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A AGUIA DO IMPÉRIO - Parte II
XX
- Alto! - A ordem propagou-se rapidamente por toda a coluna.
- Poisem os sacos!
Os legionários da Sexta centúria arrastaram-se para a berma do caminho, distantes o suficiente da estrada para permitir rápido acesso aos mensageiros que percorriam
toda a coluna. Com um profundo suspiro, Macro deixou-se cair no chão e começou a massajar a perna. Fora libertado, a seu próprio pedido, após os primeiros dois dias
na estrada. Os carros do hospital tentavam ser confortáveis mas, mesmo assim, o movimento regular do carro que chocalhava os ossos, pontuado por quedas estrepitosas
de caldeirões, era mais do que podia aguentar. A forçada falta de exercício a que fora submetido tornara a marcha mais difícil, mas a dura determinação que fazia
parte da natureza de um centurião fê-lo aguentar. E agora, dez dias depois, Macro recuperara quase por completo a boa saúde. A cicatriz ainda apresentava uma cor
vermelha vívida, mas sarara razoavelmente bem, e à parte uma rigidez dolorosa e alguma comichão, não o incomodava mais do que todas as suas outras cicatrizes.
- Os carregadores de água vêm a caminho, senhor.
- Algum soldado extraviado, Cato?
- Dois, senhor. Ambos estão sob castigo.
- Óptimo. Muito bem, rapaz, faz uma pausa e senta-te connosco.
- Apontou para a relva ao seu lado. - O legado ordenou uma marcha a um ritmo de morte. É incrível como não tivemos mais desertores. Apenas sete desde que partimos.
Cato olhou para Macro, enquanto este massajava a perna de
novo.
- Como está a perna hoje, senhor?
- Bem. Mas leva tempo para me acostumar.
Um par de escravos alcançou o local onde estavam, e despejaram vinho aguado dos odres nas taças de estanho estendidas ansiosamente pelos legionários sedentos. Os
carregadores de água faziam parte de um contingente de escravos que Vespasiano encarregara de desempenhar tarefas insignificantes, de modo a não sobrecarregar a
Legião na sua marcha até ao mar. Movimentavam-se habilmente entre os homens, pausando apenas o suficiente para encher metade da taça. Depois de chegada a sua vez,
Cato sentiu-se grato por beber a mistura amarga de água e vinho barato. As suas pernas doíam terrivelmente e o balancim que carregava o equipamento militar era de
um peso intolerável. Apenas conseguira manter o seu lugar na coluna em marcha instigado pelo medo de ser visto como um fraco e incapaz de manter o passo dos veteranos
- homens sobre quem actuava como superior hierárquico, mais por virtude de um patrono do que por mérito próprio.
Macro observava o jovem enquanto engolia outro trago da sua taça, apreciando o sabor refrescante do líquido a revolver-lhe a boca. Cato estava sentado com o corpo
debruçado para a frente, antebraços repousados nos joelhos, mãos flácidas pendentes e de olhos fixos no horizonte com uma expressão tensa. Macro sorriu, sentindo
quase um afecto paternal pelo rapaz. Apesar de todos os seus receios iniciais, Cato acabara por superar as expectativas. Ninguém podia duvidar da sua coragem e calma
sob pressão. E, finalmente, já começava a soar como um oficial. Palavras de comando acudiam-lhe mais facilmente, ainda que soando tensas e desprovidas de humor.
Mas isso viria com o tempo. Até agora, provara ser um excelente subordinado; desempenhava conscienciosamente todas as ordens atribuídas por Macro, e era capaz de
mostrar iniciativa face a situações não-antecipadas.
Macro tinha ainda outras razões para se sentir grato. No final de cada dia, Cato dedicava algum do seu tempo às lições de leitura, mantidas com a maior discrição
possível. Macro mostrou-se agradado ao descobrir que não era assim tão complicado todo aquele jogo de letras. Aqueles assustadores e indecifráveis sinais revelavam-lhe
gradualmente os seus segredos, ao ponto de Macro ser capaz de ler textos mais simples, ainda que de um modo titubeante, arrastando o seu dedo de palavra a palavra
pelo pergaminho, enquanto os seus lábios pronunciavam os sons, transformando-os em palavras.
- Carreguem os sacos às costas! - A ordem repetiu-se até alcançar a Sexta centúria, onde Macro a ecoou alto e bom som. O centurião levantou-se cansado da berma da
estrada e depositou nos ombros os balancins. Alguns homens, com energia suficiente para pilhar os campos de cultivo em redor, regressaram com os sacos carregados de
fruta ou pequenos animais que tinham conseguido comprar ou roubar aos camponeses. A centúria pôs-se em linha enquanto que a vanguarda , da coluna dava início à marcha.
Partiram de novo, calcando a estrada pavimentada que conduzia desde Divoduro até à Gália ocidental.
Cato, inexperiente como era, sofria terrivelmente em comparação aos duros veteranos. A marcha da tarde fora uma completa agonia, pois as bolhas que adquirira nos
primeiros dias tinham rebentado, quando mal ultrapassara a experiência agonizante desses mesmos dias. Descobrira que a melhor maneira de lidar com a situação era
pensar em outras coisas, deleitar-se com a paisagem serena à sua volta, ou então, passar o tempo a reflectir. Mas logo aí esbarrava com um problema. Por mais que
se tentasse concentrar em questões militares, pensamentos de Lavínia insinuavam-se na sua mente e assombravam a sua consciência.
Nessa noite, depois da centúria ter montado o acampamento e atribuído os castigos aos extraviados, Cato bocejava e espreguiçava-se ao máximo, quando um escravo entrou
na penumbra iluminada por lamparinas de óleo da tenda do centurião. Olhou à sua volta, trazendo na mão uma mensagem que comprimiu contra o peito.
Macro desviou o olhar da secretária, pois agora que beneficiava de uma rude instrução nas letras, tinha que começar a lidar com a entediante papelada. Estendeu a
mão.
- Aqui!
- Perdão, senhor - respondeu o escravo, protegendo ainda mais o pergaminho. - Destina-se ao optio.
- Muito bem - disse Macro.
Ficou a observar com alguma curiosidade Cato a quebrar o selo e desenrolar a mensagem. O seu conteúdo era breve. Cato pegou no estilete, molhou-o no tinteiro e escrevinhou
rapidamente uma resposta, voltando a depositar a mensagem nas mãos do escravo, antes de o mandar embora.
- Isso pareceu-me bastante esquivo - disse Macro.
- Não se trata de nada, senhor.
- Nada?
Nada em que possa meter o bedelho, pensou Cato, e sorriu antes de responder:
- Apenas um assunto pessoal, senhor. Apenas isso.
- Assunto pessoal? Estou a ver.
Macro assentiu, exibindo uma expressão de grande divertimento.
- Nada relacionado com aquela rapariga escrava então?
Cato corou, grato pela luz laranja emitida pelas lamparinas ocultar
o rubor da sua face, mas, ainda assim, manteve-se calado.
- Já acabaste o teu trabalho por esta noite? - perguntou-lhe Macro num tom insinuador.
- Não, senhor. Ainda tenho que completar algumas requisições de provisões.
- Piso pode terminá-las.
Piso desviou o olhar da papelada em que trabalhava com uma expressão de evidente aborrecimento.
- Estás dispensado, jovem Cato. Parte de imediato, mas não te canses muito. -Piscou-lhe o olho. - Lembra-te que ainda temos outro longo dia pela frente.
- Sim, senhor. - Cato forçou um sorriso e abandonou a tenda, a morrer de vergonha.
- Rapazes! - Macro riu-se. - É o mesmo no mundo inteiro, desde o princípio dos tempos. Faz-te sentir um pouco nostálgico, não é verdade, Piso?
- Se assim o diz, senhor - resmungou Piso.
Deu um longo suspiro face à pilha de pergaminhos amontoados na sua frente, lançando de soslaio olhares reprovadores na direcção do centurião.
XXI
Vespasiano sorriu ao esfregar as marcas vermelhas deixadas no seu pulso pelos dentes de Tito. Pensou que esse pequeno diabrete estava bem a precisar de uma mão firme
e disciplinadora. Simplesmente tinha que pôr fim às mordidelas e ao arremesso de objectos para cima da cabeça das pessoas, e parar de fugir com coisas que estava
proibido de tocar.
Ao entardecer, a pequena peste tinha irrompido pela tenda durante o relatório vespertino dos tribunos. Correndo por debaixo da mesa, alcançou o cofre que continha
os papéis confidenciais e fugiu com o pergaminho de Cláudio. Se Plínio não tivesse fechado a abertura da tenda, Tito teria conseguido fugir. O tribuno pegou no rapaz,
carregou-o nos braços e devolveu-o a Flávia, que surgiu com ar embaraçado no quartel-general do legado. O rapaz esbracejou e esmurrou o queixo de Plínio, enquanto
a mãe tentava arrancar-lhe o pergaminho das mãos. Risos inundaram a tenda perante as tentativas exasperadas da mãe, que acabou por perder o pergaminho nas pregas
da túnica, e depois entregou-o ao tribuno magoado, abandonando a tenda com Tito agarrado ao peito, a lutar nos seus braços.
- Posso reaver o pergaminho, por favor?
O tribuno devolveu-lhe o pergaminho depois de lhe lançar um rápido olhar perscrutador.
- Obrigado.
Vespasiano repô-lo no cofre e regressou ao assunto em discussão.
- Como os senhores sabem, circulam rumores de que o exército reunido em Gesoriaco se encontra à beira de um motim. Recebi uma mensagem do general Pláucio esta manhã,
trazida por um escravo doméstico. Receio que os rumores sejam verdadeiros.
Fitou as expressões ansiosas e surpreendidas dos seus oficiais. Houve
uma pausa silenciosa, quebrada apenas pelos sons de Tito a brincar perto do local onde se reuniam. Os oficiais mostraram-se inquietos. Muitas carreiras dependiam
do sucesso desta invasão. Se a campanha falhasse, todos os que estivessem associados a ela veriam a sua reputação manchada. Pior ainda, os mais conscientes das vastas
implicações políticas sabiam que a autoridade do próprio Imperador seria questionada. Cláudio sobrevivera já a uma tentativa de golpe de Estado, mas até ser aclamado
pela multidão de Roma e pelos exércitos espalhados pelo Império, o seu poder seria sempre considerado precário. Uma invasão bem sucedida ganharia a lealdade de muitas
tropas, e desviaria as legiões dos seus recentes interesses políticos.
- Há seis dias, a coorte da Nona legião recusou embarcar nos barcos que se iriam juntar a um esquadrão de reconhecimento da costa britânica. Quando os centuriões
tentaram obter controlo sobre os tripulantes, houve uma breve luta que terminou com dois centuriões mortos e quatro feridos.
- Alguma palavra acerca disto chegou aos ouvidos do exército?
- perguntou Vitélio.
- Claro - respondeu-lhe Vespasiano, com um sorriso. - Do que estavas à espera? Testemunhei em primeira-mão o quão bem os soldados guardam segredos.
Alguns dos tribunos coraram. Vitélio continuou:
- Sabemos a razão porque essa coorte se amotinou?
- Parece que alguém anda a despertar nas nossas tropas medos supersticiosos em relação ao que podem encontrar na Britânia. As velhas histórias absurdas sobre monstros
que exalam fogo e outros demónios. Sei que não passam de disparates, mas, mesmo que não acreditemos em tais coisas, os legionários parece que acreditam. Dado estas
circunstâncias, as tropas recusaram-se a entrar em quaisquer barcos, nem mesmo para realizar manobras de treino.
- E quais são as nossas ordens, senhor?
- Iremos continuar a marchar até Gesoriaco, mas recebemos ordens para pararmos a dezasseis quilómetros do local, pelo menos até o motim ser subjugado, com ou sem
a nossa intervenção. O novo líder do corpo imperial estava em Lugduno quando chegaram as notícias. Ele dirige-se para lá com a máxima urgência, e devemos fornecer-lhe
uma escolta desde Durocórtoro. Aparentemente, requisitou homens da nossa unidade por ainda não estarem contaminados pelo motim.
- Contaminados? - Plínio ergueu as sobrancelhas.
- São as palavras dele, não minhas.
- Senhor! - protestou Plínio. - Não quis insinuar...
- Não há problema. Narciso nem sempre mostra tacto e diplomacia, mas teremos que aprender a lidar com ele.
- Narciso? - murmurou Vitélio, alto o suficiente para ser ouvido pelos outros.
- Narciso - confirmou Vespasiano. - Não pareces aprovar o nome, Vitélio.
- Não creio que seja seguro aprovar nenhum homem que detenha mais poder do que o que é devido ao seu estatuto social. Se me permite a ousadia, senhor.
Alguns dos outros tribunos, ignorantes acerca das origens provincianas do legado, riram-se.
- O que eu quero dizer, senhor - continuou Vitélio - é que não compreendo as intenções do Imperador em mandar um liberto... o seu chefe administrativo para lidar
pessoalmente com o assunto. Não se trata de nada que não possa ser resolvido pelo exército.
- Sabemos que estamos envolvidos numa grande operação - respondeu Vespasiano. - Eu diria que Narciso quer certificar-se de que tudo corre o melhor possível, para
bem do Imperador.
- No entanto, não deixa de ser estranho, senhor - acrescentou Plínio, discretamente.
Vespasiano afastou-se da mesa.
- Não há nada de estranho nisto. Conhecem a reputação do homem, é mais acanhado do que sinistro. Narciso será escoltado até à costa e o assunto está encerrado. Se
está envolvido em algum jogo mais perigoso, então desconheço-o. Ou então algum dos senhores possui informação que me está a ser ocultada. Será?
Nenhum deles se atreveu a encarar o olhar do legado, por culpa ou medo de parecerem culpados. Vespasiano suspirou, cansado
- Começo a ficar doente com estes jogos de alta política, senhores. Independentemente do que nos estiver reservado para o futuro, somos soldados sob ordens rigorosas
e pretendo cumpri-las até ao máximo das minhas capacidades. Todos os restantes assuntos devem ser afastados das vossas mentes. Fiz-me entender? Óptimo! Agora, não
vos preciso de lembrar da necessidade de manter absoluto segredo sobre este assunto. Se alguma palavra acerca deste motim chegar aos homens, então perdemos o exército
inteiro. Só Júpiter sabe como tudo poderá terminar, então. Alguma questão?
Os tribunos permaneceram em silêncio.
- As vossas ordens para amanhã serão distribuídas antes de reunirmos o exército pela alvorada. Estão dispensados.
Mais tarde, com uma tenda vazia só para ele, Vespasiano deitou-se no leito e fechou os olhos. Ouvia à sua volta os sons da Legião a acomodar-se para a noite; os
gritos das sentinelas e oficiais de guarda, os murmúrios das conversas entre os homens, a descansarem depois de um dia exaustivo, até alguns risos. Isso era bom
sinal. Enquanto os homens se sentissem felizes, sabia que permaneceriam leais à autoridade que os comandava a todos. Aquilo que um comandante mais receava eram os
motins. Afinal de contas, o que compelia milhares de homens a se subjugarem à sua vontade, a ponto de sacrificarem as suas vidas? No momento em que o soldado raso
decidisse desobedecer ao seu superior, o exército deixaria de existir.
As notícias sobre a situação na costa eram más o suficiente, e a esta altura, já teriam viajado pelas estradas a oriente. Era apenas uma questão de tempo até a Legião
ir de encontro aos boatos vindos de Gesoriaco. Nessa altura, teria que proceder com a maior cautela; seria preciso manter a rigorosa disciplina diária do exército,
mas de modo a não provocar nos soldados sentimentos de revolta. Interrogava-se sobre a lealdade dos soldados rasos. Respeitavam-no e, até agora, não o tinham desapontado,
em marcha. A experiência do centurião sénior garantira-lhe que havia bem menos extraviados do que o costume numa marcha tão dura. E, no entanto, não podia deixar
de pensar no quanto estes homens poderiam provar ser inconstantes, mal lhes fosse dada a oportunidade. A revolta tinha que ser suprimida se queriam proceder à invasão.
Era bom que Narciso provasse estar à altura da sua reputação como diplomata. Flávia acreditava que era um homem com capacidades para o trabalho, quando discutira
com ela o assunto à refeição.
E depois havia ainda a outra questão. A segunda parte da mensagem que lhe tinham levado essa manhã confirmava a presença de um conspirador na sua Legião. Mas foi-lhe
assegurado o facto de que o agente Imperial seria capaz de lidar com o traidor. A identidade do agente permaneceria um segredo guardado de todos, excepto do círculo
pessoal do Imperador. A mensagem garantia a Vespasiano que tal decisão o iria ajudar a concentrar-se mais na sua tarefa de administrar a Legião.
- Como se... - resmungou Vespasiano.
Era incrível como agora tinha o maior cuidado possível no modo como falava à frente dos oficiais superiores, movido pelo medo de alarmar o conspirador ou de exprimir
pensamentos que o agente Imperial pudesse considerar desleais. Apesar de ter as suas suspeitas sobre Vitélio, não existia nenhuma prova ou indicação de que planeava
uma conspiração
contra o Imperador. Por mais suspeitas que tivesse, o culpado até podia ser Plínio, sempre imerso nos seus livros. O comportamento de um erudito distraído podia
servir como fachada para outras actividades. Mas por mais que tentasse, Vespasiano não conseguia imaginar Plínio como um espião. No entanto, à falta de provas, era
forçado a suspeitar de todos - não apenas dos oficiais séniores.
A presença do agente imperial estava longe de ser reconfortante. Vespasiano tinha a certeza de que a missão do agente consistia tanto em manter o comandante da legião
debaixo de olho, como revelar eventuais traidores. Dava voltas na cabeça a tentar descobrir a sua identidade; no meio de todo este tumulto político, podia ser qualquer
oficial debaixo do seu comando. Até podia ser aquele jovem enviado pelo palácio para se alistar na Legião. Fez uma nota mental para ordenar que o rapaz fosse vigiado,
mas depois praguejou.
Claro que não faria tal coisa. Senão acabaria por ter a legião inundada de homens, a espiarem homens, a espiarem homens. Uma imagem da legião a marchar para uma
batalha, com todos os soldados a lançarem olhares de suspeita aos seus camaradas, fê-lo erguer a cabeça e rir-se às gargalhadas.
Pois bem, os outros que se preocupassem com a espionagem. Faria o seu melhor para se concentrar na Legião e na iminente campanha. Seria isso a melhorar a sua reputação,
muito mais do que obscuras conspirações. Sorriu com a sua própria ingenuidade antes de acabar por adormecer.
XXII
Ainda que o Inverno tivesse terminado, uma fresca brisa nocturna obrigou Cato a apertar a capa à sua volta, envolto pelo bafo da sua respiração que inundava o ar.
A mensagem que recebera de Lavínia, ou de alguém em seu nome, providenciava um encontro entre eles nas tendas traseiras do quartel-general, pouco depois do trombeteiro
soar a mudança do turno de vigia.
Uma área delimitada por cordas fora montada à volta dos carros com bagagens, e duas sentinelas circulavam lentamente em torno do perímetro. Cato esperou que ambos
se cruzassem, depois percorreu silenciosamente o caminho até alcançar a relva, passou por baixo da corda e olhou em redor antes de se esgueirar por entre as formas
negras dos carros.
Algumas das tendas revelavam luzes ainda acesas no interior, e Cato foi caminhando por entre a bagagem até encontrar um dos lados da tenda de couro. Tinha sido este
o ponto de encontro marcado por Lavínia, mas não havia sinais dela. Permaneceu imóvel à espera, incomodado pelas batidas aceleradas do seu coração, quando tentava
escutar qualquer movimento vindo do exterior. Não registou nada na área. Teria ela perdido a coragem? Ou estaria ocupada com alguma tarefa doméstica?
Alguém vindo de trás agarrou-o tão bruscamente pelo ombro que Cato deu um salto e não conseguiu controlar um grito de surpresa que lhe escapou dos lábios.
- Psiu! - sussurrou Lavínia. - Rápido, vem para aqui para baixo!
- Puxou-o pelo braço, para debaixo das rodas do carro enorme.
Seguiu-a automaticamente e rolou para o lado dela.
- O que... - murmurou, mas ela pressionou a mão contra a sua boca e disse-lhe para se manter quieto.
Ficou maravilhado com a suavidade das suas mãos a roçarem-lhe pelos lábios, ao mesmo tempo que sentia o odor da sua fragrância.
- Quem vai aí? - chamou alguém nas proximidades. - Saia daí, seja quem for!
Cato ficou paralisado e susteve a respiração, assustado - e ao mesmo tempo excitado, por estar tão perto de Lavínia. Sentiu um ardor invadir-lhe o corpo.
- O que se passa? - gritou alguém mais afastado.
- Acho que anda por aqui um ladrão. Ouvi um barulho.
Um par de pernas e o cabo de uma lança surgiram no campo de visão de ambos, defronte do carro. Um momento depois, chegou a outra sentinela.
- Encontraste alguma coisa?
- Ainda não.
Cato procurou pela mão de Lavínia e apertou-a, puxando o corpo dela para junto de si. Resistiu por uns instantes, mas acabou por permitir que a abraçasse.
- Parece estar tudo em ordem.
- Estou a dizer-te que ouvi alguma coisa.
- Pode ter vindo do interior da tenda.
- Não me parece.
Os lábios de Cato acariciaram-lhe o cabelo, desceram até ao rosto até encontrar os lábios dela. Com uma sensação delirante de prazer
- mesmo naquela situação perigosa - Cato beijou-a de leve, deliciado com o calor da sua respiração e o peito dela encostado ao seu. Lavínia correspondeu-lhe ao beijo,
primeiro suavemente, até que penetrou com a língua na boca dele. Cato sentiu uma onda de êxtase invadir-lhe o corpo.
- Olha, não está aqui ninguém - disse a segunda sentinela, impacientemente.
- Talvez.
- Não vale a pena andarmos aos tropeções na escuridão à procura de alguém. Esquece isso.
A segunda sentinela abandonou o local. Após uma curta hesitação, o primeiro afastou-se relutantemente do carro e calcorreou o caminho de volta à corda do perímetro,
rogando pragas ao seu companheiro.
Debaixo do eixo do carro, Cato deixava-se levar pelas sensações de uma paixão que nunca antes experimentara. A sua mão direita deslizou lentamente pela curva sedosa
das ancas em direcção ao interior das coxas. Ela cerrou as pernas e afastou-se dele.
- Não! - sibilou Lavínia.
- Porquê?
- Aqui não!
- Qual é o problema deste sítio? - perguntou Cato, em desespero.
- É demasiado frio e desconfortável. A ama arranjou-nos um lugar onde não seremos incomodados. - Apertou-lhe a mão. - Um lugar mais aconchegado, onde poderemos conhecer-nos
melhor. - Vem.
- Flávia? - pensou Cato, em voz alta. - Flávia combinou isto? Porquê?
- Shhh!
Lavínia puxou-o pela mão e forçou-o a sair de debaixo do carro. Detiveram-se perto do limite dos carros, atentos a qualquer ruído, até alcançarem em silêncio a parte
traseira de uma tenda. Ela tinha soltado uma das costuras de modo a criar uma pequena abertura no pesado couro. A escuridão no interior era quase impenetrável, mas
Lavínia parecia saber por onde conduzi-lo, e assim, guiou-o pela mão. No chão, a relva deu lugar a uma secção de madeira que fez Cato tropeçar, quase caindo em cima
de Lavínia.
- Desculpa - sussurrou. - Estamos a ir para onde?
- Para o lugar mais sossegado que pudémos encontrar.
- Pudémos? Quem mais?
- Eu e a ama. Por aqui, vem.
Atravessaram um longo corredor com abas de tenda pendentes que conduziam a aposentos privados, até desembocarem num largo espaço em que se encontravam as formas
escuras de uma secretária de campanha, vários bancos e divãs. Pouco mais era discernível na escuridão. Cato só teve tempo de se aperceber de estar a ser empurrado
para um divã confortável, e dando suaves risadas, Lavínia caiu em cima dele. De imediato, os lábios dele procuraram os dela e beijou-a com uma paixão ardente que
se apoderou de todas as fibras do seu corpo. Cato, ao apertá-la contra si, retirou-lhe a fita de seda da cabeça e acariciou com as mãos o longo cabelo. De súbito,
Lavínia endireitou-se numa posição em que ficou sentada sobre o tronco dele.
- O que foi?
- Shh! Não te mexas. - Pôs-lhe um dedo sobre os lábios e, com a outra mão, explorou-lhe o corpo até alcançar a virilha. Riu-se ao descobrir que estava excitado.
- Queres fazê-lo?
Cato balbuciou uma resposta afirmativa.
- Está bem. Não planeava deixar-te, mas primeiro preciso de ir buscar uma coisa.
- O quê?
- Uma coisa que impede bebés.
- Temos que parar agora? - perguntou Cato, em desespero, acariciando-lhe as pernas. - Por favor.
- Típico dos homens! - Deu-lhe uma suave palmada nas mãos, mas não parecendo que o repreendia totalmente.
- Vocês não têm que viver com as consequências, nós sim. E não quero ficar grávida.
- Sabes, não tenho que me... vir dentro de ti. - disse Cato timidamente.
- Oh claro! É o que todos dizem. "Consigo controlar-me, a sério que consigo", mas quando chega a hora - catrapuz! E o que acontece depois à pobre rapariga?
- Não demores - disse-lhe Cato, algo surpreendido com a sua frontalidade.
- Tem calma. Volto num instante.
Lavínia saiu de cima do seu peito, deu-lhe um último beijo e desapareceu na escuridão, deixando Cato sozinho, num estado de tremenda excitação. Permaneceu imóvel,
de olhos fechados, coração aos pulos, os pensamentos concentrados naquele último beijo e no choque que sentira ao contacto da mão dela no seu corpo. Queria guardar
este momento na memória para sempre, e, por isso, abriu os olhos para fixar o mais detalhadamente possível a divisão. Agora que a sua visão se acostumara ao escuro,
conseguia discernir melhor o ambiente que o envolvia e ficou a observar com curiosidade os ornamentos decorativos.
Lavínia tinha partido há já algum tempo, e a dúvida começou lentamente a invadir-lhe a mente. Pensava se deveria ir atrás dela. Certamente que não poderia levar
todo este tempo? A não ser que planeasse usar a forma mais extrema de prevenção que era não aparecer de todo. Isso não teria piada nenhuma, pensou. De repente, um
sexto sentido alertou-o para a presença de outro indivíduo na divisão. Estava prestes a murmurar o nome de Lavínia quando se apercebeu de que o som de uma parte
da tenda a ser aberta vinha da direçção oposta àquela que Lavínia seguira.
Ficou paralisado, mal ousando respirar, apurando os olhos e os ouvidos na direcção do local onde uma forma humana penetrara no interior, por uma abertura da tenda.
Mal deu entrada, a forma ficou imóvel e depois agachou-se. Nesse momento, Cato sentiu medo por Lavínia e pelo que o intruso lhe poderia fazer quando regressasse.
Mas a noite estava perfeitamente tranquila.
A figura moveu-se agilmente em direcção à mesa, coberta de papéis
de trabalho. Caminhou em redor, e Cato podia ver agora que o homem usava uma capa com capuz que cobria a sua forma baixa e atarracada. Movia-se com a agilidade de
um gato. Na sua mão, empunhava a forma inconfundível de uma espada curta de legionário. Cato possuía apenas uma adaga, embainhada na sua coxa esquerda. O intruso,
não mais do que a dois metros de distância, virou-lhe as costas e tacteou às cegas debaixo da mesa. Agarrou nalguma coisa e puxou. Lentamente, um objecto de peso
foi arrastado - o homem fazia uma pausa cada vez que raspava os painéis de madeira do chão - Cato viu então que se tratava de uma arca. Deixou-se ficar imóvel, tal
era o seu medo, e mal ousava respirar, tão forte era o pulsar do sangue nos seus ouvidos. O intruso debruçou-se sobre a arca e ocupou-se da fechadura de metal até
que se ouviu um leve estalido, sinal de que o mecanismo fora aberto. O homem explorou o seu interior - era evidente que procurava alguma coisa específica.
Cato apercebeu-se de repente de que o homem se iria virar e dar de caras com ele a qualquer momento. Era impossível não reparar no seu corpo estendido no divã. Cato
deslizou a sua mão esquerda até à coxa e puxou pelo cabo da adaga. Estava presa debaixo de si a ponto de requerer um firme puxão, de modo que mudou de posição para
retirá-la mais facilmente. Mas foi demasiado fácil. A arma fez um ruído estridente ao ser desembainhada. O intruso girou e ergueu a espada num único movimento, esquecendo-se
momentaneamente do treino básico que recebera
- que a ponta é mais eficiente que o gume. A espada atacou e atingiu a borda do divã por cima da cabeça de Cato, fazendo saltar pedaços. Cato defendeu-se com a adaga
e atacou a forma que pairava por cima dele. A arma penetrou o vestuário e algo menos resistente por baixo.
- Merda! - praguejou o homem, ao recuar. Chocou contra a mesa. Cato correu às cegas para a esquerda, em direcção ao corredor pelo qual Lavínia o tinha abandonado,
mas bateu com a canela contra um banco. Foi assim que voou por cima do banco e estendeu os braços antes de aterrar no chão. O intruso foi atrás dele, agachado, tendo
o cuidado de não repetir o erro que cometera previamente. Cato sentiu uma dor agonizante tomar conta da sua perna, e pausou um instante longo demais antes de se
tentar levantar. O seu atacante, recuperado da surpresa inicial, correu para ele, espada apontada ao seu pescoço.
- Socorro! - gritou Cato, e instintivamente rolou para debaixo da mesa. - Socorro!
- Cala-te, cabrão! - sibilou o homem, e por um instante, devido ao choque, Cato calou-se, mas apenas por um instante. A espada tentou golpeá-lo, forçando-o a rolar
até ao divã e gritar de novo.
- Socorro! Acudam-me!
Vozes ensonadas de homens arrancados ao sono soaram nos aposentos aos quais ia dar o corredor. Mais aliviado, Cato ouviu alguém chamar pela guarda. O intruso também
ouviu e deteve-se, procurando à sua volta por um caminho de fuga. Uma luz surgiu de repente defronte da tenda, e uma sentinela gritou:
- Aqui! Nesta direcção!
O atacante não perdeu tempo a correr para a abertura da tenda e ergueu a sua espada enquanto Cato se levantava do chão, perto da mesa. A ponta de uma lança desviou
a abertura da tenda para o lado e, de repente, o interior foi iluminado pela luz brilhante de uma tocha empunhada por uma sentinela que entrou. Na escuridão à sua
esquerda, ocultava-se o intruso que atacou com a espada.
- Cuidado! - gritou Cato.
A sentinela virou-se para o local de onde viera o grito e, um instante depois, foi atingido com um golpe violento na parte de trás da cabeça. Com um gemido, caiu
de joelhos e sucumbiu inanimado, perante o olhar horrorizado de Cato. Faíscas voaram com a queda da tocha no chão de madeira que rolou para junto de uma pilha desarrumada
de mapas. Quando Cato olhou para cima, a luz já esmorecia, mas conseguiu ver o intruso a virar costas e a abandonar a divisão. Sem nenhuma hesitação, foi atrás dele,
correndo para fora da tenda do legado até a uma antecâmara onde se encontravam mesas para escribas. À frente, na sua direita, o intruso rasgou a tenda e saiu pela
abertura. Da esquerda, aproximavam-se tochas, e os gritos e passos daqueles que as carregavam. Cato parou de imediato, em grande pânico.
Regressou para a tenda do legado e viu que os mapas tinham pegado fogo, chamas laranja e amarelas a devorarem a sua superfície. Do outro lado, ouviu as vozes dos
que despertaram devido à comoção. Por ali, era impossível tentar a fuga. Lançou-se para o chão no lado oposto e tentou forçar uma abertura num dos lados da tenda
de couro. Uma das pequenas estacas cedeu e rastejou por baixo. Deu por si numa cozinha, numa área de relva espezinhada - os escravos, então, não tinham direito a
luxos como um chão de madeira. Aterrorizado pela proximidade dos gritos atrás de si, Cato atravessou a cozinha até alcançar um dos lados da tenda e rolou por baixo,
para o exterior.
Estava cá fora, deitado de costas, a olhar para as estrelas que cintilavam pacificamente do alto de uma serena noite nocturna. Pôs-se de pé e correu para a brecha
atrás das tendas dos tribunos e dos carros de artilharia, ziguezagueando por entre eles até perder de vista a tenda do quartel-general. Encostando-se ao carro de
uma balista, fez uma pausa para recuperar o fôlego. O seu coração batia desordenadamente,
e todo ele tremia, respirando com grande dificuldade. Na direcção do quartel-general, uma cintilação laranja transformou-se em chamas, e vozes gritavam por água
e por mais guardas.
Seria péssimo ser descoberto a rondar perto do quartel-general, apercebeu-se Cato. Virou-lhes as costas e correu por entre os carros até emergir no lado mais distante
do acampamento, no espaço frente à paliçada de turfa. Envolvendo-se na sua capa, virou à esquerda e dirigiu-se para a linha das tendas dos centuriões, no que esperava
fosse um passo normal. Se alguém o decidisse parar e interrogar, sabia que nesse momento não seria capaz de dar uma resposta credível para a sua presença.
As sentinelas da paliçada viraram-se para observar o que se passava dentro do acampamento, e foi a distância entre eles, assim como a escuridão, que protegeu Cato
e, assim, continuou a caminhar sem obstáculos. Após uns momentos de grande nervosismo, alcançou o estandarte da coorte e apressou-se a chegar às tendas da Sexta
centúria. Ao longe, na noite, soaram as trompas exigindo a presença da coorte de vigia. Sem olhar para trás, entrou na tenda da sua secção e enrolou-se no seu manto,
sem remover a capa ou as botas.
- És tu, Cato? - perguntou Pirax, numa voz ensonada vinda da escuridão.
Cato permaneceu imóvel e silencioso.
- Cato?
Não servia de nada ignorar Pirax. O melhor era responder-lhe.
- Sim?
- O que se passa lá fora?
- Como é que queres que eu saiba?
- Acabaste de entrar.
- Fui apenas às latrinas, mas parece que há algum fogo para os lados do quartel-general.
- Imbecis que não têm cuidado nenhum - bocejou Pirax.
- Acorda-me se o fogo chegar à nossa tenda. Boa noite, então.
- Boa noite - murmurou Cato, fingindo uma voz ensonada.
Todavia, no resto da noite, o sono não viria para Cato, que ficou a
observar o tecto da tenda, tomado por um absoluto terror.
XXIII
Com as mãos nas ancas e a cabeça inclinada para trás, Vespasiano olhou para a noite estrelada através de um buraco chamuscado no tecto da sua tenda. Baixou os olhos
e observou o círculo silencioso de homens à volta da secretária. As sentinelas permaneciam de olhos cabisbaixos, envergonhados.
- Como acham que o nosso ladrão conseguiu acesso a esta tenda? Já que clamam ter sido tão conscienciosos a desempenhar o vosso dever.
- Senhor, mantínhamos uma forte vigilância, como sempre
- explicou o centurião. - Quatro homens à entrada, outros quatro em patrulha no exterior da tenda. Examinei em redor e descobrimos dois sítios onde a tenda foi rasgada.
Suspeito que o nosso homem usou essas aberturas para entrar e escapar, senhor.
- É isso que suspeitas? - disse Vespasiano amargamente. - Isso é brilhante, centurião, brilhante. E enquanto o nosso homem estava ocupado a rasgar a tenda, onde
estavam vocês?
- Senhor, recebíamos ordens do tribuno.
- Qual tribuno?
- Gaio Plínio, senhor. Deveres de tribuno durante a noite. Apareceu e exigiu uma inspecção completa.
- E porque supões ter ele feito isso?
- Peço desculpa, senhor, mas falávamos sobre a invasão.
- Ah, sim? E que diziam vocês?
- Bem, senhor... - O centurião mostrou-se embaraçado. - Alguns dos rapazes ouviram que existem monstros a viver nas ilhas.
- E onde poderão eles ter ouvido tais disparates? - perguntou Vespasiano, tentando ocultar a sua ansiedade.
O centurião encolheu os ombros.
- Devem-se a demasiado vinho, senhor.
Vespasiano respirou fundo.
- Então Plínio estava a disciplinar-vos por falarem como um bando de mulheres velhas, e é nessa altura que acham que o intruso forçou a abertura na tenda?
- Sim, senhor.
- Bem, tu e a guarda serão punidos. E serás despromovido a centurião de linha.
Ao observá-los a encaminharem-se para o exterior, Vespasiano pensou que o último castigo que aplicara era o mais adequado, visto que a guarda do quartel-general
era considerada, e com razão, como um trabalho agradável sob circunstâncias normais; melhor comida, tarefas leves e uma posição de relativa segurança no campo de
batalha. E agora um deles encontrava-se na tenda do hospital, gravemente ferido. O homem fora encontrado inconsciente e a sangrar profusamente de uma ferida na parte
de trás da cabeça. Ainda estava vivo, mas o cirurgião não parecia convencido de que iria sobreviver durante a noite. Era lamentável, visto que o homem poderia ter
visto o seu atacante e ser capaz de identificá-lo. E isso era o que Vespasiano precisava desesperadamente.
Quando entrou na divisão, mal arranjado como os outros que tinham sido despertos pelo barulho vindo da tenda de comando, a primeira coisa que fez foi verificar a
sua arca de documentos. Bastou um olhar para perceber que o pequeno pergaminho que continha o selo confidencial de Cláudio tinha desaparecido. Tudo o resto permanecia
na mesma; isso significava que o ladrão sabia exactamente o que procurava, e agora tinha-o roubado. Alguém no acampamento tinha na sua posse um precioso documento
político que poderia ser usado para derrubar o Imperador. Não que Vespasiano necessitasse do documento - já há muito tempo que memorizara o seu conteúdo e feito
os seus planos. Mas agora outra pessoa tinha acesso à informação.
E o que lhe aconteceria mal chegasse palavra a Roma, a Cláudio, que permitira que o pergaminho fosse roubado? Nenhuma desculpa seria aceite, era sua responsabilidade,
e foi por essa razão que puniu a guarda tão severamente; teriam que partilhar com ele o sofrimento.
O ladrão tinha que estar ainda por perto. Seria alguém da Legião, provavelmente o traidor referido na carta de Pláucio. Talvez ainda houvesse tempo para recuperar
o pergaminho, antes de a Legião alcançar a costa e ser absorvida pelas unidades congregadas para a invasão. Algum sangue tinha sido descoberto perto do divã, assim
como outras manchas perto da mesa, deixando uma trilha que ia da tenda até ao solo batido no exterior, onde a pista desaparecia. O homem fora ferido então. Um
facto muito estranho, pensou Vespasiano. Se a sentinela tinha sido ferida pelas costas à entrada, era evidente que tinha sido surpreendida. O que levava a deduzir
que o intruso tinha sido ferido por outra pessoa.
O queteria acontecido a Lavínia? Cato contorcia-se de medo e preocupação. Ela nunca mais voltara, mas certamente que não encontrara o intruso no caminho enquanto
ele tinha esperado na tenda. Rezava para que ainda estivesse viva e bem. Não podia arriscar aproximar-se do quartel-general e tentar vê-la por uns instantes. Aquele
guarda conseguira olhá-lo bem na cara e seria capaz de identificá-lo sem problemas. Teria que fazer chegar a palavra a Lavínia através de Flávia; uma mensagem tinha
que lhe ser enviada o mais cedo possível. Mas não sabia até que ponto a mulher do legado conhecia a situação, e se poderia confiar nela. Se Vespasiano descobrisse
que tinha estado na tenda, então tudo apontaria para que estivesse directamente envolvido no roubo do que quer que fosse que o intruso tinha retirado da arca. Estava
metido num grave problema e precisava de um aliado. Se pudesse ver Flávia - contar-lhe tudo o que tinha visto - então talvez pudesse protegê-lo. Ela tinha feito
amizade com ele e agora necessitava dela. De manhã, iria tentar vê-la.
Na manhã seguinte, Cato foi rudemente desperto de um sono perturbado, ao ser abanado pelos ombros. Olhou com ar esgazeado para a face de Pirax.
- O...O quê?
- O centurião exige a tua presença.
Cato apoiou-se nos cotovelos, e ao olhar para a abertura da tenda, viu que o sol nascera há um considerável tempo. Sacudiu a cabeça e levantou-se.
- Já foi há muito tempo que soaram as primeiras trompas?
- Há já algum. - Pirax encolheu os ombros. - Perdeste o pequeno-almoço e estamos prestes a arrumar as tendas.
- Porque é que ninguém me acordou?
- Já és um adulto, rapaz, cada um cuida de si próprio.
- Onde está o centurião?
- Na tenda dele. Se fosse a ti, aparecia com ar apresentável. Macro não parece do tipo de permitir desleixos... - Pirax olhou para Cato.
- O que aconteceu à tua mão?
Cato olhou para a mão e viu que o polegar e o dedo indicador estavam sujos de sangue seco.
- Oh, isso! Eu... bem, consegui um pedaço de carne de um
dos animais que os muleteiros abateram ontem à noite. Assei-o na fogueira.
- Foram simpáticos - concedeu Pirax. - Mas podias ter-te limpado depois.
- Peço desculpa - resmungou Cato. - Tenho de ir agora.
Irrompeu pela abertura da tenda para o exterior, e lavou as mãos
com alguma água de um cantil pendurado na armação da tenda. O sangue do intruso encrustara e teve que arranhar com as unhas até ficar limpo. Lembrou-se, chocado,
de que a adaga também deveria estar suja de sangue, e então retirou-a para a encontrar toda manchada de sangue seco. A arma levou mais tempo a ser limpa, e na altura
em que Cato deu entrada na tenda de Macro, o centurião fumegava de impaciência. Piso encontrava-se ao fundo da tenda, sobrancelhas erguidas em sinal de aviso.
- Mas porque raio demoraste tanto? Chamei por ti há séculos.
- Peço desculpa, senhor.
- E então?
- Senhor?
- A que se deve o teu atraso? Explica-te.
- Demorei-me nas latrinas, senhor, deve ter sido alguma coisa que comi ontem à noite.
- Pois então toma mais cuidado com o que comes, no futuro
- disse-lhe Marco impaciente. - Bem, temos trabalho-a fazer. O legado destacou a nossa centúria da Legião para desempenhar deveres de escolta. Recebi as ordens de
manhã. Devemos avançar à frente da Legião até Durócortoro e encontrarmo-nos com algum administrativo importante. Daí devemos escoltá-lo até ao quartel-general do
general Pláucio em Gesoriaco, e ficamos por aí. Uma vez que temos que levar avanço em relação à coluna, convém estarmos prontos a tempo. Já dei ordens para que o
carro fosse carregado e preparado. Quero que requisites vinho e outros acepipes para o nosso convidado. O contramestre já foi avisado. Piso, vai e reúne os homens;
quero as tendas desmontadas e arrumadas e os sacos prontos antes do próximo toque. Agora saiam daqui, ambos.
Lá fora, Cato olhou para Piso com um olhar inquisidor.
- Teve uma péssima manhã - sussurrou Piso. - Passou-se alguma coisa ontem à noite no quartel-general.
- O que se passou?
- Um ladrão tentou roubar o legado. Conseguiu ferir um dos guardas e escapar. Agora Vespasiano descarrega em cima dos oficiais, por os seus homens serem incapazes
de garantir uma vigilância eficaz.
- Oh. E alguém sabe o que foi roubado?
- Nada de valor, aparentemente. Mas o pobre rapaz que descobriu o ladrão não viverá por muito mais tempo.
- É triste. - Cato tentou soar preocupado, não conseguindo evitar sentir-se aliviado com as notícias, mas depois a sua imaginação trouxe-lhe a imagem da sentinela
ferida, coberto de ligaduras e à beira da morte, o que o fez sentir uma grande vergonha e culpa.
- Não deixes que isso te afecte muito, filho. - Piso pôs-lhe a mão no ombro. - São coisas que acontecem. Felicita-te por não teres sido tu no lugar dele.
O tribuno repousou o queixo sobre a palma da mão, e fitou Pulcher que estava sentado num banco a tratar do ferimento na perna. A coxa tinha sido perfurada com a
profundidade de um dedo e tinha sangrado profusamente, até ter conseguido afastar-se da tenda o suficiente para aplicar pressão na ferida. Pulcher coxeara de volta
para a tenda do tribuno, onde agora estava sentado a aplicar uma ligadura na área. Felizmente, a ferida fora elevada o suficiente na perna para poder ser oculta
debaixo dos calções, assim, ninguém saberia que tinha sido ferido. Mas o dia de marcha seria pura agonia, reflectiu o tribuno com um sorriso. Isso encorajaria o
homem a não dar nas vistas da próxima vez - se é que haveria uma próxima vez. Vespasiano distribuíra ordens para duplicar a guarda e a partir de hoje, o acesso à
tenda de comando seria praticamente impossível. O homem à sua frente desconhecia ainda que seria necessária outra tentativa.
- Deves estar ansioso por regressar a Roma - perguntou-lhe o tribuno, servindo-lhe mais um copo de vinho.
- Podes crer! - resmungou Pulcher. - Já estou farto deste ridículo disfarce. Quero voltar ao meu posto de soldado.
- Não me parece que a Guarda Pretoriana seja considerada como fazendo parte do exército - respondeu-lhe o tribuno.
- É o tipo de exército que eu gosto.
- Mas tu próprio é que te ofereceste para isto.
- Sim. Mas pelo dinheiro que me foi prometido, qualquer um se teria oferecido.
- Só que nem todos têm o teu talento único para assegurar que tudo corra dentro do planeado ou encorajar os mais reservados a serem mais loquazes, ou mesmo fazer
desaparecer pessoas - esse tipo de coisas. Por falar nisso, tens a certeza de que não és capaz de identificar
o homem que viste na tenda, o que conseguiu enfiar-te uma faca tão eficientemente?
- Não. - Era visível a sua raiva. - Mas quando descobrir quem foi, irá sofrer antes de o deixar morrer. Eu encarregar-me-ei disso pessoalmente, sem encargos adicionais.
- Certifica-te de que o encontras. Se ele sabe quem tu és, pode arranjar uma maneira de te implicar comigo.
- Pouco provável.
- Jamais subestimes o poder de uma tortura eficiente para soltar línguas - avisou-o o tribuno. O legionário limitou-se a exprimir o seu desprezo antes do tribuno
continuar. - Agora, lamento ter que te dar más notícias.
- Hã?
- Não cumpriste a tua parte do trabalho.
- O que queres dizer com isso? - Pulcher apontou um dedo ao pergaminho. - É isso que querias, e agora já o tens.
- Oh, não - respondeu o tribuno. - Não me digas que realmente pensas que tive o trabalho todo de te trazer de Roma, só para que me obtivesses um pedaço de papel.
Ele alisou o pergaminho para que o outro homem pudesse ler. Mas não havia nada para ler, estava completamente em branco.
- Parece que alguém está um passo à nossa frente. Vespasiano foi esperto o suficiente para usar a sua arca como engodo. Ou, então, alguém obteve o pergaminho primeiro
que nós e deixou este no seu lugar.
XXIV
A partida da Sexta centúria, adiantada em relação à coluna principal, causou alguma excitação para aqueles que a testemunharam, e não menos aos próprios homens da
centúria. Em circunstâncias normais, nenhum soldado raso jamais ousaria marchar para fora do acampamento, antes do oficial sénior e todo o séquito. Daí que se tornou
claro para todos que a Sexta centúria fora destacada para um dever especial. Em que consistia esse dever, era um segredo conhecido apenas pelo centurião, o seu optio
e o secretário; os legionários só podiam dar palpites, ao verem o carro do equipamento da centúria a desfilar atrás da linha de homens que seguiam a estrada em direcção
a Durócortoro. A curiosidade dos espectadores cedo desapareceu, face às ordens dos oficiais para regressarem ao trabalho e arrumarem as tendas, de modo a iniciarem
mais um dia de marcha.
A excitação da Sexta centúria era palpável e os homens especulavam ruidosamente acerca da tarefa que lhes coubera em mãos. A encabeçar a coluna, Macro não podia
deixar de ouvir as conversas atrás dele, com o intuito propositado de lhe chamar a atenção. Esboçou um pequeno sorriso perante a mais que óbvia tentativa deles de
obter informação. Eles que gozassem estes momentos ainda, que mais cedo ou mais tarde iriam saber. E não valia a pena ordenar-lhe que se calassem como pequenas crianças
e obrigá-los a uma marcha em silêncio. Enquanto se sentissem felizes, Macro estava preparado para ser indulgente com eles. O centurião estava contente por ter sido
destacado da Legião; já não teria que seguir atrás das mesmas costas que seguira durante mais de trezentos quilómetros. Não mais teria que aturar atrasos comentários
frustrantes devido a passagens estreitas, nem teria que esperar pacientemente para ser liderado até à sua área de tenda por membros do séquito de oficiais, com ar
empertigado e assumindo-se como pessoas importantes.
À sua frente estendia-se uma estrada desocupada, numa linha mais ou menos regular, em direcção ao horizonte. O céu surgia, por cima dele, claro e de um azul profundo,
e o ar vibrava com a canção dos pássaros. Era uma daquelas manhãs que faziam Macro sentir-se, no seu íntimo, feliz, simplesmente pelo facto de estar vivo.
O que tornava mais invulgar e deslocada a aparência do optio, a marchar ao lado com uma expressão abatida e olhos cabisbaixos, fixos na estrada, alheado do mundo
sereno à sua volta.
Macro recuou um passo e deu-lhe uma palmada nos ombros.
- Mas que se passa contigo esta manhã, Cato?
O rapaz mostrou-se bastante surpreendido com esta abrupta intrusão nos seus pensamentos.
- Senhor?
- Perguntei-te o que se passa.
- O que se passa, senhor? Não se passa nada.
- Exactamente! - concordou Macro. - Por isso, sorri e aproveita a vida. Não serão muitas as vezes que irás conseguir participar em destacamentos. Mesmo que - e aqui
baixou a voz - mesmo que as nossas ordens sejam para servir de ama-seca a um administrativo qualquer e escoltá-lo até ao quartel-general do exército.
- Se assim o diz, senhor.
- Sim, digo, rapaz. E acredita em mim, sei do que falo. Agora vê se te animas e tenta gozar um pouco mais as coisas à tua volta. Levas a vida demasiado a sério,
Cato.
O optio lançou-lhe um olhar cheio de amargura.
- Isso é porque de momento acho a minha vida demasiado séria, senhor.
- Ainda andas na lua por causa daquela rapariga? - Macro riu-se, antes de lhe dar uma cotovelada. - Então e como correram as coisas ontem à noite?
Cato ficou tão alarmado que quebrou o passo por um instante, fazendo com que a linha atrás lhe lançasse pragas. Retomou a sua posição ao lado do centurião.
- E então? - Macro piscou-lhe o olho. - Conseguiste o que querias?
- Não, senhor.
- E porque não? Não me digas que te foste armar em romântico e poético. Não fizeste isso, pois não? Por favor, diz-me que não.
- Não, senhor. - Cato olhou para o chão, receando não ser capaz de ocultar a verdade a Macro. - Fomos interrompidos antes que... pudesse acontecer alguma coisa.
Oh, isso é uma pena. - Macro acenou com a cabeça com um ar compreensivo. - Então mas que foi que aconteceu?
- Nós tínhamos combinado um encontro perto dos carros nas traseiras das tendas do legado. Estava tudo a correr muito bem entre nós quando se deu toda aquela comoção
e gritos. Teríamos ignorado todos e continüãdo em frente, mas Lavínia ouviu a sua ama chamar por ela.
- Podiam ter feito as coisas de forma rápida - sugeriu Macro.
- Nem houve tempo para isso, senhor - lamentou Cato. - Saiu a toda a pressa, sem sequer combinar um próximo encontro. E agora fui enviado para cumprir deveres de
escolta, e ela ficou lá presa.
- Não fiques assim, rapaz, tenho a certeza de que vai manter o lugar quente para ti.
- Sim, senhor.
- Então quer dizer que estavas lá quando o ladrão foi descoberto. Conseguiste ver alguma coisa?
- Nada, senhor. Mesmo nada. Limitei-me a sair dali para fora e voltei para a minha cama.
- Parece que perdeste a diversão toda.
- Sim, senhor - respondeu-lhe Cato, calmo a ponto de Macro pensar que o rapaz ainda estava obcecado com o seu primeiro amor. Foi sensível o suficiente para tentar
distrair Cato das suas mágoas amorosas. Macro agarrou na primeira coisa que lhe veio à cabeça.
- Que tal praticarmos as minhas letras? Dizes uma palavra e eu soletro. Está bem?
- Como quiser, senhor.
Enquanto Macro se atrapalhava todo, dentro das suas novas capacidades, a soletrar palavras como "baluarte", "sentinela" e "dardo", Cato roía-se por dentro de ansiedade.
Se a sentinela recuperasse dos seus ferimentos na cabeça, seria uma questão de tempo até que a investigação apontasse para ele. E o que aconteceria então? Tortura,
confissão forçada, e uma morte certa, humilhante. Mas se Lavínia se encontrava em segurança, confirmaria a sua versão dos acontecimentos. A não ser
- ocorreu-lhe este pensamento desagradável - a jnão ser que temesse ser implicada na história. E quanto a Flávia? Afinal de contas, tinha sido ela a combinar o encontro.
Podia negar a versão de Lavínia exactamente pelas mesmas razões. Enquanto estivesse longe da Legião, não poderia saber como tinham evoluído as coisas.
- Cato? - O centurião cansara-se rapidamente de soletrar palavras.
- Senhor?
- Este homem com quem nos vamos encontrar......
- Narciso?
- Fala mais baixo - sibilou Macro. - Não é suposto eles saberem.
- Desculpe, senhor. Mas que tem ele?
- Alguma vez deste de caras com ele no palácio?
- Sim, senhor. Era um amigo íntimo de meu pai, ou pelo menos tinha sido, até se ter tornado rico.
- Como é que ele é? - perguntou Macro, que acabou por notar a expressão de curiosidade no rosto do optio. - Apenas quero saber como lidar com ele antes de nos encontrarmos,
para não entrarmos com o pé errado, apenas isso. Se temos que protegê-lo nos próximos dias, então não quero correr riscos e zangá-lo, ainda mais fazendo ele parte
do círculo íntimo do Imperador. Não que tenha medo dele ou coisa parecida, afinal de contas não passa de um liberto. Quero apenas certificar-me de que é feliz enquanto
estiver a nosso cargo. Mal não nos faz se chegar a gostar de nós. Vá, conta-me coisas sobre ele.
- Bem, senhor... - Cato pensou por um momento. Isto não iria ser fácil. O que sabia de Narciso era longe de ser elogioso, e fora sensato o suficiente para guardar
para si o que pensava dele. A frieza com que Narciso virara costas ao pai de Cato nos últimos anos de amizade não deixara lugar para dúvidas de que Cato não receberia
favor nenhum da figura principal do círculo íntimo do Imperador. Para além de Narciso, apenas Messalina, a esposa ambiciosa e despreocupada de Cláudio - era segunda
ao Imperador em poder.
- E então?
- É um bom homem, quero dizer, um homem brilhante - senhor. Pode parecer um pouco frio e distante a princípio, mas isso deve-se provavelmente ao facto de ser um
homem tão importante e ocupado. Costumavam dizer no palácio que tinha mais inteligência e trabalhava mais do que qualquer outro homem no Império. Todos o respeitávamos
- concluiu Cato, com tacto.
- Está bem, isso tudo pode ser muito bom, mas o que quero saber é como ele é como homem. Que devo fazer para me dar bem com ele?
- Dar-se bem com ele? - Cato ergueu as sobrancelhas.
- Sim, o que quero saber .... Gosta de boas piadas? Conheço muitas que lhe poderia contar.
- Não, senhor. Por favor, não tente ser engraçado com ele - implorou-lhe Cato, a imaginar um homem sofisticado e cosmopolita a ser massacrado com o sentido de humor
rústico do exército. - Limite-se a agir naturalmente, senhor. Aja de modo profissional e não se ponha no caminho dele. E, mais importante, tenha cuidado com o que
diz à frente de Narciso.
XXV
Mal surgiu a alvorada, Flávia sentou-se à sua mesa de trabalho portátil e remexeu nalguns papéis. Da tenda ao lado, conseguia ouvir Tito perdido de riso, divertindo-se
com a ama que tentava dar-lhe a refeição matinal. Flávia tencionava pôr em dia correspondência que planeara escrever desde a partida da Legião do Reno. Já tinha
enviado uma carta a um parente distante, comandante de uma unidade de cavalaria que iria integrar a força invasora, na esperança de se encontrar com ele quando a
Segunda legião chegasse a Gesoriaco. E havia pessoas em Roma que desejava informar do seu regresso. E instruções tinham que ser dadas ao intendente para preparar
a casa em Quirinal, assim como ao mordomo da villa de Vespasiano, em Campânia. Ambas as casas precisavam de ser avisadas com grande antecedência, de modo a estarem
prontas para receber Flávia e o seu séquito.
Mas essas cartas teriam que esperar até que a presente tarefa estivesse meticulosamente completada. Molhou a ponta do estilete no tinteiro e continuou a escrever
com grande cuidado, fazendo pausas ocasionais para copiar um ou outro detalhe do mapa no pergaminho aberto à sua frente. Uma saudação foi emitida à entrada da sua
tenda, e Flávia rapidamente escondeu os papéis numa pilha desordenada e observou Vespasiano a dar entrada. Flávia sorriu e depôs o estilete, levantando-se para lhe
dar um beijo.
- Receio que tenhas que preparar já a tua bagagem. - Vespasiano pediu-lhe desculpas. - Nem mesmo à mulher do Legado é permitido que atrase a Legião.
- Mas, certamente, depois do incidente da noite passada, vais permitir uma pausa para que recuperemos.
- Recuperemos do quê? Sono perdido faz parte da vida de um exército.
- Não pertenço ao exército - protestou Flávia.
- Não, mas estás casada com ele.
- Bruto! - Flávia deitou-lhe um olhar zangado. - Eu sabia que devia ter-me casado com um velho senador gordo com interesse por vinicultura. Em vez de ter que me
arrastar por terras bárbaras e selvagens com um homem que pensa que ser soldado é a única coisa que importa.
- Nunca te obriguei a nada - disse-lhe Vespasiano, calmamente.
Flávia tomou a sua face entre as mãos e olhou-o bem nos olhos.
- Estava apenas a brincar contigo, idiota. Sabes porque me casei contigo. Por amor, por mais antiquado que isso seja.
- Mas tu realmente podias ter feito um melhor casamento.
- Não, não podia. - Flávia beijou-o. - Um dia, terás um poder que nem nos teus melhores sonhos concebes. - Garanto-te.
- Essa conversa é perigosa, Flávia. Não quero ouvir-te falar nisso. É demasiado perigoso pensar sequer nessas coisas, nos tempos que correm.
Flávia fitou-o nos olhos e sorriu.
- Tens razão, claro. De agora em diante, terei mais cuidado com o que digo. Mas lembra-te disto, a História não te recordará apenas como um comandante de legiões.
Eu própria encarregar-me-ei disso, se mais ninguém o fizer. Devias ser mais ambicioso. Ou ainda continuas agarrado à tua modéstia republicana?
- Talvez. - Vespasiano encolheu os ombros. - Mas neste momento, acho que já é uma sorte se conseguir permanecer no comando da Segunda legião até ao fim do mês.
- Porquê, querido? O que se passou?
- Aquele incidente, na noite passada...
- O incêndio?
- A pessoa que causou o incêndio. O ladrão. Roubou algo muito precioso, algo que Narciso me confiou para manter em segredo. Quando Narciso descobrir que foi roubado,
não me parece que esteja com a disposição para ouvir desculpas.
- Não tens culpa de que tenha sido roubado! - protestou Flávia.
- O que quer que seja. Não pode substituir-te por causa disso.
- Pode sim. E fa-lo-á. Tem que o fazer.
- Porquê? O que pode ser assim tão importante?
Vespasiano permitiu-se um leve sorriso.
- Não posso dizer-te. As ordens foram bastante explícitas nesse ponto.
- Ah, sim? - perguntou Flávia, faces coradas de indignação.
- Quando nos juntarmos ao resto do exército, deixa-me ter uma palavra com Narciso. Era um bom amigo nos tempos do palácio.
- Preferia que não comentasses nada com ele. Deixa-me continuar a investigação dentro da Legião. Haveremos de encontrar o ladrão, mais cedo ou mais tarde.
Como está a sentinela?
- Muito mal. O médico diz que perdeu muito sangue. Não está em condições de viajar, e a jornada de hoje pode ser o fim dele.
- Então mas porque não o deixamos em Durocórtoro até que recupere e possa seguir a Legião, caso viva?
- Podíamos fazer isso, e dispensar alguns homens para carregar a liteira mal ele estivesse em condições. Pensei nisso. Mas já não estaria aos cuidados do médico.
- O que é bom, se metade das coisas que ouvi são verdade. Olha, porque não deixamos Partena a cuidar dele? Recebeu formação para isso. Já o vi a trabalhar com outros
escravos e parece-me competente.
- Está bem. - Vespasiano acenou com a cabeça. - O homem tem mais hipóteses de sobreviver deitado numa cama do que aos saltos num carro de viagem. Agora, se não for
muito trabalho, agradecia que pudesses começar a arrumar de imediato os teus objectos pessoais.
- Muito bem.
- Ah. E mais uma coisa.
- Sim?
Vespasiano remexeu no interior da túnica e retirou uma pequena fita de seda.
- Já alguma vez tinhas visto isto?
- Deixa-me ver melhor.
Flávia examinou a fita antes de responder:
- Pertence a Lavínia. Onde a encontraste?
- Na minha tenda de comando, no meu divã. Mas não há nenhuma razão para lá estar, nem me recordo de vê-la quando deixei a tenda ontem à noite. Estranho, não achas?
- O que é estranho?
- Lavínia não tem razão nenhuma para ter estado na minha tenda. Sabes alguma coisa sobre isto?
- Porque deveria? Afinal, trata-se da tua tenda.
- Mas é tua serva. - Vespasiano parecia ausente, de olhar perdido e com uma expressão estranha, que alarmou a sua mulher.
- O que foi?
- Provavelmente nada. Mas acho que ainda sou capaz de ter uma palavra com essa rapariga. Passa-se aqui algo de estranho.
XXVI
- E se não estou enganado, debaixo desse elmo monstruoso encontra-se o jovem Cato. - Narciso sorriu e estendeu as mãos.
Com uma relutância instintiva, Cato correspondeu-lhe à saudação e Narciso agarrou firmemente as mãos do jovem, enquanto perscrutava os seus olhos.
- É bom ver-te. Mas o que fazes trajado como um soldado está para além da minha compreensão.
- Eu sou um soldado, senhor - disse-lhe Cato numa voz formal.
- Como se deverá lembrar, foi-me concedida a liberdade na condição de que me alistasse na Legião.
- Recordo-me vagamente de certos pormenores. - Narciso respondeu-lhe levianamente, como se tentando lembrar-se de um acepipe que comera em tempos. - E estás a gostar
da vida no exército? Aposto como um rapaz da tua idade está a apreciar a vida ao ar livre.
- Não me posso queixar, senhor - disse-lhe Cato, engolindo a afronta de ser referido como um rapaz à frente do seu centurião. - Claro que é fisicamente mais exigente
do que a vida no palácio.
Narciso esboçou um leve sorriso.
- Receio que tenhas razão, já não faço exercício há anos. Fiz da política a minha única ocupação desde há uns tempos. Mas não importa. Estou contente por voltar
a ver-te, rapaz. Confio que ele esteja à altura, centurião?
- Sim, senhor. O rapaz tem tudo para ser um excelente optio. Deve estar orgulhoso pelo palácio produzir tão bons soldados como o jovem Cato.
- Agradecia-lhe que me refrescasse a memória. O que é exactamente um optio?
- É o meu segundo em comando, senhor - respondeu-lhe Macro,
chocado com a ignorância do civil. - É bom no trabalho.
- É tão gratificante saber que até o exército sabe apreciar o valor -de uma boa educação.
Macro corou de raiva.
- Apenas uma pequena piada, centurião. Sem ofensa.
Narciso tomou-lhe o braço e levou-o ao alojamento da estação de
muda da diligência Imperial. O administrativo Imperial era um homem de meia-idade, e os seus olhos envolvidos por linhas de rugas davam a impressão de uma vida passada
a sorrir. O seu porte era o de um homem altivo e que jamais se curvava, o próprio modo como se movia estava claramente à altura da sua inteligência. E no entanto,
era uma inteligência seca e cáustica que indicava uma mente excelsa na arte de mandar outros abaixo. Macro comprimiu os lábios; enquanto o homem estivesse sob sua
protecção, teria que suportar as farpas e desrespeitos. Narciso, tinha concluído, era um exemplo típico da sua classe. Tratava os seus superiores sociais como intelectuais
inferiores e - como o tratamento com Cato evidenciara - mostrava uma inclinação para tratar intelectuais ao seu nível como pessoas de estatuto social inferior. Não
era possível vencer este tipo de homem. O melhor era ignorá-lo, dentro dos possíveis.
- Quais são as tuas ordens, centurião? - perguntou-lhe Narciso, quando já se encontravam dentro do alojamento. - As tuas ordens exactas?
- Servir-lhe de escolta até alcançar o corpo principal do exército, e depois esperar pelo resto da Legião numa área ainda por especificar. Foram essas as ordens,
senhor. Assim como prestar-lhe assistência em tudo o que nos for requerido.
- Por outras palavras, deves obedecer às minhas ordens.
- Sim, senhor. - Macro concedeu-lhe relutantemente. - É disso que se trata.
- Óptimo. - Narciso acenou com a cabeça. - Estou contente por ver que ao menos Vespasiano soube tornar essa parte bem clara.
Macro ficou zangado com este insulto gratuito às aptidões do seu comandante. Se tivesse vindo de um cidadão romano teria sido mau o suficiente - mas ouvir um liberto
falar nesses modos, era uma clara infracção à mais básica etiqueta social.
- Centurião, devemos pôr-nos a caminho imediatamente - ordenou Narciso, batendo-lhe com o dedo no peito, de modo a realçar ainda mais a importância da ordem. - Tenho
que alcançar Gesoriaco o mais cedo possível. Muitas coisas dependem disso. Na verdade, posso dizer-te que a campanha inteira depende disso, e mais talvez. Compreendes
o que te digo?
- Não tenho bem a certeza do que quer que eu compreenda, senhor - respondeu-lhe Macro com sinceridade. - Porquê tanta pressa?
- Essa informação só é concedida àqueles que precisam de a
saber.
- Mas uma centúria inteira para proteger um único homem?
- Basta que saibas que existem alguns canalhas políticos que prefeririam não me ver chegar vivo a Gesoriaco - e é tudo o que precisas de saber.
- Sim, senhor.
- Muito bem. - Narciso reatou a conversa. - Vamos andando. Viajo com pouca coisa; apenas os meus carregadores de liteira e um guarda pessoal. Alguns dos meus carregadores
sucumbiram a uma doença local. Vou precisar de alguns dos teus homens para substituí-los. Há duas arcas à entrada dos estábulos. Vai tratar disso, por favor, irei
juntar-me a vocês daqui a momentos.
O ranger dos dentes de Macro era quase audível ao sair do alojamento e ao aproximar-se de Cato.
- Escolhe cinco homens para o liberto. Precisa de carregadores.
- Carregadores?
- És surdo? Vai tratar disso. Os homens podem pôr os seus pertences no carro.
- Sim, senhor.
- Parece que estamos com alguma pressa em chegar à costa, por isso vamos ter que abdicar do nosso passeio agradável até à Gália. Mais valia termos ficado com a Legião
- resmungou Macro.
A liteira de Narciso consistia num modelo leve de viagem coberto, carregado por oito Núbios que se moviam com uma força e ligeireza adquiridos à custa de uma vida
inteira de experiência nesse trabalho. A liteira tomou a sua posição no meio da centúria, imediatamente seguida pelas duas arcas carregadas por cinco legionários
de expressões cheias de amargura e rancor, que acabaram por se juntar aos carregadores escravos. Estes estavam a gostar de ver alguém rebaixado ao seu nível. Ao
lado da liteira, viajava o guarda-costas: uma figura enorme, musculada, com uma couraça negra polida e uma espada curta. O seu rabo-de-cavalo, rosto marcado por
cicatrizes e pala negra no olho anunciavam ao mundo uma longa experiência na arena. De súbito, uma mão emergiu de trás das cortinas da liteira e estalou os dedos,
de modo a atrair a atenção do guarda-costas.
- Tu! Politemo! Desvia as cortinas. Sempre posso tentar gozar as paisagens desta terra selvagem enquanto marchamos. Muito bem,
centurião! - chamou Narciso. - Estamos prontos.
Macro deu a ordem para avançarem numa voz azeda, e assim, a centúria pôs-se de novo a caminho, marchando pelo portão principal de Durocórtoro, ao longo da estrada
que atravessava a cidade a direito, até alcançar o portão e o caminho que conduzia a Gesoriaco. Ao atingirem o cume de um pequeno monte, Cato olhou para trás e
viu ao longe as unidades de avanço da Legião a emergirem da estrada da floresta e a dirigirem-se para a cidade que tinham acabado de abandonar. Sentiu uma certa
aflição e ansiedade ao pensar em Lavínia, mas, depois, memórias vívidas da noite passada acudiram-lhe à mente e virou as costas, possuído por um grande medo.
XXVII
Ao meio-dia, ao ver que os carros com o equipamento e a bagagem, assim como a retaguarda da Segunda legião já tinham atravessado Durocórtoro, Vespasiano deu ordem
para uma curta pausa. O progresso tinha sido lento por causa das crianças do povoado, que decidiram, numa brincadeira, atirar pedras ao boi atrelado aos carros de
artilharia. Um mal-intencionado tiro acertara a besta nos testículos, causando um grande alvoroço, com o boi a puxar violentamente o tirante, rugindo de dor e raiva.
Ao ver que o pequeno grupo de órfãos era o responsável, a besta lançara-se atrás deles, derrubando a balista e o carro na estrada. Enquanto tentavam pacificar o
animal e limpavam os destroços, a coluna inteira recebeu ordens para parar. Por fim o carro e a balista foram levados para uma rua onde um destacamento de engenheiros
iniciou reparações, permitindo assim à coluna reiniciar a marcha.
Vespasiano cavalgou até ao local para investigar o atraso, e amaldiçoou a falta de bestas de tiro que os tinha forçado a recorrer a bois temperamentais. O animal,
confortado pelo arrieiro, foi conduzido até junto de uma pequena manada de animais coxos, destinados a servir de provisão de carne fresca para a Legião, enquanto
que ao pequeno rapaz estava a ser aplicado um raspanete de que se iria lembrar para o resto da vida. Não que isso consolasse minimamente Vespasiano, enfurecido pelo
atraso. A sua disposição ainda não tinha melhorado quando a Legião fez a pausa do meio-dia. Sentado a uma mesa, deu ordens para que chamassem a nova serva da sua
mulher.
Enquanto comia pedaços duros de galinha fria acompanhados de um vinho local sem nome - alguma vez estes gauleses aprenderiam a arte do vinho? - Lavínia foi trazida
à sua presença. Com a boca cheia, indicou-lhe que devia colocar-se perto da mesa, de onde a observou, enquanto os seus maxilares trabalhavam para despedaçar a galinha.
Era
bem bonita, pensou, agora que tinha a oportunidade de a ver de perto. Um completo desperdício como serva; podia render uma razoável soma em Roma, como cortesã.
Depois de um rápido gole de vinho para refrescar a boca, estava pronto para começar. Retirou a fita de seda da sua túnica e depositou-a na mesa. Ficou contente por
ver que a rapariga reconheceu o objecto.
- É teu?
- Sim, meu amo. Pensei que o tinha perdido.
- Estava atrás de um travesseiro, no meu divã.
Lavínia ia a retirá-lo da mesa, mas Vespasiano não a deixou, conservando a fita na mão.
- O que eu gostava de saber - Vespasiano sorriu - é como foi lá parar?
- Meu amo?
- O que estavas a fazer na minha tenda ontem à noite?
- Ontem à noite? - perguntou Lavínia, com um ar de grande inocência.
- Sim. A fita não estava lá quando abandonei a tenda. Por isso diz-me, Lavínia, e diz-me a verdade, o que foste lá fazer?
- Nada, meu amo! Juro. - O seu olhar implorava para que acreditasse nela. - Apenas entrei lá dentro para repousar por uns momentos. Estava cansada e queria um lugar
confortável para descansar. Devo ter perdido a fita nessa altura.
Vespasiano fitou-a longamente, antes de continuar:
- Querias apenas descansar no meu divã? Apenas isso?
Lavínia acenou com a cabeça.
- E não levaste nada da tenda?
- Não, amo.
- Muito bem. Toma.
Devolveu-lhe a fita e inclinou-se para trás na cadeira, a considerar as suas palavras. Podia estar a dizer a verdade, ou então podia contar uma história totalmente
diferente mediante uma certa persuasão física. Mas mal pensou em tortura, Vespasiano logo a descartou dos seus pensamentos. Não duvidava da sua eficácia em soltar
línguas, mas sabia como muitas vítimas, para se pouparem, ofereciam a versão dos eventos exigida pelos torturadores. Não era a maneira mais indicada de descobrir
a verdade. Era preciso adoptar uma outra táctica.
- Foi apenas recentemente que te juntaste à casa da minha mulher.
- Sim, amo.
- A quem pertencias antes?
- Ao tribuno Plínio, amo.
- Plínio! - as sobrancelhas de Vespasiano ergueram-se de espanto. Isso mudava muita coisa. O que fazia uma antiga escrava de Plínio na sua casa? Uma agente? Uma
espia a tentar ganhar acesso aos seus documentos? E, no entanto, olhando para ela, era difícil imaginar que fosse capaz de astúcia suficiente para o trabalho. Uma
fachada? Impossível saber, no ponto em que estava a situação.
- Porque é que Plínio te vendeu?
- Cansou-se de mim.
- Vais-me perdoar se achar isso difícil de acreditar.
- É verdade, amo - protestou Lavínia.
- Não pode ter sido apenas isso. Fala, rapariga, diz-me a verdade.
- Sim, não foi apenas isso, meu amo - admitiu Lavínia e baixou a cabeça, como Flávia lhe dissera para fazer, antes de continuar. - O tribuno queria usar-me... de
certas maneiras.
Tenho a certeza que sim, pensou Vespasiano.
- Mas queria mais do que isso, queria que tivesse sentimentos por ele. Não me podia obrigar a gostar dele, então ficou zangado comigo. E quando descobriu que amava
outra pessoa, ficou com tanta raiva que me bateu.
Vespasiano mostrou alguma compaixão para com a rapariga.
- E quem poderá ser essa outra pessoa, a que amavas?
- Por favor, amo. - Lavínia tinha lágrimas à beira dos olhos.
- Não quero dizer.
- Tens que me dizer, Lavínia. - Vespasiano debruçou-se para a frente e deu-lhe palmadinhas na mão. - Tenho que saber quem é este outro homem. É vital que eu saiba.
Sabes que posso ordenar-te que me digas o nome.
- Vitélio! - Disse-lhe sem pensar, e desmanchou-se em lágrimas, mãos a ocultarem a face.
Vitélio. Então amava Vitélio. O suficiente para agir sob as suas ordens? Um novo pensamento ocorreu a Vespasiano.
- Tens visto Vitélio desde que entraste na minha casa?
- Meu amo?
- Tu ouviste-me. Ainda o vês?
Ela acenou com a cabeça.
- Viste-o a noite passada? Na minha tenda?
Lavínia olhou-o com uma expressão chocada, e veementemente negou com a cabeça.
- Mas planeavas fazê-lo, não é verdade?
- Nunca chegou a aparecer, amo. Eu esperei, pois ele tinha prometido que ia aparecer, e continuei a esperar, na escuridão, mas não apareceu. Então fui dormir. Só
dei pela falta da fita na manhã seguinte.
- Estou a ver. Alguma vez Vitélio te fez perguntas sobre mim e a minha casa?
- Costumávamos falar. - Lavínia respondeu cautelosamente.
- Mas não me lembro muito bem do que conversámos sobre o amo e a senhora Flávia.
- E nunca te pediu para roubares alguma coisa por ele, ou pedir emprestado, da minha tenda?
- Não, amo. Nunca.
Vespasiano ficou a observá-la por um longo tempo, tentando descobrir se falava a verdade. Lavínia limitava-se a olhar para ele com um ar sincero, até já não poder
aguentar mais o seu olhar e baixar os olhos. O certo é que a história parecia ser a verdade. Mas se ainda amava Vitélio, era possível que tivesse sido persuadida
a roubar por ele, ou arranjar acesso à tenda do general de modo a que o tribuno sénior pudesse roubar o pergaminho secreto, depois de ela ter ido dormir.
- Podes ir, Lavínia. - Vespasiano dispensou-a com um gesto.
- Mas quero que te lembres disto: se Vitélio alguma vez voltar a fazer perguntas sobre mim, ou combinar outro encontro, quero que me informes de imediato. E aviso-te
que a partir de agora, se não me contares a verdade, sofrerás consequências dolorosas. Muito dolorosas. Compreendes o que te digo?
- Sim, amo.
- Óptimo. Agora podes sair.
- E então, como correu? - perguntou Flávia a Lavínia essa tarde, enquanto esperavam que as tendas fossem erigidas.
- Acho que acreditou em mim, ama. Mas porque tive que dizer que me ia encontrar com Vitélio nessa noite?
- Preferias ter-lhe dito a verdade e dizer que foi Cato?
- Não, ama. Claro que não.
- Pois então, se não queremos ver Cato envolvido, temos que arranjar outra pessoa. Vitélio era a pessoa mais indicada para ocupar o lugar.
Lavínia olhou para a sua ama com um ar surpreendido. Era óbvio que outras coisas estavam em jogo, não se tratava apenas de salvar a pele de Cato. A satisfação no
rosto de Flávia ao observar os legionários
a lutar com as cordas escondia muito mais do que alívio por ter salvo o jovem optio, e Lavínia não pôde deixar de pensar que talvez ela, e Cato, estivessem a ser
usados como peças num jogo bem mais perigoso. Flávia voltou a encarar a rapariga escrava.
- Lembra-te de manter essa versão da história, Lavínia. Se te lembrares disso, estaremos todos em segurança, compreendes? Não me peças mais explicações. Quanto menos
souberes, mais inocente aparentas ser. Confia em mim.
- Sim, ama.
XXVIII
A Sexta centúria marchava pelas paisagens luxuriantes da Gália, florescentes, com os primeiros rebentos da Primavera. Os legionários contavam anedotas e conversavam
animadamente - havia momentos em que irrompiam em coro num canto obsceno, para ajudar a passar o dia. E esta disposição permaneceu ao longo da marcha, apesar do
passo rápido que Macro estabelecera; estava ansioso por alcançar o seu destino e livrar-se do administrativo Imperial, antes que este o tentasse a algum acto de
violência. Narciso não perdera nem uma oportunidade para fazer comentários insultuosos ao exército em geral, aos seus soldados e, em particular, a Macro. O centurião
teria adorado dar um soco na boca do filho da mãe presunçoso, só para realçar o facto de que uma pessoa não devia agir com aqueles modos: "Em Roma sê romano, mas
entre o exército a atitude certa é manter a boca calada e mostrar respeito".
Sorriu com os seus pensamentos mas sabia que nunca os poderia exprimir em voz alta, ainda para mais com um confidente e amigo pessoal do Imperador. E, assim, tinha
que suportar os sarcasmos e críticas de Narciso, aparentando uma boa disposição - o destino de todos aqueles que tinham que lidar com arrivistas. Cato estava a dar-se
melhor com o atormentador, uma vez que partilharam em comum a vida no palácio, o que possibilitava uma boa conversação. No entanto, Narciso deu-lhe a entender claramente
que, independentemente do passado, existia agora um abismo social enorme entre ambos. Afortunadamente, as únicas oportunidades que surgiam para conversas eram durante
as pausas de marcha e ao final do dia, quando a centúria acampava para a noite. Nas outras alturas, Macro e Cato posicionavam-se na frente a liderarem a coluna,
se bem que um oficial mais ambicioso e hipócrita teria marchado ao lado da liteira e entretido o administrativo, usando qualquer oportunidade para lisonjeá-lo. Após
o primeiro dia, Macro insistiu
numa inspecção do equipamento das tropas durante todas as pausas de marcha. Os homens encaravam tal zelo com estranheza e curiosidade, permanecendo em silêncio enquanto
o centurião verificava as correias do equipamento e a manutenção das armas pelos soldados.
Na tarde do terceiro dia em que assumiu deveres de escolta, Macro calculou que alcançariam a costa na noite do dia seguinte, graças a um longo dia de marcha tornado
possível pela pequena formação. Se começassem de madrugada e realmente os pressionasse, conseguiriam alcançar o corpo principal do exército ao anoitecer.
- Muito bem, centurião. - Narciso acenou com a cabeça aprovadoramente. - A chegada a coberto da noite atrairá menos atenções. O que é melhor nas presentes circunstâncias.
Cato e Macro trocaram olhares; em que exactamente consistiam essas presentes circunstâncias era um mistério para eles. Narciso não dissera nada nos últimos três
dias que os esclarecesse, e Macro era bom soldado o suficiente para não questionar ordens. E também era humano o suficiente para não dar a satisfação ao administrativo
de recusar um pedido directo de informação. Era necessário uma táctica mais subtil, pensou Macro.
- Mais vinho, senhor? - estendeu-lhe a jarra, com um sorriso forçado.
Desta vez foram Cato e Narciso quem trocaram olhares, surpreendidos com a transparência do plano do centurião. Narciso riu-se.
- Sim, por favor. Mas receio que será preciso mais vinho do que aquele que temos connosco para soltar a minha língua. Terão que ser pacientes.
O rubor no rosto de Macro tornou-se visível, mesmo à luz da fogueira. As noites ainda eram bastante frescas, e o fogo e a refeição ao fim de cada dia eram grandemente
apreciados pelos homens antes de irem dormir. A comida que Piso conseguira providenciar vinha dos armazéns de provisões destinados a oficiais, uma vez que Vespasiano
não quisera deixar de criar uma boa impressão no convidado de honra. Um rico guisado de veado e vegetais estava a ser limpo da louça de prata, retirada das arcas
pelos escravos. Macro tinha repetido a dose e estalou os lábios antes de limpar a boca com as costas da mão peluda. Apercebeu-se do olhar desaprovador dos outros
dois, mas encolheu os ombros e tratou de beber o resto do seu vinho, antes de encher de novo a taça.
- É bom ver um homem a apreciar tanto a sua refeição. - comentou Narciso, com um sorriso cínico. - Mesmo sendo só pedaços mal amanhados destinados a soldados rasos.
Devo dizer que quase me sinto como um de vocês, a partilhar convosco os rigores da marcha, as
parcas rações e a vida ao ar livre, por entre as terras selvagens e indomáveis da Gália.
- Terras selvagens e indomáveis? - As sobrancelhas de Macro ergueram-se de espanto. - O que têm de tão selvagem?
- Reparaste em algum teatro ao passarmos por Durocórtoro? Passámos por alguma grande propriedade rica? A única coisa que vejo é um punhado de quintas e estalagens
rústicas. É isso que quero dizer com "selvagens", centurião.
- Não há nada de selvagem nas estalagens - respondeu-lhe Macro numa voz rezingona.
- Não digo as estalagens em si. Mas já deves ter notado aquela hedionda beberagem a que eles chamam vinho. Nem usaria aquilo para a salada.
- Mas é isso que está a beber agora - apontou-lhe Macro.
- E com o maior sofrimento. E tu próprio é que me forçaste a bebê-lo. Talvez deva revelar tudo para que não aflijam mais o meu pobre estômago.
- Então alivie o seu estômago, senhor. - Cato sorriu-lhe. - E diga-nos porque vamos para Gesoriaco. Não nos diga que é para inspeccionar a invasão - todos os planos
já devem ter sido feitos meses atrás. Alguma coisa correu mal, não foi?
Narciso olhou para ele, medindo com cautela os seus pensamentos.
- Sim. Não posso revelar muito. Não o irei fazer. Mas está tudo em risco. Tenho que chegar a Gesoriaco - vivo. Possuo certas informações para o general Pláucio.
Se alguma coisa me acontecer, duvido que haja uma invasão, e se não hou ver uma invasão, então poderá deixar de haver um Imperador.
Narciso reparou na incredulidade que as suas palavras provocaram, e então aproximou-se mais dos outros dois, parte do seu rosto oculto pelas sombras.
- O Império encontra-se em grave perigo, como nunca esteve antes. Mesmo agora, ainda existem uns imbecis no Senado que julgam serem capazes de governar o Império.
Aproveitam todas as oportunidades para questionar o Imperador - é por isso que devo alcançar Gesoriaco. Alguns dizem que Cláudio não passa de um simplório - sorriu
tristemente. - Peço desculpa se vos surpreendo por me ouvirem dizer tal coisa. E até pode ser verdade. Mas é o único Imperador que temos de momento, e poderá ser
o último da dinastia de Júlio-Cláudio.
- Já ouvi algumas pessoas dizerem que talvez seja melhor assim.
- E o que aconteceria depois? - Narciso colocou-lhe a pergunta numa voz amarga. - Um regresso à República? Em que é que isso nos beneficiaria? De volta às velhas
facções a lutarem pelas suas causas no Senado com palavras, e depois transformarem essas palavras em violência nas ruas, até termos todo o mundo civilizado devastado
por uma guerra civil. Alguém que leia os disparates devotos dos historiadores republicanos, fica a pensar que os dias de Sula, Júlio César e Marco António e descendentes
criaram alguma espécie de era dourada. Pois bem, deixem-me que vos diga, esses "heróis" singraram na História sobre os cadáveres de três gerações de cidadãos romanos.
Precisamos de Imperadores, precisamos da estabilidade de uma única autoridade a dominar o Estado. Nós, romanos, já não somos capazes de outra coisa.
- Nós, romanos?
- Está bem, nós libertos e romanos - concedeu Narciso. - Admito que o meu destino está irremediavelmente ligado ao do Imperador. Sem a sua protecção, algum senador
já teria amotinado a multidão e eu teria sido derrubado numa questão de dias. Mas a minha destruição marcaria o princípio do fim. Até mesmo vocês, aqui na fronteira,
sofreriam as consequências.
- Não me faz diferença quem está no poder - disse Macro.
- Sou apenas um soldado. Existirá sempre um exército e é apenas isso que conta.
- Talvez. Mas que tipo de exército? Se Cláudio cair, vocês não deixarão de ter a vossa guerra - mas será travada contra romanos. Poderão até ser chamados para lutar
contra homens que consideram agora vossos amigos. Ou até poderão lutar um contra o outro. Pensem nisso. E depois dêem graças por haver um Imperador.
Cato olhou para o seu centurião, cujos olhos brilhavam à luz da fogueira. O optio fez um sorriso débil e perguntou a Narciso:
- Está a testar-nos, não é verdade? Quer saber como reagimos.
- Claro - admitiu prontamente Narciso. - Um homem tem que saber a posição de outras pessoas em certas questões fundamentais.
- Então ainda bem que nos mantivemos calados. - Macro deu uma risada.
- O silêncio pode ser tão incriminador quanto a palavra, centurião. Mas duvido que tu, ou o teu optio, constituam alguma ameaça ao Imperador. Por isso, estão ambos
em segurança... por agora.
Macro lançou um olhar nervoso ao seu optio, procurando por um sinal tranquilizador de que o administrativo dissera apenas uma piada. Mas o olhar petrificado do rapaz
foi o suficiente para travar qualquer tentativa de riso.
- De qualquer modo, chega desta conversa. - Narciso engoliu de um trago a sua taça e depô-la em frente da jarra de vinho. - Uma
última bebida e depois irei dormir. Sabem, é bastante agradável estar tão distante das intrigas de Roma. Um homem conseguia bem acostumar-se a este vosso modo de
vida. Proponho um brinde. - Disse, enquanto Macro enchia a taça, enchendo depois a sua até à borda.
- Um brinde a esta boa vida! - Narciso ergueu a sua taça. - Ao exército, que...
Uma flecha surgiu da escuridão. O administrativo Imperial gritou e a sua taça voou para longe, na noite, onde ressaltou contra uma rocha. Narciso comprimia a mão
contra o peito, a face contorcida em agonia.
- Mas que... - começou Cato por dizer.
- Às armas! Às armas; - berrou Macro, deitando fora a sua taça. Levantou-se num rompante, e correu para junto do seu escudo e espada apoiados na liteira. Apenas
um punhado de homens se tinha posto de pé em redor dos fogos do acampamento da centúria, quando uma chuva de flechas se abateu sobre eles. Várias tinham como alvo
Narciso, mas misericordiosamente falharam e as suas extremidades emplumadas atingiram a erva em volta do fogo - uma acertou na lenha em brasa, o que provocou uma
explosão de faíscas na escuridão. O administrativo Imperial recobrara espírito suficiente para se aperceber da necessidade de auto-preservação e, assim, rolou para
longe da fogueira em direcção aos carros de bagagem, onde se estendeu entre a protecção das rodas.
Cato agarrou no seu escudo e desembainhou a espada, e viu como uma flecha alvejou um legionário nas costas enquanto vestia a cota de malha. O homem grunhiu ao sentir
o impacto e caiu para a frente, as mãos a arranharem desesperadamente a seta que penetrara no ombro.
Com o escudo a envolvê-lo, Cato correu em seu auxílio e viu que o legionário ferido começara a tossir golfadas de sangue.
- Deixa-o! - gritou Macro e apontou para os outros homens.
- Coloca-os em formação à volta do carro.
À luz vermelha tremeluzente das fogueiras, Macro correu pela centúria, pontapeando os homens para que despertassem e protegessem o carro. Alguns ainda estavam bastante
atordoados e foi preciso colocar-lhes o escudo e a espada nas mãos, antes que recobrassem os espíritos e se dirigissem para o carro. Mais dois tinham sido atingidos
na altura em que Cato conseguiu formar um perímetro em redor do carro de bagagem da centúria, debaixo do qual se encontrava o administrativo, de olhos abismados
com o que via desenrolar-se à sua frente. Os legionários ajoelharam-se ao lado dos escudos como tinham sido treinados para fazer face a fogo inimigo, com a agravante
de que não envergavam a armadura,
apenas uma túnica de lã que não iria deter setas ou lanças. A maioria não tivera tempo de colocar o elmo, portanto mantinham as cabeças baixas à medida que mais
flechas voavam na escuridão, atingindo os escudos com força. Da sua posição baixa, quase estendido no chão, Cato sabia que os atacantes só podiam estar próximos,
e então preparou-se para uma corrida rápida. Olhando à sua volta, viu que tinha com ele cerca de vinte homens, e mais acorriam vindos das tendas, impelidos por Macro.
De súbito, a rajada de flechas cessou e, instantes depois, ouviu-se um grito de guerra selvagem vindo da escuridão. Formas escuras surgiram na noite, e a uma certa
distância, era possível ouvir também o martelar de muitos cascos no caminho.
- Preparem-se para enfrentar um ataque de cavalaria! - gritou Cato. - Mantenham-se perto de mim!
O seu pequeno grupo de soldados colocou-se em formação cerrada à volta do carro, mesmo a tempo de verem surgir dentro do círculo de luz das fogueiras um grupo de
homens possantes, rostos de barba contorcidos pelos seus gritos. Usavam pesadas capas negras, elmos pontiagudos e empunhavam cutelos. Lançaram-se ao ataque com uma
ferocidade raras vezes vista pelos romanos. Os primeiros três embateram nos escudos e caíram ao chão, numa confusão de capas, escudos e membros do corpo, sendo rapidamente
despachados pelos soldados em redor. Os restantes atacaram em formação, iniciando uma luta desesperada à luz dos fogos.
A linha romana desintegrou-se logo em combates singulares ferozes, e Cato, não mais no comando de uma unidade de legionários, deu por si a encarar um homem enorme
e musculado, com uma face distorcida pela raiva. Avaliando o seu oponente, o inimigo gritou e simulou um ataque para a frente. Cato ainda vacilou mas acabou por
manter a posição, de escudo erguido e espada curta ao seu lado. Ao ver que a sua tentativa de afugentar Cato tinha falhado, o homem riu-se e ergueu a espada num
movimento em arco, em direcção à cabeça do optio. O escudo levantado deflectiu o golpe e a espada caiu ao chão num clangor, arrancando pedaços de turfa. O impacto
do golpe causou uma dor aguda que percorreu o braço de Cato desde os dedos até ao ombro, sendo incapaz de reprimir um grito. O ímpeto do ataque impeliu o homem para
a frente, e, assim, Cato ajoelhou-se numa perna, desviando-se para o lado de modo a evitar ser esmagado pelo inimigo. Num acto selvático, enterrou a espada no abdómen
do seu atacante. Caiu de rosto no chão, a gemer, arrancando a espada das mãos de Cato. O jovem colocou o pé nas costas do homem e tentou libertar a arma, rangendo
os dentes com o esforço, enquanto o guerreiro moribundo gemia de agonia. Mas era
impossível, a espada estava firmemente presa nas costelas do homem e tão cedo não a conseguiria soltar. Ao olhar à sua volta, Cato viu que a maioria dos atacantes
tinham sido derrotados, juntamente com um número de romanos.
Perto de si, um dos seus homens tinha perdido o escudo, e agora limitava-se a erguer as mãos em defesa perante o golpe de espada que estava prestes a abater-se sobre
a sua cabeça. Com um berro que o teria envergonhado em qualquer outra altura, Cato, defendido pelo seu escudo, lançou-se ao atacante, acabando os dois por embater
e rolar no chão. Quando voltou a colocar-se de pé, o homem que salvara degolara o inimigo.
Tão subitamente como tinha chegado, o grupo bateu em retirada, e os romanos sobreviventes ficaram especados, aturdidos ainda pela rapidez dos acontecimentos.
- Mas que estão aí a fazer! - gritou Macro ao correr para o carro com o resto dos homens. - Vocês ouviram o optio! Preparem-se para enfrentar cavalaria!
Cato tinha-se esquecido dos cavalos, mas agora que se aproximavam, os legionários apressaram-se a cerrar formação em redor do carro, os escudos alinhados num muro
impenetrável, com espadas e dardos preparados.
Com a mesma celeridade do primeiro ataque, o segundo irrompeu na noite; uma linha de cavaleiros com o mesmo equipamento, alguns ainda a segurar arcos, enquanto outros
carregavam lanças debaixo dos braços, todos eles em coro a lançarem tremendos gritos de guerra. Macro deu uma rápida olhadela a Cato, para se certificar de que não
fora ferido.
- Pega numa maldita espada, meu idiota!
Cato, então, apercebeu-se de que estava desarmado, e apressou-se a pegar na arma mais próxima de si - um dos cutelos do inimigo. Era estranho, para quem estava habituado
ao peso e equilíbrio da espada curta de um legionário, mas o peso tranquilizou-o.
- Mantenham-se firmes, rapazes! - avisou Macro. - Aguentem-se e conseguiremos sobreviver a esta.
Quando os cavaleiros estavam quase em cima deles, travaram as montadas; os que carregavam ainda arcos, sacaram de flechas e esperaram por uma oportunidade de espetar
romanos estúpidos o suficiente para se exporem, enquanto os portadores de lanças moveram-se em direcção ao círculo de escudos. Obrigaram os cavalos a embater contra
o muro de escudos, forçando os legionários a recuar, enquanto os atacavam com as suas longas lanças. A corpulência dos cavalos, o medo dos arqueiros e os
próprios instintos de sobrevivência mantiveram os romanos encolhidos atrás dos escudos. Alguns deles aproveitavam qualquer oportunidade para arremeter a espada contra
homem ou cavalo que estivesse ao seu alcance, desse modo, gritos ocasionais ou relinchos agudos indicavam que se tinham causado danos. Mas o tempo não estava a favor
dos romanos; quatro homens já tinham sucumbido à volta do carro, e a erva tornara-se escorregadia com o sangue.
Era demasiado óbvio para Macro qual seria o resultado da luta se continuassem a manter uma posição defensiva: uma gradual diminuição dos seus números e um ataque
final que eliminaria os sobreviventes. Ao aperceber-se disso, o destino interveio de uma forma peculiar. Dois dos cavaleiros avistaram de súbito o administrativo
refugiado debaixo do carro e lançaram os cavalos contra os romanos. Debruçaram-se da sela e atacaram o carro. Narciso rolou para longe das pontas das lanças, com
um grito. Macro saltou, com os dentes exibidos numa demonstração de fúria selvagem, e automaticamente acorreu em defesa do administrativo. Apanhou um homem pelo
braço e derrubou-o da sela. Um golpe de espada nos olhos do homem deixou-o indefeso, e o centurião aproveitou para apanhar a lança caída e espetá-la nas costas do
outro atacante.
Então, Cato também se levantou, dando pontapés no soldado ao seu lado.
- Levantem-se e vamos a eles! Levantem-se! Atacar!
Agora, todos os romanos corriam na direcção do inimigo, gritando em coro a chamada de Cato para atacar. Os atacantes ficaram momentaneamente paralisados de choque
- um erro fatal, como se veio a revelar. Pouco depois, a infantaria romana encontrava-se entre eles, deitando-os abaixo das suas selas e acabando com as suas vidas,
indefesos no chão. A rixa sangrenta chegou rapidamente ao fim, e apenas um punhado de homens conseguiu escapar a coberto da noite que os envolvia.
Cato apoiou-se no seu escudo, a sentir o sangue a pulsar violentamente. A toda à sua volta via corpos estendidos em redor das fogueiras da centúria. Os legionários
não perderam tempo e começaram a tirar a vida aos feridos inimigos.
- Parem com isso! - gritou Narciso, ao sair de debaixo do carro.
- Não os matem!
A sua voz aguda desviou a atenção dos homens e detiveram-se no seu trabalho, com as espadas imóveis, à espera que Macro contra-ordenasse uma ordem tão ridícula.
- Não os matem? - Macro mostrou-se admirado. - Estes filhos de uma cadela estavam prestes a estripar-te. E a nós!
- Centurião, temos que fazer prisioneiros! Temos que descobrir quem foi o responsável pelo ataque.
Macro considerou que as palavras de Narciso tinham a sua lógica. Limpou a sua espada na capa de um dos atacantes, antes de voltar a embainhá-la.
- Rapazes, se algum destes filhos da mãe ainda respirar, arrastem-no para aqui. Líderes das secções! Chamem os vossos homens, vão ter com o optio!
Mais tarde, os feridos romanos gemiam de dor com as tentativas de primeiros-socorros aplicadas pelos seus camaradas inexperientes, e Macro observava, com um ar feroz,
três guerreiros sentados com um ar taciturno aos seus pés. Cato surgiu da escuridão.
- Quantas baixas?
- Oito mortos e dezasseis feridos, senhor.
- Certo. Retira as placas dos mortos e vai cuidar dos pormenores do enterro.
- E quanto aos meus carregadores de liteiras? O meu guarda-costas? - perguntou Narciso, ao tratar da sua mão ferida.
- Um morto, outro desaparecido e o guarda-costas ainda se encontra inconsciente - alguém disse que foi escoiceado por um cavalo.
- Pois então, seus filhos da mãe - rosnou Macro, e deu um pontapé no braço partido de um dos guerreiros que soltou um grito de agonia trespassante. - Oito dos meus
homens estão mortos. Nem pensem por um instante que não vos vai acontecer o mesmo. Mas podem escolher entre uma morte rápida e uma lenta e dolorosa. Vai depender
da forma como responderem às perguntas daquele senhor.
Apontou com o polegar para Narciso e desviou-se para o lado, de modo a dar passagem ao administrativo. Este fitou-os duramente, mãos nas ancas, mas fora do alcance
deles.
- Quem vos ordenou a minha morte?
- A sua morte? - perguntou Cato. - Pensava que eram bandidos.
- Bandidos! - Macro soltou uma gargalhada. - Já alguma vez ouviste falar de bandidos a atacarem uma centúria inteira? Não? Então não sejas estúpido. E além disso,
olha para eles, para as roupas e armadura. Vê-se que pertencem a um grupo mais organizado.
- Uma unidade de exército?
- Talvez.
Narciso ergueu a mão, exigindo silêncio, e voltou a perguntar.
- Perguntei-vos quem ordenou a minha morte.
Nenhum dos três olhou para cima, mesmo quando repetiu a pergunta num tom ameaçador.
- Centurião?
Macro aproximou-se e voltou a pontapear, desta vez uma cabeça. O homem foi-se abaixo com um grito estridente.
- Estou à espera que me digam.
O homem que escapara aos pontapés olhou-os com ressentimento através de sobrancelhas espessas e disse alguma coisa numa língua que Cato nunca ouvira antes. Para
dar maior realce às suas palavras, cuspiu na borda da túnica de Narciso. Macro preparou-se para lhe dar com a bota.
- Não! - Narciso ergueu a mão. - Não é preciso isso. Acho que conheço essa língua. São sírios. Se são quem penso que são, não vão ceder facilmente.
- Não apostaria nisso, senhor. - Macro respondeu friamente.
- Existem maneiras...
- Não há tempo. Não devemos ser atrasados. Podemos trazer estes homens connosco como prisioneiros. Quando chegarmos a Gesoriaco, haverá tempo de sobra para lidarmos
com eles. Certifica-te de que estão bem presos. Podem marchar atrás da minha liteira, amanhã.
Só quando a centúria partiu na manhã seguinte é que se aperceberam da dimensão do ataque orquestrado. Mais uma dúzia de corpos foram encontrados, assim como romanos
mortos, e todos foram enterrados numa trincheira cavada à pressa, antes da unidade levantar o acampamento. Macro ordenara que os seus homens marchassem envergando
a armadura completa, e assim, retomaram com cautela a estrada até Gesoriaco, com os homens posicionados à volta da liteira de Narciso e do carro que transportava
agora os feridos. Toda a bagagem dispensável fora abandonada para dar espaço aos feridos. A disposição do centurião para com os prisioneiros não melhorara e prendeu-os
uns aos outros pelo tornozelo, forçando-os a caminhar atrás do carro. Não houve pausa para descanso, apesar do cansaço causado por uma noite em branco, e assim a
centúria continuou a calcorrear a estrada em direcção à costa. Um par de cavaleiros surgia na distância de quando em quando, em perseguição da centúria, evidentemente
frustrados por uma falta de oportunidade para atacarem de novo. Pouco antes do crepúsculo, os cavalos seguiram por uma estreita serrania ao largo da estrada e desapareceram
de vista. Com a chegada da noite, a centúria acelerou o passo e os homens mostraram
sinais de nervosismo, sempre a perscrutarem as sombras à volta, à espera de uma nova emboscada dos atacantes, a coberto da noite. Por fim, alcançaram o cume de uma
colina e Cato soltou uma exclamação de surpresa. Aos pés dele, encontrava-se um vasto campo militar que parecia estender-se por quilómetros, iluminado por milhares
de fogueiras e braseiros. Quatro legiões estavam concentradas na área, juntamente com um número igual de coortes auxiliares, engenheiros, construtores de barcos
e oficiais administrativos - ao todo cerca de cinquenta mil homens. Mas ao aproximarem-se do portão, Macro pressentiu alguma coisa de errado. Pequenos grupos de
homens vadiavam no exterior do acampamento, desarmados e sem uniforme, outros jogavam aos dados ou limitavam-se a ficar sentados e a beber com um ar de total indiferença.
Antes que a Sexta centúria se aproximasse perto o suficiente de qualquer um dos outros legionários, foram interceptados por um oficial montado a cavalo, escoltado
por vários centuriões, que os mandaram parar. Ao ser confirmada a identidade do administrativo Imperial, o oficial deu ordens para que deslocassem os prisioneiros
para um local seguro, e tratou de escoltar pessoalmente o administrativo ao quartel-general. E foi essa a última vez que Cato e Macro viram Narciso. Não receberam
nenhuns agradecimentos pelo sucesso da missão, nem nenhum reconhecimento foi devido às vidas que foram ceifadas por sua causa.
O prefeito do acampamento da Nona chegou e providenciou a deslocação dos feridos ao hospital da Nona legião. Depois conduziu o resto da centúria para fora do acampamento,
para uma área a alguns quilómetros de distância, onde já tinham sido alinhadas as bandeiras para as tendas da Segunda legião.
A Sexta centúria ergueu as tendas o mais rápido possível, e mal colocaram as estacas, os homens caíram num sono exausto.
XXIX
Dois dias depois, a Segunda legião chegou ao local e a vasta área foi invadida por milhares de soldados a esforçarem-se para erguer as tendas. Aderindo rigorosamente
ao protocolo militar, a tenda do legado foi erigida primeiro, seguida pelas dos oficiais seniores, e só então foi permitido aos legionários que começassem a erigir
as suas bem mais modestas tendas.
Vespasiano encontrava-se sentado na sua tenda de comando, a uma pequena mesa, com um biombo que o separava dos escravos domésticos, e consciente dos administrativos
a correrem de um lado para o outro, a instalarem painéis de madeira no chão e a arrumar mobília e outros artigos. No meio de tudo isto, conseguia ouvir Flávia a
distribuir ordens e a instá-los a uma maior rapidez. Sabia que ela estava contente pelo fim de uma viagem tão cansativa, e agora podia esquecer os rigores de uma
marcha por mais umas semanas, pelo menos até empreender a jornada mais cansativa ainda para Sul, para Roma.
Vespasiano é que não dava mostras de grande contentamento
- mesmo sabendo que o pergaminho desaparecido regressara à sua posse, entregue por Flávia uns dias antes. Ela tinha-o encontrado numa arca entre os brinquedos de
Tito e viu que era endereçada ao seu marido. O garoto tinha-lhe dito que o encontrara no chão e fora incapaz de ser mais específico, visto ser ainda tão novo. Vespasiano
abraçara a sua mulher e imediatamente fechara o documento no fundo de um cofre. Parece que quem quer que tivesse roubado o pergaminho, tinha-o deixado cair durante
a fuga da tenda de comando. E se alguém tivesse descoberto o pergaminho antes de Tito? Júpiter! Nem queria pensar em tal coisa. Mas a alegria de Vespasiano em recuperar
o pergaminho foi esfriada pela situação perigosa que se desenrolava no exterior da sua tenda.
A um dia de marcha de Gesoriaco, foram interceptados por um
mensageiro de Pláucio, com novas ordens. Na opinião do comandante do exército - e aqui Vespasiano detectou a influência de Narciso - não seria sensato usar a Segunda
legião para reprimir o motim. Seria mais eficaz se a rebelião pudesse terminar por meio de negociações, e não por acção directa. Um exército partir para uma invasão
em larga escala, com uma repressão sangrenta ainda fresca nas suas memórias, seria cometer uma loucura. Um pequeno atraso em atravessar a expansão de água entre
a Gália e a Britânia teria que ser tolerado como o preço a pagar pelo fim do motim.
Mas as piores notícias, no ver de Vespasiano, estavam para chegar: A Segunda legião não seria incluída na primeira frente de invasão. Duas outras legiões estavam
a receber treino em operações anfíbias há vários meses e seria a essas que caberia a honra de firmar uma posição na costa e estabelecer um baluarte para o resto
do exército. Vespasiano sabia que se os bretões decidissem atacar os invasores nas praias, então toda a glória e sucesso político iria para os comandantes e oficiais
dessas unidades. Previa um deprimente longo período de operações de limpeza pela sua frente; uma difícil campanha desgastante que não lhe daria nenhumas grinaldas,
e seria uma mera nota de rodapé nas histórias épicas de vitória que seriam contadas nas ruas de Roma.
Isto se o motim pudesse ser reprimido, pensou.
Ao alcançar o acampamento e tomar o caminho em direcção ao quartel-general, tinha sido um desgosto ver o colapso de disciplina nas outras legiões. Os poucos soldados
pelos quais passara não se tinham dado ao trabalho de o saudar, e apesar de ninguém lhe ter dirigido a palavra, o desafio nos seus olhares - desafiando-o a tentar
exercer a sua autoridade - enraivecera Vespasiano. Apenas a guarda pessoal do comandante do exército e os oficiais permaneciam trajados de uniforme, desempenhando
as suas tarefas dentro dos possíveis.
Vespasiano foi conduzido ao quartel-general, umas instalações de madeira a dominarem o centro do acampamento, onde Narciso se encontrava sentado a uma mesa com um
mapa enorme, ao lado do general Pláucio. Vespasiano já conhecia Pláucio de diversas ocasiões sociais, antes de se ter juntado ao exército, daí o seu choque ao ver
a expressão abatida e cansada do rosto do general.
- É bom ver-te de novo - disse-lhe Pláucio, com um sorriso.
- Já passou muito tempo. Tenho pena que as circunstâncias do nosso reencontro não sejam mais felizes. Já conheces Narciso?
- Não, senhor, embora a sua reputação o preceda.
- Uma boa reputação, espero eu? - perguntou Narciso.
Vespasiano assentiu, não estando disposto a dar mostras da sua
verdadeira opinião.
- Agradeço-lhe a protecção da unidade que me dispensou,
legado.
- Transmitirei as suas palavras de gratidão aos homens em questão, se ainda não lhes agradeceu pessoalmente.
- Agradeço a cortesia.
- Agora quero que apresentes um relatório, Vespasiano. - Pláucio convidou-o a sentar-se. - Em que situação está a tua legião?
- Ainda obedecem às ordens, se é isso que quer saber, senhor.
- Por agora, talvez. Mas daqui a uns dias, estarão como os outros.
- Já descobriram os líderes do motim? - perguntou Vespasiano.
- Graças a Narciso, temos os nomes. Tribuno Aurélio, dois centuriões e vinte ou mais legionários. Todos vieram transferidos para a Nona das legiões da Dalmácia,
e ainda leais a Escriboniano, como seria de esperar.
- Fizeram alguma exigência?
- Apenas que a invasão fosse abandonada. Conseguiram persuadir os outros de que demónios e uma morte certa seriam as únicas coisas a esperá-los do outro lado do
oceano.
- Não que seja um oceano - acrescentou Narciso. - Mas a palavra consegue ter um efeito deprimente na imaginação dos militares. Exceptuando vocês, claro. - Sorriu.
- Receio que estejamos a lidar com uma traição muito bem planeada, meus senhores. Mais sofisticada do que qualquer coisa que o tribuno Aurélio e o seu bando de rebeldes
poderiam ter planeado. Na verdade, Vespasiano, o general e eu já tínhamos decidido eliminar este grupo. Mas primeiro temos que tentar descobrir a identidade dos
mestres deles em Roma. Aurélio e os seus homens apenas foram descobertos quando os meus agentes interceptaram uma mensagem deles com destino a Roma. Infelizmente,
o mensageiro morreu antes que pudesse ser induzido a divulgar os nomes dos destinatários; Assim é a vida - ou não, neste caso. Depois temos ainda a questão da emboscada
na estrada de Durocórtoro. É evidente que a oposição tomou conhecimento da minha viagem e das minhas intenções. Parece que alguém do "nosso lado" não é o que aparenta
ser.
- Fui notificado desse ataque, soube que fizeste prisioneiros. Já revelaram alguma coisa?
- Receio que não muito, antes de terem morrido - respondeu Narciso, lamentando a inconveniência. - Os interrogadores foram bastante eficientes, mas só confirmaram
que eram sírios e, supostamente, pertenciam a um grupo de desertores a pilhar o território. Foi tudo o que obtivemos deles antes de serem degolados.
- Um grupo de desertores? - Vespasiano discordou. - Tenho sérias dúvidas. Atacarem uma unidade do exército...
- Realmente - respondeu Narciso. - Não é possível serem apenas desertores. A lealdade aos senhores deles é - foi - notável. Mas há uma outra coisa que me preocupa
mais. Recebi notícias há dias de que um esquadrão inteiro de cavaleiros arqueiros sírios desertou de uma coorte auxiliar que marchava vinda da Dalmácia para se juntar
a este exército.
- Dalmácia? - ponderou Vespasiano. - Do comando de Escriboniano?
- Exactamente.
- Estou a ver. A quem pertencia a unidade?
- Gaio Marcelo Dexter - respondeu Narciso, e observou o legado com atenção.
- O nome é-me familiar, a minha esposa deve conhecê-lo. Acha que os homens que o atacaram pertenciam a essa unidade? - perguntou-lhe Vespasiano.
- Saberemos em pouco tempo. A coorte deve alcançar o acampamento daqui a três dias. Os corpos devem aguentar até lá e alguém será capaz de identificá-los.
- Se é que pertencem a essa unidade - acrescentou Pláucio. - Se isso se verificar, então trata-se de uma conspiração bem maior do que pensávamos. A questão agora
é se conseguiremos travá-la a tempo de lançarmos a invasão este ano.
- Não temos outro remédio, meu caro Pláucio - disse-lhe Narciso, firmemente. - A invasão não será posta em causa. O Imperador providenciou as coisas de modo ajuntar-se
ao exército, na Britânia.
- O Imperador fez isso? - Vespasiano dirigiu-se a Pláucio.
- Pensava que seria o senhor o supremo comandante.
- Aparentemente, não. - Pláucio encolheu os ombros. - Aqui o braço direito do Imperador disse-me para chamar o Imperador em nosso "socorro", quando o exército chegasse
às portas da cidade de Trinovante.
- Descontraia, general - disse-lhe Narciso, dando-lhe leves palmadinhas na mão, que o outro retirou como se tivesse sido tocado por uma serpente. - É tudo fachada
pública. O general não deixará nunca de comandar a campanha. Cláudio apenas servirá como um ícone a entrar pelas portas da capital a liderar o exército em glória,
fazer soar os gongos e correr de volta para Roma que o receberá em triunfo.
- Se o Senado conceder que triunfou - lembrou-lhe Vespasiano.
- Já temos isso garantido - sorriu Narciso. - Gosto de planear
as coisas de antemão, e manter os factos simples para os historiadores. Portanto, Cláudio consegue o seu triunfo, o Império ganha uma nova província, todos evitamos
uma guerra civil, as nossas carreiras ficam em segurança para um futuro próximo - o que, admito, não é um futuro tão longo quanto desejaria. Tudo termina em rosas,
providenciando...
- Providenciando que seja possível pôr um fim ao motim e enfiar os legionários nos barcos. - Pláucio terminou a frase numa voz cansada.
- Precisamente.
- E como conseguiremos isso? - interveio Vespasiano.
- Tenho um pequeno plano. - Narciso afagou o nariz. - É segredo absoluto se queremos que resulte. Mas confiem em mim, vai definitivamente resolver as coisas.
- E se não resolver? - perguntou Vespasiano.
- Então guardo um espaço para ti ao lado da minha campa.
Quando a Segunda legião se estabeleceu para a noite e foram distribuídas ordens rigorosas para as sentinelas, de modo a não permitirem a entrada e saída de homens
no acampamento, Vespasiano chamou Macro à sua presença para comunicar o relatório. Já tinha recebido um breve relato mas, tendo em conta o ambiente de secretismo
a dominar o quartel-general do exército, Vespasiano queria obter informações detalhadas. A noite já ia avançada quando o centurião foi introduzido na tenda perante
o legado, sentado à sua mesa. Vespasiano estava concentrado a ler alguns papéis à luz de um par de lamparinas de óleo. A tenda foi fechada, e o legado depôs o estilete
e fechou o tinteiro.
- Foi uma jornada difícil, pelo que ouvi dizer.
- Sim, senhor.
- Quantos homens perdeste?
- Oito foram mortos, e seis ainda se encontram no hospital da Nona, em recuperação.
- As perdas serão compensadas através dos grupos de recrutas.
- Sim, senhor.
- Quero a história completa, centurião. Conta-me tudo tal e qual como aconteceu, sem embelezares as coisas.
Com Macro em sentido perante Vespasiano, a fitar a parte da tenda por cima da cabeça do legado, a história da marcha, da emboscada e do último dia de viagem até
Gesoriaco foi relatado num tom prosaico e monótono, sendo ouvido atentamente por Vespasiano. Quando o
centurião chegou ao fim, o legado olhou-o severamente.
- E não contaste a ninguém os objectivos da missão?
- A ninguém, senhor. As ordens foram bastante claras nesse
aspecto.
- Então podemos assumir que os atacantes não actuavam devido a fuga de informação da vossa parte?
- Sim, senhor. - Macro acenou com a cabeça antes de expressar a sua opinião sobre o assunto. - Não se tratava de um bando vulgar de ladrões e trapaceiros. Aqueles
homens realizaram uma excelente emboscada e combateram como soldados. Era óbvio que tinham como alvo o administrativo.
- Estou a ver. - Vespasiano assentiu, escondendo o seu desapontamento do centurião; nada do que dissera acrescentava algo ao que já sabia. A acreditar nas palavras
de Macro, os atacantes de Narciso tinham obtido informação acerca da sua viagem fora da legião. Isso facilitaria as coisas para o administrativo Imperial - se o
centurião estivesse a dizer a verdade.
- Centurião, posso pedir-te uma opinião pessoal - em registo confidencial?
Macro mostrou-se incomodado. Gostaria de responder "depende", mas um soldado não impõe condições aos seus superiores, portanto teve que concordar - mostrando a maior
relutância possível.
- Sim, senhor, suponho que sim.
- Consideras a invasão da Britânia uma boa ideia?
- Isso trata-se de política de Estado, senhor - respondeu Macro com cautela. - São assuntos que me ultrapassam. Decerto que o Imperador e os seus assistentes planearam
tudo e tomaram a decisão certa. Eu nem tenho uma opinião sobre o assunto.
- Eu disse que seria em registo confidencial.
- Sim, senhor. - Macro amaldiçoouo legado por o colocar nesta situação difícil. Nunca as palavras de um subordinado eram mantidas em registo confidencial, caso o
superior decidisse mudar de ideias mais tarde.
- E então?
- Simplesmente não sei o suficiente para poder exprimir uma opinião sobre isso, senhor.
Por aquela linha de interrogatório não chegaria a lado nenhum, apercebeu-se Vespasiano. Era necessária uma abordagem mais indirecta, uma que absolvesse o centurião
das suas afirmações.
- O que dizem os homens sobre isto?
- Os homens, senhor? Bem, alguns deles andam preocupados, o
que é natural - nenhum de nós gosta da ideia de se fazer à água. Pode acontecer de tudo no mar. E depois circulam por aí histórias sobre os perigos que nos aguardam.
- Não receiam o exército deles?
- Não tanto quanto isso, senhor. Estão apenas preocupados, como é normal em qualquer homem que enfrenta um inimigo desconhecido. Está mais relacionado com os druidas,
senhor. Eles e os da sua espécie.
- O que têm os druidas?
- Os homens ouviram dizer que têm o poder de invocar demónios.
- E acreditas nisso?
- Claro que não, senhor. - Macro mostrou-se ofendido. - Qualquer pessoa com juízo suficiente consegue ver que não passam de um monte de disparates. Mas sabe como
os homens podem ser muito supersticiosos.
- Creio que eras um desses homens não há muito tempo.
- Sim, senhor.
- Mas não és supersticioso? Como eles?
- Não, senhor. Deixei tudo isso para trás quando fui promovido a centurião. Um centurião não tem tempo a perder com essas coisas.
- Onde é que os teus homens ouviram falar acerca dos druidas?
- Alguns dos nossos forrageadores deram ontem de caras com homens do acampamento central, senhor. Foram eles que lhes falaram acerca dos druidas, e depois contaram-lhes
sobre o motim.
- Chamaram-lhe motim? - perguntou Vespasiano. - Tens a certeza disso?
- Bem, não, senhor. Disseram que ainda permaneciam leais ao Imperador e que toda esta invasão não passava de um esquema perverso de Narciso, e que nenhum homem com
juízo se aventuraria a tal coisa. Chamem-no o que quiserem, não deixa de ser um motim para mim, senhor.
- E os outros homens pensam como tu, acerca disto?
- Penso que sim, senhor.
- Muito bem, centurião. Muito bem. - Vespasiano voltou a encostar-se na cadeira. Por enquanto, estava tudo em segurança. Até agora a Legião permanecia leal. Mas,
a não ser que o esquema de Narciso fosse posto em prática e resultasse, seria uma questão de tempo até a Segunda legião ser contagiada como as outras unidades. No
entanto, conquanto oficiais como Macro cumprissem o seu dever, o alastrar da rebelião poderia ser travado por ainda mais umas semanas.
XXX
Enquanto os homens da Sexta centúria observavam o resto da legião em actividade à sua volta, Cato abandonou as linhas das tendas e apressou-se a percorrer o caminho
por entre as massas de homens, animais e carros de transporte, até alcançar a área destinada ao quartel-general do legado. Os administrativos e os carros destinados
à casa de Vespasiano com os seus pertences pessoais, estavam prestes a dar entrada no local reservado para os transportes. Uma vez que o Verão se aproximava rapidamente
e a legião não permaneceria mais do que dois meses acampada antes de dar início à invasão, os administrativos dos oficiais tinham reservado o campo para as tendas,
e não para casebres de madeira.
Cato manteve-se afastado dos carros, não querendo atrair a atenção, e procurou por sinais de Lavínia. Os carros eram encaminhados lado a lado para o recinto por
arrieiros exaustos e com má disposição. Os passageiros desceram e deram início ao processo cansativo de arrumar as arcas, carregando-as para o interior de tendas
enormes, erigidas com a ajuda de estacas por uma equipa de legionários a puxar pelas cordas. Os olhos de Cato vaguearam pelos carros até que o seu olhar frenético
foi compensado com a visão de Lavínia a descer da carruagem pessoal do legado, com Tito preso pela mão. O jovem resistiu à tentação de acenar ou chamá-la, e tentou
parecer o menos conspícuo possível por entre a multidão de legionários em trabalho. Observou Lavínia a seguir a sua ama até darem entrada numa das tendas erigidas.
Cato ficou a olhar para a entrada por um longo tempo, antes de virar as costas e afastar-se lentamente.
Deambulou pela legião até à hora do crepúsculo, altura em que soou a chamada para a refeição, e só nessa altura se apercebeu de que tinha fome. Cato perdera o apetite
ao meio-dia, nervoso com a chegada
da legião e ansioso por saber notícias de Lavínia e da sentinela ferida; uma estranha combinação de medo e paixão que lhe causava uma dor peculiar. Quando voltou
para junto da centúria, o sol já se tinha posto e as formas dos homens tinham-se tornado indistintas à luz pálida do horizonte. As fogueiras foram acesas e o primeiro
leve odor de um guisado flutuou pelo ar fresco. Cato tinha sido destacado para a segunda vigia e queria estar de barriga cheia antes de ter de acompanhar o oficial
sénior de vigia nas suas rondas, recolhendo as insígnias de cada posto nas muralhas e portões. Quando se sentou ao pé da fogueira da sua secção e comeu os restos
da refeição com algum pão fresco, Macro sentou-se de pernas cruzadas ao lado.
- Por onde é que andaste?
- Fui dar um passeio, senhor.
- Um passeio, hein? Suponho que passaste, por acaso, pelo quartel-general do legado.
Cato sorriu.
- Logo vi que ainda andavas atrás daquela rapariga. Ainda a segurar a vela por ela? - Macro abanou a cabeça em sinal de espanto.
- Que te disse eu sobre tudo isto antes, na fortaleza? Um soldado que permite que os sentimentos interfiram com a razão é um soldado distraído, e o exército não
se pode dar ao luxo de distracções. Esquece-a, rapaz. Por acaso, acho que posso ajudar-te nesse campo. Alguns dos rapazes e eu vamos para a cidade esta noite - consegui
obter uma licença para comprar provisões de cevada para a coorte. Indicaram-nos uma pequena e agradável estalagem onde oferecem algo um pouco mais saboroso do que
a cerveja local. Poderás querer juntar-te a nós, mal termines o teu turno de guarda.
- Isso é uma ordem, senhor?
Macro olhou-o friamente.
- Pois vai à merda, rapaz. Estou aqui a tentar ajudar-te. Mas se preferes ficar aí sentado aos suspiros em vez de ires tomar umas bebidas com os teus companheiros
e obteres o que queres, então o funeral é teu.
Cato percebeu que agira mal. O tom azedo com que respondera tinha sido impulsivo e agora estava arrependido pela ofensa que havia causado.
- Senhor, não quero parecer ingrato pela oferta. O problema é que não estou com disposição para isso neste momento. Não posso fazer nada contra isso.
- Não podes fazer nada? - troçou Macro. - Tu é que sabes.
Num rompante, pôs-se de pé e abandonou o local, não sem lançar
um olhar zangado a Cato, antes de entrar na sua tenda.
Enquanto esperava pelo início do turno, Cato afundou-se no desespero. Talvez o centurião tivesse razão? Que raio de relação amorosa poderia tér com uma rapariga
que não podia ver nunca? E, além disso, era uma rapariga de relações perigosas, ainda para mais podia testemunhar a sua presença na tenda do legado naquela noite.
Se por alguma razão ela cometesse uma indiscrição, então ambos seriam chamados à presença de Vespasiano. E a verdade acerca do outro homem não seria acreditada.
O melhor a fazer era esquecê-la, esquecer tudo sobre o amor e seguir em frente. Talvez, afinal de contas, se juntasse a Macro e aos outros.
Pouco depois da mudança da segunda guarda, quando todos, exceptuando uns poucos, dormiam, a sentinela na entrada principal viu duas figuras a caminhar pela estrada,
em direcção ao acampamento. Pediu-lhes pela senha e ao ver que não recebia nenhuma resposta, apontou-lhes o dardo e interpelou-os mais uma vez.
- Descontrai, soldado - disse uma voz. - Somos amigos.
- Senha!
- Digo-te que somos amigos! Do outro acampamento.
- Mantenham a distância! - gritou-lhes a sentinela, ligeiramente aliviado por ouvi-los falar em latim.
- Queremos falar com o teu comandante. Temos um salvo-conduto assinado pelo general Pláucio em pessoa. Deixa-nos entrar.
- Não! Fiquem onde estão. - A sentinela atarracada deu um passo atrás, e apontou o dardo aos dois estranhos, a uns meros dez passos de distância. À luz pálida das
estrelas conseguia ver que um dos homens era alto e magro, usava uma capa escura e tinha o rosto encapuçado. O outro era um homem possante que usava uma espada.
- Optio! Optio da guarda! Vem cá, rápido!
Uma entrada lateral abriu-se e apareceu um optio, a comer um pedaço de pão ensopado em vinho.
- O que se passa? É bom que não seja outro falso alarme, ainda estou a comer.
- Este homem deseja falar com o legado.
- Deu-te a senha?
- Não, senhor.
- Então manda-o à merda - por esta hora já devias conhecer o regulamento.
- Posso interromper? - o homem alto aproximou-se deles.
- Não te aproximes mais - rosnou-lhe o optio.
- Tenho um assunto a tratar com o legado - insistiu o homem, depois retirou uma pequena placa de ardósia do interior da sua capa.
- Vejam, tenho uma autorização assinada por Aulo Pláucio.
O optio aproximou-se com cautela e retirou das mãos do homem a placa, antes de se dirigir para a entrada lateral que providenciava luz suficiente para poder ler
a mensagem. O salvo-conduto parecia autêntico e o selo pressionado na superfície de cera consistia no desenho da águia de um general comandante. Ainda assim, considerou
o optio, podia tratar-se de um embuste. Dado o rigor e controlo com que os regulamentos e restrições de movimento dentro de acampamentos estavam a ser aplicados,
o legado e os seus oficiais sêniores tinham alguma coisa a temer.
O optio parou para pensar: uma pessoa que carregava consigo um salvo-conduto autorizado por Pláucio em pessoa devia possuir um estatuto elevado.
- Por favor, espere aqui, senhor.
- Uma segurança digna de elogios que vocês têm por aqui - disse Narciso mais tarde, ao aceitar uma bebida de Vespasiano. - Foi complicado persuadir o oficial sénior
de guarda para que nos deixasse ver-te, mesmo com uma autorização do general. Vocês, soldados, colam-se às regras.
- Se não existirem regras, não existe ordem, não existe civilização, não existe Roma. - Vespasiano citou o velho adágio e ergueu o seu copo a Narciso. - Mas estou
contente por te ver, quaisquer que sejam as tuas razões. Precisava de falar contigo em privado.
- Então os nossos interesses felizmente coincidem.
- E quanto a ele? - Vespasiano apontou para o guarda-costas do administrativo, envolto nas sombras, imóvel e silencioso.
- Ignora-o - disse-lhe Narciso. - Presumo que possamos falar em segurança aqui?
- Absolutamente. Todas as entradas estão guardadas.
- Ah, sim? - Narciso bebericou da taça, enquanto fixava com o olhar Vespasiano. - Não foi isso que as minhas fontes me disseram.
A face de Vespasiano enrubesceu.
- O teu espião contou-te o que se passou?
- Fui informado de que uma sentinela foi ferida por um intruso. Espero que nada tenha sido roubado. Nada de importante.
- Nada. - Vespasiano disse-lhe com firmeza, forçando-se a si próprio a manter os olhos fixos em Narciso.
- Então conta-me o que aconteceu.
- Pelo que sei, uma rapariga escrava tinha marcado um encontro com o seu amante na minha tenda de comando. Ele não apareceu e ela
esperou mais algum tempo e foi-se embora. Pouco depois, os guardas deram com alguém na tenda. Feriu uma sentinela e conseguiu escapar. Uma tocha caída pegou fogo
à tenda, mas conseguimos apagá-lo antes que causasse estragos irreparáveis. E é tudo o que há para contar.
Narciso observava-o, enquanto lentamente bebia de novo da
taça.
- Torturaste a rapariga?
- Não foi necessário.
- A sério? Alguns oficiais obtêm prazer desse tipo de coisas.
- Se pensas... - Vespasiano levantou-se da cadeira e o homem nas sombras moveu-se rapidamente para a frente. Narciso ordenou-lhe que voltasse para o seu lugar.
- Não penso nada disso. Apenas pensei se tinhas conseguido extrair mais informações dela.
- Foi o que disse.
- E o nome do homem? Aquele com quem a rapariga se ia encontrar.
- Narciso, sou eu que comando a minha legião, e se há problemas a resolver, serei eu a tratar deles. Não passas de um liberto, não podes dar ordens a um legado.
Não estamos na época da festa das Saturnais.
Narciso esboçou um sorriso curioso.
- É engraçado que sejas tu a dizer isso. Mas não interessa... Quero o nome dele.
Vespasiano não respondeu imediatamente. Por mais que detestasse Vitélio, mostrava-se bastante relutante em dar uma informação que poderia levar à destruição de um
homem inocente. Um homem inocente agora - mas um possível rival político mais tarde. Ou um aliado. Ninguém saberia dizer.
- É melhor que me digas já - disse-lhe Narciso numa voz suave.
- Antes que mande Politemo perguntar-te.
- Como te atreves? - Vespasiano recuou, chocado. - Atreves-te a ameaçar-me na minha própria tenda? Homem, podia chamar agora os meus guardas e ter-te a ti e àquele
bruto crucificados num estalar de dedos. - Tentou estalar os dedos, mas as suas mãos húmidas não produziram qualquer som.
O gesto falhado não passou despercebido a Narciso, e permitiu-se um pequeno sorriso de satisfação antes de responder num tom mais conciliador:
- Receio que tenhas menosprezado o nosso valor perante os olhos do Imperador. Aristocratas com pretensões a grandeza política não valem mais do que um sestércio.
Alguns, sem dúvida, possuem talentos
de grande valor - tu és um deles - mas não passam de aves raras dentro da sua classe. Gerações de procriação consanguínea não produziram mais do que idiotas arrogantes
e ociosos. Nós - o Imperador - podemos substituir-vos facilmente. Eu, por outro lado, sou indispensável. Como é que pensas que um mero liberto foi capaz de ascender
à posição de braço direito do Imperador? Há mais inteligência, mais astúcia e mais crueldade no meu dedo mindinho do que em todo o teu corpo. É bom que te lembres
disso, Vespasiano. Lembra-te antes de pensares em me ameaçar.
Vespasiano cerrou a boca para evitar soltar a torrente de raiva a revolver no seu interior. Fincou os dedos com força no encosto da cadeira, e engoliu em seco.
- Excelente. - Narciso aprovou a atitude do legado. - Ainda bem que és esperto o suficiente para aceitar uma verdade dura. Irás compreender a importância disso quando
regressares a Roma. Estou contente por saber que tinha razão acerca de ti.
- E em que é que tinhas razão sobre mim? - Vespasiano perguntou, através dos dentes cerrados.
- O teu cérebro comanda o coração, e não permites que o teu orgulho se intrometa. Agora, sê um bom homem e diz-me o nome da pessoa com quem era suposto a rapariga
escrava ter-se encontrado na tenda.
- Vitélio. Ela disse o nome de Vitélio.
- Vitélio? Isso é muito interessante, não dirias? Um tribuno sénior envolvido numa relação com uma rapariga escrava na tenda de comando do legado onde, sem dúvida,
alguns documentos muito importantes estavam guardados. Acho isso muito interessante. Para não mencionar revelador. Não achas?
Vespasiano limitou-se a fitá-lo com frieza.
- O documento ainda está em tua posse?
- Sim.
- Sabes o que deve ser feito?
- Claro, mas encontrar um carro afundado num pântano há cem anos não será fácil.
- Então será melhor que reserves a tarefa aos teus melhores homens. Mas que não sejam muitos - quanto menos souberem o que se passa, melhor - e certifica-te de que
agem com discrição.
- Tenho alguns homens em mente.
- Óptimo. Essa arca deve ser localizada, e mal estiver na vossa posse, guardem-na com a vida. Quando o Imperador chegar com reforços, a arca passará a ser guardada
por uma unidade especial da Guarda
Pretoriana e embarcada para Roma. E, depois, esquecerás tudo sobre a sua existência. Tu e os homens que escolheres para desempenharem a missão.
Narciso afastou a sua taça e levantou-se.
- Agora tenho de ir. Agradeço a hospitalidade, Vespasiano. E descontrai-te. Tenho a certeza de que o Imperador ficará profundamente grato quando lhe contar sobre
a tua cooperação.
- Antes de ires, diz-me uma coisa.
Sim.
- Quem é o espião Imperial na minha legião? Tenho de saber em quem posso confiar quando chegarmos à Britânia.
- E depois perderia todo o valor para mim.
- Porque já não seria capaz de me espiar, por exemplo?
- Exactamente.
- Então, ao menos, diz-me quem é o traidor - perguntou Vespasiano. - Preciso de saber contra quem devo tomar as minhas precauções.
Narciso tentou parecer compreensivo.
- Não sei. Só tenho suspeitas, mas preciso de mais provas. Se disser alguma coisa que faça com que passes a tratar diferentemente as pessoas à tua volta, então o
traidor saberá que desconfiamos dele. Nada deve ser feito que levante suspeitas. Não fales com ninguém sobre este assunto. Nem mesmo à tua esposa. Compreendes?
Vespasiano acenou com a cabeça.
- Compreendo... que estás a pôr-me em perigo.
- És um soldado. Habitua-te a isso.
E assim, o administrativo Imperial virou as costas ao legado e abandonou a tenda, chamando o guarda-costas das sombras, com um movimento do dedo. Sozinho, Vespasiano
consumia-se de raiva e frustração, em silêncio. Conseguira safar-se pelo roubo do documento, por enquanto. Mas não estava mais perto de arranjar uma saída das intrigas
obscuras que o prendiam tão firmemente.
No exterior, Narciso deteve-se. Não havia sinais de que Vespasiano tivesse ordenado que fossem seguidos. Virou-se para o guarda-costas.
- Certifica-te de que não sou seguido. Se eu te chamar, vem o mais rápido possível.
Retomou o caminho, silencioso, e, momentos depois, foi seguido pelo guarda-costas, oculto pelas sombras e mantendo um olho vigilante no seu mestre. Narciso caminhou
pelas tendas dos tribunos, depois parou à entrada de uma delas. Quando teve a certeza de que não estava
a ser observado, entrou apressadamente. No interior, o espião Imperial aguardava por ele, como tinha sido combinado antes através de um mensageiro secreto. Ergueu-se
do assento para saudar o administrativo Imperial.
- Bem de saúde, senhor?
Narciso cumprimentou-o e sorriu.
- Sim, Vitélio, muito bem. Agora, precisamos de conversar sobre aquele pergaminho de que te falei há uns meses. E estou curioso em saber porque me omitiste o teu
encontro com uma rapariga escrava na tenda do legado, na noite em que foi roubada.
Vitélio franziu o cenho.
- Mas não estive na tenda.
- Não foi isso que Vespasiano me contou. Ele interrogou uma rapariga escrava que disse que se ia encontrar contigo.
- Isso não é verdade. Juro que não é verdade.
Narciso observou-o com atenção e acabou por acenar a cabeça satisfeito, em resposta.
- Muito bem. Acredito em ti... por agora. Mas se não é verdade, então porque diria ela isso? Ou porque lhe foi ordenado que dissesse isso?
- Ordenado? Por quem?
- É isso, caro Vitélio, que te mandaram vir cá descobrir.
XXXI
- Cato! Como é que conseguiste aqui entrar?
- Vim trazer um relatório da parte do meu centurião ao quartel-general, minha senhora. Não sei como, perdi o meu caminho ao tentar sair. E aqui estou eu.
Flávia riu-se ao erguer-se do chão. Tinha estado ocupada a arrumar os conteúdos de uma arca para o seu marido, e os painéis de madeira do chão estavam cobertos por
pilhas asseadas de roupa dobrada.
- Tens um aspecto horrível. Passaste mal a noite?
- Bem, minha senhora, fui a Gesoriaco.
- Quando é que vocês jovens irão aprender? Mas não me parece que tenhas vindo aqui dar-me explicações. E penso que devias ir inspeccionar o novo quarto de criança
que mandei construir para Tito.
- Minha senhora?
- Pus alguns escravos domésticos a cargo de Lavínia, devem estar a preparar o quarto. Ela queria falar contigo. E atrevo-me a dizer que não te importavas de a ver
de novo. - Flávia piscou-lhe o olho. - Agora põe-te a andar e deixa-me voltar ao trabalho. Dirige-te àquele corredor, é a terceira entrada à tua esquerda. E não
deixes que ninguém te apanhe aqui dentro.
Enquanto percorria lentamente o caminho que Flávia lhe tinha indicado, a mente de Cato era invadida por dúvidas. Por mais que ansiasse ver Lavínia, ainda havia algumas
questões que gostava de ver resolvidas acerca daquela noite na tenda do legado. Precisava de saber se dissera alguma coisa a alguém sobre ele. Era óbvio que Flávia
sabia acerca da sua presença lá, mas quem mais? Deteve-se à entrada do novo quarto.
Cato procurou acalmar-se e acabou por entrar. Lá dentro, o quarto estava repleto de brinquedos para crianças e roupas. Sentados, de pernas cruzadas entre os objectos
desarrumados, encontravam-se vários dos escravos domésticos de Flávia, ocupados em tornar o lugar o mais confortável possível para uma criança. Sentada a um lado,
contente, a pintar uma
quinta de animais numa pequena tela, estava Lavínia. Não se apercebera da chegada de Cato, e deu um pulo quando o ouviu a chamá-la suavemente, a alguns passos de
distância.
- Olha o que fizeste - riu-se, apontando com o pincel a tela.
- Agora há uma cauda na cabeça da vaca.
- Vaca? - Cato podia jurar que era um cavalo.
Lavínia virou-se para encará-lo. A sua expressão era tão séria que o seu coração se afundou. Até que ela lhe estendeu as mãos e sorriu-lhe.
- Fiquei preocupada contigo depois de saber o que aconteceu àquela sentinela.
- Porque não voltaste para mim?
-Não pude. Quando voltei aos meus aposentos, a minha ama disse que precisava de mim, disse que Tito estava doente. Eu não conseguia ver nada de errado nele, mas
disse-me para ficar com Tito enquanto ia procurar por algum remédio. Por altura do seu regresso, estavam todos aos gritos. Estou contente por teres conseguido sair
antes do incidente com o guarda ter ocorrido. Estava imensamente preocupada. Senti-me pessimamente por te ter deixado sozinho na tenda. Desculpa pelo que aconteceu.
Cato apertou-lhe as mãos.
- Não faz mal. Estou contente por saber que estás em segurança. Quando aquele homem entrou na tenda, tive medo de que desses de caras com ele quando voltasses. Acho
que te teria morto.
- Aquele homem?
- Sim, não pensaste que tinha sido eu a atacar a sentinela, certo?
- Não... mas quem?
- Não sei. Quando descobriu que eu também estava na tenda, quase que deu cabo de mim. Gritei por ajuda, e quando a sentinela apareceu, o homem atacou-o e desapareceu.
Saí dali para fora o mais rápido possível.
- Ainda bem.
- Fiquei feliz por te ver em segurança quando os carros chegaram ao acampamento.
- Ficaste feliz? A sério?
- Claro.
- É muito querido da tua parte - inclinou-se para a frente e beijou-o na boca. - Tu realmente gostas de mim, não é verdade?
Não disse nada e beijou-a de volta, um beijo longo, que fez o seu coração bater descontroladamente perante a suavidade quente que emanava dela. Quando os seus lábios
se separaram, fitou-a nos olhos, sentindo-se mal pela pergunta que lhe ia fazer.
- A sentinela já identificou alguém?
- Morreu em Durocórtoro. A minha ama soube esta manhã.
Morreu sem ter dito uma palavra, por isso, já não tens nada que recear.
- Alguém mais, sem ser Flávia, sabe que estive na tenda naquela noite?
- Não. Mas o legado sabe que estive lá eu. Encontrou a minha fita de cabelo.
- Que lhe disseste? - Cato sentiu um arrepio na espinha.
- Disse-lhe que ia-me encontrar com outra pessoa, mas que quando essa pessoa não apareceu, fui dormir. Disse apenas isso. Juro-te.
- Eu acredito em ti. Disseste-lhe que ias encontrar-te com
quem?
- Com o tribuno Vitélio.
- Porquê ele? - Cato sentiu-se desconfortável com o envolvimento de Vitélio nessa história. Memórias vieram-lhe à mente do tribuno a distribuir ordens no meio das
chamas do povoado germano. Seria um golpe baixo lançar suspeitas sobre ele.
- Foi a minha ama quem mo ordenou. Aparentemente, o seu marido não gosta dele, e acha que há algo de suspeito nele. Pareceu-lhe a escolha mais acertada.
- Não me parece correcto. - Cato começou por protestar, mas Lavínia puxou-o para junto de si e beijou-o de novo.
- Cala-te! Não importa. Desde que ninguém suspeite de ti. É só isso que me interessa. Agora, - conduziu-o para uma área reservada da tenda, que costumava ser destinada
à mudança de roupa. - Não temos muito tempo e temos que pôr muita conversa em dia.
- Espera. Que queres dizer com isso, não temos muito tempo?
- Em breve, a minha ama vai regressar a Roma. Vai levar-me.
Cato sentiu-se doente.
- Vou tentar esperar por ti em Roma - disse-lhe, gentilmente.
- Posso nunca regressar. E mesmo que regresse, pode ainda levar muitos anos.
- Talvez... talvez não. Mas não há nada que possamos fazer contra isso agora. - Lavínia pegou-lhe carinhosamente na mão. - Não temos muito tempo, por isso vem comigo.
- E quanto a eles? - Cato apontou para os outros escravos.
- Não nos vão incomodar.
Levou-o através de umas cortinas até ao quarto de dormir de Tito, e fechou-as atrás de si. Uma suave pilha de materiais dobrados estavam espalhados pelo chão, e
Lavínia obrigou Cato a deitar-se. Permaneceu imóvel, coração aos saltos, a percorrer-lhe o corpo com os olhos até pousarem nas suas mãos a levantarem a borda da
sua túnica.
- Agora diz-me - perguntou-lhe Lavínia. - Onde íamos nós?
XXXII
Alguns dias mais tarde, as coortes das três legiões em motim foram reunidas num anfiteatro improvisado que tinha sido construído nos arredores do acampamento. Eram
convidados de Pláucio e Narciso, que pagara por um dia de exibição de gladiadores em nome do Imperador. Estavam sentados ao lado de Vespasiano e de outros oficiais
seniores, apreciando os confortos de uma bancada reservada. Em grande parte da manhã e da tarde decorreram pródigas exibições de bestas e homens a derramarem sangue
na arena. O divertimento dos homens foi ainda mais estimulado com uma generosa oferta de vinho, e assim por altura do fim do espectáculo, reinava um ambiente animado
no anfiteatro.
Na areia, a última luta de gladiadores chegou a um inevitável fim. Como de costume, o Reciário vencera e agora estava perante a sua vítima, com o tridente apontado
ao pescoço do Mirmilão, de armadura pesada, enredado na sua rede. O Reciário encarou a audiência à espera de uma decisão. Contra as expectativas, o Mirmilão lutara
bem em torno da arena, polegares erguiam-se para cima, sinal de que desejavam ver a sua vida poupada. Após uma curta hesitação, Narciso virou o polegar para baixo.
Os homens logo manifestaram aos gritos a sua desaprovação e moveram-se em direcção à bancada dos oficiais. Pláucio não perdeu tempo; levantou-se e ergueu o polegar
para cima de modo a que todos pudessem vê-lo. Os gritos de indignação transformaram-se abruptamente em aplausos de aprovação e, assim, a multidão voltou a concentrar
a sua atenção na arena, onde Narciso ficou alarmado ao ver o Reciário já a empunhar um arco. O idiota! Se os legionários suspeitassem sequer de que tudo não passara
de uma encenação... mas demasiado vinho já tinha percorrido as hostes e todos, excepto os mais despertos, já tinham as mentes entorpecidas perante o espectáculo
que se desenrolava à frente deles.
Narciso levantou-se de repente, e sem nenhum sinal de aviso, saltou
por cima da bancada. Forçando o seu caminho até alcançar o centro da arena, ergueu as mãos a exigir silêncio.
Os legionários não esperavam por tal acção e rapidamente remeteram-se ao silêncio, curiosos e em expectativa, ainda a prevalecer a boa disposição. Alguns sussurravam,
mas foram calados pelos seus camaradas, enquanto Narciso aguardava por absoluto silêncio.
Quando o silêncio reinou, Narciso ergueu o braço num gesto dramático.
- Meus amigos! Romanos! Legionários! Ouçam as minhas palavras! - apelou numa voz grave e imponente. - Todos sabem quem eu sou. Sou o administrativo Imperial e, embora
não fale em nome de Cláudio e não passe de um mero liberto, considero-me tão romano quanto vocês.
Murmúrios de desaprovação soaram por toda a audiência perante a ousadia de Narciso em assumir o manto de Roma, e ignorar as distinções entre cidadãos romanos e libertos.
- Volto a dizer, o meu coração é tão romano como o de qualquer outro homem aqui presente! - ao proferir estas palavras, rasgou a túnica e expôs o seu peito à audiência.
Alguns não foram capazes de conter o riso perante tal visão.
- E porque sou romano em tudo menos no nome, venho aqui dizer-vos que eu, Narciso, estou revoltado pelo que vejo. Gela-me o sangue ver homens, que considero meus
compatriotas, a insurgirem-se num motim contra os heróicos generais de Roma, a quem têm o privilégio de servir e a quem deveriam sentir-se gratos pela honra de darem
as vossas vidas! Que um homem tão nobre, de uma das melhores famílias, Aulo Pláucio. - Narciso apontou com a mão na direcção do general. - Que ele sofra a humilhação
e ignomínia da vossa rebelião, faz-me chorar de amargura!
Narciso encolheu-se e enterrou a face numa borda da túnica, apossado por violentos espasmos de emoção. Alguns dos homens riam-se abertamente da histeria do liberto.
Narciso respirou fundo e voltou a enfrentar o público, lágrimas escorrendo-lhe pelas faces.
- Cobardes: Cobardes ingratos que se atrevem a considerar-se romanos! Se não irão seguir o honrado e corajoso Pláucio, então dêem-me as vossas armas que eu próprio
irei conquistar a Britânia! Sozinho, se for preciso. Dêem-me as vossas armas!
O administrativo Imperial estendeu as mãos para a audiência, implorando pelas suas armas.
- Toma, filho da mãe, leva isto! - um legionário levantou-se e
lançou a sua espada a Narciso, que se desviou, alarmado. Então todos lhe seguiram o exemplo, e espadas e adagas choveram na arena, enquanto Narciso recuava lentamente,
para sua própria segurança. Nesse momento, tropeçou acidentalmente na borda da túnica rasgada e rolou para o chão.
Os legionários explodiram de riso.
Vespasiano sorriu, e tentou conter o riso perante a nova queda do administrativo. Com o rosto a arder de vergonha e raiva, Narciso levantou-se e empunhou uma das
espadas.
- Riem-se de mim? Vocês atrevem-se a rir de mim? Eu sou aquele que está preparado para lutar. Não estou sentado no meu rabo sem fazer nada. Sou o único aqui presente
digno de empunhar a espada e as gloriosas águias contra as hordas bárbaras!
Os homens já choravam de tanto rir ante espectáculo tão lúdico. Narciso correu para o centro da arena e arremeteu a espada contra eles, mas acabou por perder o controlo
da manobra. Girou e a espada enterrou-se na areia, aos seus pés. Ofegante, lutava para recuperar o fôlego.
- Fraco sou por uma vida dedicada a servir Roma e, mesmo assim, faria aquilo que receiam fazer. E consideram-se vocês romanos! Porque deveria implorar para que regressassem
aos vossos oficiais? Porque deveria pedir sequer? Não... ordeno-vos que ponham fim a este motim. Ordeno-vos!
Foi o cúmulo para as tropas que rebentavam de riso, e alguém de entre a multidão, gritou:
- Oh, Saturnais! Oh, Saturnais!
Era o grito de ovação do festival em que as classes sociais invertiam papéis, e rapidamente, o grito propagou-se até todos gritarem em uníssono:
- Oh, Saturnais!
Arremessaram à arena todos os objectos à mão. Narciso exibiu-lhes o punho num último gesto ameaçador e com um grito inaudível de desafio, virou-lhes as costas e
abandonou a arena.
Os legionários continuaram a gritar "Saturnais" ainda por algum tempo, até se ter tornado claro que Narciso não voltaria ao anfiteatro. Então, lentamente, os homens
dispersaram, primeiro aos poucos, depois em grandes grupos, de volta para o acampamento central.
- Bem, espero que tenha resultado - disse Pláucio.
- Um fascinante trabalho de equipa - reflectiu Vespasiano.
- Será interessante saber se conseguiu envergonhá-los a ponto de retomarem os seus postos. Consegue imaginar a reacção do exército quando souber que um liberto teve
a audácia de lhes falar daquele modo? Agora, peço licença, senhor.
- O quê? Oh, sim, está bem. Faz o que quiseres. Preciso de beber.
Vespasiano deixou o seu superior, e dirigiu-se às celas provisórias
construídas no anfiteatro.
- Àlguém viu o administrativo Imperial?
- Aqui estou eu. - Uma voz soou perto e Narciso saiu das sombras. - É seguro revelar-me?
- Estiveste por um triz! - riu-se Vespasiano. - Que espectáculo tão admirável.
- Obrigado.
- Diz-me, estou curioso. Não há nenhuma indignidade a que não te sujeites para apoiar a tua causa?
- A minha causa? Aquela humilhação a que assististe não foi por mim. Eu fi-lo pelo Imperador e por Roma. Um dia irás aprender, Vespasiano - disse-lhe Narciso, numa
voz amarga. - Um dia irás aperceber-te de que a única coisa que mantém um Estado a funcionar é o número de burocratas dispostos a comer merda para continuar em frente.
É dessa forma que avalias o empenho deles. E o facto de nunca serem mencionados pelos historiadores é uma prova do seu sucesso. Farias bem em lembrar-te disso.
- Oh, está descansado, não me irei esquecer. Mas que te passou pela cabeça para recorrer a uma estratégia daquelas?
- Vivemos numa época de cinismo - respondeu-lhe Narciso.
- Um apelo directo a sentimentos patrióticos estava condenado a falhar, então era preciso uma abordagem diferente. Peço aos Deuses para que seja suficiente. Achas
que resulta?
- É esperar para ver.
- Sim. Posso refugiar-me no teu acampamento esta noite?
- Ninguém mais te irá aceitar - disse-lhe Vespasiano, com um sorriso. - Queres que te providencie uma escolta para regressares ao acampamento?
- Preciso primeiro de ter uma conversa com uma pessoa. Há um pequeno assunto que precisa de ser resolvido. Vemo-nos mais tarde.
O administrativo envergou uma túnica militar por cima das suas roupas rasgadas, depois pôs-se a caminho do acampamento central. Vespasiano regressou ao quartel-general
e exigiu a presença de Macro.
Pouco depois, o centurião, arranjado à pressa, apareceu em sentido à frente do legado.
- Centurião Macro, em virtude das provas de qualidade que tem dado em combate e da discrição com que desempenhou os seus deveres de escolta, o administrativo Imperial
e eu temos um pequeno trabalho para si quando chegar à Britânia...
A atmosfera festiva que reinava no acampamento, em resultado do dia de diversões no anfiteatro, prolongou-se pela noite fora até ao ponto em que os soldados amotinados
esgotaram a reserva de bebidas do exército e regressaram às suas secções para dormir. Os demasiado bêbados para se levantarem, encontraram cantos sossegados e deixaram-se
adormecer. E, por isso, nas horas negras que antecederam a madrugada, poucos estavam despertos para testemunhar o sucedido.
Uma pequena unidade de centuriões, liderado por Vitélio e Pulcher, acompanhava um carro que percorria o caminho através do acampamento, prendendo homens cujos nomes
estavam marcados numa lista providenciada por Narciso. A maioria das vítimas eram veteranos que se tinham juntado às Águias nos últimos anos do reinado de Augusto
e desprezavam a decadência moral que se seguira quando, primeiro Tibério, depois Calígula, se tinham tornado Imperadores. A maioria estava demasiado bêbada ou cansada
para resistir, enquanto eram arrastados das tendas. Pulcher certificou-se de que estavam bem presos antes de serem atirados para o carro. Quando um mais alerta que
os restantes tentou gritar por ajuda, Pulcher não hesitou em cortar-lhe a garganta e ameaçou fazer o mesmo aos outros, caso murmurassem uma única palavra. E, assim,
quando o céu mostrava os primeiros sinais da alvorada, a pequena procissão passou silenciosamente pelos portões do acampamento e dirigiu-se a uma distante floresta,
onde parou numa clareira longe das legiões em repouso.
Enquanto Vitélio foi apresentar um relatório a Narciso, os homens aprisionados foram arrastados do carro e colocados em linha. Ajoelharam-se, olhando com receio
para Pulcher que percorria a linha de baixo para cima, com um sorriso hediondo no rosto coberto de cicatrizes. Quando a linha foi formada, retirou, com um gesto
casual, a adaga.
- Muito bem, traidores, já tiveram o vosso divertimento. Agora é a minha vez. Quero nomes. Quero saber quem vos dá ordens em Roma. Não quero saber se a maioria de
vocês não possui essa informação. Se eu obtiver nomes, vocês vivem, senão, morrem. Tão simples quanto isso.
Pulcher aproximou-se de um veterano de cabelos grisalhos, no fim da linha.
- Tu primeiro. Nomes?
O homem cerrou os lábios e cuspiu para os pés de Pulcher. Sem a menor hesitação, Pulcher pegou-o pelos cabelos e inclinou-lhe a cabeça para trás. A adaga rasgou-lhe
o pescoço e o sangue jorrou para o chão
da floresta. Pulcher largou o homem que tombou e sofreu convulsões até ficar imóvel.
- Muito bem, quem é o próximo?
Pouco depois da madrugada, Pulcher regressou ao campo da Segunda legião e procurou pelo tribuno Vitélio. Apresentou uma lista de nomes inscritos numa placa de cera.
Com um ar soturno, Vitélio percorreu a lista com o dedo - havia poucas surpresas - até que o seu dedo parou abruptamente.
- Tens a certeza acerca deste último nome? - perguntou-lhe, num tom duro.
- Foi esse o nome que o homem me deu.
- Isso explica como é que a oposição soube da visita de Narciso tão rapidamente. Quem te deu este nome?
- Aurélio, tribuno sénior da Nona. Tem boas ligações em
Roma.
- Sei disso, obrigado pela informação - respondeu-lhe Vitélio numa voz irascível. - Suponho que não haja a possibilidade de ter uma palavra com o tribuno Aurélio?
Pulcher abanou a cabeça.
- Disse-me que tinham que desaparecer. Receio que me tenha limitado a fazer o que faço sempre.
- É uma pena. Gostaria de ter confirmado pessoalmente este nome. Mas teremos que aceitar esta informação de Aurélio como verdadeira.
- Contamos a Narciso?
- Não, não me parece. Pelo menos, não agora.
- Está bem. É melhor voltar para a floresta então. Tenho que proceder a algumas escavações.
Quando o sol do meio-dia irradiou a sua luminosidade sobre as sentinelas colocadas no portão principal do acampamento, surgiu um carro vindo da enorme floresta que
se estendia desde o interior até à costa. O carro estava a ser escoltado por um grupo de centuriões de ar severo, com Pulcher sentado no banco do condutor, a assobiar
com um ar contente. O carro entrou na base e as sentinelas observaram que carregava apenas pás e picaretas - também era visível uma mancha escura nas tábuas de madeira.
XXXIII
O sol vespertino abateu-se sobre o convés, entrecortado pelas sombras do mastro e do cordame que faziam parte do transporte da legião. Na proa do barco, um marinheiro
lançava para o mar uma linha com um peso pendurado na ponta, de modo a poder ler a profundidade, mal a linha tocasse no fundo. O barco foi manobrado pela entrada
do canal e o capitão ordenou que as velas fossem encurtadas com os rizes. Enquanto os marinheiros trepavam ao topo dos mastros e se espalhavam pelo cais, Cato caminhava
vagarosamente em direcção à base do grosso gurupés.
Mal o barco se afastara do porto de Gesoriaco e fora envolvido pelo constante embalar das ondas, os enjoos apoderaram-se dele. Cato juntou-se a outros homens que
vomitavam os conteúdos do estômago pela borda fora, para o mar em espuma que rodeava o movimento do barco. Macro aproveitou a oportunidade para comer várias iguarias
que comprara no mercado do porto antes de embarcarem. Não resistiu a oferecer o último ao seu optio, e desatou a rir perante o olhar de pura agonia que recebeu em
resposta ao seu gesto.
Quando o transporte deu entrada nas águas resguardadas do ancoradouro, Cato sentiu a terrível náusea dar-lhe tréguas, e, com uma mão apoiada no tirante, olhou para
o canal onde a frota invasora se encontrava ancorada. Centenas de barcos ocupavam a superfície brilhante do mar; navios de guerra polidos, com as suas altas torres
fortificadas erguendo-se acima dos bancos de remos alinhados em cada lado, barcos de transporte carregados de tropas a aproximarem-se da costa e centenas de pequenos
barcos a atravessarem o mar, transportando provisões e equipamento provindos da Gália.
Os legionários amontoaram-se na borda para obter uma melhor vista, e foram empurrados e amaldiçoados pelos marinheiros, que ainda tinham que manobrar o barco enquanto
fazia lentamente o seu percurso
em direcção à costa, impelido por uma brisa ligeira. A misteriosa ilha da Britânia coberta de nevoeiro, há tanto tempo uma parte do folclore romano, revelava-se
como uma linha de costa sem grande interesse, a banhar-se ao calor do sol do meio-dia. A excitação deu lugar a um certo desapontamento, ao verem as serenas paisagens
de quintas, campos e florestas a estenderem-se no horizonte nublado. Aqui e acolá, pequenas colunas de legionários espalhavam-se pelo território enquanto, ao longe,
a leve nuvem de pó criada pela retaguarda marcava o lugar por onde o corpo principal das primeiras duas legiões tinha escolhido penetrar no interior.
Durante os últimos dois dias, os homens tinham ouvido apenas relatos superficiais acerca do progresso da invasão. A tripulação do transporte que regressara para
a segunda divisão do exército apenas soubera relatar que as primeiras duas legiões tinham conseguido desembarcar sem encontrarem oposição. Como Cato podia observar,
não havia sinais de luta nem piras funerárias devido a camaradas mortos em combate, nem corpos de inimigos - na verdade, não havia sinais nenhuns da parte dos nativos-Era
difícil de acreditar. O relato de César dera grande ênfase aos perigos de invadir a Britânia, e indicava que o primeiro desembarque encontrara uma sólida oposição
por um inimigo que defrontou os romanos na praia e quase impôs um sangrento empate por entre o rolar das ondas. Isto, Por outro lado, parecia idêntico ao último
exercício anfíbio que Pláucio ordenara ao exército apenas há duas semanas: um grande número de romanos,11135 e um inimigo inexistente.
Com um grito do capitão, o barco alterou o curso. A grande vela foi orientada num ângulo mais conveniente a dar para o convés, e a proa toi impelida para a frente
do centro do canal. A proa estabilizou num espaço entre a linha de barcos próxima da costa que tinham sido identificados com bandeirolas vermelhas, a esvoaçarem
preguiçosamente ao sabor da brisa. Alguns dos barcos que transportavam elementos da Segunda legião já tinham procedido ao desembarque, e Cato pôde ver um grupo de
cavaleiros a cavalgar na praia em direcção ao interior verdejante. Esses seria(tm) Vespasiano e o seu grupo de comando já levando algum avanço, de moao a delimitarem
a área onde a legião se congregaria durante a noite, antes de seguir no encalço da Décima Segunda e Nona legiões.
Ele não marcharia com eles, pensou Cato com um súbito misto de excitação e medo. Enquanto o resto da Legião marchava de encontro ao inimigo, faria parte de um pequeno
contingente sob o comando de Macro, para desempenhar uma missão especial. O centurião ainda não tinha revelado detalhes acerca da missão e encontrava-se isolado
dos homens, na popa do barco e a observar o mar cheio de lama. No momento em que Cato olhava para ele, Macro cuspiu para a água e virou-se, captando o olhar do seu
subordinado. Ficou por uns instantes imóvel, depois caminhou em direcção à proa por entre o grupo de legionários a ocuparem o poço do barco.
- Afinal não é assim tão assustador, não é verdade? - apontou com a mão para a costa.
- Não, senhor - respondeu Cato. - Até é bastante agradável. Parece que poderão dar umas boas terras de cultivo mal nos estabeleçamos.
- E o que poderia um rapaz do palácio saber de horticultura?
- Não muito. - Cato teve que admitir. - Apenas o que li sobre isso nas obras de Virgílio. Faz parecer a agricultura uma actividade muito interessante.
- "Uma actividade muito interessante". - Macro imitou-o. - Um agricultor leva uma vida difícil, não há nenhuma poesia nisso. Só mesmo pessoas vindas da cidade que
visitam de vez em quando as suas propriedades, poderiam fazê-la parecer uma actividade tão interessante.
Macro arrependeu-se de imediato da sua resposta dura, e sorriu ao dar palmadas no ombro do optio.
- Desculpa. Fui um pouco duro demais. Mas estou a pensar noutras coisas mais importantes.
- Que coisas, senhor?
- Coisas que só interessam a patentes superiores à tua. Vais-me desculpar, Cato, mas não posso dizer nada até estarmos longe da legião. Foram essas as minhas ordens.
- Interrogo-me de quem terão vindo as ordens - disse Cato, numa voz calma. - Do nosso comandante - ou de Narciso, talvez?
- Não vale a pena tentares obter informação, não te posso revelar nada. Sê paciente. Pensava que por esta altura o exército já te tinha ensinado isso.
Cato franziu o cenho e olhou para as fortificações cada vez mais próximas que se erguiam na praia e nos terrenos circundantes.
Quando Vespasiano dera as suas ordens, colocara grande ênfase na necessidade de segredo absoluto. Dos onze homens que Macro seleccionara, apenas Cato fora informado,
e mesmo o optio apenas sabia que fora seleccionado para uma missão perigosa. Ao observar a linha da costa cada vez mais próxima, recordou os acontecimentos da noite
passada na tenda de Vespasiano. O legado olhara para ele à luz fraca de uma lamparina de óleo, com o som da chuva a cair na tenda.
- Claro que vais precisar de um carro para a viagem de regresso.
- Sim, senhor.
- Por isso, certifica-te de que arranjas um da reserva de carros, eu darei ordens a um administrativo para que trate de tudo. - Vespasiano engoliu de um trago a
sua taça e fixou os olhos no centurião. - Espero que tenhas consciência da importância desta missão.
- Sim, senhor. Com esse dinheiro, precisa de alguém em quem possa confiar, senhor.
- Sim. - Vespasiano acenou com a cabeça. - Mas não se trata apenas disso. O Imperador precisa desesperadamente de todas as peças de ouro e prata a que puder deitar
as mãos. A única coisa que o mantém agora no poder é o apoio do exército, e mais importante, aqueles filhos da mãe avarentos da Guarda Pretoriana. Cláudio continuará
no poder enquanto o dinheiro continuar a chegar às tropas. Entendido?
- Sim, senhor.
- Por isso é de vital importância que recuperemos a arca e - Vespasiano continuou, dando um especial realce às suas palavras. - os homens que seleccionares para
o trabalho não devem saber de nada. O mais provável é os inimigos do Imperador já terem sido informados acerca disto, e nós próprios não nos atrevemos a revelar-nos
abertamente. Se alguma palavra disto chega aos ouvidos errados, não serão os únicos a procurarem por essa arca. Têm que a localizar primeiro. Penso que vais achar
já haver perigo suficiente a enfrentar da parte dos nativos, sem teres que te preocupar com o teu próprio lado.
- É-me permitido perguntar com quem exactamente devo preocupar-me, senhor?
Vespasiano abanou a cabeça.
- Suspeito de alguns dos nossos camaradas de armas, mas neste momento não tenho quaisquer provas.
- Estou a ver. - Macro via perfeitamente. Via que esta missão tinha um encargo adicional: expor os membros da Legião que pudessem constituir uma ameaça ao Imperador,
mesmo se isso significasse usar Macro e os seus homens como isco. - E quando nos encontrarmos...
- Se...
- Se nos encontrarmos com essas pessoas. O que irá acontecer então, senhor?
- Provas-me que escolhi os homens certos para o trabalho. Se fores bem sucedido, em qualquer uma das missões, prometo-te que descobrirás que eu, ou o Imperador,
não somos pessoas ingratas.
Macro permitiu-se um leve sorriso. Então estava perante uma missão desesperada e perigosa, mas uma que iria trazer boas compensações, caso tudo corresse de acordo
com o plano simples que Vespasiano delineara. Demasiado simples, pensou Macro.
O objectivo era liderar um pequeno grupo de homens e um carro para Sul, em direcção aos pântanos, muito para além da protecção do exército principal. Qualquer contacto
com nativos ou batedores do exército romano devia ser evitado. Uma vez chegados aos pântanos, devia usar o mapa que Vespasiano lhe providenciara para localizar as
ruínas de um carro afundado num lamaçal há quase cem anos. Após localizar o carro, o contingente devia recuperar uma arca e carregá-la de volta para a viagem de
regresso à Legião, onde seria entregue ao legado em pessoa. Sob nenhumas circunstâncias a arca deveria ser aberta. A visão do tesouro que continha a arca era capaz
de corromper as mentes dos legionários. E como se a inevitável curiosidade dos seus homens não fosse já problemática o suficiente, havia a possibilidade de ter que
lutar no caminho através de território inimigo contra nativos e homens que, supostamente, pertenciam ao seu lado, envolvidos num perigoso jogo político.
- Mais alguma coisa que precises de saber, centurião?
- Apenas uma coisa. O que acontece se falharmos em encontrar o carro e a arca?
- Nem consideres tal hipótese - disse simplesmente Vespasiano.
- Muito bem. - Macro assentiu.
O legado estava contente por Macro não ter uma real consciência dos perigos que corria. Se a missão falhasse, então a arca permaneceria no pântano, à espera que
outra pessoa a encontrasse. Não havia garantias de que o mapa original fornecido por Narciso fosse o único, e agora que confiara ao centurião uma cópia, não havia
garantias de que outras cópias não fossem feitas. Se a missão falhasse, então seria muito inconveniente ter um punhado de soldados com a mera suspeita do que poderia
estar escondido no pântano. Mas, quanto a isso, estava tudo a ser tratado.
-É tudo, centurião?-perguntou-lhe Vespasiano, e Macro acenou com a cabeça. - Então o melhor é ires e preparares os teus homens. Não voltaremos a falar até que voltes
para a legião com a arca.
- Sim, senhor.
- Boa sorte. E adéus.
Quando Macro saiu da tenda, dobrou o mapa com cuidado e ocultou-o no interior da couraça, um pouco incomodado com o tom de finalidade com que fora dispensado pelo
legado. Mas agora a missão fora posta em movimento e não podia mais voltar atrás.
O capitão do barco deu ordens aos tripulantes para que largassem as escotas e as velas fossem recolhidas. O barco continuou a navegar em frente, e um ligeiro tremor
foi sentido por todo o convés quando encalhou a uma curta distância da praia.
Da popa, o capitão levou as mãos à boca e gritou:
- Prancha de desembarque!
Os legionários abriram caminho a uma longa rampa carregada pelos tripulantes, que foi deslizada borda fora até a ponta ficar a apenas alguns metros de distância
da costa. Um dos marinheiros deu o sinal e, de imediato, largaram a prancha no mar, espirrando água por todo o lado. A parte traseira da prancha foi então afixada
ao convés, através de duas peças de ferro colocadas em encaixes na madeira.
- Aqui estás tu! - O capitão deu uma palmada no ombro de Macro. - Depois desta travessia do oceano, entrego-vos em segurança. Espero que a viagem vos tenha agradado.
- Foi uma boa viagem - respondeu Macro, sem grande entusiasmo. Como a maioria dos soldados, acreditava que a terra era o lugar dos homens, e o mar para os peixes
e idiotas que se aventurassem nele.
- Obrigado por tudo.
- O prazer foi meu. E vejam lá se dão uma boa luta aos nativos.
- Faremos o nosso melhor.
-Agora agradecia que os teus homens saíssem já do barco. Regressamos imediatamente para a Gália. Uns cavalos que temos que transportar esta noite para uma coorte
síria.
- Esta noite? - Macro mostrou-se surpreendido. - Pensava que vocês marinheiros evitavam viajar de noite.
- Em circunstâncias normais, não viajamos. - O capitão sorriu afavelmente. - Mas estamos a ser bem pagos pela viagem, e uma boa soma de dinheiro é sempre bem vinda.
Portanto, se não se importam...
Macro virou-se para os seus homens expectantes.
- Muito bem, rapazes, desembarquem. Certifiquem-se de que não deixaram nada a bordo, ou não voltarão a vê-lo de novo.
Em fila indiana, os legionários desceram pela prancha de desembarque e, mantendo o equipamento fora do alcance da água, saltaram para o mar que lhes dava pela cintura
e assim foram caminhando até à praia. Quando Macro e Cato alcançaram a linha de cascalho ao longo da praia-mar, a prancha estava já a ser retirada e uma equipa de
tripulantes dava uso a longas varas para libertarem o barco.
- Qual é a pressa? - Cato apontou para o barco.
- Dinheiro.
- O que os homens não fazem por ele! - Cato riu-se.
XXXIV
Um nevoeiro húmido e pegajoso formou-se durante a noite, e quando soou o segundo toque, o chão estava já coberto por um fino véu branco. O fraco fumo criado pelas
fogueiras realçava as silhuetas de Vitélio e do seu guarda-costas, Pulcher. O tribuno passou uma pequena placa a Macro.
- Aqui tens a tua autorização. Está assinada pelogeneral, por isso não deves ter problemas com os guardas, se bem que duvido que isso te valha alguma coisa com os
bretões que encontrares no teu caminho.
Macro não se riu ao receber a placa e a enfiar na mochila. Mesmo típico de um oficial mandar piadas a homens que bem podia estar a enviar para as suas mortes, pensou
com desprezo.
- Muito bem, centurião, desejo-te sucesso para a tua missão, seja ela qual for.
Macro assentiu.
- Boa sorte.
Macro fez uma saudação e virou-lhes as costas, indo de encontro às formas imóveis dos seus homens que o esperavam como sombras no nevoeiro fantasmagórico. Um homem
na retaguarda murmurava insultos ao par de mulas encarregues de puxar o carro. Perturbadas de um merecido repouso após um dia traumático no mar, as mulas não se
encontravam com a melhor disposição, as suas longas orelhas estremeciam nervosamente e o vapor das suas respirações era libertado das narinas. Macro deu o sinal
para iniciarem a viagem, e o arrieiro deu uma pancada na garupa de uma das mulas com o cabo de um dardo. Com um gemido de protesto, ambas as bestas puxaram contra
os arreios. O carro fora despido de todos os acessórios dispensáveis e os eixos das rodas devidamente oleados, de modo que o único som que vinha do grupo era o som
das rodas a calcorrearem o chão. O nevoeiro cobria
ainda mais os sons da noite, e para os homens do destacamento, o barulho dos seus passos na erva comprida parecia anormalmente alto. Atrás deles, os ecos da Segunda
legião desapareceram, e não passou muito tempo até parecer que eram os únicos seres humanos a aventurarem-se a coberto da noite.
Para Cato, nascido e criado na maior cidade do mundo, o silêncio era terrivelmente opressivo: a sua imaginação desperta transformava cada pio de coruja ou cada farfalhar
da folhagem num assassino bretão a rondar os romanos, até chegar o momento certo para a chacina. Marchava atrás do seu centurião e, não pela primeira vez, invejava
o modo como Macro caminhava na vida, com um tal ar de confiança e invulnerabilidade
- o que era irónico, dado o número de cicatrizes que tinha.
A pequena coluna de Macro continuou em frente, e de cada vez que eram desafiados por guardas em postos de vigilância, davam a senha e eram autorizados a passar,
perante o olhar curioso das sentinelas ao carro que levavam atrás deles. Depois, o estranho destacamento perdeu-se por entre o nevoeiro húmido, e até mesmo os sons
do carro foram engolidos pela escuridão.
Quando veio a mudança de turno dos guardas nos postos de vigilância, chegou ao conhecimento do quartel-general o estranho destacamento que fora avistado na noite.
Vespasiano foi confrontado por um perplexo oficial sénior que queria a confirmação de que Macro actuava sob ordens.
- Doze homens e um carro? - Vespasiano perguntou irritado, pois havia assuntos mais urgentes que requeriam a sua atenção.
- Sim, senhor.
- Isso é muito estranho. Não me parece que seja uma patrulha de reconhecimento.
- Não, senhor. Foi o que pensei. - O oficial de guarda acenou com a cabeça. - Deseja que mande um destacamento de cavalaria atrás deles, senhor?
- Não vale a pena. E, de qualquer modo, não podemos dispensar homens agora. Os batedores perderam contacto com uma das colunas bretãs: precisamos de toda a nossa
cavalaria para voltar a localizá-los.
- Muito bem. Então que devo fazer, senhor?
- Escreve uma notificação no registo de guarda. E até sabermos do contrário, o melhor é considerá-los como desertores.
- Desertores? - O oficial de guarda quase que se riu de ideia tão
ridícula. - Mas serão cortados aos pedaços pelos primeiros bretões que encontrarem no caminho, senhor.
O olhar frio do legado avisou-o para não proferir mais uma palavra.
- Eu disse desertores. E se forem apanhados, quero que os tragam à minha presença. Ninguém deve aproximar-se ou falar com eles.
- Sim, senhor.
Quando o oficial de guarda se foi embora, Vespasiano franziu o cenho. Sentia-se culpado por acusar Macro e os seus homens de desertores. Mas se falhassem na missão
teriam que ser silenciados; não podiam correr o risco da existência da arca chegar ao conhecimento de outros. O legado tentou afastar do pensamento o centurião e
a sua missão. Nas circunstâncias actuais, o movimento dos bretões era uma fonte de constantes preocupações. No momento em que a força invasora desembarcara, Pláucio
enviara batedores para localizar o exército do inimigo, mantendo-o informado sobre a sua dimensão e movimentos. Mas o denso nevoeiro da noite passada e a bruma que
ainda persistira de madrugada permitira que uma grande força bretã de quadrigas e infantaria, cerca de nove ou dez mil homens, desaparecessem de vista dos cavaleiros
romanos; o comandante da cavalaria tentara desesperadamente encontrá-los durante a noite. Vespasiano acabara de ser informado que a força desaparecida estava sob
o comando de Togodumno - irmão de Carátaco, o líder do exército bretão, e longe de ser um imbecil inexperiente, a acreditar nos relatos dos exilados que acompanhavam
as forças romanas.
Uma frecha de luz laranja abateu-se nos papéis à sua frente, e Vespasiano viu então que o sol nascente encontrara uma abertura na sua tenda. Ia ser um dia difícil,
mas mal tivesse tempo, iria fazer alguém pagar pelo modo desleixado como tinham erguido a tenda.
Quando o horizonte se iluminou com os primeiros sinais de alvorada, Macro ordenou uma paragem. Os homens deixaram-se cair na berma da estrada, exaustos por uma noite
de marcha que lhes deixara os nervos em franja, mas ao verem a escuridão começar a dissolver-se com o iminente nascer do sol, sentiram-se mais animados. Depois de
terem deixado para trás os postos de vigilância, por duas vezes foram forçados a afastar-se do caminho para dar passagem a cavalos, mas nenhum soube dizer se eram
batedores romanos ou bretões que tinham cavalgado na escuridão. Durante o resto da noite, tinham continuado a
marcha o mais silenciosamente possível, à espera de serem atacados a qualquer momento. Os primeiros raios de sol iluminaram o rosto cansado de Cato, que comia um
pedaço seco de carne de porco. Virou-se para Macro.
- Ainda falta muito, senhor?
- Devemos chegar à noite. Olha para ali. - Apontou para a paisagem ondulante que se estendia à distância, uma vasta extensão ainda coberta por um manto de névoa,
excepto no ponto onde uma estranha elevação se erguia como uma ilha num mar de leite. - É ali que começa o pântano.
- E como é suposto encontrarmos o carro no meio do pântano, senhor?
- Continuamos a seguir por este caminho até encontrarmos uma depressão que conduz a um pequeno bosque. O carro está escondido no pântano por um tronco de carvalho
ardido. Não deve ser muito difícil de localizar.
Ao olhar para o caminho que desaparecia no nevoeiro, Cato teve sérias dúvidas de que a busca fosse ser assim tão fácil. O pântano distante esperava por eles com
uma inércia fria e dormente que fez Cato sentir subitamente um medo supersticioso. Era esta a visão do submundo que ouvira o seu pai descrever, quando era pequeno.
Sombras e espectros envolviam as formas tenebrosas das árvores, rodeadas por um nevoeiro que se movia ao sabor da mais ligeira das brisas.
Macro olhou fixamente para a distância na estrada, depois rapidamente perscrutou os campos em volta, à procura de sinais de movimento. À esquerda, a paisagem ondulava
serenamente e ao longe avistava-se o brilho do mar, à direita a escassa terra de cultivo abria caminho a uma floresta distante. Tudo perfeitamente imóvel. Os bretões
tinham levado os animais para fora do alcance dos invasores, e todas as provisões de grão tinham sido queimadas. Bem, decidiu Macro, por agora era seguro continuarem
em frente. Levantou-se.
- De pé, seus preguiçosos. Temos trabalho a fazer.
Ergueram-se, cansados, do chão e colocaram-se em formação. O
centurião reiniciou a marcha pela estrada fora e os homens seguiram-no, tensos e exaustos. O caminho começava a descer em direcção ao pântano, e as mulas tiveram
que ser fortemente arriadas de modo a evitar que ganhassem velocidade. Na orla do pântano, o caminho estreitava a ponto de as rodas do carro calcorrearem a erva
da berma. O chão tornara-se mais macio e Cato conseguia senti-lo a ceder à pressão das suas botas, à medida que a coluna avançava no interior da névoa. Em pouco
tempo, as paisagens bretãs desapareceram e um horizonte
branco indefinido rodeou-os por todos os lados. Nas suas costas, o sol esforçava-se em se fazer sentir por entre a densa neblina, e o ar estava frio e húmido. Ninguém
falava, e os únicos sons vinham das mulas a puxar o carro através da turfa.
O caminho estreito atravessava o pântano. Devido a uma parte do terreno ser demasiado macia para a passagem de carros, tinham sido colocados passadiços de toros
de madeira, cobertos por cascalho. Com uma regularidade enervante, primeiro uma roda do carro, depois a outra, encalhavam no lodo negro que ladeava o caminho. Os
legionários tinham que largar as lanças e escudos e encostarem-se às traves, numa tentativa de libertarem o carro e trazerem-no de volta ao caminho. Não tardou muito
para que os homens estivessem sujos, a tresandar a lama e completamente exaustos. Macro permitiu-lhes uma curta pausa, e depois sentou-se miseravelmente numa pequena
elevação coberta de musgo rodeada por uma extensão de água. Pela posição do disco dourado suspenso por cima do nevoeiro, Macro calculou que ainda não passava do
meio-dia, e no entanto, ao olhar para os homens abatidos e cansados à sua volta, sabia não serem capazes de continuar a marcha e ainda esperar que fossem capazes
de desencalhar o carro, mal fosse encontrado. Já devia estar próximo, se as indicações que lhe tinham sido dadas fossem correctas.
Uma súbita intensidade luminosa forçou-o a olhar para cima e viu que o sol finalmente conseguira subjugar o nevoeiro. A luminosidade começou aos poucos a desvanecer
a névoa branca e o ar aclarou na distância.
- Cato!
- Senhor?
- Põe-te naquele morro ali. Vê se consegues localizar o tal tronco de árvore. - apontou para um monte coberto de musgo e Cato para lá se dirigiu relutantemente.
Pisando com cuidado a superfície musgosa, testou o chão para se certificar de que aguentava com o seu peso.
- Não me venhas com mariquices, rapaz. - disse Macro irritado.
- Sobe isso.
Com os braços estendidos para amortecerem a sua queda, Cato ergueu-se lentamente. A superfície por debaixo do musgo surpreendeu-o pela sua firmeza, e foi capaz de
permanecer erecto e observar o ambiente à sua volta. Mais à frente, o caminho levava a um pequeno declive e desaparecia num charco negro de péssimo aspecto. Bastou-lhe
um olhar para perceber que era óbvio que o carro não conseguiria mais acompanhá-los. Macro não iria gostar nada de ouvir isso.
- Vês alguma coisa que se pareça com o nosso tronco?
- Não, senhor.
- O que é aquilo ali, naquela direcção? - Macro apontou para uma abertura por entre o nevoeiro que revelou várias árvores mortas, negras e distorcidas sobre um fundo
branco.
- Não tenho a certeza, senhor.
- Então esforça-te mais a ver, porra!
Cato piscou os olhos cansados, mas era complicado ver alguma coisa em pormenor e a neblina voltara a cerrar-se à volta das árvores mortas. Por instinto, debruçou-se
para a frente para obter uma melhor vista. Com um ruído seco, o musgo cedeu debaixo dos pés dele e Cato caiu para a frente, no caminho, com os braços estendidos.
Caiu com força e, por momentos, ficou sem respiração.
- Estás bem? - Macro ajudou-o a levantar-se.
- Sim, senhor.
- Sabes, Cato. - Macro sorriu. - Já conheci soldados trapalhões no meu tempo, mas tu...
- A culpa não foi minha, senhor! O raio do chão é que cedeu.
- Estou a ver. - Macro virou-se para observar o local de onde Cato tinha caído. Um grande pedaço de musgo tinha caído para revelar uma massa disforme em ruínas,
coberta por vegetação decadente.
- Ali, senhor. Consegue ver? - protestou Cato em sua defesa.
- Toda essa coisa está podre.
Calou-se por uns momentos, e depois começou a arrancar num gesto curioso pedaços de musgo, depois mais outros pedaços, atirando-os animadamente para o chão. Macro
voltou a sorrir-lhe:
- Não é preciso levares as coisas tão a peito.
Cato ignorou-o e continuou a retirar o musgo até que, pouco depois, os vestígios de uma árvore de tronco apodrecido tornaram-se visíveis. Levantou-se e olhou à sua
volta; havia outros morros semelhantes cobertos de musgo em --redor do caminho. Correu para o morro mais próximo e pontapeou o musgo até revelar também um outro
antigo tronco de árvore. Olhou para Macro, com um grande sorriso.
- Mas que raio? - O centurião estava espantado com as acções do jovem, com um comportamento demasiado excêntrico.
- Senhor! Já percebeu?
- Já percebi que finalmente enlouqueceste por completo.
- São troncos de árvores, senhor! Troncos de árvores!
Cato esperou para que as suas palavras provocassem uma reacção, com um sorriso radioso espetado no rosto coberto de lama. Macro não foi capaz de evitar um sentimento
de afecto paternal. Cato parecia um pequeno rapaz - era impossível ficar zangado com ele.
- Troncos de árvores? - respondeu-lhe Macro. - Sim, bem, estou a ver que são troncos de árvores. Provavelmente, foram derrubadas para construir os passadiços.
- Exacto, senhor! Exacto. Derrubadas. Quantas diria que foram cortadas, senhor?
Macro olhou à sua volta.
- Cerca de dez ou doze.
- Acha que dez ou doze árvores são o suficiente para formar um pequeno bosque?
Macro fitou-o, e um arrepio percorreu-lhe as costas nesse momento.
- Todos de pé!
Os legionários, sentindo-se sujos e de rastos, esforçaram-se para não parecer menos entusiasmados e puseram-se de pé.
- O optio pensa que estamos no sítio certo. Comecem a procurar pelos restos de um carro na berma do caminho.
Os legionários olharam para o charco tristonho e escuro que os rodeava, depois de novo fitaram o centurião, à espera de indicações maisprecisas.
- Mas de que estão à espera? Ponham-se a mexer - disse Macro numa voz firme. - O carro não vai ser encontrado por ele próprio!
Sem esperar pelos outros, o centurião começou a atacar o morro mais próximo à beira do caminho, arrancando punhados de musgo húmido e atirando-os para o lado. Os
outros seguiram-lhe o exemplo com relutância, e cedo toda a área verdejante foi arruinada. Torrões de musgo e terra voavam pelo ar às mãos de uns legionários cada
vez mais sujos, concentrados em desenterrar sinais do carro perdido. O sol lentamente caminhou para o seu ocaso, sem produzir efeitos na névoa que cobria a vasta
extensão do pântano. Os legionários nada encontraram, e, um por um, sentaram-se a observar os escombros escuros de turfa e madeira podre, fruto dos seus labores.
Macro deixou-os descansar sem dizer uma palavra e sentou-se sobre os calcanhares, fixando Cato com um olhar acusador.
- Disse apenas que podia ser o local que procurávamos. - Cato tentou justificar-se, com um ar culpado. - Pareceu-me uma boa hipótese, tendo em conta a situação.
- Hipótese? - murmurou-lhe Pirax, zangado. - Parecias bastante mais confiante há poucas horas.
- Talvez tenha cometido um erro. - Cato encolheu os ombros.
- Mas onde mais poderá estar o carro? Pelo ar da estrada mais adiante, não era possível ter conseguido avançar mais, e passámos por quantas
árvores? Nenhuma. Tem que estar por aqui perto.
- Onde, então? - Macro fez um aceno com a mão para indicar tudo à volta. - Já procurámos por todo o lado.
- Não sei, mas ainda não encontrámos nada.
- Que se lixe! - disse Pirax, cheio de raiva. - Centurião, o carro não está aqui. Qualquer idiota percebe isso. Ou passou-nos ao lado no caminho, ou nunca esteve
aqui, então. Porque não voltamos para a Legião?
Os outros legionários resmungaram o seu apoio.
Macro olhou para os pés e pensou por um momento, antes de se endireitar numa postura rígida.
- Não, ainda não. O rapaz tem razão. Se estiver nalgum lugar, então é aqui. Vamos descansar um pouco agora, e depois voltamos a escavar. Se até à hora do crepúsculo
não encontrarmos nada, regressamos.
Pirax praguejou e cuspiu para os pés de Cato. Cerrou o punho.
- A decisão é minha, Pirax. - interveio Macro, com dureza.
- Agora descontrai e vai descansar. É uma ordem. Entendido?
Pirax permaneceu em silêncio, lançando olhares gélidos ao optio. Depois virou-se para Macro e assentiu.
- Fiz-te uma pergunta.
- Sim, senhor.
- Muito bem. Agora senta-te.
Com um último olhar na direcção do optio, Pirax virou-lhes as costas e sentou-se entre os outros legionários, todos furiosos com Cato.
O jovem optio, incapaz de suportar mais as hostilidades que o assaltavam tão subitamente de todos os lados, escapou para a beira do pântano e começou a vaguear.
Os restos de um ramo sobressaíam da superfície negra à beira da vegetação, estendendo-se em direcção ao caminho. Com um profundo suspiro de frustração, Cato encostou-se
ao ramo, com a firme intenção de desocupar a sua mente de todas as preocupações e concentrar-se apenas na vista, por mais lúgubre que fosse. No momento em que encostou
o seu peso ao ramo, este cedeu com um ruído alto e caiu sobre a vegetação. Cato quase que perdeu o equilíbrio por uma segunda vez, mas acabou por conseguir manter-se
de pé, com gestos frenéticos.
- Cato! - gritou Macro. - Pelos deuses! Não és capaz de te manter de pé por mais algum tempo? Juro-te que já vi marinheiros inexperientes menos trapalhões que tu.
- Desculpe, senhor. Pensava que esta árvore ia aguentar o meu
peso.
- Árvore? - perguntou-lhe Macro, depois olhou para onde Cato indicou. - Isso não é nenhuma maldita árvore.
Debruçou-se e examinou o longo toro de madeira. Por baixo do líquen, sujidade e bocados de musgo, a madeira apresentava-se demasiado lisa e regular para um ramo.
Limpou a sujidade da ponta da madeira até expor um revestimento de ferro. Mais limpezas revelaram uma coelheira com dois suportes a sobressaírem dos lados da vara
de madeira.
- Bem, Cato. Podes não ser o rapaz mais ágil e destro que se juntou à Legião, mas as tuas trapalhadas têm os seus bons momentos. Sabes o que é isto?
Cato abanou a cabeça, um pouco espantado por o seu ramo ter revelado ferragem.
- É o varal de um carro. E onde há um varal, é lógico supor que também haja um carro. Vamos ver.
Macro agarrou no varal e ergueu-o por cima da cabeça, seguindo-o com o olhar até ao ponto onde desaparecia no lodo. Tentou abaná-lo, mas mesmo com o varal a mexer-se
de baixo para cima, era óbvio que estava preso a alguma coisa. Macro largou-o, e virou-se para os legionários que o observavam com curiosidade.
- Última tentativa, rapazes! Ponham-se de pé e venham cá ter. Parece que o optio tinha razão, afinal de contas. Claro que não duvidei dele nem por um instante.
Não fosse o facto de atacar um superior ser uma ofensa punível, Cato teria esmurrado Macro naquele instante.
XXXV
Aproximava-se a hora do crepúsculo e ainda não havia sinais das forças de Togodumno. Os cavaleiros batedores de três legiões tinham juntado forças com duas coortes
de cavalaria auxiliar e todo o território estava a ser sistematicamente passado a pente fino, em busca de qualquer sinal dos bretões. Até serem encontrados, a Segunda
legião estaria altamente vulnerável e Vespasiano mostrava-se desagradado com a ideia de abandonar uma posição fortificada, enquanto a localização e força do inimigo
permanecessem desconhecidos. A sua imaginação visualizava as consequências dos seus homens serem atacados em força e serem obrigados a formar uma linha de defesa.
Um ataque determinado, operado com a maior persistência e eficácia, podia destruir a Segunda. Era por essa razão que tinha colocado os batedores sob o comando directo
de Vitélio. Neste preciso momento, o tribuno encontrava-se algures no território bretão, com ordens para procurar incessantemente por Togodumno.
Entretanto, o general Pláucio pressionava sem misericórdia o inimigo e enviara mensageiros para a retaguarda a exigir a presença das duas novas legiões - a Segunda
e a Décima Quarta - e a ordenar a sua marcha para a frente de combate, de modo a susterem o ímpeto da ofensiva. O que precisavam era de uma vitória esmagadora e
decisiva, dissera aos seus subordinados. Se as quatro legiões conseguissem alcançar os bretões antes que atravessassem um grande rio, assistiríamos certamente na
batalha consequente à destruição do exército bretão. Depois disso, seria apenas uma questão de assaltar as fortalezas espalhadas e eliminar as forças sobreviventes.
O legado sorriu azedamente ao ler a missiva. O general não mencionara - ou talvez não tivesse antecipado - a acção das guerrilhas que iria inevitavelmente suceder-se
nos próximos anos, antes que a província pudesse ser considerada pacificada.
Vespasiano desejava partilhar da confiança do general sobre a
Quando Macro e os seus homens tinham acabado de limpar alguma da turfa viscosa e de cheiro nauseabundo que cobria o carro, o sol já se punha por trás da névoa ondulante.
Os homens estavam enfiados em lama até à cintura, esforçando-se por se libertarem dela. Tinham finalmente descoberto a arca que tinham por objectivo recuperar. Depois
de a limparem da lama, Macro examinou excitado a pesada arca de madeira e o ferrolho. Aparte as manchas inevitáveis e a humidade do pântano, a arca ainda estava
em boas condições e trancada por uma pesada fechadura. Os outros homens, agora que tinham sido compensados pelo seu trabalho, partilhavam o seu entusiasmo e ajudaram
a arrastar a arca para terreno mais sólido. Provou ser bem mais pesada do que o esperado, e quase que se afundou por várias vezes de novo na lama, antes de ser depositada
na relva à beira do caminho.
- Bem, rapazes, não há tempo a perder. Temos que carregá-la para o carro e voltar para a Legião.
Cato olhou para o céu.
- Não tarda muito, vai escurecer. Não vamos conseguir chegar antes da noite, senhor.
- Não. Mas ao menos saímos deste sítio. - Macro agarrou num dos suportes de ferro. - Venham! Vamos despachar isto.
Os doze homens à volta da arca não pouparam esforços para transportá-la para a estrada, e, depois, com um último tremendo esforço, acompanhado por silvos e apupos,
a arca foi erguida para a parte traseira do carro, que rangeu com o excesso de peso. Os homens encostaram-se aos lados, lutando para recuperarem o fôlego. Cato começou
a tremer,
o corpo tomado por um cansaço que raras vezes experimentara na vida. As suas pernas e músculos dos braços doíam-lhe abominavelmente, e o árduo labor das últimas
horas deixara-o quase doente. Ao olhar para os rostos dos outros homens, apercebeu-se de que estavam todos no limite das suas forças, e o máximo que seriam capazes
de fazer, era levar o carro para fora do pântano a coberto da noite.
Macro depôs os braços no topo da arca. Estava cansado, mas feliz por ter cumprido a missão. Mal a arca estivesse em segurança, na casa do legado, Macro poderia contar
a partir desse momento com um amigo bem colocado que lhe facilitaria o caminho para futuras promoções. Tinha subido na carreira, graças apenas à sua competência
e habilidades. Se queria avançar mais, era preciso uma mistura de astúcia, inteligência e boas ligações. Macro conhecia-se o suficiente para saber que pecava, por
defeito, nas duas primeiras qualidades; a terceira acabara de assegurar para o seu futuro. Deu umas palmadas afectuosas na arca.
- Bom trabalho, centurião - chamou uma voz, vinda da crescente penumbra nublada.
Macro virou-se, mão direita ao cabo da espada. Os outros homens puseram-se num instante de pé, alerta e de espadas desembainhadas.
Uma vaga forma emergiu lentamente da bruma e tomou a aparência de um oficial romano - o tribuno Vitélio. Atrás dele, materializaram-se mais figuras, homens de traje
sírio a liderarem cavalos. Ao avistá-los, Cato reconheceu-os de imediato e, lentamente, desembainhou a sua espada. E, ali, a segurar as rédeas do cavalo do tribuno,
encontrava-se Pulcher.
Vitélio caminhou em direcção a eles, parando a uma distância de alguns passos do carro.
- É essa a arca que foram mandados recuperar?
Macro ainda não tinha recuperado do choque da súbita aparição do tribuno. Franziu o cenho carregado de suspeita, mas não deu nenhuma resposta.
- Então, centurião? É essa a arca ou não?
- Sim, senhor. Mas que...
- Bom trabalho. Congratulo-te a ti e aos teus homens.
- Obrigado, senhor...
- Agora sou eu que tomo conta da situação. A arca precisa de ser devolvida ao legado o mais rápido possível - Vitélio dirigiu-se para os cavaleiros que aguardavam
as suas ordens. - Primeiros dois cavaleiros, aqui!
Vitélio aproximou-se do carro e deu palmadas na arca, mostrando um sorriso.
- Devem estar exaustos. Vão ficar contentes por se livrarem disto. Descansem antes de nos seguirem de volta para a Legião.
Macro acenou com a cabeça, enquanto a mente trabalhava rapidamente sobre como formular as seguintes palavras com cuidado. Conseguia ver os méritos da missão a escaparem-lhe
Por entre as mãos.
- Senhor, as nossas ordens foram expressamente claras. A arca deve ser entregue ao legado em pessoa.
- Eu sei. Mas as ordens foram alteradas.
- O legado foi bastante claro, senhor. Apenas a ele a arca deve ser confiada.
- Estás a questionar a minha autoridade, centurião? - Vitélio pernguntou-lhe friamente. - Estou-te a dizer que as ordens foram alteradas. agora irás passar o controlo
do carro aos meus homens, entendido?
Macro fitou-o, olhos frios incapazes de conter o ressentimento pelo superior estar prestes a roubar-lhe o prémio das mãos.
- Diga aos seus homens para se afastarem do carro, senhor disse Macro calmamente.
- O quê?
- Diga aos seus homens para recuarem. Não vão levar a arca.
- Centurião. - Vitélio tentou chamá-lo à razão. Não há nada que eu ou tu possamos fazer contra isso. Estou a obedecer a uma ordem directa de Vespasiano.
- As minhas ordens vieram de Aulo Pláucio mentiu Macro. Não desistimos da arca até eu obter novas ordens do general em pesssoa.
Vitélio olhou-o em silêncio, e os seus homens, sentindo uma confrontação por resolver, pararam a alguns metros de distância. O tribuno acabou por sorrir, e retrocedeu
alguns passos ao falar de novo:
- Muito bem, centurião. Guarda a arca, mas não será a última vez e ouvirás falar disto, garanto-te.
Virou-se e chamou os dois homens para que o seguissem, retirando-se para longe do carro em direcção à cavalaria que o aguardava.
Ao observá-los, Cato viu o tribuno a mover-se casualmente para um lado, colocando o caminho livre entre os seus homens e os legionários. Um súbito movimento de
uma das figuras na neblina captou a atenção de Cato e o seu olhar concentrou-se de novo no tribuno- Vitélio afastara a capa do seu braço da espada e olhava para
trás, para o carro. Os olhos de Cato arregalaram-se de espanto, ao aperceber-se do perigo.
- Para baixo! Escondam-se!
Atirou-se para o seu centurião e ambos rolaram Pelo caminho enlameado atrás do carro. Os outros legionários seguiram-nos, no instante
em que uma chuva de setas assobiou pelo ar. Um dos homens reagiu demasiado lentamente e, com um ruído perturbante, uma seta negra
enterrou-se-lhe na garganta. O legionário caiu de joelhos, a derramar sangue, tentando desesperadamente desalojar a seta. Mais duas setas de um segundo lançamento
atingiram-no na face e no peito e, com um grito, foi-se abaixo.
- Para trás do carro! - gritou Macro. - Ponham-se atrás do
carro!
Os legionários encolheram-se na sujidade, resguardados pelo carro, das setas que voavam na sua direcção. Dois homens foram feridos, e gritaram de dor ao tentarem
soltar as setas.
- Não tentem arrancá-las! - gritou-lhes Macro, consciente dos estragos causados pela extracção de uma ponta farpada. Se vivessem, as pontas teriam que ser extraídas
por um cirurgião.
Se vivessem.
Os sírios tentavam cercá-los de ambos os lados do caminho, limitados pelo pântano, e a tentarem minimizar a protecção eficaz do carro. Os legionários permaneciam
juntos, encolhidos. A maioria tinha deixado os escudos na relva e apenas um par tinha-os encostado ao carro. Agora, estes foram rapidamente passados para o lado
para proteger o flanco dos homens e deflectir as setas com um ruído seco. Ainda assim, as setas iam atingindo os seus alvos, e outro homem tinha sido ferido na perna.
- Mas que raio estão eles a fazer? - perguntou Pirax. - São dos nossos!
- Aparentemente, não. - respondeu Cato. - O que quer que esteja dentro desta arca, deve ser bem precioso.
- Quantos são? - perguntou Macro. - Alguém contou?
- Contei oito - respondeu Cato. - Vitélio, Pulcher e seis sírios.
- Então estamos em pé de igualdade. Em caso de ataque.
- Ataque? - Pirax repetiu chocado, mantendo-se junto ao chão.
- Senhor, matam-nos um a um se conseguirmos aproximarmo-nos deles sequer.
- As setas deles não vão durar para sempre.
- Podemos não viver tanto tempo.
Um súbito guincho estridente assustou Cato. Uma das mulas tinha sido atingida no flanco e agora zurrava de dor, tentando libertar-se dos arreios. Por uns instantes,
parecia que o animal ia entrar num tal pânico que conseguiria arrastar o carro para longe dos legionários. Salvaram-nos os outros animais que paralisaram de terror
perante a agonia do companheiro, mantendo assim o carro no mesmo sítio.
- Cuidado, idiotas! - gritou Vitélio a uma curta distância.
- Estão a atingir as mulas. Centrem bem os vossos alvos: apenas os homens!
- Obrigado, tribuno - disse Macro, numa voz amarga e cheia de raiva, constantemente assaltado por setas que atingiam o carro e escudos. Olhou para Cato e apontou
com o polegar para os atacantes. - Começo a ficar farto daqueles sírios. Está na altura de fazermos alguma coisa.
- Mas não agora, senhor. - implorou Cato. - Espere até ganharmos mais vantagem sobre eles.
As setas continuaram a voar, mas iam diminuindo em número, sinal de que os sírios começavam a esgotar munições. Cada um deles tinha encurtado a distância que os
separava do carro e atiravam sempre que encontravam um alvo visível. Mas a estreita passagem tornava impossível aos arqueiros cercar os legionários. Não faltou muito
para que aparentemente chegassem a um ponto em que nenhuma das partes avançaria. Os legionários, sem armadura e com apenas dois escudos, não se atreviam a atacar;
os arqueiros, com poucas armas e um fraco oponente contra infantaria pesada bem treinada, não se atreviam a desafiar os legionários em combates corpo-a-corpo. A
única esperança dos sírios consistia em diminuir a força de Macro, e derrotá-los pela vantagem de números.
Cessaram os disparos de setas, mas os legionários permaneceram cobertos, temendo que fosse uma armadilha.
- Macro! - chamou Vitélio. - Macro! Ainda estás vivo?
- Sim, senhor! - respondeu automaticamente o centurião ao seu superior.
- Óptimo. Macro, sabes bem que irei obter essa arca, mais cedo ou mais tarde. Estás encurralado e já chamei por mais homens. Ainda vão levar um tempo a chegar. Podemos
passar esse tempo aqui a olhar um para o outro, ou podes dar-me essa arca e deixo-vos partir.
- Vá à merda, senhor! - Macro respondeu-lhe de volta. - Quer a arca, vai ter que lutar por ela!
- Escuta-me, centurião! Se me fizeres esperar, não terás nenhuma misericórdia, garanto-te. Iremos vencer e matar-vos a todos. Dá-me a arca e viverão. Tens a minha
palavra.
- A palavra dele? - Cato ergueu as sobrancelhas em sinal de espanto. - Mas pensa que somos assim tão idiotas?
- Acabaste de ler os meus pensamentos, optio - disse Macro.
- Macro! - O tribuno chamou-o de novo. - Dou-te algum tempo para discutires com os teus homens. Depois escolhes; adia o inevitável e a morte será o vosso destino,
ou então dá-me a arca e parte daqui.
Macro voltou-se para os seus homens.
- Então?
- É impossível que nos deixe viver - disse Pirax, numa voz firme. - Qualquer que seja a nossa decisão.
- Tens razão - concordou Macro. - Então o que fazemos? Atacar está fora de questão.
- A não ser que possamos atacar dos dois lados - sugeriu
Cato.
- E como pretendes fazer isso?
Cato rolou no chão e apoiou-se num cotovelo, para melhor poder apontar direcções enquanto falava.
- Alguns de nós voltam para trás. A erva é comprida o suficiente, se nos mantivermos em posição baixa, não nos devem avistar. Depois, quando chegarmos ao charco,
nadamos afastados da margem até alcançarmos o caminho por trás deles. Nessa altura, atacamos de ambos os lados, com sorte, o ataque de surpresa apanha-os desprevenidos.
Cato terminou a explicação, mas viu que os outros ainda olhavam para ele em expectativa.
- E pronto, é só isto.
- Isso é um plano?
Cato assentiu.
- Bem, não há nada a fazer. É isso ou morrer, suponho - disse Macro. Olhou à volta para os membros sobreviventes da sua esquadra.
- Muito bem, leva contigo Pirax, Lêntulo e Piso. Quando vierem por trás deles, ataquem e façam o maior barulho possível.
Cato corou de embaraço.
- Peço desculpa, senhor, mas terá que ser outra pessoa a liderá-los.
- Porquê?
- Não sei nadar.
- Disseste a Vespasiano que sabias. Naquela noite em que te juntaste à Legião.
- Receio ter exagerado um pouco, senhor. Peço desculpa.
- Mentiste, queres tu dizer.
- Sim.
Macro lançou-lhe um olhar furioso.
- Excelente, optio. Agora terei que ser eu a fazê-lo.
- Sim, senhor. Hei-de aprender a nadar mal voltemos para a Legião.
- Óptimo.
Macro despiu a sua capa e avisou os outros para fazerem o mesmo. O pequeno grupo certificou-se de que as espadas e adagas estavam bem presas aos cintos, e depois
o centurião liderou-os por um caminho para longe dos sírios, rastejando junto ao solo pela superfície enlameada. Mal chegaram à água e começaram a nadar a coberto
da névoa sombria,
Cato arriscou um olhar à cena a desenrolar-se no outro lado do carro. Os sírios continuavam como dantes e, imóvel a um lado, encontrava-se a sombra inconfundível
de Vitélio, sentado num pequeno morro perto das montadas a cargo de Pulcher. Uma seta voou perto da sua cabeça e Cato baixou-se. Os outros três homens, que ainda
não tinham sido feridos, empunhavam as espadas firmemente e encolhiam-se em expectativa.
Passou ainda mais algum tempo sem que nada acontecesse, tudo quieto e imóvel como dantes. A luz começou a esmorecer, e os pensamentos de Cato desesperavam sobre
se teria acontecido alguma coisa ao seu centurião. Então, Vitélio levantou-se, e chamou-os, impaciente:
- O tempo acabou, centurião. Entrega-nos a arca ou morre. O que escolhes?
Cato olhou para as caras dos legionários à sua volta.
- Então, centurião?
- Diz qualquer coisa! - sibilou um dos homens.
- O quê? Dizer o quê? - perguntou Cato, em desespero.
- Qualquer coisa serve, idiota!
- Então está decidido - concluiu Vitélio, zangado. - Vão adorar morrer às minhas mãos.
Com um tremendo grito de guerra, Macro e os seus quatro homens emergiram das sombras da retaguarda imediatamente atrás dos arqueiros, e correram na sua direcção.
O grito também surpreendeu momentaneamente Cato, mas logo recobrou a presença de espírito e, num instante, pôs-se de pé e desatou a correr, lançando-se para o sírio
mais próximo e incentivando o grupo a segui-lo e a fazer o mesmo. Ao ver Cato a correr para ele, o rosto contorcido com uma tal ferocidade, o sírio deixou cair o
arco e desembainhou o cutelo, mas acabou por deixá-lo cair também. Cato gritou o mais alto possível e o homem desatou a fugir, deixando a arma para trás, caída na
lama. O jovem enfiou a espada nas costas do sírio, mas a ponta mal penetrou na capa e atingiu-o, ao invés, nas nádegas. O homem deu um grito e desatou numa correria
desenfreada, em que evitou colidir contra Macro e os outros a despacharem cruelmente os seus companheiros.
Frustrado pela fuga do seu inimigo, Cato olhou selvaticamente à sua volta em busca de outro inimigo. Avistou Pulcher a ajudar Vitélio a montar o cavalo.
- Ali! - chamou Cato. - Não o deixem escapar! Rápido!
Sem esperar pelos outros, Cato lançou-se, de espada erguida, em
perseguição de Pulcher. No último instante, Pulcher virou-se e desembainhou a arma, de um modo tão ágil e veloz que Cato julgava não ser possível.
Mantendo-se firme na sua posição, o legionário entroncado apontou a ponta da lâmina ao pescoço de Cato. O optio tentou, por instinto, desviar-se da arma, e para
seu horror, os seus pés escorregaram na turfa viscosa. Caiu de joelhos, passou ileso por baixo do golpe de Pulcher e desferiu uma forte arremetida apontada às tripas.
O seu ataque impetuoso lançou-o contra as pernas de Pulcher e ambos foram derrubados ao chão. Cato levantou-se com a espada limpa ainda na mão. O seu golpe não penetrara
na armadura de Pulcher, apenas o ferira, e este rolara para um lado a lutar por respiração. Antes que Cato pudesse tirar-lhe a vida, um súbito zunido no ar, perto
da sua cabeça, forçou-o a baixar-se. Vitélio pairava sobre ele, braço da espada erguido. Quando o atacou, Cato só teve tempo de deflectir o ataque.
- Aqui! Rápido! - gritou.
Vitélio estava prestes a perpetrar o golpe de morte, quando foi alertado por gritos cada vez mais próximos. Praguejou e lançou o seu cavalo na direcção de Cato.
O optio rolou para o lado, mas não rápido o suficiente para evitar chocar contra o flanco do animal ao passar por ele, o que tornou a sua queda estrepitosa.
Com as ferraduras a escorregarem e deslizarem na lama, o cavalo forçou o seu caminho por entre a linha fragmentada de legionários, passou pelo carro onde a mula
ferida ainda zurrava de dor, e desapareceu na escuridão crescente.
Macro foi ter rapidamente com Cato e levantou-o.
- Estás bem?
- Estarei.. .mal recupere o fôlego. Acabámos com eles?
- Faltou pouco. Cinco baixas e três fugiram. É uma vergonha não termos apanhado o filho da mãe do Vitélio.
Cato olhou à volta e não encontrou também sinais de Pulcher.
- Sim, senhor. - Cato respirou fundo e sentiu o peito. À parte algumas feridas, parecia estar tudo em ordem. - O que faremos agora?
- Não vale a pena irmos atrás dele, se é isso que pretendes. Temos que devolver a arca a Vespasiano o mais rápido possível. Antes que o tribuno volte a perseguir-nos
com mais homens.
Os legionários trataram de arrear quatro dos cavalos ao carro, sendo os outros amarrados na retaguarda, junto com a mula. Preocupado com o facto de os zurros da
mula ferida atraírem atenções indesejadas sobre eles, Macro levou o animal para a berma, cortou-lhe a garganta e lançou-o no atoleiro. Com os feridos deitados no
carro, o pequeno grupo começou a retroceder nos seus passos, de volta para a orla do pântano. Caiu a noite e continuaram a incitar os cavalos, gratos por já não
terem que desencalhar o carro do lodaçal.
Ao aproximarem-se da orla, tendo diante de si a vastidão negra do território envolto em bruma, Macro ouviu os cascos de um cavalo a aproximarem-se, vindos de trás.
- Parem - ordenou em voz baixa. - Peguem nos vossos escudos e lanças e sigam-me.
Liderou-os uma curta distância e distribuiu quatro homens de cada lado do caminho, de modo a não permitir a fuga do cavaleiro. Cato mantinha-se junto do solo, demasiado
cansado pelas emoções do dia. Momentos depois, a forma escura de um cavaleiro e de um cavalo emergiu da neblina e galopou para o meio da armadilha.
- Agora! - Macro deu a ordem e oito sombras irromperam da relva de cada lado do caminho e atacaram a montada. Surpreendido pela acção repentina, o cavalo empinou-se,
relinchando em terror, e o cavaleiro tentou recuperar o controlo da montada antes de cair ao chão. Macro agrediu-o, e esmurrou-o antes de levantar o homem do chão.
-Ora quem temos aqui! - riu-se. - Que bela surpresa voltar a vê-lo de novo, senhor.
Vitélio limpou o sangue a jorrar do nariz com a mão.
- Larga-me, centurião!
- Largá-lo?
- Tens que me deixar ir. É imperativo que regresse à Legião.
- Escuta aqui, seu filho da mãe, se pensas...
- Não há tempo! - gritou Vitélio. - Um maldito exército vem por este caminho. Quase que cavalguei direito a eles. Acho que não me viram, mas não tarda nada estarão
aqui. Tenho que informar Vespasiano!
- Está a mentir, senhor - rosnou Pirax. - O melhor é matá-lo e irmos embora daqui.
- Esperem! - Cato intercedeu a favor de Vitélio. - Ainda não sabemos o que queria ele de nós.
Pirax ergueu a espada.
- Quem precisa de saber?
- Guarda essa espada, legionário! - ordenou Macro. - Já!
- Por favor! - implorou Vitélio. - Têm que me deixar partir. Tenho que avisar Vespasiano. Encontrámos Togodumno! Se as forças dele apanharem de surpresa a Legião,
morrerão milhares de soldados. Milhares dos nossos camaradas.
- Camaradas! - Pirax cuspiu para cima dele. - Camaradas não se matam uns aos outros.
Por breves momentos permaneceram em silêncio, indecisos e sem saber o que fazer; Vitélio de joelhos, Macro a agarrar na capa do tribuno, lançando-lhe olhares do
mais puro desprezo.
Cato quebrou o silêncio:
- Se realmente existe uma coluna, então o legado tem que ser avisado.
- Não há nenhuma estúpida coluna de inimigos! - Pirax bateu com o cabo da lança no chão. - Está apenas a tentar salvar a pele.
- Então para quê cavalgar na nossa direcção?
- Deve ter-se perdido. Mas para que estamos nós aqui a desperdiçar tempo? - Pirax interpelou Macro. - Mate-o, senhor!
Macro fitou o tribuno, o rosto conturbado por emoções de raiva e repulsa pela situação em que o reaparecimento de Vitélio o colocara. Então esmurrou com força o
peito de Vitélio e o tribuno foi-se abaixo, na lama.
- Parte daqui e avisa a Legião. Mas lembra-te do que te vou dizer, quando tudo isto acabar, eu próprio farei com que tudo o que fizeste aqui chegue ao conhecimento
do general. Tenho a certeza de que gostará de saber as razões porque um oficial sénior quis ver os seus próprios homens mortos por causa de uma arca. Agora parte
daqui! Vai, seu filho da mãe, antes que me arrependa.
Vitélio levantou-se, saltou para a garupa do cavalo e arrancou as rédeas ao legionário que ficara a guardar o animal. Sem mais atrasos, esporeou o cavalo e desatou
a cavalgar pelo caminho, até desaparecer na noite.
- Muito bem. Toca a mexer. Se ele disse a verdade, não há tempo a desperdiçar. Vamos!
- Claro que ele não disse a verdade! - acusou Pirax.
- Estás a questionar a minha decisão? - perguntou-lhe Macro, numa voz fria.
- Estou-lhe a dizer, devíamos tê-lo morto.
- Quando te diriges a mim, chamas-me senhor, legionário!
- Silêncio! - Cato ergueu uma mão. - Escutem!
O pequeno grupo ficou imóvel, ouvidos apurados na direcção que Cato apontara. A princípio, não detectaram nada que perturbasse os delicados sons nocturnos. Até que
ouviram um relinchar distante, e depois outro, acompanhado pelo inconfundível som de um chicote e alguém a praguejar em céltico.
Os sons vinham do caminho atrás deles.
XXXVI
Era óbvio que os bretões os alcançariam antes que conseguissem chegar ao cume. Não havia esperanças de escaparem ao inimigo, isso tornou-se evidente para Macro ao
olhar freneticamente à sua volta, à procura de uma salvação.
- Ali!
Apontou com o braço para um declive, no lado esquerdo do caminho. À luz fraca da lua, a neblina que se formara no local tinha uma luminosidade fria longe de ser
acolhedora, mas oferecia a única esperança de um esconderijo rápido.
- Movam o carro do caminho, o mais rápido que puderem!
Os homens desviaram os cavalos para a erva comprida e atravessaram a pequena encosta em direcção ao declive, com Macro a segui-los e a tentar ocultar as marcas do
carro no solo húmido. Rezando para que a trilha não fosse notada na escuridão, e temendo que os bretões surgissem a qualquer momento, Macro lançou-se atrás do carro
que chegara à borda do declive e estava a ser manobrado pela encosta abaixo. O bater dos cascos à distância fê-los apressarem-se mais e quando chegou à fenda no
terreno, atirou-se lá para dentro e ficou imóvel, ofegante.
O declive era íngreme e o carro encontrava-se bem abaixo do nível do nevoeiro que cobria o solo num denso manto. Depois de ordenar aos soldados que permanecessem
com o carro e mantivessem em silêncio os animais e os feridos, Cato subiu o terreno e foi de encontro ao centurião.
- Tivemos sorte, senhor. O carro quase que se virou ao descermos isto. - Apontou para o declive.
- A sério? - disse Macro, não conseguindo evitar dar um bocejo. Depois estendeu-se no chão de barriga para baixo e queixo apoiado nas mãos. - Mantém a cabeça baixa,
e não faças nada... absolutamente nada. A não ser que dê ordens em contrário.
Cato assentiu e deixou-se ficar quieto, esperando nervosamente que o inimigo irrompesse do pântano. E depois, de repente, uma pequena coluna de cavalaria surgiu
ao luar, a uns meros passos de distância, uma combinação de homens e cavalos nas sombras negras. Cato ficou surpreendido por ver em movimento cavalaria bretã, uma
vez que César relatara a preferência dos bretões por cavalos adaptados a quadrigas. Ou o grande General cometera um erro ou os bretões tinham finalmente descoberto
o valor da cavalaria. Os cavaleiros ocupavam toda a largura da estrada e cavalgavam em direcção ao cume. O batedor do lado esquerdo passou-lhes ao lado do esconderijo
a apenas vinte passos de distância, forçando Macro e o seu optio a comprimirem-se contra o chão, mal ousando respirar. Os seus olhos cansados esforçavam-se por descobrir
se quaisquer marcas deixadas pelo carro no caminho tinham sido descobertas. Mas o batedor limitou-se a passar ao lado sem quebrar o passo.
Do pântano, ouviam tinidos e uma massa negra de quadrigas e infantaria a invadirem o caminho e serpentearem pelo declive acima. O som das conversas e canções na
sua língua estranha chegou aos ouvidos dos romanos aterrorizados, e Cato deu por si a comparar os sons favoravelmente à língua áspera germânica a que se acostumara.
Quando uma quadriga descia ao longo da linha, ordens foram dadas, e a coluna ficou em silêncio até a quadriga ter ultrapassado a linha dos batedores e a colina.
Depois irrompeu de novo o riso e continuaram a conversar como dantes.
Parecia não haver fim ao número de soldados que emergia do pântano, e agora o núcleo de toda aquela grande massa ultrapassara a colina. Mais e mais soldados continuaram
a vir, até que, por fim, surgiu a retaguarda. Macro e Cato ficaram a observar as últimas linhas do inimigo a marchar em direcção ao cume e a envolverem-se na sua
sombra, desaparecendo de vista no outro lado da colina.
- Quantos acha que eram, senhor? - sussurrou Cato, com receio de que as suas palavras ainda pudessem chegar aos ouvidos dos bretões.
Macro olhou para as pequenas pedras que tinha depositadas na mão e contou-as rapidamente.
- Talvez o equivalente a vinte coortes, isso faz...
- Nove mil! - Cato deu um longo assobio.
Macro fez, em silêncio, as contas para ele próprio, e acabou por concordar com Cato.
- Mais do que o suficiente para preocuparem Vespasiano. E isto sem mencionar a força das quadrigas. Se este grupo alcançar o legado...
- Então está tudo dependente de Vitélio.
- Sim - respondeu Macro. - Vitélio... Olha, o melhor é pormo-nos a andar. Com esse exército a monte, o melhor é abandonarmos o carro. Enterramos aqui a arca, largamos
o carro nalgum sítio e usamos os cavalos para circular à volta da coluna e reunirmo-nos de novo à Legião.
- Enterrar a arca? Depois de tudo pelo que passámos?
- Queres que seja capturada? Ou pior, queres ser capturado com
ela?
- Não, senhor.
- Pois então, somos obrigados a deixá-la aqui, e mais tarde voltamos a desenterrá-la, isto se conseguirmos chegar intactos à Segunda.
Era óbvio que o cavalo estava esgotado e morreria se continuasse a pressioná-lo a seguir em frente. Vitélio desviou-se do caminho principal, e desmontou à sombra
de um bosque antigo cujos ramos florescentes se estendiam em todas as direcções. Enquanto a sua montada relinchava e ofegava no ar gélido nocturno, Vitélio, na sua
frustração, rogava pragas. A maldita arca estivera quase nas suas mãos. O resgate de um Imperador
- o suficiente para iniciar a mais ambiciosa das carreiras políticas; uma fonte inesgotável que lhe permitiria comprar senadores e soldados. Talvez o suficiente
até para lhe comprar a lealdade da Guarda Pretoriana. Certamente que os serviços do agente Pulcher tinham sido caros e o homem ficara suficientemente impressionado
com o ouro para se livrar de quaisquer escrúpulos. E comprar o serviço dos sírios nessa manhã tinha sido ainda mais fácil, bastando a Vitélio passar-se por amigo
pessoal de Escriboniano.
Era incrível o quanto a esperança de novas riquezas impelia a vontade de um homem em novas direcções. Apenas há uns meses, fora um servo leal do Imperador, tão leal
que Narciso partilhara com ele mais segredos do que seria aconselhável ou sensato. Mas mal Narciso lhe revelara o segredo da arca, ambições reprimidas começaram
por lhe sussurrar ao ouvido pensamentos sinistros. A recuperação da arca era suposto ser um teste de Cláudio à lealdade de Vespasiano, e Vitélio recebera ordens
para vigiar de perto o legado e procurar por sinais de traição. No entanto, Vespasiano comportara-se de modo impecável, e fora nessa rígida aderência às regras que
Vitélio encontrara a sua oportunidade. Ciente do facto de que o legado desempenharia sem falta as suas instruções, bastaria a Vitélio ser equívoco nos seus relatórios
a Narciso. Mal o tesouro desaparecesse, o dedo da culpa seria apontado directamente a Vespasiano, e todos os seus protestos por inocência só o condenariam ainda mais.
E Vitélio, armado com uma nova fortuna, tudo observaria e esperaria pela sua hora.
Tinha sido esse o plano até há pouco tempo.
Todo esse futuro planeado e os sonhos cor-de-rosa tinham sido agora destruídos, e praguejou em voz alta, mas logo se arrependeu e olhou, enervado, para todos os
lados - a noite continuava serena. Vitélio deu um suspiro. Falhara, e pior, havia testemunhas do seu fracasso. Mal aquele centurião retrógrado e o seu optio precoce
regressassem à Legião estaria comprometido. Se ao menos houvesse alguma maneira de se certificar de que não voltariam com vida. Existia a forte possibilidade de
os legionários terem sido massacrados pela coluna de bretões; Vitélio esperava sinceramente que isso tivesse sucedido. Mas sabia que não podia contar com isso -
aquele fulano Macro era protegido pela sorte e tinha manha suficiente para se livrar de qualquer perigo.
Memórias da luta desesperada no povoado germano acudiram à mente de Vitélio, particularmente a visão do centurião a sangrar de uma grave ferida de lança. Se ao menos
o idiota do germano tivesse acertado bem no alvo.
Enquanto Vitélio reflectia nestas circunstâncias, o seu cavalo recuperara o suficiente para ficar a pastar contente na erva à beira dos troncos de carvalhos. De
súbito, ergueu a cabeça e fitou a escuridão da noite. Ainda passaram vários momentos até que o tribuno se apercebesse da mudança de disposição do animal. Correu
até ao local e tentou reconfortá-lo, dando-lhe palmadas no pescoço. O cavalo vacilou.
- Que se passa, rapaz?
O cavalo recuou para as sombras, a resfolegar e com as orelhas a abanarem nervosamente. Vitélio perscrutou a noite e viu uma linha de cavaleiros a aproximar-se vindos
das árvores, a uma curta distância. O seu coração deu um pulo e, silenciosamente, tentou montar-se no cavalo, mas este com os nervos, afastou-se e deu um relincho.
- Idiota!
Vitélio puxou pelas rédeas selvaticamente, tentou estabilizar o animal e saltou para a sua garupa. Já se ouviam os gritos à distância e Vitélio esporeou com os calcanhares
os flancos da sua montada, afastando-o para longe das figuras que cavalgavam na sua direcção. Pânico e o desejo de fugir apoderaram-se dele. E, então, gritando para
o cavalo, Vitélio galopou na noite, consciente do facto de que o caminho que tomava o afastava da Segunda legião. Muito bem, então tentaria alcançar a Décima Quarta,
bem mais adiantada e prestes a reunir-se ao general Pláucio.
Vespasiano teria que lidar sozinho com o inimigo e Vitélio viveria para um dia ser herói.
À sombra do carvalho onde o tribuno se refugiara, as figuras negras dos seus perseguidores observaram-no, levado pela fúria veloz do seu cavalo - o som dos cascos
claramente audível.
- Quem raio era aquele? - perguntou um legionário. - Pareceu-me um dos nossos.
- Provavelmente algum mensageiro idiota - respondeu o seu decurião. - Deve ter-se perdido.
- Vamos atrás dele, senhor?
O decurião pensou na situação por um momento, e acabou por abanar a cabeça.
- Não. Não vale a pena. Se é um dos nossos, há-de voltar a encontrar o caminho.
- E se for um dos deles, senhor?
- Então teve sorte em escapar. Não vou correr riscos e lançar-nos numa selvagem perseguição nocturna. De qualquer modo, o melhor é regressarmos à Legião.
O decurião deu meia-volta com o seu esquadrão e liderou-os de volta para a Segunda legião, preocupado com o relatório negativo que teria que apresentar a Vespasiano.
Não tinham encontrado sinais nenhuns de Togodumno nem das suas forças. Sinceramente, o decurião começava a duvidar de que alguma vez existira um exército inimigo
disposto a atacar o flanco da Legião. Tratava-se provavelmente de algum oficial paranóico a reagir exageradamente. O decurião encolheu os ombros. Até agora, a campanha
revelara-se uma grande desilusão; nenhum inimigo, nenhuns despojos de guerra e nenhumas mulheres. Nem merecia a presença deles, e já se resignara ao facto de que
o general Pláucio e as legiões da vanguarda derrotariam os bretões muito antes da Segunda entrar em acção.
Era uma pena, pensou. Uma pequena batalha teria sido bem acolhida, especialmente tendo em conta as oportunidades de promoção providenciadas por mortes em combate.
Mas suspirou amargamente, não iria haver nenhuma batalha, porque não existia um único bretão por quilómetros em redor.
Para Macro e os seus homens, a cavalgada na noite estava a revelar-se um autêntico desastre. Os cavalos sírios não passavam de pequenas montadas; ideais para sair
e entrar de um campo de batalha enquanto os cavaleiros lançam setas, mas nada práticos para transportar mais do que um homem ao mesmo tempo. No fim, depois de muitas
pragas e pontapés, Macro ordenara aos homens que desmontassem e que apenas os feridos continuassem a cavalo. Em todo o caso, os legionários estavam
mais contentes a pé.
Então o pequeno grupo continuou a percorrer o caminho durante a noite tentando, através das estimativas de Macro, contornar a coluna britânica e localizar a Segunda
antes dos bretões. Macro decidira manter o seu grupo do lado da costa, de modo a estar o mais perto possível da fortificação romana na praia. Com sorte, talvez fossem
de encontro a uma patrulha e escoltados de volta.
Vitélio poderia ter já alcançado a Legião e dado o alarme, evitando que os seus camaradas fossem apanhados de surpresa. Mesmo assim, os instintos de Macro diziam-lhe
que Vitélio estaria a preparar-lhes uma desagradável surpresa mal regressassem, e não podia deixar de amaldiçoar-se a si próprio por ter deixado o homem fugir. Deviam
ter-lhe cortado a garganta e abandonado o corpo no pântano. Não era mais do que o traidor filho da mãe merecia. Mas o que mais atormentava a mente de Macro era a
razão da presença do tribuno naquele local. Vespasiano assegurara-lhe que os objectivos da sua missão eram um assunto confidencial. Todavia, não só Vitélio soubera
de tudo, como tivera tempo para arranjar um grupo de apoiantes - presumivelmente o mesmo grupo de sírios que atacara a centúria de Macro na estrada para Gesoriaco.
Alguém estava envolvido num jogo perigoso, e o centurião não pôde deixar de pensar que era apenas um dos muitos peões numa conspiração em larga escala.
Forçou-se a concentrar-se; não era a altura certa para entrar em divagações. Todas as fibras do seu corpo estavam empenhadas em assegurar que os seus homens regressavam
em segurança para a Legião. Olhando à sua volta, podia observar como os legionários estavam completamente exaustos - tinha que manter a mente alerta e os olhos e
ouvidos apurados ao atravessarem este território hostil. Pensava nisto quando sentiu um cansaço doloroso percorrer-lhe os membros do corpo. Sabia que não faltaria
muito para sentir tonturas. Esfregou os olhos, perdendo o equilíbrio por momentos, até que sentiu uma mão agarrar-lhe no braço, e segurá-lo com firmeza.
- Cuidado, senhor! - sussurrou Cato. - Esteve quase a cair.
que temeridade - como aquele idiota do Vitélio, que cavalgara com os batedores e desaparecera por completo, juntamente com um esquadrão de cavalaria auxiliar, urgentemente
necessitado. Não duvidava de que andasse a vaguear na noite, aterrorizado. Não era mais do que merecia.
Após completar as tarefas burocráticas, Vespasiano chamou o seu armeiro e permaneceu imóvel, pensativo, enquanto o homem prendia o peitoral fabricado de forma a
ajustar-se à figura do legado, e colocava com cuidado as fitas de condecoração, bem visíveis à frente. Ia procedendo aos últimos preparativos, quando Vespasiano
olhou e viu o camafeu com a imagem da mulher e do filho, sobre a secretária. Sentiu-se logo tomado por um sentimento de culpa; tinham decorrido dias desde a última
vez em que parara para pensar neles, mas o trabalho exigido a um comandante de legião em trabalho de campo não permitia privacidade. Vespasiano apercebeu-se então
do quanto tinha saudades deles. Tinham decorrido apenas dez dias desde que vira partir o séquito da sua esposa para Roma, mas parecia já ter passado muito mais tempo.
E a perspectiva de uma campanha longa significava que poderiam passar anos antes que pudesse voltar a vê-los de novo. Tito seria então um jovem rapaz, não mais um
bebé com as suas frases desastradas e humor maníaco. Flávia... Como voltaria a encontrar Flávia? De cabelos mais grisalhos? Com mais rugas à volta da boca e dos
olhos cada vez que sorrisse? Sentiu uma vontade súbita de abraçá-los e nunca mais os abandonar enquanto vivesse. Passaram vários momentos até que se apercebesse
do ardor nos olhos, depois rapidamente piscou os olhos, antes que as lágrimas traíssem os seus sentimentos.
- Demasiado apertado, senhor?
- O quê? Oh, não, está óptimo. Podes ir.
- Sim, senhor.
Quando foi deixado sozinho, Vespasiano beliscou o braço com força. Estivera perto, mais uns momentos a pensar em saudades de casa e teria derramado lágrimas à frente
de um maldito escravo. Morria de vergonha só de pensar que, agora mesmo, o escravo poderia estar a confidenciar com os da sua laia o momento sentimentalista do legado.
Todo o trabalho que tivera em construir a imagem de um comandante duro e disciplinado, com coração de pedra, mantendo-se a uma distância fria dos seus homens, tudo
isso seria arruinado, se se permitisse mostrar as suas emoções. Maldito fosse se iria deixar isso acontecer de novo. Zangado, afastou da vista as imagens de Flávia
e Tito, e fez uma nota mental para ordenar ao escravo que os arrumasse no fundo da arca de viagem, para o resto da campanha.
A sua má disposição persistiu até depois da madrugada, e o modo
rude como distribuía ordens não era mais do que uma tentativa de redimir o seu anterior momento de fraqueza. Enquanto as tendas do quartel-general eram arrumadas,
ninguém se atrevia a encarar o olhar do legado, tal era a expressão sombria que lhe franzia o cenho e o esgar que colocara nos lábios.
Após uma rápida refeição de papa de cevada, os legionários arrumaram os seus equipamentos. Quando o sol surgiu no horizonte, os homens alinharam as centúrias e prepararam-se
para mais um dia de marcha.
As instruções sobre o progresso da marcha foram passadas para as centúrias e os homens protestaram em silêncio. Vespasiano tinha optado por marchar em duas divisões,
uma a cada lado dos carros de bagagem, com uma coorte em cada ponta para actuar como vanguarda e retaguarda. Os veteranos amaldiçoaram o excesso de cautela do comandante,
e depois explicaram aos novos recrutas que, apesar dos carros irem beneficiar de uma passagem fácil ao longo da estrada, os pobres coitados em cada flanco teriam
que lidar com todos os obstáculos que encontrassem pelo caminho. Ao fim do dia, as colunas laterais estariam cansadas, molhadas e arranhadas, e tudo porque o legado
receava uns quantos malditos bretões.
- Não pares por nada deste mundo, entendido?
Cato assentiu e tentou acalmar a sua montada.
- Vai ter com Vespasiano e diz-lhe que é uma armadilha. Diz-lhe os números e onde os viste a entrar pela última vez na floresta. - Macro tinha sérias dúvidas em
mandar o rapaz, mas nenhum dos outros estava em condições.
- E quanto a si, senhor?
- Não te preocupes comigo, rapaz. Avisa Vespasiano. Então, de que estás à espera? Parte daqui!
Macro deu uma palmada forte no flanco do cavalo e o animal saltou para a frente, quase deitando Cato abaixo. No último momento, o optio agarrou as rédeas e esporeou
com os calcanhares o cavalo. Por incrível que parecesse, conseguiu manter-se no seu dorso. Deitou um último olhar por cima do ombro ao pequeno grupo de homens que
ficara a observá-lo a partir ansiosamente, e depois acelerou a montada pelo declive abaixo, em direcção ao acampamento à distância. Cato nunca fora muito bom a montar
uma sela, e agora prendia os dedos à crina esvoaçante e puxava violentamente pelas rédeas para mudar de direcção.
Da sua parte, o cavalo reagia como era de esperar, tendo em conta que fora separado do seu cavaleiro. Não respondia obedientemente aos comandos, e, assim, homem
e cavalo prosseguiram o seu caminho, cada um encarando o outro com antipatia.
Ao chegar à base da coluna, Cato entrou em pânico ao aperceber-se de que perdera de vista o acampamento. No entanto, uma rápida olhadela na direcção do sol e ao
ordenamento do território convenceram-no de que ainda continuava na direcção certa e, assim, continuou a cavalgar. Enquanto se lançava a toda a brida, Cato pensava
se Vitélio teria conseguido alcançar o acampamento, e se todo este galope desenfreado não estaria a ser uma perda de tempo. Mas, por mais desagradável que fosse
esta cavalgada, Cato sabia que era vital alertar Vespasiano sobre o perigo iminente. Visões de uma recepção grata e acolhedora às suas notícias povoaram a sua imaginação,
e Cato forçou o seu cavalo a cavalgar ainda mais depressa, mantendo-se firme no controlo das rédeas.
Um movimento à sua esquerda captou a sua atenção. Para seu grande horror, avistou vários cavaleiros com o vestuário selvagem dos bretões correndo na sua direcção,
numa tentativa de interceptá-lo. Estavam a centenas de metros de Cato e pretendiam cortar-lhe o caminho. Com um pontapé selvagem nos flancos do cavalo, Cato gritou-lhe
para que corresse, veloz como o vento, que corresse pela sua vida. O animal sentiu a sua urgência, empinou as orelhas e baixou o pescoço ao lançar-se num galope
desenfreado pela colina acima. Cato olhou de novo para a esquerda e viu que os bretões se aproximavam cada vez mais. Com uma tremenda clareza, apercebeu-se de que
não iria conseguir, o acampamento era demasiado longe, e daqui a poucos momentos estaria morto, já antecipando o súbito impacto de uma lança nas suas costas.
O cume estava a poucos metros de distância, e Cato implorou ao cavalo por maior velocidade. Mas, ao fazê-lo, sentiu que o cavalo estava a esgotar as últimas reservas
de forças. Cato olhou por cima do ombro. Os seus perseguidores encontravam-se mesmo atrás de si, perto o suficiente para conseguir ver as expressões ferozes de triunfo
dos seus rostos, sabendo eles que não iria conseguir escapar. Estaria tudo acabado dentro de instantes. Então, o seu cavalo alcançou o cume - a três quilómetros
de distância, estendia-se o acampamento romano, três quilómetros demasiado longínquos. Cato largou uma das rédeas e desembainhou a espada. O medo desaparecera, e
restava agora apenas uma raiva frustrada. Não havia fúga possível e a morte era inevitável, mas não permitiria que lhe tirassem a vida sem lhes dar uma breve e árdua
luta.
Cato voltou a olhar por cima do ombro, esperando ver os bretões a prepararem já as lanças, mas, para seu grande espanto, o que viu
foi eles a travarem, o homem da dianteira apontando com a lança na direcção para lá do jovem. Olhou para a frente e foi então que avistou àquilo que os bretões já
tinham localizado. Na base da colina, uma pequena patrúlha de infantaria marchava de volta para o acampamento. Com o coração a bater de alegria, Cato deu uma palmada
no flanco do cavalo e desatou a cavalgar pela colina abaixo. Ao olhar para trás, ficou surpreendido por ver que os bretões tinham desaparecido, deixando a sua presa
escapar.
Os homens da patrulha ouviram o som de cascos a aproximar-se e viraram-se rapidamente, protegidos pelos escudos e dardos em preparação. A uma curta distância da
patrulha e dos homens posicionados na dianteira, Cato parou o cavalo. Saltou da garupa e correu para eles.
- Quem raio és tu? - exigiu o optio no comando.
- Não interessa - respirava a custo. - Tenho que ver o legado! Imediatamente!
- Quem és tu?
- Quinto Licínio Cato, optio da Sexta Centúria, Quarta coorte. Tenho que comunicar um relatório a Vespasiano.
- Relatório?
- O inimigo preparou uma emboscada na floresta.
- Inimigo? Onde?
- Estavam mesmo atrás de mim. Devem tê-los visto.
O optio abanou a cabeça.
- Mas estavam ali mesmo! - Cato apontou para o topo da colina.
- Atrás de mim. Alguém deve tê-los visto.
Os homens da patrulha observavam-no em silêncio e Cato olhou para eles, incrédulo.
- Como podem não tê-los visto? Olhem, tenho que ver o legado.
Virou-se e pegou nas rédeas do cavalo, e estava prestes a saltar de novo para cima da montada, quando o optio lhe agarrou no braço e o empurrou para longe do cavalo.
- Mais devagar! Vens connosco.
- O quê? Não estás a compreender! Tenho que avisar Vespasiano.
- Peço desculpa, mas tenho as minhas ordens. Vens connosco.
Cato ficou a observá-los estupefacto, enquanto o optio dava ordens à patrulha para que tomassem conta do cavalo. Depois o jovem foi colocado no centro da patrulha
e forçado a marchar com dois homens atrás a guardá-lo.
- Mas que merda é esta? - gritou ao optio.
O comandante da patrulha aproximou-se dele, de modo a que as suas palavras não pudessem ser ouvidas pelos outros.
- Ninguém deve dirigir-te a palavra até regressarmos ao acampamento.
- Porquê? O que se passa?
- Todas as patrulhas receberam ordens do quartel-general para que tu e os teus camaradas fossem procurados e trazidos discretamente à presença do legado. Aqui entre
ambos, parece-me que estás envolvido em merda profunda. Por isso, o melhor é não piorares a tua situação. Mais uma palavra da tua parte, e serei obrigado a dar-te
uma pancada na cabeça e atirar-te para cima do cavalo. Entendido?
Cato ia abrir a boca em protesto, mas, a um olhar de aviso do optio, acabou por assentir.
Quando a patrulha se aproximou do acampamento, Cato apercebeu-se de que o corpo central da legião já tinha sido posto em movimento, em direcção à floresta. Ficara
para trás apenas a retaguarda, já a colocar-se em formação e pronta para partir. A não ser que Vespasiano fosse avisado acerca dos bretões prontos a fazer uma emboscada,
o desastre seria inevitável. Cato procurou por quaisquer sinais do legado, mas no meio da multidão de soldados, carros de artilharia e carros de equipamento não
encontrou o comandante da Legião. A patrulha forçou o seu caminho por entre a confusão para comunicar o relatório ao oficial no comando da retaguarda da Legião.
O tribuno Plínio desviou o olhar da sua secretária para a patrulha de chegada.
- O que temos nós aqui?
- Capturámos um desertor, senhor. - replicou o optio. - Cavalgou direito a nós num cavalo que deve ter roubado.
- Não sou nenhum desertor!
- Parece que o rapaz pretende negar a acusação. E então?
- Não somos desertores, senhor - disse-lhe Cato numa voz calma. - Encontrávamo-nos numa missão secreta para o legado.
- Numa missão secreta para o legado... estou a ver. - O tribuno Plínio não se inibiu de mostrar o seu divertimento, e piscou o olho ao optio. - Estavas, portanto,
numa missão secreta. Que tipo de missão?
- Não importa, senhor. Tenho que avisar o legado. Antes que seja tarde demais!
- Tarde demais para quê?
- Vai haver uma emboscada, senhor, na floresta. - Cato apontou
desesperadamente para a coluna a desaparecer por entre as árvores.
- Togodumno e o exército estão lá à espera. Milhares deles, senhor. Temos que avisar Vespasiano já!
O tribumo Plínio fitou-o em silêncio por um momento, a considerar a informação que recebera. Não havia nenhuma razão para acreditar nesta história fantástica contada
pelo rapaz. Como teria sido possível a Togodumno passar despercebido pela cavalaria?
- Viste com os teus próprios olhos estes bretões?
- Sim, senhor! Imploro-lhe para que avise o legado...
- Silêncio!
O que quer que o rapaz tivesse visto, era mau o suficiente para pô-lo naquele estado, pensou Plínio. Mas e se se revelasse um falso alarme? Que estragos isso traria
à sua carreira? Por outro lado, quais seriam os estragos de não agir de acordo com a informação recebida, caso se provasse ser verdade? A reputação de um tribuno
nada valia perante a segurança da Legião.
- Muito bem, monta o cavalo e vai atrás do legado o mais rápido que puderes. Diz-lhe que irei formar a retaguarda para combate, e juntar-me-ei a ele o mais cedo
possível.
- Sim, senhor! - O coração de Cato rejubilou, e foi de imediato ter com o cavalo guardado pela patrulha.
- Mais uma coisa! - chamou-o Plínio.
- Senhor?
- Se não passar de um falso alarme, eu próprio crucificar-te-ei na primeira árvore que encontrar no meu caminho. Entendido?
XXXVIII
A Segunda legião penetrara na floresta e a vanguarda e o séquito de oficiais prosseguia em frente, num passo firme, ao encontro do general Pláucio e das três outras
legiões. A artilharia e a bagagem vinham atrás deles, uma vez que as divisões laterais tinham formado uma linha de marcha a uma distância de quarenta e cinco metros
dos carros, carroças e animais de tiro. À medida que avançavam cada vez mais, tornou-se evidente para Vespasiano que a disposição de marcha iria encontrar obstáculos
no seu caminho. Mais à frente, um grupo cerrado de árvores obstruía cada lado do caminho, estreitando-o a uma largura de não mais que trinta passos. Vespasiano antecipara
o problema e instruíra o centurião sénior de cada divisão para enfileirar as divisões laterais, de modo a permitir uma rápida passagem pela área florestal. O problema
é que isso deixaria a Legião temporariamente vulnerável, mas ou se resignavam a isso ou teriam que fazer uma longa marcha à volta da floresta, e as ordens de Pláucio
tinham requerido aos legados que conduzissem as legiões para a frente de combate pelo caminho mais rápido. Enquanto a vanguarda prosseguia em frente, as coortes
laterais foram ordenadas para formar colunas de dois, evitando assim quaisquer atropelos com os carros.
A manobra foi executada sem problemas, e foi um prazer para Vespasiano observar a facilidade e eficiência das suas tropas, que se comportavam como uma unidade de
elite enquanto desempenhavam a acção. Apesar dos engenheiros de Pláucio terem feito um bom trabalho no desbravar da vegetação do caminho, não tiveram tempo para
cumprir as distâncias previstas no regulamento. Mal os homens emergissem das árvores, as filas duplas seriam ordenadas a parar e a formar de novo colunas normais,
aguardando depois pelo resto da Legião. Ainda que fosse uma tarefa de rotina e a tivessem desempenhado inúmeras vezes em campos de treino, o facto de se encontrarem
em território hostil
impregnava o ambiente de uma tensão a que nem os oficiais eram imunes, fazendo-os apressar os homens, ansiosos por voltarem a estabelecer as suas unidàdes em formação
cerrada.
Apesàr de estarem no pico do Verão, época em que a floresta deveria estar a florescer de vida, um silêncio sombrio apoderara-se das árvores e das sombras escuras
debaixo dos seus ramos. Vespasiano estava consciente desse facto, ao cavalgar pela coluna e ao verificar se as unidades estavam a manter coesão.
Quando chegou ao fim da coluna, Vespasiano ficou contente por ver que tudo corria razoavelmente bem. Permitiu-se descontrair um pouco, confiante de que o resto do
dia de marcha seria normal, dentro do previsto. Até mesmo os legionários mostravam-se mais animados, e alguns saudaram-no ao passar por eles. O céu tingia-se de
um azul profundo que lembrava o do Mediterrâneo; nuvens brancas brilhantes e o sol intenso irradiando luminosidade sobre a miríade de flores que enfeitavam a beira
do caminho. Para além da linha de homens, as verdes florestas brilhavam ao sol e uma suave brisa rolava nos ramos mais altos, produzindo murmúrios reconfortantes.
Era um bom dia para estar vivo, e o entusiasmo por toda essa emoção fluiu nas suas veias. Vespasiano ficou extático quando, de repente, um veado irrompeu das árvores
e ficou paralisado no caminho, a observar os milhares de homens a marchar na sua direcção.
- Olhem! - apontou Vespasiano, a máscara severa de legado desaparecendo, por instantes, ante o seu pueril entusiasmo.
Os seus oficiais, que tinham sofrido o seu mau feitio nessa manhã, aproveitaram a súbita mudança de humor e olharam ansiosamente na direcção apontada. O veado ergueu
a sua armação bem alto e cheirou o ar à sua frente e atrás de si, indeciso por que caminho optar para fugir. Vespasiano ficou deslumbrado com a graciosidade do animal
e o seu ar de superioridade natural.
- Irá dar uma bela refeição! - disse um dos seus oficiais. - Senhor, posso?
Vespasiano assentiu. Seria uma vergonha quebrar o encanto do momento, mas, afinal de contas, uma pessoa não podia comer encantamentos, e a perspectiva de uma refeição
de carne de veado era demasiado apelativa para a deixar passar.
O oficial esporeou o cavalo, puxou as rédeas e dirigiu-se para o veado, a linha de legionários abrindo-lhe passagem. Pausou apenas o suficiente para pegar num dardo
de um dos soldados e lançou-se em perseguição do veado. O animal manteve-se imóvel por um instante, antes de saltar no ar e desaparecer por entre as árvores. Dando
o seu
grito de caça, o oficial correu atrás da besta e foi envolvido pelas sombras. Vespasiano sorriu ao ouvir o quebrar dos pequenos ramos e a perseguição do oficial
pela floresta, para conseguir a sua presa.
Depois os gritos de entusiasmo do jovem oficial cessaram subitamente, e com um último estalar de ramos, a floresta caiu em silêncio. Os oficiais trocaram olhares
alarmados. Vespasiano esticava o pescoço, numa tentativa de perscrutar a escuridão da floresta.
- Vou atrás dele, senhor? - ofereceu-se um deles. - Senhor?
Mas Vespasiano já não os escutava. O seu olhar fitava o espaço debaixo dos vastos ramos das árvores. Sombras moviam-se ali, moviam -se ao longo da floresta. Foi
então que soube, com uma terrível certeza, que ele e os seus homens se encontravam no mais grave perigo. E, para comprovar a vulnerabilidade da disposição dos legionários,
o inimigo irrompeu da floresta para a brilhante luz do dia, com um silêncio chocante. Antes que Vespasiano pudesse reagir, ouviu-se o som de uma trompa e os bretões
libertaram uma rajada de setas que voaram em arco no céu límpido e atingiram em cheio os romanos. Os legionários largaram os seus sacos de viagem e agarraram desesperadamente
nos escudos presos às costas. Alguns foram demasiado lentos e caíram de joelhos, ao serem atingidos pela chuva de setas que batia nos escudos, nos carros e que trespassava
as peles desprotegidas.
O perigo foi suspenso por uns momentos, enquanto os bretões preparavam o próximo lançamento. Vespasiano virou-se na sela para ver que, milagrosamente, todos os seus
oficiais tinham sobrevivido. Sem perder tempo, os centuriões e outros oficiais gritavam ordens aos homens para se colocarem em formação e enfrentarem o inimigo.
O que lhes valeu foram os treinos diários, tal foi a eficiência com que passaram de coluna para linha e apresentaram os seus escudos rectangulares aos bretões e
ao segundo lançamento de setas. Os atingidos pela primeira rajada, homens e animais, encontravam-se agora expostos sem misericórdia, e alguns foram alvejados de
novo, tendo morte imediata. A área entre os carros e as coortes enchia-se com os corpos dos mortos e formas feridas de homens e animais moribundos e aos gritos.
Mas os homens que se tinham conseguido defender atrás dos escudos encontravam-se em relativa segurança. Vespasiano não perdeu tempo a distribuir ordens às coortes
viradas a norte para avançarem, e oficiais esporearam os seus cavalos e foram ter com as divisões. Olhando para o outro lado da linha de carros, o legado ficou aliviado
por observar que os oficiais já se tinham colocado em formação e procuravam aberturas por entre os carros, para poderem passar para o outro lado. Com os legionários
em posição, seriam capazes de dar conta dos arqueiros. Agora que o choque
inicial fora superado, Vespasiano deu por si a esperar ansiosamente pela
luta iminente e pela inevitável vitória.
Foi nesse momento que os bretões revelaram o seu verdadeiro
ataque.
No preciso instante em que as coortes do sul forçavam um caminho por entre os carros de bagagem, soou uma trompa atrás deles, na floresta, e o som dessa trompa foi
intensificado pelo som de outras ao longo de todo o caminho. E com um tremendo rugido, os bretões irromperam dos bosques e lançaram-se contra as coortes desorganizadas,
que tinham gelado ao som das trompas, e agora quedavam-se horrorizadas perante uma morte certa. Alguns centuriões tiveram presença de espírito suficiente para gritar
uma série de ordens e, corajosamente, prepararam os seus homens para o ataque, mas a linha de combate organizada, tão típica de um exército romano,simplesmente
se desintegrara. Vespasiano observou, em horror, a onda esmagadora de bretões aos gritos a envolver os seus homens num estrondoso confronto. O impacto forçou os
legionários a recuar de imediato Para a linha de carros, e dezenas foram mortos a tentar escapar por entre as aberturas entre os veículos. Aqueles que tinham optado
por enfrentar o inimigo, lutavam isolados e, perante o crescente número de bretões a continuarem a sair da floresta, o legado soube que, a não ser que uma linha
de combate fosse estabelecida nos próximos momentos, a inferioridade numérica iria levar ao massacre dos seus homens.
- Saiam do caminho! gritou Cato.
O jovem puxou desesperadamente as rédeas, forçando o cavalo exausto a evitar colidir contra um legionário que se intrometera no caminho. À frente, conseguia ver
Vespasiano rodeado pelo seu grupo de oficiais. O grupo parara e olhavam para a floresta do lado direito do caminho. De súbito, Cato teve consciência do movimento
ao longo das árvores, e nesse momento, os bretões irromperam das sombras.
Um terrível desespero apoderou-se dele ao aperceber-se de que o
seu aviso chegara tarde demais-
Soou uma trompa de guerra e o ar encheu-se de sons estridentes.
Antes que Cato pudesse reagir, o seu cavalo soltou um relincho agudo
e derrubou-o para o lado, ao cair. Cato arrastou-se para longe do animal e viu que tinha sido atingido no pescoço por duas setas, e agora
contorcia-se em agonia. Outras vítimas enchiam a área, à medida que
mais setas abatiam os seus alvos sem piedade. Alguns dos omens
já tinham abandonado os sacos de viagem e fugiam de volta para o acampamento.
Mas Cato não tinha intenções nenhumas de fugir. Encolheu-se no chão e olhou à sua volta. Sentia-se vulnerável sem a armadura, e ao avistar um legionário morto, foi
a correr para ele e não perdeu tempo a retirar-lhe o escudo, o elmo e a espada. Assim protegido, Cato juntou-se ao grupo de homens que tentavam organizar uma resistência
armada contra o inimigo. Era uma luta desigual, desesperada, uma vez que os legionários não se encontravam em formação e lutavam em combates singulares contra números
superiores. Apenas os soldados que tinham conseguido formar, protegidos pelos escudos, é que tinham alguma hipótese de sobrevivência contra os golpes mortais e ferozes
das longas espadas dos bretões. Dois estilos de luta completamente distintos estavam em jogo, e enquanto os bretões mantivessem a desordem na refrega, as espadas
curtas dos legionários serviam como um pobre oponente contra as armas bretãs.
Cato correu para a batalha, lançando um grito selvagem de guerra inconsciente. Exausto ao ponto de delírio, amargurado pelo tratamento que recebera e consciente
de que esta era a derradeira batalha pela sobrevivência, procurou pelo inimigo mais próximo. Um homem alto, da sua estatura, bloqueava o seu caminho, de espada longa
erguida e rosto pintado de modo que lembrava uma boca com colmilhos. Baixou a ponta e ergueu o escudo, deflectindo assim o ataque, e arremetendo a sua espada bem
fundo nas tripas do homem. O bretão foi-se abaixo com um grito pungente, e Cato puxou a espada e deixou-o cair por terra. Olhou à sua volta, à procura do próximo
alvo. A poucos passos de distância, um bretão pairava sobre um legionário curvado, cujo braço da espada tinha sido quase mutilado. O bretão ergueu a espada para
acabar com o seu inimigo, mas antes que a arma pudesse completar o arco, Cato atacou-o por entre os ombros. Com uma expressão perplexa, o homem caiu ao lado da sua
vítima.
- Aqui!
Cato agarrou no braço intacto do legionário e, cobrindo-os a ambos com o escudo, arrastou o homem para um grupo de romanos que se tinham formado com as costas protegidas
por um par de carros. No centro da linha, encontrava-se Bestia, gritando encorajamento na sua melhor voz, ao estilo das paradas. Cato deixou o legionário que salvara
junto aos outros feridos, e virou-se para tomar o seu lugar entre os outros soldados.
- Cato! - gritou Bestia, lançando-lhe um olhar de soslaio. - É altura de me mostrares o que vales.
O jovem optio assentiu com um ar severo e enfrentou o inimigo, golpeando qualquer bretão que se aproximasse o suficiente, e deflectindo os ataques das longas espadas
que tinham força suficiente para arrancar a cabeça de um homem com um único golpe. E, com efeito, enquanto Cato lutava ombro a ombro com os seus camaradas, viu um
romano inclinar-se para pôr fim a um inimigo ferido, inconsciente, no seu momento de triunfo, do bretão ao seu lado, de espada erguida. A arma abateu-se sobre o
pescoço do soldado e a ponta enterrou-se na erva sangrenta. A cabeça do legionário coberta pelo elmo voou e, com um barulho seco, aterrou a poucos metros de distância,
ao mesmo tempo que golfadas de sangue eram expelidas do pescoço do cadáver.
Foi um pormenor entre muitos, logo esquecido por Cato, que feria os bretões que cercavam o pequeno grupo. Agora que o choque do confronto inicial acalmara, ambos
os lados estavam presos em milhares de lutas individuais cujos pequenos detalhes para sempre ficariam gravados nas memórias dos sobreviventes. O centurião Bestia,
a distribuir ordens com a terrível eficiência de um veterano; a expressão angustiada no rosto de um inimigo; o padrão exótico das pinturas nos corpos dos bretões;
o cabelo espetado e as estranhas tatuagens. Todas estas impressões ficaram impressas no olho da mente, mesmo quando não duravam mais que instantes. Para Cato, uma
calma interior parecia consumi-lo; o seu corpo divorciou-se da sua mente, e passou a lutar guiado pelos instintos. Pela primeira vez sentiu que realmente pertencia
à Segunda legião. Se a retaguarda chegasse a tempo, talvez ainda pudesse viver para gozar esse novo sentimento.
A batalha estava a correr pessimamente, e Vespasiano viu que a linha de coortes a sul - se é que podia ser descrita como linha - iria desintegrar-se completamente
a qualquer momento, a não ser que pudesse ser reforçada. Duas coortes que enfrentavam os arqueiros tinham recebido ordens para atacá-los e desimpedir a linha de
árvores, negando-lhes quaisquer oportunidades de voltarem a alvejar romanos. As duas coortes restantes da força principal, cerca de oitocentos homens, eram tudo
o que lhe restara, e apressou-se a formá-los numa linha dupla em frente aos carros de bagagem. Depois, à medida que os camaradas escapavam por entre as aberturas
entre os carros e os animais de tiro, as linhas abriam-lhes passagem para a retaguarda, onde oficiais reagrupavam os sobreviventes das coortes do sul numa força
de reserva.
Perante tal cenário, Vespasiano sabia que a batalha só poderia ter
um resultado. Superioridade numérica, e a perda de um terço do seu comando, significava que os bretões iriam, eventualmente, conseguir esmagar a mais resistente
das defesas. Por instantes, considerou ordenar aos seus homens para quebrarem a formação e fugirem para as florestas do norte mas, dispersos e perdidos, seriam alvos
fáceis na inevitável perseguição que se seguiria. A destruição da Legião seria mais rápida se mantivessem a defesa, mas também levariam com eles um maior número
do inimigo. Depois, ao menos, a sua reputação póstuma seria consagrada e o nome de Vespasiano não estaria ligado ao de Varo que liderara, há muitos anos, três legiões
para um destino semelhante, nas sombrias florestas germânicas.
A linha de reserva manteve-se firme, enquanto os seus camaradas recuavam para trás dos carros, lentamente cedendo terreno perante a chacina do inimigo. Quando os
romanos em retirada se encontravam protegidos, Vespasiano acenou com a cabeça ao trombeteiro, que soou o sinal combinado. Os homens das duas coortes prepararam os
seus dardos.
- Lançar! - Vespasiano rugiu a ordem e os centuriões repetiram o comando. Oitocentos braços lançaram os seus dardos num arco elevado sobre as cabeças dos seus camaradas,
para além dos carros de treino, onde atingiram os bretões quase sem armadura, amontoados numa grande massa. A averiguar pelos gritos, os romanos souberam que tinham
provocado estragos nas fileiras dos bretões e trocaram sorrisos de satisfação ao prepararem os últimos dardos. O segundo lançamento provocou uma nova torrente de
gritos que trespassaram o ar. Os legionários desembainharam as espadas, à espera que os bretões retomassem o seu ataque contra as frágeis linhas romanas. A Legião
tinha esgotado o seu arsenal bélico e preparava-se agora para sangrentos combates singulares decisivos.
Desmontando do seu cavalo, Vespasiano desapertou a fivela no seu ombro e deixou que o seu manto de legado caísse ao chão. Um oficial de dia entregou-lhe um escudo
e Vespasiano passou a mão esquerda pela correia, agarrou firmemente no suporte de ferro e desembainhou a espada curta de cabo de marfim. Endireitou-se numa postura
rígida e forçou o seu caminho por entre os soldados até alcançar o centro da frente de combate. Se este era o dia destinado à sua morte, então morreria como lhe
ditavam os seus antepassados e o respeito pela tradição romana: com a face virada para o inimigo e a espada na mão.
XXXIX
No topo de uma colina, na orla sul da floresta, Macro encontrava-se aos pés de um maciço tronco de carvalho, a espreitar por entre os ramos florescentes. O caminho
à saída do pântano conduzira-os a este local, e Macro estava impaciente por saber da situação da Segunda.
- Então?
- Não consigo ver bem, senhor - gritou Pirax do topo da árvore.
- Diz-me o que consegues ver.
- Consigo ver os carros de bagagem, mas há homens a toda a volta... o problema é que não consigo dizer quem é quem.
Macro cerrou o punho e esmurrou o tronco áspero, tal era a sua frustração.
- Assim não vai dar - murmurou, e depois, agarrando num ramo ao seu alcance, começou a escalar o tronco. Chegou ao pé de Pirax, sentado de pernas cruzadas num ramo
a crescer perpendicularmente em relação ao tronco.
- A próxima vez que precisar de informação - ofegou Macro
- eu próprio me encarrego do trabalho, e não um cegueta.
Ao lado de Pirax, Macro teve a sua primeira visão da batalha distante e viu, para seu grande horror, que as escassas linhas vermelhas da Legião estavam a ser envolvidas
por uma multidão multicolor de tropas inimigas. Apenas a retaguarda parecia manter alguma espécie de ordem. Vitélio e Cato tinham falhado, então, e Vespasiano conduzira
imprudentemente os seus homens a uma emboscada. Pela aparência da batalha, a emboscada estava prestes a tornar-se num massacre.
- O que fazemos, senhor?
- O que fazemos? O que é que podemos fazer?
- Tentamos encontrar uma das outras legiões, senhor? Ou então regressamos para a fortaleza, na costa?
- Bem, dificilmente lhes serviremos de reforço, - disse Macro, amargamente, e apontou o polegar na direcção da floresta. - Mas vamos esperar. Alguma coisa ainda
pode vir a acontecer.
- Como o quê, senhor?
- Não faço a mínima ideia. Por isso, esperamos.
Sentaram-se em silêncio, a observar os seus camaradas, homens
que tinham conhecido a maior parte das suas vidas, a cederem terreno. Era uma batalha pela sobrevivência, de uma tal intensidade sanguinária que mal conseguiam imaginar.
Macro mal conseguia suportar a vista e tentou parar as lágrimas que lhe vinham aos olhos, ao testemunhar a morte da Segunda legião.
- Senhor?
- O quê?
- Ali. Olhe.
Pirax apontou para a parte ocidental da floresta, olhos esforçando-se para ver os pormenores à longa distância. Seguindo a direcção do seu dedo, Macro viu uma massa
negra que tinha escapado à sua atenção quando estivera a lutar para reprimir as lágrimas. Mas agora que os observava, a mão morta do destino cerrou o punho sobre
quaisquer últimas esperanças que ainda nutrissem pela Segunda legião. Uma segunda coluna de bretões marchava caminho abaixo, para selar o destino da Legião.
A pressão sofrida pelos homens da Segunda forçou-os a ceder gradualmente mais terreno aos bretões, e agora estavam quase a alcançar a linha de árvores de onde tinham
emergido os arqueiros. As últimas reservas de força de Cato estavam quase esgotadas; o peso do escudo no seu braço parecia ter triplicado, e agora mal conseguia
erguê-lo do chão. As suas arremetidas de espada estavam agora reduzidas a débeis golpes, e já quase não era capaz de deflectir os ataques dirigidos a ele. Mas, mesmo
assim, continuou a lutar, determinado a resistir até ao fim. E o fim, sabia-o, estava próximo. Bestia tinha tombado, estripado por três inimigos que o tinham atacado
em conjunto, e agora o seu corpo estava estendido na relva sangrenta, com a face arruinada.
O facto de o próprio legado estar a lutar ao lado dos seus homens era uma prova eloquente de que também ele acreditava na iminente aniquilação da Segunda. Separadas
da vanguarda e da retaguarda pela
inteligente emboscada, as coortes da coluna principal lutavam isoladas. O chão à sua frente estava coberto de mortos e feridos a gemer, à mistura com a cacofonia
selvática de gritos de guerra, berros coléricos e rugidos incoerentes de homens que se tinham rendido ao frenesim da batalha. Não se ouviam gritos dos feridos romanos,
já que aqueles que tombavam eram rapidamente despachados sem piedade pelos bretões, com uma raiva amargurada reservada a todos os invasores. A toda à volta a erva
tingia-se do vermelho do sangue, tornando o chão escorregadio, o que representava um outro perigo para os homens envolvidos em combates mortais ao longo do caminho
da floresta.
À esquerda de Cato, o legado da Segunda lutava com uma ferocidade e uma entrega que espantava os soldados à sua volta, tão acostumados ao seu modo sereno e disciplinador.
Mas com a morte à porta, Vespasiano não via sentido em preservar qualquer sentido de decoro. O que os homens precisavam agora não era a reserva fria do comando aristocrático,
mas sim um exemplo de espírito de luta, capaz de os inspirar até ao fim. Então lançou-se a todos os atacantes, golpeando e estripando o inimigo, com total desconsideração
pela sua própria segurança. E, todavia, continuava vivo, aparentemente imune aos ataques dos bretões, enquanto outros soldados à sua volta tombavam em combate.
Apesar do facto de os romanos não mostrarem sinais de enfraquecimento, e de que quanto mais eram pressionados mais lutavam com ardor, os bretões sentiram o cheiro
da vitória. Após a surpresa inicial da emboscada, a Legião tinha causado um tal número de perdas que apenas a destruição total de todos os romanos seria suficiente
para compensá-los. Vespasiano avistou uma quadriga a movimentar-se atrás dos bretões. Ao seu comando encontrava-se um homem de vestes ricas e de alguma estatura,
a exortar os seus homens e a encorajá-los a seguir em frente, apontando a sua lança às linhas romanas. Por instantes, o legado considerou liderar um pequeno grupo
de homens contra o comandante dos bretões, na esperança de que a morte de Togodumno os desmotivasse da luta. Mas todos os romanos estavam seriamente envolvidos no
combate e não conseguiriam reunir-se para formar tal força. Vespasiano desesperou ao ver a quadriga passar desprotegida, e com a sua raiva inflamada, esmagou o escudo
contra o corpo de um bretão a lutar com o legionário do lado, e enfiou a espada no homem. Não havia dúvidas de que Togodumno seria considerado um grande herói pelo
seu próprio povo ao fim do dia, e esse pensamento instigou Vespasiano a lutar com uma ferocidade ainda maior.
Quando a linha romana foi finalmente quebrada devido à forte pressão, a legião dispersou-se em pequenos grupos a lutarem independentemente uns dos outros, e não
mais uma coerente formação militar, limitando-se a lutarem para viver mais um pouco - e fazendo o inimigo pagar por esse privilégio.
Cato deu por si num grupo de cerca de cinquenta homens a repelir várias vezes as investidas dos bretões. Ao arrastar-se para defrontar o último atacante, foi subitamente
confrontado por um homem enorme, nu, mas coberto por estranhas pinturas célticas dos pés à cabeça. Com um rugido, o homem ergueu uma enorme espada com ambas as mãos
e apontou-a à cabeça de Cato. Dando uso a todas as suas energias, Cato ergueu o escudo mesmo a tempo. Com um terrível rangido, a espada quebrou o escudo e paralisou
o braço de Cato desde os dedos até ao ombro. Já não foi capaz de segurar no escudo que escorregou dos seus dedos dormentes, deixando-o à mercê do possante guerreiro
bretão, que se riu na cara da sua vítima indefesa. Levantando a espada num golpe final, o bretão emitiu um grito de guerra. Mas antes que pudesse atacar Cato, uma
figura interpôs-se entre ambos - Vespasiano. Com um rosnado, o legado lançou-se a ele, evitando a espada do bretão e repelindo-a com o escudo. Depois arremeteu contra
o pescoço do inimigo, mas o guerreiro reagiu com uma destreza que insinuava uma mestria singular em combate. Cada um deles recuando, mediram-se um ao outro, preparados
para atacar a qualquer momento.
Nesse instante, uma imobilidade tomou conta dos romanos e dos bretões, que pararam para observar o par e o resultado da luta entre o gigante e o legado. Tinha chegado
o momento decisivo da batalha. Mas mesmo ao pausarem, aperceberam-se de um novo som - o soar distante de uma trompa. Ambos escutaram o som, ainda que nenhum deles
tivesse desviado o olhar do outro. Estendido no chão, Cato pensou primeiro que os seus ouvidos cansados o enganavam, mas viu que os seus camaradas partilhavam a
mesma reacção. Seria possível?
O som repetiu-se e o coração de Vespasiano rejubilou - era o inconfundível som de uma trompa a chamar ao ataque. O auxílio estava ao alcance das mãos, mas de quem?
Descartou tais pensamentos ao ver o bretão a recuar um passo, seguindo instintivamente o resto dos seus camaradas, que quebraram contacto com o inimigo e foram apossados
por terríveis dúvidas. Aproveitando a oportunidade que lhe era oferecida, Vespasiano arremeteu a ponta da espada ao pescoço do guerreiro, degolando-o. Deixando cair
a sua arma, o bretão levou as mãos à ferida numa tentativa de estancar o jorro de sangue. Vespasiano ignorou-o e esticou o pescoço na direcção das trompas, agora
definitivamente mais próximas. Depois, avistou por cima das cabeças dos bretões, ao longe, no caminho, uma linha de cavalaria trajada de capas vermelhas, e sobre
a sua cabeça a silhueta inconfundível de um estandarte romano. E da direcção oposta, veio o rugido da retaguarda da Segunda a renovar o ataque, do outro lado da
floresta.
Uma ansiedade palpável percorreu as hordas bretãs, ao verem a cavalaria a entrar em cena e a penetrar nos flancos. Um punhado de homens começou por se retirar em
direcção à linha sul das árvores. Ao ver outros a seguirem no encalço deles, a quadriga que transportava Togodumno percorreu as linhas e o líder bretão gritou asperamente
aos seus homens para manterem o ataque, mas o medo contagiante transformou-se em pânico e acabaram por abandonar o líder. Ao ver que um núcleo duro de bretões ainda
resistia, Vespasiano ergueu a sua espada bem alto. Não era necessário nenhum discurso eloquente, nem nenhum lhe veio aos lábios.
- A eles! A eles!
A linha romana lançou-se em perseguição dos homens que, há poucos momentos, estavam tão seguros da vitória. Agora fugiam como coelhos, esperando refugiar-se na segurança
da floresta, longe do caminho, esvaída num instante toda a arrogância. Cato, estendido no chão, ainda não recuperara do choque da súbita mudança de circunstâncias.
Vespasiano manteve Togodumno debaixo de olho e, reunindo um grupo de homens, lançou-se numa perseguição sanguinária, direito à quadriga. Mas o líder dos bretões
não era nenhum imbecil, e sabia que perdera o controlo da batalha. Emitiu uma ordem ao condutor, e com uma chicotada, a quadriga deu meia volta e desatou a correr
pelo caminho da floresta, para longe da cavalaria que se aproximava. Vespasiano só pôde ficar a olhar em desespero para a quadriga a fugir, o condutor atropelando
tudo no seu caminho para se assegurar de que Togodumno escapava em segurança.
O legado mandou os seus homens pararem ao lado de um carro de bagagem, subiu para o assento do condutor e tentou obter um panorama geral do campo de batalha. Para
onde quer que olhasse, só via bretões em fuga, e vinda do ocidente, a cavalaria que espiara há alguns momentos, chacinava sem misericórdia todos os inimigos que
encontrava pela frente. Ao aproximarem-se, uma figura alta num cavalo branco abandonou a perseguição e foi ter com Vespasiano.
- Vitélio? - murmurou Vespasiano, cheio de dúvidas.
Um momento depois, a semelhança com o tribuno tornara-se evidente e Vespasiano meneou a cabeça, surpreendido. Vitélio parou ao lado do carro e fez uma saudação.
- Mas que raio fazes aqui, tribuno?
- É uma longa história, senhor.
- Aposto que sim. E mal tudo isto estiver acabado, quero que me apresentes um relatório.
No alto da colina, com vista sobre a floresta, Macro quase que caiu da árvore, tal era a sua excitação. Balanceava de cima para baixo nos ramos, dando murros, com
o punho, na sua outra mão, ao ver os líderes da Décima Quarta - só podia ser a Décima Quarta, pensou - atacar o inimigo que cercava a vanguarda da Segunda, no mesmo
momento em que a retaguarda da Segunda renovava o ataque no outro flanco dos bretões em fuga. Mal o inimigo bateu em retirada, a cavalaria iniciou uma perseguição
implacável, com as tropas a abaterem os inimigos à sua frente, tomados pelo pânico que os levara a fugir em massa do campo de batalha.
- Brilhante! Digo-te, simplesmente brilhante! - deu uma palmada no ombro de Pirax.
- Calma, senhor! - gritou-lhe Pirax, tentando desesperadamente manter o equilíbrio, ao agarrar o ramo.
Macro sorriu para ele e continuou a dar largas à sua alegria:
- Os filhos da mãe estão por todo o lado! Olha para eles a fugirem pela floresta! Devem estar a escapar por entre as árvores como merda do cu!
- Alguns deles estão a fugir nesta direcção, senhor - constatou Pirax, calmamente.
- Claro que estão, rapaz. Vão tentar fugir para o pântano. Oh...
- Macro olhou para baixo, por entre os ramos, para o caminho que serpenteava numa única direcção entre a floresta e o pântano. - Já estou a ver onde queres chegar.
- É melhor não nos encontrarem aqui, quando chegarem. Não me parece que apreciem a ideia de encontrarem mais romanos no caminho deles.
- Tens razão. - Macro acenou para os homens deitados na relva, aos pés do tronco de carvalho. - É melhor desceres e trazê-los cá para cima. E solta os cavalos, não
nos valem de nada, agora.
- Sim, senhor. - Pirax desceu agilmente da árvore, e deixou Macro sozinho a observar a fase final da luta panorâmica a desenrolar-se à sua frente.
A cavalaria em perseguição e as tropas da retaguarda irrompiam da floresta para pôr fim aos bretões que tentavam desesperadamente alcançar segurança. Alguns deixaram
cair as armas e submeteram-se
à mercê dos perseguidores, mas poucos foram poupados. Os sobreviventes capturados foram agrupados, sob vigilância de um punhado de homens robustos escolhidos para
a tarefa. Pirax tinha razão, muitos dos bretões em fuga dirigiam-se para o caminho que conduzia ao pântano, do qual se tinham servido para lançar a emboscada à Segunda.
Daqui a momentos, iriam passar por debaixo da árvore. Macro olhou para baixo e viu que a sua esquadra escalava o tronco de carvalho, os soldados incólumes a ajudarem
os feridos, até que todos ficaram escondidos na folhagem da árvore.
Satisfeito por vê-los a salvo dos bretões, Macro voltou a desviar a sua atenção para a perseguição. O seu olhar captou movimento na orla da floresta, próximo do
local onde a Segunda acampara, e avistou uma quadriga a circundar as árvores e a dirigir-se directamente para a colina. Macro pôde observar que, para além do condutor
que chicoteava os cavalos, a quadriga era liderada por um indivíduo de grande estatura, de vestes ricas e elaboradas, e com um vistoso elmo de bronze. Era evidente
que se tratava de um guerreiro importante. Um par de cavaleiros romanos aproveitou-se do declive e lançou-se atrás da quadriga. O bretão inutilizou agilmente o ataque
de lança de um dos cavaleiros e esmagou o cabo da sua lança na cara do homem, que foi derrubado do cavalo. O segundo cavaleiro foi igualmente descuidado e pagou-o
com a vida, sendo atacado pelo chefe dos bretões que o trespassou com a lança.
A quadriga foi subindo a colina, e Macro pôde ver que o seu trajecto iria levá-la a passar mesmo por baixo da árvore.
- Vamos apanhá-lo! Aquele filho da mãe! - Apontou para a quadriga e ordenou aos homens que ainda estavam armados e incólumes que o seguissem para o chão. Respirando
pesadamente, com espadas desembainhadas, encolheram-se por trás do tronco e esperaram. Alguma infantaria bretã passou por eles, e desatou a fugir com redobrada energia
ao verem os rostos severos do grupo de legionários com espadas curtas brilhantes. Depois o martelar de cascos e o chocalhar das rodas anunciou a aproximação da quadriga,
e Macro preparou-se, pronto para saltar sobre o guerreiro. Os gritos ásperos do condutor ouviram-se por cima do barulho, e Macro arriscou dar uma espreitadela à
volta do tronco para se certificar do momento certo.
- Preparados, rapazes? Ataquem primeiro o condutor e os cavalos. Depois tratamos do guerreiro.
Esperou que a quadriga passasse ao lado do tronco.
- Agora! A eles, rapazes!
Macro desatou a correr, interpôs-se directamente no caminho dos cavalos e tentou agarrar no tirante. Os homens da quadriga foram
completamente apanhados de surpresa e não tiveram tempo de se desviar dos romanos. Macro puxou com força os arreios e os cavalos travaram. Pirax abateu o condutor
com um golpe rápido, antes que pudesse sequer largar as rédeas. Caiu da quadriga e a sua cabeça foi esmagada por uma roda, devido ao nervosismo dos cavalos que constantemente
se movimentavam. O chefe bretão recobrou a presença de espírito e deu um salto, de lança na mão, dirigindo-se para o tronco de carvalho. Virou-se, apresentou a sua
lança e, com um riso áspero, desafiou os romanos a enfrentá-lo. Macro olhou para ele com admiração; o homem era certamente um adversário de respeito, quaisquer que
fossem as probabilidades contra ele.
- Vamos cercá-lo! - ordenou aos seus homens. - E cuidado com essa maldita lança.
O meio círculo de legionários aproximou-se com cautela, sem que o bretão deixasse de mover a ponta da sua lança de guerra, arremetendo-a contra um e outro legionário
que se aproximava demasiado. Com um grito de dor, um dos homens cansados de Macro foi ferido nas tripas e caiu ao chão a sangrar profusamente.
- Muito bem, isto é o que vamos fazer! - disse Macro, mantendo os olhos fixos no bretão. - Vamos atacá-lo em conjunto. Preparados? Agora.
Seis homens lançaram-se ao bretão que, com um golpe selvagem, apanhou um deles na perna antes que os outros pudessem agarrá-lo, tentando deitá-lo abaixo. Mas, embora
em inferioridade numérica e sem esperança de vencer, o bretão derrubou para o lado dois homens, pegou numa espada romana e levantou-se, com uma espada a que não
estava habituado na mão, pronto para atacar os seus inimigos.
- Deixem-no comigo! - Macro ordenou que os outros recuassem.
- O filho da mãe quer uma luta, então pode ter uma comigo.
Com a espada curta pronta a atacar, Macro dobrou ligeiramente os joelhos e lentamente circulou à volta do guerreiro, a medi-lo com os olhos. E durante todo esse
tempo, o chefe fitava-o também, a avaliar de cabeça fria o forte romano.
- Julgas-te muito bom, não é verdade? - disse Macro. - Podes ser um grande filho da mãe, mas não fazes a mínima ideia de como usar essa espada. Foi feita para arremetidas...
não é um maldito cutelo.
Simulou um ataque para a frente, e como antecipara, o bretão ergueu a espada por cima da cabeça e correu para Macro com um grito de raiva. Macro simplesmente caiu
num joelho, estendeu o braço e deixou que o ataque impetuoso do bretão fizesse o resto. Com um gemido, o homem curvou-se sobre a espada e lançou os braços para a
frente, as mãos à procura do pescoço de Macro. Conseguiu agarrá-lo e começou
a pressionar-lhe a traqueia. Respirando com dificuldade, Macro caiu ao chão com o bretão por cima dele, com as mãos a apertarem cada vez com mais força o pescoço
do centurião. Os seus rostos estavam frente a frente, e Macro viu os olhos do bretão brilharem de triunfo, ao ranger os dentes e apertar com mais força ainda. A
espada ainda estava na mão de Macro e tentou apunhalar o seu oponente nalgum órgão vital. Sentia a sua cabeça prestes a explodir, com a pressão das mãos do bretão,
até que por fim, o fogo no seu olhar esmoreceu, e depois de um último espasmo, as mãos soltaram-no. Macro arrancou-as do pescoço e engoliu ar em desespero. Afastou
o corpo do inimigo para o lado e esforçou-se por se levantar, fixando os seus homens com um olhar furioso.
- Mas porque raios não me ajudaram?
- O senhor disse-nos para não o fazer - protestou Pirax.
Macro esfregou o pescoço, retraindo as mãos de dor.
- Da próxima vez, tomem alguma maldita iniciativa. Se algum desgraçado estiver prestes a dar cabo do vosso centurião, vocês intrometem-se e param-no, quaisquer que
tenham sido as vossas ordens. Perceberam?
- Sim, senhor.
- Bom, agora mais vale dar uso à quadriga. Transportem os feridos nela, e prendam-na a um dos cavalos. Depois, rapazes, voltamos para a segurança da Segunda. As
bebidas são por minha conta, se alguém ainda estiver acordado esta noite.
XL
Nesse dia, a Segunda legião permaneceu no local, para permitir aos oficiais sobreviventes que reorganizassem as suas unidades e avaliassem as perdas. Tinham pago
um preço elevado pela chamada de Pláucio às armas. Cerca de um terço da Legião tinha sido morto ou ferido, e metade da bagagem destruída ou imobilizada por perda
dos animais de tiro. Um perímetro estava em vias de ser montado em volta dos sobreviventes, apesar de ninguém acreditar seriamente que os bretões seriam capazes
de reagrupar homens suficientes para lançar um novo ataque. De qualquer modo, Togodumno tinha sido morto e o seu corpo desfilou, estendido na quadriga, à frente
dos prisioneiros bretões no cativeiro. Observaram o corpo do seu líder num silêncio taciturno, e choraram, sem vergonha.
Os feridos romanos estendiam-se em longas filas, à espera de tratamento pelos oficiais de dia do hospital, que se moviam entre eles a avaliarem os casos graves e
aqueles que tinham boas hipóteses de sobreviver aos ferimentos. O ar enchia-se de gemidos e gritos. A um lado do caminho, a construção de uma enorme pira estava
quase completada e uma pilha crescente de corpos romanos estava a ser empilhada no topo: a pira seria acesa ao cair da noite. Em frente ao quartel-general provisório,
a pilha de placas de identidade retiradas dos mortos era o testemunho silencioso do preço que a Legião pagara. Os bretões mortos eram atirados sem cerimónia para
uma série de valas escavadas ao longo do caminho. Apesar de terem conquistado uma vitória, os homens da Segunda não tinham vontade de partilhar o regozijo dos seus
camaradas da Décima Quarta, cujos gritos distantes de celebração podiam ser ouvidos, vindos do seu acampamento na orla da floresta.
Na tenda de Vespasiano, o ambiente era dominado por uma disposição totalmente diferente. Estava sentado à sua secretária, a fitar os três homens à sua frente - Vitélio,
sentado com um sorriso perverso nos
lábios, a ouvir o relato comunicado pelo centurião e pelo optio ao seu lado. De vez em quando, apercebia-se dos olhares coléricos e de desprezo lançados pelos dois
ao tribuno, que só pareciam diverti-lo ainda mais, enquanto esperava pela sua vez de ser ouvido.
Macro, sujo e exausto, tentava comunicar o relatório da forma mais clara e simples possível, mas o intenso cansaço dos últimos dias toldava-lhe a mente, e, de quando
em quando, virava-se para o optio para esclarecer detalhes e relembrar certos pormenores. Cato permanecia em sentido, de postura rígida, o braço envolto numa tala,
ainda dormente e inutilizado pela pancada que recebera.
Ambos pareciam estar nas últimas, pensou Vespasiano, mas estava secretamente radiante pelo trabalho deles. Tinham recuperado a arca do carro no pântano, e agora
mesmo um esquadrão de cavalaria tinha sido destacado para recuperá-la do seu novo esconderijo. Não apenas isso, mas Macro também lhe trouxera ao campo o corpo de
Togodumno, que foi identificado por um dos exilados bretões da Décima Quarta legião, um homem vil e com cara de rato, com o nome de Admínio. Com Togodumno morto,
restava apenas o seu irmão Carátaco para coordenar a resistência bretã contra os invasores. Tendo em conta as circunstâncias, um desastre tinha sido evitado, e tinha
de facto sido transformado numa quase vitória. Desse ponto de vista, a sua carreira estava em segurança.
Mas restava ainda a questão delicada das acusações feitas contra Vitélio pelo centurião e pelo seu optio. Ao relatarem o ataque de Vitélio no pântano, as suas palavras
não deixavam lugar para dúvidas de que se tratava da verdade, e todas as dúvidas de Vespasiano em relação ao tribuno foram confirmadas.
Macro terminou o seu relatório, e, após um momento de silêncio, Vespasiano considerou as provas, enquanto os fitava um a um.
- Tens a certeza de tudo isto, centurião? Desejas mesmo acusar formalmente o tribuno?
- Sim, senhor!
- Vai ser difícil de acreditar quando disseres isto em tribunal marcial. Tens consciência disso?
- Sim, senhor.
- Muito bem. Muito bem. Vou dar toda a minha atenção ao teu testemunho e comunicar-te-ei a minha decisão quando for conveniente. Estão os dois dispensados.
- Senhor?
- O que foi, optio?
O jovem optio fez uma pausa para considerar com cuidado as seguintes palavras:
- Não consigo perceber porque fomos considerados desertores, senhor.
- As acusações foram retiradas - disse Vespasiano, num tom lacónico. - Tudo acabou bem.
- Sim, senhor, mas porque foram as acusações feitas em primeiro lugar? Quem...
- Um erro, optio. Esquece isso. Estão dispensados.
Quando Macro e Cato estavam prestes a abandonar a tenda, Vespasiano chamou-os mais uma vez:
- Mais uma coisa. Quero agradecer-lhes por terem alertado a retaguarda. Duvido que tivéssemos aguentado o tempo suficiente até chegar o auxílio da Décima Quarta,
se Plínio não tivesse reforçado a coluna. Agora, quero que descansem. Esperem lá fora, que vou mandar o meu oficial de dia preparar-vos uma refeição quente.
- Obrigado, senhor - replicou Macro.
Sozinho na tenda com Vitélio, o legado considerou a sua próxima entrevista com vagar. A versão dos eventos contada pelo tribuno tinha feito dele o herói que encontrara
a coluna de Togodumno. Incapaz de regressar para a Segunda legião e avisá-los do perigo iminente, fora ter com a Décima Quarta e forçara-os a dar meia volta e a
intervir, mesmo a tempo de salvar a Segunda da aniquilação total. Consequentemente, o tribuno era agora ovacionado por todas as secções, pela sua acção heróica.
Todavia, os dois homens que tinham acabado de deixar a tenda acusavam-no de traição.
- Presumo que não irá levar a sério esta história ridícula, senhor.
- Mas tens que admitir que é cá uma história...
- Sim, mas não deixa de ser uma história. E, como todas as boas histórias, não tem uma porção de verdade.
- Mas se o resto da patrulha confirmar as acusações, estás metido em sarilhos.
- De modo nenhum - protestou Vitélio. - É a minha palavra contra a deles. A palavra do filho de um cônsul contra uma data de legionários. Em quem acha que o tribunal
irá acreditar, especialmente depois de ter arriscado a minha vida para salvar a Legião de uma derrota certa? Na melhor das hipóteses podem considerar que tudo não
passou de inveja, na pior das hipóteses, vai parecer uma perseguição política, e dificilmente isso cairá bem entre a plebe de Roma: sei que eles mostram uma certa
parcialidade para com os heróis. Se fosse a si, esquecia tudo.
Vespasiano sorriu.
- Até mesmo os heróis têm ainda que tratar os seus superiores por "senhor". - disse calmamente.
- As minhas desculpas, senhor.
- Vamos supor, por agora, que o centurião estava a falar a verdade. Como descobriste sobre a arca?
Vitélio não respondeu de imediato, e fitou, em silêncio, o legado.
- Sabe, posso negar ter qualquer conhecimento sobre a arca. Afinal de contas, estava a agir sob ordens suas para procurar por sinais de Togodumno. Podia dizer que
aconteceu estar por acaso no pântano, ao mesmo tempo que o seu grupo. Um nevoeiro denso, uma confusa troca de identidades... tudo perfeitamente compreensível.
- Compreensível, mas uma mentira.
- Claro que é uma mentira, senhor. Mas não importa.
- Porquê?
- Porque ninguém saberá o que aconteceu. Nenhuma palavra desta conversa irá sair desta tenda.
- E porque razão, tribuno? - sorriu Vespasiano.
- Já lá vou chegar. Mas antes de mais, se deseja saber a verdade, eu conto-lhe tudo. Na verdade, foi Narciso quem me contou sobre a arca.
- Narciso?
- Contou-me ainda antes de partirmos da fortaleza, no Reno. Eu sou o agente Imperial que lhe foi referido. Narciso não tinha certezas sobre si, então quis que o
mantivesse debaixo de olho. Claro que tive todo o prazer em aceder ao seu pedido.
Vespasiano sorriu perante a ironia da situação. Até mesmo o astuto administrativo tinha os seus pontos fracos. O motivo e o álibi tinham sido oferecidos de bandeja
a Vitélio.
- Mas, apesar de me ter contado sobre o carro, não me referiu a sua localização. Era por essa razão que precisava de ver o mapa no pergaminho. Infelizmente, alguém
já se tinha antecipado. Não só isso, como também tentaram acusar-me do seu roubo. Mesmo assim, não foi difícil mandar Pulcher seguir os seus homens ao pântano e
enviar alguma assistência, mal começassem a escavar. Quis sinceramente evitar qualquer derrame de sangue, isto é, entre os meus homens. Se tivesse conseguido persuadir
Macro a entregar-me a arca, teríamos apenas que os matar depois. Mas da forma como as coisas correram, demonstrou um talento infeliz para se salvar em circunstâncias
adversas. E, assim, a arca foi ganha para Cláudio.
- Mas porque irias querer essa arca? - perguntou Vespasiano.
- Não acredito que esperavas dar uso a uma tão larga soma de dinheiro sem atrair atenções.
- Exacto. Não me tome por um imbecil, senhor. Nunca foi minha intenção gastar o dinheiro em mim próprio.
- Então porque te deste a tanto trabalho para obtê-lo?
- Pela mesma razão que o Imperador deseja a arca. Ouro é poder; e com toda aquela riqueza podia comprar a lealdade de qualquer homem que quisesse.
- Estou a ver. - Vespasiano assentiu. - Então isso faz de ti o traidor de que Narciso me tinha avisado. Nunca me tinha ocorrido que o agente Imperial e o traidor
pudessem ser a mesma pessoa. Acho que Narciso ficará igualmente surpreendido quando lhe contar.
- Eu, o traidor? É isso que pensa? - Vitélio riu-se. - Dificilmente! Apenas sou o agente Imperial... sempre fui. Pelo menos, é nisso que Narciso acredita.
- Então porquê tentar matá-lo?
- Matá-lo? - Vitélio franziu o cenho. - Ah, aquele pequeno assunto na estrada para Gesoriaco. Receio que seja inocente. E o que iria ganhar com a sua morte? Precisava
que alcançasse o exército e ajudasse a suprimir a rebelião. Afinal de contas, como poderia alcançar a arca se a invasão não fosse em frente? Não, essa emboscada
foi trabalho de outra pessoa. Palpito que a pessoa por trás dessa emboscada queria pôr fim à invasão. Sabe tão bem quanto eu o quão é importante para Cláudio ganhar
a aprovação do seu estatuto como Imperador. Com Narciso morto, um motim em larga escala, a invasão cancelada, e a fortuna da arca longe do seu alcance, quanto tempo
acha que Cláudio teria durado? Acredite em mim, até pôr as minhas mãos nessa arca, estava desejoso de servir os objectivos do Imperador.
- E depois? - perguntou Vespasiano. - Dificilmente poderias ter revelado uma tão grande fortuna ao mundo.
- Claro que não. Não precisava dela para agora. Estava apenas a planear o meu futuro. Cláudio não irá durar para sempre e alguém tem que ser Imperador... porque
não eu?
- Tu? - foi a vez de Vespasiano se rir.
- Porque não? E agora que falamos nisso, porque não o senhor?
- Não podes estar a falar a sério.
- Estou. Nunca falei tão a sério na minha vida.
- Mas Cláudio tem herdeiros, uma família que o irá suceder.
- Isso é verdade. - concordou Vitélio. - Mas já deve ter notado o quão facilmente os membros da família Imperial sucumbem a uma série de mortes peculiares. Têm um
historial bastante trágico. E se alguma coisa lhes acontecer, tenciono lá estar quando for anunciada a vaga. Mas não tenho pressas. Posso esperar e assegurar-me
primeiro de que tenho os recursos necessários para realizar a minha jogada. Graças àqueles dois lá fora, vou ter que esperar um pouco mais.
Vespasiano estava chocado com a revelação das ambições do tribuno. Não havia limites ao que o homem faria no seu desejo por poder? Mas ainda faltava esclarecer outra
questão.
- Se não és o espião a agir a mando dos traidores, então quem
é?
- Esperava por essa pergunta. - Vitélio encostou-se à cadeira. - Na verdade, levei imenso tempo a descobrir. Devia ter desconfiado mais cedo, muito antes de o meu
homem, Pulcher, ter conseguido extrair a informação do líder do motim.
Vespasiano subitamente relembrou-se do modo como Plínio tinha olhado para o pergaminho que tirara das mãos de Tito naquela tarde na tenda de comando, e a forma conveniente
como distraíra os guardas no preciso momento em que o ladrão entrara na tenda.
- Plínio?
- Plínio! - Vitélio riu-se. - Ele? Não me faça rir, senhor.
- Se não é Plínio, então quem?
- Se fosse a si, desconfiaria de alguém mais próximo.
- O que queres dizer com isso? - Vespasiano sentiu-se acometido por uma súbita náusea.
- Se o que Narciso me contou é verdade, parece que alguém tentou tramar-me com o roubo na tenda.
- Negas ter tentado roubar o pergaminho?
- Não - admitiu Vitélio. - Mas o pergaminho que Pulcher roubou estava em branco. Alguém o conseguira trocar antes de ele lhe pôr as mãos em cima.
- Não podia estar em branco - discordou Vespasiano com um sorriso. - Porque não podia ter sido trocado em primeiro lugar. Já estava fora da arca, Flávia encontrou-o,
disse que Tito tinha... - Vespasiano sentiu o sangue gelar-se.
- Flávia encontrou-o. Tão conveniente. - Vitélio sorriu para o legado.
- Não é possível - murmurou Vespasiano.
- Foi o que pensei primeiro. Temos que admitir, Flávia é uma mulher muito engenhosa.
- Mas... mas porquê?
- Não compreendo completamente as suas motivações. Não acredito por um momento que ela seja a Republicana convicta que pretende ser. Acredito que estava a preparar
o caminho para si, para que avançasse na sua carreira.
- Eu? - Vespasiano estava chocado.
- Meu caro legado, pode pensar que a sua integridade moral lhe
dá crédito e que servir o Imperador incondicionalmente é o primeiro dever do seu ofício, mas precisamente o facto de não suspeitar da sua esposa, torna-o ainda mais
útil como instrumento político. Que melhor candidato para ocupar o lugar de Cláudio do que um homem que sinceramente acreditava ter servido com total dedicação e
lealdade o velho Imperador? A plebe rojar-se-ia aos seus pés. Até aposto que conseguiria mais aclamação que a oração fúnebre de António sobre César.
- Como te atreves? - disse Vespasiano, esforçando-se para controlar a sua crescente raiva. - Como te atreves a sugerir que Flávia podia sequer fazer tais coisas?
- Nunca suspeitou? Suponho que isso apenas lhe dá crédito como marido. E tenho a certeza de que daria um grande estadista, mas um péssimo político. Os homens que
atacaram Narciso vinham da unidade de cavalaria comandada por Gaio Marcelo Dexter, um dos oficiais de Escriboniano, e por mero acaso, um primo afastado da sua mulher.
Espero que não acredite isso ser uma coincidência. Enfrente-o, Flávia foi desmascarada. Se fosse a si, teria uma conversa com ela em breve. Encoraje-a a não se intrometer
mais em jogos de poder, e Narciso permanecerá ignorante do papel dela nesta história. Se quer manter a sua esposa em boa saúde, sugiro que se certifique de que eu
nunca sinta necessidade de contar a alguém sobre as suas actividades extracurriculares. Ainda não contei a Narciso tudo o que sei. Prometa-me o seu silêncio sobre
tudo o que aqui foi dito e eu ofereço-lhe a vida de Flávia. Um acordo justo, não lhe parece?
Vespasiano fitou-o, a sua mente tentando ainda negar as provas reunidas pela sua memória dos acontecimentos dos últimos meses. Aquele momento na tenda em que ela
remexera desajeitadamente no pergaminho que recuperara de Tito. Tinha sido habilmente planeado, pensou.
- Senhor, não espero que concorde já com a minha oferta. Mas aconselho-o a pensar bem sobre isso. Não pretendo negar que fui descuidado em muitos aspectos. E talvez
seja capaz de persuadir Narciso que quaisquer acusações contra mim são infundadas e sem escrúpulos. Mas a mera sugestão de que fui algo mais do que o bom servo leal
que ele acredita que eu sou, certamente irá fazer perigar a minha posição. Se revelar tudo isto, ambos sofreremos as consequências. E para mais, serei forçado a
expor a traição de Flávia. Estou certo de que vê que é no interesse de ambos sermos discretos sobre os acontecimentos dos últimos meses.
Vitélio esperou por uma resposta mas Vespasiano, de olhar cabisbaixo, tomado por um crescente desespero, mal escutara os comentários
finais do tribuno. Ergueu uma mão, onde repousou a cabeça, ainda destroçado pelas revelações.
- Oh, Flávia... - sussurrou. - Como pudeste?
- Agora, senhor, dá-me licença? Tenho deveres a cumprir. Vitélio preparou-se para abandonar a tenda. - E presumo que não iremos ouvir nem mais uma palavra acerca
das acusações do centurião Macro contra mim.
Vespasiano batalhou por palavras, palavras que exprimissem a sua vergonha, o seu medo... e a sua raiva pela superioridade e arrogância do tribuno. Palavras que ensinassem
a Vitélio o seu lugar. Mas nenhuma palavra veio, e simplesmente acenou com a mão na direcção da abertura da tenda.
No exterior, Cato e Macro estavam sentados em cima de alguma forragem destinada aos cavalos dos oficiais. Macro adormecera rapidamente, cabeça inclinada sobre o
peito e a ressonar pesadamente, tendo-se finalmente rendido a um merecido descanso. O alto ressonar atraía os olhares cheios de censura dos oficiais de dia, ocupados
em trabalho no quartel-general. O uniforme enlameado, a pele suja e manchada pelo sangue de Togodumno, que cobria o seu rosto e as suas mãos, tinham reduzido o centurião
a um estado miserável. Todavia, ao observá-lo, Cato sentiu uma grande afeição, ao lembrar-se do sincero prazer de Macro em encontrá-lo vivo e de saúde no seu regresso
à Segunda legião. O sentimento de pertença do qual Cato tivera aguda consciência durante a batalha tinha permanecido com ele, e pensou que era isto que significava
ser legionário, uno com os seus camaradas e o modo de vida cruel que fora forçado a escolher. Agora a sua casa era o exército. Pertencia de corpo e alma à Legião.
E ainda bem que assim era, pensou, ao olhar para cima e cruzar o seu olhar com o de um das centenas de bretões prisioneiros, sentados calmamente no cativeiro, despojos
de guerra destinados a serem embarcados para Roma e vendidos como escravos. Não fosse o último pedido de seu pai, Cato ainda seria um escravo, como esse pobre selvagem
no cativeiro. Aguardava-os uma vida inteira sujeita à pior escravatura. Labor agrícola em alguma propriedade enorme, ou uma morte rápida acorrentados nas minas de
chumbo, era tudo o que os prisioneiros de guerra não-civilizados poderiam esperar.
No entanto, havia algo no olhar do prisioneiro que reflectia o seu espírito indomável, a sua vontade de lutar a qualquer custo até ao fim
cruel, algo que exprimia o fogo interior que ardia num homem que pegava em armas contra invasores. Cato soube, nesse momento, que a campanha para subjugar os bretões seria uma longa e sangrenta luta.
Simon Scarrow
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