou Macro a Simeão.
- Não sei. - Retorquiu o outro. - Só ela sabe.
Macro virou-se para a mulher.
- Então?
Ela abanou a cabeça, e Macro suspirou, impaciente.
- Bom, então não me digas... Seja como for, é Bano que a tem, além de um refém, e um bom avanço. Sabes para que lado foi?
- Sei. - Miriam levantou o olhar, tentando afastar as lágrimas. - Disse-me para dizer ao Simeão que o poderia encontrar em Petra.
- Petra? - Cato estava perplexo. - Porquê Petra? E porquê dizer-nos para onde ia?
- Porque quer falar com o Simeão. Num sítio em que o possa fazer em segurança.
- Faz sentido. - Concedeu Simeão. - Petra é neutral, mesmo que estes meus amigos não o sejam. No passado o reino foi inimigo da Judeia, mas agora preocupa-se
com a possibilidade de Roma estar a deitar o olho à Nabateia. Bano está a contar com a desconfiança do rei acerca dos romanos. Pensa que lá estará seguro.
- Há quanto tempo é que se foram embora? - Interrompeu Macro.
- Miriam?
- Pouco antes do meio-dia.
- Daqui a Petra são, o quê? Dois dias de viagem?
Simeão confirmou.
- Dois dias ou um pouco menos, se forçares o andamento.
- Achas que conseguimos apanhá-lo?
- Podemos tentar, pelo menos.
- Então vamos a isso, já perdemos demasiado tempo por aqui. - Macro reparou na expressão desaprovadora na face de Simeão enquanto confortava Miriam, e também
na censura silenciosa de Cato. Virou-se para a mulher e tentou parecer razoável e tranquilizador. - Escuta, Miriam, quanto mais cedo nos lançarmos na perseguição,
mais possibilidades teremos de recuperar o teu neto, e o tal cofre.
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Miriam pegou-lhe de súbito na mão e olhou-o intensamente nos
olhos.
- Promete-me que me trarás o Yusef de volta! Jura-o!
- O quê? - Macro irritou-se e tentou libertar a mão, mas a mulher agarrava-o com uma força surpreendente. - Olha, não te posso prometer isso. Mas farei tudo
o que puder.
- Jura-o! - Insistiu Miriam. - E que Jeová seja testemunha.
- Não sei nada desse Jeová. - Retorquiu Macro, pouco satisfeito. - Mas se quiseres que jure por Júpiter e por Fortuna, fá-lo-ei, se isso te ajuda.
- Pelos teus deuses então. - Assentiu a mulher. - Jura que conseguirás devolver-me Yusef.
- Prometo que farei tudo o que puder. - Ripostou Macro, num compromisso oportuno, e virou-se rapidamente para Cato e Simeão. - E agora, vamos.
Dirigiu-se a passos largos para os cavalos. Simeão apertou suavemente o ombro de Miriam uma última vez e seguiu-o, chamando os seus homens para que deixassem os
fogos e se juntassem a ele. Cato hesitou um momento. Estava farto do sofrimento a que assistira naquela província. Enjoado pela parte que lhe tocara na distribuição
do mesmo. A imagem do rapaz a quem tinha partido o pescoço com o escudo passou-lhe pelo pensamento. Um miúdo da mesma idade de Yusef. Sentiu que sobre ele assentava
uma enorme tristeza, que trazia um peso insuportável. Alguma coisa tinha de ser feita. Cato sentia que tinha de fazer sair dali algum bem. Para se poder sentir limpo
outra vez.
- Miriam?
Ela olhou-o.
- Havemos de o encontrar, e de o trazer para ti. - Disse. - Juro que não descansarei até que isso se torne realidade.
288

- Afinal, onde é que anda essa tua cidade? - Perguntou Macro, enquanto percorriam o caminho bem marcado que serpenteava entre as colinas íngremes.
Simeão fez um gesto largo, para a direita.
- Ali dentro.
Macro e Cato contemplaram as abruptas faces rochosas que dominavam o outro lado do vale. Não parecia existir qualquer abertura no meio das falésias, e por trás delas,
erguendo-se à distância, viam-se apenas os picos e penhascos de outras colinas ainda mais altas.
- Pedras, pedras e mais pedras. - Resmungou Macro. - Petra... Ora aí está um nome que não engana.
Cato acenou em concordância, fatigado. Estava no limite das suas forças. Durante o assalto de Bano ao forte Bushir não tinha tido ocasião de descansar, e depois
disso tinham saltado para cima dos cavalos e cavalgado incessantemente seguindo a linha de montanhas que ladeava o vale do Jordão, perseguindo Bano e o pequeno grupo
de seguidores que tinham sobrevivido à derrota sofrida em Bushir. Simeão, à frente de um grupo de nabateus escolhidos a dedo, tinha-os levado sem pausa, sempre a
perscrutar o terreno em busca dos mais ínfimos traços da passagem de Bano, sempre com o mesmo olhar obstinado. Numa ocasião tinham-no mesmo avistado, quando cruzavam
um cume, acima da aldeia de EJfâna. À sua frente tinha-se estendido um panorama de montanhas menores e colinas que desciam até à bacia larga e quase estéril do baixo
Jordão. O ar era tão seco e límpido que tornava a paisagem nítida até longas distâncias, e do local em que se encontravam podiam ver os contrafortes das elevações
do outro lado do vale, a quatro ou cinco dezenas de quilómetros de distância. Até Macro se confessara impressionado com a vista espectacular. Nessa altura Murad
dera um grito e apontara para as colinas mais a sul. Uma diminuta coluna de pequenos pontos negros trepava para uma crista distante, e o seu progresso era
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assinalado por uma coluna de poeira. Simeão dera uma ordem e tinham encetado de novo a perseguição, cavalgando velozmente para tentar encurtar a distância, mas depressa
os cavaleiros longínquos tinham alcançado a crista e desaparecido do outro lado.
Tinham prosseguido no mesmo ritmo até a escuridão crescente tornar o avanço perigoso, e tinham acampado ao relento, levantando-se com a primeira luz da aurora para
continuar a caça. E foi assim que, dois dias depois de terem deixado Heshaba, se aproximaram de Petra, torrando debaixo do sol do meio-dia. Ao descerem para o vale
que levava à entrada da cidade cruzaram-se com uma caravana que ia para norte: centenas de camelos carregados até mais não com mercadorias destinadas às cidades
helénicas da Decápole, onde tais luxos eram apreciados. Simeão, Murad e os outros trocaram cumprimentos com os responsáveis pela caravana e detiveram-se breves momentos
para uma conversa rápida antes de se despedirem e deixarem a caravana prosseguir a subida num passo lento mas regular.
Simeão refreou o cavalo, alinhando com Macro e Cato.
- Perguntei-lhes se alguém tinha chegado a Petra hoje de manhã ou ontem.
- E? - Quis saber Macro.
- Ao que parece, o Bano chegou pela alvorada. Viram um grupo de homens a chegar ao siq quando estavam a carregar os camelos. Havia um rapaz nesse grupo, bem
como vários partos. Só pode ser o Bano.
- Siq? - Espantou-se Cato. - O que é isso?
Simeão sorriu em resposta.
- O siq é a arma secreta de Petra. Perceberás o que quero dizer quando lá entrarmos.
Prosseguiram até à base do vale; a pouco e pouco começou a tornar-se audível o som de vozes e do resfolegar de camelos, e quando o caminho contornou uma crista rochosa
desembocaram numa vasta área aberta, repleta de homens e animais. Havia carregadores que levavam às costas grandes fardos de bens diversos: rolos de tecidos, pacotes
bem fechados de especiarias, esbeltas peças de vidro acomodadas em palha e empacotadas em cestas de vime. Havia caravanas a serem preparadas para seguir para as
ricas cidades do norte, enquanto outras, sem mercadorias, regressavam aos grandes portos comerciais da Arábia, para recolherem nova leva de artigos de luxo. Cato
olhou em volta, maravilhado. Nunca vira gente como alguns dos muitos tipos que por ali andavam naquela espécie de entreposto natural de Petra - uns de pele castanha,
alguns envergando vestes de seda e mostrando olhos estreitos, e cabelos escuros com estranhos penteados. Apontou-os a Simeão e perguntou quem eram.
290
- São do leste. Dizem-me que do extremo oriental do mundo, para lá do qual nada mais existe. Não sei muito sobre eles, a não ser que são tão ricos como um
homem pode ser, graças ao ouro e à prata de Roma e da Grécia. Os tesouros que passam por Petra são quase inimagináveis, Cato. Espanta-me que vocês, romanos, não
estejam na penúria, tanta da riqueza de Roma se esvai por aqui.
- Nunca estiveste em Roma, pois não?
- Ainda não. Mas um dia irei até lá.
- Nessa altura hás-de perceber como é que Roma se permite a todos esses luxos. Não há nada que os mais ricos homens de Roma não possam comprar. Tal é a extensão
da sua fortuna.
- Por agora, talvez. - Contrapôs Simeão. - Mas por certo que nenhum império, por muito vasto que seja, se pode permitir satisfazer todos os seus caprichos
eternamente.
- Não faço ideia. - Admitiu Cato. - Aí está algo em que nunca pensei.
Simeão encolheu os ombros.
- Então talvez o devesses fazer.
O antigo guia deu permissão aos nabateus que os tinham acompanhado para irem aos seus afazeres, e prosseguiu caminho com os dois romanos, atravessando o entreposto
até chegarem a uma estrada larga que levava na direcção das falésias. A estrada era pavimentada e ligeiramente arqueada, com uma vala de drenagem em cada lado. O
tráfego era constante, entre carregadores, mercadores e mercenários, como os homens que tinham acompanhado Simeão e Murad. De ambos os lados da estrada viam-se túmulos,
esculpidos na rocha com evidente esmero, de tal modo que as fachadas pareciam feitas de colunas. A estrada curvou acompanhando um afloramento rochoso e Cato e Macro
avistaram um portão, pequeno mas de aparência sólida, que interrompia a estrada. Por trás dele erguia-se uma parede vertical de rocha avermelhada, marcada aqui e
ali por camadas mais claras e mais escuras. Havia uma estreita fissura nas falésias, que se internava pelo coração da montanha. Simeão virou-se para os seus companheiros
romanos. - E aquilo, meus amigos, é o siq.
O portão era guardado por uma vintena de homens de ricas vestes e armaduras polidas que refulgiam ao sol sempre que se afastavam da sombra da falésia. À frente do
portão via-se um ajuntamento, gente que aguardava a sua vez para pagar o tributo e poder prosseguir, enquanto na direcção contrária seguia um fluxo ininterrupto
de pessoas. Simeão deu sinal para desmontarem e levou-os para se juntarem à multidão que seguia para o siq. A fila avançou lentamente, até que por fim foi a sua
vez de se aproximarem
291
da mesa que se via junto à passagem. Um oficial sorridente e com ar de quem fazia o seu trabalho com prazer saudou Simeão em aramaico.
Simeão respondeu, indicando quantas pessoas compunham o grupo, e o oficial procedeu a diversas manobras com contas num ábaco para calcular a portagem a pagar. Simeão
tirou a carteira e entregou-lhe algumas moedas de prata, que o outro introduziu na abertura de um cofre que estava ao lado da mesa. Estava pronto a mandá-los seguir
quando notou a presença de Macro e Cato e os olhos se lhe semicerraram, traduzindo alguma desconfiança. Ergueu a mão, dando ordem a Simeão para parar, e disparou
algumas questões rápidas em tom hostil. Simeão respondeu de forma razoável, mas o humor do outro foi-se tornando cada vez mais belicoso, e acabou por gritar uma
ordem aos guardas que esperavam junto ao portão.
Macro deu um passo na direcção da mesa.
- O que se passa?
- Aqui este nosso amigo parece ter alguma coisa contra a vossa presença. Havia alguns partos num grupo que solicitou passagem esta manhã. Agora são dois romanos.
E ele quer saber porque é que de repente Petra desperta tanto interesse em representantes de dois tão poderosos impérios.
- Nós não representamos nada. Só andamos atrás de Bano. Diz-lhe
isso.
- Já o fiz. Expliquei que tenho casa na cidade, e que vocês são meus convidados. Não me acreditou. Afirma que terá que vos deter e informar o palácio da vossa
detenção.
- Deter? Quer dizer que nos vai prender? - Macro franziu o sobrolho. - Não me parece.
Um grupo de seis guardas aproximava-se vindo do portão, e a mão de Macro descaiu para o punho da espada. Começou a desembainhá-la, mas Cato obrigou-o a deter-se.
- Macro, isso não nos vai ajudar. Não faça isso, por favor. Não nos podemos dar ao luxo de provocar confusão.
- O caraças.
- Um desacato não nos vai ajudar a aprisionar Bano, nem a devolver o Yusef à avó.
Macro voltou a olhar para os guardas, depois de novo para Cato, deixando escapar um valente suspiro de ressentimento e frustração.
- Seja, tens razão.
Os guardas detiveram-se junto à mesa, e o homem que os chefiava aproximou-se cautelosamente dos dois romanos. Apontou para as espadas, e Cato e Macro, com relutância,
entregaram-nas. Depois, o outro indicou a entrada para o siq.
Cato virou-se para Simeão.
292- Para onde é que nos levam?
- Para as celas por baixo do palácio real. Não se preocupem, vou tratar de vos tirar de lá o mais depressa possível.
- Isso era simpático. - Declarou Macro, em tom gélido. - Se não te der muito trabalho, claro.
O chefe dos guardas voltou a interpelá-los, desta vez com maior vigor, e indicou o siq com um gesto do dedo. Cato avançou para o meio dos guardas e, depois de uma
breve hesitação, Macro imitou-o; o grupo iniciou a marcha. Depois de passarem pelo portão as faces rochosas aproximaram-se ainda mais, de tal forma que, em diversos
pontos, não cabiam mais do que alguns homens lado a lado. Por cima, as falésias bloqueavam a luz, deixando ver apenas uma réstia de céu azul, que por vezes nem se
notava, quando uma saliência rochosa tapava completamente a luz na passagem. O caminho era pavimentado, e ladeado por um pequeno canal para escoamento de águas,
de forma a impedir a inundação da estrada. Todos os que seguiam pela via serpenteante tinham que se encostar à parede para permitir a passagem aos guardas e aos
seus prisioneiros, que se dirigiam à cidade.
- Percebe-se porque é que Pompeu nunca conseguiu submeter os nabateus. - Comentou Cato, calmamente. - Se esta é a única entrada para Petra, uma pequena força
pode muito bem fazer frente a todo um exército pelo tempo que for necessário.
- Tem que haver outra forma de entrar. - Replicou Macro. - Um trilho pelas montanhas, ou pelo menos uma face rochosa que possa ser escalada. Não achas?
- Se calhar não. De outra forma, como explicar que os nabateus sempre tenham conseguido resistir a todos os conquistadores que passaram pela região? - Cato
contemplou as falésias, assombrado. - É um milagre que alguém tenha encontrado esta passagem sequer.
Fizeram uma curva e avistaram uma estreita faixa de luz que fendia as rochas de alto a baixo. A curta distância da abertura via-se uma enorme estrutura, um templo,
com colunas maciças. Só quando se aproximaram mais é que Cato percebeu que não era realmente uma construção, já que tudo tinha sido esculpido na rocha sólida.
- Olhem-me só para isto. - Comentou Macro, maravilhado, quando emergiram do siq e avistaram todo o edifício, de um vermelho vivo realçado pela luz do sol
que se derramava sobre ele. Tinham saído para um desfiladeiro estreito com um pavimento de pedra, repleto de bancas de mercadores e banqueiros, como em qualquer
grande cidade do Império. A diferença é que não havia templos em torno do mercado, apenas falésias vermelhas. Os guardas conduziram-nos através da área, descrevendo
outra curva, até que por fim a cidade de Petra se revelou perante os seus olhos.
293
Vastos túmulos esculpidos na rocha ladeavam a via larga que levava ao coração da cidade encerrada na montanha. Ao longo da rua havia mais bancas e pouco mais à frente,
numa colina baixa, avistava-se um conjunto de magníficos palácios e templos. Ao saírem da rua ladeada pelos túmulos as falésias afastaram-se, deixando ver o resto
da cidade, uma massa de casas e ruas que cobriam as encostas em volta da depressão que constituía o núcleo de Petra. Guardas e prisioneiros marcharam por outra rua
larga com colunas de ambos os lados, até chegarem a umas escadarias que subiam a colina à direita, onde se situava o grande palácio dos reis da Nabateia. Subiram
a escada, mas não se dirigiram às magníficas portas decoradas da entrada principal e sim a uma discreta passagem lateral. Lá dentro, outra escadaria descia para
os níveis inferiores do palácio, onde um túnel iluminado por archotes fazia um arco, prolongando-se sob a rua que tinham acabado de percorrer. Ao fundo do túnel
havia um conjunto de celas com aberturas gradeadas que davam para a rua. O chefe dos guardas empurrou-os para lá das primeiras celas, algumas das quais continham
personagens de aspecto miserável, que viviam no meio da imundície enquanto esperavam julgamento ou cumpriam penas.
Cato deu um toque a Macro.
- Olhe para ali.
Macro espreitou quando passaram em frente das barras da penúltima cela. Lá dentro, sentados contra a parede, estavam vários partos, ainda envergando as armaduras
que tinham usado no combate do forte Bushir. Os olhos deles seguiram os recém-chegados quando estes passaram e foram enfiados na cela seguinte. O chefe dos guardas
fechou a porta gradeada, colocou os ferrolhos e levou os seus homens, deixando os dois romanos a sós.
Macro foi até à janela e trepou para o banco, de forma a espreitar pelas barras. Lá fora as pessoas passavam sem se dar ao trabalho de olhar para o rosto do prisioneiro
que as observava do buraco escuro na base da parede do palácio.
- Não é um resultado brilhante. - Comentou, desanimado.
- O Simeão há-de resolver a situação. Depressa seremos postos em liberdade.
- Pareces ter muita confiança nele.
Cato deixara-se abater contra a parede, e sentia a necessidade de sono a cobri-lo como um lençol. Sentia os olhos pesados, e deixou-os cerrar por um instante. Porém,
o comentário de Macro obrigou-o a reagir.
- Confiança? Sim, suponho que sim. Parece-me que ele sabe o que faz. E foi graças a ele que conseguimos derrotar Bano em Bushir, lembra-se?
294
- É justo. - Retorquiu Macro, em tom neutro, enquanto continuava a espreitar pelas barras da janela. - Só espero que consiga safar-nos desta cloaca imunda.
- Colorida imagem. - Resmungou Cato, antes de sucumbir à exaustão, deixando tombar o queixo sobre o peito e adormecendo profundamente.
Uma mão agarrou-o pelo ombro e sacudiu-o com rudeza. Cato agitou-se.
- Deixe-me dormir em paz. - Resmungou. - Macro, largue-me.
A mão voltou a sacudi-lo ainda com mais força, e Cato levantou a
cabeça. Abriu os olhos e fez menção de protestar mais uma vez. Mas não era Macro quem se esforçava por o despertar. Murad sorriu-lhe e disse qualquer coisa na sua
língua, enquanto agitava um dedo à frente do jovem oficial romano, com ar de gozo. Macro estava atrás dele.
- O que se passa? - Perguntou Cato.
- Parece que o Simeão nos enviou uma pequena encomenda. - Macro apontou para o chão da cela, onde se via um fardo de roupas e um pequeno cesto com carne e
pão. Murad sorriu, apontou para a comida e depois para a boca.
- Bom! Comer. Comer.
Cato assentiu.
- Já percebi, obrigado.
Levantou-se rapidamente e esfregou a parte inferior das costas e as nádegas que ainda estavam doridas depois de dois dias na sela. Lá fora estava escuro e a cela
era iluminada apenas por uma lamparina de três bicos que estava no chão junto à porta. Macro agachou-se, rasgando um pedaço de pão e metendo-o na boca. Enquanto
mastigava, apontou para uma tábua encerada que estava em cima do fardo de roupas.
- Também nos mandou uma mensagem.
- E o que diz?
Macro começou a explicar, mas tinha a boca cheia de pão e não conseguia falar de forma perceptível; começou a mastigar furiosamente até que desistiu e atirou a tábua
na direcção de Cato.
- Lê tu mesmo. - Explicou, a custo.
Cato pegou na tábua e começou a ler. Simeão tinha tido uma audiência com o ministro plenipotenciário para explicar a situação e solicitar a libertação dos dois romanos.
O problema era que Bano tinha tido a mesma ideia e se tinha antecipado, aproveitando para informar o ministro de que era seguido por dois espiões romanos, enviados
para recolher informações sobre as defesas de Petra. Simeão tinha defendido a inocência dos seus amigos
295

quanto a essa acusação. Em consequência, o ministro tinha decidido ouvir todas as partes e marcara a audiência para a manhã que se aproximava. Assim, Simeão tinha-lhes
enviado roupas lavadas e um pequeno frasco de óleo perfumado, e tinha pago aos guardas do palácio para que lhes fosse levada uma tina com água que lhes permitisse
lavarem-se, de forma a estarem apresentáveis perante o alto dignitário de Petra. Concluía a missiva dizendo que ainda estava a averiguar o paradeiro de Bano, que
Yusef parecia estar bem, e que a preciosa caixa de Miriam ainda estava na posse do líder dos revoltosos.
Cato poisou a tábua e olhou para o estado em que estava. Na pele ainda se viam traços escuros da cinza que tinha aplicado aquando a preparação para o ataque ao acampamento
inimigo. O suor que tinha exsudado ao longo de dois dias a cavalgar debaixo daquele sol implacável tinha criado uma crosta de poeira na pele, obstruindo todos os
poros e dobras. Um olhar a Macro revelou que o aspecto do amigo não era muito diferente. Murad apontou para a tina no canto da cela, e fez gestos como se estivesse
a lavar a cara.
Cato anuiu, enquanto se abaixava para desapertar os cordões das botas.
- Que horas são?
- Não faço ideia. - Admitiu Macro. - Adormeci pouco depois de ti. Só acordei quando o Murad entrou na cela.
Depois de tirar as botas, Cato começou a tirar a túnica. Murad murmurou qualquer coisa e afastou-se rapidamente, batendo à porta. O ferrolho foi levantado de imediato,
e a porta aberta por um guarda. Murad virou-se, fez um rápido aceno de despedida, e saiu. O guarda voltou a fechar a cela.
Macro soltou uma risada.
- Parece que por estas bandas não apreciam lá muito a exposição da pele. Reparei nisso quando seguíamos pelas ruas. Não percebo como é que aguentam tanta
roupa em cima do pêlo com este calor.
Cato continuou a despir-se. Quando estava nu, aproximou-se da bacia e reparou que havia uma esponja no fundo. Esfregou a pele e depois secou-se, antes de examinar
as roupas que Murad lhes trouxera. Havia uma túnica leve, de linho, para cada um, bem como uma veste fina, de um material que nunca tinha visto, e dois pares de
sandálias ligeiras.
- Bem bom. - Comentou, e começou a vestir-se.
Macro lavou-se por sua vez, e encarou as roupas com cautela.
- Preferia usar a minha túnica militar.
- Está suja, rasgada, e tresanda a suor de cavalo.
- E então?
- Então, não deve ser grande coisa quanto a impressionar o tal ministro de que o Simeão falava. - Cato ergueu os braços, deixando pender
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as dobras da veste que lhe cobria a magra figura. - Além disso, estas roupas são muito confortáveis. Mesmo muito confortáveis. Verá.
- Pois sim! - Desdenhou Macro. - Pareces uma puta de luxo, isso
sim.
- A sério? - Cato sorriu, divertido. - Então espere até eu pôr um bocadinho daquele óleo perfumado.
Pouco depois de o Sol surgir sobre as colinas que rodeavam a cidade, os guardas vieram buscá-los. Macro não se tinha entendido com as roupas lavadas que lhes tinham
sido entregues, e a veste caía-lhe desajeitadamente dos ombros fortes, fazendo dobras por cima do cinto militar que usava à cintura. E tinha-se recusado terminantemente
a utilizar uma gota que fosse do óleo perfumado contido no pequeno frasco que Murad deixara cuidadosamente junto às roupas.
- Não me vou pôr a cheirar como uma galdéria que abre as pernas por dois sestércios! - Protestara.
Cato tinha tentado chamá-lo à razão.
- Em Roma, se...
- Foda-se, é mesmo essa a ideia! Não estamos em Roma. Se estivéssemos, logo vias se me apanhavam a entrar neste concurso de roupas finas.
- Macro, há muita coisa em jogo nesta ocasião. A menor das quais não é a possibilidade de saírmos desta cela. Aqui fechados não podemos fazer nada. Portanto,
temos de causar boa impressão aos poderes locais. Peço-lhe que pelo menos arranje as roupas. E se não vai usar o óleo, pelo menos fique contra o vento e não deixe
que o ministro lhe sinta o cheiro.
- Rica piadinha, sim senhor. - Resmungou o veterano, mas tentou ainda assim ajeitar as dobras da veste a que não estava de todo habituado. Quanto às sandálias,
tinha ficado admirado por se sentir tão confortável nelas, depois das rudes botas militares que sempre tinha usado. Embora, evidentemente, não estivesse disposto
a admiti-lo a Cato.
- Ora muito bem. Estou pronto. Vamos embora.
Foram levados pelo túnel de acesso às celas. Ao passarem pelos partos, ainda encerrados na cela vizinha, Macro piscou-lhes o olho.
- Ei, rapazes, apreciem a hospitalidade.
- Para que foi isso? - Indagou Cato. - Eles não o percebem.
- Estou aqui fora, com roupa lavada, e eles enfiados numa cela escura e imunda. O que é que eles não percebem? - Riu com gosto.
O ministro ia recebê-los no seu salão, adjacente ao do rei. Era um compartimento vasto, com filas de colunas que se erguiam até um tecto decorado com motivos geométricos
desenhados a ouro. Um estrado baixo com um cadeirão ornado e uma larga secretária ficavam ao fundo da sala; 297
luz entrava abundantemente através de janelas ao cimo das paredes. A um canto havia uma gaiola, onde um pássaro entoava um belo e triste canto, repetido sem cessar.
Um guarda indicou-lhes que deviam permanecer de pé em frente ao estrado, e depois deixou-os a sós, cerrando as portas ao sair.
- Bom, e agora o que se vai passar? - Interrogou-se Cato.
Durante algum tempo deixaram-se estar em silêncio, aguardando a
chegada iminente do ministro e da sua comitiva, mas ninguém apareceu, e a repetitiva canção do pássaro continuou a ecoar pelas paredes vazias, levando Macro a sentir
uma compulsão súbita de torcer o pescoço à ave e enfiar a carcaça num espeto para assar. Para sorte do bem-estar do animal, as portas abriram-se repentinamente e
Simeão foi introduzido no salão. Sorriu ao avistar os dois romanos.
- Aí está! Pareces um bocado mais civilizado. - Fez uma rápida inspecção a Macro. - Bom, pelo menos, pareces menos um bárbaro.
- O que se passa? - Perguntou Macro. - Estamos aqui à espera há eras. Onde anda esse tal ministro?
- Está reunido com os conselheiros. A chegada de Bano, seguida da vossa, criou uma situação um tanto ou quanto delicada aos nabateus.
- Porquê?
Simeão lançou uma olhadela em redor antes de baixar a voz e explicar.
- Um dos partos que chegou com o Bano afirma ser um príncipe de sangue real. Se os nabateus continuarem a mantê-lo prisioneiro, arriscam-se a ofender a Pártia.
Ouviram dizer que os partos estão a concentrar forças junto à fronteira romana da Síria. Se se der uma guerra entre Roma e a Pártia, e esta triunfar, os nabateus
não podem permitir-se ao luxo de ter algum mal-entendido com uma tal potência. Por outro lado, o Bano e os seus aliados partos são responsáveis pela tentativa de
lançar uma rebelião na Judeia. Se os nabateus libertarem esse tal príncipe parto e o seu amigo Bano, arriscam-se a ofender Roma. - Simeão fez uma pausa, para que
as suas palavras fizessem efeito. - Estão a ver o problema. Para já, estão a tentar verificar se o que o tal parto diz é verdade.
- Mas isso pode levar semanas.
- Aparentemente, não. A Pártia enviou recentemente um embaixador ao rei da Nabateia. Estão os dois no palácio real junto ao Mar Morto. O ministro enviou uma
mensagem ao rei, explicando a situação e pedindo-lhe que regresse à capital com o embaixador.
- E quanto tempo vai isso levar? - Perguntou Macro.
- Alguns dias.
Macro comprimiu os lábios, tentando conter a frustração que sentia.
- Porra, não vou ficar encafuado naquela cela esse tempo todo. Podes dar esse recado ao merdas do ministro.
298
Ao escutar o som de passos a aproximarem-se, Simeão olhou na direcção da porta.
- Parece-me que vais ter oportunidade de lho dizer pessoalmente.
As portas voltaram a abrir-se, dando passagem a uma pequena comitiva que seguia um homem alto e magro, ricamente vestido. O grupo de ajudantes do ministro assumiu
as posições que lhes estavam destinadas à volta do estrado. O ministro ignorou Simeão e os dois romanos até se ver bem acomodado no cadeirão. Só então olhou para
eles, lançando um sorriso de político, isento de qualquer sinceridade.
- Peço desculpa pela forma pouco hospitaleira como foram recebidos na nossa cidade.
O grego em que falara era culto e irrepreensível. Até parecia mais grego do que a maior parte dos gregos, considerou Cato, enquanto o outro prosseguia.
- O Simeão fez-me chegar uma petição no sentido de que sejam libertados e colocados sob a sua custódia enquanto estiverem em Petra. Resolvi aceder a essa
pretensão, mas com as seguintes condições. Primeira, que façam uma promessa solene de não tentarem abandonar a cidade; segunda, que os vossos movimentos se restrinjam
ao centro da cidade, e que não tentem de forma alguma proceder a um levantamento das nossas defesas; terceira, que evitem qualquer contacto com Bano e os seus aliados
partos. Se os encontrarem na rua, devem ignorá-los. Qualquer violação destas condições levará a que sejam imediatamente reincarcerados.
- Rein-quê? - Indagou Macro num murmúrio.
- Pregam-nos com os ossos outra vez na cela.
- Oh.
O ministro encarou-os.
- Estão dispostos a aceitar estas condições?
Macro assentiu.
- Estamos, senhor.
- Muito bem. E tenho então a vossa solene promessa de que as respeitarão?
- Juro-o.
- E o teu amigo?
- Juro também. - Retorquiu Cato.
- Óptimo! Então, está arrumada a questão. Bano e o príncipe parto também o juraram, portanto não haverá qualquer escaramuça enquanto estiverem sob a nossa
jurisdição. - O tom em que foi proferida esta afirmação não deixava dúvidas sobre as ameaças implícitas em caso de desrespeito à combinação, e os oficiais romanos
entenderam perfeitamente a mensagem.
- Ora bem. - Prosseguiu o ministro. - O que pretende Roma do reino dos nabateus, quanto à presente situação?
Macro franziu o sobrolho enquanto tentava acompanhar as palavras do ministro e perceber o que estava realmente a ser perguntado. Felizmente Cato percebia perfeitamente
o grego, e adiantou-se na resposta.
- Gostaríamos de reclamar a devolução do jovem que Bano tomou como refém. Queremos ainda a devolução de um cofre que pertence à família do rapaz, e a prisão
do próprio Bano.
- E acerca do príncipe parto?
Cato olhou para Macro, esperando uma decisão. Este abriu a boca, mas pensou melhor e levantou um dedo.
- Um momento, senhor, por favor. - Virou-se para Cato e conferenciou em voz baixa. - O que achas? Deixamos o cabrão do parto escapar?
- Não estou a ver outra hipótese. - Replicou Cato, deitando uma olhadela ao ministro, claramente pouco agradado perante o pedido informal de Macro para um
intervalo na conversa. - Lembre-se do que o Simeão disse. A Nabateia não se pode dar ao luxo de ofender a Pártia. E por falar nisso, duvido que o próprio Imperador
gostasse de oferecer à Pártia uma razão de queixa contra Roma. Sugiro que esqueçamos esse tipo e nos concentremos em Bano.
Macro ponderou a sugestão. Perante as circunstâncias fazia sentido, apesar da sua relutância em abdicar do direito moral à vingança contra o parto que partilhava
a responsabilidade por tantas mortes entre os homens da Segunda Ilírica. Engoliu a raiva e dirigiu-se de novo ao ministro.
- Nada exigimos quanto ao parto.
Uma evidente onda de alívio percorreu os funcionários nabateus. O ministro acenou a um dos guardas e falou-lhe na língua da região. O homem fez uma vénia e dirigiu-se
a uma porta lateral. Abriu-a e chamou alguém que aguardava do outro lado. Logo a seguir, Bano entrou no salão. Olhou em redor, sem qualquer expressão no rosto, até
que avistou Simeão e os dois romanos. Nesse momento, semicerrou os olhos, revelando o ódio profundo que lhes votava. O ministro interpelou-o, indicando-lhe que se
devia colocar no lado oposto da sala, a alguma distância dos seus inimigos.
- Bano. - Começou. - Estes representantes de Roma exigem que lhes sejas entregue.
- Não! - Protestou o indigitado. - Não podem trair-me. Vim cá para vos pedir asilo. É assim que a Nabateia trata os seus hóspedes?
- Não me recordo de te ter convidado a vires cá. - Ripostou o ministro, com outro dos seus sorrisos. - Portanto, dificilmente te podes considerar como nosso
hóspede.
300
- Ainda assim, solicito a vossa protecção, a protecção contra um inimigo comum.
- Inimigo?
- Refiro-me a Roma.
- Não estamos em guerra com Roma. Os romanos não são, portanto, nossos inimigos.
- E todavia sê-lo-ão em breve, inevitavelmente. Roma não é só mais um reino, mais uma potência. É uma doença contagiosa. Nunca deixará de cobiçar as posses
dos outros. E se quer controlar a minha terra, por muito pobre que ela seja, se a quer para província do seu Império, imaginem como olhará para as riquezas dos nabateus.
O ministro não respondeu. Deitou uma rápida olhadela a Macro e Cato, antes de voltar a dirigir a sua atenção para Bano.
- Que evidências tens dos desígnios romanos quanto à Nabateia?
- Evidências? - Bano sorria - Essa é fácil, basta olhar para a história. Não existe uma terra que eles tenham conquistado que não tenha servido de plataforma
para preparar uma nova conquista. O seu apetite pela expansão é insaciável. E só quando todos os povos que ainda não estão sob o jugo de Roma se aperceberem do risco
que correm e se unirem contra a ameaça comum poderão manter-se fora do alcance da tirania. Se me entregarem, estarão a trair não apenas todos os que se atrevem a
desafiar Roma, mas também todos os que, ao longo do tempo, se verão forçados a desafiá-la.
- Referes-te, evidentemente, ao reino da Nabateia.
- Sem sombra de dúvida.
Os acompanhantes do ministro trocaram olhares inquietos. Mas o seu superior limitou-se a olhar fixamente para o judeu, enquanto pesava o diálogo que mantivera. Por
fim voltou-se para Macro e Cato.
- E por vocês, quem fala?
Macro virou-se para Cato e falou baixinho.
- Não consigo fazer esta conversa em grego. Vais ter que ser tu a falar. Mas tem cuidado. Faz jogo limpo, não tentes nenhum dos teus truques de oratória.
Tudo o que queremos é o Bano, a caixa, e o rapaz. - Virou-se para o ministro. - O meu companheiro, o centurião Cato, falará por nós.
Cato sussurrou.
- Macro, tem a certeza?
- Absoluta. Vá, fala.
O ministro tinha o olhar preso em Cato.
- Há alguma verdade nesta acusação? Faz Roma tenção de anexar o nosso reino?
Cato sentia o coração aos pulos no peito. Por momentos sentiu-se demasiado aterrado para responder. Como poderia? Não passava de um
301
oficial subalterno, mesmo que estivesse a desempenhar uma missão atribuí da por Narciso, que era o braço direito do Imperador. Mas não podia negar a acusação de
Bano, porque pura e simplesmente não tinha qualquer noção dos desígnios da política imperial.
Começou de forma hesitante.
- Senhor: não passo de um simples soldado. Não faço ideia dos planos dos governantes de Roma para esta região. Tudo o que sei é que a Judeia é uma província
romana, onde vigoram as leis romanas, e que este homem, Bano, é um bandido, um fora-da-lei que tentou fomentar uma revolta contra nós. Portanto é um criminoso de
direito comum, e tudo o que o prefeito e eu queremos é levá-lo à justiça.
- Justiça! - Bano deu uma risada amarga. - Que justiça receberei eu das mãos de Roma? Pregar-me-ão numa cruz na primeira ocasião, tal como fizeram ao Jehoshua
e a todos os que tentaram resistir a Roma.
Cato não reagiu àquela acusação, já que era verdadeira. Ao invés, tentou outra abordagem.
- Como disse, não tenho conhecimento dos planos que o Imperador traçou para o seu Império, mas uma coisa sei. Se algum reino oferecer abrigo ou alguma forma
de auxílio a um inimigo de Roma, como Bano o é, estou seguro de que o Imperador não albergará bons sentimentos para com esse reino. Em especial quando alguém como
Bano representa uma permanente ameaça à estabilidade da província romana da Judeia, enquanto lhe for permitido continuar a viver... junto à fronteira dessa mesma
província.
O ministro entendeu o sentido das últimas palavras de Cato e assentiu, juntando as mãos enquanto considerava a situação. Bano olhou-o, tentando ferozmente esconder
o desespero que sentia.
- Antes que decidas entregar-me a esta escumalha romana, tenho que te dizer que não sou, como eles querem convencer-te, um simples e comum bandido. Não sou
um fora-da-lei vulgar. Fiz um tratado com a Pártia. É por isso que um dos seus príncipes combate sob o meu comando.
- Uma porra! - Disparou Macro, a voz a ecoar no salão. Cato estremeceu ao ver o amigo espetar o dedo na direcção de Bano e prosseguir na sua tirada furibunda.
- Como é que fazes tratados com a Pártia? Não passas de um criminoso.
- Isso não sou por certo. - Retorquiu Bano, cuja voz assumiu repentinamente um tom muito mais calmo, quase sereno. - Sou sim o rei designado e abençoado do
meu povo. Sou o mashiah.
- Blasfémia! - Cortou Simeão. - Como te atreves?
Avançou para Bano, dando vários passos antes que o ministro fizesse um gesto para os guardas, que empunharam as espadas e se interpuseram rapidamente entre os dois
homens. Simeão viu-se forçado a refrear os seus
302
ímpetos, arfando e olhando com evidente ódio para Bano. Obrigou-se a acalmar-se, e levantou os braços, indicando que a sua ira estava controlada.
- Senhor, perdoa-me. Mas este homem, esta criatura mais vil que uma serpente, ultraja a religião do meu povo ao proferir tamanha enormidade.
- A sério? - Bano sorriu. - Por acaso não proclamou em tempos o nosso amigo Jehoshua ser o mashiah? Ou terão sido outros que o proclamaram por ele?
Simeão corou fortemente, e Cato notou que o homem cerrava os punhos com tanta força que eles ficaram brancos, duros e frios como rocha.
- Agora é a minha vez de reclamar o título. - Prosseguiu Bano. - E como líder do meu povo tenho toda a autoridade para estabelecer tratados com a Pártia.
Eles, por seu lado, reconhecem-me como um líder aliado. E, sendo assim, não me parece que a Pártia aprecie particularmente que eu seja entregue a estes dois oficiais
menores de um ridículo posto fronteiriço do Império.
- Oficial menor? - Irritou-se Macro. - Eu? Ora, não querem ver o filho da puta! Já te digo!
- Basta! - Gritou o ministro. - Silêncio!
A sua voz ecoou por todo o salão, e só o pássaro prosseguiu nos seus trinados infindáveis. O ministro lançou um olhar de esguelha à gaiola e murmurou qualquer coisa
a um dos conselheiros, que se esgueirou discretamente até ao canto do compartimento, pegou na gaiola e saiu com ela. Macro deixou escapar um pequeno suspiro de alívio.
O ministro empertigou-se na cadeira.
- Não posso tomar hoje uma decisão sobre este assunto. Está para além das minhas responsabilidades. Portanto, só quando o rei chegar e ouvir todos os detalhes
do caso poderá Sua Majestade tomar uma decisão. Todos vocês estão presos às vossas promessas solenes, e por isso autorizo a libertação dos dois oficiais romanos,
que ficarão sob a responsabilidade de Simeão. Os prisioneiros partos também serão libertados, depois de se comprometerem por sua vez. A corte voltará a reunir-se
para resolver este assunto quando Sua Majestade regressar. E assim dou por concluída esta audiência. Senhores, podem deixar-nos.
XXXII
Simeão conduziu-os até à sua casa, sita na encosta oposta ao palácio. Pelos padrões de muitos dos nabateus que viviam das caravanas era uma morada modesta. A porta,
sem ornamentações, dava para um átrio que por sua vez abria para um pequeno pátio. Várias salas se dispunham em redor desse espaço, e uma estreita escada conduzia
ao andar superior e aos quartos. Simeão possuía apenas um escravo, um velhote chamado Bazim, que tratava da casa e cozinhava quando o seu senhor regressava a Petra,
vindo de uma das suas viagens.
- Não é nenhum palácio. - Avisou Simeão, enquanto os convidava a entrar. - Mas é tudo o que preciso, e o que alguma vez tive de mais parecido com um lar.
Venham, o Bazim preparou-vos acomodações. Ainda devem estar derreados da viagem, e uma noite passada numa cela não deve ter ajudado no descanso.
- Obrigado. - Agradeceu Cato. - Isso vem mesmo a calhar.
- Então vai descansar. Falamos mais tarde, quando estivermos a comer. Entretanto, se precisarem de alguma coisa, peçam ao Bazim. Tenho que sair.
- Oh?
- Sim, há uns negócios de que tenho que tratar. Tenho uma reunião com o Murad e alguns representantes das caravanas. Vai-me tomar a maior parte do dia.
- Bom, então vemo-nos mais logo. - Respondeu Macro.
Simeão sorriu e preparou-se para sair de casa. Depois da porta se cerrar
sobre ele, Macro lançou-se num bocejo imenso, enquanto se espreguiçava.
- Estou arrasado. Bazim!
O escravo surgiu imediatamente do seu pequeno quarto ao fundo do átrio.
- Senhor?
- Falas grego?
304
- Claro, senhor.
- Óptimo. Conduz-me lá a esse quarto que preparaste.
- Com certeza, senhor. Por aqui. - Levou-os até ao fundo do pátio, através de uma passagem estreita que desembocava num jardim murado. Havia trepadeiras que
se amparavam numa estrutura superior e forneciam sombra a metade do jardim. Num dos cantos abria-se um quarto com duas camas. Ouvia-se o som de água a correr, e
Macro olhou em volta, atónito.
- Há ali uma fonte. - Atravessou o jardim e acercou-se da pequena bacia para a qual corria um fino fio de água, vindo da boca de um leão de estanho na parede.
Levou a mão à água, deliciado com a frescura que lhe percorreu a pele. Desde que ele e Cato tinham chegado a Cesareia que a água se tinha tornado um bem precioso,
de tal forma que ver ali aquela fonte em casa de Simeão lhe parecia nada menos do que um milagre.
Bazim aproximou-se.
- O meu amo achou que gostariam de repousar num sítio onde conseguissem escutar a água a correr.
Macro sorriu.
- E tinha toda a razão, abençoado seja por isso.
Inclinou-se e deixou que a água lhe corresse pelo crânio. Quando se endireitou sacudiu o cabelo, o que fez com que se espalhassem pelas lajes do pavimento milhentas
gotículas; algumas rebrilharam quando aterraram em zonas iluminadas pelo sol. Por momentos, sentiu-se transportado de volta à sua juventude, aos longos dias de Verão
passados a brincar e a nadar com os amigos num pequeno riacho, afluente do Tibre. Mas o momento depressa ficou para trás, e regressou a sensação de profundo cansaço.
A custo, dirigiu-se ao quarto que Bazim preparara.
- Ei, Cato, onde é que te meteste?
Mas o amigo já dormia a sono solto, ainda vestido, a cabeça apoiada numa almofada e a boca aberta, ajudando à respiração pesada. Macro sorriu. Cato tinha-se antecipado,
num esforço para adormecer antes que o ressonar de Macro o impedisse de mergulhar no sono. Enquanto tirava as sandálias reparou que o jovem nem isso tinha feito.
Hesitou um momento, mas acabou por lhas tirar com cuidado, colocando-as no chão? Deitou-se por fim na sua cama, sorrindo perante o conforto do leito. O agradável
som de fundo da água a correr e as manchas de sol que se escapavam por entre a folhagem proporcionavam um ambiente idílico. Fechou os olhos. Podia muito bem conceder-se
uns dias daquele tratamento, e deu por si a desejar que o rei da Nabateia não demonstrasse grande pressa para regressar à sua capital.
Quando os seus pensamentos regressaram à razão da sua presença em Petra, a disposição começou a tornar-se mais sombria. Algures no meio das ruas e casas da cidade
escondiam-se Bano e os seus amigos partos. Fosse
305
qual fosse a decisão do rei quando regressasse, haveria um ajuste de contas, decidiu Macro. Não podia permitir que Bano sobrevivesse e continuasse a fomentar a rebelião
naquela perturbada e sofredora província da Judeia.
* * *
Os dias passavam devagar, e Cato e Macro depressa começaram a ficar aborrecidos com as restrições impostas aos seus movimentos pela cidade. Sobretudo Cato, fascinado
pela peculiar beleza dos túmulos e templos que tinham sido esculpidos na rocha com tamanha perícia. Durante o dia exploravam o mercado, maravilhados com o leque
de artigos de luxo disponíveis, capazes de rivalizar com os melhores estabelecimentos de Roma. Havia uma biblioteca, onde Cato descobriu uma colecção de mapas, muitos
deles descrevendo terras de que nunca algum romano ouvira falar, muito menos vira. Pelo seu lado, Macro contentava-se com experimentar comida e vinho, e recuperar
o sono atrasado no fresco jardim da casa de Simeão. Pouco depois da chegada, Simeão tinha-os informado de que tinha localizado Bano e os partos. Um rico mercador
tinha-lhes oferecido estadia na sua casa, no outro lado da cidade. Tal como muitos outros nabateus, não tinha qualquer simpatia por Roma, e via com preocupação a
expansão do Império.
Uma tarde, enquanto Cato passeava junto ao grande templo em frente ao fórum de Petra, Bano surgiu-lhe à frente, saído do meio das colunas. Os dois homens estacaram
automaticamente e apresentaram desculpas, até que os seus olhares se cruzaram e as palavras lhes morreram nos lábios. Seguiu-se um silêncio tenso, até que Bano fez
menção de se retirar.
- Espera! - Pediu Cato. - Quero falar contigo. Temos que conversar.
Bano deu mais alguns passos antes de se deter e virar.
- Não estás a esquecer os termos da promessa que fizemos perante o ministro?
- Não. Isso foi para nos forçar a não lutar. Só quero conversar.
- Conversar? - Bano sorriu. - E sobre o quê, exactamente? O tempo? O preço do trigo? A retirada romana da Judeia?
Cato ignorou o sarcasmo, e apontou para uma pequena taberna, do outro lado do fórum.
- Ali, só para evitar que sejamos vistos por algum homem do ministro.
Encaminharam-se em silêncio para o estabelecimento, e sentaram-se a uma mesa, em bancos altos.
- Permite-me. - Adiantou-se Bano, pedindo uma jarra de vinho, antes de se virar de novo para o romano. - Bom, fala.
306
- A tua revolta está acabada. O teu exército foi esmagado, e os sobreviventes regressaram às suas aldeias.
- Falhei, sim, desta vez. - Admitiu Bano. - Mas haverá outra revolta. Enquanto a presença dos romanos conspurcar a nossa terra, haverá sempre revoltas.
O ânimo de Cato morreu.
- Mas nunca conseguirás derrotar Roma. Sabes com certeza que os teus homens nunca conseguirão sobrepor-se às legiões.
- E por isso fiz um tratado com a Pártia. - Bano sorriu. - Imagino que até mesmo um romano deva saber o que aconteceu ao exército de Crasso em Carras. Ou
não falam disso na vossa história?
- Falam, sim.
- Deves portanto saber que, nos campos de batalha do oriente, a Pártia chega e sobra para Roma.
- Pode ser que assim seja. Mas se a Pártia triunfar, julgas que permitirá a existência de uma Judeia independente, seja lá o que for que te tenham prometido?
Bano encolheu os ombros.
- Se tentarem impor-nos o seu domínio, revoltar-nos-emos contra eles, como o fizemos contra os romanos.
- E de novo serão vencidos. - Cato abanou a cabeça. - Não estás a ver? O destino da Judeia é ser um vassalo de um ou de outro império. Como muitos outros
estados. A maior parte deles encontrou o seu lugar no quadro das coisas, e são agora regiões prósperas e pacíficas. Porque não pode o mesmo suceder com a Judeia?
- Passaste demasiado tempo na companhia daquele traidor do Simeão. - Desdenhou Bano. - Lá porque isso é assim noutras províncias, não justifica que Roma imponha
o seu jugo sobre nós. Somos diferentes, e exigimos a nossa soberania. Até que chegue esse momento, nunca haverá paz.
Cato encarou-o em silêncio durante alguns momentos. Sentia o desespero a roê-lo por dentro. Bano era um fanático. Com homens daquele tipo, não valia a pena discutir.
Resolveu mudar de assunto.
- Muito bem. Compreendo a tua posição. Mas arranjar outro exército vai levar muito tempo. Portanto, qual o interesse de manteres contigo o miúdo, o Yusef?
Já teve a sua utilidade. Já não precisas de um refém.
- O Yusef fica comigo.
- Porquê?
- É filho do fundador do nosso movimento. Tem de perceber essa herança que carrega. A seu tempo, será o meu ajudante. Com ele ao meu lado, e com as relíquias
do pai dele nas minhas mãos, conseguiremos recuperar as mentes de todos os que se esqueceram do verdadeiro caminho.
- Queres dizer, a Miriam e o seu povo?
- Esses, e outras comunidades como eles, em todas as cidades do Oriente. Por agora estão confusos. A Miriam e outros traidores como o Simeão corromperam a
mensagem do Jehoshua, e convenceram os seus seguidores de que a resistência armada é inútil, e de que temos que usar meios pacíficos para convencer os nossos inimigos.
De que temos que ter fé a longo prazo. - Encarou Cato. - Diz-me, romano, o que pode a fé que não possa a força? A liberdade nasce na ponta da espada. É esse o meu
credo. Era esse o credo do Jehoshua, antes de fraquejar perante um momento de crise. E foi essa filosofia que a Miriam e o Simeão traíram, bem como todos os que
os seguiram. Mas será essa a fé que instilarei em Yusef, e um dia eu e ele entraremos lado a lado em Jerusalém, à frente do exército com que teremos libertado a
cidade. Só nesse momento teremos cumprido o sonho do Jehoshua.
- E serás tu a desempenhar o papel do mashiah, claro.
- Claro. Herdei esse papel do Jehoshua.
Qualquer coisa que tinha sido dita antes tinha ficado suspensa na mente de Cato; franzindo o sobrolho, recordou a frase.
- O que é que queres dizer com esse "antes de fraquejar"?
- Ah. - Bano inclinou-se para a frente e sorriu. - Porque é que não perguntas ao teu amigo Simeão? Pergunta-lhe como é que a coisa terminou. E agora, vais-me
desculpar, mas parece-me que não há realmente nenhum interesse na continuação desta conversa. Romano, se nos voltarmos a encontrar, estás avisado: matar-te-ei.
Levantou-se e deixou a taberna, caminhando pelo fórum a passos largos. Cato observou-o até o ver desaparecer numa das ruas laterais. Uma sensação de desespero e
cansaço fazia-lhe pesar o coração. Tinha imaginado que conseguiria chegar a uma espécie de acordo com o tipo, e que conseguiria pelo menos a libertação de Yusef.
Mas agora tudo dependia da vontade do rei da Nabateia.
Nessa noite, enquanto jantavam no jardim de Simeão, Cato sentia-se nervoso. Tinha passado todo o dia a pensar nos comentários de Bano acerca de Simeão, e estava
decidido a descobrir o que se escondia por trás do intenso ódio que havia entre os dois homens. Enquanto Bazim levantava os pratos da mesa e lhes trazia uma jarra
de vinho quente e perfumado, os três homens deixavam-se estar tranquilamente sentados a apreciar o brilho das estrelas num céu límpido. Sobre a silhueta negra da
falésia que se erguia por trás do palácio real via-se uma lua cheia.
Ouviu-se então um bater quase surdo na porta, e escutaram os passos lentos de Bazim enquanto se dirigia à entrada. Pouco depois o escravo
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regressou e entregou ao seu amo uma pequena tábua de cera, fechada. Simeão abriu e leu a mensagem.
- É do ministro. O rei regressou a Petra esta tarde. Está nesta altura reunido com os seus conselheiros. A decisão que tomar ser-nos-á comunicada pela manhã.
- Óptimo! - Macro deu um murro na almofada do assento. - Depressa teremos aquele cabrão nas nossas mãos, e poderemos encerrar o assunto de uma vez por todas.
Simeão olhou-o.
- Pareces muito confiante numa decisão do rei a teu favor.
- E porque não? Ele tem mais a temer de Roma do que da Pártia.
- Pode ser que sim, prefeito, mas espero que não te lembres de dizer uma coisa dessas à frente de quem quer que seja aqui em Petra. A última coisa de que
precisamos agora é que alguém se lembre de lançar um movimento anti-romano.
Macro percebeu e sorveu um trago, desalentado.
- Só estava a dizer aquilo que penso.
Simeão riu.
- Eé por isso que és um extraordinário soldado, e não um diplomata.
- E ainda bem, foda-se. - Macro ergueu o copo. - Antes um guerreiro honesto do que alguém que todos os dias combate a honestidade.
Simeão bateu as mãos.
- E assim nasce um aforismo!
- Falei com o Bano hoje. - Lançou Cato sem aviso.
Os outros deixaram de sorrir e olharam para ele. Foi Macro o primeiro a recuperar do choque.
- Para que raio fizeste tu isso? Queres que voltem a lançar-nos para aquela cela infecta?
- Não.
- Bom, ainda bem. - Macro abanou a cabeça, exasperado. - O que é que te passou pela ideia?
- Tentei persuadi-lo a entregar-nos o Yusef.
- E ele recusou, depreendo.
- Sim, mas disse mais. - Os olhos de Cato viraram-se para Simeão.
- Disse-me que te devia perguntar o que aconteceu ao Jehoshua, mesmo no fim.
Simeão inspirou profundamente e contemplou o líquido escuro que lhe enchia o copo. O silêncio arrastou-se, e Macro atraiu a atenção de Cato e arqueou as sobrancelhas.
O jovem fez-lhe sinal para ter paciência. Finalmente, Simeão começou a falar.
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- Vou contar-vos o que sucedeu, e perceberão então porque é que entre mim e o Bano só ficou um profundo ódio mútuo. Já sabem que éramos ambos seguidores do
Jehoshua, mas nesses dias éramos também amigos. Grandes amigos, praticamente irmãos. Havia um terceiro amigo, mas daqui a pouco já vos falo dele. Juntámo-nos ao
movimento porque o Jehoshua nos prometia uma Judeia livre. À medida que mais e mais gente se juntava a ele, alguns começaram a dizer que era ele o mashiah. A princípio
ele ignorou-os, mas ao fim de algum tempo a ideia pareceu começar a atraí-lo. Confesso que o encorajei a tomar essa atitude. Dado tudo o que aconteceu, sinto-me
envergonhado por isso. Seja como for, a profecia do mashiah é bastante explícita. Ele libertará Jerusalém, assumirá o trono de David e conduzirá a Judeia ao triunfo
sobre todos os outros povos do mundo.
- É muita fruta. - Comentou Macro.
- De facto. - Simeão sorriu ligeiramente, e prosseguiu. - Portanto, com vários milhares de seguidores, lá fomos para Jerusalém. A princípio tudo correu bem.
As ruas estavam apinhadas de gente que nos saudava em histeria e que lançava as boas-vindas ao Jehoshua. Conseguimos ocupar os espaços do Grande Templo. O Jehoshua
ordenou que os agiotas e os cobradores de impostos fossem expulsos do Templo, e que os seus registos fossem destruídos. Imaginem a festa com que essa decisão foi
recebida entre os mais pobres dos seus seguidores. Depois tomámos conta do armeiro dos guardas do Templo. A princípio estávamos nas nuvens, tudo era tão fácil. Só
nos restava confrontar o Sinédrio, a assembleia dos Sanhedrin, convencê-los ajuntarem-se a nós e atacar a guarnição romana.
- E o que faziam esses? - Interrompeu Macro. - A guarnição romana? Com certeza que intervieram assim que vocês tomaram conta do Templo?
- Fecharam-se no palácio de Herodes. Na altura, as tensões entre o meu povo e os representantes romanos estavam à beira da ruptura. Tinha havido uns motins
nos anos anteriores, e o procurador não quis arriscar-se a inflamar a situação. Portanto, deixaram-se estar quietos.
Macro deixou-se recostar, com ar de reprovação.
- Se fosse eu, tinha-vos posto na ordem logo ali.
- Não duvido. Mas tu não és Pilatos. A verdade é que o Sinédrio se recusou a apoiar-nos. De facto, os Sanhedrin provêm das famílias mais ricas e poderosas,
e o Jehoshua proclamava que os judeus tinham de ser libertados da pobreza e da exploração, tanto como da tirania dos romanos. Tínhamos acreditado que os juizes poriam
a nação antes das algibeiras, e a recusa deixou-nos de cara à banda. Foi aí que ele mudou de orientação. De repente, disse que nunca triunfaríamos pela força das
armas. Tínhamos que
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vencer pela força dos argumentos. Tínhamos que ganhar a batalha pelas mentes e corações dos nossos inimigos.
- Mentes e corações. - Macro riu. - Onde é que eu já ouvi essa? Merda, esta gente não aprende... Desculpa, continua, por favor.
- Obrigado. - Simeão franziu o sobrolho antes de prosseguir. - Quando o ouvimos defender essa nova doutrina, ficámos horrorizados. Eu e o Bano encontrámo-nos
em segredo, e decidimos que ele tinha que desaparecer de cena. O movimento precisava de um líder mais resoluto, ou então não haveria nenhuma revolta. Não nasceria
um novo reino da Judeia. Decidimos portanto trair o Jehoshua. Entregá-lo às autoridades. Seguramente o executariam, e passaríamos a ter um mártir, além de um novo
líder.
- Quem? - Interrogou Cato. - Tu ou o Bano?
- Eu. Bano seria o meu lugar-tenente.
- Grandes amigos que vocês eram. - Comentou Macro. - Com amigos como tu e o Bano, esse Jehoshua não precisava de inimigos.
- Prefeito, não estás a compreender. - Retorquiu Simeão, com intensidade. - Nós amávamos o Jehoshua. Todos nós o adorávamos. Mas adorávamos a Judeia ainda
mais. Tínhamos de salvar o nosso povo. O que é a vida de um homem, por muito idolatrado que seja, quando é pesada contra o destino de toda uma nação? - Fez uma pausa
e sorveu do copo.
- Portanto, preparámos uma mensagem, informando as autoridades do lugar onde o podiam encontrar. Só havia um tipo em quem podíamos confiar para entregar a
mensagem, o tal terceiro amigo do nosso círculo. Chamava-se Judas. Mesmo assim, não nos atrevemos a dizer-lhe o conteúdo da mensagem. E foi assim que Judas levou
a mensagem aos Sanhedrin. Jehoshua foi preso, julgado, torturado e executado. Os seus seguidores ficaram atordoados. Tão atordoados que não conseguiram reagir. Antes
do fim do dia as tropas romanas estavam na rua, a prender os principais elementos do movimento e a desarmar e fazer dispersar todos os que tentaram protegê-los.
Eu e o Bano conseguimos escapar pelos esgotos. Quando deixámos Jerusalém separámo-nos. Ele foi para o norte, para continuar a luta. Eu segui para sul, vim para Petra.
Durante uns tampos vivi destroçado, envergonhado de tudo o que fizera, incapaz de me preocupar com o que quer que fosse. Depois, devagar, construí uma nova vida
e comecei a viajar, a reatar contactos com os membros sobreviventes do movimento, como a Miriam. A princípio nem dei conta de como me tinha modificado. Naqueles
dias era jovem e inexperiente, nunca tinha visto uma batalha. Pensar que um dia supus que podíamos enfrentar as legiões! - Abanou a cabeça. - O encanto das grandes
causas, a loucura da juventude, só podem levar à morte. Acabei por perceber que, no fim dos seus dias, o Jehoshua tinha adoptado a atitude
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correcta; não podíamos derrotar Roma com as nossas espadas, apenas com as nossas palavras e as nossas ideias. O Bano nunca o aceitou.
- E Judas? - Quis saber Cato. - O que lhe sucedeu?
Simeão baixou a cabeça, envergonhado.
- Assim que percebeu o que estava na mensagem que entregou, enforcou-se. - A voz de Simeão tremeu. - Nunca me pude perdoar por isso... E agora, já conhecem
toda a minha história. - Abruptamente, levantou-se, inclinou a cabeça na direcção dos romanos, e dirigiu-se rapidamente para o interior da casa.
Macro observou-o, e depois virou-se para Cato, com uma expressão de lamento.
- Esta região não passa de uma infindável e miserável tragédia. Quanto mais cedo acabarmos este trabalho e nos pusermos a andar, melhor. Estou farto. Não
os suporto. A nenhum deles.
Cato não respondeu. Pensava em Yusef. Estava agora ainda mais convencido de que o rapaz tinha de ser tirado a Bano e devolvido ao convívio de Miriam. Só então poderia
ser reparado aquele pequeno fragmento do ciclo de destruição e desespero.
O mensageiro do palácio apareceu cedo pela manhã. Macro e Cato tomavam um pequeno-almoço de figos e leite de cabra quando Simeão surgiu, emergindo do interior da
casa com um sorriso nos lábios.
- O rei acedeu a entregar-nos o Bano. O príncipe parto será enviado de volta à sua terra. Neste instante já há soldados a caminho da casa onde o Bano e os
seus amigos têm estado, com ordens para os deter a todos.
Cato sentiu um alívio no peito.
- Então, está tudo terminado.
- Sim. - Simeão sorriu. - Está terminado, e teremos paz na Judeia, por agora. O rei solicita que nos apresentemos no palácio para concluirmos todas as formalidades,
assim que recebermos a mensagem.
Macro saltou, esfregando os restos da refeição nas dobras da túnica. Estava radiante.
- Bom? Do que é que estamos à espera?
De novo foram levados à presença do ministro, mas desta vez foram-lhes indicados assentos. Alguns funcionários aguardaram com eles que o rei e o seu ministro surgissem.
Macro deixou-se estar sentado e contente por algum tempo, mas começou a ficar irritado perante a demora, e começou a bater o pé, fazendo o som ecoar pelas paredes,
até que Simeão se aproximou dele e lhe agarrou o joelho.
- Porra, onde é que se meteu esse rei, afinal? - Protestou Macro. - Estamos à espera há uma eternidade.
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Abriu-se uma porta lateral e surgiu um escrivão que segredou algo a um dos ajudantes do ministro. Este olhou na direcção dos oficiais romanos, antes de acenar ao
funcionário e atravessar a sala na direcção de Cato e Macro.
- Há algo de errado. - Adivinhou Cato. - Passou-se qualquer coisa.
- O que é que queres dizer? - Resmungou Macro, irritado. - O que é que pode ter acontecido?
- Chiu.
O ajudante inclinou a cabeça na direcção deles e dirigiu-se a Simeão usando a língua local. Cato reparou como Simeão respondia sem esconder o choque.
- O que foi?
O outro ergueu a mão para o calar e permitir que o funcionário terminasse o discurso. Só então se virou para os dois romanos.
- O Bano escapou. Quando os soldados chegaram à casa para os prender, os partos ainda lá estavam, mas o Bano não. Faltavam dois cavalos no estábulo. Os soldados
enviaram imediatamente uma mensagem para os guardas dos portões, para impedirem a saída de toda a gente. Mas já era tarde demais. Os guardas disseram que um homem
tinha saído de Petra pela alvorada. Dizia ser um mercador, e levava consigo um rapaz.
313
XXXIII

Macro e Cato aguardaram enquanto Simeão se adiantava até à entrada do desfiladeiro e estudava o terreno, procurando pistas. No ponto em que o solo rochoso dava lugar
às areias de um vermelho berrante, o guia encontrou o que procurava e fez sinal aos outros para se aproximarem. Os dois centuriões fizeram os cavalos avançar pelo
solo pedregoso até chegarem ao pé do companheiro. Simeão tinha desmontado, e apontava para as marcas de cascos.
- Cavalos, sem qualquer dúvida. - Ergueu-se e seguiu os rastos pela areia até eles se perderem na distância, na direcção de uma duna de grandes dimensões
e de um dos pináculos rochosos que se avistavam mais longe.
- Só pode ser o Bano. - Comentou Cato. - Quem mais se embrenharia assim pelo deserto?
Macro resmungou. Tinha-se finalmente resignado a usar um pano a cabeça, como os locais, e agora sentia-se muito feliz por aquela espécie de trapo manter o sol afastado
do seu cérebro. Ainda assim, já tinham passado três dias de jornada, tentando alcançar Bano a todo o custo. A princípio não tinham tido qualquer indicação sobre
a direcção que a sua presa tomara, mas depois tinham por sorte dado com um jovem pastor, nada mais que um miúdo, nas colinas que ficavam a meio-dia de caminho para
sul de Petra, e ele dissera-lhes que tinha visto passar um homem com um rapaz, a caminho do sul. Simeão e os dois romanos tinham prosseguido nessa direcção, seguindo
os avistamentos de Bano e, em dada ocasião, encontrando mesmo os restos ainda mornos de uma pequena fogueira. Já estavam muito longe das tradicionais rotas de caravanas,
e embrenhavam-se cada vez mais no profundo deserto da Arábia. Uma casual observação de um penacho de poeira à distância tinha-os trazido até àquela região de areias
vermelhas, as quais atapetavam um labirinto gigante de nuas formações rochosas, conhecido como Rhum entre as tribos próximas. Nenhum cavaleiro teria razão para ali
se encontrar, a menos que estivesse em fuga.
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- O Bano, sim. - Concordou Simeão, e voltou a montar. Agitou as rédeas e prosseguiram, entrando no desfiladeiro que se alongava por muitos quilómetros à sua
frente. Os rastos eram evidentes, e Cato perguntou-se porque teria Bano escolhido atravessar um terreno em que deixaria marcas óbvias da sua passagem. Mas a verdade
é que ele devia estar desesperado, sobretudo se soubesse que estava a ser seguido. Os nabateus tinham rapidamente enviado mensagens para o sul, com uma descrição
do homem, e por isso haveria poucas hipóteses de conseguir abrigo por essas bandas. Tudo o que restava a Bano era a Arábia, a esperança de a conseguir atravessar
e seguir depois para norte, ao encontro dos seus amigos partos. Já pouco se devia preocupar com dissimular os seus traços, a sua única hipótese era pôr a maior distância
possível entre si e os perseguidores.
Continuaram, e o único som a perturbar a paisagem desolada que os rodeava era o dos cascos a mergulhar na areia. Na extremidade do desfiladeiro as marcas viravam
para a esquerda, atravessando outra extensão de areia coberta por algumas dunas, na direcção de nova formação rochosa a uns quatro quilómetros de distância. A tarde
já ia adiantada, e longas sombras se estendiam sobre o deserto. A meio da travessia da zona arenosa, Simeão fez sinal para pararem na base de uma duna, e desmontou.
- Vou dar uma olhadela lá de cima. Ver se consigo descortinar algum sinal dele.
- Vou contigo. - Decidiu Cato, e saltou da sela.
- Não é preciso.
- Estou preocupado com o Yusef. Tenho que ver por mim mesmo.
Simeão encolheu os ombros e começou a subir a duna.
Cato virou-se para Macro.
- Não demoramos.
Macro pegou no cantil e sorveu um pequeno trago.
- Se vires algum sinal de água, avisa-me.
Cato sorriu e seguiu o rasto de Simeão pela duna acima. Assim que o declive se tornou evidente a subida tornou-se penosa, porque a areia deslizava para baixo sob
os seus pés, de tal forma que lhe parecia que não conseguia de todo avançar. Mas por fim, exausto, conseguiu atingir o cimo, lançando-se sobre a areia junto a Simeão
e perscrutando a paisagem que se lhe abria à vista. Do outro lado da duna havia mais quase dois quilómetros de areia até se chegar à rocha. Dali, Cato percebeu que
havia uma fenda que se estendia de cima a baixo na parede rochosa. Na base da falésia via-se um pequeno tufo de arbustos e um punhado de árvores mirradas.
- Ali há água.
- E outras coisas. - Simeão esforçava a vista. - Olha outra vez.
Desta vez Cato conseguiu distinguir as diminutas silhuetas de dois
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cavalos que mal se viam contra os arbustos, e uma figura humana, um homem ou um rapaz, sentado à sombra de uma das árvores.
- Só vejo um deles.
- Acalma-te, Cato. Não vimos quaisquer sinais de um corpo desde que o seguimos. Nem cadáver, nem sangue. Estou certo de que o Yusef também está por ali.
Cato queria acreditar nisso.
- Muito bem, então o que fazemos?
- Temos que esperar. Se tentarmos aproximarmo-nos agora, ele vai notar a poeira que levantarmos assim que saírmos da protecção desta duna. Portanto, esperamos
que escureça e avançamos nessa altura. Podemos parar a alguma distância das rochas e seguir a pé. Se conseguirmos surpreendê-lo, talvez consigamos salvar o Yusef
antes que ele faça alguma coisa.
- Muito bem. - Cato assentiu. - Vamos seguir esse plano.
O sol já há muito tinha desaparecido por trás dos picos do Rhum, nergulhando toda a região na sombra, quando os três cavaleiros detiveram as montadas a uns quinhentos
metros da fenda nas rochas. Uma pequena duna, pouco mais do que uma ondulação do terreno, escondia-os da vista de Bano; prenderam os cavalos juntos para evitar que
os animais se mostrassem antes de a armadilha estar fechada. Envergando apenas as túnicas e levando nada mais do que as espadas, os três homens avançaram.
Bano tinha conseguido acender uma fogueira, e o brilho das chamas espalhava uma luz alaranjada sobre a base das falésias próximas. Enquanto se aproximavam cautelosamente,
Cato viu Bano tirar um pedaço de pão do alforge que tinha no chão, próximo de si. Debruçou-se sobre um monte de farrapos no solo e deixou o pão ao pé dele. Quando
se registou movimento, Cato percebeu que era Yusef quem ali estava. Amarrado, mas vivo. Ao acercarem-se mais da fogueira perceberam que não havia qualquer cobertura
nas proximidades. Se Bano levantasse a vista para contemplar o deserto não poderia deixar de notar que o estavam a cercar.
Prosseguiram com extrema cautela até cinquenta passos da fogueira, onde já se escutava o crepitar das chamas e o chiar da madeira. Bano estava de lado para eles.
À frente do líder dos revoltosos, Yusef tinha conseguido pôr-se numa posição menos incómoda e devorava o pão, segurando-o com as mãos atadas.
Macro deu um toque no braço de Cato, dando sinal de que ia fazer um círculo para se pôr por trás de Bano; o jovem acenou em concordância. Tanto ele como Simeão desembainharam
silenciosamente as espadas e mantiveram-se naquela posição, colados à areia, aguardando enquanto Macro deslizava devagar para a direita, fazendo um arco até ficar
mesmo
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por trás de Bano e da fogueira. Nessa altura, o veterano voltou a avançar com movimentos lentos e graduais, até não estar a mais de vinte passos do alvo. Com o coração
aos pulos e mal se atrevendo a respirar, ergueu-se da areia, pondo-se lentamente de pé e preparando-se para correr para as costas de Bano com a espada em riste.
Por cima do ombro do revoltoso, Macro viu Yusef engasgar-se e arregalar os olhos.
- O que foi? - Disparou Bano, no momento em que uma espécie de sexto sentido o fez virar-se e avistar Macro quando este se lançou para a frente. Bano saltou
como que impelido por uma mola, rodeando a fogueira e pegando de passagem na sua adaga. Cato e Simeão acorreram de imediato, mas antes que algum deles o pudesse
impedir, Bano tinha pegado em Yusef, tinha-o erguido do chão e mantinha o braço em redor do pescoço do rapaz, apertando-o contra si. Na outra mão, bem à vista, exibia
a adaga curva, cuja lâmina rebrilhava à luz das chamas.
- Afastem-se! - Gritou Bano. - Afastem-se! Mais um passo, e juro que estripo o rapaz!
Macro estava à distância de uma lança, semi-agachado, a espada pronta. Os outros estavam ligeiramente mais afastados, espalhados, de modo que Bano tinha de estar
constantemente a torcer o pescoço para os vigiar a todos.
- Não se mexam!
Yusef ergueu as mãos atadas, e tentou afastar o braço que lhe apertava a garganta.
- Ele não consegue respirar. - Avisou Cato, calmamente. - Bano, estás a matá-lo.
Bano encarou o centurião com suspeita no olhar, mas depois aceitou o aviso e afrouxou o aperto, de forma a permitir que Yusef voltasse a encher os pulmões.
- Assim está melhor. - Considerou Cato. - Agora, temos que falar... Outra vez.
- Dissemos tudo o que havia a dizer da última vez.
- Bano, não há fúga possível. Tens de te render. Mas podes fazer algo de bom antes de desistires. Poupa o miúdo, deixa-o voltar para a Miriam.
- Nunca!
- Tens outra escolha? - Inquiriu Cato. - Não te deixaremos escapar de novo. Liberta-o.
- Não. Simeão! Sela o meu cavalo. Tu, romano - o minorca. Os vossos cavalos devem estar aqui perto. Vai buscá-los!
- Vai tu, cretino de merda. - Rosnou Macro.
Bano ergueu a lâmina até à face de Yusef e, com um gesto rápido,
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cortou-lhe a maçã do rosto. O rapaz soltou um grito de dor, e um fio de sangue escorreu-lhe pela face e pelo braço de Bano.
- Para a próxima, vazo-lhe um olho. Vai lá buscar os cavalos, romano.
Simeão tinha um ar horrorizado, e implorou a Macro.
- Por piedade, faz o que ele te pede.
- Não o vou deixar escapar. - Retorquiu Macro com firmeza. - Ele que faça as ameaças que quiser. Isto acaba aqui.
- Macro, peço-te. - A voz de Simeão fraquejava, devido à ansiedade. - Não ponhas o rapaz em perigo. Ele é tudo o que resta à Miriam.
Macro não respondeu, nem tirou os olhos de Bano, mantendo-se preparado para um ataque rápido. Por isso, foi Cato quem primeiro reparou nas figuras que emergiam das
trevas do deserto. Uma dúzia de homens montados em camelos, de vestes escuras, que se espalharam de forma a cercar as cinco figuras junto à fogueira.
- Macro. - Avisou Cato suavemente. - Embainhe a espada, devagar.
Ele e Simeão fizeram o mesmo, e viraram-se para os recém-chegados. No silêncio que se seguiu, Cato sentiu que estava a ser avaliado pelos cavaleiros silenciosos,
tal como os seus companheiros. Bano baixou a faca, tmas manteve o braço em torno do pescoço de Yusef.
Cato sussurrou.
- Simeão, quem são?
- Bedu. - Simeão ergueu a mão numa saudação e dirigiu-se aos recém-chegados. Uma voz respondeu-lhe no mesmo tom. E um dos homens aproximou a montada. Em resposta
a uma série de estalos de língua ; palmadas, o camelo dobrou primeiro as patas da frente e depois as de trás, e o cavaleiro desceu facilmente da sela. Baixou o véu
e passou os olhos negros sobre todos eles, antes de voltar a dirigir-se a Simeão. Então virou-se ; lançou algumas ordens aos seus homens, que começaram também a
desmontar. Um dos homens que tinha estado nas sombras tinha na mão as rédeas dos três cavalos que tinham ficado presos mais atrás.
- O que querem eles? - Indagou Cato.
- Água. Há uma nascente nesta fenda. Ele diz que pertence à sua tribo, e que estamos no território deles. Sem sermos convidados.
Macro aproximou-se dos amigos.
- Seja, mas o que pensa ele fazer quanto a isto?
O líder dos guerreiros do deserto ordenou a alguns dos seus homens que fossem encher os sacos de água, e eles desapareceram pelo meio das ochas. Voltou-se para
Simeão, e falou de novo.
- Quer saber o que estamos aqui a fazer.
Cato deitou uma olhadela a Macro.
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- Nada temos a esconder. Diz-lhe a verdade.
Seguiu-se mais uma troca de palavras, após o que Simeão lhes relatou os resultados.
- Disse-lhe que Bano é nosso inimigo. Perguntei-lhe se estava disposto a permitir que nós o levássemos e ao rapaz, e ele disse que não.
- Não? - Cato sentiu um arrepio na nuca. - Porque não? Que quer ele de nós?
- Exige que paguemos um tributo por ter invadido o seu território.
- Tributo? Não temos nada de valor.
Simeão sorriu sem vontade.
- Excepto as nossas vidas.
- Tencionam matar-nos?
A mão de Macro firmou-se em torno do punho da espada.
- Foda-se, eles que tentem.
- Não é isso. - Respondeu Simeão. - Ele disse que, uma vez que somos inimigos, devemos pôr fim à nossa luta aqui, à luz desta fogueira. Um de nós lutará com
o Bano. Se ganhar, podemos partir com o rapaz. Se
O Bano ganhar, pode partir ele com o rapaz, e vocês os dois serão mortos.
- Não estou a perceber. - Macro franziu o sobrolho, e olhou para Simeão. - Vais lutar com ele?
- Sim.
- Não. Deixa-me fazer isso. É para isso que vivo. Terei muito mais hipóteses.
- Prefeito, sei muito bem combater, e há muito tempo que esta luta é minha. Além disso, já disse ao chefe dos bedu que seria eu a combater.
Bano tinha escutado toda a conversa, e sorria.
- Nada me agradaria mais.
- Liberta o miúdo. - Insistiu Cato.
- Porque não? - Bano ergueu de novo a faca e cortou as cordas que prendiam o rapaz. Ao ser libertado, Yusef cambaleou, afastando-se alguns passos de Bano
antes de tombar sobre a areia. Simeão apressou-se a ajudá-lo, erguendo-o pelos ombros.
- Yusef, estás bem?
O rapaz assentiu.
- Prometo-te que daqui a poucos dias estarás outra vez com a tua
avó.
Bano soltou uma gargalhada.
- Só se me matares primeiro, meu velho amigo.
Simeão encarou-o.
- Bano, vou matar-te. É a única forma de curar a doença que transportas.
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- Doença?
- O que mais pode ser, quando um homem está tão determinado
Em prosseguir uma luta sem sentido que já não se importa com a morte e a destruição que dela resultam?
- Faço-o pelo meu povo! - Protestou Bano. - Tu, há muito que o abandonaste. O que podes tu saber da nossa luta?
- Que é inútil. Não podes combater Roma dessa forma e esperar triunfar.
- Posso, e hei-de consegui-lo. - Afirmou Bano, resoluto. - É apenas uma questão de tempo.
Simeão meneou tristemente a cabeça, e deu um forte abraço a Yusef. O líder dos bedu aproximou-se e dirigiu-se a Bano, apontando para uma zona desimpedida junto
à fogueira. Os outros tinham prendido os camelos, e estavam sentados à volta da arena improvisada.
- Chegou a hora. - Afirmou Simeão.
O chefe dos bedu empurrou-os calmamente para o círculo ilumina-, conduzindo Macro, Cato e Yusef para o lado. Depois, com a mesma calma, forçou os dois romanos a
colocarem-se de joelhos e passou uma ordem aos seus homens. Quatro deles aproximaram-se, colocando-se por trás dos centuriões, que depressa sentiram mãos nos ombros
e o frio metálico de adagas encostadas às gargantas. Deu uma indicação a Simeão, que anuiu e desembainhou a sua espada recurva. A curta distância, Bano devolveu
a adaga ao cinto e empunhou também uma espada, assumindo de imediato uma posição de combate e olhando Simeão com intensidade.
Por momentos os dois homens pareceram presos numa troca de olhares, as lâminas aparentemente esquecidas mas na realidade prontas a lançar ou a bloquear um golpe
do adversário. Bano deu uns passos para o lado, colocando-se de costas para o fogo e ficando visível ao oponente apenas em silhueta. Simeão respondeu de imediato
com um movimento para anular essa desvantagem. Ao dar o último passo, Bano saltou sobre ele, golpeando com a sua lâmina aguçada. Simeão bloqueou o movimento sem
dificuldades e deixou a espada seguir e descrever um círculo até encontrar o punho da arma de Bano, que assim parou o contra-ataque. Tudo se passara num instante,
e o som deste último choque propagou-se lo ar antes mesmo do retinir do primeiro se ter dissipado. Os dois homens recuaram e voltaram a cruzar os olhares, avaliando-se
e mantendo-se em posição de combate.
Simeão adiantou-se e fez uma finta, seguida de outra, mas Bano não se deixou iludir, e a sua lâmina não se moveu.
- Vais ter que tentar algo melhor...
- Falas demais. - Respondeu Simeão calmamente, e atacou de
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imediato a cabeça do oponente, torcendo o pulso no último momento de forma a que a lâmina se desviasse da cabeça parada de Bano e se dirigisse ao lado do crânio.
A única saída do outro foi agachar-se e recuar atabalhoadamente, o que Simeão aproveitou para lançar uma sequência de golpes que Bano mal conseguiu rechaçar, numa
frenética troca de cutiladas. No derradeiro instante, quando já estava quase em cima dos bedu sentados na orla da arena, lançou-se para a frente, para o interior
do círculo desenhado pela lâmina de Simeão, e embateu contra o peito deste, fazendo-o rodopiar para trás. Ao desfazer-se o contacto, Bano conseguiu fazer deslizar
a sua espada sobre as vestes de Simeão, e o gume afiado cortou-as e produziu um longo lanho no peito do homem mais velho.
Simeão gemeu de dor e levou a mão livre à ferida, retirando-a no momento seguinte, a pingar sangue.
Macro fez uma careta e virou lentamente a cara para Cato.
- Isto vai mal.
Não deixando de olhar para Simeão, Bano lançou um brado zombeteiro.
- Romanos! O vosso amigo é demasiado lento, demasiado velho. Isto depressa estará terminado. Será melhor que façam as vossas despedidas.
Simeão pareceu vacilar, e Cato engoliu em seco, nervoso. Aparentemente com esforço, Simeão voltou a assumir a posição de combate e atraiu Bano com um gesto.
- Se achas que me podes derrotar, vem.
- Com todo o prazer.
Bano lançou-se ao assalto, produzindo uma elaborada sequência de golpes que Simeão enfrentou com eficácia e elegância, mas quando voltaram a separar-se Simeão ofegava
e piscava os olhos, enquanto Bano parecia mal ter começado a esforçar-se. Cato começou a resignar-se ao destino que o esperava ao notar que o sangue corria livremente
da ferida no peito do guia, pingando sobre a areia e ensopando-a, deixando manchas escuras no solo.
- Velho amigo, quanto tempo mais achas que vais aguentar? - Bano movimentava a espada de um lado para outro, mantendo-se à distância e continuando a provocar
Simeão. - Estás a enfraquecer a cada momento, acabarás por sangrar até à morte. Só tenho que deixar passar o tempo, fazer-te mais uns cortes, e pronto. Estarás morto,
e Yusef ficará comigo. E, tal como te vou derrotar, um dia derrotarei Roma.
- Não! - Gritou Simeão, e lançou-se para a frente, fazendo a lâmina refulgir em tons dourados e vermelhos à luz da fogueira, enquanto visava a cabeça do oponente.
Mas o ataque pouca técnica evidenciava, parecendo apenas um caso de força bruta que era facilmente parada pela espada
321
de Bano. Este, com uma expressão determinada, afastou todas as tentativas do adversário e deu um passo ligeiro ao lado, aguardando enquanto Simeão se detinha, arfando.
- Tiveste a tua oportunidade. - Avisou, com frio na voz. - E já estou farto de brincar contigo. É tempo de pôr fim a isto. Adeus, Simeão. As últimas palavras
foram praticamente cuspidas por entre os dentes cerrados de Bano, ao carregar sobre o oponente. Os golpes sucederam-se num ritmo frenético, cada um resultando num
choque metálico, mas Simião parecia ter cada vez maiores dificuldades para se defender. De repente, Bano saltou para o lado e lançou um feroz golpe vertical. O gume
da espada enterrou-se profundamente no braço com que Simeão segurava a arma, e os dedos deste ficaram hirtos. A espada pareceu ficar suspensa no ar por um instante,
mas depois caiu sobre a areia com um baque surdo.
Simeão não gritou, mas cerrou os dentes e deixou escapar um gemido profúndo. Bano aproximou-se, a espada em riste e um riso de desprezo nos lábios.
- Acabou, tal como eu previ. Chegou o momento de te juntares ao Joshua. - Avançou e ergueu a espada bem alto. Cato deixou pender a cabeça, e fechou os olhos.
Pelo seu lado, Macro manteve o olhar elevado, esperando a morte iminente com fria determinação.
Quando a espada de Bano se começou a abater sobre a cabeça de Simeão, deu-se uma repentina explosão de movimento. A mão ilesa de Simeão arrancou a adaga do cinto
do outro, fazendo-a subir e rodar num movimento fluido. Tudo foi tão rápido que Macro só se apercebeu do que se passara quando viu o punho da arma colado ao queixo
de Bano e a ponta avermelhada que irrompera no cimo do crânio do homem. Bano ficou um momento com uma expressão de surpresa na face e a boca aberta, pois os braços
perderam a força, a espada caiu-lhe das mãos já sem vida e tombou junto à fogueira, as pernas lançando um último movimento espasmódico.
Por momentos tudo ficou em silêncio, e então Simeão ergueu-se e olhou para a figura prostrada aos seus pés.
- Como eu te disse. Falas demasiado.
Cato abriu os olhos, surpreso por ainda estar vivo. Reparou então no cadáver de Bano.
- O que é que aconteceu?
Macro deitou-lhe um olhar.
- Não viste? Oh, miúdo, às vezes fico mesmo a pensar que não tens remédio•
Depois olhou para os guerreiros que ainda o rodeavam, pôs o dedo com cuidado contra a lâmina que ainda lhe ameaçava o pescoço, e afastou-a.
- Quer dizer, porra, se não se importam.
322
Os homens deram-lhes espaço, e os dois centuriões correram até Simeão, que vacilava. Com cuidado, sentaram-no na areia, e Cato rasgou tiras da túnica de Bano. À
luz da fogueira as feridas de Simeão pareciam cortes limpos, e os dois romanos ligaram-no o melhor que puderam. Yusef observava-os, sem se mexer, claramente abalado
por tudo o que tinha presenciado e por tudo o que tinha passado naqueles dias desde que tinha sido levado de junto dos seus. Assim que acabou de tratar de Simeão,
Cato pegou no cobertor de Bano e colocou-o sobre os ombros do rapaz.
Agóra que o seu divertimento tinha terminado, os bedu praticamente ignoravam-nos e tratavam de se instalar para passar a noite. Prepararam uma refeição, e o chefe
convidou os outros homens a partilharem a comida. Foi dada a Simeão uma posição de honra, e os guerreiros não pararam de comentar animadamente com ele as peripécias
do combate, até que ele se sentiu demasiado fraco para continuar a conversa e lhes pediu para o deixarem repousar. Cato preparou-lhe uma cama, ajudou-o a deitar-se
e pôs-lhe uma manta em cima para o manter quente quando o fogo se apagasse. Fez o mesmo com Yusef, e depois sentou-se junto a Macro, observando os guerreiros bedu
à luz da fogueira.
Durante muito tempo, Macro nada disse; por fim falou, num murmúrio.
- Esta foi por pouco. Acho que nunca passei por outra situação em que estivesse tão convencido de que ia morrer. - Voltou-se para o amigo.
- Não me importo de confessar, estava mesmo à rasca.
- Macro, com medo? - Cato sorriu. - Nem acredito nessa.
- Não estou a brincar, Cato. É mesmo a sério. - Virou-se, olhando para Simeão. Yusef tinha-se ido deitar junto ao ferido, e apoiava a cabeça no flanco ileso
do homem mais velho. - Caralho, aquele Simeão não é deste mundo. Foram precisos nervos de aço para esperar por uma oportunidade daquelas. O problema, claro, é que
nos salvou a pele.
Cato não conseguiu esconder a sua perplexidade.
- E isso é um problema?
- Evidentemente. Agora, estou em dívida para com ele.

Quando Cato acordou, na manhã seguinte, os bedu já tinham partido. As únicas marcas que tinham deixado do acampamento eram uma vaga depressão na areia e uns montes
de esterco de camelo semienterrados. Tinham pilhado os pertences de Bano, e a caixa que ele trouxera tinha sido aberta e lançada sobre a areia. Dela saía uma tira
de pano branco, com manchas escuras que podiam ser sangue, e a curta distância via-se um cálice de barro, sem enfeites. Cato dobrou o pano cuidadosamente e embrulhou
nele o cálice, acomodando tudo no interior do cofre antes de o fechar com todo
323

cuidado. A fogueira tinha-se apagado, e já nem as cinzas emitiam algum calor. O corpo de Bano tinha ficado onde caíra, pelo que Cato o arrastou para trás de uns
arbustos e o enterrou, ainda antes dos outros acordarem. Foi Macro o seguinte a dar sinal de vida, sentando-se de repente e procurando com o olhar os guerreiros
do deserto.
- Foram-se! Como raios fizeram eles isso?
- Bem, Macro, não tem exactamente o sono leve.
- Muito engraçado. E que é feito do Bano?
Cato indicou os arbustos com um gesto do polegar.
- Longe da vista, longe do coração. Onde ele está muito bem.
As feridas de Simeão faziam-se lembrar, e tiveram que o ajudar a subir para a sela quando se prepararam para seguir. Yusef insistiu em montar o mesmo cavalo que
o trouxera até ali. Pegou nas rédeas e olhou para Cato.
- Para onde é que vamos?
- Para casa. - Cato sorriu. - Vamos levar-te a casa.

XXXIV

Entraram em Heshaba poucos dias depois. O centro da povoação estava rodeado pelas ruínas carbonizadas das casas que tinham sido incendiadas por Bano e pelos seus
homens. Algumas faces curiosas surgiram para ver os quatro cavaleiros a passar, e assim que Yusef foi reconhecido houve quem se apressasse a dar a novidade a Miriam,
avisando-a de que ocorrera um milagre.
Macro e Cato prenderam os cavalos na praça central da aldeia, e auxiliaram Simeão a desmontar. A ferida que tinha no dorso sarava lentamente, mas o corte no braço
tinha destroçado demasiados músculos e tendões, pelo que nunca recuperaria por completo; Simeão estava lentamente a reconhecer que havia muitas probabilidades de
nunca mais ser capaz de pegar numa espada. Os seus dias de combatente estavam terminados. Sentou-se pesadamente à sombra das ruínas calcinadas de uma parede, enquanto
Cato se dirigia à fonte para molhar a cabeça. Yusef assegurou-se de que Simeão estava confortável, e preparava-se para o deixar quando se ouviu um grito agudo ao
fundo da rua, que fez com que os recém-chegados se virassem para lá. Miriam usava uma mão para se amparar contra uma parede, enquanto a outra lhe tapava a boca.
Assim que a viu, Yusef pôs-se de pé, correu na sua direcção e lançou-se-lhe nos braços. Durante algum tempo deixaram-se ficar assim, abraçados, e depois dirigiram-se
para a praça de braço dado, até junto de Simeão e dos dois oficiais romanos. Miriam mordeu o lábio, tentando evitar as lágrimas, enquanto se lhes dirigia.
- Eu... Eu nem sei como vos agradecer. Eu... - Olhou para o chão e abanou ligeiramente a cabeça. - Não conheço palavras que sejam capazes de expressar a alegria
que sinto. Quão grata estou. Que Deus vos abençoe, e que sempre vos proteja no futuro.
- Bom, muito obrigado. - Respondeu Macro, embaraçado. - Estou certo de que ele nos terá debaixo de olho, sobretudo depois de tudo o que passámos. Acho que
merecemos essa atenção.
325
- Há mais uma coisa. - Interveio Cato. Dirigiu-se à sua montada, desapertou um alforge bem pesado e retirou cuidadosamente do interior o cofre de Miriam.
- Aqui está.
Ela recebeu-o, e afagou gentilmente a tampa.
- Mais uma vez, obrigado, e Deus vos abençoe. - Olhou para Cato.
- Depreendo que enfrentaram o Bano.
- Sim.
- Pobre alma. Pobre alma atormentada.
Macro olhou para Cato, surpreso, e preparava-se para abrir a boca quando o amigo abanou a cabeça, suplicando-lhe que nada dissesse. Cato passeou o olhar sobre a
aldeia.
- E agora, o que vai suceder? Vão reconstruir as casas destruídas? Podemos ajudar-vos.
- Não. - Retorquiu Miriam. - Desde que o Yusef foi levado, tenho pensado muito nas coisas. Não vale a pena. Isolada, Heshaba não sobreviverá. Não podemos
fugir ao mundo, embora eu tenha tentado. Não haverá futuro para a visão do meu filho, se ficarmos aqui escondidos. Se não podemos escapar do mundo, teremos portanto
de regressar a ele. - Sorriu. - Ou então, penso que seria correcto dizer que não podemos deixar o mundo escapar-nos. Seja como for, decidi que iremos para as cidades
e espalharemos os seus ensinamentos onde quer que haja ouvidos para os escutar.
- Então, resta-me desejar-te boa sorte. - Retorquiu Cato. - Mas tenho que ser honesto. Um movimento, qualquer que ele seja, que sonha mudar o mundo graças
apenas à persuasão pacífica tem muito que andar. E o mais provável é que falhe redondamente.
- Pode ser que sim. - Concedeu Miriam. - Mas temos que tentar. Senão, o meu filho morreu em vão. - Virou-se para Simeão. - E tu? Ainda andas armado em aventureiro?
Simeão mostrou a mão ligada.
- Não, Miriam, esses dias já terminaram. Não há mais combates no meu futuro.
Ela acenou.
- Combates violentos, queres tu dizer. Mas podias bem juntar-te a nós. Um homem como tu dá sempre jeito. Tu e os teus contactos.
- Vou pensar nisso.
- Simeão, o meu filho acreditava em ti.
O indigitado lançou um rápido olhar a Macro e Cato, mas estes mantiveram-se impassíveis. O segredo tinha morrido com Bano, e nenhum dos dois romanos via qualquer
razão para reabrir velhas feridas. Muito menos naquele dia, em que Yusef se tinha de novo reunido a Miriam.
Simeão pegou na mão da mulher.
326
- Discutiremos isso mais tarde.
- Muito bem. - Miriam virou-se para Macro e Cato. - Fizeram uma longa viagem. Posso oferecer-vos algo para comer, ou beber? Abrigo para a noite?
Macro abanou a cabeça.
- Não. Agradeço a oferta, mas tenho que regressar a Bushir. Já passou demasiado tempo desde que eu e o Cato deixámos os nossos homens. Agora que o Bano desapareceu
de cena, temos que regressar aos deveres normais. Talvez nos voltemos a ver, antes de deixares Heshaba com o teu povo.
- Claro, prefeito. Seria uma honra.
Macro ofereceu-lhe um sorriso fugaz, e dirigiu-se a Cato.
- Anda daí, temos que ir.
Trocaram saudações com Simeão pela última vez, e Cato soltou uma gargalhada.
- Um dia tens que me mostrar aquele truque com a faca. Prometo que vou prestar atenção.
Simeão abanou a cabeça.
- Já tive a minha conta de armas. De mortes. Tudo isso faz parte do meu passado, e não regressará.
- A sério? - Macro parecia desapontado. - É uma pena.
Os dois oficiais desprenderam as montadas e saltaram para as selas. Enquanto deixavam a aldeia, Miriam, Simeão e Yusef ficaram na praça central ainda por algum tempo,
vendo-os seguir o trilho que levava à entrada do desfiladeiro. Miriam tinha a caixa bem presa debaixo do braço. Simeão colocou então o braço ainda em bom estado
sobre o ombro da mulher, e Yusef rodeou-a também com o braço, e os três viraram-se por fim e dirigiram-se ao abrigo que tinha sido erigido para servir de casa temporária
a Miriam.
O centurião Parmenião não tinha perdido tempo depois da partida dos dois amigos em perseguição de Bano. O campo inimigo tinha sido completamente arrasado, pelo que
só se avistavam dois montículos que marcavam as valas onde tinham sido amontoados os cadáveres dos camponeses que Bano tinha conduzido à morte. O portão fortificado
estava quase reconstruído, e a sentinela na torre interpelou-os de forma regulamentar quando se aproximaram, embora mal contivesse a surpresa ao ver regressar vivos
os dois oficiais. No interior do forte já tinham sido reerguidos alguns blocos de casernas, e a moradia do prefeito estava de novo habitável, embora não possuísse
nenhum dos luxos anteriores. Os outros edifícios afectados pelas chamas tinham sido demolidos, e grandes extensões do forte ainda se apresentavam carbonizados e
muito danificados.
327
Foram dar com Parmenião no edifício do comando, no gabinete do prefeito, rodeado de escrivães e a debitar ordens em série. Assim que se refez da surpresa de rever
vivos quer Cato quer o prefeito, dispôs-se a devolver a posição com um sorriso contrafeito.
- Senhor, não posso dizer que não me sinto feliz por me ver livre desta papelada toda.
- A mim parece-me que estás a dar bem conta do recado. Podes muito bem continuar até amanhã.
- Sim, senhor.
- Há algum assunto urgente que tenha de me ser comunicado, antes de ir descansar?
Parmenião confirmou que assim era.
- Tal como ordenou, os reféns foram devolvidos às suas aldeias; e chegou um despacho do governador Longino. Chegou ontem, dirigido ao prefeito, e é confidencial.
Não me pareceu que o devesse abrir.
- Parmenião, ainda és o comandante interino.
- Sim, senhor, eu sei. Mas pareceu-me que devia aguardar. Até saber alguma coisa.
- Bom, onde está esse despacho?
- Um momento, senhor. - Atravessou o gabinete até à secretária e abriu um compartimento. Tirou do seu interior um rolo selado e entregou-o a Macro.
- Lerei isto nos meus aposentos. Cato, será melhor vires comigo.
Enquanto saíam do gabinete, um pensamento súbito ocorreu a Cato,
que se virou de novo para Parmenião.
- O centurião Póstumo. O que é feito dele?
- Não se sabe. Depois da batalha, enviei uma patrulha à procura dele. Encontraram os seus homens, todos mortos, crivados de setas. Mas dele, nem sinal. Estranho.
- Sim. - Comentou Cato, preocupado. - Muito estranho, de facto.
- Estou certo de que ele acabará por aparecer.
- Suponho que sim. - Retorquiu Cato, após o que deixou o gabinete e apressou o passo para se recolocar ao lado de Macro.
O veterano abriu a missiva assim que entrou nos seus aposentos. A mensagem era curta, e ele passou-a a Cato. Tratava-se de uma ordem emitida pelo gabinete do governador.
Era indicado que a Segunda Coorte Ilírica devia preparar-se para abandonar o forte de Bushir. As instruções eram para que seguissem para a Síria, para se reunirem
às forças que estavam a ser concentradas para responder à mais recente ameaça da Pártia.
Cato sorriu.
- Dá a ideia que o Longino nos quer ter bem vigiados.
328
- Aposto que sim. Agora que já sabe que nós estamos em cima dos planos dele, podes ter a certeza de que não vai desperdiçar qualquer oportunidade que surja
para se ver livre de nós. Teremos de ser muito cautelosos, Cato.
- É um facto. Mas, entretanto, há muito trabalho a fazer. A coorte portou-se bem em combate, mas ainda não está pronta para uma campanha a sério.
- Ou seja, não vamos ter descanso. - Resmungou Macro, enquanto deitava vinho em dois copos e passava um ao amigo. - E ainda vamos ter que escrever um relatório
para o Narciso, no meio disto tudo.
- Se quiser, eu trato disso.
- Mas o que é que lhe dizemos? A tal ameaça ao Império. Era o Bano, ou é o Longino? Seja como for, para já está afastada. Agora só temos que nos preocupar
com a Pártia. Merda, apetecia-me era descansar por um bom período.
- Senhor, tem que apreciar as coisas pelo lado bom.
- Pelo lado bom? Qual, exactamente?
- Vai finalmente conhecer a Síria. Desde que o conheço que não tem perdido uma única oportunidade de mencionar esse grande sonho.
- A Síria... - Ponderou Macro, com um ar de contentamento, antes de esvaziar o copo de um trago. - Sim, soa-me bem.

 

 

NOTA DO AUTOR


Foi para mim um enorme prazer pesquisar e escrever A Águia no Deserto. Desde o início da série que queria levar Macro e Cato para as regiões orientais do Império.
Pude finalmente contentar o centurião Macro, que há muito tempo fantasiava de várias formas sobre o apelo do oriente. Nesta aventura, porém, a realidade foi bastante
mais árdua do que ele esperava. Talvez tenha mais sorte na próxima ocasião.
Alguns leitores poderão sentir que tomei algumas liberdades com a história do mais famoso dos muitos judeus que afrontaram Roma e por ela foram executados. Recomendo
a todos eles a leitura de Apocalypse, de Neil Faulkner, um relato soberbo de tudo o que levou à grande revolta do ano 66 d.C., e de como ela decorreu. As várias
correntes e divisões políticas, religiosas e sociais são analisadas em minucioso detalhe nesta obra, e Faulkner não se exime a proceder a algumas comparações reveladoras
com a história mais recente da região. Recomendo fortemente este livro a quem quiser descobrir mais sobre a Judeia do primeiro século.
A maior parte da paisagem em que se desenrola este romance permanece inalterada, e tentei transmitir da melhor forma possível a rudeza e espectacularidade da fronteira
leste do Império. Mergulhar no Mar Morto foi uma experiência nova para mim, tanto como para o centurião Macro. E é quase impossível descrever a avassaladora experiência
que é Petra. Apesar de ter lido muita coisa acerca da cidade (e de ter visto Indiana Jones a cavalgar pelo siql), nada prepara o visitante para o momento em que
emerge daquela fenda escura nas rochas e se depara com o imponente edifício do "Tesouro". Para mim, esse foi apenas o início de um dia inesquecível a explorar a
cidade. A magnificência de Petra, trabalhada pelo homem, só é igualada pelo espectáculo natural do Wadi Rum (como é hoje em dia conhecido), uma vastíssima área de
areia vermelha dividida por grandes muralhas de pedra. A escala épica desta região é sublinhada pelo silêncio impressionante, e fornece um cenário adequado para
o conflito final desta história.

A Jordânia possui algumas das ruínas clássicas mais extraordinárias do mundo. O teatro em Amã está virtualmente intacto, e as ruínas de algumas outras cidades da
Decápole têm sido alvo de escavações aprofundadas. Realço Jerash e Umm Qais, onde o visitante se pode sentar ao cimo de um anfiteatro de pedra negra e passear o
olhar sobre Jawlan, até ao Lago Ti-beríades, e depois virar o olhar para Nazaré. No entanto, o local que mais forte impressão me deixou foi o mais desolado e mais
difícil de alcançar: o forte no deserto profundo em Q'sar Bashir. Nem o próprio Ministério do Turismo da Jordânia parecia certo da sua localização. Afortunadamente,
o Rei Abdullah pôs-me em contacto com um seu amigo, Samer Mouasher, que nos guiou até ao local. As muralhas e torres de Bashir ainda se erguem da areia e das pedras,
e os fragmentos que foram deslocados por um sismo há mais de dois séculos ainda permanecem no local onde tombaram. O visitante pode subir (se tiver dotes de alpinista)
a algumas das torres e, lá de cima, espraiar a vista sobre o mar de areia que se estende de um horizonte a outro. Foi aí que tomei real consciência da soberba de
um Império capaz de edificar uma fortificação como aquela num local tão remoto. "Contemplai as minhas obras, oh poderosos, e desesperai!" Só Shelley poderia traduzir
em palavras esta fantástica arrogância, este directo desafio aos deuses.
Depois de deixarmos o forte e seguirmos para Petra, os seus detalhes não me saíram da cabeça, e soube então que tinha encontrado a localização perfeita para esta aventura de Macro e Cato.

 

 

                                                    Simon Scarrow         

 

 

 

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