Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ÁGUIA E O ANJO / Blythe Gifford
A ÁGUIA E O ANJO / Blythe Gifford

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

             O cavaleiro mercenário Sir Garren devia muito a William, Conde de Readington: a espada que o protegia, o cavalo que montava, até mesmo seu título de nobreza. Por sua vez, Garren salvara a vida do Conde na Terra Santa. Mas William fica gravemente enfermo quando retornaram. E cabe a Garren salvá-lo novamente a qualquer custo: mesmo que isso signifique fazer outra peregrinação e rezar por um deus a muito abandonado, prometendo deflorar uma jovem dama inocente caso seu senhor se recupere da doença... E Garren já fizera sua escolha para o sacrifício: a religiosa Dominica, para quem Sir Garren era um sinal dos céus.

             A peregrinação, abençoada com a presença do belo e heróico cavaleiro, certamente era uma orientação para que ela tomasse o hábito. A cada passo da jornada, porém, Dominica parecia se desviar um pouco mais de Deus e ir diretamente para os braços de Garren. A ponto de começar a se perguntar se sua verdadeira missão não seria abrir o coração frio do mercenário para o verdadeiro amor. Será que o beijo de Dominica teria mais poder do que as armas de Sir Garren?

 

 

 

 

 

 

                         Castelo de Readington, Inglaterra, junho de 1357

— Deus me trouxe de volta dos mortos, Garren — disse William. — Você foi Seu instrumento.

Garren fitou o amigo, deitado em seu leito. Quando William, Conde de Readington, estava no campo de batalha em Poitiers, Deus não levantara um dedo.

Agora, Garren se questionava se devia ter feito aqui­lo. Talvez a morte em solo francês tivesse sido melhor para ele.

Pela vida de William, contudo, Garren lutaria até com Deus o tempo que fosse necessário.

— Você foi o único — disse William. — Os outros me deixaram lá para morrer.

Mas William não estava morto, mesmo tendo havido dias em que Garren não tinha certeza disso. Depois que as tropas vitoriosas caminharam por toda a França e, finalmente, navegaram de volta para a Inglaterra, Wil­liam começou a viver um purgatório na terra; mantinha-se vivo porque Garren forçava-o a engolir água, mingau e carne moída.

— Sou teimoso demais para abandoná-lo.

— Mais que isso. — Entre cada palavra, William ofegava para respirar. — Você me carregou. Nas costas.

— Você e sua armadura. — Garren sorriu, os lábios apertados, e simulou um soco no ombro de William. — Não esqueça a armadura.

Os Readington regozijaram-se mais com o retorno da armadura do que de seu dono. Enquanto o resto dos cavaleiros ingleses voltava para casa com os produtos dos saques, Garren limitou-se a trazer William. Para carregá-lo, deixou para trás as riquezas que tinham sido a promessa da campanha francesa.

Tudo parecia valer a pena à medida que William re­cuperava as forças. Porém, nas semanas que se segui­ram ao seu retorno, os vômitos começaram. Alguns dias estava melhor, outros pior. Agora, William estava deitado em um leito de morte. Durante o dia, sua cor variava entre o vermelho e o marrom, de uma extremi­dade a outra. Os criados trocavam os lençóis, uma tare­fa vã, contudo um sinal de respeito. Não tinham muito mais a fazer.

Pelo menos, pensou Garren, William poderia morrer em sua própria cama.

— Preciso pedir mais... uma... coisa... — Seus dedos frios agarraram os de Garren com a força da morte.

Dei-lhe a vida, o que mais posso fazer? Pensou Gar­ren. Mas, quando fitou William, com pouco mais de trin­ta anos, e incapaz de se levantar da cama, teve dúvidas se o seu presente de vida havia sido tão valioso, afinal.

— Vá à peregrinação para mim. Peregrinação. Um pagamento prévio a um Deus que jamais cumpre o que promete. Uma jornada a um túmu­lo que abrigava os ossos de uma mulher e as plumas de um anjo.

— William, se Deus ainda não o curou, duvido que a Abençoada Larina o faça.

— Vou pagá-lo pela tarefa.

Garren retirou sua mão. Desistira de quase tudo por William, de bom grado. Só lhe restava seu orgulho.

— Você pode encontrar muitos tolos para fazerem a jornada como seus peregrinos.

A dor contraiu o rosto de William. Com o braço es­querdo, protegeu o estômago, tentando conter o próxi­mo acesso de vômito.

— Não confio... em mais ninguém.

Garren murmurou alguma coisa, nem sim nem não, com a intenção de acalmá-lo. Abrigou a mão esqueléti­ca de William entre as suas, grandes e quadradas. Mui­to tempo já se passara desde que William o assumira, um garoto de dezessete anos que ninguém mais queria, velho demais para iniciar um treinamento para escudei­ro. Tudo o que era devia a este homem.

William agarrou-se ao braço de Garren e levantou o corpo, quase chegando a sentar. Era cinco anos mais velho do que Garren, mas parecia estar com uns oiten­ta. Depois de assegurar-se de que estavam a sós, Wil­liam estendeu a mão e apanhou um pergaminho dobra­do que não era maior que sua mão.

— É para o monge do santuário.

Pegando a mensagem dos dedos trêmulos de Wil­liam, Garren espantou-se como ele tinha conseguido segurar uma pena para escrever.

A voz de William também estava trêmula.

— O lacre não pode ser violado.

Garren sorriu em silêncio. Mesmo no mosteiro, ti­nha sido um mau leitor.

William acenou com o braço para chamar sua aten­ção, forçando uma resposta.

— Por favor. Não tenho mais ninguém.

Garren olhou nos olhos do amigo, e decidiu que, en­quanto William respirasse, cederia aos seus pedidos.

— Não quero o seu dinheiro. — Queria dar a jornada de presente ao amigo.

William balançou a cabeça indicando que não, sol­tando na fronha da cama um novo chumaço de cabelo louro. Sabia que o amigo não tinha dinheiro para ir mais longe que a próxima batalha.

— Aceite-o. Compre-me uma pluma de chumbo.

Um emblema de chumbo de peregrino. Prova da jor­nada. Um sinal para alardear sua fé. Garren agarrou os dedos de William.

— Trarei algo melhor. Já que não pode viajar até o santuário, trarei o santuário até você. Vou trazer-lhe uma pluma de verdade.

De algum modo, parecia apropriado violar um san­tuário para confortar um homem cheio de fé. Pelo me­nos uma pluma se pode ver, segurar, tocar. Não é como as falsas promessas da Igreja.

A peleja pálida descorou.

— Sacrilégio.

Um calafrio subiu a coluna de Garren. Roubar uma relíquia. Violar um santuário. Deus o puniria. Quase riu ao pensamento, resquícios de anos de treinamento. Garren tinha visto como era insignificante a misericór­dia divina. O castigo divino não podia ser tão maior.

— Não se preocupe. Ninguém sentirá falta de uma pequena pluma.

Ainda balançando a cabeça, William fechou os olhos e caiu num sono profundo.

A porta abriu sem ninguém bater, e a voz alegre e ritmada do irmão mais novo de William, Richard, ir­ritou os ouvidos de Garren. Richard não iria em uma peregrinação pelo irmão, nem por amor, nem por di­nheiro.

— Ainda respira?

— Você parece ansioso para ouvir um "não".

— É que no estado em que se encontra não se pode dizer que esteja vivendo, não concorda?

— Talvez. Mas, enquanto respirar, é ele o Conde de Readington.

Richard, contudo, só tinha que aguardar. Seria o Conde dentro de muito pouco tempo.

— O que é isso? — Richard tentou pegar o pergaminho dobrado como se tivesse o direito.

— Deve ser um pedido para a santa. — Agora que concordara, temia a jornada. Não os dias de caminha­da, mas a companhia de todos aqueles peregrinos cheios de fé que acreditavam em um Deus invisível que responderia suas preces se eles pagassem Seu preço. Garren era mais esperto. — Pediu-me que fosse ao san­tuário orar por sua recuperação.

— Quando chegar lá, estará rezando pela alma de William.

E quando voltar, pensou Garren, estarei rezando pela minha.

 

Ajoelhada diante de seu crucifixo particular, a Priora desviou os olhos que contemplavam a pintura lasca­da da mão esquerda do Cristo, quando a jovem aden­trou sua sala em passadas largas, quase sem dobrar os joelhos para saudá-la.

Levantou-se com um estalar dos joelhos, sem saber por que consentira com esta audiência, e acomodou-se em sua cadeira. Dominica era uma jovem esbelta, mui­to grata ao convento por tê-la recebido, criado e lhe conseguido o trabalho de limpar, lavar e cozinhar para as poucas freiras que ainda restavam ali.

A peste negra havia causado muitas perdas. Havia poucas servas para plantar ou colher a safra. A caridade cristã acompanhava um estômago cheio. Claro, Lorde Richard poderia ter tornado tudo mais fácil.

— Madre Julian, quero acompanhar a Irmã Marian ao santuário da Abençoada Larina.

A Priora sacudiu a cabeça para ouvir melhor. O pe­dido era tão afrontoso que achou que não tinha com­preendido bem. Nenhum por favor. Nenhuma súplica.

— O que disse, Dominica?

— Quero ir em peregrinação. E depois fazer os votos para noviça.

— Quer ingressar na ordem?

Era nisso que resultava educar uma jovem numa condição acima daquela que Deus lhe destinara. Devia ter dado a criança à esposa do mineiro de carvão, quan­do teve a oportunidade.

— Você não tem dote.

— O dote não é uma exigência — contestou Domi­nica, recitando o texto como se estivesse pregando. — A fé, sim, é uma exigência.

A Priora mordeu a língua. Não iria discutir teologia com uma órfã. Era preciso mais do que fé para alimen­tar e vestir vinte mulheres.

— Não pode tornar-se freira.

— Por que não? — A garota levantou o queixo como se tivesse o direito de discordar. — Posso copiar os ma­nuscritos em latim tão bem quanto a Irmã Marian.

— O que a faz pensar que tem um chamado, Domi­nica?

— Deus me contou.

— Deus não fala com órfãos abandonados. — A Prio­ra entrelaçou as mãos em oração, até os nós dos dedos fi­carem brancos e as pontas vermelhas. Era culpa sua. Per­mitira que a garota se sentasse com elas durante as refei­ções e ouvisse a leitura das Escrituras. Provavelmente, a criança esperta alimentava a ilusão de que entendia a vontade de Deus porque tinha ouvido Suas palavras. — Deus fala através de Seus servos da Igreja. Ele não me disse nada quanto a você ingressar na ordem.

— Mas, Madre Julian, eu sei que tenho a missão de propagar a palavra d'Ele. — Aproximou-se mais e bai­xou a voz: — Quero copiar os textos na nossa língua, para que o povo possa verdadeiramente entendê-los.

A Priora bateu os dedos devotos contra os lábios. Heresia. Tenho uma herege sob o meu teto. Se os Readington descobrirem, nunca verei outro vintém deles. Eu não deveria tê-la deixado aprender as letras.

— Este é o meu lugar. Sei disso. E depois que chegar ao santuário, a senhora também saberá, porque Deus me dará um sinal. — O rosto de Dominica iluminou-se com o tipo de fé que a Priora há muitos anos não via nem sentia. — A Irmã Marian será minha testemunha.

Irmã Marian sempre mimou demais a menina.

— Quem pagará pela jornada, seu manto e seu ali­mento? Quem fará seu trabalho em sua ausência?

— As Irmãs Catherine, Bárbara e Margaret assumi­rão as minhas tarefas. E a Irmã Marian disse que pagará minha comida com seu dote. — Dominica tinha uma expressão desafiadora. — Não vou comer muito.

— O dote da Irmã Marian agora pertence ao conven­to. — A Priora aninhou a cabeça palpitante nas mãos. Que fim levou a obediência? Era nisso que dava permi­tir que as Irmãs mantivessem cãezinhos de estimação.

— Por favor, Madre Julian. — A jovem caiu de joe­lhos, finalmente em atitude de humildade. E puxou com força o hábito preto da Priora com seus dedos manchados de tinta, as unhas roídas tão rente que a ter­ra do jardim não tinha onde se prender. — Eu preciso fazer essa jornada.

Até que Priora percebeu onde aquilo poderia ser providencial. Quem sabe a jovem não quisesse retornar quando descobrisse a vida além dos muros. Ela tinha uma beleza de causar inveja à maioria das pessoas. Se ao menos se deitasse com o primeiro homem que a cor­tejasse, retornaria de barriga, e não haveria condição de fazer os votos.

Madre Julian suspirou. Que a vontade de Deus seja feita. E melhor que ela vá e leve suas idéias perigosas consigo antes que o Abade ou o Conde descubram, mesmo que me obrigue a designar outra pessoa para cuidar da roupa e capinar. Praticamente não tinham condição de pagar uma moça da vila.

— Está bem, vá. Mas não fale mais de sua heresia. E se houver qualquer problema na viagem, não poderá voltar mais para o convento, com ou sem o véu.

Dominica levantou as mãos e os olhos para os céus.

— Obrigada, Pai Celeste. — Abaixou a cabeça e saiu apressada, sem pedir permissão.

A Priora fez um ar de reprovação. Nenhum agrade­cimento a mim pelas muitas bondades, pensou. Só a Deus. Deus cuidaria dela agora.

A respiração de Dominica irrompia de seu corpo. O alívio elevava-a do chão, e ela quase flutuava pelo cor­redor. Deus sempre respondia às suas preces, mesmo se tivesse de ajudá-1O um pouco. O que a Priora e a Irmã Marian não sabiam sobre essa jornada ficaria reservado para o futuro.

Sentada no pátio ensolarado do claustro, a Irmã Ma­rian ensinava Inocente a sentar ereto. Melhor dizendo, tentava. Como Dominica, o, cão era um vira-lata que ninguém mais queria. Difícil de ser amado e treinado.

— Ela disse "sim", ela disse "sim". — Dominica girou a Irmã até levantar seu hábito preto. — Eu vou, eu vou. — Inocente latiu.

— Shhh, quieto. — A Irmã tentava acalmar Domini­ca e o cão, que corria em círculo para alcançar o curto rabo. Era uma brincadeira que Dominica lhe ensinara.

— Bom menino — Dominica cocou atrás da única orelha. — Não se preocupe, Irmã. — Tudo vai dar cer­to. Deus me contou.

A Irmã arregalou os olhos em direção ao corredor.

— Não deixe a Madre Julian ouvir que Deus fala com você.

Dominica deu de ombros. Não adiantaria contar à Irmã que Madre Julian já sabia disso.

— É como diz a escritura: Bata, e a porta se abrirá para você — emendou Dominica em latim.

— E se a ouvir falando latim, mudará de idéia.

— Mas se Deus tenta falar conosco, por que não de­veríamos abrir nossos ouvidos para Ele?

— Certifique-se de que não está colocando suas pró­prias palavras na boca de Deus.

Dominica suspirou. Deus lhe dera ouvidos, olhos e um cérebro. Certamente esperava que ela os usasse.

— De qualquer modo, iremos e, quando voltarmos, farei meus votos.

A Irmã sentou-se e segurou os dedos de Dominica entre os seus. Dominica amava a sensação das mãos da Irmã. Eram macias, pois não tinham que lavar roupa ou capinar, e os dedos de sua mão direita eram sempre ri­jos, em posição de segurar a pena. Quando criança, Do­minica invejava a Irmã com seu calo de escrever, no dedo médio, e esfregava sempre o seu, na esperança de criar um.

— Lembre-se, minha filha, Deus nem sempre res­ponde as nossas preces da maneira que desejamos.

— Como poderia haver uma outra resposta? Minha vida inteira é aqui. — Ela amava os dias organizados e previsíveis, o silêncio da capela onde podia ouvir a voz abafada de Deus, a tinta vermelha, azul e dourada bri­lhante que iluminava Suas palavras. Tudo o que sem­pre desejara estava a ponto de, finalmente, lhe pertencer plenamente. Ser aceita como uma Irmã. — Posso ler melhor do que a Irmã Margaret e copiar melhor do que qualquer uma, exceto a senhora. — A Irmã suspirou.

— Está fazendo pressão novamente, Dominica. Não há garantia de que Deus concederá o que procura.

— Ah, quanto a Deus tenho certeza. Quem me preo­cupa é a Priora. — A Irmã levantou as mãos em sub­missão.

— Quando tiver vivido mais, estará menos certa quanto a Deus. Venha, vamos arrumar nossas coisas. Precisamos nos aprontar para partirmos amanhã.

E quando retornarem, pensou Dominica, a mensa­gem estará a salvo nas mãos certas, e ela nunca mais precisará sair de casa. Só era preciso fé. E ação.

— Precisamos de dinheiro, Milorde. — A Priora forçou a inclinação em súplica. A humildade diante de Lorde Richard não lhe vinha com facilidade.

A Priora havia armado uma situação para ele ouvir seu pedido, aproximando-se após a refeição do meio do dia, quando a Grande Sala ainda estava cheia de cava­leiros, escudeiros e servos, de modo que ele não pudes­se recusar. Mas a sala estava vazia agora, à exceção do cheiro de carneiro cozido. Seu estômago roncou.

— Para que quer dinheiro, Priora? — perguntou Ri­chard. Com seus ombros estreitos e o nariz afilado, ele recostou na cadeira e limpou a orelha, depois atirou a cera da unha para o ar. — Pensei que as freiras não pre­cisassem das coisas mundanas.

A Priora se perguntou se Lorde Richard mostrava esse desrespeito por todos os seus requerentes. A doa­ção que ela pedia não representaria nenhuma privação.

— Alimento, tinta para escrever e fundos para a pe­regrinação anual, Milorde.

— Estamos em tempos difíceis. — De pernas cruza­das, Richard balançava o pé, examinando-o atento.

— Seu pai era um grande patrono do nosso trabalho no convento — lembrou ela. Ela nunca sentira sua per­da mais do que quando olhava para esse segundo filho de cabelo escuro e pele clara. — Ele prometeu apoiar nosso trabalho de copiar a Palavra de Deus.

— Meu pai está morto.

— E é por isto que me dirijo ao senhor.

— Como sabe, é a meu irmão que deve pedir. E é impossível, para mim, permitir-lhe isto agora.

— Oramos por ele diariamente. Sua saúde está me­lhorando, Milorde?

Lorde Richard tentou sufocar o riso com uma ex­pressão grave.

— Priora, talvez seja melhor que a senhora se apres­se em terminar o Livro de Morte de meu irmão. Mas sempre existe uma esperança — disse Richard, repri­mindo o riso. — O mercenário vai à peregrinação por ele.

Madre Julian persignou-se.

— O cavaleiro que trouxe seu irmão de volta dos mortos? — A vila inteira sabia da história. Ela chegara a ouvir blasfêmias de pessoas que o chamavam de O Salvador.

— Se acredita na versão dele. É difícil confiar em um homem que luta por moedas, e não por fidelidade a um senhor.

Uma crítica curiosa, pensou ela, já que Lorde Ri­chard tentara evitar lutar na França e conseguira.

— Um cavaleiro sem terras deve fazer o que pode — disse ela. — Deus trabalha de formas misteriosas...

Richard deu um sorriso de desprezo.

— Não é mesmo? Bem, talvez suas preces e a visita do mercenário suavizem o coração da Santa Larina e curem o meu irmão do mal que o atinge. — Sua voz era puro tédio. — Quem cumprirá a promessa perpétua este ano?

— Irmã Marian. — Ela hesitou por um momento. — E Dominica.

Lorde Richard empinou-se, seus olhos encontraram os dela pela primeira vez.

— A pequena escriba? Já tem idade para viajar?

Será que todos sabiam que a garota sabia escrever? Queira Deus que ela não tenha dito nada a ele sobre suas idéias heréticas.

— Está no seu décimo sétimo ano, Milorde.

— E ainda virgem? — A Priora levantou-se.

— O senhor tem uma opinião tão negativa a respeito da minha administração?

— Interpretarei isso como um "sim". O que ela bus­ca nessa peregrinação?

— Dominica deseja entrar para a ordem, e está bus­cando um sinal da aprovação de Deus.

— Certamente porque a senhora não aprova.

Ela o avaliou por um instante. Poderia haver uma ra­zão para dizer-lhe a verdade.

— Não, eu não aprovo.

— Então temos algo em comum. Tenho um outro in­teresse. O mercenário — disse ele. Seus olhos escuros brilharam. — A gratidão de meu irmão parece transfor­mar-se em sustento eterno, como se Garren fosse um santo. Eu gostaria que meu irmão visse o patife que ele realmente é.

Ela já sabia o patife que Lorde Richard era. Sem dú­vida, seu irmão também o sabia. A Priora esperou sua proposta. Sabia que não seria agradável.

— Ofereça a Garren dinheiro para seduzir a pequena virgem. Ele parece fazer qualquer coisa por umas moe­das. E quando ela acusá-lo, teremos o que desejamos.

— Milorde, eu não posso...

— A senhora não quer que ela seja freira. Nem eu. E quando Garren estiver desgraçado, William será obri­gado a enxotá-lo. Do contrário, serei eu a fazer justiça. E, então, terei algumas tarefas pessoais para a jovem. — Seu sorriso não deixava dúvidas de que seriam exe­cutadas no quarto. — Ela ainda vai poder cuidar da rou­pa para a senhora, Priora, no seu tempo livre.

— Milorde, como pode pedir tal coisa? — E como poderia ela levar em consideração? Por ser responsável por vinte vidas além da de Dominica. Vidas já prome­tidas ao Senhor. E, quando o Conde morresse, o destino dessas vidas ficaria nas mãos de Lorde Richard.

— Se fizer isso, poderei dar-lhe um incentivo gene­roso para o mercenário por seu pecado.

Esse esquema asseguraria que nunca fizesse os vo­tos. Claro, não era exatamente isso que ela mesma ha­via imaginado, melhor dizendo, desejado? Talvez, Deus estivesse respondendo às suas preces não verbali­zadas.

— E estou certa que será generoso com o convento.

— Tudo dependerá do êxito da senhora e da Aben­çoada Larina, não é?

A jovem tinha os olhos do próprio diabo. Talvez esse fosse o destino que Deus pretendia para ela. E o mercenário? Ele e Deus poderiam lutar por sua alma.

— Não prometo nada — disse a Priora, cautelosa. — Só posso preparar a mesa. E orar por perdão.

— Eu também não prometo nada. — Richard fitou-a de relance. — Prepare isso bem.

 

Garren, apesar de ter desistido de Deus como causa perdida, ainda estava chocado por uma freira ter-lhe pedido que violasse uma virgem.

— Dominica é o nome dela — disse a Priora. — O senhor a conhece?

Sem fala, ele negou com a cabeça.

— Venha. — A Priora fez um gesto convidando-o a aproximar-se da janela. — Veja por si mesmo.

A jovem estava ajoelhada na terra com o rosto volta­do para o outro lado. Seus cabelos caíam pelas costas como mel derramado em uma trança grossa. Cantarola­va junto às plantas, um som tranqüilizador como o zumbido de uma abelha sonolenta.

O coração de Garren bateu mais forte. Mesmo de costas, ela o agradava. Não seria difícil possuí-la, mas a idéia trazia-lhe de volta uma sensação de indignidade que há muito acreditava desaparecida.

— Não a forçarei. — Ele vira muita brutalidade na França. Cavaleiros faziam votos de honra, e depois possuíam as mulheres como porcos no cio. A lembran­ça revirou seu estômago. Seria melhor passar fome.

— Use os métodos que preferir. A garota não deve voltar virgem dessa viagem.

Garren voltou a olhar para a jovem que arrancava as ervas daninhas. Não era um cavaleiro saído de um ro­mance, mas sabia lidar com as mulheres. Os adeptos de acampamentos por toda a França poderiam confirmá-lo. Toda mulher tinha um ponto fraco, era só dar-se ao trabalho de procurá-lo. Qual seria o dela? As orelhas em formato de concha? A curva do pescoço?

Dominica ficou de pé e os olhos azuis mais puros que Garren jamais vira penetraram sua alma infeliz.

Por um instante, Garren tremeu mais do que já tre­mera diante de uma batalha com os franceses. Seios re­dondos. Sardas. Sobrancelhas cerradas. A boca, o lábio superior sério, e o inferior com uma curva sensual. E uma impressão de que ela não era deste mundo.

— Por quê? — Garren fizera regularmente essa per­gunta a Deus, sem obter resposta. Não sabia por que esperava que uma Priora fosse respondê-la.

A Priora, de peito e quadris fartos, não analisou a pergunta sob a ótica da teologia. Seu crucifixo penden­te tilintou como uma espada quando ela se afastou da janela para não ouvir o feliz cantarolar.

— O senhor me considera cruel.

— Já vi a guerra, Madre Julian. A falta de humanida­de do homem não é pior que a de Deus. — Garren teve um pensamento repentino. A decisão de ir para a cama com uma donzela o levaria a casar-se em quinze dias. — Se é um marido que a senhora procura, eu não sirvo. Não tenho como sustentar uma esposa.

— Ninguém lhe pedirá para casar com a moça.

Os olhos de Garren pousaram em um remendo muito bem costurado no hábito preto desbotado, e ele teve dú­vidas se a madre teria o dinheiro que prometera.

— Nem serei punido.

— Se o senhor tivesse algum dinheiro não estaria considerando minha oferta. Não, também não será pu­nido. Deus tem outros planos.

— A senhora não se importa com a minha alma imortal, mas e com a dela? O que lhe acontecerá de­pois?

— Sua vida vai continuar quase como era antes.

Garren duvidava. Mas o dinheiro que lhe era ofere­cido seria suficiente para dar a William o presente da peregrinação. William em breve estaria morto. Garren não seria bem-vindo sob o reinado de Richard. Tudo o que possuía eram um cavalo e uma armadura. Com a Inglaterra e a França em paz, não tinha para onde ir.

Com o que a Priora lhe oferecia, mais as poucas moedas que lhe restavam da França, poderia encontrar um canto da Inglaterra que ninguém quisesse, onde Deus e ele pudessem ignorar-se um ao outro.

— Pode pagar-me agora?

— Sou uma Priora, não uma tola. Receberá seu di­nheiro quando retornar. Se tiver êxito. Vai aceitar?

O cantarolar feliz da moça ainda soava nos seus ou­vidos. O que mais um pecado significaria para um Deus que só punia os honrados? Além do mais, a Igreja não precisava dessa moça. Já tinha muitas.

Garren inclinou a cabeça concordando.

— A Irmã Marian também irá ao santuário. Ela não sabe nada sobre isto. Quer que a moça volte para o con­vento e faça os votos.

— E esse não é o desejo da senhora.

A Priora fez o sinal-da-cruz. Um leve estremeci­mento agitou seu hábito.

— Dominica é uma criança rejeitada que tem os olhos do diabo. Ele poderá tê-la de volta. — Seu sorriso era tudo menos santo. — E o senhor agirá como instru­mento de Deus.

 

— Olhe. Lá está ele, O Salvador. — As palavras da Irmã Marian encantaram os ouvidos de Dominica. A Irmã sussurrou, para que ninguém ouvisse, o apelido blasfematório daquele que, como o verdadeiro Salva­dor, trouxera um homem de volta a vida.

— Onde? Qual? — Dominica não se preocupou em falar baixo. Todas as pessoas do convento estavam reu­nidas no pátio do Castelo de Readington a fim de assis­tir à bênção dos peregrinos de Deus, antes de saírem em sua jornada.

— Lá. Ao lado do grande cavalo baio. — Dominica respirou fundo. Era o homem que tinha visto à janela da Priora.

Ele certamente não tinha a aparência de santo. Seus ombros largos pareciam feitos para o mundo real, não o espiritual. Os cabelos ondulados castanho-escuro, da cor de couro bem usado, cobriam sua cabeça e emoldu­ravam seu rosto, onde ele começava a deixar crescer uma barba de peregrino. Sua pele era curtida do sol e do vento.

Garren novamente encontrou os olhos da jovem. Como na primeira vez, alguma coisa muito forte chamou a atenção dela, como se Garren tivesse falado. Isso certamente deve ser devido à santidade dele.

Com um latido, Inocente saiu correndo pelo pátio atrás de um grande gato alaranjado.

— Vou pegá-lo — avisou Dominica, tarde demais para a Irmã objetar. Seria difícil manter Inocente em segurança em meio às tentações do mundo.

Aos primeiros passos, Dominica emaranhou a saia nas pernas, e, ao soltá-las, sentiu o ar fresco do dia. Rindo, precipitou-se por entre dois burros e, finalmen­te, agarrou Inocente ao pé de um cavalo.

Um grande cavalo baio. Ao lado de um homem de ombros largos. O Salvador era mais alto do que parece­ra à distância. Uma espada de soldado pendia ao lado da tigela e do saco de viagem de peregrino. Trazia algu­ma coisa em volta do pescoço, escondida sob a túnica. Uma penitência particular, talvez.

— Bom dia — disse ela, inclinando a cabeça para trás para encontrar os olhos castanhos, aliás, verdes, de Garren. — Meu nome é Dominica.

— Sei quem você é.

Ao seu olhar, o sangue dela correu pelos dedos e pelo estômago, de um jeito estranhamente agradável.

— Deus lhe contou? — Se Deus falava com ela, com certeza devia ter longas conversas com alguém tão santo.

— A Priora me contou.

Ela se perguntou o que mais a Priora lhe havia con­tado. O cachorro retorcia-se em seus braços, e ela co­cou sua cabeça.

— Este é Inocente. — Ele riu.

— Em homenagem ao nosso Santo Padre em Avignon, sem dúvida.

Isso, ela tinha certeza, a Priora não lhe contara. Do­minica continuou a correr, sem lhe dar tempo para pen­sar se o nome homenageava ou zombava do Papa.

— Estamos todos gratos ao senhor por trazer o Con­de de volta dos mortos — disse Dominica. — Ele fedia como Lázaro?

— Como?

— A Bíblia diz que "Lázaro cheirava mal porque es­tava morto há quatro dias".

— Não foi em um dos sermões do Abade que ouviu falar do mau cheiro de Lázaro.

Era melhor não lhe contar que ela própria tinha lido.

— Na refeição da tarde, as Irmãs lêem as Escrituras e me permitem ouvir. — Dominica esperou um sinal de irritação. Poderia alguém tão ligado a Deus perceber sua pequena mentira?

— A história de Lázaro não soa muito agradável — disse ele. — Mas, sim, nós dois fedíamos quando che­gamos em casa.

— É claro que o Conde não estava morto há quatro dias quando o trouxe de volta à vida.

— Eu não o trouxe de volta dos mortos. Simples­mente não o deixei morrer.

Dominica achou essa uma distinção teológica muito sutil.

— Mas o senhor tinha fé no poder de Deus. "Aquele que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá."

— Cuidado em quem crê. A fé pode ser perigosa.

As palavras daquele homem, frias como os seus olhos, pareciam tão simples e tão complexas quanto as Escrituras. Dominica lembrou-se do final da história de Lázaro. Quando os fariseus souberam o que Jesus tinha feito, decidiram que deveria morrer.

— Sabe meu nome, mas eu não sei o seu, Senhor...

— Garrem

— Sir Garren de quê?

— Sir Garren de lugar nenhum. Sir Garren sem nada. Como convém a um simples peregrino.

— Não tem um lar?

— Tenho Roucoud de Readington. — Ele acariciou o pescoço do cavalo.

— Readington?

— Um presente do Conde.

Por que ele teria ficado irritado diante de um presen­te tão maravilhoso? Readington deve valorizá-lo muito para presenteá-lo com um animal fantástico como este.

— E o seu lar é montado em um cavalo?

— Tenho sido mercenário. Luto por moedas.

— E agora?

— Agora sou um peregrino pago — murmurou ele —, fui contratado para fazer esta peregrinação.

O que surpreendeu Dominica não foi ter na jornada um peregrino pago, e sim ser ele o Salvador.

— Que pobre morto teria deixado moedas em testa­mento para uma peregrinação por sua alma?

— Não foi um morto... ainda.

Ele deve estar se referindo ao próprio Conde de Rea­dington, pensou Dominica, aliviada. O segredo estava em boas mãos, e seria bom ela parar de fazer perguntas.

— Desculpe-me — disse ela. — Guarde o segredo de sua jornada santa em seu coração.

— Eu não sou nenhum santo.

Sua insistência pareceu irritá-lo. Como ele podia ne­gar que foi tocado por Deus? Todos conheciam a histó­ria. Hoje, está partindo em viagem para o santuário da Abençoada Larina. Por São Miguel Arcanjo, pensou Dominica, era bem possível ele vir a ter seu próprio santuário.

— Deus o escolheu como Seu instrumento para sal­var a vida do Conde.

— Um instrumento pode servir a muitas mãos. Tan­to Deus como o diabo fazem uso do fogo.

O sino tocou e, como um bando de gansos, os pere­grinos de manto cinza dirigiram-se à porta da capela. Dominica depositou Inocente no chão, e ele voltou para a Irmã Marian, de rabo em pé. Dominica tentou segui-lo, mas suas pernas recusaram-se a sair dali.

— Por favor — murmurou ela. — Dê-me sua bên­ção.

— Receba sua bênção do Abade como o resto dos peregrinos.

— Mas o senhor é o Sal... — Ela mordeu a língua. — O senhor é especial.

Os olhos dele faiscaram, mudando de emoção e de cor, e ela sentiu o perigo que a fé podia trazer.

— Já disse, não sou santo. Não posso dar nenhuma bênção de Deus.

— Por favor. — Com dedos trêmulos, ela segurou as mãos grandes e quadradas. Ajoelhou-se e encostou os lábios nas articulações de seus dedos.

Garren retirou as mãos. Ela as puxou de volta e as colocou sobre sua cabeça inclinada.

A mão de Garren enrijeceu-se. Lentamente, cobriu-lhe a curva da cabeça e desceu deslizando, até chegar à pele nua da nuca. Os dedos dele queimavam como bra­sa. O peito da jovem ficou tenso, e ela tentou respirar. O cheiro da poeira do pátio mesclava-se a um novo odor, intenso e profundo, que vinha dele.

O som do sino na igreja foi sumindo, mas a sensação de paz que ela esperava não chegou. Seu coração batia em seus ouvidos, como se todos os quatro humores de seu corpo estivessem loucamente fora de equilíbrio.

Ele se afastou, balançando a mão em um gesto que poderia ser uma bênção, uma despedida, ou rejeição.

— Obrigada, Sir Garren do Aqui e Agora — mur­murou ela, voltando correndo para a segurança da Irmã e de Inocente, com medo de olhá-lo novamente e te­mendo já ter colocado muito de si naquelas mãos.

As mãos de Garren queimavam como se tivessem tocado o fogo.

O sangue santo de Deus. Ela acha que sou um santo.

Garren riu da blasfêmia.

A reação de seu corpo enrijecido era a de um ho­mem, mas o caimento do manto de peregrino disfarça­va aquilo, além de todos os seus outros pecados.

Esta tarefa seria fácil demais e muito agradável, mas ele estremecia perante a idéia de tirar vantagem da fé que ardia nos olhos da moça. Ela acreditava que ele era separado por Deus de alguma forma. Seria um grande desapontamento descobrir o quanto ele era carnal. Gar­ren afastou a sensação de culpa. A jovem teria que aprender um dia, como ele aprendera. A fé é uma arma­dilha para os tolos. Garren virou-se e viu a Priora, sor­rindo como se tivesse presenciado toda a cena. Como se quisesse vê-lo possuir a garota ali mesmo, no chão do pátio.

Dominica, com sua fé inocente, não era páreo para a Priora. Talvez ele pudesse nivelar as desigualdades e enganar a Igreja: diria à Priora que tinha levado a garota para a cama, e receberia o pagamento por um pecado que não tinha cometido. Naturalmente, a garota diria que continuava pura, porém seria tão prejudicada quan­to se ele a tivesse deflorado. Mas estaria livre. Livre das garras da Igreja.

Sorrindo, Garren entregou as rédeas do cavalo a um pajem e foi unir-se aos outros. Servos, cavaleiros, escu­deiros, cozinheiros, pajens, até a Priora e Richard afas­taram-se quando eles se dirigiram à capela. Esperava que William não visse da janela Richard usurpar o lu­gar que, de direito, era do Conde de Readington.

Pela primeira vez, Garren reparou em seus compa­nheiros de viagem. Quando atravessaram a porta da igreja, contou os integrantes do grupo.

Eram menos de doze. Um jovem casal de mãos da­das. Um homem com uma cicatriz no rosto e nariz tor­to. Uma mulher rechonchuda, com certeza esposa de algum comerciante, pela costura de seu manto. Dois homens que pareciam irmãos, pelo formato dos quei­xos. Alguns outros.

Cada um deles tinha uma cruz que enfeitava o manto comprido cinza ou estava costurada por dentro, ou ain­da, como no caso da esposa do comerciante, estava pendurada no pescoço.

Dominica andava com os olhos azuis enfocados em Deus, ignorando o cão que se agitava em seus braços. Na porta da igreja, ela o colocou no chão e se virou três vezes para conseguir que ele ficasse. Garren riu. Pelo menos o cachorro era irreverente.

Quando Dominica cruzou a porta da sombria capela, Lorde Richard colocou a mão no seu ombro e sussur­rou-lhe algo no ouvido. Dominica afastou-se e entrou rápido, sem sequer olhar para ele.

Garren cerrou o punho. Não precisava de mais uma razão para odiar Richard.

Richard e a Priora viraram-se para Garren, o único peregrino ainda no pátio. Um criado aparentemente tenso afastou-se e deu passagem para ele entrar na ca­pela de Readington.

Garren passou por eles apático, lerdo, com os olhos fixos no acabamento de pedra da moldura da porta, procurando ignorar os olhares e murmúrios. O manto com a cruz costurada por insistência de William, o relicário em volta do pescoço, tudo parecia uma fantasia de uma personagem de um drama sacro. A mensagem misteriosa de William estava presa ao seu peito.

Somente sua espada e a concha em volta do pescoço lhe eram familiares. A concha de chumbo era uma lem­brança da família que Deus levara, apesar de terem pago Seu preço para serem salvos.

— Venha, Garren. — Richard nunca o honrava com Sir. — Deus e o Abade o aguardam.

Partículas de poeira rodopiavam no raio de luz que terminava próximo ao altar. Garren ajoelhou-se ao lado de Dominica, em frente ao parapeito do altar. Com os olhos no Abade, Dominica não o percebeu.

O Abade, que fizera uma longa viagem de White Wood para dar a bênção, a proferia em latim, com o propósito de ser mais bem compreendido pelos ouvi­dos surdos de Deus do que nós outros, pensou Garren.

A garota acompanhava suas palavras com os lábios, como se as entendesse. Seus cabelos refletiam uma luz em volta da cabeça como uma auréola. Ela era jovem e vulnerável, intocada pelo mundo, e Garren tinha a mais estranha sensação de que, apesar de tudo, era mais forte do que ele. De repente, ele se perguntou se conseguiria tê-la e continuar sendo a mesma pessoa. O Abade mudou para o idioma do povo.

— Vocês que estão aqui reunidos para partir em pe­regrinação estão prontos para essa jornada? Deixaram para trás os bens mundanos para viajarem na simplici­dade, como fez Nosso Senhor?

Garren observou Dominica acenar que sim, perguntando-se que bens mundanos ela teria. Em nove anos, ele não juntara nada além do que podia carregar.

— Quando chegarem ao santuário, devem fazer uma confissão sincera, ou sua jornada não será reconhecida aos olhos de Deus e dos santos. Todos farão?

Murmúrios de sins farfalharam como folhas secas. Garren se conteve. Confessaria a Deus quando Ele lhe devolvesse o favor.

— Lorde Richard pede que cada um de vocês ore por seu amado irmão, o Conde de Readington, que, depois de ter sido salvo da morte, vive em um estado mais pró­ximo dos céus do que da terra.

— Agradeço ao meu irmão, mas eu mesmo pedirei por minha salvação. — Willíam interrompeu-o.

— Que...? — Richard não sabia o que falar. Garren ameaçou levantar-se, querendo acreditar em milagres, desejando ver William novamente forte e de pé. Protegendo os olhos do sol, voltou-se para a porta da igreja. Contra a luz, viu a silhueta de uma figura reclinada, quase comprida demais para a maça. William, pálido e magro como um fantasma, foi carregado em seu leito por dois homens, um deles segurando uma va­silha de estanho para o caso de uma necessidade.

A multidão respirou fundo em uníssono. Depois, mãos iam das testas aos ombros, fazendo o sinal-da-cruz contra um espírito surgido dos mortos.

William acenou para os dois criados seguirem adiante. As pessoas ali reunidas davam passagem en­quanto William era carregado até o altar, onde a Priora se inclinou sobre ele. Richard, com expressão arrogan­te e olhos impiedosos, permaneceu imóvel.

O Abade, aturdido, virou os olhos para os céus em busca de orientação.

— Deus deu ao Conde forças oriundas da pureza das nossas intenções. — Sua voz cresceu. — Vocês que fa­rão essa jornada orem por um milagre!

— Obrigado por suas... preces.

Garren ficou de coração partido ao ouvir a voz de William. Antes, tão firme nas batalhas. Agora, tremia como se fosse de alguém com o dobro de sua idade.

— Providenciei o alimento do primeiro dia.

— Um gesto magnífico, Lorde Readington — disse o Abade.

Richard franziu a testa. William acenou como se afastasse uma pequena nuvem de fumaça.

— E que seja sabido... — Ele pausou para respirar. — Garren viaja a meu pedido e leva minha mensagem para a Abençoada Larina.

William virou-se, com ânsia de vômito, justo a tem­po de alcançar a vasilha de estanho.

Garren fechou os olhos, como se a dor de William pudesse deixar de existir se ele não a visse; como se, assim, trouxesse o passado de volta.

— Vamos terminar com uma prece pelo êxito de Sir Garren e pela recuperação de Lorde Readington. Depois, abençoarei os cajados e distribuirei os testemu­nhais — anunciou rápido o Abade.

Garren viaja a meu pedido — dissera William. O que iriam pensar dele agora?

Dominica sorriu para ele, mas todos os outros pare­ciam fascinados, como se realmente estivessem vendo um homem de Deus. Todos, menos a Priora. E Richard.

 

Dominica apoiou a testa no parapeito do altar para se concentrar em Deus, em vez de na repentina aparição do Conde. O Abade beijou o seu cajado e o depositou nas suas mãos estendidas. Ela encostou os lábios na madeira tosca descascada e o firmou no chão.

Em seguida, o Abade entregou-lhe os testemunhais, o rolo de pergaminho com as palavras mágicas do Bis­po que faziam dela uma peregrina de verdade. Seus de­dos tremiam quando ela o colocou dentro de um saco, ao lado do seu próprio pergaminho e da sua pena. Mais tarde, sem ninguém por perto, compararia a letra do copista com a sua. Dominica procurou a voz de Deus den­tro de si. Tentava ignorar O Salvador à sua esquerda mas, ao mesmo tempo, queria saber se ele a observava. Era um homem firme como o cajado que tinha nas mãos. Do tipo que pode nos amparar. Ela o examinou pelos dedos entreabertos. Segurava seu cajado como se fosse uma arma. Parecia acostumado a ficar de pé sem precisar do apoio de um cajado. Nem de um amigo. Nem sequer de Deus.

Por favor, Deus, me dê um sinal no santuário de que eu devo continuar me dedicando a servi-Lo no conven­to e a pregar a Sua palavra.

Quis acrescentar "na língua do povo" mas não for­çaria ainda aquele ponto com Deus.

Depois, abriu os dedos e deu uma espiada na Irmã Marian à sua direita. Um servo secava o suor da testa do Conde. Há quase dez anos, no auge da peste negra, Deus o poupara da morte e levara seu pai, o velho Con­de. Ainda tinha na lembrança as semanas de luto pela morte dele. Os olhos da Irmã Marian ficaram verme­lhos por muitos dias. Mas Deus poupara seu filho. Ti­nha enviado O Salvador para protegê-lo mais uma vez.

Dominica acrescentou uma prece pelo Conde que, certamente, merecia a ajuda de Deus. E a dela.

O Abade falou o último amém. Os companheiros pe­regrinos levantaram-se e passaram pelo Conde no ca­minho de saída da capela para agradecer o alimento.

Quando a Irmã Marian parou diante do Conde, ele agradeceu por seu trabalho no Livro dos Salmos de Readington. Trazia-o firme nas mãos.

A Irmã afastou o cabelo fino e louro da testa úmida do Conde como se ele fosse uma criança. Muitos tive­ram medo de tocá-lo. Murmuraram "lepra" ao verem as manchas pretas, rosas e brancas da sua pele.

Dominica também vacilou um pouco quando che­gou sua vez de inclinar-se diante do Conde. Mas ele fora tão bom para ela. Diferente de Richard.

O Conde encostou o dedo indicador nos lábios.

— Lembre-se. Um segredo.

Ela inclinou levemente a cabeça num sinal de con­firmação e procurou Lorde Richard. Fazer uma confis­são sincera, dissera o Abade. Será que manter um se­gredo requer a mesma penitência que uma mentira? Dominica achou que não. Uma mentira tem palavras. As palavras a tornam real.

O Salvador ajoelhou-se ao lado do Conde e abraçou os ombros do moribundo com ternura. Sir Garren vai nos apressar, pensou ela, aliviada. Chegaremos lá a tempo de a Abençoada Larina salvar o Conde.

Dominica e a Irmã retornaram ao parapeito do altar e se ajoelharam para uma bênção final da Priora. A jo­vem queria palavras que a confortassem até voltar para casa, segura. Em vez de um beijo de paz, a Priora sus­surrou para ela, muito baixo para ninguém mais ouvir.

— Lembre-se, qualquer sinal de problema, e você não terá mais um lar conosco.

Depois, virou-se para a Irmã Marian e disse qual­quer coisa em latim.

Dominica agarrou seu cajado. Não ter o convento como lar significaria não ter lar algum.

Finda a bênção da Madre, a Irmã Marian apoiou-se em seu cajado e esticou os joelhos relutantes. Não tinha mais de quarenta anos, mas a atividade de copiar enve­lhecera seu corpo, assim como a de cantar mantivera a juventude de sua voz.

Dominica, ainda tremendo das palavras de Madre Julian, ofereceu-lhe o braço. Ela e a Irmã saíram juntas, em passos lentos, em direção à porta da capela. As lá­grimas frias que saíam dos seus olhos transformaram numa nuvem cinza a imagem dos peregrinos no meio do pátio ensolarado. Certamente Deus não deixaria a Priora atrapalhar o plano que Ele tinha para a vida dela.

— Qual é o problema, filha? — a Irmã acariciou o braço de Dominica com os dedos enrijecidos. — Por que está chorando? Mudou de idéia? Quer ficar?

Mais do que qualquer coisa. Mas não há razão para perturbar a Irmã Marian com palavras que não são para ela. Dominica esfregou as costas da mão na lã áspera.

— Claro que quero ficar aqui. É por isto que estou nesta jornada, para nunca mais precisar sair de novo.

— Fora do convento, o mundo é grande. Muitas coi­sas podem acontecer.

— E eu pretendo anotar tudo para poder me lembrar quando voltarmos. — Ela acariciou o saco onde esta­vam o precioso pergaminho e a pena.

— Diz isso agora. — Uma tristeza obscureceu os olhos da Irmã. — Pode ser que não queira voltar.

— Claro que vou querer. — Até o pensamento de ser abandonada no mundo a fazia desejar o conforto do convento. — Conheço cada tijolo da capela, cada galho da árvore do jardim. O convento é o meu lugar.

A Irmã Marian piscou quando saíram para o sol, e esticou-se para endireitar o manto grosso de lã cinza nos ombros de Dominica. A Irmã Bárbara tinha costu­rado o manto às pressas, com todo amor, já que não se podia dizer que Dominica costurava tão bem quanto copiava. A Irmã Marian tinha resolvido que o manto que usara na peregrinação, há cinco anos, ainda estava perfeitamente bom, e não precisaria de um novo.

— Algum dia sentiu falta de ter uma mãe, Nica? — Ela sorriu ao ouvir a Irmã usar seu nome de quando era uma menininha e não conseguia dizer "Dominica".

— Tenho muitas mães. Você, a Irmã Bárbara, a Irmã Catherine, a Irmã Margaret. — Com facilidade, Domi­nica cobriu a mão da Irmã com a sua.

A Irmã sorriu exibindo uma covinha.

— E nenhuma de nós conseguiu fazê-la deixar de roer as unhas. Já sentiu falta de um pai?

— Como eu poderia sentir falta de algo que nunca tive? Além disso, tenho nosso Pai Celeste. E prometi a Ele espalhar Sua palavra santa usando as minhas mãos. — Dominica elevou o rosto para o céu, deixando o ca­lor do sol apagar as palavras da Priora. — Sei o que Deus quer para mim. A fé não permite dúvidas.

— Não consegui ensinar a você algumas coisas. Até mesmo os mais fiéis duvidam. Ter fé é seguir adiante apesar da dúvida.

O Salvador disse que a fé pode ser perigosa. Domi­nica olhou para o interior da capela. Ele ainda estava ajoelhado e segurava a mão do Conde. Seus ombros fa­ziam sombra sobre o corpo enfraquecido.

Fidesfacitfidem, respondeu ela, em silêncio.

— A fé gera fé.

 

Garren apertou a mão frágil de William, como se a sua própria energia pudesse trazer a saúde de seu ami­go. Até a pele de William estava descarnando, era como se o corpo se dissolvesse para libertar sua alma.

— Vou entregar sua mensagem sem perguntar do que se trata, e trazer uma pluma de lá, mesmo sendo pecado — disse Garren. Richard ainda falava com o Abade, e a Priora conversava com a jovem e a Irmã, longe demais para ouvi-lo. — Mas não finja para essas pessoas que sou algum tipo de profeta.

Um sorriso tomou conta do semblante de William.

— Talvez você esteja mais perto de Deus do que pensa, meu amigo.

— Sabe que não é bem assim — retrucou Garren. — Se Deus ouvisse as minhas preces, é você quem estaria nesta peregrinação. — Firmando o cotovelo contra o de William, ele o forçou. O peso de seu braço empurrou o do amigo para baixo sem esforço. — Na volta, vamos fazer uma queda de braço pelo pagamento da peregri­nação. O vencedor paga.

— Pensei que seu jogo preferido fossem os dados.

— Não vou desperdiçar essa chance de ganhar.

— O pagamento da peregrinação é muito pouco se comparado a tudo que deixou para trás por mim.

— E uma peregrinação não é nada, perto do que você fez por mim. — Qualquer coisa que Garren tives­se que fazer em retribuição valia a pena. Qualquer coi­sa. Ele afastou a lembrança de Dominica cantarolando.

A energia que levantara William da cama tinha se esvaído. A pele de seu rosto estava toda repuxada.

— Além disso, a não ser que se apresse, eu não esta­rei aqui para podermos discutir.

— É bom estar — disse Garren entre os dentes trin­cados. — Vai querer ver a pluma da santa que vou tra­zer para você.

William demonstrou descrença e murmurou algo contra o ato de blasfêmia, mas Garren não ouviu. Devia a William mais do que a Deus. Farei o que for preciso para ir e voltar a tempo de vê-lo de novo, de devolver um pouco do que lhe devo. Mas ele achou que Deus ria de sua promessa.

Um suave farfalhar anunciou a aproximação da Priora em seu hábito preto.

— Que bom vê-lo fora do quarto, Lorde Readington. E uma resposta às nossas preces constantes.

Garren não tinha dúvidas de que aquilo era verdade. A ajuda dos Readington significava sua subsistência, e Richard não era conhecido como um patrono generoso.

— Obrigado pelas preces, Priora. — William sinali­zou para Dominica.

— Dominica também vai?

Curioso. Garren sequer sabia que William a conhecia.

— Implorou-me para deixá-la ir, Milorde — disse a Priora, levantando as sobrancelhas. — Vamos ver aon­de Deus a levará quando vir o mundo pela primeira vez.

Garren fitou a Priora com repugnância. Não era Deus quem iria desencaminhá-la.

— Quem é ela, William? — perguntou Garren. Desta vez, a Priora dirigiu-lhe um olhar lancinante. Os olhos de William estavam desbotados, mas ainda lhe restava um certo humor.

— Você teve muitas mulheres, Garren. Não me diga que não percebeu essa. Cabelos louros. Olhos som­brios.

— Parece que você mesmo a percebeu — respondeu ele. A Irmã Marian endireitava o manto de Dominica. A luz do sol incidia nos seus cabelos. William estava enganado. Não era louro. Era cor de cerveja clara, quando a luz do fogo reflete nela.

— A minha família é responsável pelo convento e por todos que ali residem.

Garren sentiu um arrepio na espinha. E se William tivesse um interesse na jovem? Depois, afastou a idéia. Era mais provável que William estivesse morto quando eles voltassem. Nunca saberia qual foi o seu destino. Ainda assim, o pensamento não o confortou.

— William — começou Garren.

— Milorde — interrompeu a Priora. — Já que está tão bem a ponto de sair do quarto, venho tentando ter uma audiência para pedir...

— Irmão, como você é tolo — interrompeu-a Ri­chard, que largou o Abade sozinho e se aproximou apressado, quase empurrando a Priora com o cotovelo. — O esforço foi demasiado. Niccolo, venha!

Garren ia começar a falar, quando o italiano Niccolo apareceu. Há quanto tempo estaria ele escondido?

Niccolo, com seu nariz grande e lábios grossos, ti­nha sido deixado para trás por um dos prestamistas da Lombardia. Foi com o dinheiro do empréstimo deles que o Rei pagou os mercenários que lutaram na França, como o próprio Garren. Richard cedera um aposento ao homem. Ninguém sabia ao certo o que ele fazia ali. Garren suspeitava que era dado à prática da alquimia.

Richard sustentava que ele pesquisava o elixir de ouro que pudesse curar a doença que estava matando William. E incrível quantas doenças o ouro pode curar.

Niccolo, com a cabeça inclinada, escondia os olhos.

— Sim, Lorde Richard.

— Ele nunca deveria ter deixado o quarto neste esta­do — disse Richard. — Acho que está precisando de um dos seus remédios curativos.

Niccolo bateu palmas, e os dois criados se aproxi­maram. Os dedos de William soltaram os de Garren quando a maça foi levantada.

— Volte logo, Garren.

— Adeus, irmão — murmurou Garren, sem saber se voltaria para ver William ainda com vida.

Quando Richard seguiu acompanhando a maça, Garren voltou-se para a Priora.

— Não me disse que o Conde tinha um zelo especial por Dominica. — Era a primeira vez que ele pronuncia­va aquele nome, e soava de forma agradável.

— A garota não foi feita para o véu. Isto deve ficar bem claro. Temos um acordo. Honre-o.

— Honrá-lo? Uma estranha palavra, Priora, consi­derando o que pediu.

— Deus trabalha de formas misteriosas — disse ela desviando o olhar para Richard.

— Parece ansiosa para culpar Deus por todos os pe­cados. Assumo a responsabilidade pelos meus.

— Então faça-o. Acredito que a quantia seja sufi­cientemente persuasiva.

— E é. — Garren sentiu-se sujo, mas seu pecado não seria pior que os que cometera em troca do dinheiro do Rei. Mais uma vez, perguntou-se como a freira conse­guiria o dinheiro. E por que isso era tão importante para ela. Sem dúvida, mais um dos mistérios de Deus.

De repente, uma vontade enorme de ir embora dali tomou conta dele. Queria começar logo a jornada, res­pirar o ar puro do vento, até mesmo fazer essa coisa inútil para William. Inclinou-se para cumprimentar a Priora e, sem dizer nada, saiu da capela.

 

— Ali está ele — Dominica apontou para Garren. Os companheiros peregrinos voltaram-se para vê-lo.

— É aquele?

— Esse é o homem?

Uma voz soava como a outra. Os rostos indistintos fitaram-no em expectativa.

— Precisamos de um líder — disse um jovem de ca­belos ondulados. Ao seu lado, uma mulher que parecia igual a ele segurou sua mão.

— Deveria ser O Salvador.

Todos pausaram esperando alguma reação da parte de Garren. Ele resmungou. De fato, em uma peregrina­ção, a devoção é importante.

— Sim — disse Garren. — Estou certo de que Nosso Senhor Jesus será nosso líder a cada passo do caminho. — Isso mesmo. Respondeu com as palavras adequadas.

— Não — disse o jovem. — O Salvador. Você.

 

O Salvador. Você.

Garren teve que se conter para não rir. Até em Deus o mundo pregava peças.

Dez rostos ansiosos que aguardavam sua resposta. Ele podia identificá-los agora, um por um. A freirinha. O jovem casal parecido de mãos dadas. A esposa de co­merciante, uma mulher roliça e experiente. Os irmãos. O homem mal-humorado com a cicatriz. Um escudeiro jovem demais para ganhar as esporas. Um homem alto e magro que o vento poderia derrubar. Dominica tinha o rosto iluminado pela fé. Nele.

Ninguém ali poderia manejar uma arma ou conse­guir alimento na floresta. Não sabiam nada a respeito de sobrevivência. Ele sabia. A França lhe ensinara.

— Eu os guiarei, porque tenho condições de levá-los até lá em segurança. — E de trazê-los de volta rápido para ver William mais uma vez, pensou. — Não por ser o Salvador de alguém.

— Salvador? Quem você salvou? — resmungou em desaprovação o homem da cicatriz. Esse, pelo menos, não o reverenciava. O cabelo branco, grosso como pa­lha, emoldurava seu rosto maltratado. Poderia ter vinte ou quarenta anos, mas certamente tinham sido anos difíceis. — Nenhum homem pode me salvar. Nem Deus pode. — E afastou-se com passos pesados.

— Como? — A mulher roliça virou um ouvido na direção dele. — Pode repetir? Não ouço deste ouvido — disse ela bem alto, batendo de leve na sua orelha di­reita. — Só consigo ouvir com este — continuou, apon­tando para o esquerdo. — Fale mais alto. Alguém já fez esta viagem antes? Quando fui ao santuário de Santia­go, em Compostela, tínhamos um guia inexperiente e passamos uma semana perdidos nos Pirineus, até que conseguimos chegar à Espanha e quase...

Enquanto ela divagava, a concha pressionava o peito de Garren. Ele se perguntou se Deus e Santiago teriam respondido às preces da mulher.

Dominica tocou o braço da mulher para que ela a ou­visse sem precisar gritar.

— A Irmã Marian já esteve no santuário da Aben­çoada Larina. Mais de uma vez.

A freirinha puxou a manga de Dominica.

— Nica, por favor...

Nica. Chamavam-na de Nica. Garren repetiu. A mulher do comerciante dava duas da Irmã, a quem olhou de cima a baixo.

— Mais de uma vez? Então, talvez, a Irmã pudesse nos guiar, em vez desse rapaz Salvador.

Garren acompanhou a risada geral que dissipou a ir­ritação do homem da cicatriz.

A mulher do comerciante, ainda rindo, aproximou-se dele, com a concha de Compostela em volta do pes­coço, tilintando contra uma cruz de ouro e uma meda­lha de estanho de São Tomás Becket sentado de lado em um cavalo. Ela apertou os músculos de seu braço, como se estivesse avaliando um cavalo.

O espanto de Dominica pelo desrespeito divertiu-o.

— O senhor parece ser do tipo confiável — disse a mulher. — Ombros largos. Braços fortes. Lutou em Poitiers?

— Sim — respondeu Garren entre dentes.

— Uma grande vitória. E trouxe o Conde de Readington de volta à vida. — Ela inclinou a cabeça em aprovação. — Se Deus está cuidando tanto do senhor, cuidará de nós também.

Deus não tem nada a ver com isso, pensou Garren, desvencilhando-se dos dedos dela.

— Sou um soldado, não um santo. As almas dos se­nhores são problema vosso. — O músculo entre as omoplatas doía-lhe, como se ele tivesse levantado uma espada pesada ao assumir a responsabilidade da segu­rança de todos. — Peguem sua comida. Façam suas despedidas. Sairemos dentro de uma hora.

À exceção de Dominica e da Irmã, eles se espalha­ram. Essa história de Salvador era tudo obra da garota, pensou, e ele terminaria com isso agora.

— Dominica — começou Garren. Ela se afastou de sua carranca.

— Vou pegar sua comida, Irmã — gritou ela, e cor­reu para a cozinha, cão abanando o rabo atrás dela.

— Parece que a fé de Dominica é um fardo desagra­dável para o senhor — A freirinha falou.

Garren a analisou por um instante. O hábito herdado era comprido e largo, dando à pequenina mulher a apa­rência de uma criança que usa a roupa da mãe. Os olhos azul-claro demonstravam cansaço. A Irmã Marian quer que a garota faça os votos, segundo disse a Priora. Ele se perguntava se isso seria verdade.

— Obrigada por concordar em nos liderar — conti­nuou ela. — Isso não é fácil para o senhor.

Garren teve um arrepio como se um espírito tivesse falado. Não queria que ela pensasse que ele era um pe­regrino de verdade. Estava ali por William, e não por Deus ou para se elevar.

— Não sou o que pensam, Irmã.

— Nenhum de nós o é, meu filho. Só Deus nos co­nhece de verdade.

— Então Deus sabe que sou um impostor — disse Garren, com um ar de desafio que não sentia. — Uma farsa, uma fraude. Sou um peregrino contratado, Irmã. — Falou alto como se sentisse orgulho disso. — Estou sendo pago por esta jornada.

— Muitos peregrinos têm segredos — disse a Irmã, como se tivesse ouvido tudo o que ele não tinha dito. A voz melodiosa não pedia uma confissão. — Deus nos ama de qualquer jeito, não importa nossos segredos.

Garren buscou algo no rosto da Irmã. Não, esta mu­lher não sabia o que a Priora planejara para Nica.

— A senhora passou a vida longe das tentações do mundo. Que segredos pode ter, Irmã?

— Os que Deus me ajudou a guardar.

Garren não sabia por que ela lhe dizia isso, e sentiu uma pontada de inveja pela certeza de sua fé, uma fé que não tinha sido forjada através da leitura do ritual, mas em um pacto entre o seu coração e o de Deus. Deus mantivera Sua promessa à Irmã Marian. Até agora.

Se os padres que conheceu fossem tão santos, ele ainda estaria no mosteiro. E ficaria satisfeito em deixar Dominica no convento.

— A senhora chamou-a de Nica — disse ele.

A pele clara da Irmã ficou ainda mais pálida, como se ele a tivesse sobressaltado ou amedrontado.

— O que disse?

— Eu estava falando outra coisa. A senhora chamou a garota de Nica. Por quê?

— Eu a conheço desde que nasceu. Era assim que ela se chamava quando estava aprendendo a falar.

— Desde que nasceu? Eu pensei... — Garren parou. Não havia necessidade de contar que tinha conversado com a Priora.

— Eu disse desde que nasceu? Eu quis dizer desde que Deus a trouxe para nossos cuidados. — Baixa de­mais para alcançar os ombros de Garren, a Irmã afa­gou-lhe os braços com dedos suaves. — E agora estará nas suas mãos.

Ele não queria ser lembrado de sua traição.

— Então, Irmã, a senhora já fez essa viagem antes.

— Três vezes. Fui no ano da peste negra para rezar pelas almas de todas as pessoas que viviam sob a prote­ção do Conde. Só a Irmã que viajou comigo e o próprio Conde morreram. — Seus olhos ainda levavam a som­bra daquela peste. — A Santa protegeu todos os outros. Anualmente, mandamos alguém para agradecê-la. Es­tive no primeiro ano da gestão do Papa Inocente.

— E a terceira vez? — Irmã Marian desviou os olhos de Garren.

— Dez anos antes. — A freira pegou seu cajado e inclinou-se, rígida, para caminhar. — Agora, se me dá licença, preciso reunir meus pertences.

Garren observou-a. Sentia dor a cada passo. Ela pode ter feito a jornada antes, mas era mais jovem.

— Irmã, vou lhe pedir um favor.

— A mim? Qual é, meu filho?

— Sei que a senhora prefere caminhar com todos nós, mas... — Mas o quê? Que desculpa poderia encon­trar para poupá-la do sofrimento da caminhada? — mas meu cavalo Roucoud está acostumado a levar peso nas costas. Será difícil para ele andar sem isso. — Não era preciso contar-lhe que ela era tão pequena que o cavalo de batalha quase não a perceberia em seu dorso. — Além disso, a senhora já fez o caminho antes. Se mon­tá-lo, poderá ver a estrada e ajudar a nos orientar.

— Abençoado, senhor, por sua bondade. — Uma covinha apareceu no rosto da Irmã. — É preocupante, não é, ter um cavalo que precisa ter um peso nas costas quando se está cansado de cavalgar? Eu estava pedindo a ajuda de Deus nesta jornada, e você aparece.

— Não confunda a minha ajuda com a de Deus, Irmã. São duas coisas inteiramente diferentes. — Ela o descobriria mais tarde, pensou.

— A ajuda de Deus vem de onde você menos espera. — A punição de Deus também, pensou ele.

 

Com Inocente atrás de si, Dominica correu para a es­cura e enfumaçada cozinha. Coelhos, pombos e um ganso gordo, mais carne do que Dominica jamais vira, pendiam dos caibros do telhado. O cheiro do sangue se­cando misturava-se ao do pão recém-saído do forno. Os ajudantes da cozinha entravam e saíam e, quando o cozinheiro gritava, corriam tão rápido quanto ela preci­sou correr para escapar da irritação do Salvador.

Pela cara feia de Garren, ele sabia que ela tinha con­tado ao simpático moço e à sua esposa sobre ele ter tra­zido Lorde William de volta da morte. Ora, e qual é o problema? Pensou. Se eu tivesse feito alguma coisa tão maravilhosa, iria querer que todos soubessem. Como a Priora sempre dissera, o orgulho antecede a destruição.

— Fiquem em fila! Aguardem um minuto! — gritou o cozinheiro. Um jovem ajudante de cozinha entrou correndo e acrescentou um pão do dia anterior à estra­nha combinação de queijo e vegetais sujos de terra que estava espalhada sobre a mesa de madeira. O cozinhei­ro, resmungando, tentava dividir tudo em onze sacolas iguais. — Era melhor que a piedade do Conde tivesse sido avisada um dia antes.

Pacientemente, no fim da fila, ao lado da mulher sur­da, Dominica reprimiu uma certa inveja de seu belo man­to de lã. A mulher abaixou a cabeça e sorriu através dos cílios para o homem alto e magro que estava do seu outro lado. Também sorriu e respondeu ao cumprimento.

Dominica baixou o olhar, com medo de ser pega ob­servando, e piscou muitas vezes ao ver as meias verme­lhas que cobriam os tornozelos grossos da mulher. Apesar do peito cheio de medalhas, essa mulher mun­dana não parecia nem um pouco uma peregrina. Seria ela uma prostituta arrependida?

— A comida é importante — disse o homem alto. — É bom para equilibrar os humores.

A mulher pôs a mão em seu ouvido bom.

— Ah, o senhor é um médico, bom senhor?

— Meu nome é James Ardene — disse o homem alto, curvando todo seu corpo num cumprimento. — Exerço a profissão próximo de St. John's.

— Ficaremos felizes com sua companhia.

— Onde mora, senhora? — perguntou o médico.

— Em Bath — respondeu ela. — Sou Agnes Cropton, viúva. — A viúva de meias vermelhas balançou os dedos em um aceno quando o médico se despediu.

Viúva. Não julgue, que não serás julgado, Dominica lembrou a si mesma.

— Sinto muito por sua perda.

— Qual?

— Do marido que morreu. Ah, desculpe, e pela per­da de sua audição também. — Dominica suspirou. Era mais fácil falar com Deus do que com estranhos.

— Eu quis dizer qual marido. — Quando o cozinhei­ro virou as costas, a mulher jogou um pedaço de queijo na boca. — Quanto à minha audição, foi o imprestável do meu segundo marido que me fez ficar surda. Ele me batia muito na cabeça e nos ombros. Deus o levou de um golpe só — disse ela enfática. — Mas isso foi há muitos anos.

— O próximo! Andem! — berrou o cozinheiro.

— Estou feliz por termos um médico entre nós. Po­demos ser atacados por alguma doença horrível no ca­minho. Quando eu estava em...

O cozinheiro puxou a manga da viúva.

— Eu disse para andar. É surda?

— Sim, eu sou — a mulher respondeu. — Que Deus o proteja por sua preocupação.

O cozinheiro jogou o farnel de comida para ela rispidamente.

— E mantenha aquele cachorro longe da mesa! — gritou ele para Dominica. — Olha, ele já comeu um pe­daço de queijo! Não vou alimentar os animais também.

A viúva fingiu não ouvir.

Mesmo esticando-se, Inocente não conseguiria al­cançar a mesa, mas Dominica o segurou e deu-lhe os três últimos farnéis de comida.

— Para a Irmã Marian e O Salvador — gritou ela para o cozinheiro mal-humorado, e saiu da cozinha ao lado da viúva Cropton. — Hoje eu não me importaria de ser surda de um ouvido — gemeu Dominica.

— Pode ser útil quando não quero ser perturbada. Qual é o seu nome, querida? De onde é?

— Dominica. — Sob a luz do sol, ela deixou Inocente no chão e varreu com os olhos o pátio à procura da Irmã e do Salvador. — Moro no convento.

— Não parece uma freira.

— Ainda não sou. Mas serei. — As palavras a fizeram sorrir.

A viúva resmungou como se duvidasse.

— Não tem o jeito de quem vai ser. — Dominica levou a mão ao rosto, apertou as bochechas, tocou a testa, desceu pelo nariz, puxou as orelhas. A Priora dizia que seus olhos eram ameaçadores. Havia mais alguma coisa? Seria ela deformada?

— O que há de errado comigo? Não temos espelho no convento.

— Nada quando você sorri — respondeu a viúva ao beliscar a bochecha de Dominica com os dedos. — Ria mais, menina. Mostre essa covinha. Não se preocupe. Vai arranjar um marido.

— Mas eu não quero um marido. Quero ser freira. — A viúva Cropton não pareceu acreditar nem aprovar.

— Esse é o último recurso. Uma garota bonita não vai precisar desperdiçar a vida num convento.

Não é um desperdício divulgar a palavra de Deus, pensou Dominica, mas decidiu que não era função sua explicar o plano de Deus à viúva Cropton.

— A senhora vai peregrinar para pedir que a Abençoada Larina a ajude a ouvir de novo? — perguntou Dominica.

— É, suponho que sim. — A viúva acariciou as me­dalhas. — Apesar de Santiago e São Tomás nada terem resolvido. Talvez uma boa santa possa ajudar.

— Então, a senhora já peregrinou antes? — Domini­ca avistou O Salvador e a Irmã!

— Cinco vezes. — A viúva riu com vontade. — Uma depois de cada marido.

— Cinco? — Dominica voltou-se para a viúva cho­cada. — O que aconteceu a eles?

— Ah, morreram todos. Eram muito mais velhos do que eu. — A viúva acariciou o queixo e o pescoço, onde a pele estava perdendo a firmeza antes de desapa­recer nas dobras da touca. — Os homens são criaturas muito fracas. Se não são mortos em batalha, pegam va­ríola, caem de um cavalo ou se afogam no rio.

Dominica tentava ouvi-la, mas não parava de virar-se para observar Sir Garren. O Salvador não parecia fraco, refletiu. Com as mangas dobradas, revelando os braços queimados de sol, ele colocava um saco de via­gem atrás da sela do cavalo. O esforço contraía seus músculos. Na verdade, ele não tinha nenhuma seme­lhança com os retratos dos santos magros e pálidos que adornavam as paredes da Igreja.

— Então a senhora não está casada agora?

— Não, do contrário não estaria aqui. Ou não preci­saria estar. Há mais de uma razão para visitar os santos, querida. Em Bath, nunca acontece nada, sabe como é.

— Nada acontece no convento tampouco, mas quero muito ficar lá. — Segura com Deus e o silêncio. — Eu nunca tinha me afastado.

— Ah, você tem um divertimento pela frente. Na es­trada, nunca se sabe o que cada dia pode nos trazer, apesar de que, se soubesse que esta viagem seria tão atrasada, talvez tivesse mudado de idéia. Todos serem obrigados a caminhar! E ainda usarem mantos cinzen­tos! Quando fui ao santuário de Santiago em Compostela, na Espanha, fui carregada por um burro o tempo todo, durante quase um ano, na ida e na volta, e nin­guém reclamou que eu não estava demonstrando a pie­dade apropriada.

Dominica pareceu concordar, novamente observan­do a Irmã, preocupada. Com sorte, estariam de volta antes do Dia de São Swithin, mas os passos da Irmã entre o scriptorium e a capela estavam mais lentos do que antes, e ela recusara a sugestão de Dominica de montar o burro extra do convento.

— E então? — disse a viúva, alto o bastante para tra­zer Dominica de volta de suas preocupações. — O rapaz Salvador, qual é o nome dele?

— Sir Garren.

— Ele me lembra o meu quarto marido. Foi o meu favorito. Há muito a se dizer a favor dos maridos, que­rida, mesmo dos ruins. Às vezes é bom ter um homem para aquecer a cama e murmurar no seu ouvido bom.

— Mas ele é O Salvador! — As palavras da viúva soavam como blasfêmia, mas não mais do que as sen­sações provocadas pelo pensamento de Sir Garren aquecendo sua cama. Dominica queria lembrar-lhe que ia ser freira e não precisaria de um homem, mas a viúva viu James Ardene no pátio, e acenou para ele.

— Desculpe-me. Acho que vou perguntar ao médico se trouxe alguma manjerona. Vou precisar de um cataplasma para os pés antes de chegarmos a Exeter.

Dominica virou-se e viu Garren levantando a Irmã Marian. Ele a colocou no cavalo e a acomodou na sela de encosto alto com ternura.

Ela suspirou, aliviada pelo fato de a Irmã ir a cavalo, e quis saber como ele a persuadira. Mas era O Salva­dor. A Irmã o ouviria. Iria agradecer-lhe.

 

Ao lado do enorme cavalo de batalha, Dominica esti­cou-se para entregar à Irmã seu farnel de comida. De­pois, abaixando a cabeça para evitar os olhos de Gar-ren, jogou o outro para ele, que estava ocupado amarrando a bagagem atrás da sela. Dominica ainda não es­tava pronta para fazer seu discurso de agradecimento. Quando o sol estava a pino, ela e os outros falantes peregrinos seguiram O Salvador na travessia da ponte do castelo de Readington em direção a oeste. Ao lado de Garren, a Irmã equilibrava-se em cima de Roucoud. Dominica caminhava do outro lado. Inocente vinha logo atrás.

Entre o castelo e o convento, os campos variavam entre o amarelo e o verde, tudo lhe era familiar. A oes­te, para além do convento, cada passo a distanciava de tudo que conhecia. A fala monótona da viúva Cropton a descrever cada detalhe de suas peregrinações anterio­res irritava seus ouvidos e obscurecia o canto da cotovia. No meio da tarde, a mulher tinha descrito a viagem pelo Canal até Calais. Dominica também se sentia como se tivesse viajado até a França, pois já não reco­nhecia a terra que os circundava.

Suas pernas doíam, e ela invejava os músculos de Roucoud, contraindo e relaxando sob o pêlo avermelhado a cada passo firme. Olhou em volta dele. O Sal­vador andava com tanto vigor quanto seu cavalo, um passo atrás do outro.

Dominica pronunciou em tom inaudível várias pala­vras que poderia dizer em agradecimento, preferindo na verdade escrevê-las, mas a quantidade de pergaminho que trouxera já era pouca para o registro da jorna­da. Finalmente encorajada, repetiu-as ao ritmo das pas­sadas. Não as pronunciaria alto até que estivesse a sós com Garren, para que a Irmã não ouvisse, pois não gos­tava de ser mimada.

Por baixo do manto de lã cinza, o corpo de Dominica estava quente de calor como o pão recém-assado do co­zinheiro, quando o Salvador ordenou uma parada. Ele ajudou a Irmã Marian a descer, e Dominica viu man­chas úmidas sob seus braços. Está com calor, pensou ela, surpresa. Não esperava que um quase santo tivesse um corpo de pecador que suasse como o dela.

Observou furtivamente quando Garren desapareceu na floresta. Ele também deve ter necessidades físicas. O quadro chocante do Salvador aliviando-se surgiu de repente em sua mente. Sentiu um calor no rosto e guar­dou a imagem até implorar o perdão de Deus.

Quando Garren voltou e a Irmã entrou na floresta, Dominica aproximou-se dele, pronta para falar. Alcan­çava os olhos de muitos homens, mas este era mais alto que o Abade.

Respirando fundo, repetiu as palavras memorizadas.

— Obrigada por persuadir a Irmã Marian a montar. Até nos pequenos gestos, você é um salvador.

— Eu não sou salvador de ninguém! — disse Gar­ren, os dentes trincados, dirigindo o olhar para os ou­tros peregrinos. — Pare de repetir isso para todos.

— Mas você salvou Lorde William! — Como não tinha ensaiado outras palavras, tudo o que já tinha ouvido jorrou de sua boca. — Em Poitiers, onde nosso glorioso Príncipe Negro triunfou com a ajuda de Deus.

— Só se Deus criou todos os franceses covardes. — O mau-humor tomou conta do semblante de Garren como a névoa matutina. Dominica sempre parecia irri­tá-lo.

— Mas foi um milagre! — Era isso que Dominica tinha ouvido sobre a gloriosa vitória. — Eles eram mais numerosos, nossas tropas estavam cercadas, e ainda assim as forças francesas foram dispersas como que por uma mão invisível.

— Só acredito em mãos que posso ver. — Garren estendeu as mãos na frente do rosto dela. Mãos grandes, quadradas. Calejadas. E, ela sabia, meigas também. — Foram estas mãos que carregaram Readington para casa, não as de Deus.

Dominica tinha imaginado um fantasma de camisola branca que flutuava a alguns centímetros do chão e es­ticava dedos finos em direção a Lorde William, que simplesmente se levantava e andava. Mas este homem tinha levado Lorde William nos ombros como um saco de farinha.

— Carregaram com a ajuda de Deus. — Dominica fez o sinal-da-cruz. — Todos sabem disso!

Garren deixou as mãos caírem e suspirou.

— Ninguém sabe nada. Não fiz mais por ele do que ele já tinha feito por mim.

— Lorde William o trouxe da morte? — O Conde era forte e gentil, e Deus certamente tinha protegido seu povo da peste negra quando muitos outros foram levados, mas ela nunca tinha ouvido rumores de que Lorde William pudesse trazê-los de volta à vida. — Pensei que ele só lhe dera um cavalo.

O homem silenciou pensando no passado.

— Lorde William me deu uma vida nova.

Sem saber se deveria arriscar e perguntar o que ele queria dizer com isso, Dominica ignorou o latido de Inocente até ele passar correndo atrás de um coelho que fugia precipitadamente,

— Volte aqui! — gritou Dominica, levantando as saias para correr atrás dele.

O Salvador segurou-lhe o braço.

— É um terrier. Não pode ir atrás dele toda vez que for à caça de um coelho. — O Salvador sorriu.

— Ele vai se perder! Nunca esteve fora do convento. — Se nem ela sabia onde estava, como Inocente encontraria o caminho de volta? A menos de um dia de dis­tância de casa, o mundo já parecia amedrontador.

O latido de Inocente desapareceu gradualmente.

— Mande ele para trazer nosso jantar — disse a viú­va, rindo.

— Mas ele gosta de nabo — exclamou Dominica, pensando quantas vezes tinha tirado aquele focinho co­berto de terra de seu jardim. Ela mordeu o lábio. E se Inocente não voltar? — Se fugir, onde vai achar nabos?

Os dedos do Salvador seguravam seu pulso.

— Deixe-o sentir o prazer da caça.

— E se ele não voltar? Como vai cuidar de si? — Dominica ansiava que a Irmã voltasse logo. Ela a en­tenderia.

— Qualquer cão sem uma orelha já viu alguma coisa da vida — respondeu Garren, sem soltar-lhe o braço.

A outra orelha compensava pela ausente, pensou Dominica. Era ereta como um pequeno chifre empertigado de unicórnio, depois caía no topo e balançava quando ele caçava o rabo, como ela lhe ensinara. Usando nabos. Se não voltasse, ela não suportaria.

Dominica despejou a história para a Irmã, enquanto o Salvador a levantava e a acomodava no cavalo.

— Deus o guiará de volta a nós, se assim tiver que ser. Você orou?

Dominica fez que não, envergonhada e duvidando se Deus tinha tempo para achar cães perdidos.

Com um ar de desprezo ao passar por Dominica, o escudeiro aproximou-se do Salvador e o encarou como se quisesse mostrar que também era um lutador. Talvez ele ache que precisa provar alguma coisa, pensou Do­minica, pois é belo e louro como um anjo pintado.

— Sir Garren, vamos partir. Não vamos ficar aqui esperando um cão, não é?

Sir Garren, por mais que seja difícil pensar nele as­sim, sorriu com a paciência que parecia ter com todos, menos com ela.

— Ficaremos até eu determinar a partida.

Sua voz soou dura. Dura o suficiente para lembrar a Simon e a todos que ele era o líder e que estava acostu­mado a comandar.

— Por que não vai examinar a floresta para certíficar-se de que estamos todos aqui, jovem Simon?

As orelhas do jovem escudeiro ficaram vermelhas, mas ele se encaminhou para a floresta.

Antes que Simon retornasse, Inocente, com sua língua rosa arfando no meio do pêlo preto cerrado, apon­tou o focinho para fora do campo de trigo. Correu para a jovem e começou a perseguir o próprio rabo, como se precisasse conseguir seu perdão. Dominica agarrou-o e apertou-o forte, confortada com o pêlo quente e ofegante do peito do cão contra si.

— Cão feio! — A Irmã cocou atrás da orelha boa.

— Não o recompense por ter fugido! Da próxima vez pode não voltar.

— Como vê, Dominica, deve ter fé em Deus. — Dominica passou o cão preto e cansado para a Irmã.

— Leve-o no cavalo para que não fuja de novo.

— O cavalo pode não apreciar os cães, minha filha. — A Irmã voltou-se para o Salvador buscando aprova­ção.

— Roucoud é extraordinariamente tolerante — res­pondeu Garren. Um sorriso pairava em sua boca.

— Inocente não pode ir a cavalo até Cornwall — disse a Irmã, mas assentou o cão na sua frente. Exausto, Inocente acomodou-se na sela, e o grupo partiu.

Há ameaças escondidas por todo lugar, pensou Do­minica, andando à frente como se, com isso, pudesse afastar suas preocupações. Sabia que a jornada teria pe­rigos, javalis ou até mesmo dragões, mas não esperava perder Inocente.

O Salvador a alcançou, diminuindo as passadas para andar ao seu lado.

— Não se preocupe com o cachorro. — O bom hu­mor embelezava sua voz. — A julgar por aquela orelha faltando, ele não foi criado em um convento. Teve uma vida e tanto antes de chegar lá.

Dominica observou Garren do canto do olho. Quan­to mais o via, mais difícil era imaginá-lo com asas.

— Você também.

Garren não chegou a fechar a cara, mas seu rosto mudou, como se tivesse jogado um manto sobre ele.

— Como qualquer soldado.

— Já viu muito do mundo?

— O suficiente. — Era moderado nas palavras.

— Conte-me sobre esse mundo de Deus.

— Nunca saiu do convento?

— Só para ir ao castelo. — Viagens que ela queria esquecer. Pelo menos os encontros com Lorde Richard. — É verdade que existem dragões nas praias?

— Só fui até a França. E a viúva Cropton descreveu o campo em mais detalhes do que eu jamais consegui­ria. — A brincadeira suavizou as linhas marcadas de seu rosto. Diferentemente dos santos severos das pintu­ras, ele parecia tolerar as fraquezas humanas. Menos as dela. — Mas vamos aproveitar o dia. A guerra não é tema para um passeio com uma dama encantadora.

Dominica examinou os olhos de Garren para ver se ele estava zombando, mas pareciam afetuosos. Ela não era uma dama, mas a palavra a fez empinar-se e levantar o cabelo que caía no rosto. Seria o pecado da vaidade?

— Qual é um assunto para um passeio com uma dama? — perguntou ela. — No convento não é permi­tido conversar. — E, quando falava, a Priora sempre a repreendia. Na escrita, podia medir cada palavra.

— A beleza do dia. — A voz dele ficou rouca. — A beleza dos olhos dela.

Pasma, Dominica virou-se. Os olhos de Garren, fi­tando os seus, eram de um verde profundo sob os cílios escuros, compridos e espessos. Dominica sentiu como se ele tivesse entrado nela, tocando a região de seu co­ração. Ou de seu estômago.

Algum instinto fez com que ela mantivesse os pés em movimento na trilha.

— A Priora diz que são olhos do diabo. — Garren murmurou algo que ela não ouviu.

— Nenhum cavaleiro cortês diria isso. Ele os com­pararia ao azul brilhante do céu antes do amanhecer.

— Os seus são mais como folhas verdes rajadas do marrom da casca das árvores.

A risada de Garren feriu-a como um tapa.

— Essa não é a resposta que se espera — comentou ele, sorrindo.

Pelo menos ela não o irritara outra vez.

— Por que não? Você falou dos meus olhos. Eu não deveria falar dos seus?

— Não. Deveria suspirar e corar. — Ela fez os dois.

— Nunca conversei com um homem por muito tem­po. Não conheço as regras. Parece muito confuso.

— O mundo é um lugar confuso.

— Por isso, o meu lugar é no convento. Quem sabe falar de Deus lhe agrade... — sugeriu ela.

— Nada me agradaria menos.

A regra de silêncio da Priora evitava situações como esta. Talvez ele queira falar de sua casa e família.

— Onde cresceu?

— Não importa — respondeu ele, duramente. Mais uma vez, o calor inundou o rosto de Dominica, mas não pelo sol ou por um rubor; ela sentiu o pecado da raiva.

— Falei alguma coisa errada de novo? Você queria conversar. Suspirar e corar não levam a um discurso comprido.

O olhar fuzilante de Garren queimou seu rosto.

— Não é para discursar que falamos.

O significado de suas palavras era tão estranho para ela quanto o latim já fora um dia. Aquele não era o seu lugar. Sentia falta da rotina familiar, onde sabia o que fazer a cada minuto do dia. Nunca havia dúvidas sobre as palavras na hora de cantar para Deus.

— Minha presença o desagrada. Vou me afastar. Mais uma vez, obrigada por sua bondade com a Irmã Marian.

Dominica virou as costas e caminhou ao lado da viú­va Cropton, que não esperava que ela falasse. No jan­tar, tinha ouvido sobre a viagem da viúva de Calais a Paris, a caminho de Compostela, e escolhido umas palavras que escreveria sobre o Salvador.

 

Estraguei tudo, pensou Garren, ela nunca mais con­versará comigo.

Por hábito, olhava de um lado para outro e mantinha os ouvidos atentos a passos estranhos. Mesmo aqui, nas terras dos Readington, ladrões poderiam assaltar os pe­regrinos. Hoje, porém, ele só via botões de ouro amare­los balançando no topo de caules verdes altos e es-guios; só ouvia o canto alegre dos pardais.

Ninguém se aproximou. Os peregrinos juntavam-se à viúva para ouvir conversa fiada. Terá sido Dominica quem riu? Era ele quem deveria provocar seus risos.

Em vez disso, resmungara e ela fugira. O charme que cativava as mulheres na França o abandonara.

Mas a culpa não era inteiramente sua. Como iria se­duzir uma mulher que não sabia nada do jogo? Como poderia levar para a cama alguém cujos olhos só viam Deus, em vez das maravilhas do mundo à sua volta?

Garren encheu o peito do ar puro inglês, desfrutando o momento de paz. Ele só tinha o hoje. O passado fora muito doloroso. E o futuro? Sabia que era inútil tentar conseguir um lugar no céu. Deus arrebatava os bons tão rápido quanto os maus.

E ela, definitivamente, estava entre os bons. Ou tal­vez nunca tenha enfrentado a tentação. Ele a tentaria. Quando viu aqueles olhos azuis enigmáticos, percebeu que alguém iria tentá-la. Poderia muito bem ser ele.

Garren deixou a mente divagar. Nica em seus bra­ços, os cabelos caindo sobre ele como mel, os seios, redondos e cheios, respondendo aos seus lábios... Esta­va feliz por andar adiante do grupo, onde ninguém po­dia ver seu membro reagir ao pensamento.

Era bom sentir-se atraído por ela, mas não necessá­rio. Era por dinheiro, exatamente como as prostitutas da Rose Street.

Sentiu-se sujo diante desse pensamento. Não, não por dinheiro. Todos queriam fazer dele um santo ou um pecador. Um instrumento de Deus ou um mercenário. Não era nenhum dos dois. Era dinheiro que buscava.

Meu lugar é no convento, ela dissera. E o dele, onde era? Não era no mosteiro. Onde você cresceu! Garren de nenhum lugar. Garren sem lar.

Lar. Era difícil lembrar como era. Pedras cinzentas, como o céu. Arvores sombrias que nunca mudavam com as estações. Uma torre, ou eram duas? Sempre de prontidão, à espera de um ataque de qualquer lado, ou de uma fronteira que sempre estava mudando. Solda­dos ingleses a gritar tão alto quanto os escoceses. Ele se fora aos seis anos, como qualquer criança, sem nunca voltar, até aquelas semanas terríveis, onze anos depois, quando a peste negra encharcou as paredes.

Às vezes, o leve perfume das urzes o fazia voltar atrás no tempo. Sua mãe adorava aquele cheiro. Ela re­cheara com a planta uma pequena almofada para ele sentar enquanto falava como Cristo transformou a água em vinho e multiplicar os pães.

Contos de fadas. Descobrira justo a tempo de não entregar sua vida à pobreza, castidade e obediência.

Garren afastou as lembranças indesejáveis. Passado é passado. Devia olhar para o presente. Mais uma vez admirou as terras de William. Os campos verdes abra­çavam suavemente os morros ondulados, cada um de­les elegantemente costurado ao vizinho com árvores ainda mais verdes. Borboletas azuis e acobreadas agru­pavam-se tão compactas quanto as flores amarelas e brancas em que pousavam. Como seria ter um lar em uma terra encantadora como esta? Há nove gerações, nenhum invasor a destruíra. Nenhum sangue inundara este solo. Nenhum grito de soldados selvagens, vivos ou mortos, abafara o gorjeio dos pardais.

Garren invejava William pelas terras em que cami­nhava. Queria ter sua própria terra sob seus pés. Talvez depois de pagar sua dívida; depois que William mor­resse, e Richard o expulsasse. Quem sabe encontraria alguma terra sem dono que pudesse tornar sua.

Mas, primeiro, era preciso levar a garota para a cama. Da próxima vez, seria galante e sedutor, e, final­mente, ela se deitaria com ele como uma serviçal de taverna. Ele não precisaria fitar seus olhos quando ela estivesse vibrando embaixo dele.

Seja correto e use palavras gentis.

Garren recordou-se. Era como se sua mãe falasse em seu ouvido, Voltou aos seis anos de idade, quando ela se despedia dele, no cavalo que o levaria embora.

O pensamento o perturbou. Ordenou que parassem para o descanso do dia sob um bosque de árvores, pró­ximo a uma fonte gelada, e designou as tarefas da vigi­lância noturna. Tinham muitos dias de caminhada.

Falaria com Dominica de novo.

Seja correto e use palavras gentis. Deus cuidará de você.

Deus tinha muito que cuidar. Mas ele poderia expe­rimentar o conselho de sua mãe com Dominica.

 

A uma certa distância do calor do fogo, Dominica pas­sou os olhos pelo grupo à procura do Salvador, ou Sir Garren, se assim insistia em ser chamado. Não que qui­sesse falar com ele, ou algo assim. Procurava-o para poder evitá-lo. E, se o visse, se recusaria a conversar com ele. Por que deveria? Tudo o que dizia o irritava.

Devia ser pecado ressentir-se com ele, mas era tão rude que se sentiu justificada em ignorá-lo.

Garren acomodara o grupo cedo. Após a ceia, a Irmã Marian reuniu os peregrinos em um coro desafinado; inclusive a viúva, cujo ouvido esquerdo a fez cantar fe­liz em seu próprio ritmo. Pelo menos, enquanto cantava, não falava.

 

"Sua fé lhe dá asas para voar como Larina

Para voar como Larina, para voar como Larina.

Sua fé lhe dá asas para voar como Larina

Para os braços do Senhor."

 

Dominica cantava com os lábios fechados e acom­panhava o ritmo com o pé, feliz por lembrar a razão de estar ali e o que encontraria ao fim da jornada: um sinal de Deus de que poderia voltar para casa.

Examinou os integrantes do grupo. Sir Garren não estava entre eles; Simon e Ralf tampouco. Talvez ele os estivesse acompanhando na guarda.

De repente, sentiu algo atrás de si bloquear o vento e virou-se. Era Sir Garren, alto e ereto como uma árvore.

— Não acompanha o canto?

A garganta de Dominica sufocou o canto tímido. Não falaria com ele. Não sabia se conseguiria. Mas precisava dar resposta à sua pergunta direta.

— Não tenho talento para cantar. Madre Julian sem­pre foi clara quanto a isso.

Garren fez uma careta. Tudo o que ela dizia provo­cava uma cara feia. Ele sorria para a Irmã, até para Ino­cente. O que havia nela que o irritava tanto?

— Não gosta de cantar? — ousou Dominica pergun­tar-lhe, como que ao acaso.

— Não gosto de nos anunciar aos ladrões.

Uma rajada de vento farfalhou as folhas toscas do carvalho atrás dela. Sombras em formato de mãos mo­vimentavam-se pelo chão. Dominica engoliu em seco. Ladrões. Foi fácil ser corajosa abrigada pelas paredes enclausuradas, onde só tinha Madre Julian a temer.

— Deus protege os peregrinos. — E a sua tarefa é nos proteger, pensou ela.

Garren abriu um sorriso deliberado.

— Não se preocupe. — Ele afastou um cacho de ca­belo da testa da jovem, que estremeceu ao toque daque­les dedos, mas se sentiu confiante. — Ainda estamos próximo às terras de William.

Pelo menos não fez cara feia. Desta vez, contudo, ela não falaria. Ignorando-o, voltou-se novamente para o grupo e cantou através dos lábios cerrados, à espera de que ele se fosse.

Mas ele ficou. Com a coluna ereta de um soldado, Garren estava tão perto de Dominica que dava para sentir seu peito subir e descer a cada respiração. Ela se perguntou se seria coberto pelo mesmo cabelo castanho-escuro de seus dedos; depois repreendeu-se pelo pensamento. Mesmo que não fosse santo, não deveria pensar nele como um homem. Freiras nunca pensam em homens dessa forma.

Dominica deu um pulo quando Garren falou de novo ao seu ouvido, numa voz suave.

— Preciso pedir seu perdão. Falei como se fosse um rude camponês, e não um cavaleiro cortês.

Dominica manteve o olhar fixo no fogo, recusando-se a olhá-lo para não mostrar seu sorriso satisfeito.

— Não entendo muito de cortesia.

Mãos grandes e quentes envolveram seus ombros. Garren virou-a, gentil, mas firme, para que o encarasse. A luz do fogo brilhava sobre o rosto dele.

— Sinto muito. Não há por que tratar mal alguém.

—Não é minha função julgar um homem que é men­sageiro de Deus. — Dominica escolheu as palavras, tentando resistir àquele olhar.

O peito de Garren subiu com a respiração presa, como se ele estivesse pronto para repreendê-la mais uma vez. Mas limitou-se a suspirar.

— Pelo menos não me chamou de Salvador. Já che­ga o que a vida nos trata mal. Devemos ser gentis um com o outro.

Sua voz mostrava arrependimento. Envergonhada, Dominica lamentou seu jogo tolo. Ele pregava a bon­dade, igual ao Salvador. E a praticava também. Presen­ciara seu cuidado com a Irmã e com todos os outros. E agora pedia perdão. Certamente ela poderia desculpar seus maus modos.

— Eu o perdôo.

— Obrigado — respondeu ele.

Dominica não conseguia desviar os olhos. Seu peito subia e abaixava como o dele, e ela teve uma sensação estranha e perturbadora de que respiravam como se fossem uma só pessoa.

Mais adiante, a cantoria transformou-se em riso. Dominica afastou-se dele e olhou para o fogo.

— Por que não fala agora?

Dominica não queria falar com ele. Não queria sen­tir-se tão trêmula e hesitante. Encheu o peito de ar, ali­viada de ver a respiração voltar a ser só sua.

— Não estou acostumada a falar. No convento, é preciso ter permissão. — Não precisava contar-lhe que nem sempre ela esperava a permissão.

— Eu dou permissão. — Parecia uma ordem.

O que ele queria com ela? Dominica virou-se e dei­xou as palavras saírem sem planejar.

— O que eu deveria dizer? Não posso falar dos seus olhos, da sua casa e sua família, ou da gueixa, ou de Deus. Nem de viagens que não fiz.

Agora era Garren quem mantinha os olhos no fogo recusando-se a fitá-la. Os outros começaram a cantar um cânone, completaram as três partes, e ele ainda não respondera. Para um homem que queria conversar, aquilo não parecia vir mais fácil do que para ela.

— Conte-me da sua vida no convento — pediu ele.

— Eu cuido do jardim, das roupas e da limpeza. — Nenhum sinal de mau humor desta vez. Um sorriso determinado marcou o rosto dele. Deveria ela contar sobre sua escrita?

Um focinho frio e úmido cutucou o tornozelo de Do­minica. Ela pegou Inocente, e enterrou o nariz no pêlo do cão, sentindo o aroma da terra.

— E alimento o cachorro. — Inocente passou a lín­gua áspera no rosto da jovem. — Achou algum nabo, menino?

Sir Garren cocou atrás da orelha preta e felpuda, e Inocente transferiu suas lambidas para a mão grande.

— Teve um cachorro quando era criança? — per­guntou para o Salvador, ou quem quer que ele fosse.

— Não me recordo.

Dominica achou que ele não queria falar sobre sua infância. Depois, percebeu a dúvida em sua voz.

Ele não se lembrava. Esse homem tinha deixado de ser criança há muito, muito tempo.

Dominica observou encantada sua paciência ao dei­xar a língua rosa de Inocente lamber cada um de seus dedos.

— Como conheceu Lorde William? — perguntou.

— Ele me aceitou como seu escudeiro aos dezessete anos de idade.

— Dezessete? O treinamento de um cavaleiro come­ça na infância.

— Tive muito que aprender. Meu treinamento co­meçou muito tarde. — As palavras vieram através de lábios contraídos, conseqüência de uma vida dura.

— Tarde por quê?

— Eu acabara de deixar o mosteiro.

Dominica sentiu frio na espinha. Teria ele quebrado os votos? Ou seria um monge proscrito?

— Foi expulso da ordem?

— Estava completando meu ano de noviço. Ainda não tinha feito os votos. — Seus olhos adotaram uma expressão sombria. — Eu só tinha a oferecer um braço de espada enferrujado, nem sequer uma espada.

Ele me deu uma vida nova, dissera ele a respeito do Conde de Readington, com muita lealdade. Até ela sa­bia que tinha sido generosidade do Conde aceitar um escudeiro sem dinheiro e sem preparo.

— Por que deixou o mosteiro?

Garren continuou em silêncio, e o fogo crepitante atirou inúmeras centelhas para o céu. A primeira estre­la brilhava.

— Foi depois da peste negra — respondeu ele. Dominica fez o sinal-da-cruz. Ele não respondeu, mas ela compreendeu. Muitos acontecimentos estra­nhos ocorreram na terra quando foi tomada por aquele terror, há quase dez anos. Deus quase destruiu o mundo todo. Ela ainda não entendia como o Deus que lhe fala­va e a confortava podia deixar uma praga como aquela dizimar o Seu povo.

— Deus nos puniu duramente. Devemos procurar seguir Sua vontade a cada dia para que o amanhã não traga outra punição dessas.

— Devemos aproveitar o dia de hoje — discordou ele — porque Deus pode nos arrebatar daqui antes que o amanhã chegue.

— Mas se o fizer, haverá uma razão. Sempre há uma razão para o plano de Deus.

— Pode explicar isso?

Dominica procurou seus olhos, imaginando se Deus o enviara para testar sua fé. Tem de haver palavras que ela possa usar para convencê-lo da correção do plano de Deus.

— Solafide.

— O quê?

Somente pela fé.

— Acredita mesmo nisso, não é?

— E você, não?

As vozes dos irmãos Miller, uma de tom baixo e a outra de tom mais alto, preencheram o silêncio com suas harmonias. A fé é uma armadilha para os tolos, dissera-lhe esse homem que salvava pessoas, mas se afastava de Deus.

— Acredito que devemos uns aos outros mais do que devemos a Deus — murmurou ele.

Ela percebeu que não tinha respirado esperando sua resposta.

 

Primeiro dia:

Tempo bom. Caminhamos até o fim da tarde. Terra agradável

 

Dominica observou o sol da manhã colorir de rosa o horizonte. Uma folha de papel descansava sobre uma pedra. Sua escrita, pequena e apertada, enchia a precio­sa folha de uma margem a outra, como aprendera.

Mas seriam estas as palavras certas?

A apenas um dia de distância do convento, Domini­ca nunca estivera tão longe de casa. Ela estava exausta com tanta novidade.

Queria escrever sobre a figura engraçada de Inocen­te caçando o coelho, a maneira como os recém-casados andavam de mãos dadas, e a preocupação com o cansa­ço da Irmã na noite anterior.

Ela queria escrever sobre ele.

Mergulhou a pena na tinta e bateu o excesso.

 

Caminho plano e reto. Dormimos sob estrelas.

 

Estrelas. Que exagero. Milhares e milhares de pe­queninas velas acesas por Deus. Era difícil fechar os olhos diante da maravilha que era dormir sob um teto desses.

Dominica acrescentou uma palavra. Muitas.

Ela fez uma careta diante do seu pergaminho escas­so, uma folha usada e reusada que ninguém mais que­ria, que não servia para copiar as palavras de Deus. Só sobrava espaço para uma única palavra, ou duas, que a ajudariam a lembrar depois.

Que palavra escolheria para ele?

O Salvador era muita blasfêmia, Garren muito pes­soal.

O Homem, escreveu.

Dominica fitou aquilo horrorizada, depois rabiscou as palavras até a ponta da pena ficar rombuda, e ocul­tou-as com um horrível borrão negro, desejando que pudesse riscá-las da sua mente.

Ele tem que ser mais do que um homem. Se fosse só um homem, talvez aquela reação fosse de mulher.

 

Sozinho, Garren pensou no seu plano. Não sabia se era um bom plano.

Tirou do pescoço o relicário de prata manchado, sem brilho e amassado. Desamarrou a tira de couro que o prendia e abriu o tubo estreito. Dentro, escondera três plumas de ganso que trocaria por plumas do santuário. De alguma forma. Quando ninguém estivesse olhando.

Pensou outra vez em dar a William apenas as plumas de ganso. Afinal, com a quantidade de plumas da Aben­çoada Larina tidas como verdadeiras, daria para voar para os céus. A maior parte das relíquias são falsas. William nunca saberia.

Um galho estalou, e ele empunhou a adaga.

Dominica, atônita, viu as plumas guardadas em um pano de algodão branco. Seu rosto sardento empalideceu. Depois, encarou Garren com os olhos tão pene­trantes que ele temeu que ela pudesse enxergá-lo catan­do a pluma de ganso do chão daquele aviário imundo.

— É uma pluma abençoada das asas de Santa Larina — murmurou ela. — As asas que recebeu de Deus.

Que mal faria a uma garota que já acreditava solafide crer naquilo. Ela não podia conhecer seus verda­deiros planos.

— Sim, é. Mas não conte a ninguém. — Ele segurou as plumas como se fossem uma preciosidade. — Preci­so levá-las para o santuário, mas quanto menos pessoas souberem, melhor. Você compreende.

Os olhos azuis de Dominica, já grandes e redondos, cresceram mais ainda. As sobrancelhas levantaram.

— Onde a encontrou? — O eco de seu sussurro transformou o bosque em uma capela.

— Não posso contar — entoou Garren, imitando a fala monótona de um padre. — Você compreende.

— Vi que você era especial no minuto em que o vi na sala da Priora. Tive uma sensação de calor igual à que tenho quando rezo em frente à janela de vitral.

Também tive uma sensação de calor, pensou ele, mas não tinha nada a ver com reza.

Com ar solene, Dominica murmurou umas palavras em latim. Garren tentou lembrar o capítulo e o verso exatos que ela estava recitando. No mosteiro, fora um mau aluno.

— É "Honre o mensageiro de Deus" — disse ela, num sorriso satisfeito. — Esse eu escrevi.

— Você o quê? .

— Às vezes, junto as palavras em dízeres meus. — Ela abaixou a cabeça. — Por favor, corrija-me se eu falar errado.

Prudente, Garren concordou. Ela não precisava sa­ber das limitações do seu latim.

— Não deve contar a ninguém sobre as plumas — pediu ele, sinalizando para o pano branco. — Não há necessidade de espalhar outra fábula sobre essa ligação especial com Deus.

— Uma relíquia tem o poder do santo. Pode fazer um milagre. — A garota acreditava em milagres.

— Já testemunhou algum milagre assim?

— Conheço todas as histórias.

— E se elas forem apenas histórias?

— Como pode perguntar uma coisa dessas?

— Há mais peregrinos que milagres.

— Deus ajuda a quem acredita.

—Então, se você não se cura, a culpa é sua porque não acreditou, e não de Deus porque Ele não se importa?

— Há muitos milagres. O filho do moleiro que se afogou e foi trazido de volta à vida por Tomás de Cantilupe, o monge que embrulhou o braço inchado na estola de Beckett e foi curado, e...

— E a ressurreição milagrosa do Conde de Readington em Poitiers — acrescentou ele.

— Sim. Foi um milagre o que você fez. — Ela tentou pegar uma pluma, e seu dedo hesitava como se emanas­se calor. — Posso... tocá-la?

Pode pegá-la, jogá-la no chão e pisar nela, no chão de onde a tirei, por toda a santidade que ela carrega, pensou ele, por um instante enciumado de vê-la olhar a pluma com o tipo de desejo que um homem gostaria de ver dirigido a ele.

— Toque-a de leve — disse.

— Tenho um pedido muito importante para Deus. — Ela pareceu perfurá-lo com os olhos. — A Abençoada Larina me ajudará?

Garren sabia como Deus respondia às preces. Implo­rara a Deus pela vida de seus pais. Ele negara.

— Deus ouve nossas preces — disse ele, amargo. — Mas talvez não nos dê a resposta que desejamos.

— É isso que a Irmã Marian diz. E é por essa razão que preciso da ajuda de Larina. Às vezes, Deus precisa de um empurrãozinho...

Dominica acreditava que Deus ouviria suas preces pessoais, como ele acreditara um dia. Não sabia se de­via sentir pena ou inveja.

— Meu dedo está trêmulo — murmurou ela.

O meu corpo também, por razões nada santas — pensou Garren.

As palavras seguintes de Dominica foram em latim, por isso Garren adotou a expressão pensativa.

— É preciso ter uma fé tão grande que remova mon­tanhas. — Ela riu. — Carta de Paulo aos Coríntios. Essa eu mudei um pouco.

Ele sentiu uma pontada de simpatia pela Priora.

— Lembre-se, ninguém deve saber que estou levan­do as plumas.

Dominica cruzou os dedos na frente da boca como se estivesse trancando com uma chave, um gesto infantil que o fez sorrir.

— Você me deu um presente incalculável — disse ela. — Como eu poderia negar seu pedido?

Garren quase deixou escapar que não passavam de plumas de ganso, que ela não devia acreditar, mas não podia quebrar o brilho da fé que a envolvia. Ainda.

— A Santa vai se importar se eu contar a você para que são as minhas preces?

A vontade de Garren era dizer não me conte. Em vez disso, deu de ombros.

— Pode me contar ou não. Não fará nenhuma dife­rença para Deus.

— É um sentimento estranho para um homem que carrega consigo relíquias para um santuário. — Ela lambeu os lábios e mordeu o inferior, sem muita certe­za se devia falar. — Não contei a ninguém fora do con­vento. — Um sorriso tímido, melancólico, surgiu em seu rosto. — Claro, não conheci ninguém fora de lá.

Os lábios de Dominica entreabriram-se, e os olhos azuis se ampliaram, maravilhados e confiantes. Rela­xada, seu rosto era simples, comum, redondo, e os lá­bios desiguais. Mas os olhos eram uma janela para sua alma. E para a dele.

De repente, ele quis muito saber o que ela pensava durante as horas solitárias, quando só havia a compa­nhia de Deus.

— Conte-me — disse ele, fechando as mãos dela en­tre as suas, e, pela primeira vez, sem ter medo de se perder naqueles olhos. — Conte-me o que quiser.

Ela se aproximou tanto que ele pôde sentir seu chei­ro de mulher, feliz por estar sentado, porque seus joe­lhos titubearam. Os seios dela subiam e desciam, até que ele sentiu o corpo arder de desejo.

— Quero fazer os votos — contou ela.

Por mais que Garren soubesse o que ela ia dizer, aquelas palavras reviraram seu estômago. Dominica queria perder a vida orando para um Deus que nunca responderia. Seus dedos curvaram-se perante a tolice e esmagaram os dela. Ela acreditava em um Deus que nunca nos responde da forma que esperamos. A respos­ta de Deus às preces dela a estava fitando no rosto, ain­da que ela não soubesse. A resposta às preces de Domi­nica era ele, Garren.

E ele teve a mais estranha sensação de satisfação de que conseguiria livrá-la daquela armadilha de Deus. Que a libertaria, como um dia também fora liberto. Por tristes desapontamentos.

— Tem certeza? — perguntou ele, afinal.

Ao perceber a força com que a apertava, Garren abriu as mãos, e Dominica tirou a sua.

— Ah, sim. É o que Deus pretende.

Garren levantou-se abruptamente e virou de costas para aqueles olhos.

— Como sabe o que Deus pretende?

— Você parece a Priora. Eu simplesmente sei. Sinto isso. Meu lugar é lá. É o único lugar onde eu... — Sua voz sumiu. — É lá o meu lugar.

Garren girou de volta para fitá-la.

— Como sabe onde é o seu lugar? Nunca conheceu outra coisa. — Se ele lhe tirasse a vida no convento, o que lhe daria em substituição? Teve que lutar contra uma onda de culpa. Deve haver outras coisas que uma mulher pode fazer. — Talvez prefira se casar.

— Nunca pensei em casamento.

— A maioria das pessoas se casa.

— Você não casou.

— Não tenho nada para oferecer a uma esposa. — As palavras soaram como vinho acre.

— E quanto à sua casa?

— Minha casa está nas mãos da Igreja.

— Deu a sua casa para a Igreja? Foi quando entrou para o mosteiro? — Dominica levantou-se e fez o sinal-da-cruz, dobrando um pouco os joelhos em deferência.

Garren riu com desdém. Dera à Igreja sua casa, suas esperanças, sua própria vida. E fora recompensado com traição.

Ela não parava de fitá-lo, a sobrancelha levantada, como que esperando que ele contasse a história.

Garren suspirou. Não precisava de mais uma prova de santidade, mas Dominica tampouco precisava da verdade. Segurou sua mão.

— Levante-se. Não me torne uma coisa que eu não sou.

Os olhos azuis de Dominica estavam confusos.

— Você não é o que eu pensava.

Quando Dominica o fitou pela primeira vez, ele sen­tiu como se ela enxergasse o seu interior. Mas a fé a cegava. Ela via um santo em vez do pecador que era. O que ela faria quando descobrisse a verdade?

Garren afastou o pensamento e guardou as plumas de volta no relicário de prata. Tudo isso era para William. Ele merecia qualquer coisa. Os dedos de Garren escorregaram ao refazer o laço no cordão de couro.

— Deixe-me ajudá-lo. Dê o primeiro nó, e vou man­ter o dedo sobre ele enquanto você faz o laço.

Dominica pressionou o dedo sobre o primeiro nó. Uma saliência calosa, manchada de preto, ornava o dedo médio da sua mão direita. Garren reconheceu aquilo. Os irmãos que copiavam o dia inteiro tinham o calo de escritor bem desenvolvido. Roçou a saliência com o polegar.

— O que é isto?

— Nada.

Ela abaixou a cabeça para se esconder atrás do cabe­lo, que caiu em cachos por cima do joelho dele, quase cobrindo as mãos de ambos. Juntou os fios dourados em sua mão e levou-os para trás dos ombros dela.

— Parece a mão de uma copista.

Dominica não respondeu, mas a constatação gelou os ossos de Garren. Onde mais além do scriptorium de um convento uma copista poderia viver?

— Preciso ir agora. — Ela evitou fitá-lo novamente. — Posso ter sua bênção primeiro?

Garren ia dizer um não, mas ela já estava ajoelhada, com as mãos sobre seus joelhos. Ele ansiava por tocá-la de novo. Tremendo, apoiou as mãos na cabeça dela, de­pois inclinou-se para beijar seus cabelos. Dominica olhou para cima e fugiu precipitada para a mata.

E Garren ficou ali, sentado, por um longo tempo, brincando com o relicário com as plumas de ganso.

 

Enquanto caminhava entre as árvores na volta para o acampamento, Dominica roçava os dedos pelo couro cabeludo, à procura do lugar onde os lábios do Salva­dor tinham tocado. Deve ter deixado uma marca.

Não era um homem qualquer, pensou, aliviada. Era um mensageiro de Deus, escolhido para carregar as plumas de Larina. E suas reações não eram de mulher.

Não lhe cabia questionar os planos de Deus, mas ele parecia uma escolha estranha, um homem que dava mais importância às pessoas que a Deus.

Estava viajando ao lado das plumas de Larina. Esse era um sinal de que Deus abençoava sua jornada. Mal podia esperar para contar à Irmã.

Guarde o segredo de Deus, ele pedira. Não estava acostumada a guardar segredos da Irmã, exceto, claro, as sensações esquisitas que tinha com ele.

Mas não haveria mais segredos a guardar. Não pen­saria mais nele como homem.

Ninguém percebeu seu retorno para a clareira. Quan­do os peregrinos se reuniram para a jornada do dia, o fogo já tinha se apagado e virado uma mancha preta. A Irmã segurava um biscoito perto do focinho de Inocen­te. Ansioso, ele pulou.

— Você é quem devia estar comendo isso — disse Dominica,

Sob o hábito preto, a Irmã era magra como um espí­rito, mas esta manhã as linhas em torno dos olhos ti­nham desaparecido. Era como se ela ficasse mais jo­vem a cada passo que a distanciava do convento.

— É só a última mordida — disse a Irmã, acenando com o biscoito, quando Inocente pulou e o apanhou.

— Fez suas orações, Nica?

Dominica se afastara do acampamento para encon­trar um lugar calmo para ouvir a voz de Deus. Em vez disso, encontrara Seu mensageiro. Certamente que pe­dir a ajuda dele constituía uma oração a Deus.

Dominica confirmou com a cabeça, sem confiar que manter um segredo pudesse não ser uma mentira.

— Esta manhã me deu vontade de caminhar — disse a Irmã.

— Mas não se canse.

— Bom dia, Irmã. — O jovem escudeiro inclinou-se para cumprimentá-las e afastou o cabelo louro que lhe caiu na testa. Seu corpo ainda trazia a delicadeza da in­fância, pensou Dominica, mas as mãos e os pés tinham crescido mais que o resto do corpo, como as patas de um cachorro. Não como o Salvador, cujas mãos harmo­nizavam-se com os braços fortes e os ombros largos.

— Bom dia, meu jovem. Desculpe-me por esquecer seu nome. Não consigo guardar o de tantas pessoas novas na minha cabeça velha.

— Sou o Simon, Irmã. Escudeiro de um nobre cavalei­ro que bondosamente me permitiu fazer a peregrinação.

— Eu sou a Irmã Marian, e esta é Dominica.

O escudeiro não se inclinou para beijar a mão de Do­minica, que, aliás, não esperava isso, mas parecia diri­gir-se ao seu peito, e não aos seus olhos.

— E você, Dominica, de onde é?

— Eu também moro no convento.

— Quando o perigo se aproximar, não se preocu­pem. Posso protegê-las. — Ele acariciou o cabo da es­pada, depois cumprimentou-as com a cabeça. Com um ar arrogante para o chefe do grupo, bateu no ombro do Salvador, como antigos companheiros de armas.

— Acho que não preciso avisá-la para ter cuidado com esse aí — comentou a Irmã.

— Não me tenta em nada — comentou Dominica. O jovem escudeiro parecia-lhe um menino ao lado do Salvador, a quem, claro, ela nunca poderia olhar como homem.

 

O sol forte e o céu azul abençoaram a segunda ma­nhã de viagem. Atrás de Dominica, a viúva Cropton contava alto uma história comprida, em que havia sido atacada por ladrões, nos Piríneus, que foram atingidos em pleno ato, como Paulo no caminho para Damasco, e ajoelharam no chão para implorar o perdão e pedir para se juntarem aos peregrinos. Só a Irmã e o médico que­riam prestar atenção de fato, mas a viúva falava de­mais.

À frente dela, o jovem casal — Jackin e Gillian — impediam sua visão do Salvador e de Simon. De mãos dadas, eles caminhavam tão grudados um no outro que a luz do dia não passava entre os mantos. No momento que o marido achou que Dominica tinha se distraído, beijou a esposa nos lábios.

Dominica desviou o olhar e observou as borboletas acobreadas, alaranjadas, marrons e azuis, como flores esvoaçantes, seduzirem Inocente à caça. Como os pere­grinos podiam concentrar-se em coisas do corpo quan­do estavam em uma busca espiritual?

Contudo, à medida que a manhã passava, Dominica também começava a preocupar-se com o corpo. A cada passo, as pedras do caminho castigavam seus pés atra­vés das solas de couro fino. A dor subia pelas panturrilhas e coxas e localizava-se no final da coluna, deixan­do-a feliz pela Irmã, que estava de novo montada em Roucoud. Só o Salvador parecia caminhar sem vacilar.

Quando pararam para almoçar, Dominica sentia uma dor torturante. Mas, em vez de encarar de forma submissa e devota, achou que talvez a viúva tivesse ra­zão, e eles devessem mesmo ter seus cavalos.

Enquanto o grupo comia, ela se afastou para o bos­que para orar.

Em vez disso, ouviu uma risada reprimida feminina.

Avistou uma pequena clareira. Jackin estava ajoe­lhado, montado sobre Gillian, que estava deitada, com as saias levantadas e as pernas nuas. Tão nuas quanto as nádegas de Jackin.

Dominica agachou-se atrás do arbusto espinhento com medo de ficar ali, e chocada demais para sair, pen­sando que Deus tinha uma maneira muito estranha de responder às preces.

Jackin beijou os lábios, os olhos, as orelhas e o pes­coço de sua mulher. Beijou-a como se estivesse esfo­meado, e ela fosse o alimento. Gillian correspondia, e seu riso aos poucos se transformava em um gemido.

Sobre os joelhos, Jackin balançava-se como se esti­vesse em êxtase de oração, em movimentos cada vez mais rápidos, a cabeça arremessando-se para o céu.

Jackin deu um grito e caiu por cima da mulher.

No silêncio que se seguiu, Dominica prendeu a res­piração, certa de que, agora, ele se viraria e a veria a observá-los. Em vez disso, ele cobriu o rosto de Gillian com mais beijos, aninhou-se em seu pescoço, sussur­rou-lhe coisas, até que ela riu satisfeita.

Dominica chegava a ouvir as batidas de seu coração.

— Parados!

Um camponês, acenando uma foice enferrujada, saiu de trás de uma árvore do outro lado da clareira. Alto, de cabelos pretos desgrenhados e olhos claros, parecia não comer há muito tempo. Ele cutucou as cos­tas de Jackin com a foice.

— Passe o seu dinheiro.

O rosto de Jackin ficou sem expressão, e as nádegas apertaram.

O sangue de Dominica golpeava sua cabeça. Ah, Deus, mande Garren. Rápido.

— Somos peregrinos pobres — disse Jackin. — Não temos nada para dar.

Gillian, com as saias reunidas na cintura, apertou o cotovelo do marido. O ladrão olhou para ela, a língua crispada no canto da boca. Com duas passadas, alcan­çou Jackin, puxou-lhe a cabeça para trás e segurou a foice enferrujada sob seu queixo como se fosse um bar­beiro bêbado. Dominica engoliu a seco, preocupada.

Rápido, Deus.

— Devem ter alguma coisa para me dar. Sei que os santos esperam uma oferenda — disse ele, passando a lâmina curva sobre o pomo-de-adão de Jackin. Ossos salientes pulavam dos dois lados do pulso do campo­nês. — Vamos. Sai de cima dela.

Jackin levantou-se, aos tropeços, as nádegas dese­quilibrando os tornozelos. Entre suas pernas, pendia o que parecia uma lingüiça pequena e úmida.

Gillian chegou para o lado e puxou a saia até os pés.

— Por favor, não o machuque.

Aquele apelo tomou conta de Dominica. Se Deus não enviou Garren, deve ser para ela fazer algo.

Levantou-se, coma terra macia sob os pés, e come­çou a andar em círculos, tentando pisar confiante como Simon. Espinhos rasgavam seu manto. Ignorando o barulho que isso fazia, sentiu um puxão e percebeu que estava presa no arbusto. Aprumou os ombros para que o ladrão não visse que estava presa.

— Pare! — Berrou. Os três viraram-se.

Sua voz tremeu na garganta e saiu com um guincho.

— Se o matar, Deus enviará a alma dele direto para o céu, e a sua para o inferno. Deus misereatur.

— O quê? — O ladrão fitou Dominica com os olhos esbugalhados de um texugo capturado.

— Ele viaja sob a proteção de Deus. — Acenou para Jackin, mantendo os olhos firmes acima da cintura dele. — Mostre-lhe seus testemunhais.

Ainda com a foice na garganta, Jackin, impotente, apontou para sua roupa amarrotada.

O ladrão soltou Jackin e segurou Gillian pelo pesco­ço, com a foice pairando bem próximo. Observou cada movimento de Jackin, enquanto abria o cordão do saco de viagem e apalpava o interior, procurando, com de­dos trêmulos.

Dominica inclinou-se para a frente, testando a sus­tentação do arbusto.

Finalmente, Jackin tirou o rolo de pergaminho enro­lado e balançou-o no rosto do ladrão.

— Aqui. Olhe.

Dominica viu Garren mover-se em silêncio, acom­panhado de perto por Simon. Deo gratias, pensou. O ladrão olhou o pergaminho.

— O que está escrito?

Atrás deles, Garren se aproximou, tocando a ponta de sua espada nas costas do homem.

— Abaixe a arma. Agora.

Bem a tempo, Deus, pensou Dominica. E, num sus­piro bem sonoro, todo o ar de seu peito esvaiu-se.

Ao lado de Garren, Simon reprimia o riso. Jackin deixou cair o pergaminho e pegou as calças.

O ladrão puxou a cabeça de Gillian para trás.

— Não tentem nada, ou corto a garganta dela.

— A moça tem razão — disse Garren. — Somos pe­regrinos. Com direito a proteção.

O ladrão lambeu os lábios mas manteve a foice na garganta de Gillian.

— Pode pagar por sua proteção. Dê-me alguma moeda, ou corto a garganta dela.

Garren moveu a espada para a orelha do homem.

— Solte-a, e eu o deixarei ir. É um pagamento maior do que merece.

— Somos dois — disse Simon, pulando de um pé para outro. — Podemos pegá-lo.

— Quer testar suas habilidades contra um homem que é pago para matar?

Dominica estremeceu perante aquelas palavras. Pago para matar. Mas não tinha sido pago para salvar a vida do Conde.

Na ponta da espada do Salvador, o ladrão foi obriga­do a observar Simon acenando a espada diante dele, sem conseguir ver a ameaça que estava às suas costas.

— Como vou saber que não vai me matar?

— Pode acreditar nele — disse Dominica. — O ho­mem atrás de você é um mensageiro de Deus.

Os olhos esbugalhados reviraram até o limite das pálpebras, na tentativa de ver atrás de si.

— E receberá um pouco de comida. — O Salvador estendeu o farnel por cima do ombro do homem, que farejava igual a Inocente. — Ande. Solte-a.

— Antes me dê a comida. — Garren lançou o farnel na direção das árvores.

— Agora, pegue-o e corra, antes que eu mude de idéia.

— Abençoado seja o senhor que tem a bondade de Deus. — O ladrão correu apressado para o farnel, apa­nhou-o e desapareceu entre as árvores.

— Certifique-se que não volte — Simon afastou-se. — E não o machuque — gritou Garren.

Os joelhos trêmulos de Dominica não conseguiram mantê-la em pé, e ela afundou no chão, ao mesmo tem­po em que Gillian e Jackin caíram nos braços um do outro. Balançando-se juntos, não olharam para os de­mais, até que o Salvador se manifestou.

— E vocês dois. Satisfaçam seus desejos à noite, quando temos um vigia a postos.

Depois, foi até Dominica, e ela se desviou, puxando seu manto, tentando soltar-se antes que ele a alcanças­se. Mas o arbusto a prendia com firmeza.

Garren ajoelhou-se e abraçou-a. Por um instante, quis recostar-se nele e enterrar a cabeça em seu peito.

— Está bem, Nica?

O som de seu nome de criança naquela boca quase a fez chorar. Só a Irmã, que a amava mais que a qualquer um, à exceção de Deus, a chamava assim. Afastou aquele pensamento, esforçando-se para levantar.

— Sim, claro — respondeu, mas seu coração ainda palpitava em seu peito, e a imagem de Jackin e Gillian abraçados queimava seu rosto. Faria uma prece extra esta noite.

— Nunca mais faça isso.

— Fazer o quê?

— Enfrentar um homem armado.

Ela se virou e puxou o manto de novo, até que ele cedeu, rasgando-se em pequenas tiras esvoaçantes ao longo da bainha. Encarou-o novamente.

— Deus custou a enviar você. Tive que fazer algo.

— Deus não é um mensageiro confiável. Devia ter me chamado. Foi uma sorte eu sentir falta dos três a tempo.

— Não foi sorte. Foi Deus.

Ela viu sua boca contrair-se, enquanto seus olhos verdes e profundos transmitiam alívio.

— Chamou-me de Nica. Onde aprendeu esse nome?

— Chamei? Não sei. Devo ter ouvido a Irmã Marian chamá-la assim. — Garren afastou-se e gritou para Jac­kin e Gillian, que ainda se embalavam juntos. — Ve­nham. Todos. Simon, volte aqui.

Garren os reuniu diante de si como a um rebanho.

— Nunca mais saiam da nossa vista.

Ela manteve a boca fechada. Não era mais valente do que o necessário, mas precisava escrever, orar, en­fim, cuidar de suas responsabilidades. Quando preci­sasse, estaria fora de vista. Ele podia ser um mensagei­ro de Deus, mas começava a testar a paciência dela.

E as sensações que a percorriam quando a tocava co­meçavam a assustá-la.

 

Segundo Dia

 

Ao admirar o glorioso sol nascente que Deus propor­cionou, Dominica indagou-se o que poderia escrever sobre o dia anterior.

Inocente aninhou-se a seus pés. Não contara a nin­guém sobre as plumas. Será que poderia escrever sobre elas? Não, seria pior do que falar. Palavras escritas não se dissipam no ar.

A distraí-la dos pensamentos sobre as plumas, esta­va a lembrança de Jackin e Gillian, embalando-se jun­tos, fechados em seu próprio mundo.

A felicidade que sentiam um com o outro a ame­drontava. Como seria ter aquele tipo de alegria na ter­ra? Como poderia Deus competir com tamanho êxtase?

Esforçou-se para afastar a imagem, mas pensar em Jackin e Gillian trouxe à lembrança as mãos de Garren a confortá-la e sua voz a chamá-la de Nica.

Garren. Não conseguia mais pensar nele como o Sal­vador. Era grande demais, próximo demais, real de­mais. Cabelos castanhos ondulados. Olhos verde folha. Ombros largos. Mãos grandes.

Dissera a ele que nunca havia pensado em casamen­to. Era mentira. Não conhecera muitos homens. O Prior, Lorde William, os rapazes do vilarejo.

Lorde Richard. Sua pena tremeu.

Tinham falado em casá-la com Peter, o filho do fer­reiro, que tinha perdido um dedo com um machado. Era pouco inteligente, mas agradável, e não era mais sujo que a maioria. O chão do chalé também não era mais duro do que a cama no convento, e o trabalho de uma esposa não podia ser mais difícil do que cuidar de mui­tas freiras. Mas no seu chalé não haveria escrita.

Dominica implorou que não a mandassem para onde não houvesse escrita. A Priora concordou, então, e Pe­ter acabou desposando a filha do carpinteiro, com quem agora já tinha três filhos.

É melhor casar-se que sentir arder por dentro.

Dominica sempre achara que São Paulo queria dizer queimar no inferno, mas sua pele pegava fogo quando Garren a tocava. Seria essa a sensação que levava Jac­kin e Gillian a se deitarem no meio do dia? Se ela tives­se casado, teria essas sensações?

Duvidava. Deus queria que ela copiasse Suas pala­vras, e não que sucumbisse às tentações da carne. Era instrutivo ver o quanto eram sedutoras. Mas esse não era o seu destino. Esta viagem o provaria. A Deus. A Priora. A ela mesma.

Brisa fresca, escreveu. Muitos pardais.

O rabo alegre de Inocente anunciou visita.

— Com sua licença. — Gillian estava diante dela, agora totalmente coberta. Dominica nunca a tinha visto sem o marido. Seus olhos castanhos miúdos quase su­miam quando sorria. Mas não estava sorrindo agora.

— Não pretendia atrapalhar suas meditações. Mas disse a Jackin que precisava achá-la e me desculpar pelo que viu ontem. Sei que é pecado gostar tanto dis­so, e que não é certo uma garota de convento presenciar esse tipo de coisa, mas, às vezes, um calor nos domina, e temos que nos deitar juntos.

— Obrigada. Está tudo bem. Quero dizer, é verdade que eu nunca tinha visto... — Ela não sabia uma pala­vra para terminar a frase.

Gillian viu a pena e o papel e ficou pasma.

— Você sabe escrever!

— Sei, sim — falou, sentindo um orgulho proibido.

— Escreveria uma coisa para mim?

— A Irmã Marian escreve muito melhor que eu. Ela é a responsável por todo o manuscrito no convento.

Gillian abaixou a cabeça e corou.

— Não posso pedir a uma freira para escrever isso.

Dominica ficou curiosa.

— Sou quase uma freira, quero dizer, espero ser.

— Ah, não é nada de mais — disse Gillian. — Só que... tem a ver com... o que você já viu. Por favor.

O que Gillian poderia querer que ela pusesse no pa­pel sobre aquele ato? E que palavras ela saberia usar para descrever aquilo? Mas sua escrita era um dom de Deus.

— Eu poderia, mas só tenho esta folha de papel — respondeu Dominica, virando o outro lado do pergaminho que teria que durar toda a viagem.

Gillian arregalou os olhos ao ver as letras agrupadas pela página, e depois os apertou, como se estivesse ten­tando compreendê-las.

. — Pode comprar mais. Eu pagarei, se não custar muito. É uma mensagem para a Abençoada Larina — sussurrou ela — para que saiba a razão da nossa vinda. Não quero falar na frente de um padre. Eu rezo e tudo mais, mas acho que, se você colocar no papel, vai ficar mais claro para ela. Não quero vir até aqui e não me fazer entender.

— Ela compreenderá o que está no seu coração, se você rezar — disse Dominica.

— Mas, às vezes, quando me confesso, o padre me diz que eu não falo suficientemente claro para Deus, e não sei nada de latim. Temo que, ao chegar lá, esqueça algo ou fale errado. E isto é muito importante.

Dominica sentiu raiva do padre sem nome. Por isso, queria escrever a Bíblia na língua do povo. Para que uma mulher como Gillian nunca se envergonhasse de falar com Deus. Dominica apertou sua mão.

— Claro, farei isso. Encontraremos um vendedor de pergaminhos em algum lugar.

— Ah, obrigada. Se escrever as palavras, sei que elas acontecerão.

Dominica observou Gillian ir embora e fitou as pala­vras que tinha escrito no seu pergaminho. Ladrão. Faminto. Amor. Nica.

 

— Vocês precisavam vê-lo — Simon falava aos ir­mãos Miller e a Ralf, o da cicatriz no rosto, enquanto Dominica pegava um biscoito e se instalava em um tronco ao lado. Fingia não ouvir, à procura de Garren. Os outros estavam dispersos pela clareira. Gillian, sentada ao lado de Jackin, sorria para Dominica. Nesta manha, havia espaço entre os dois para a luz do dia pas­sar, mas eles comiam usando só uma mão e entrelaçavam os dedos da outra, como se um não pudesse existir sem tocar no outro. Simon desenhava no ar seu inimigo.

— Um homem alto e forte. Deste tamanho. Empu­nhava uma espada afiada como a de um sarraceno.

— Na verdade, Simon, era só uma foice enferrujada. — Simon fez uma cara feia para ela, inclinando-se para os irmãos Miller.

— E lá estava Jackin, em pé, com as calças nos tor­nozelos...

De cotovelos apoiados nos joelhos, os irmãos para­ram de comer, esperando as próximas palavras de Si­mon. Até Inocente virou a cabeça, como que para ouvir com a orelha boa. Simon reprimiu o riso.

— ... com aquela coisa murcha escondida atrás das bolas, morrendo de medo de tê-la cortada fora.

Aos uivos, os irmãos davam tapas nas coxas. O mais novo fez tanta algazarra que caiu do tronco. A risada explosiva de Ralf transformou-se em tosse seca.

Jackin levantou a cabeça ao som da gargalhada. Gil­lian acariciava sua mão. O carinho do casal podia ser exagerado, pensou Dominica, mas Simon não se im­portava com ninguém. Ela torcia para eles não ouvirem as palavras de Simon. Não era correto rir de algo que deveria ser íntimo como uma prece.

— Claro — continuou Simon. — Enfrentei o cam­ponês e mandei que soltasse Jackin. Naturalmente, ele tremeu de medo. Não estava em condições de segurar uma arma contra mim, ainda que fosse afiada o sufi­ciente para cortar o meu cabelo. E, enquanto isso, — fez uma pausa para rir —, lá estava Jackin com o mem­bro flácido que parecia derretido...

— Simon. — A voz de Garren interrompeu a frase de Simon. Sua sombra pousou sobre os dedos de Domi­nica. Ela estremeceu como se os dedos de Garren, e não a sua sombra, a tocassem. Simon abaixou a cabeça.

— Senhor.

— Não foi treinado para conversar com uma dama? — Dominica cocava a orelha de Inocente e observava uma formiguinha preta, na grama, içar um farelo caído do pão de Simon. Garren também precisava de treina­mento na arte da conversa, pensou.

— Mas ela estava lá, viu tudo.

— Se viu, não precisa também ouvir. — Garren, com os olhos em Simon, não a fitou. — Especialmente da maneira como você enfeita a história.

Simon encolheu-se perante a reprimenda, ao mesmo tempo em que a Irmã se aproximou, os passos mais len­tos do que no dia anterior. Dominica rezou para que ela não tivesse ouvido a história de Simon. Não lhe contara toda a verdade para não a preocupar. A história do la­drão já era muito.

Garren apertou o ombro do jovem escudeiro.

— Simon, hoje, vigie a retaguarda. Certifique-se de que todos permaneçam juntos. Fique atento à faca do sarraceno.

— Sim, senhor.

— Reúnam seus pertences. Sairemos em pouco tem­po — avisou Garren. Os irmãos Miller e Ralf retira­ram-se furtivamente.

Pelo menos, não ririam mais de Jackin, pensou Do­minica, satisfeita.

A Irmã Marian juntou-se a eles, enquanto Simon, engolindo o resto do pão, se levantava.

— Simon — disse ela. — Ontem reparei que você não sabe todas as palavras do terceiro verso da Canção de Larina. Hoje, viajarei montada em Roucoud. Cami­nhe ao meu lado, e eu as ensinarei. — Ela sorriu, doce como sempre, mas Dominica reconheceu aquele olhar. Geralmente, antecedia vinte ave-marias.

— Sim, Irmã. Só vou guardar os meus pertences. — Simon afastou-se de ombros arqueados.

— Ele é jovem — disse a Irmã, compreensiva, e vi­rou o olhar de ave-maria para Dominica. — Acho que você não me contou tudo sobre ontem.

— Não quis preocupá-la. — Dominica cobriu os de­dos frios da Irmã com os seus. — Assim como a senho­ra não quis me preocupar e não me falou do seu cansa­ço. De agora em diante, só viajará a cavalo.

— Estarei bem. Não se preocupe comigo. Agora, vire-se, deixe-me ver o seu manto. — A Irmã examinou as tiras rasgadas pelos espinhos da moita. — Vou remendá-lo esta noite — disse ela, acariciando o braço de Dominica. — Comeu bem? Fez suas orações matinais? Nica. — Esse nome lembrou-a a sensação das mãos de Garren em seus ombros.

— Irmã, me chamou assim na frente de Garren?

— Agora é Garren em vez de O Salvador? — Um vinco de preocupação marcou a pele clara entre as so­brancelhas da Irmã como as linhas feitas pela faca no pergaminho. — Nica, ele pode não ser o que você ima­gina. É um soldado, não um santo.

— Sabia que quase fez os votos?—Dominica acatou.

— Ele contou isso a você? — perguntou de volta a Irmã com olhos arregalados de surpresa.

Ele me contou que carrega as plumas de Larina, Do­minica quis dizer, mas tinha feito uma promessa.

— Sim — respondeu Dominica. — Ainda não me respondeu. Ele a ouviu me chamar de Nica?

— Acho que sim. Por quê? — A Irmã disse, pensativa.

— Chamou-me assim. — A lembrança de seu nome especial na voz rouca e suave de Garren envolveu-a. Especial. Intimo. Como a voz de Deus, um sinal de aprovação de seu plano.

Mas em vez de ter pensamentos virtuosos, ela pensa­va nas mãos de Garren tocando-a. Fortes e suaves. E, depois de ver o pobre Jackin naquela situação, imagi­nou como Garren seria nu. De algum modo, não achou que o membro dele fosse derreter como cera de vela.

A Irmã a observava intrigada. Dominica não queria revelar suas emoções desordenadas. Talvez o encontro com o ladrão a tenha perturbado mais do que imagina­ra. Só o tempo acalmaria seus pensamentos.

— Já vou iniciar a caminhada — disse Dominica. — Não me distanciarei demais.

— Mas os ladrões... — retrucou a Irmã.

— Não se preocupe. — Dominica pegou um galho e o lançou o mais longe que pôde. Inocente correu para pe­gar, e ela o seguiu.

O caminho era reto e plano. Prados verdes esten­diam-se de ambos os lados, repletos de cotovias e sem esconderijos. As dores do dia anterior dissiparam-se.

Nunca mais saiam da vista do grupo, Garren disse­ra. Ela não saiu, mas já não podia ouvi-los. Quando, finalmente, sentou para esperar os outros, estavam pe­queninos como as imagens pintadas no teto da igreja.

A caminhada fez Dominica esquecer a preocupação na voz da Irmã e o enfado das histórias intermináveis da viúva, mas não conseguiu afastá-la de seus senti­mentos em relação a Garren. Precisava conseguir fitá-lo sem corar, sem ter pensamentos pecaminosos.

Apreciando as margaridas, abraçou Inocente.

— O que Deus estará tentando me dizer? — murmu­rou no ouvido do cão.

Poucos instantes após, uma das pequeninas figuras aproximou-se. Eram passadas zangadas. Ali, parada, enquanto aguardava a aproximação dele, encheu a mente de pensamentos virtuosos.

— Avisei a você ontem para não sumir de vista. — Garren agarrou-lhe o braço. Dominica viu, pela boca contraída e a respiração forte, que estava muito irrita­do, pois uma caminhada tão curta não poderia exauri-lo tanto.

— Não há ladrões por aqui. — Aquela mão em seu braço nu lembrou-lhe as peles de Jackin e Gillian tocando-se. Antes, achava que era a auréola da santidade dele que a tocava. Agora, já não estava tão certa disso.

— Nenhum que você esteja vendo. A história de Simon a irritou? Foi por isso que se afastou?

Dominica não podia contar que não foi a história de Simon, e sim seus próprios pensamentos.

— Ele zombou de algo que deveria ser íntimo.

Garren começou a andar, e ela acompanhou seu pas­so. As harmonias dos irmãos cantores soavam distan­tes, acompanhadas pelas batidas dos cajados no solo.

— Ontem você viu uma situação muito íntima. — Dominica procurou nos campos uma borboleta para distraí-la, mas todas pareciam estar dentro do seu estô­mago. Deu de ombros, procurando afastar a sensação, a percepção terrível da presença dele ao seu lado. Pegou uma vareta e jogou o mais longe que pôde. Inocente correu atrás, dispersando um bando de pássaros.

— É uma coisa que os cachorros fazem.

Já vira aquilo, uma vez. Encontrara Inocente em cima da cadela branca e felpuda da Irmã Margaret, sob as flores lilases de um arbusto de tomilho. Mesmo de­pois que Dominica os separou, o cão a montou muitas outras vezes, insistente e determinado. Mas não era como ontem. Os cães não se apegam com tamanho de­sejo, como se fossem morrer se alguém os separasse.

— Ficou angustiada com o que viu?

Não posso deixá-lo imaginar o quanto, pensou ela.

— Acho que disse a Simon que este não é um assun­to apropriado para damas. — Dominica deu de ombros, como se visse casais nus todos os dias. — Jackin e Gil­lian têm um prazer exagerado um com o outro.

— Exagerado? — Um sorriso ameaçou aparecer.

— É pecado ter prazer excessivo com o corpo.

— E você identificou um prazer excessivo? — Garren estava prestes a soltar uma gargalhada.

Um calor subiu ao rosto dela. Claro que não podia identificar um prazer excessivo. Mas isso levou-a a um pensamento amedrontador. E se o delírio que presen­ciou não fosse fora do comum? E se todo mundo fizes­se amor assim?

— Santo Agostinho foi muito claro nesse ponto. — Garren ficou de queixo caído.

— O que sabe de Santo Agostinho?

Ela sabia que tinha usado sessenta e duas penas de ganso num só dia, copiando com muito esmero uma se­ção de A Cidade de Deus. Mas ainda não estava pronta para compartilhar o segredo de sua escrita.

— Já lhe contei que quero fazer os votos. Como frei­ra, vou precisar conhecer as doutrinas de todos os gran­des padres da Igreja.

— E os padres desaprovam o prazer da união?

— Claro que sim. — Só um herege questionaria Santo Agostinho. E Deus não teria confiado as plumas de Larina a um herege. Ele pode não ser o que você imagina. De repente, todo o calor esvaiu-se de seu ros­to. — Compreendo agora. Deus mandou você para tes­tar o meu conhecimento da doutrina. Ele quer se certi­ficar de que mereço fazer os votos. Eu devia ter espera­do por isso. Estou pronta. Pode me testar.

Passado o momento de descontração, as linhas em torno da boca de Garren ficaram mais profundas.

— Está bem — disse ele. — Explique a doutrina. Conte-me o que há de errado com um homem e uma mulher terem prazer um com o outro.

A respiração de Garren parecia irregular. Sem dúvi­da está abalado por ter sido descoberto, pensou ela. Deus não percebeu que ela seria tão esperta em desco­brir Seu plano.

— Muito bem — disse ela.

Dominica respirou fundo e imaginou-se vestida no hábito preto das freiras, em segurança. Sob o peso de seu manto, o suor úmido encharcava suas axilas. Esse parecia ser um assunto íntimo demais para ser discuti­do com um homem, mesmo em nome da doutrina.

— Deixe-me expor o argumento: "Não há nada que devamos evitar tanto quanto as relações sexuais." San­to Agostinho disse isso. — Dominica preferia escrever em vez de falar, pois poderia escolher a palavra exata. — A única razão para Deus criar o ato entre o homem e a mulher foi a concepção.

— Como sabe disso?

— Todos sabem disso. A única razão para o homem e a mulher se unirem é gerar uma criança.

— A única razão? — Outras razões apareciam nos olhos verdes de Garren. Razões que explicavam todo o êxtase que Jackin e Gillian sentiam.

— A única razão. Portanto, se um casal se une pelo prazer egoísta, e não apenas para reprodução, uma união por prazer, isso é um pecado. — Sua língua enro­lou-se na boca. Quando ela aprendeu, aquilo pareceu mais simples.

— Por que Deus desejaria que fôssemos infelizes?

— Abster-se das relações carnais deveria nos ale­grar. Deus quer que sejamos felizes no céu, não aqui na ilusão temporária da terra.

— Por que é pecado ter prazer na terra que Deus criou para nós? — Os olhos dele a desafiaram.

Dominica sabia que não era certo o que Garren dizia, mas não conseguia descobrir por quê. Procurou o rosto da Irmã para confortar-se.

— Está tentando me confundir.

— Você apreciou o nascer do sol esta manhã?

— Estava lindo.

— Uma criação terrena de Deus. E que tal esta flor? — Ele se inclinou como se fosse arrancar a margarida amarela e branca mas, em vez disso, ajoelhou-se na ter­ra e puxou-a para se ajoelhar ao seu lado. Depois, levou a flor ao nariz dela — Gosta deste perfume?

Ela fechou os olhos e inalou o perfume. Garren pe­gou a mão de Dominica e passou os dedos sobre as veias azuis de seu pulso, subindo ao cotovelo.

— E quando eu faço isto, não é uma sensação praze­rosa?

Os dedos de Garren na sua pele pareciam ter o efeito estranho de apressar as batidas de seu coração.

— É, mas...

— Como pode essa sensação não ser um presente de Deus? — Garren virou o braço dela ao contrário e aca­riciou a pele nua até causar arrepios; e, quando retirou a mão, Dominica sentiu a pele ficar fria.

Ela acariciou seu braço, subindo e descendo com seus próprios dedos, do mesmo modo suave.

— A sensação não é a mesma — afirmou Garren.

— Não, não é — admitiu ela. Garren desnudou o braço direito e fechou a mão com força. Os músculos saltaram.

— Toque-me. Vai sentir uma coisa diferente.

Os dedos de Dominica formigavam como se ela es­tivesse a ponto de segurar as plumas sagradas e roça­ram os cabelos finos, sem ousar tocar a pele.

Ofegante, Garren abriu a mão e estendeu os dedos na direção de Dominica. Ela acariciou as linhas que atra­vessavam a palma daquela mão, desejando, por um mo­mento, que os dedos fechassem e apertassem os seus.

Ele retirou o braço, e ela suspirou aliviada. E desa­pontada. Sua respiração veio forte e acelerada.

— Vê o prazer que duas pessoas podem ter juntas? — À distância, Dominica ouviu a viúva falando com o médico aos berros.

— O homem jogou fora a muleta e correu, não an­dou, correu, estou lhe dizendo. Deus é minha testemu­nha. Eu vi. Ele beijou o osso do dedo mínimo de San­tiago e, no instante seguinte, estava curado.

Milagres, lembrou-se Dominica.

— Não pode me enganar com lógica falsa. Fides quaerens intellectum. — Sua voz tremia.

— Latim de novo?

— Você não estudou Santo Agostinho o suficiente no mosteiro. Quer dizer "A fé antes da compreensão".

— Aprendi tudo o que preciso do latim. Carpe diem.

— Aproveite o dia?

— É a única coisa que Deus não pode tirar. — Gar­ren levou os dedos ao rosto dela e a acariciou. — Apro­veite o dia de hoje, Nica. Pode não haver um amanhã.

Ela temeu perguntar se fora aprovada.

 

Para Garren, não havia um amanhã. Deus arrebatara aqueles que lhe eram mais preciosos mas, entre um passado doloroso e um futuro vazio, permitira-lhe um eterno hoje.

A moça o evitava, e ele lamentava tê-la amedronta­do. Sua intenção era apenas abrir-lhe os olhos para o mundo como ele é. Ela, porém, teimosa, insistia que ele era um mensageiro de Deus e se retraiu, apegada às pa­lavras de Agostinho, aquele degenerado que se conver­teu. Garren podia não ser um letrado mas conhecia as histórias de Agostinho. Antes de se converter, o ho­mem sucumbira a uma vida de tentações.

E agora ela despertava para isso. Ele percebeu quan­do a garganta se contraiu ao seu toque, sentiu o bati­mento do pulso acompanhando o seu. Ah, ela estava tentada, sim, e isso a amedrontava.

Mas aquilo também abalou sua confiança, confiança essa de que ele precisava, não como um enviado de Deus, mas como homem. É melhor não apressá-la.

Dominica caminhava bem comportada ao lado de Roucoud, que carregava a Irmã. Atrás, os irmãos Miller discutiam. Garren suspirou. Quando concordou em liderá-los, pensou que a tarefa abrangesse apenas a preocupação com alimento, abrigo e segurança. Para os soldados, resume-se nisso. No caso dos peregrinos, contudo, isso não era o bastante, apesar de as Escrituras da Igreja serem contra o conforto na jornada. Depois de três noites, já precisavam de uma cama, um teto e uma refeição quente. Talvez os confortos de Exeter pudes­sem acabar com as discussões dos irmãos Miller, pro­porcionar ao casal um pouco de privacidade, e permitir que a Irmã Marian recuperasse suas forças.

Se não houvesse acomodação para os peregrinos no mosteiro, a responsabilidade de conseguir um lugar re­cairia sobre ele; a não ser que fossem pedir abrigo. Co­mida e acomodação em um albergue representaria mais do que o pagamento de um dia. O único dinheiro de que dispunha era de William.

Por mais inútil que a peregrinação pudesse ser, tinha prometido fazê-la. Era um presente pequeno compara­do a tudo que recebera dele. Reembolsaria tudo que gastasse. Usando Dominica, se preciso.

Pensar nela o excitava. Garota corajosa e tola. Quan­do a viu encurralada entre os arbustos, e o casal nu, quis possuí-la e salvá-la. Jamais considerara a tarefa desagradável. Só o sofrimento que traria.

Calma, pensou. Ainda temos alguns dias. Espere que ela o procure. E o fará, com toda a certeza.

Ainda era manhã quando os peregrinos chegaram a Exeter no dia da Festa de Corpus Christi. Muitos pal­cos giratórios de madeira estavam espalhados nas ruas empoeiradas, repletas de pessoas alegres que não tra­balhariam nesse dia. Em vez disso, iriam de vagão em vagão, todos palcos para apresentações dos grupos que tinham suas próprias versões das histórias de Deus.

A alegria trouxe-lhes energia nova. Garren deu orientações rigorosas para se reunirem em frente à ca­tedral, antes das vésperas.

Jackin e Gillian foram os primeiros a desaparece­rem. Os irmãos Miller saíram à procura de alguma in­dicação de um barril de vinho. Ralf sumiu em seu pró­prio submundo. A viúva e o médico afastaram-se para assistirem juntos às apresentações, que ele repetiria para o ouvido bom de sua acompanhante. Simon pediu permissão para montar Roucoud, e Garren cedeu. O ca­valo precisava de um bom exercício.

Só sobraram ali a Irmã Marian e Dominica.

Espere que ela o procure — relembrou-se Garren, fingindo fascinado com um vagão cortinado com uma bandeira que retratava um enorme peixe. Uma multi­dão reunida aguardava a próxima apresentação.

— A Irmã disse que eu posso assistir aos autos com você, enquanto ela vai ao mosteiro para pedir acomo­dações. Se você concordar, se não for fazer outra coisa.

— Claro. Nada me daria mais prazer. — Garren sen­tiu um alívio mais forte do que esperado.

A Irmã, segurando o cão, viu que ele concordou e acenou a mão em despedida, hesitante, antes de seguir a passos lentos em direção a São Nicholas.

Eles viram uma baleia enorme, que escondia três peixeiros, engolir um desafortunado Jonas. Dominica riu com a multidão.

— Já viu um auto de milagre? — perguntou Garren, desejando por um momento que ela quisesse olhar para ele, em vez de só prestar atenção nas apresentações.

— No convento, celebramos a festa de Corpus Christi de uma maneira um pouco diferente.

Uma casa de mulheres cantoras limitada por um muro e um portão. Intocada. Protegida. Ele sacudiu os ombros para se livrar da sujeira do mundo que trazia consigo e que iria macular o lago puro e límpido que era a vida de Dominica.

— Por que foi criada lá? — perguntou, imaginando que a história de Dominica seria diferente daquela con­tada pela Priora.

— Deus me deixou lá.

— O próprio Deus? — Ela tratava Deus com muita intimidade, pensou ele, diante da convicção de que o Onipotente administrava a vida dela.

— Deus arranja todas as coisas. Ele me deixou no portão como se eu fosse uma oferta de maçãs. — Do­minica encheu as bochechas de ar e fez um círculo com os braços. — Não pareço uma maçã?

Garren deve ter parecido assustado, pois ela caiu na risada, feliz e despreocupada, sentindo o vento no ros­to; e ele quis tocá-la, abraçá-la e beijar seu nariz engra­çado por razões que não tinham nada a ver com a Priora e tinham tudo a ver com ela.

Vá com calma, pensou ele, mantendo os braços ao longo do corpo. Fabricou uma expressão séria como se estivesse analisando a pergunta.

— Uma maçã? Não. Parece mais uma ameixa. — Dominica curvou-se de tanto rir, uma risada que foi abafada pelo aplauso da multidão quando Jonas e o grande peixe agradeceram ao público com uma reve­rência. A pequena curva de seus lábios era irregular. Garren os admirou por tanto tempo e com tanta intensi­dade que podia senti-los unidos aos seus.

Ele colocou a mão nas suas costas enquanto a levava pelas ruas apinhadas. Comprou duas tortas com um vendedor de rua para o almoço, protegendo-as de um ganso agressivo, e engoliu a sua com duas mordidas.

— Não gosta disso?

— Comemos pouca carne no convento. Não estou acostumada ao gosto.

O ganso, grasnando, mordiscou o manto de Domini­ca. Garren o afastou, e ela devorou a torta. O ganso be­liscou seus dedos, e o último pedaço caiu no chão.

O ganso investiu para cima do pedaço de torta caído, soltando plumas brancas, e saiu triunfante. Dominica pegou uma das plumas do ganso.

— Parecem muito com as plumas da Abençoada Larina, não acha? — perguntou.

Garren sentiu o relicário pesar no seu pescoço e na sua mente, e esperou que ela nunca descobrisse o quan­to as plumas se pareciam.

— Incrível como há pouca diferença entre as plumas de um ganso e as de uma santa — concordou ele.

— Às vezes, muito pouco nos impede de sermos bons como deveríamos. Isso nos ensina a ter compai­xão por aqueles que erraram.

Ele sabia: não há perdão para o pecado que iria co­meter.

 

No fim da tarde, avistaram a fachada oeste da cate­dral dourada de Exeter. Um tapume cobria a fachada, ainda em construção, um novo monumento para satis­fazer a ambição do bispo atual. As ferramentas de pe­dreiro estavam no chão, abandonadas por aquele dia, A porta em arco era adornada na parte superior por uma fileira de figuras de santos, algumas acabadas, outras ainda lutando para emergir da pedra. Acima da porta, um grande espaço vazio esperava por um vitral.

Na frente da catedral, começou outra apresentação. Os olhos de Dominica arregalaram-se de espanto dian­te do homem vestido de Deus. Alto e desengonçado de­vido às pernas de pau ocultas sob uma longa veste branca, ele usava uma peruca loura e uma máscara de ouro. A seus pés, um Satã de chifres lutava uma batalha vigorosa pela alma de um pecador agachado.

— Isso não está na Bíblia.

— Claro que está — retrucou ele, perguntando-se por que estava discutindo. Tinha deixado a Igreja por­que o Deus que eles veneravam parecia menos autênti­co do que o homem de pernas de pau.

Deus agora agarrou o diabo em uma chave de joelho, açoitando suas nádegas acolchoadas com uma pá com­prida. O povo gritava.

— Dois centavos no diabo — gritou um arqueiro.

— Não — insistiu ela. — Não está.

Garren passou os olhos pela multidão animada, es­perando que ninguém ouvisse a blasfêmia.

— O que quer dizer com isso de não estar na Bíblia? — Ela o analisou com um olhar silencioso e desafiador, fitando-o com cautela, antes de se inclinar para ele e sussurrar, com os lábios roçando-lhe a têmpora;

— Eu li.

Seu sussurro soou tão alto no ouvido de Garren quanto a risada da multidão. Atordoado, não conseguiu falar. Sabia que ela escrevia e lia um pouco. A saliência em seu dedo comprovava isso. Mas a Bíblia era escrita em latim. Somente os escolhidos da Igreja podiam lê-la e interpretá-la. Apesar de ter sido criada pelas freiras, não havia razão para ensinarem latim a uma pobre órfã.

— Você lê latim?

— Leio. — Ela confirmou, empinada e orgulhosa. . — E escrevo também.

Ele sabia o quanto precisava confiar para contar isso.

Ele colocou a mão nas costas de Dominica e condu­ziu-a para longe da multidão, para a calma serena da catedral inacabada, onde ninguém além de Deus pode­ria ouvir seu sacrilégio. A nave oeste, em construção, quase duplicaria o tamanho da igreja. Dentro, colunas elevavam-se do chão, arqueando em um teto sem telha­do como um bosque de árvores tão altas que alcança­riam o céu; e para Deus poder observar das nuvens, pronto para matá-lo por personificar um homem santo. O castelo, o convento, a vila, tudo caberia aqui dentro. Esta é verdadeiramente a casa de Deus.

Aos olhos de Garren, a igreja tinha sido esculpida e embelezada para um bispo morto, e não para um Deus vivo. O último bispo estava em uma tumba à esquerda. Que pobres tolos, como sua família, teriam dado toda sua riqueza para a glória de um bispo morto?

Mas quando a luz dourada do sol se derramou, atra­vés do enorme buraco do vidro colorido, reluziu em volta de Dominica como se ela fosse um anjo na terra. E ele quis voltar a acreditar em tudo de novo, Garren pegou os dedos dela, suavemente, e levou-a até os degraus sob o arco de um biombo de madeira en­talhada que ocultava o coro no centro da igreja. Roçan­do o polegar na pequena saliência do dedo médio de Dominica, sentou-se ao seu lado e esperou.

— Agora, conte-me tudo, Nica — disse ele, final­mente, sem ter certeza de que estava pronto para ouvir.

— É mais um teste? — Sim, pensou ele, e neste eu não posso falhar.

— Nenhuma resposta é certa se não for a verdade.

— Acredito em você. — A sobrancelha de asa que­brada parecia pronta para voar. — Bem, você sabe que os Readington sustentam o trabalho do convento.

— Claro. — O bem mais precioso de William, que o acompanhou na França, era o Livro dos Salmos de seu pai, um trabalho das freiras do convento.

— A Irmã Marian é a nossa cantora, responsável pela cópia e pelo canto. Ela sempre teve um cuidado especial comigo. Quando copiava, me deixava sentar no seu colo. Ela me ensinou a escrever com as sobras de tinta e de pergaminho. — Dominica deu uma risadinha quando ouviu o eco de sua voz rebater no chão de pedra. — Acho que ela viu que eu nunca seria cantora. — Garren sorriu, apreciando a sensação confiante dos dedos dela. Apesar de não ter a paciência nem o talento para isso, respeitava os Irmãos que produziam testa­mentos lindos e duradouros.

— Eu amo o cheiro da tinta, a sensação da pena, a forma como a glória de Deus é revelada quando a pági­na é completada. É isso o que quero fazer da minha vida. — Iluminado de alegria, seu rosto não precisava de nenhuma luz do sol.

Não é à toa que ela não pensou em casamento. Só uma freira teria permissão de passar os dias copiando textos sagrados.

— Copiei uma parte de Cidade de Deus de Santo Agostinho. Há uma página de Mateus em nossa biblio­teca que eu mesma copiei, até a letra maiúscula com verde e ouro. A Irmã fez o molde de gesso para seguir o padrão, mas eu apliquei a folha de ouro e a poli.

Garren percebeu, sorrindo, que ela tinha uma pontada de orgulho a respeito de seu talento. Mas não chega­va a se caracterizar como um pecado.

— Que parte de Mateus? — perguntou ele, mais in­teressado em ver o movimento de seus lábios do que no verso da Bíblia.

— "Peça e receberás; procure e acharás; bata e ela se abrirá para vós." Vou mostrar a você para que possa ler e ver como eu faço um bom trabalho.

Ele também precisava fazer uma confissão.

— Mesmo no mosteiro, eu deixava o latim para os outros. — Ela sorriu, encantada com suas palavras.

— Por isso, quero copiar a Bíblia na língua do povo.

— Em inglês?

Um raio gelado atravessou-o quando ela confirmou.

Até ele que lia inglês pouco melhor que o latim, isto é, quase nada, poderia ler uma Bíblia dessas. Poderia ser falada, citações poderiam ser feitas, ela pertenceria ao povo, deixaria de ser exclusividade da Igreja.

Ele se perguntou o que William, agarrado com toda força ao seu Livro dos Salmos, pensaria a respeito.

— A Priora sabe disso? — perguntou Garren.

— Ela desaprova.

Claro, pensou ele. Tamanha heresia poderia amea­çar a própria existência do convento. É por isso que ela queria colocar em risco a alma imortal de Dominica.

— Mas até mesmo as Irmãs pronunciam errado as palavras durante os cultos, porque só as sabem de cor. Quero torná-las verdadeiras para que todos possam en­tender. Você... — Ela fechou os olhos e depois abriu para fitá-lo. — Você acha que é errado?

Os olhos azuis insondáveis brilhavam com o fervor da primeira vez que a viu. Até agora, pensara nela como um pássaro esperando ser libertado da gaiola da Igreja e poder voar, feliz, para o mundo real.

Agora, em vez de libertá-la, percebeu que seu plano a levaria a perder tudo o que lhe era mais precioso. Não tinha coragem de fazer isto. Nem por William.

— Penso que, se quer copiar as Escrituras em inglês, é o que deveria fazer.

— Você é um homem de Deus estranho. A Irmã dis­se que eu nunca deveria falar disso. Vai me ajudar?

— Como poderia ajudá-la?

— Diga à Priora que não há problema. Talvez ela o ouça, já que é tão próximo a Deus.

Ele se atrapalhou, desejando, por um momento, a ajuda de um poder superior.

— Talvez devêssemos deixar isso nas mãos da Aben­çoada Larina.

O sorriso de Dominica irradiava sua fé.

— É por isto que estou fazendo peregrinação. Sei que Larina me ajudará. Certamente, Deus não me con­denará por disseminar Sua palavra.

O peito de Garren doía como se tivesse levado uma martelada perante a mal-orientada fé de Dominica. Ela acreditava que Deus se sentava nos ombros dela e que poderia mudar o mundo com Suas palavras. Ele envol­veu o rosto suave com a mão.

— Você é mais pura do que eu jamais poderei ser. Qualquer Deus que a condene não merece respeito.

Mas o Deus que ele conhecia não merecia mais res­peito do que o pedreiro que usava uma barba falsa. No fim da jornada, quando visse aonde sua fé a levou, ela seria tão amarga e solitária quanto ele. Nenhum Deus que mereça ser venerado deixaria isso acontecer.

Em vez disso, seria justo aquele que a extinguiria.

E ele percebeu, naquele momento, que não poderia culpar Deus por seus próprios pecados.

 

Richard segurava próximo ao nariz uma laranja es­petada com um cravo-da-índia, enquanto se dirigia ao quarto de William para sua visita diária. Hoje, pensou ele, perguntaria sobre a mensagem.

A pele de William afundava no crânio de cabelo dourado escasso. Suas mãos pálidas curvavam-se em garras escamosas, exatamente como o italiano previra, e nem mesmo a caixa de perfumes contra infecções ti­nha sido capaz de disfarçar o mau cheiro.

Richard estremeceu. Niccolo tinha avisado, mas es­tava levando mais tempo que ele pensara. Teria que mandar lavar bem o quarto antes de se mudar para lá.

— Como está se sentindo hoje?

— Não fique rondando à espera da minha morte, ir­mão. Não fica bem.

— Meu desejo é evitar qualquer dor.

— E ter o caminho livre para ser o herdeiro. — Ansiando por ar puro, Richard foi até a janela. No prado a oeste, criados molhados de suor ceifavam o feno novo. A mulher do mineiro, com o decote aberto para refrescar os seios generosos, levava cerveja para o marido no campo. Já se deitara com outros antes dele. Como as mulheres que seu pai gostava. Certamente, não se casara pura como a mãe dele. Sim, seu pai teria gostado dela. Talvez a chamasse esta noite.

— O tempo está bom, William. Nossos peregrinos devem estar chegando em Exeter com a mensagem. O que escreveu, William?

— Não é da sua conta.

— Estranho. Foi o que o mercenário disse.

— Ele não é um mercenário.

Defendeu-o. Sempre defende esse homem sem qual­quer relação de sangue. Quem tem o sangue de seu pai é ele, e não aquele cavaleiro sem nome e sem lar.

— Luta por dinheiro. Chega a ir em peregrinação pelo pagamento. Do que mais eu o chamaria? — Ri­chard deu uma risadinha. — Salvador, talvez?

— Eu o considero mais meu irmão que você.

Richard percebia na voz de William o tom de des­prezo do pai. Por que você não é como seu irmão?

— Do que mais você acha que ele poderá salvá-lo? De mim?

— Já é tarde demais para isso.

Richard rangeu os dentes no silêncio longo e vazio. Então, William sabia. Mas, agora, e daí?

William fitou-o com olhos brilhando de raiva.

— Quer saber o que a mensagem diz? Pois vou con­tar. — William levantou o corpo com dificuldade e apoiou-se nos cotovelos. Richard afastou-se na direção da porta, temendo que ele desenvolvesse uma força de louco. — Ela diz ao padre do santuário que, se eu mor­rer, terá sido por sua mão, e que você deve ser enforca­do para que Deus possa mandá-lo direto para o inferno.

Os dedos de Richard subitamente ficaram entorpeci­dos como os de William. Ele bambeou e caiu contra a porta. Deveria ter desconfiado disso. Poderia tê-los im­pedido antes. Se aquela mensagem chegasse ao santuá­rio, todos os seus planos cairiam por terra.

— Ela diz o quê?

— Você e o seu italiano. Achou que eu não saberia, e, de fato, fui saber tarde demais.

— Garren sabe?

— Não basta Deus saber?

— É claro que não sabe. — Richard falou para si mesmo, empinando-se de novo. Não precisava falar com William agora. Logo ele estaria morto. — Se Gar­ren soubesse, já teria me matado. E já que todos esses tolos acreditam que Garren é algum tipo de santo, eles próprios me enforcariam, se ele mandasse. — Richard caminhou de um lado para o outro, tentando pensar. — Mas você quase não consegue segurar uma colher. — Continuou nas passadas, tentando pensar. — Não foi você quem escreveu. Teve um escriba. Quem foi?

William riu baixinho.

Richard segurou os ombros do irmão e balançou-os.

— O escriba, quem foi o escriba?

Os olhos de William reviraram. Richard largou-o e recuou dos lençóis malcheirosos. Uma pontada de re­morso maculou seu alívio ao sair de perto.

— A garota, claro. Dominica. — Precisaria mudar os planos. — Você não assinou somente a sua sentença de morte, irmão. A deles também.

O som de William querendo vomitar acompanhou-o pelo corredor. Ainda vivo. Muito ruim. Agora ele tinha outras preocupações. Arrumar suas coisas em um saco de viagem. Certificar-se de que Niccolo sabia o que fa­zer em sua ausência...

— Niccolo! — gritou Richard, com a voz trêmula como os dedos de William.

O homem saiu de uma porta como se estivesse espe­rando Richard chamar.

— Sir? — O homem o deixava nervoso. Alguma coisa nos olhos dele. Talvez devesse livrar-se dele quando seu trabalho terminasse. Se bem que, se ele realmente conseguia transformar estanho em ouro, va­leria a pena mantê-lo.

— Meu cavalo mais veloz. Apronte-o para antes do meio-dia.

As ordens deveriam ser dadas a um pajem, mas Nic­colo encaminhou-se para o estábulo.

Os peregrinos partiram há três dias, mas, se ele for­çasse o cavalo, poderia alcançá-los antes de chegarem ao santuário. Talvez levasse uma pequena guarda...

Não. Não podia simplesmente aproximar-se e matá-los. Teria que ir como um peregrino. Sozinho. Desco­briria uma maneira depois. Quem sabe um dos venenos de Niccolo. Agora tinha que providenciar aquela babo­seira de manto e cajado.

— Lombardo! — gritou. No meio da escada, o ita­liano parou. — Arranje um pouco de beladona. E consiga-me um desses mantos cinzas e uma cruz para usar.

Os lábios grandes do homem contraíram-se.

— Como um peregrino, Sir?

— Sim, seu tolo imbecil. — Richard soltou uma gar­galhada e jogou a laranja para o homem, rindo mais ainda quando ele se atrapalhou para agarrá-la. — Vou fazer uma peregrinação.

Isso poderia acabar bem. Muitos acidentes aconte­ciam na estrada. O mercenário e a garota poderiam morrer ao longo do caminho santo, e ir direto para o céu por seus sofrimentos. Era uma lástima pela garota.

 

Levantando da sua mesa, sem fala, a Priora observa­va Sir Richard, vestido como um peregrino, ajoelhado diante dela. Ele nunca visitara o convento, nunca reco­nhecera nenhum de seus pedidos, exceto oferecer a ela aquele seu negócio do diabo. Será que ele achava pos­sível que já tivesse uma resposta? Ou será que não con­fiava na palavra dela? A Madre estava começando a ter uma certa angústia com relação a Dominica. Quase chegava a sentir falta dela.

— Abençoe-me, Priora, estou partindo para o san­tuário da Abençoada Larina.

— Que mudança no coração o leva em peregrinação?

— Descobri um fato lamentável. — As pálpebras de Richard contraíram-se. — Parece que meu irmão, quase morto e delirante, sem dúvida, foi tomado da idéia de que estou tentando envenená-lo.

— Por que acharia tal coisa?

— Porque Garren está levando uma carta para o pa­dre do santuário contando isso. Meu irmão a escreveu, ou, melhor dizendo, Dominica escreveu para ele.

Ela sabia tão bem quanto se tivesse ouvido de Deus que o Conde não tinha delírios. Além de expor a alma imortal de Dominica, ela a condenara a morrer.

— Claro. São os delírios de um moribundo, mas não posso permitir mal-entendidos, concorda?

Ela tocou a testa, o peito e os ombros com os dedos frios para afastar a maldade de Richard. Perdoe-me, Senhor. Perdoe-me por minha arrogância de achar que poderia compactuar com o diabo em coisas peque­nas, sem ter conseqüências.

— Abençoe-me, Priora. Parto para corrigir uma in­justiça caso eu seja erroneamente acusado.

— Não prefere esperar o Prior? — Levaria pelo me­nos um dia para a mensagem chegar a ele. Mais um para ele vir. Talvez esse atraso os salvasse. — Ele vai precisar trazer os testemunhais oficiais.

— Não é necessário, cara Priora. Para mim, a senho­ra já é bastante próxima de Deus.

Madre Julian fez um sinal com a mão sobre a cabeça de Richard, murmurou: "Deus me perdoe", em latim.

 

O queixo apoiado na mão, e os cotovelos na mesa da sala da hospedaria Inn of the Hart, em Exeter, Domini­ca sufocou um bocejo. No banco à sua esquerda, a Irmã Marian cochilava com a cabeça sobre os braços, na mesma mesa. À esquerda da Irmã, a viúva Cropton dor­mia com o corpo ereto e a cabeça pendendo.

A Irmã não tinha conseguido as acomodações na casa de hóspedes do mosteiro que estava lotada de visi­tantes para a Festa de Corpus Christi. Agora, na tercei­ra hospedaria que tentavam, Garren encurralou o hos­pedeiro gordo e rabugento, insistindo que ele providen­ciasse cama para as mulheres. Gillian e Jackin, sem es­perar um quarto, tinham desaparecido. Os homens, em seus mantos, já dormiam no chão do alojamento.

As histórias de Jonas, Jesus e Noé misturavam-se na mente de Dominica, clamando para serem escritas. E Garren aprovou, um sinal certo do apoio de Deus.

Garren não sorria. Um mau humor apossou-se dele ao saírem da catedral e, agora, o envolvia como um manto. Talvez seja a preocupação de conseguir leitos para todos, pensou ela, vendo-o negociar.

Mesmo ao humilhar o hospedeiro provocador, Garren não levantou as mãos ou a voz. Ela não conseguia ver suas mãos grandes e seus dedos grossos como ameaçadores. Quando ele tocava seu rosto e entrelaçava os dedos em seus cabelos, sentia-se querida e valorizada.

Que estranho homem para Deus escolher como Seu mensageiro! Mas o Conde o escolhera também, e a mensagem do Conde era questão de vida ou morte. A alegria quase a fizera esquecer, mas talvez fosse o atra­so deste dia que sobrecarregasse seu semblante.

Debaixo da mesa, Inocente descansava sobre seus pés, banqueteando-se com os farelos e sobras caídos no chão. Dominica balançou os dedos dos pés, cutucando-o, até ele pedir seu colo. Ela o levantava com mais faci­lidade agora que estava mais magro de tanto andar.

O hospedeiro subiu as escadas rangentes. Garren deslizou para um banco na frente dela e esticou as per­nas longas e musculosas sob a mesa. Suas panturrilhas roçavam a bainha do manto de Dominica. Próximo de­mais, talvez, mas a hospedaria estava repleta. Aonde mais ele se sentaria?

Dominica manteve as pernas imóveis para não tocá-lo. Garren encheu a caneca de cerveja e bebeu.

— Terão uma cama — disse ele com a boca aperta­da. — Custe o que custar.

Ela e a Irmã não tinham dinheiro para hospedadas.

— Estarei bem. Caso só haja quarto para um, dê à Irmã. Pagaremos a você quando voltarmos.

— Não vou deixá-la dormir no meio dos homens — disse ele de forma brusca. Depois, olhou para a viúva e a Irmã, que cochilavam, e murmurou: — Nenhuma de vocês. Tenho algumas moedas.

— Não estou com sono.

— Então, por que está bocejando?

— Eu posso estar cansada, mas esta é a melhor mesa para escrever que vi desde que saímos do convento. — Ela correu a mão sobre a mesa. Não era lisa e inclinada como as mesas do scriptorium, mas dura e plana. — Se eu tivesse mais pergaminho, passaria a noite inteira aqui e anotaria todas as histórias que vimos hoje.

— O que faria com elas? — perguntou ele.

— Eu as descreveria no papel para que as pessoas não precisassem esperar pelos dias de festa para vê-las representadas.

— O povo não sabe ler.

— Algumas pessoas sabem — insistiu ela. — Se conseguirem entender, poderão acreditar.

Empoleirado em seu colo, Inocente contraiu o focinho frio e úmido. Alguém tinha comido um frango as­sado, e o cheiro pairava no ar.

— Comeu bem, menino? — perguntou ela ao cão.

— Você acha que, se escrevesse a Bíblia em "pala­vras de cão", Inocente também acreditaria?

— Talvez. — Seria aquela pergunta um teste ou um gracejo? Ele não sorriu. — Deus também criou os cães.

— Mas cachorro não tem alma.

Dominica percebeu um brilho de triunfo nos seus olhos. O homem sabia discutir teologia quando queria.

— Eu sei. Então eles não podem ir para o céu. — Não parecia justo. Sentiria falta de Inocente no céu. Talvez essa parte da doutrina estivesse errada. — Se Santo Agostinho tivesse um cão, teria escrito de outra forma — disse ela, brincando com o pêlo dele.

Garren soltou uma gargalhada. Bom. Ela ficou feliz por ter melhorado seu humor.

A panturrilha de Garren encostou na dela.

Dominica sentiu um arrepio pelo corpo como se um relâmpago tivesse estalado perto dela. Garren sorriu.

Ela correspondeu, imaginando a sensação de passar os dedos nos cachos escuros que subiam por aquele pescoço queimado do sol.

— O que vai fazer se não conseguir o que deseja? — perguntou ele, como se nada tivesse acontecido.

Ela encolheu as pernas sob o banco.

— Mas vou conseguir. — Uma dúvida inoportuna obscureceu suas palavras. Deus nem sempre responde às nossas preces da maneira que desejamos.

Ele deixou as pernas no mesmo lugar.

— Como pode ter tanta certeza?

— Jesus disse: "Peça e receberás." E pedi com mui­ta clareza. — Ela esticou as pernas, segurando Inocente para que não escorregasse de seu colo. — E você, o que quer da Abençoada Larina?

Garren endireitou-se, dobrou as pernas sob o banco e tomou mais um gole da cerveja.

— Uma coisa impossível. Que William viva. — Dominica corrigiu sua postura na cadeira. Estava pensando em acariciá-lo ao ver seu desespero com a saúde do Conde. Garren podia estar sendo pago pelo Conde para ser seu peregrino, mas sua devoção não ti­nha preço.

— Nada é impossível para Deus. Mas não quer nada para si mesmo?

Ele voltou a franzir o rosto, formando vincos mais profundos.

— Nada que a Abençoada Larina possa conceder. — O hospedeiro desceu as escadas.

— Três mulheres? — Sua voz ríspida acordou a Irmã e a viúva. — Há uma cama. Só cabe mais uma pessoa. No andar superior, à direita.

Dominica colocou Inocente no chão para ajudar a Irmã a se levantar. Os dias que tinha passado montada no cavalo acrescentaram-lhe novas dores.

— Nenhum cachorro na cama — resmungou o hos­pedeiro. — Mantenha esse animal no chão.

Ela abriu a boca para dizer que Inocente não tinha pulgas, depois começou a duvidar.

— É uma coroa por todos vocês. — Ele pegou a moeda de prata de Garren e virou-a para certificar-se de que a prata não tinha sido raspada. — E mais um xelim pelo alimento do cavalo — acrescentou. — Se o cachorro fizer algum estrago, haverá um extra.

Contrariado, Garren deu mais moedas.

— Aquele cão é mais educado do que você. — Custava tanto assim? Pensou Dominica, contando um, dois, três. Esperava que o Conde tivesse sido gene­roso com seu peregrino.

Quando Inocente subiu correndo as escadas à frente, Dominica dirigiu-se para o hospedeiro.

— Por favor, qual é o caminho mais rápido para o santuário da Abençoada Larina?

— A maioria faz o caminho que contorna o pântano para então subir pelo outro lado para Tavistock. Isso leva três dias. Depois, são mais três dias.

— Mais seis dias! — Será que o Conde viveria tanto tempo? — Não há nenhum caminho mais rápido?

— Qual é sua pressa, moça? — Os olhos dele pousa­ram no seu peito, e ela ficou aliviada de saber que iria dormir numa cama com mais três mulheres esta noite.

— Ela lhe fez uma pergunta — disse Garren. — Há algum caminho mais rápido?

— Ah, claro que sim. — O hospedeiro piscou inú­meras vezes antes de responder. — Há um caminho que atravessa o pântano. Economiza um ou dois dias. — Ele jogou as moedas, uma por uma, dentro de um saco fechado por um cordão. — Mas os antigos deuses ainda se escondem por lá, e, se desce uma névoa... — Já se retirando, ele deu de ombros e balançou a sacola que tilintou com as moedas. — Algumas pessoas que en­tram lá nunca retornam — Finalizou ele, ao entrar no quarto e fechar a porta num estrondo.

— Um dia, Garren. — Ela sentou-se a seu lado no banco. Ele não deve ter ouvido, ou não estaria ainda olhando fixo para o fogo. — Se atravessarmos o pânta­no, poderemos ganhar um dia. Talvez dois.

— Que diferença isso vai fazer? — perguntou ele sem olhar para ela. — Você vai ser freira ou não vai.

Meu irmão me mata aos poucos. As palavras do Conde ainda lhe davam calafrios.

— O dia não é para mim, mas para Lorde Readington. Um dia poderia salvar-lhe a vida.

— É mais provável que William já esteja morto. Ele deve estar tomado pela tristeza causada por um excesso de bílis preta. E não é para menos. — Garren já tinha feito um milagre. Deve estar louco para que Deus conceda outro. Talvez, se ela lembrasse seu dever.

— Mas ele confiou a mensagem a você...

— Mensagem? Será que o Conde ocultou de seu mensageiro?

— Eu vi um pergaminho embrulhado com o selo dele — disse ela, cautelosa, observando o rosto de Gar­ren. — Achei que devia ser uma mensagem.

— Prova que as plumas são autênticas — disse Gar­ren, agora sem nenhum sorriso nem expressão de de­sespero.

— Então eu estava enganada. Mas para orar pela vida dele, não quer voar logo para o santuário?

— Voar como a Abençoada Larina?— Ele deu um riso amargo. — Sou responsável por todas essas almas e pelas preces de William. Será que eu deveria guiá-los por um pântano sem pistas?

— Não guiará sozinho. Deus estará ao seu lado. — Ele virou a cabeça para o outro lado, observando o chão repleto de homens roncando.

— Não vejo nenhum Deus ao meu lado.

— Ele está com você sempre. — Garren podia não ser um santo, mas como podia negar o Deus que tão claramente agia através dele? — Ele o ajudou a salvar Lorde Readington.

— Eu não salvei, nada que Deus não tirou de mim. Devo salvá-la, Nica?

Ela lambeu os lábios e abriu a boca, mas nenhuma palavra surgiu.

— Salvar-me de quê?

— Salvá-la do que você quer. — As mãos dele paira­vam hesitantes nos ombros dela. Um calor tomou conta dela. — Neste momento, você quer que eu a toque.

— Não é isso que eu quero.

— Não mesmo?

Garren aninhou a mão grande e quadrada na curva entre o pescoço e o ombro de Dominica. A pele dela pulsava, e o coração batia na garganta. Ela quase não conseguia respirar. Ele estava fazendo ela ficar zangada. Era por isso que ela se sentia tão quente e rubra.

— Quero chegar ao santuário o mais rápido possí­vel. E você também.

Garren levou a outra mão ao ombro dela, e deslizou até o pescoço. Depois, segurou seu rosto com as duas mãos, inclinando-se tão perto que ela sentia sua respi­ração; e quis sentir seus lábios.

— Está me testando de novo? Já que superei você na teologia, quer me atacar através da carne? Muito bem. — Ela rangeu os dentes para interromper o tremor da voz. — Minha fé é mais forte que sua tentação.

Ele acariciou a linha de seu queixo e delineou o arco de sua garganta com o polegar, até sentir ela engolir.

— Mais forte que isso?

— Sim. — Até os ossos dela pareciam derreter, e ela pensou, pela primeira vez, se era mesmo.

Ela queria ver aqueles olhos mudarem de verde fo­lha para esmeralda com as mudanças de humor. Queria ouvi-lo rir quando ela dizia alguma coisa inteligente. Queria que ele lhe mostrasse o perfume de uma flor, o vôo de um pássaro, a forma das estrelas e como apre­ciar toda a maravilha de cada um dos dias de Deus.

Ela queria aninhar-se nele e nunca sair do santuário de seus braços, para curar algo que ela nem sequer sa­bia que estava ferido.

Garren afastou as mãos, e Dominica sentiu estreme­cer a pele com a sua falta.

— Você tem uma cama — disse ele. — Use-a.

Dominica sentiu o cheiro da sobra de frango, da fu­maça do fogo, e da cerveja entrando no pulmão dela. Era como não respirar enquanto ele a tocava.

— Quero entrar para a ordem para poder copiar a Bí­blia para o inglês. Você disse que eu devia. Minha fé é forte e suporta qualquer tentação que Deus me envie através de você, até Ele me mandar um sinal.

Dominica levantou-se, sem saber como suas pernas trêmulas a sustentariam. Ele não a chamou, e ela não olhou para trás, temerosa como a esposa de Ló, de se transformar em uma estátua de sal por olhar para trás, para a depravação de Sodoma e Gomorra.

Mas quando pôs o pé no primeiro degrau, numa sala cheia de roncos, desejou ouvi-lo e se virou.

— Não há nenhuma dádiva que a Santa possa lhe conceder?

Ele voltou a encher a caneca, e fitou o fogo através do filete dourado de cerveja, como a luz do sol atraves­sa o vitral.

— Que eu esquecesse — disse ele, afinal.

Ela subiu correndo as escadas sentindo que o mundo todo era inseguro, inclusive o chão que pisava.

Na escuridão, seguiu os roncos da viúva até a cama, debaixo de uma janela por onde entrava o cheiro de feno usado e de estrume fresco do estábulo.

— Nica? Onde estava?

— Discutindo o caminho de amanhã. Achei que uma cama e um teto fossem lhe dar descanso.

— Não fui abençoada com um ouvido surdo como a viúva.

A Irmã disse isso com um sorriso, mas Dominica ou­viu em sua voz a dor de seus quadris, coluna e joelhos. A Irmã sempre cuidara dela. O que fazer em troca?

— Posso pegar algo para você? Mais cobertas?

— Estou bem.

Dominica enrolou seu manto e colocou debaixo da cabeça para servir como travesseiro, tateando nos pés da cama para alcançar o lençol de linho. Era a mesma sensação que tinha com Garren, como se estivesse a ponto de cair fora ou dentro de alguma coisa. Ao seu lado, o colchão de palha da Irmã denunciava cada mo­vimento seu à procura de conforto.

— Ainda está acordada, Irmã?

— Estou, filha. Por quê?

— Conte-me — pediu Dominica, tomando coragem com a escuridão — Sobre os homens e as mulheres.

O colchão silenciou.

— Por que pergunta?

Ela não podia dizer Garren.

— Gíllian e Japkin. — E continuou. — Por que é pecado um homem e uma mulher se unirem, se foi as­sim que Deus nos criou para a concepção?

— O pecado não é a união. É o desejo que nos afasta de Deus.

Ela conhecia o argumento. Já o repetira para Garren.

— Mas eles parecem tão felizes. — Felizes. Que nome pobre para a alegria que tinha presenciado.

— Um casamento feliz agrada a Deus. O amor entre um homem e uma mulher é como o amor de Cristo por sua Igreja.

Dominica já tinha ouvido tudo isso antes, mas, ago­ra, a imagem parecia um sacrilégio.

— Nica, você foi tentada?

Sim, pensou ela, mas resisti. É o que importa. Não há necessidade de preocupar a Irmã.

— É que o mundo fora do convento é mais compli­cado do que eu pensava.

— A força que atrai o homem e a mulher é a mais po­derosa sobre a terra. Antes de fazer os votos, você precisa estar certa... Ter certeza de que consegue resistir.

— Claro que consigo. — Mas por quanto tempo? Dominica olhou para o teto e desejou o conforto de um céu repleto da luz de Deus. — Você já foi tentada?

— Cada um de nós enfrenta tentações.

Claro, faz parte do plano de Deus. A Irmã tinha sido tentada e resistiu. O mesmo aconteceu com Jesus no deserto. Dominica se virou e apoiou os cotovelos na cama, tentando ler o rosto da Irmã no escuro.

— Como a reconheceu?

— Você vai desejá-lo mais do que a comida, a bebi­da ou a própria vida. — As palavras soavam como uma maldição. — Mais do que a sua alma imortal.

A Irmã estava errada, pensou Dominica, fechando os olhos para a oração da noite. Também resistiria, como ela. Provaria a Deus, através de seus testes, que era forte e merecedora.

Mande as tentações se for preciso, rezou ela, e a von­tade para resistir.

Mas, em vez disso, Deus lhe enviou uma noite de sonhos irresistíveis.

 

Garren estava de pé entre dois caminhos na manhã seguinte, a cabeça inclinada, sentindo-se como Moisés, pronto para conduzir seu rebanho pelo deserto. Miseri­cordiosamente, as nuvens faziam uma barreira para o sol, mas cada passo ecoava na cabeça dele, que latejava do excesso de cerveja da véspera.

Queria esquecer que arruinaria a vida dela, que era provável que William já estivesse morto, que precisava fazer uma escolha hoje.

A menos de uma hora a oeste de Exeter. À sua es­querda, o caminho confortável e muito usado em direção ao mar. A sua direita, o caminho mais curto pelo pântano que ficava a um dia de distância.

— Sempre fiz o caminho ao sul — disse a Irmã.

— Pegue o pântano — disse Simon, escavando o chão com o pé, inquieto como Roucoud. — Não tenho medo.

— Não é uma boa idéia — avisou a viúva. — No caminho para Santiago, ficamos perdidos nos Pirineus durante semanas.

Dominica ficou em silêncio.

Garren olhou na direção do pântano para ver as ro­chas retorcidas dos espíritos que coroavam o topo das montanhas. Os antigos deuses ainda se escondem lá. Que diferença faria? Eles não eram diferentes do novo. Deveria ele arriscar a segurança de todos? Wílliam estaria morto do mesmo jeito.

Mas tinha feito uma promessa. Entregar uma mensa­gem e levar de volta uma pluma. E talvez, só talvez, se essa Larina pudesse controlar Deus, se houvesse alguma chance de recuperar William...

— Carpe diem — disse Dominica.

Se não pudesse dar a vida a William, pelo menos po­deria proporcionar-lhe uma morte em paz.

— Por aqui. — Garren sinalizou para a direita.

 

Deus não tinha senso de direção, concluiu Garren no dia seguinte, quando o sol frio pairou no céu. Moisés errou pelo deserto durante quarenta anos. Quanto tem­po Ele os faria errar naquele pantanal?

Desde o nascer do sol, eles subiam cada passo sobre a pedra acolchoada pela turfa, dura como a primeira pe­dra da criação. Pedras altas e retorcidas surgiam da tur­fa esponjosa, projetadas para cima, como se fossem fu­maça sólida vindo em giros do fundo do inferno.

O vento oeste trazia a umidade do mar distante e co­bria o rosto de Garren. Inocente caçava cada barulho. Seu latido, o som das patas de Roucoud e as advertên­cias horríveis da viúva sobre um desastre eram os úni­cos sons familiares numa paisagem desconhecida.

— O que está pensando? — perguntou Garren a Do­minica, que estava à sua esquerda.

— Parece o topo do mundo — disse Dominica, os olhos arregalados como que para memorizar a vista.

Tão rápido quanto ele virou a cabeça, a neblina apa­gou o horizonte. A nuvem úmida desceu na direção do grupo, perseguindo-os tão rápido quanto a praga da es­curidão no Egito, e os cercou e envolveu como a lã den­sa da ovelha. Encoberto pela neblina, o sol parecia pá­lido como a lua. Não conseguiam mais ver o sol.

— Dêem-se as mãos! — gritou Garren. A névoa obstruiu seus olhos, ouvidos, boca, e absorveu suas palavras.

— Onde está a Irmã? — perguntou Dominica com a voz tremida de medo. — Não a vejo.

Ele tateou à sua esquerda na direção da voz, até que encontrou a cabeça de Dominica. Apalpou-a, deslizou a mão até o ombro, o braço e, finalmente, entrelaçou-a na mão dela, aliviado pelo consolo desse contato.

As rédeas de Roucoud esfolavam sua mão direita. O cavalo, apesar de treinado para batalha, gemia e tenta­va afastar-se de um inimigo que não conseguia ver. Garren afagou seu pescoço, depois falou com a Irmã no seu dorso.

— Não se preocupe, Irmã. Tenho as rédeas. — Um latido os envolveu.

— Inocente, venha. — Dominica soltou os dedos, como que para correr atrás do latido. — Onde ele está?

Garren a segurou de volta.

— Nica, não pode procurá-lo agora. Não se solte, ou se perderá como ele. Vai nos achar; sabe como.

Garren esperava não estar mentindo.

A neblina baixou sobre eles como se os velhos deu­ses tivessem enviado sua ira por invadirem o pântano.

— Ouçam, todos vocês! Vamos todos nos dar as mãos. Eu vou apertar a mão que estou segurando, e a pessoa seguinte fará o mesmo, e assim por diante. Quando sentir, fale seu nome alto. — Ele tateou os flancos de Roucoud. — Irmã?

— Sim.

— Garren — gritou ele, confiante, depois agarrou a mão de Dominica, fria, mas segura na dele.

— Dominica.

Gillian.

— Jackin.

E assim continuou, até Ralf resmungar seu nome, fraco, no fim da fila.

— Agora o que vamos fazer? — perguntou Gillian.

— Vamos ficar aqui até ela se dissipar.

— E apodrecer? Devíamos voltar.

— Quando fiquei perdida nos Pirineus...

— Voltar como viemos. Pegar o caminho do sul. De­víamos ter feito isso desde o começo.

— É loucura. Já estamos andando há horas. Nunca acharemos o caminho de volta. Vamos continuar.

— Como podemos continuar? — perguntou Domi­nica, os dedos agarrados nos dele. — Nem sequer con­seguimos enxergar.

Deus nos guiará, ela dissera. Ele resmungou para o Todo-Poderoso com raiva por desapontá-la.

— Vamos continuar — disse ele. — Juntos. O que quer que aconteça, não soltem as mãos.

Inúmeras vozes protestaram. Ele deu um passo e fez força com os ombros para puxar a fila que não se movia, como o boi que puxa o peso morto de um arado.

Dominica caminhava ao seu lado.

Gillian deve tê-la seguido, pois a tensão aliviou. Mãos unidas, a fila atravessava o pântano vagueando como uma cobra esquisita que se move de lado. Eles arrastavam os pés, temendo tropeçar em alguma pedra invisível ou cair em um buraco escondido.

Não vejo nenhum Deus ao meu lado. Cego e surdo da neblina, Garren não via nada. Não fosse pela mão de Dominica, quente, teria se sentido sozinho.

Sem ver e ouvir, Garren teve suas próprias visões. Um cão demoníaco uivou. Um espírito ganiu. Uma donzela de vestido branco flutuou diante dele. O hálito frio de um fantasma gelou sua nuca. Garren riu com desdém. Não acreditava mais em fantasmas do que em Deus. Apesar de que, aqui, era possível acreditar em ambos. A cada passo, dizia a si mesmo que eles não eram reais. Só o chão sob seus pés, as rédeas de couro e a mão de Dominica eram reais. O resto, os delírios de sua mente, deviam ser ignorados.

Ele não sabia quanto tempo tinham caminhado, ou que distância, mas continuou andando, não porque ti­nha fé, mas porque não tinha outra coisa a fazer.

No fim da fila, alguém tropeçou.

— Isto é loucura — falou Ralf. — Vou voltar.

— Não, espere — falou Garren, mas sentiu o vazio deixado por ele na corrente humana. A névoa engolira Ralf. Era um homem que não o oprimia com o título de Salvador. A perda o afligia como se fosse seu irmão, mas não podia arriscar o resto por uma busca inútil.

— Irmã, conduza-nos numa música — pediu ele. Montada no cavalo, sua voz límpida o envolveu, mais alto do que os gritos dos espíritos.

 

"A fé lhe dá asas para voar como Larina

Voar como Larina, voar como Larina;

A fé lhe dá asas para voar como Larina

Para os braços do Senhor."

 

Encheu o peito e soltou a garganta, e as notas saíram de sua boca e entraram na névoa. Garren cantou pela alegria de estarem vivos, desafiando os deuses antigos ou fantasmas novos a matá-lo. Se o fizessem, morreria cantando, loucamente, selvagemente, claramente.

Os irmãos Miller uniram-se ao coro com vozes an­siosas. Simon cantava rápido para que todos soubessem as palavras. Gillian se fazia ouvir alto e claro. A viúva estava uma batida atrasava.

O canto desafinado de Dominica maltratava o ouvi­do esquerdo de Garren. Uma pancada suave e um grito no meio da fila interrompeu a música.

— O que está acontecendo? Estão todos bem?

Através da neblina, ele viu uma pedra grande, úmi­da, fria, dura, quase tão alta quanto Nica, que se proje­tava do chão. Jackin tinha ido de encontro a ela.

— Está ferido?

— Não. — Jackin tremia. — O que acha que é?

— Apenas uma pedra — disse ele. — Talvez um marco de sinalização.

— Aqui há um outro — gritou Simon.

Do outro lado, mais pedras formavam um círculo.

— Talvez seja um aviso — disse Jackin.

— Os peregrinos não têm nada a temer — disse Do­minica, mas sua voz era trêmula.

— Ouvi falar deste lugar — disse a Irmã com voz suave. — Dizem que as donzelas que dançavam aqui em um círculo no sabá se transformavam em pedras.

Um medo palpável correu pelas mãos unidas. Preci­sava evitar que o medo os empurrasse para o nevoeiro.

— Deus nos protegerá — bradou ele para o nevoeiro, uma mentira em que queria acreditar. Revele-se, droga, ele desafiou o Deus que não tinha protegido seus avós, seus pais e William. O latido de um cão os cercou.

— Inocente, onde está? Venha! — gritou Dominica.

Pela primeira vez, o som tinha direção. Desesperan­çado de tudo mais, Garren foi aos tropeços atrás do som, levando os outros consigo.

Enquanto caminhavam, a neblina se dissipou, reve­lando o solo pela primeira vez em horas. Por toda a fila ouviu-se uma expressão de alívio.

Garren viu o muro baixo a tempo de parar. Era curvo em ambas as direções, da altura da cintura, alto o bas­tante para conter o gado em seu interior, porém não evi­taria a entrada de soldados. Mas ali não havia nada que valesse a pena arriscar a vida.

Até que ouviu o latido feliz de Inocente vir por cima do muro. Soltou a mão de Dominica para apalpar o topo do muro, à procura de uma abertura.

Encontrou-a e atravessou para o outro lado do muro.

Dentro, corria um rio. Viu, diante de si, espalhadas, umas cabanas pequenas, redondas e sem teto. Uma grande pilha de cascalho queimado era indício de um fogo há muito apagado. Um lugar para descansarem.

— Vamos passar a noite aqui.

Havia alguns galhos enterrados no círculo queima­do. Um mistério, pois ele não tinha visto nenhuma ár­vore desde o meio do dia. Acendeu uma centelha com sua pederneira. Os galhos chamejaram produzindo ca­lor e luz para afastar os espíritos. Pegaram turfa no pân­tano e jogaram no fogo, até que uma fumaça tão densa como o nevoeiro se espalhou no céu escuro, agora miraculosamente límpido.

Observando o fogo, Dominica deixou os olhos em­baçarem. Inocente, um herói malcheiroso, deitou-se aos seus pés. O ar puro e ralo entorpecia o interior de seu peito.

Garren estava sentado bem atrás dela, como uma proteção para suas costas, fora de alcance. Ela beijou a mão direita, a mesma que tinha apertado a dele o dia inteiro. Privada do toque dele, ela se sentia vazia.

Mais uma vez, com a ajuda de Deus, Garren os sal­vara. Desta vez, por culpa sua. Tinha insistido para atravessarem o pântano, e agora estavam realmente perdidos. Por que cismara que um dia faria diferença? Garren estava certo. Talvez o Conde já estivesse morto pelas mãos do irmão, e o pergaminho trouxesse apenas a palavra de um defunto.

— É o meu dia de sorte! Deus nos salvou da névoa demoníaca, e agora isto!

Dominica tremeu. Em algum lugar, Ralf estava só.

— Jogue de novo — disse o irmão Miller mais ve­lho. — Tive tanta sorte hoje quanto você.

— Hoje, Deus velou por nós — disse a Irmã Marian, em uma voz alta para ser ouvida acima dos dados. — Talvez este seja um bom momento para contar a histó­ria da Abençoada Larina, para nos lembrarmos do por­quê de estarmos fazendo esta jornada. Enquanto ouvi­rem, rezem por Ralf.

Os jogadores, contrariados, silenciaram como crian­ças prontas para ouvir histórias na hora de dormir. O médico acordou a viúva para que também não perdesse a narrativa.

Dominica sabia a história de cor. Nunca se cansava de ouvir a Irmã contá-la. Algum dia a escreveria.

— Larina acreditava em Deus — começou a Irmã — e tinha fé que Ele a protegeria. Um dia, enquanto leva­va alimento para uma família pobre na floresta, foi ata­cada por um bando de javalis e começou a correr.

As palavras eram as mesmas que sempre ouvira, mas esta noite soavam diferente. Se Deus queria salvar Larina, por que não deixou que ela simplesmente do­masse os javalis? Os santos faziam isso a todo instante. Santo Ambrósio prendeu um enxame de abelhas dentro da boca quando ainda era um bebê. São Patrício domi­nou as cobras para sair da Irlanda. Devia ser uma coisa simples para Deus arranjar.

— Ela correu o mais rápido que pôde — continuou a Irmã, em um ritmo cantado que tornava a noite um pou­co menos tenebrosa. — Saltando por cima de raízes e galhos. E o sol foi se pondo, e o dia foi terminando, e ela não sabia onde estava ou para onde estava indo, mas ainda corria.

— E então o que aconteceu? — perguntou Domini­ca, com um entusiasmo menor do que o usual.

— Larina saiu da floresta e irrompeu num espaço aberto. Não parava de correr, mas, à sua frente, os pe­nhascos caíam direto no mar bravio! Se continuasse correndo, cairia na espuma do mar que quebrava nas rochas abaixo. Ela estava perdida!

Os irmãos Milíer inclinaram-se para a frente.

— Mas, então, ela virou os olhos para o céu e disse para o nosso Pai Celeste: "Coloco-me nas mãos do Se­nhor." Depois, correu na direção do penhasco o mais rápido que pôde e, quando pulou, brotaram-lhe asas...

— Como um anjo! — emendou Dominica, compen­sando o seu lapso anterior.

— Como um pássaro. Ela voou do penhasco, desli­zou sobre as ondas e aterrissou segura sobre as pedras onde os javalis não podiam alcançá-la. Porque tinha fé em Deus. Ela pulou, e suas asas apareceram.

— Porque tinha fé — murmurou Dominica. Talvez sua avidez de cruzar o pântano tenha sido um orgulho teimoso em vez de fé. Na verdade, ao primeiro sinal de dificuldade, ela perdeu a fé em Garren. E em Deus.

— Deus pousou Larina em uma rocha e protegeu-a com água ao redor. Foi exatamente no local onde hoje está o santuário.

— Em uma ilha? — disse Garren surpreso.

— Uma rocha pequena, onde só cabe a cabana que guarda algumas plumas de suas asas. Pode-se ir a pé quando a maré está baixa.

— E isso acontece com que freqüência? — pergun­tou ele.

— Uma vez por dia, talvez. Do contrário, é preciso ir de barco.

Uma nuvem escondeu a lua. Os jogadores espalharam seus mantos. Jackin e Gillian escapuliram para uma das cabanas de pedra. O médico e a viúva caíram no sono. Dominica sentiu um frio na espinha. Garren se fora.

 

Garren seguiu a curva do muro de pedra até estar fora do alcance dos roncos e da luz do fogo. Depois sentou-se no chão, com a cabeça nas mãos e as costas apoiadas na pedra. O relicário e a concha de chumbo pesavam frios no seu peito. A lua ria dele, meio escon­dida, redonda como o sol que os abandonara. Deus ainda conspirava contra ele. Por um minuto ele chegara a acreditar. Aquela prece a mais, dita em mais um lugar, poderia suavizar o cora­ção de Deus para que Ele pudesse deixar William vi­ver. Por um instante, ele acreditara, e decidira atraves­sar o pântano para ganhar um dia que poderia salvar William. Este foi o resultado. Ralf tinha sumido, ou coisa pior. E o resto do grupo estava perdido.

Sua promessa a William parecia impossível. Pode-se ir a pé quando a maré está baixa. Ele segurou o reli­cário e a concha. Se, por algum milagre, conseguissem chegar ao santuário, como ele conseguiria alcançar a ilha sem ninguém ver?

Dominica o chamava de Salvador. Não era salvador de ninguém.

Dominica surgiu como se fosse um desejo dele que ela estivesse ali, uma das donzelas dançantes revividas ao luar. A lua cheia, irradiando por detrás da névoa re­manescente, iluminava seus olhos, já sem medo, mas cheios de dor.

— Não quero atrapalhar suas preces — disse. Preces, pensou ele. Quando rezara pela última vez?

No campo de batalha. Por William.

— O que quer? — A presença dela em si o condena­va. Ele não queria pensar no que tinha prometido fazer.

Ela se ajoelhou, com as mãos entrelaçadas, ainda trazendo a suave plenitude da juventude. A vida ainda não a despojara de tudo o que ela tinha a dar.

— Preciso pedir seu perdão. Insisti que cruzasse o pântano porque queria economizar um dia de viagem. Agora, podemos ter perdido mais do que isso.

— A decisão foi minha.

— Tive a culpa do orgulho. — Ela olhou para ele desesperada. — Eu sempre acho que, se ajudar a Deus com um empurrãozinho, Ele vai fazer o que eu quero.

Só quem não viu nada da vida pode ter tamanha fé, pensou ele, mas não podia ridicularizá-la. Dominica o lembrava do tempo quando ele, também, tinha fé.

— Deus desapontou a nós dois — disse ele.

— Não, eu desapontei a Deus. O erro foi meu, não d'Ele. Combinei o pecado do orgulho à falta de fé. Eu devia saber que você nos salvaria.

— Salvar vocês? — As palavras de Garren soaram como pedras. — Fui eu quem levei a todos nós para uma neblina densa. Devia ter esperado, em vez de con­tinuar em frente sem enxergar nada.

— Fez a coisa certa. Estamos salvos agora.

— Diga isso ao Ralf.

Ele não o acompanhou.

— Nem vocês deveriam.

A concha de chumbo pesava em seu peito. Ela a al­cançou e a pressionou contra o corpo dele.

— Por que tem tão pouca fé, logo você que deveria ter muita?

— Isto não é um símbolo de fé. É um lembrete da inutilidade da fé.

— Mas você fez a peregrinação a Compostela.

— Não. Meu avô fez. — Ele fechou a mão sobre a dela e a concha; o chumbo frio contra os dedos quentes.

— E Santiago não lhe concedeu a graça?

— Eu já disse. Há mais peregrinos do que curas. — Dominica soltou a medalha e sentou com o joelho pressionando a perna de Garren.

— Conte-me a história.

É melhor ela saber agora. É melhor estar preparada para a desilusão que a aguarda no final desta jornada.

— Foi no primeiro reinado de Eduardo — começou ele. — Eu ainda não tinha nascido. Meu avô voltou para casa após lutar na Escócia, e encontrou a esposa muito doente. — Sua doce esposa, como meu avô sem­pre a chamava, lembrou Garren, triste. — O Padre fa­lou: "Faça uma peregrinação. Deus irá curá-la." Ele, então, abandonou suas posses e partiu na longa viagem para a Espanha. Levou seis meses para chegar lá, mais outros seis para voltar. Quando chegou em casa, encon­trou-a morta. Ele tinha dedicado a Deus aquele último ano que poderia ter passado com ela. — Garren balan­çou a concha na frente do nariz dela. — E tudo o que lhe sobrou foi este pedaço de chumbo.

— Mas eles estão juntos agora. No céu — disse ela.

— Céu? — Ele riu com desdém. — Nenhum céu in­visível pode consertar todos os erros desta terra.

Garren pensou em William, em seus pais e avós, e em todos os cavaleiros deixados nos campos da França. Respirar, estar vivo, admirar a perfeição redonda e cheia da lua pálida contra um céu de veludo negro pa­recia insuportavelmente encantador. Cada dia salvo da morte era um milagre. Para ser desfrutado.

Dominica fitou-o, e ele admirou-a. Queria que ela conhecesse o prazer de viver, antes que um Deus ciu­mento se apoderasse dela.

Garren segurou suas mãos, chegou-a mais perto e envolveu-a com os braços até sentir sua respiração.

— Não guarde toda a sua alegria para depois da mor­te, Nica.

— Tenho pensado sobre o que você disse. Sobre sal­var-me do que eu quero. — Dominica falou para o co­ração dele, mas ele ouviu cada palavra. — É certo que Deus enviaria você, como fez com Jesus que esteve no deserto por quarenta dias e foi tentado pelo diabo.

— Gostaria de vagar pelo pântano por quarenta dias enquanto eu a tentasse?

O pulso de Dominica parecia sair pela boca, ele a embalou nos braços, protegendo-a.

Ela se aninhou nele. Quente. Viva. Ele podia sentir seu peito subir e descer, seu coração bater.

Alguma coisa correu pelos braços dele. Pulsou nas mãos que tocavam as costas dela. Uma força vital. Um espírito. Garren se perguntou se era fruto de sua imagi­nação, mas ela também pareceu sentir algo.

— O que foi isso?

Ele virou o rosto dela para a luz da lua e afastou um fio de cabelo rebelde para trás da orelha, antes de apro­ximar a boca e murmurar.

— O espírito do pântano.

Dominica virou-se, e ele encontrou sua boca. O que quer que tenha assombrado o pântano fluiu entre eles, quente, vivo, mais real do que a pedra dura em que se apoiavam.

Os lábios de Dominica eram macios e doces e pren­deram-se aos dele. Ela cheirava a fumaça de turfa e amor-perfeito. Ele a abraçou e puxou para cima dele, servindo de almofada, protegendo-a com seu corpo do chão frio.

Ele mostraria a ela a felicidade do agora. A felicida­de que podia existir na terra. A alegria do sol e da estre­la, e de um homem e uma mulher. Ao pensar isso, ele a apertou ainda mais forte.

Perdido nela como no nevoeiro, Garren não soltou os lábios nem os braços.

Depois, ela se afastou, mas as mãos permaneceram unidas, como se os dedos dela o beijassem.

— Acho que a minha penitência vai ser pelo menos três dias de jejum.

Uma raiva intensa tomou conta dele.

— Esta pedra não foi esculpida em nenhum santo — respondeu ele, com a voz fria como o vento. — O seu Deus não está neste pântano.

— Eu estava errada. Deus não enviou você para me testar. Você veio do próprio diabo para me arruinar.

Era verdade, pensou ele, levantando-se enquanto ela se afastava. Mas ele queria outra coisa.

— Por que eu preciso ser santo ou diabo? Por que não posso ser simplesmente um homem?

Ela fez o sinal-da-cruz contra ele.

— Não vai conseguir. Minha fé é forte.

— Será? — Ele deixou a vergonha de lado. — Tem certeza que quer uma vida no convento, agora que co­nheceu o mundo? — Ele deslizou as mãos subindo pe­los braços dela e emaranhou o dedo nos seus cabelos. — Agora que o sentiu?

Dominica queria afastar tudo o que tinha sentido.

— Eu acreditei em você. Eu acreditei em você. — Tomado pela culpa e se abominando, ele a deixou ir.

— Não coloque toda a sua fé nos outros, Dominica. No fim, só terá a si mesma.

— E a Deus. Eu terei Deus.

— Não. Deus é o que não terá.

— Ele estava aqui o tempo todo. Mesmo quando eu não acreditei. Ele nos trouxe aqui. — Ela não permitia dúvida, como se qualquer dúvida fosse destruí-la.

— Foi um cão que achou este lugar — riu ele com desdém. — Não foi Deus.

Ela se acalmou, como se as palavras dele tivessem aberto uma janela e deixado a certeza voltar. Fitou-o com pena.

— Você só reconhece Deus quando Ele aparece como uma sarça ardente?

Garren abriu a boca para zombar dela. Foi por sorte que eles encontraram este antigo abrigo e a madeira para o fogo. Nada foi conseqüência de sua fala com Deus que, aliás, sequer podia ser chamada de prece. Nada. Apesar de toda a evidência, contudo, a fé de Do­minica não permitia dúvidas.

Essa idéia o paralisou. Apesar das constatações, será que ele duvidava da sua própria descrença?

Ele olhou para o fogo que se extinguia.

— Amanhã eles pedirão que você os guie novamen­te — disse ela. — O que vai responder?

— Só Deus sabe.

— Sim — disse ela, ao sair. — Ele sabe.

Manuseando a velha concha de chumbo no seu pes­coço, ele não a viu afastar-se. Mas, e se a concha fosse mesmo alguma coisa mais?

Ele a tirou do pescoço e a amarrou na ponta do cajado.

 

A aurora surgiu diante dos olhos de Dominica em rosa, dourado, laranja e azul, como se o Senhor tivesse dito "Que seja feita a luz" pela primeira vez. Ela se espalhava até o limite mais distante da terra árida já não oculta pela neblina, do chão sem rastros.

Dominica desenrolou seu pergaminho. Depois, fez uma ponta nova, afiada, na pena e mergulhou-a no tinteiro de chifre, Dominica escrevia lentamente, com linhas menores que usualmente, pois não havia uma pedra lisa em um muro que os homens construíram quan­do ainda não sabiam escrever.

Pântano. Neblina. Lua.

As palavras pareciam zombar dela. Queria escrever um guia para peregrinos. Agora estava perdida. Na noi­te anterior, com os braços de Garren envolvendo-a, sentira Deus. Ou alguma coisa mais antiga do que Deus. Vida fluindo entre eles.

O resto da noite, ela olhou para a lua cheia tocando um corpo que não parecia mais seu. Com a lembrança, sua pele vibrava e seus humores corriam de novo.

Êxtase.

Isso mesmo. Seu pecado em uma palavra. Mas não se sentia uma pecadora. As donzelas que violaram o sabá viraram pedra. E se Deus a punisse negando-lhe Seu sinal? E se ela não o quisesse mais?

Forçou a pena sobre a pedra acidentada. Quo vadis? Para onde vás?

Uma barreira formou-se atrás dela bloqueando a bri­sa. Garren. Ela soube sem precisar se virar.

— Como está esta manhã, Dominica? — Ele apoiou seu cajado no muro entre ambos. A pequena concha que estava escondida no peito, na noite anterior, agora pendia animada na ponta do cajado.

Ela se perguntou que mudanças Deus teria forjado na alma dele na noite passada.

— Estou firme na minha fé — disse ela.

Tarde demais. Ele deitou a mão grande e quadrada sobre as palavras preciosas.

— O que é isto? O que está copiando? — perguntou.

— Não estou copiando nada. Eu crio. Escrevo sobre nossa jornada. — Ela segurou a respiração aguardando a aprovação dele.

— Para que outros tenham um guia — disse ele. — E não se percam no pântano — acrescentou, rindo.

Dominica mostrou-se aliviada.

— Vou recomendar o caminho do sul — disse ela.

— Talvez seja sensato. — Os olhos dele escurece­ram, e ela pensou que ainda via a lua refletida neles. — Poucas pessoas são tão fortes para enfrentar o espírito do pântano. — Ele virou o papel para si, e seguiu com o dedo rude as linhas marcadas a faca. — Inglês?

— A maioria das palavras, sim.

— Aqui. Que palavra é esta?

— Nica — disse ela, engolindo em seco.

— Não vai orientar nenhum peregrino com isso. Por que escreveu?

Com um nó na garganta, Dominica não respondeu. Não conseguia, nem queria falar. Fitou as letras pretas até elas ficarem borradas.

Garren segurou seu rosto e forçou-a a encará-lo.

— Por que, Nica?

Sem poder acrescentar a mentira à sua lista de peca­dos, ela contou.

— Porque você me chamou assim.

— Foi tão importante? — Ela apertou os lábios e confirmou. Garren voltou-se para o pergaminho, seguindo as palavras com os dedos, pairando sobre as últimas.

— E o que escreveu sobre a noite passada, Nica?

Dominica mordeu o lábio. Ele estava próximo de­mais de saber o quanto se tornara importante. Sua boca tremia, querendo sentir a dele outra vez.

E se ela o quisesse? Garren que podia salvar todas as outras pessoas, mas que a destruiria.

Dominica livrou-se daquela mão e escondeu o per­gaminho atrás de si. Sentia-se mais forte quando ele não a tocava.

— Deus nos testa todos os dias. — O sol já brilhava forte, e as cores da aurora tinham desaparecido. Deus trouxe luz para expulsar os demônios da noite. — De­vemos resistir às tentações do diabo à luz do dia e na escuridão da noite, se queremos ser merecedores.

À luz do dia, apoiado no cotovelo, ele ainda a tenta­va. Um aro verde mais escuro circundava seus olhos. — Ainda sou o diabo ou voltei a ser um santo? Dominica já não sabia. Só sabia que sua pele, seu sangue, sua própria alma ficavam mais vivos ao lado dele. Deus tenha piedade de uma pobre pecadora. Orando pela proteção de Deus, ela estendeu a mão e deu um piparote na concha de chumbo com o dedo, fa­zendo com que ela balançasse alegremente.

— Seja você diabo ou santo, é instrumento de Deus.

Garren afastou com força o cajado, fazendo a con­cha de Santiago girar furiosamente no cordão de couro.

— Quantas vezes vou precisar dizer, Dominica? Deus não atua através de mim.

Era mais fácil enfrentar sua raiva do que seu toque.

— E o diabo?

Surpreso, uma expressão de culpa, e de outra coisa que ela não pôde identificar, dominou seu rosto. Abriu e fechou a boca, mas não pronunciou nenhuma palavra.

Ele não nega isso. Ela sabia que deveria sentir medo. Mas seu coração sofria com a dor que via nele.

— Não se preocupe. Pagarei a penitência pela noite passada. Três dias de jejum devem bastar.

Palavras tolas.

— Eu a proíbo de jejuar. Não vou deixá-la desmaiar de fome.

— Deus me manterá forte.

— Deus precisa de um pouco de ajuda — disse ele, inflexível. — Já quebrou o jejum esta manhã?

— Não estou com fome — respondeu ela.

— Coma. — Jogou um biscoito para ela.

— Não! — Ela se atrapalhou ao pegar o biscoito, sem querer que ele caísse no chão, e acabou por deixar cair o pergaminho e a pena. A pena rolou descontrolada para cima da folha e espalhou tinta como uma aranha quando arma o bote. — Olha o que você fez. Aqui, pe­gue-o. — Ela jogou o biscoito de volta, mas ele já tinha virado as costas.

 

— Socorro! Ajudem-me!

O grito veio do lado de fora do muro. No meio do urzal, um emaranhado de cabelos brancos mexia-se acima dos arbustos. Ralf.

— Socorro — gritou ele, depois caiu.

Garren pulou por cima do muro e correu para ele, sem precisar ouvir uma segunda vez. Enlaçando o bra­ço esquerdo de Ralf em volta de seu pescoço, Garren arrastou-o para o acampamento. O outro braço de Ralf movia-se loucamente para cima, para baixo, para a es­querda e para a direita. Um enorme sinal-da-cruz para afastar um grande mal.

Dominica jogou suas coisas dentro do saco e correu de volta para o fogo extinto.

Garren deixou Ralf, soluçando, ao lado da fumaça que ainda contaminava o ar da manhã. Seus olhos aver­melhados, descontrolados, não viam ninguém, mas olhavam para um mundo que eles não conseguiam ver.

— Você está bem, Ralf? — disse a Irmã.

Os outros juntaram-se ao redor, mas a uma certa dis­tância, como se ele fosse um fantasma.

Garren balançou a mão na frente dos olhos vagos de Ralf.

— Sabe quem nós somos?

— Passei a noite sozinho com Deus no pântano.

Dominica estremeceu perante aquele olhar vazio.

Será que ele esteve sozinho com Deus, ou com os anti­gos deuses?

— E Ele me devolveu a minha alma.

— Deus é piedoso — disse a Irmã. Seus braços o envolviam e o embalavam como se fosse uma criança.

Inocente pulou no peito de Ralf, lambendo as lágri­mas de seu rosto. Dominica o resgatou. Ralf nunca ti­nha acariciado Inocente, mas agora o fazia, acariciando sua cabeça com afagos longos e estranhos.

Os olhos de Ralf clarearam aos poucos, como se ele estivesse acordando de sonhos. Esticou a mão para to­car o rosto da Irmã e o braço de Garren.

— Vocês são reais? Eu estou aqui?

— Está seguro. Conte-nos o que aconteceu — disse Garren.

— Quando me separei de vocês, não havia nada além do nevoeiro. Nada para ver, nem para ouvir. Eu estava só. — Ralf falava com uma voz vazia como a morte. — Depois vi formas, ouvi gritos, e entendi que eram as pobres almas do inferno. Corpos rasgados pe­las garras do diabo. Queimando. Gritando. Para sem­pre. Condenados por toda a eternidade. — Lágrimas rolavam pelos vincos que contornavam seu nariz torto. — Deus me mostrou. Eu seria aquilo. Era para lá que eu estava indo.

A terra fria entorpecia os pés de Dominica. Seu peito ficou apertado ao observar o esforço dele para respirar. Esse não era o Deus cuja voz calma e suave guiava seu coração. Mas Ralf sabia o que tinha visto. Era real.

— E eu rezei — proclamou Ralf—Eu disse: "Deus, diga-me o que fazer." E Ele falou para eu me arrepen­der. Para me arrepender sinceramente. — Ralf segurou a cabeça. — Sabe, Irmã, eu vim porque me disseram para vir, mas estava aqui só com o meu corpo. Deus me contou que isso não era o bastante.

— Não, meu filho. Deus exige arrependimento ver­dadeiro do coração.

— Sei disso, agora. Ajoelhei-me e disse a Ele que lamentava ter batido na minha mulher. Que eu lamen­tava ter esmagado a mão dela. Que eu nunca mais dei­xaria a bebida tomar conta de mim. E Ele me perdoou. — Pela primeira vez, a Irmã percebeu que os olhos de êxtase de Ralf eram azuis. — Ele me perdoou, e me trouxe de volta a vocês.

— Como soube que Ele o perdoou? — perguntou Dominica. Era esse o mesmo Deus que ela conhecia? — Não havia nenhum padre para ouvir sua confissão. — Um sorriso suave abençoou o rosto machucado de Ralf.

— Eu senti uma paz tomar conta de mim. Dos meus ossos. — Depois, os olhos bem abertos, ele olhou para Garren, agarrando sua manga. — E eu ouvi Ele dizer "Siga O Salvador. Ele o conduzirá para a segurança."

Garren tentou arrancar os dedos de seu braço.

— Ele quis dizer Nosso Senhor Jesus, claro. — Por cima da cabeça de Ralf, olhou para a Irmã pedindo ajuda.

— Claro — disse a Irmã. — Nosso Senhor Jesus Cristo.

Tarde demais. Todos, pasmos, fitavam Garren. Ralf desviou os olhos da Irmã para Garren, balan­çando a cabeça como uma criança teimosa.

— Não, não, Ele quis dizer você. — Dominica fez o sinal-da-cruz, e implorou a Deus o perdão por suas dúvidas. Devia ouvir e seguir a voz in­terior que nunca a desapontara.

Tinha prometido a Deus esta peregrinação. Não de­via hesitar ou duvidar. Conhecia o plano d'Ele para a sua vida, e, quando estava no caminho certo, sentia em seus ossos a mesma paz que Ralf sentiu. Garren era parte daquele plano, se pelo menos ela soubesse qual parte. Deus lhe mostraria. Se pelo menos ela tivesse fé.

 

Ao meio-dia, Dominica já lamentava não ter comido o biscoito.

Deus mandou um dia nublado depois daquele ama­nhecer. Lavada pelo nevoeiro, a terra expôs-se diante deles. Para todos os lados, estacas de pedra retorcida, com formas estranhas como letras estrangeiras, pare­ciam observá-los de cima. Esta manhã, ela viu que eram postes de sinalização que indicavam o caminho para algum lugar, mas não sabia qual.

Mesmo sem encontrarem nenhuma estrada, todos sentiam como se Deus tivesse abençoado a jornada mais uma vez. Inocente corria investigando cada baru­lho na vegetação rasteira. Pelo menos, ela achava que ele não se perderia.

Quando o sol estava a pino, pararam para descansar. Inocente aproximou-se dela, agitando o rabo orgulho­so, e deixou uma presa aos seus pés: um bicho peludo, de orelha comprida, mole e ensangüentado.

— Coelho ensopado para o jantar! — disse Garren. — Bom menino! É mesmo um cão caçador.

— Vá pegar o caldeirão, querida — disse a viúva. — Gillian e eu vamos acender o fogo. Acho que tenho um pouco de tomilho seco guardado para uma ocasião es­pecial. — Ela abriu a primeira das muitas sacolas que pendiam de seu cinturão largo, enquanto Gillian segu­rou o coelho de pêlo marrom manchado de sangue e pegou uma faca. — Acorde, moça. Pegue o caldeirão no cavalo e vá buscar um pouco d'água.

Dominica tinha prometido a Deus três dias de jejum. Este era mais um de Seus testes.

Garren tirou o caldeirão e três cebolas do cavalo, e levou Dominica para um pequeno riacho abundante que corria na direção oeste. Às vezes, ela achava que o pântano se resumia a pedra e água, disfarçado pela turfa verde.

— Ontem foi o nevoeiro. Quem sabe o que vai ser amanhã? — comentou ele. — Aproveitemos o ensopa­do de hoje.

— Eu já disse, estou de jejum.

— Se Deus usou Inocente para nos levar ao abrigo na noite passada, Ele também deve querer que coma­mos a presa de hoje.

Dominica quase podia sentir o cheiro do ensopado cozinhando, as cebolas, a carne. O estômago roncou.

— Pare de me tentar.

— O orgulho é um pecado, Nica.

— Só quero que me dê as cebolas. — Ela se virou, e a água do caldeirão entornou nos seus pés no caminho de volta para o fogo. Ela provaria sua devoção. Cozi­nharia o ensopado para os outros comerem.

— Casamento — estava dizendo a viúva, quando ela chegou — só funciona quando é a mulher quem manda.

— O homem domina tudo. — Gillian não concordou. Dominica não estava interessada em ouvir conversa sobre homens e mulheres. Não tinha nenhum significa­do para a sua vida, pensou ela. Deixou cair o caldeirão no meio do fogo, salpicando água no carvão.

— Cuidado! — disse a viúva. — Não o afogue!

— Sinto muito.

E o discurso para Gillian continuou.

— Eu sei. Já tive cinco maridos. A esposa de Ralf podia ter me perguntado. Você deixa eles pensarem que tomam as decisões, mas na verdade... — Ela sacu­diu a cabeça. — Não fazem nada sem nós.

Dominica cortava a cebola com tanta força que os pedaços voavam para o fogo. Ela os tirava dali, e chu­pava seus dedos com sabor de cebola e cobertos de cin­za, chamuscados pelo carvão.

— Casamento — disse Dominica, já um pouco irri­tada — é como o amor do Cristo por sua Igreja.

A viúva deu uma gargalhada.

— Não acredite em tudo o que contam a você, queri­da. — Ela piscou para Gillian. — A não ser, claro, se acreditar que vai realmente ser a esposa de Cristo.

A viúva deu um berro entusiasmado, e Gillian corou. A imagem que passou na mente de Dominica era tão sacrílega que ela teve vergonha de pedir perdão a Deus.

— A união é mística — disse ela. Mística. O calor subia por seu pescoço e entrava por suas orelhas. Como se sentira com Garren.

— Sinto muito, querida. Tem muita coisa que você não sabe. — Ela acenou as mãos na frente de Domini­ca. — Vou parar agora, antes que eu blasfeme alto de­mais e perturbe a adorável Irmã ali. — Fez o sinal-da-cruz e indicou com a cabeça a Irmã que ouvia, pacien­temente, Ralf repetir seu encontro com Deus. — Lá está uma que a Igreja tem sorte em ter. É uma pena que não sejam todos como ela.

Isso pareceu uma grande blasfêmia. A fome cor­roendo seu estômago, e a culpa dilacerando sua alma, Dominica agarrou-se às antigas certezas.

— Não se pode duvidar de Deus e fazer peregrinação.

— Sabe o que eu realmente quero de Deus, querida? — Ela acariciou o rosto de Dominica. Seus dedos ainda tinham sobras de tomilho seco, e o cheiro forte inundou Dominica. — Ah, sim, seria bom ouvir de novo, mas já aprendi a viver sem ouvir. Só não aprendi a viver sem marido. É isto que eu quero. Um novo marido. E até agora, Deus está indo bem — concluiu, olhando para o médico.

Um marido, pensou Dominica. Que pedido despre­zível.

— Mas Deus exige fé verdadeira, como a de Latina!

— Olhe para Ralf — disse a viúva. — Às vezes, a fé vem depois do milagre.

Quando os peregrinos se enfileiraram para serem servidos, Jackin olhou para oeste com a prática de barqueiro.

— Nuvens novas se aproximam.

Ela seguiu o olhar. Até onde conseguiriam caminhar antes da chuva?

 

Os peregrinos estavam muito mais à frente do que Richard imaginara. Dois dias de cavalgada intensa, e ainda não tinha visto nenhum vestígio da poeira deles. Não sabia exatamente o que faria quando os encontras­se. Só sabia que Garren não podia continuar vivo para entregar a mensagem.

E a garota? Ele balançou a cabeça. Ela precisaria morrer. Mas não sem antes possuí-la.

A simples idéia provocou nele uma gargalhada e o endurecimento do membro entre suas pernas. Talvez, ele fosse o filho mais parecido com o pai. O pai que o afastara desde aquela noite, há tantos anos.

Richard, um escudeiro recém-investido, de volta ao lar, cheio de orgulho e arrogância, ouviu passos naque­la noite, passos furtivos. Empunhou a pesada espada no braço trêmulo de menino de doze anos que era, encheu o peito e dirigiu-se para o corredor.

— Quem está aí?

Seu pai, grande como um leão, estava paralisado à luz da vela. A malha de metal arreada. A túnica mal-arrumada nos ombros. Os cabelos despenteados. Parecia ter chegado de um longo duelo, com a pele cheirando a vinho da Gasconha.

Mas em vez de raiva seus olhos transmitiam culpa.

— O que está fazendo, menino? Por que não está na cama como seu irmão?

Por que não é como seu irmão? A pergunta era sem­pre essa. Seu irmão William. Filho da preciosa primei­ra esposa.

Richard abaixou a espada.

— Ouvi um barulho. Achei que deveria investigar.

— Não sabe fazer coisa melhor do que meter o nariz onde não é chamado? — Com uma mão, seu pai segu­rou as calças e com a outra, arrumou os cabelos.

Os olhos de Richard se arregalaram. Ele viu o longo fio de cabelo cor de mel no ombro do pai e a mancha úmida entre suas pernas. As palavras escaparam.

— Você estava com uma mulher.

— Segure a língua, menino.

O Conde olhou para a porta do quarto que se abria.

A mãe de Richard estava no vão da porta, os cabelos castanhos caindo sobre os ombros. As maças do rosto cor de salgueiro, e o queixo estreito estavam levemente inclinados, depois ela se empinou, fitando o filho e o marido.

— Está tudo bem, Richard. Ele só estava praticando sua escrita. Venha para a cama, querido.

O Conde se deixou ser levado para o quarto. Quando passou por Richard, ele sentiu o cheiro de mulher.

— Mas, mãe, ele...

— Boa noite, meu filho — disse ela.

Então, pensou, essa era a dignidade do pai. Respeitar a mãe de William e desonrar a sua. Ele podia entender essa desonra.

Seu pai mandou-o embora no dia seguinte. Nunca mais falou com ele.

Agora, Richard tinha feito William pagar pelos pe­cados do pai. William, o filho que tinha os cabelos e os olhos do pai. Em breve, seria o dono de tudo.

O sol de pleno verão tinha se transformado em tem­poral quando Richard chegou em Exeter. Faixas e ban­deiras molhadas caíam sobre plataformas de madeira vazias. Ele fez seu caminho através delas, determinado a achar uma cama de verdade. Chega de sofrer como peregrino.

Quando encontrou o Inn of the Hart, chovia a cân­taros.

Escorria água pelo nariz, dedos, pernas, e pelo caja­do de Richard.

— Olá, quero uma cama seca e vinho quente. — Fez uma pausa. — E uma informação.

— Tenho muitas camas hoje. — A medida da cintu­ra do hospedeiro denunciava seu sucesso, e os olhos mostravam sua avareza. — Que informação deseja? E quanto vale para o senhor?

— Nada se não a tiver. — Richard jogou uma moeda de bronze de pouco valor para o hospedeiro. — Estou procurando um grupo de peregrinos. O líder é um cava­leiro de ombros largos que tem um bom cavalo.

— É peregrino também?

— Não vê a cruz? — Richard bateu no peito enchar­cado. — Eu deveria estar com eles mas me atrasei.

— Peregrinos? Ah, minha memória...

Richard pegou uma moeda de dois pence, bem mais valiosa, e jogou na mesa.

— Agora fale, maldito.

— Peregrinos? Ah, eu acho que estiveram aqui há umas duas ou três noites.

— Quantas, afinal, duas ou três? — Ele segurou a garganta do homem e a apertou.

O medo escancarou os olhos do homem.

— Eu me lembro. Foi na noite de Corpus Christi. — Droga. Ele liberou o homem e esfregou as mãos na túnica. Ainda dois dias de vantagem. Precisaria conse­guir um cavalo novo para manter o mesmo passo.

— Havia uma moça com eles? Alta, olhos azuis?

— Ah, sim. Lembro-me dela.

Richard contraiu o rosto diante do sorriso na voz do homem. Já teria Garren seduzido a moça?

— Ela dividiu a cama com o líder?

— Essa informação vale um xelim.

— Ah, então ela dividiu — disse Richard.

A boca do hospedeiro curvou-se num sorriso que di­zia "não esteja tão certo", e Richard entendeu que Gar­ren ainda não tinha seduzido a pequena virgem.

— Ah, não importa. Para que lado foram?

— Há dois caminhos. Um atravessa o pântano e vai até Tavistock; o outro desce pelo sul por Plymouth e sobe. O caminho de Plymouth é mais longo, porém mais seguro. Eu os avisei, mas não sei qual deles toma­ram. Estavam discutindo sobre isso quando fui dormir. A garota parecia apressada.

A garota escreveu a mensagem, pensou Richard. Mas, aparentemente, ainda não contou a Garren, ou ele estaria correndo para voltar a agir como Salvador.

— Traga-me aquele vinho e mostre-me a cama. Duas noites. Estava ganhando. Mesmo que tenham sido tolos o suficiente para atravessar o pântano, ele não precisaria fazê-lo. A chuva os retardaria.

 

Dominica acolheu com alegria a chuva que chegou. As gotas não paravam de cair em sua cabeça. O gosto de uma garfada pecaminosa do coelho e da cebola fica­ram na boca, fazendo seu estômago roncar.

— Na peregrinação para Compostela — começou a viúva — caiu um temporal na planície da Espanha. De­pois dos trovões, veio o silêncio da chuva caindo. — Ela suspirou. — Mas não foi tão forte como este.

A Irmã segurava-se em Roucoud. Dominica ouviu-a tossir por cima da trovoada. Ela precisa de um fogo e de roupas secas, pensou, irritada com Deus. Até os bons têm que ser punidos?

Garren seguia à frente, sozinho. A chuva escorria dos cachos de seu cabelo. Ele tira prazer até mesmo das mais miseráveis criações de Deus, pensou ela.

Após a refeição, reencontraram o caminho marcado. Uma ponte firme de lajes de pedra, escorregadia da chuva, levou-os ao outro lado do primeiro rio. Não ti­nha corrimão, e Inocente, farejando em busca de algum cheiro que não tivesse sido levado pela chuva, quase escorregou pelo lado.

Um sinalizador de pedra, em forma de cruz, pendia próximo à estrada. Eles se juntaram em volta dele.

— Diz Tavistock — disse Dominica, feliz por não ser uma pedra deixada pelos espíritos antigos. — Preci­samos pegar o caminho da direita para chegar ao mos­teiro.

Os dentes da Irmã batiam.

— Eu nunca passei por aqui, mas se conseguirmos atravessar este rio, talvez possamos encontrar lá camas secas para esta noite.

Garren passou os dedos pelos cabelos encharcados.

— Irmã, estou feliz por seu Deus não nos exigir dor­mir na chuva, nem caminhar nela. Vou levar cada um de vocês até o outro lado no lombo de Roucoud.

— Leve a Irmã primeiro — sussurrou Dominica. Garren assentiu. Montou no cavalo atrás da Irmã, seu corpo engolindo o dela. No primeiro passo, Rou­coud quase caiu no musgo escorregadio. Dominica co­briu a boca com a mão para abafar um grito. Garren acariciou os flancos do cavalo e o acalmou, mas Domi­nica só conseguiu respirar quando avistou as patas do cavalo fora d'água do outro lado.

Garren voltou muitas vezes para pegar Ralf , o médico, a viúva, e Jackin e Gillian, que discutiram durante cinco minutos porque queriam atravessar juntos. Finalmente, só restavam Dominica, Simon e os irmãos Miller.

— Sua vez — disse Garren.

Ela sofria de ver o cansaço e a tensão que pesavam sobre os ombros de Garren. Protegeu o rolo de pergaminho embrulhado no oleado, e pegou Inocente. Não deixaria de escrever sobre os rios no seu guia para os peregrinos, pensou.

Sentado na sela de Roucoud, Garren irritou-se ao ver aquilo.

— Ponha o cachorro no chão.

— Ele não consegue nadar até o outro lado.

— Não vou deixá-lo para trás, mas você não pode montar com os braços ocupados com um cachorro. E eu não posso levantá-la como se fosse um saco de trigo. Agora, dê o cão a Simon.

Ela o fez, mas sentiu-se como um saco de trigo quando ele a içou junto dele na sela. Seus braços circundavam os dela sem a gentileza da noite anterior. Por que deveria ele, afinal? Pensou ela. Acusara-o de ser o diabo.

Dominica empoleirou-se indecisa na montanha que se movia, suas pernas penduradas para a esquerda. O cavalo se mexia, e ela agarrou os braços de Garren.

— Ele é muito grande, não é?

— Nunca montou um cavalo?

— Não. O convento só tem burros.

— Ele é o melhor — disse ele, acariciando o pesco­ço grosso de Roucoud. — Este cavalo não recuou dian­te dos cavaleiros franceses. Não vai nos faltar agora.

— Deus também não vai — disse ela, sem saber ao certo se Deus queria ajudá-la ou puni-la.

— Tenho mais fé no cavalo — disse ele, implacável. Depois, virou-se para Simon. — Dê a ela o cão — or­denou.

Dominica apertou contra o peito o animal preto. O cavalo cambaleava a cada passo.

— Calma, estou segurando você — disse ele.

Ela não sabia se ele falava com ela ou com o cavalo.

A batida constante do coração de Garren misturou-se ao som da água corrente.

Roucoud cambaleou para a direita.

Ela caiu para trás e deu um grito, antes de perceber que o braço de Garren a circundava. Inocente, agitado, empurrou-a com suas pernas curtas e lançou-se para o turbilhão do rio.

— Inocente! Não!

Os olhos de Dominica se arregalaram, e ela tentou alcançá-lo. Tarde demais. O mergulho foi seguido de um latido abafado.

Sua tentativa de alcançar o cão carregou-a na dire­ção dele. Ainda tentou segurar Garren, mas perdeu todo o equilíbrio e escorregou da sela. A água corrente arrastava seus pés.

Suas últimas palavras coerentes para Deus foram para cuidar da Irmã Marian e de Garren quando ela se fosse.

 

A força da água sugou Dominica para a correnteza. De Garren, só conseguiu alcançar o manto encharcado. Segurou-o e não soltou mais. A água penetrava seus ouvidos, olhos e nariz. Sentia-se cada vez mais perto do outro mundo. E não sabia se era a sua voz, ou apenas a sua mente que grita­va por socorro.

Sufocada, engolia água e se debatia, até que se sen­tiu sendo puxada para cima.

— Calma. Eu não vou soltá-la.

O manto encharcado pesava como um sudário. Mes­mo com a cabeça acima da água, não conseguia respi­rar. Debatia-se tentando afastar a água, ansiando por ar.

— Pare! — Exclamou ele, bruscamente. — Flutue, ou não vou conseguir segurar.

Entre espirros, Dominica sentiu o braço de Garren em torno de si. Abriu os olhos e procurou flutuar como as varetas e galhos navegam na espuma.

O cavalo, treinado para batalha, ficou parado como uma rocha no meio do turbilhão das águas, esperando o comando do dono.

— Roucoud nos puxará para a margem. — O braço direito de Garren segurou-se à perna dian­teira esquerda de Roucoud, e o cavalo deu um passo, depois outro, e mais outro, puxando Garren e Domini­ca. O alívio inundou-a como a água. Segura. Fria e mo­lhada, ainda a meio caminho da margem, agarrava-se a Garren. Salva.

— Onde? — Não conseguia falar nem respirar. — Inocente?

— Nada como um pato. — Dominica olhou para a margem, e viu a Irmã com a mão no coração. Jackin corria para frente e para trás, entrava e saía da água rasa da margem, gritando algu­ma coisa que ela não conseguia ouvir. Ralf estava ajoe­lhado na lama, as mãos unidas em oração.

E a cabeça de uma orelha só de Inocente balançava-se feliz sobre a água, nadando na direção deles. Ela queria rir, mas tossiu.

— Por que me preocupo com ele?

Garren deu uma risada ao seu ouvido. O braço dele, firme, caloroso, a carregava através da correnteza, segurando-a um pouco mais apertado do que o necessá­rio. Tudo estava molhado, dentro e fora do rio, e ela não sabia em qual dos dois se sentiria mais encharcada, mas estava segura. Salva. Obrigada, Pai Celeste.

Quando o cavalo os arrastou, passo a passo, através do rio, Dominica sentiu o saco de viagem balançando nas suas costas. Não o perdera, mas estava cheio de água. O oleado não era proteção suficiente para o rio. Todas as maravilhosas palavras que tentara escrever devem ter desaparecido com a água. Lágrimas mistura­vam-se a gotas de chuva em seu rosto. Ele a apertou.

— Não é preciso chorar. Estou segurando você.

— Não é por mim — fungou ela. — Meus escritos. Estão arruinados. — Um pensamento pior tomou conta dela. — A mensagem. — Ela pressionou os dedos no peito dele, procurando-a. — Onde está?

— Amarrada à sela de Roucoud.

— Também pode estar danificada.

— As plumas! Estão encharcadas!

— Pássaros pegam chuva.

— Mas estas são sagradas!

O braço esquerdo de Garren agarrou-a mais aperta­do, ele mantendo os olhos na margem.

— Eu a salvei. Deus pode salvar Suas próprias relí­quias.

Dominica sabia que, provavelmente, era um sacrilé­gio, mas sorriu mesmo assim.

Quando Jackin e Ralf os puxaram, nos últimos cen­tímetros, para a margem, a chuva tinha reduzido. Ino­cente corria para cima e para baixo na margem, como se tudo fosse uma fantástica aventura, e todos estives­sem aproveitando a água tanto quanto ele.

Tirada do aconchego dos braços de Garren, Domini­ca foi sufocada pelas vestes pretas molhadas da Irmã, como se ainda fosse uma criança.

— Shh, shh, Deus protegeu você — disse a Irmã, de­satando a tossir.

Dominica levantou a cabeça dos ombros da Irmã para olhar para Garren. Todos os peregrinos deram um passo atrás, como se houvesse uma auréola em volta dele que os afastassem.

Montando Roucoud, Garren voltou ao rio para atra­vessar os três que faltavam.

— De fato — murmurou Ralf. — Ele é um Salvador.

Dominica estremeceu. E agora ele me salvou.

 

Os outros peregrinos se alojaram nos aposentos para hóspedes, mas a Irmã insistiu que Dominica ficasse em um dos quartos reservado para convidados importan­tes. A jovem se aqueceu no calor do fogo, bebeu o vi­nho quente e comeu. Finalmente, a Irmã deitou-a na cama e embalou-a como se ainda fosse a risonha Nica.

Dominica não sorriu à noite. Nem Inocente conse­guiu alegrá-la. Quando a Irmã levou as tigelas de volta para a cozinha, ela se aconchegou sob as cobertas, aquecida e confortável, mas sua alma estava longe. Tudo o que achava que sabia sobre o plano de Deus para a sua vida tinha ido por água abaixo.

Quando, com os dedos trêmulos, finalmente abriu seu rolo de pergaminho, não viu nenhuma palavra. Só havia um borrão de manchas pretas e riscas escuras ir­reconhecíveis. Ela bateu no pergaminho, como se pu­desse esticá-lo, mas ele quebrou e enrolou de volta em suas mãos. Cada toque destruía outra palavra. Ela jo­gou a pobre coisa no chão, sacudindo as mãos para li­vrá-las dos sonhos perdidos. Como Deus podia salvá-la, e destruir seu trabalho?

Garren tentou-a, e ela pecou, mas em vez de puni-la, Deus mandou Garren para salvá-la do rio.

Ela fechou os olhos e ouviu o eco familiar da hora de dormir dos últimos cânones do dia, cantados esta noite por vozes de monges.

Queria ouvir as freiras cantarem. Queria ir para casa. Para o convento, para a sua pena, para o conforto de saber que o dia acontece exatamente como o anterior. Para a paz. Para a certeza. Para o seu lugar. Onde cada dia ajudava a construir seu espaço no céu. Um lugar sem incertezas nem dúvidas.

A tosse da Irmã e o som dos mantos molhados inter­romperam sua prece.

Aquecida e bem alimentada, Dominica assistiu à Irmã espalhar os conteúdos encharcados sobre o banco e a cama. Está tão molhada quanto eu. Como não per­cebi? Dominica pulou da cama.

— Venha, agora. É a sua vez de se esquentar na cama.

— Estou bem. Vou unir-me aos outros. Foi você quem quase se perdeu hoje. — Ela entrelaçou os dedos nos de Dominica apertando-os, como se quisesse ter certeza de que ela ainda estava viva.

— Agora sou maior que você — disse Dominica, ti­rando a touca molhada da Irmã e pendurando-a sobre o banco ao lado do fogo. — Vai fazer o que eu mandar. Vou cuidar de você.

Ela se deixou levar até a cama e ser coberta.

— Obrigada, minha filha. Acho que estou cansada.

— Precisa manter sua força. Estamos quase chegan­do lá, não estamos?

— Mais alguns dias.

— Deus salvou a minha vida hoje.

— Sim. Eu sempre achei que Deus a trouxe para al­guma coisa especial.

— Estou pronta para chegar em casa e começar a co­piar como você.

Ela esperou a Irmã dizer que era esta a intenção de Deus. Mas viu toda a sua confusão interior refletida nos olhos da Irmã.

— É o que eu sempre quis, mas certifique-se que esse também é o plano de Deus, e não apenas o seu.

— Conte-me de novo como cheguei no convento. — Era sua história favorita antes de dormir. Como a lenda de Larina, sabia as palavras de cor.

— Era uma manhã de verão — começou a Irmã, como sempre, exceto que desta vez era ela quem estava deitada, e Dominica acomodou-se na beira do colchão estreito. — Eu ainda era uma noviça, mandada para abrir os portões para os viajantes. O sol já estava a pino quando iniciei minhas tarefas matinais. Fui até o por­tão, e lá estava uma cesta coberta com um pano.

— Como Moisés na correnteza do rio! — falou Do­minica, recitando sua parte.

— Talvez. — Vincos marcaram o rosto da Irmã.

— E qual era a cor do pano?

— Azul. Azul como os seus olhos. — Ela olhou para Dominica e sorriu. — Mas eu pensei que fosse uma cesta de maçãs.

— Maçãs — disse ela, de repente não querendo que Garren pensasse nela como uma fruta vermelha e re­donda. — E eu pareço uma maçã?

Ou mais como uma ameixa.

A Irmã riu e beliscou sua bochecha.

— Bem, você tinha bochechas coradas e redondas. Mas quando peguei a cesta, as maçãs espernearam e choraram!

— E era eu!

— Sim, era você. E eu a amei imediatamente, e disse que cuidaria de você.

— E o que a Priora disse?

— A princípio, ela não estava bem certa.

— Mas você a persuadiu?

A Irmã acariciou a testa de Dominica como fazia quando tinha febre em criança.

— Todas nós. Todas nós a amamos muito.

— Quem você acha que era a minha mãe? — Ela nunca tinha perguntado isso antes. De algum modo, hoje pareceu importante.

— Eu acho — disse a Irmã, finalmente — que ela era uma mulher jovem, tola, só, que não podia ficar com um bebê.

Uma mulher tola e sozinha que sucumbiu à tentação dos prazeres mundanos. O que aconteceu com ela, afi­nal?

— Você acha que Deus a perdoou?

— Lembre-se do que Ralf disse. É preciso o arrepen­dimento verdadeiro para conseguir o perdão de Deus.

Arrependimento verdadeiro. Ela se arrependeu ver­dadeiramente daqueles momentos que passou nos bra­ços de Garren?

Mas, quando a Irmã Marian dormiu, Dominica dei­tou-se no chão ao lado do fogo, as mãos em volta do corpo, e ficou a pensar sobre a jovem moça, sua mãe, que tinha sido tão tola.

De olhos fechados, sentiu o rio cobri-la novamente. Quase tinha morrido. Garren fora seu Salvador. Aquilo devia ser uma mensagem. Deus deve ter mandado Gar­ren por uma razão. Talvez ele tenha sido enviado para ensiná-la e não para tentá-la. Que lição Deus guardava para ela?

E quando Dominica pensou na forma como seu cor­po queimava quando estava ao lado do corpo de Gar­ren, começou a entender como aquela jovem deve ter se sentido, ter desejado alguém mais do que sua alma imortal.

 

Garren rolava no seu colchão, e fechava os olhos contra o fogo que se apagava.

Mas, quando fechava os olhos, sentia Nica escorre­gar de sua mão de novo. Sentia o batimento do seu co­ração, o suor da pele tão forte quanto a chuva e a terrível sensação de que o mundo estava fugindo do seu controle. Sentiu seus braços tentando alcançá-la.

Você é verdadeiramente o Salvador.

Como Deus deve rir.

Ele quase a perdera hoje. Esta noite, estremecia diante do que aquilo significava. Ela doía nele como uma ferida antiga. O dia não começava até que ele a visse. A noite não podia cair até ela estar deitada, segu­ra. Sentia como se fosse sua a fome dela. Seu corpo gri­tava para unir-se ao dela.

Uma presença viva fluía entre eles. O espírito do pântano, ele a avisara, como se eles pudessem tocar as almas um do outro. Claro, ele já não tinha mais alma.

Diante da morte, ela se preocupou com a mensagem de William e as plumas. Ele esqueceu de tudo, todas as suas promessas, exceto de salvá-la de seu Deus.

Dominica agarrava-se à sua fé como um escudo. Como se fosse morrer se a perdesse. Como se não ti­vesse mais nada. Afinal, o que mais ela tinha? Nenhu­ma família. Nenhum futuro, exceto aquele que pedia que Deus lhe desse. Aquele que Garren lhe roubaria.

O que acontecerá a ela depois?

Sua vida vai continuar quase como era antes.

Quase como era antes. Lavar, cuidar do jardim, uma criada sem posição social. Uma órfã aceita por tolerân­cia. Ele conhecia aquela vida. A sua fora assim, até William abrir os braços e fazer dele seu escudeiro sem lar. Por isso, tinha com William uma dívida que nenhu­ma peregrinação poderia pagar.

Ele não a arruinaria. A salvaria. Sim, salvá-la de uma vida presa a esse Deus ridículo que tentava criar justiça no outro mundo, com palavras no aqui e agora.

Não minta para si mesmo. Não se trata de salvá-la da Igreja. Nem mesmo do dinheiro. Trata-se do que você quer.

Virou de lado para afastar sua culpa. As coisas na vida aconteciam. Nenhuma justiça. Nenhum padrão. Só uma série de experiências a serem vividas. Aprovei­te o hoje. O passado é doloroso demais.

Deus não prometeu amanhãs. Não a William, cujo túmulo aceitaria as penas e o dinheiro, se ele os conse­guisse.

Certamente não a ele.

Deus já tirara dele o suficiente. Não queria gostar de mais ninguém. Apresentaria a garota às decepções da vida. Ela aprenderia a suportá-las. Ele não se apegaria a mais ninguém. Não sofreria mais perdas. Amanhã, decididamente, iria atrás dela.

 

Com uma frieza inadequada a quem pretende seduzir alguém, Garren deu uma olhada nas barracas montadas em volta do mosteiro de pedra para sondar o terreno de seu campo de batalha. O dia do mercado em Tavistock, uma selva de barracas desmontáveis cobertas de lona, parecia um local inapropriado, mas um comandante nem sempre podia escolher. Hoje, lançaria sua campa­nha para capturar Dominica.

Depois que a Irmã a levou para um quarto particular na noite anterior, não a vira mais. Agora, enchia os olhos com a maravilha de tê-la viva ao seu lado no sol da manhã.

Depois das adversidades vividas no pântano, conce­deu a todos um dia de descanso. Os outros, logo se dis­persaram para o mercado, à exceção de Ralf, que foi ajoelhar-se na capela, e da Irmã, ainda na cama com uma terrível tosse.

— Como está a tosse da Irmã esta manhã?

— O médico deu-lhe pulmonária, e eu tenho rezado para Deus. Estará melhor amanhã.

Garren duvidava disso. A Irmã estava cada dia mais fraca. Mas Dominica não queria enxergar. E ele não queria mostrar-lhe.

— Você estava certo em insistir para descansarmos — disse Dominica, novamente olhando para ele como se fosse O Salvador em vez de o diabo do pântano. — Às vezes, a vontade de Deus é muito clara para mim.

— E você? — Ele se controlou para não tocar seu rosto, só para ter certeza de que ela estava ali. — Está se sentindo bem?

Dominica não parecia ter estado tão perto da morte. Os dias de caminhada a tornaram forte como o aço. Es­tava mais alta e os ombros mais eretos do que quando saiu de Readington. Sardas de sol salpicavam seu na­riz, mas ela já não empurrava o lábio para fora e levan­tava o queixo para desafiá-lo. As lições da vida a ba­quearam. Ele tinha saudades da mulher ardente que nunca duvidava de si mesma ou de Deus.

— Ah, sim. — Dominica virou a cabeça, e ele quase não ouviu as palavras seguintes. — Mas tudo o que es­crevi se perdeu.

— Não pode começar tudo de novo?

— Eu só tinha um resto de pergaminho velho para escrever, e agora ele está todo rachado. — Ela olhou para o saco pendurado nas costas dele. — É por isso que estou tão preocupada com a mensagem que você está levando. Ela está aí?

— Não. Por quê?

— Será que foi danificada?

Ele não pensava nisso desde o dia anterior.

— Não sei. Está lacrada.

— Deixe-me ver. Posso ter uma idéia sem quebrar o lacre. — Dominica sussurrou. — Esta noite. Depois dos últimos cânones. A capela estará vazia.

Enquanto Garren observava seus lábios sussurra­rem, pensava em estar a sós com ela no escuro e quase esqueceu de considerar sua preocupação.

— Por que está tão interessada em uma carta sobre as relíquias?

— Só pensei em ajudar porque entendo disso.

— A Irmã não entende mais do que você? — Dominica empalideceu por trás das sardas.

— Não quero incomodar a Irmã com isso. — Garren estava tão envolvido com Dominica, e sua própria promessa estúpida de roubar uma pluma, que não pensava na mensagem de William há dias. O que ele terá escrito? E de que jeito, com mãos trêmulas como se tivesse paralisia?

Alguém deve ter escrito para ele.

Ele a fitou novamente, e viu um brilho no olhar que só podia ser porque ela sabia.

Nica. Nica escreveu para ele.

E o que escreveu a assusta.

— Hoje, então — disse ele, vendo-a relaxar aliviada.

E, antes que ele a deixasse ir embora esta noite, des­cobriria que mensagem era essa que ele tinha que levar, mas não podia saber o que era.

Mas, agora, era hora de cortejá-la.

— Precisa ter uma lembrança desta viagem — disse ele, enquanto passavam pelo vendedor de tecidos. — O que gostaria?

Ela acariciou uma peça de lã vermelha.

— Não tenho nenhuma moeda.

E mais pobre ainda do que eu, pensou Garren. Cada prato que comia era uma dádiva de Deus. Não é para menos que acredita que Deus vai suprir todas as suas necessidades.

— Eu tenho uma sobrando. — Valeria a pena gastar uns trocados para vê-la sorrir. Garren olhou para uma pilha de pequenos enfeites de mulher. — Um botão, talvez? — Ele pegou um, de osso de ovelha entalhado, e o segurou por cima da manga de lã cinza que ela usa­va. — Onde as mulheres usam essas coisas?

— Uma noviça não pode usar isso.

— Você ainda não é uma noviça. — E nunca será.

— Talvez alguma coisa para oferecer à Abençoada Larina.

— Quem sabe alguma coisa para você — retrucou ele numa voz áspera. Tolo. Use palavras gentis.

— Você acha que é permitido?

Novamente ela via O Salvador, em vez de Garren.

— Não só acho que é permitido, acho que é necessá­rio. Parte da razão para a peregrinação é conhecer me­lhor o mundo de Deus.

— Carpe diem?

— Exatamente.

— Está bem. — Ela riu formando uma covinha.

Garren também estava feliz por ter conseguido afas­tar aquela tristeza. Vitória conquistada, pegou uma moeda para pagar o botão, quando sentiu a mão dela, leve, em seu braço. Segurou-se para não tocá-la.

— Se devo conhecer o mundo de Deus, então é me­lhor ver tudo o que puder — disse ela. — Vou visitar cada uma das barracas.

— Cada uma? — Garren pensava em comprar o bo­tão e pronto. As barracas — quantas? — espalhadas em volta dos muros do mosteiro pareciam não ter fim: pe­les, temperos, estanho, tecidos, couro, carvão.

Ela não iria ver o carvão, obviamente.

— Peregrinos — um homem de nariz torto chamou da barraca ao lado. — Querem comprar uma lasca da Cruz Verdadeira?

Devia ser uma lasca tirada da ponta do cajado do vendedor, pensou Garren. Um dos milhares de pedaços da "Cruz Verdadeira" vendidos a peregrinos facilmen­te enganados, da Inglaterra à Terra Santa. Se juntassem todos, daria para construir uma catedral.

Mas ela já estava ao lado da relíquia no balcão.

— Posso tocar? — Garren respirou fundo e devol­veu o botão à pilha de onde tirara.

— Venha, Inocente — falou ele. — Vamos. — Dominica manuseou um tecido fino, experimentou luvas de couro, e cheirou a canela. Depois, examinou o carvão que, misturado com seiva, virava tinta.

Sem dinheiro, tudo era impagável, mas quando ela colocou no pescoço uma corrente de ouro, o estômago de Garren deu um nó.

Ele precisaria vender Roucoud para comprar aquilo.

Os elos pesados ajustaram-se perfeitamente entre seus seios e subiam e desciam acompanhando sua res­piração. Ela olhou para a corrente, depois para ele, através dos cílios, com o olhar instintivamente femini­no de uma mulher que não nasceu para ser freira. Dian­te daquela que tinha os olhos de uma meretriz no corpo de uma virgem, ele riu de alegria.

Ela também riu. Riu tanto que se desequilibrou e caiu para o lado dele. Ele a envolveu e sentiu seus seios contra suas costelas. Seu coração batia tão forte que ela deve ter percebido. Ele acariciou os cachos dourados com dedos que ansiavam por deslizar para os seus seios. Ele queria beijá-la outra vez.

Dominica se contraiu e se afastou de seu abraço. Ti­rou a corrente e devolveu-a ao mercador. Quando se vi­rou para ele, alguns fios de cabelo macio, dourados do sol, tinham escapado da trança e grudado no pescoço.

Seus olhos azuis confusos buscavam os dele, cheios de perguntas que ele não queria responder.

— Foi para isto que eu fui salva?

Ela não se referia à corrente. Ele queria dizer sim. Um sim a levaria aos seus braços. Talvez à sua cama. Sim significaria sua capitulação. Mas ele não queria que ela cedesse a um santo ou a um diabo. Ela deveria vê-lo como Garren. Ele desviou o olhar, temendo que ela percebesse a verdade sob seu disfarce.

— Talvez seja melhor continuar procurando.

Seus olhos eram um misto de confiança e confusão. Ela apontou para uma barraca no final do muro.

— Lá está o vendedor de pergaminhos. Gillian me deu uma moeda para comprar-lhe alguns.

Aliviado, ele acompanhou seus passos. Sob o man­to, ele apertou bem a malha metálica em torno da protuberância úmida entre suas pernas.

— Para que Gillian precisa de pergaminho?

— Ela me pediu para escrever seu pedido para a Abençoada Larina.

— Ela certamente vai pagar pela escrita, além do pergaminho.

— As pessoas são pagas para escrever?

William não lhe pagou? Ele queria perguntar. Mas, na verdade, toda a comida, roupa e tinta que o convento usa são pagas com o dinheiro de Readington.

— Sim. Na cidade e na corte, um escriba pode ga­nhar a vida escrevendo mensagens.

— Olhem aqui! Papel de boa qualidade! — o vende­dor de pergaminho clamava. Ele escolheu uma folha de uma pilha que estava sobre um pequeno banco de ma­deira aos seus joelhos. — Importado de Frankfurt, feito com água do Reno.

— Pergaminho fabricado aqui, por favor, mas novo, sem uso. — Ela recusou sua sugestão.

Enquanto ela barganhava um preço que se adequas­se ao bolso de Gillian, ele a observava manusear as bor­das com reverência. Este era o presente que ela queria. Por que não pensara nisso antes?

— Vou comprar uma folha para você. Outros pere­grinos vão precisar do seu guia.

Dominica deixou cair a folha.

— Deus não quer que eu escreva isso.

— Como pode duvidar? Ele a salvou da correnteza de um rio. — Pelo menos, era isso que ela acreditava. Não era preciso lembrar-lhe os seus braços fortes.

— Ele me salvou. Não às minhas palavras.

— E por causa disso você acha que está desobriga­da? Que tipo de fé é essa, Nica? — Ele mordeu a lín­gua. O tipo de fé que breve ele arrasaria. Por que a es­tava encorajando? É melhor ela desistir. Aceitar que a Bíblia não ganharia vida sob seus dedos pacientes.

Contudo, a tristeza no semblante de Dominica era mais do que ele podia suportar. Se escrever a fazia fe­liz, então, por Deus, O Salvador a diria para escrever. Deixe que ela chore sua perda depois que ele se for, quando não estiver mais presente para ver sua dor.

— Mostre-nos uns pergaminhos — Garren falou. O sorriso de Dominica era recompensa suficiente. O vendedor folheou as pilhas sobre o banco, en­quanto Garren puxou uma folha branca e macia.

— Esta parece boa.

— Cuidado com seus dedos, senhor. Para não man­char, sabe como é. Mas o senhor tem um bom olho. É uma excelente escolha. A melhor pele de carneiro cisterciense. Não há nada que supere isto.

— E muito cara para as minhas necessidades — re­trucou Dominica. Ela tirou uma folha do fundo da pi­lha. Camadas de tinta desbotada manchavam a pele de carneiro. — E esta aqui?

— É usada, claro, mas foi muito bem limpa.

— Não tão bem. Ainda consigo ler o Salmo Vinte e Três; e as Beatitudes escritas antes do Salmo.

Aí está uma mulher que não tem dúvidas, pensou Garren, sorrindo. Deu um passo para trás para deixá-la negociar. O vendedor não tinha como se defender.

— Vou precisar apagar tudo isso antes de usar.

— Talvez eu possa diminuir um pouco o preço...

Aos pés de Garren, Inocente farejava o papel impor­tado com seu focinho úmido. Ele colocou as patas no banco e perdeu o equilíbrio. O banco caiu. Folhas de pergaminho e papel deslizaram para a borda. O vende­dor de pergaminho jogou-se sobre a pilha cambaleante.

— Ei! Cuidado com o seu cachorro!

Com um grito agudo, Dominica segurou Inocente, justo quando as folhas caíram na Garren.

O vendedor apanhou-as, limpando cada folha, pro­curando por manchas.

— Olhe só isso agora! Quase destruiu...

— Não destruiu nada — disse Garren, jogando para o vendedor uma moeda mais generosa do que o perga­minho merecia. Ele fez um sinal para Dominica correr, segurou a pele de carneiro e seguiu-a até estarem tão longe que podiam cair numa gargalhada.

— Você é um cão feio — disse Dominica, abanando o dedo na frente do focinho de Inocente, mas sua garga­lhada prejudicava o efeito. O rabo do cachorro balança­va de orgulho e felicidade, e ele lambia o dedo dela.

Achando graça, ela o colocou no chão.

— Aqui. Para você. — Garren estendeu a mão para entregar-lhe o pergaminho.

— Obrigada. — Algumas sombras tinham desapare­cido de seus olhos.

— Nica — começou Garren. — Você... — Mas ele parou. Suas perguntas sobre a mensagem de William podiam esperar até a noite. Deixe-a ser feliz por uma tarde. Enquanto isso, evitaria pensar muito sobre o que ele queria de Nica agora.

 

No silêncio após as vésperas, Dominica sentou-se na frente de Gillian. Alisou a folha sobre a mesa de madei­ra áspera dos aposentos vazios dos peregrinos. Seu per­gaminho estava ao seu lado, seguro. Tocou-o, só para ter certeza.

Quando ela se moveu, a moeda que Gillian lhe deu, pelo trabalho que faria, tilintou contra a faca. Orou pe­dindo perdão por ter sentido uma pontada de orgulho. De qualquer modo, a moeda não era dela. Daria ao con­vento, logo que retornasse.

— Como você começa? — perguntou Gillian. Dominica tirou uma lasca da ponta da pena com a faca de afiar, acertou-a e refez a ranhura, antes de mer­gulhá-la no tinteiro. Teria preferido uma mesa de co­piar já lisa do uso, de tampo inclinado, mas o scriptorium do mosteiro não estava aberto a moças órfãs des­conhecidas.

— Vou começar por escrever "Saudações à Aben­çoada Larina".

Era difícil desenhar as letras bem-feitas e em linha reta, apesar de ter marcado a página com riscos hori­zontais bem suaves.

Levantou a folha e soprou a tinta.

— Veja, este é um "S". — Com seu olho crítico, ficou a imaginar como ficaria o nome G-a-r-r-e-n.

— Estas são as palavras que você disse?

— Sim. "Saudações à Abençoada Larina".

— A Santa não conhece essas palavras. Pensei que soubesse escrever em latim.

— Claro que, sei. — O orgulho fez com que ela se empinasse toda. — Mas você não fala latim.

— Os santos só sabem latim. É por isto que os pa­dres precisam traduzir para nós. Eles não falam a nossa língua, portanto não entendem as nossas preces.

Dominica queria argumentar que Larina tinha vivi­do ali, não em Roma, e que Deus ouvia, não importava a língua. Mas como poderia ela? Gillian talvez tenha entendido mal as razões da Igreja, mas estava certa quanto ao resultado. Nenhuma pobre alma na terra po­dia falar com Deus sem a Igreja.

— Está bem. — Ela mordeu a língua e mergulhou a pena na tinta. Acrescentou uma frase em latim, repetin­do mentalmente as coisas que não ousava dizer em voz alta. A Igreja estava errada quanto a isso. Assim como estava errada quanto às almas dos cachorros. É por isto que a Bíblia precisa ser escrita na língua dela. Para que esta pobre mulher possa, ela mesma, falar com Deus.

— Pronto: Salutem dicit. Quer dizer "Saudações" em latim. — Larina precisaria reconhecer seu próprio nome. — Agora precisamos de uma introdução. Algo como "Estamos aqui, diante de vós, Jackin e Gillian de..." — Dominica fez uma pausa.

— Jack é Ford. Jackin é barqueiro, conduz a barca de travessia.

— Mas a que castelo vocês pertencem? Que Lorde cuida de vocês?

Gillian abriu-se no riso vibrante que Dominica tinha ouvido muitas vezes ao longo da jornada.

— Nossas ovelhas cuidam dele, é algo assim.

— Mas todo mundo está aos cuidados de alguém.

— Hoje, há menos pessoas como nós do que antiga­mente. Nós mantemos um pouco das nossas tradições.

Era uma heresia, uma violação da ordem do mundo e das leis de Deus. A Igreja cuida dos seus; os servos e cavaleiros devem fidelidade aos seus Lordes. Todos pertencem a alguém. Exceto, claro, os mercadores que viram hoje. E os cavaleiros mercenários como Garren. Ninguém cuida dele. E, se o convento não a aceitar, ninguém cuidará dela tampouco.

Mas Jackin e Gillian claramente cuidavam um do outro. Dominica esfregou a haste da pena.

— Há quanto tempo está casada?

— Fez dois anos no último Natal.

Dominica comprimiu os lábios, temendo perguntar, mas talvez fosse a sua única oportunidade.

— Como é ser casada?

— Isso também vai na carta?— perguntou Gillian.

— Ah, não — Ela corou. — Eu só estava curiosa.

— Eu não trocaria o casamento por Deus. Meu ho­mem está tão perto do céu quanto eu vou chegar nesta pobre terra.

Dominica também não trocaria o casamento por Deus. Ninguém se casaria com ela.

— O seu marido, como ele é?

— Ele é um bom homem. Aquece meus pés à noite e minhas intimidades de manhã. É trabalhador e sabe se divertir. Tem um temperamento melhor que muitos ho­mens, se bem que eu sei o meu lugar, com certeza. Concordo com a viúva Cropton. Acho que não saberia vi­ver sem um marido.

Dominica queria perguntar se Gillian sentia seu cor­po derreter quando Jackin a abraçava. Se ela sentia suas almas se unirem.

— Vocês parecem sentir tanta... — Dominica não sabia que palavra usar. —... alegria um com o outro.

— Você viu mais do que a maioria das pessoas jamais vê. Mas nós temos sorte. Ainda somos apaixonados.

— Mas sabe que é um pecado. Não teme por suas almas?

— Eu sei que o padre diz que é errado, mas Deus também criou esse desejo. Ele deve ter tido um motivo.

Dominica cortou a pena outra vez e mergulhou-a de volta na tinta. Sua vida terá que ser a escrita, ou aquela sensação de desejo que sente com Garren. Não poderá ser as duas coisas.

— O que você e Jackin querem de Larina?

— Um filho.

Então, apesar de seu amor, Jackin e Gillian eram sine prole. Sem prole. Com base no que ela sabia sobre bebês, eles estavam ajudando Deus o mais que podiam. Isso significava que Gillian devia ser estéril. Sentiu um calafrio na base da coluna. Então eles de fato precisam de um milagre.

— Peça um menino — disse Gillian.

Homo, escreveu Dominica. Fez uma pausa para exa­minar o que tinha escrito e, para certificar-se de que não haveria erro, acrescentou: Nonfemina.

— Mais alguma coisa?

Gillian deu uma olhada na folha, que ainda tinha muito espaço.

— Tem mais espaço. — Gillian indicou com a mão, — Peça um vestido vermelho. E um anel de ouro com um rubi para combinar.

Isso soava mais como uma lista de presentes de Dia de Reis do que o pedido de uma peregrina.

— E você acha que Deus lhe concederá tudo isso só por estar fazendo uma peregrinação? — Só o vestido custaria mais do que eles deviam ganhar em dez anos.

— Ah, sim. É a barganha com Deus.

— Mas você ainda precisa criar suas ovelhas, ter seus bebês...

— Sou muito melhor na cama do que nos campos. — Ela deu de ombros. — Deus nos"dará.

Até mesmo entre as freiras, Dominica nunca tinha visto uma fé tão cega.

— Às vezes, Deus precisa que você ajude.

— É por isto que estamos fazendo a peregrinação. Depois será a vez de Deus. Ah, peça também uma cor­rente de ouro.

— Uma corrente de ouro? — Nica sentiu o peso da corrente e os dedos de Garren perto de seus seios.

— Sim — riu Gillian. — Quero usá-la nua. Isto nós não contamos ao Padre quando pedimos permissão para fazer a peregrinação.

— Deus nem sempre responde às nossas preces da maneira que desejamos. — Dominica reconheceu as palavras da Irmã, mas não a voz amarga que ela usara.

— Você fala como se não tivesse fé.

— Claro que tenho — respondeu ela.

— O que você quer de Deus?

— Meu pedido é menos mundano. Quero ser freira. — Sua língua tropeçou nas palavras familiares.

De repente sentiu-se envergonhada. Ela não tinha pensado, exatamente como Gillian, que Deus daria exatamente o que ela pedisse? Seria isso fé ou orgulho?

Gillian fitou-a com os olhos de respeito.

— Sinto muito. Eu não sabia. Claro que você tem fé. Mas, para mim, isso soa como uma vida de prisão.

— Ah, não, o meu mundo é isso. — Ela pensou no convento, tão pequeno e tão amado. No pequeno pátio da clausura. Nos dedos da Irmã guiando suas primeiras letras. E compreendeu, por um momento, como alguém podia ver aquilo desse modo.

— Claro, algumas pessoas também dizem que o ca­samento é uma prisão. Escreva sobre a corrente.

Aurum, escreveu ela para ouro. Qual seria sua lista de desejos? Pensando em encontrar Garren sozinho esta. noite, já não estava certa do que desejava. Ou de quem era. Só sabia que queria sentir os braços dele.

 

O cântico dava um ar sinistro na capela do mosteiro. Deitado de barriga para baixo no chão tosco, Garren fingia orar. Este não era o lugar ideal para estar com Dominica. Mesmo para um descrente, havia algo de profano em marcar um encontro na casa de Deus.

As colunas elevavam-se para a escuridão de um teto invisível onde, pelo que ele sabia, Deus se empoleirava como um abutre faminto, exatamente como fizera quando Garren era pouco mais que um menino e aper­tava o rosto contra a pedra fria orando pelos pais que, mesmo assim, morreriam.

A luz do sol se foi com a última nota musical. Os monges subiam para suas celas. O relicário de Garren arrastou no chão ao levantar-se.

Garren não ouviu Dominica e seus passos silencio­sos de convento antes de vê-la, segurando uma vela numa mão e agarrando seu pergaminho na outra, como se fosse uma relíquia sagrada.

— Nica...

Ela fez sinal para ele silenciar enquanto examinava o ambiente. Seus cabelos revoltos sobre os seios embe­lezava-a como se fosse uma estátua.

— Trouxe? — Garren confirmou com a cabeça.

Dominica escondia uma camisa religiosa debaixo do manto e sob uma roupa indefinida de linho branco, e os pés nus encolhiam-se no chão frio. Ela se dirigiu a uma capela lateral, onde uma única vela tremeluzia na fren­te de uma imagem de Nossa Senhora.

— Lá.

Na capela, ela colocou a vela no chão, ao lado do pergaminho, como uma oferenda diante do altar. Relu­tante, Garren depositou a mensagem dobrada naquelas mãos reverentes. Sem dúvida, a fina pele de bezerro trazia as palavras de um homem já morto, mas ele tinha prometido a William que a entregaria.

— O lacre não pode estar violado.

O pergaminho estava duplamente lacrado. Primeiro, o anel de Readington de William carimbava um círculo de cera vermelha. Depois, um fio, ainda intacto, perfu­rava as camadas.

Dominica passou o polegar sobre a gravação de cera, agora rachada onde a espada de Readington cru­zava o livro aberto, depois segurou o pergaminho dian­te da chama, como se pudesse ler através dela.

— Parece bem — disse ela, devolvendo-a a ele. Garren enfiou-o debaixo da túnica e segurou os om­bros de Dominica para impedir que fosse embora.

— Confesse, Nica. Você escreveu esta mensagem.

— Ele me fez prometer não contar a ninguém — res­pondeu, com a altivez familiar.

Nem a você. As palavras não ditas machucaram. Por que William não confiaria nele?

Ela deve ter percebido sua decepção, pois deitou sua mão sobre a dele como que para curar uma ferida.

— Você gosta muito dele, não é?

— Sou mais seu irmão do que aquele que Deus lhe deu.

Mesmo com pouca luz, Garren podia vê-la empalidecer à menção de Richard.

— Conte-me, Nica. Conte-me o que ele escreveu. — Ela se negou.

— Por favor.

— Não posso. Prometi a ele.

Cuide dela, Garren. É mais uma coisa que eu preci­so pedir a você. Teria ele mantido sua promessa tão bem? Ele suspirou.

— Guarde seu segredo. — Eu devo isto a William. Sem querer deixá-la ir embora, ele pegou seus cabe­los e arrumou sobre os seios. Ela endireitou os ombros.

— Há algo que preciso confessar a você. — Garren soltou seu cabelo.

— Acorde um monge. — Ele não queria ouvir mais nada sobre jejuns quebrados.

— Quando vai assumir quem você é de fato? Diabo ou Salvador. Ela não conseguia vê-lo como homem.

— Quando vai aceitar que eu não sou quem você pensa?

— Mas a minha confissão é sobre você.

O desejo fez arder seu interior, não apenas pelo cor­po dela, mas por seus pensamentos. Sua determinação transformou-se em desejo.

— Então — resmungou ele — eu preciso ouvir.

— Preciso ficar de costas para as suas costas para que você não me olhe enquanto falo.

Garren queria contar-lhe que não era diabo nem san­to, mas quando ela pressionou as costas nas suas, não conseguiu dizer nada. O calor que ela exalava aqueceu sua pele, e, de frente para os olhos acusadores da Vir­gem Maria, sentiu-se um mártir pronto para ser quei­mado.

— Agora, pergunte-me o que eu devo confessar.

— O quê... — As palavras estavam presas na sua garganta. — O que você tem para confessar? — Certa­mente dois pais-nossos perdoariam qualquer pecado que ela pudesse ter cometido.

Menos os que forarn cometidos com ele.

— Tenho pensado em você à noite.

— O que você pensou?

Ela abriu as mãos dele e entrelaçou os dedos.

— Quando vou dormir, fico deitada no escuro ima­ginando você ao meu lado.

Ele ajeitou as pernas para acomodar o volume que ameaçava revelar-se através da malha metálica.

— Nica.

— Ainda não pode me absolver.

— Eu não posso absolvê-la de jeito nenhum.

— Deve ser você ou Deus.

Uma gota de vela pingou em cima do altar. Os olhos da Virgem pintados de azul pareciam encher-se de lá­grimas. Eu a salvei, Deus, pensou ele, chocado com a raiva que crescia dentro dele. Não a terás.

— Então tem de ser eu.

— Sinto suas mãos. Quero que me toque. Eu tenho até... — Ela acariciou a mão dele. — Eu tenho me toca­do, querendo que as minhas mãos fossem as suas.

Rígido, os pés separados, ele olhou para baixo, sem reação, quando seu corpo procurou o dela.

— Como?

— Eu coloco uma mão no seio e uma...— parecia falar dentro dele — ...uma entre as minhas pernas.

O mundo inteiro de Garren parou. Desejo e mais al­guma coisa gritavam em suas veias. Queria abraçá-la. Tocá-la. Tê-la e abandoná-la antes que fosse tarde demais. Antes que Deus a levasse. Antes que ele não pu­desse mais abandoná-la.

Ela caiu sobre ele, os dedos escorregaram, como se a confissão tivesse levado toda a energia de seu corpo.

— Garren, o que isso quer dizer? O que devo fazer?

Ele se virou e se perdeu nos olhos dela, não mais ar­dentes ou desafiadores, atraindo-o tão suavemente quanto seus dedos.

— Feche os olhos. Mostre-me.

— Não posso.

Ele a abraçou e acariciou seus cabelos.

— Mostre-me.

Ela se abraçou forte contra ele, como que temendo deixar as mãos dele encontrarem seus lugares secretos.

— Não posso — murmurou ela, contra o coração dele.

— Vou ajudar. Mas não abra os olhos, não importa o que sinta. — Não posso me arriscar a ver.

Garren deslizou a mão sob seu manto, abriu os dedos sobre o seu tórax, com cuidado para evitar os seios, que intumesceram com a proximidade.

— Aqui? — Ela balançou a cabeça, negando.

— Mostre-me.

Ela levou a mão dele mais abaixo, ofegando quando ele roçou o pano de linho que cobria seu seio.

— Aqui? — De olhos fechados, ela confirmou.

A mão dela ainda estava sobre a dele. Garren deixou o bico do seio escorregar por entre seus dedos, depois apertou, suavemente. Ela gemeu, e sua respiração, ago­ra rápida, a empurrou contra a mão dele.

Ele deixou cair a mão esquerda sob o manto dela, e cingiu o linho que cobria o calor entre as pernas dela.

— E aqui?

Ela enrijeceu, mas não respondeu, exceto por cobrir a mão dele com a sua, prendendo-a entre o calor da sua intimidade e a suavidade de seus dedos.

— Mostre-me como, Nica.

Quase sem respirar, ele esperou, deixando-a acostu­mar-se à sua mão. Depois, em vez de guiar a mão dele, ela jogou os quadris contra ele.

— Assim? — Ele deslizou um dedo para dentro dela e sentiu-a molhada.

Ela largou a mão dele e jogou os braços em volta de seu pescoço, recolhendo bruscamente seus quadris para longe do toque dele. Cumprindo a promessa, ela não abriu os olhos.

— Não tinha sido tão maravilhoso assim.

— Deixe-me tornar mais maravilhoso.

Lenta e suavemente, com uma mão em cada lado, ele levantou o linho, percorreu suas panturrilhas, seus joe­lhos, e finalmente correu as mãos sobre a curva branca de suas coxas, deleitando-se com a sensação de sua pele. O dedo dele encontrou-a outra vez. As pernas dela abriram-se para ele. Molhada, intumescida, ela se enroscou nele, respirando no ritmo dos seus toques, ge­mendo, os braços em volta do pescoço dele, pois suas pernas não a sustentavam mais.

Ele só ouvia o gemido dela e a batida de seu coração. Só queria levá-la dali e nunca deixá-la ir embora. E não mais pensava em quem era, ou onde estavam, ou o que tinha prometido fazer; só no seu desejo. E no dela.

Quando ela se afastou, ele não soube o que ocorrera. Aos poucos, viu o mundo de novo, onde estava, e o que quase tinha feito, feliz por não tê-la levado muito lon­ge, cedo demais.

E se perguntou em que momento o prazer de execu­tar a tarefa a que tinha se proposto se tornou mais im­portante do que seu objetivo inicial.

Ela cambaleou até o parapeito do altar, caiu contra ele e escorregou para o chão. Seus olhos abriam e fe­chavam, enquanto ela voltava, tão lentamente quanto ele, do lugar secreto para onde tinha sido levada.

— O espírito. Como no pântano.

Uma vela sombreava os olhos tristes da Virgem.

Agora os olhos de Nica não se desviavam dele, como que esperando que chifres ou asas lhe brotassem, sem saber qual dos dois seria, até vê-los crescer.

Ele sentou ao seu lado, encostado no biombo de ma­deira, e envolveu seu queixo com a mão, tentando man­ter-se calmo.

Ela acariciou-lhe o rosto. Ele desejou que sua barba não estivesse áspera nos dedos dela.

— Beije-me — pediu ela.

Ele sentiu-se envergonhado de não ter feito nem isso.

A língua de Garren procurou sua boca. Ela a ofere­ceu, até que ele voltou a ficar atordoado. Os cabelos cor de mel, prendiam-se aos dedos dele, e, quando o beijo cessou, ele os puxou, esperando provocar um sorriso.

Mas, quando o sorriso chegou, era triste.

— Não foi isto que eu senti com Lorde Richard.

O nome acertou-o como uma apunhalada e arremes­sou-o para o mundo real das promessas e traições. As mãos ainda emaranhadas nos cabelos de Nica, ele for­çou-a a fitá-lo, lembrando-se de Richard colocando as mãos nela, na porta da capela.

— O que quer dizer? O que ele fez?

— Ele tentou me beijar e... me tocar.

— E você deixou? — O ciúme aumentou a confusão de sua mente.

— Não — disse ela. — Eu sabia o que queria.

O ciúme transformou-se em uma certa aversão a si mesmo. Podia ele se considerar um homem melhor do que Richard?

— Não sou nenhum santo, Nica. — Ele a soltou, dei­xando-a falar sem a distração de seu toque.

— Se não é, então o que eu sou? E Deus me salvou para fazer o quê? Pensei que Ele tinha enviado você com uma resposta. — Ela se levantou, remexendo os quadris para desamassar a camisa. — Em vez disso, você me deu pergaminho e linho úmido. Minha vida não pode ter os dois. Agora, preciso descobrir qual dos dois caminhos Deus quer que eu escolha.

Queria poder oferecer-lhe a escolha de uma vida fora do convento. Queria ser tudo que ela merecia, em vez de um mercenário miserável, mentiroso e sem lar que arruinaria sua vida.

Ela pegou o pergaminho e a vela.

— Confissão requer penitência. Qual devo pagar?

— Nenhuma. — Ele quase não podia agüentar a dor nos olhos dela. — A penitência deve ser minha. — E ele soube que, qualquer que fosse a penitência que pa­gasse por estragar a vida dela, não seria suficiente.

— Eu acho — disse ela — que Deus encontrará uma penitência para nós dois.

Enquanto Garren a observava sair da capela, perce­beu que Deus já tinha estabelecido a sua penitência, e o preço seria muito, muito alto.

Ele a perderia. Assim como perdera todos os outros a quem amara.

 

Dominica fugiu da capela, correndo pelo claustro cheio de arcos como se pudesse esconder-se da vida como se escondia da morte quando criança. Tropeçan­do nas pernas fracas como cera derretida, sabia que Garren estava certo. Ele não era santo.

Ela tampouco, como estava descobrindo.

Dominica achava que estava acima das armadilhas dos prazeres mundanos. Força e sorte tinham sido sufi­cientes para resistir a Lorde Richard apalpando sob a sua saia nas escadas escuras.

Mas Dominica precisava mais do que isso para re­sistir a Garren. Ela precisava resistir a tudo que fazia dele um homem, amargo e gentil, que amava as pessoas mais que a Deus, e amava o hoje mais do que a vida após a morte. Na noite anterior, ela tinha prometido a Deus abrir seu coração para o que esse homem poderia ensinar-lhe. Hoje, durante o dia, ele a levara a escrever. Esta noite, a pecar. A querer mais do que sua alma imortal.                                                                              

Dominica apoiou-se em uma coluna estreita, ansian­do por ar. O cheiro do couro e da tinta atraíram-na para uma porta aberta do scriptorium do mosteiro.

Ela fechou a mão sob a vela, forçando os ouvidos para o som dos monges acordando para os cânticos ma­tinais. Já seria ruim ela ser encontrada no scriptorium, pior ainda ser descuidada com uma vela.

Mas a tentação era grande demais. Desenrolando seu pergaminho sobre uma mesa vazia, ela o limpou. Não era de uma qualidade merecedora de palavras para permanecerem pelos séculos, mas era seu. Ela o prepararia como merecia.                                                              

Depositou a vela na mesa com muito cuidado, igno­rando a excitação ainda presente entre suas pernas e a culpa que contraía seu estômago. Aqui, ela expiaria seu pecado.

Encontrou uma pedra-pomes e esfregou-a até o bra­ço doer e o texto anterior virar uma leve sombra. Em seguida, cobriu sua mão com giz e passou-a sobre a fo­lha. Depois, usando um fio como orientação, riscou-a com linhas pretas.

Finalmente, o pergaminho estava pronto para suas palavras. Ela mergulhou uma pena na tinta. Não escre­veria nenhum registro desta noite tenebrosa de pecado e de dúvida. Só do futuro.

Traçou um "/" preto. Deus teria que falar inglês.

Dominica sucumbiu à pequena tentação de decorar seu "/" forte com sombras vermelhas antes de conti­nuar. Cantarolava enquanto trabalhava, sem perceber a noite passar, nem os altos e baixos do som dos cânticos matinais, nem a lua olhando por cima de seu ombro. E, quando uma onda de desejo varreu-a ao pressionar as pernas unidas, ignorou-a. Finalmente, admirou sua obra, / renuwe mi vowe.

Estava escrito. Era real.

Aquela era a lição. Deus mandou a tentação. Ela re­sistiu e se penitenciaria. Contaria a Garren sua escolha amanhã, e ele entenderia. Certamente Larina perdoaria sua única transgressão. Ou duas.

Apreciou a qualidade do trabalho e leu a primeira li­nha. Piscou muitas vezes, certa de que seus olhos can­sados tinham lido errado. Até em latim, as palavras chocavam.

Receba eu um ósculo da tua boca, porque os teus amores são melhores do que o vinho.

Ele introduziu-me na dispensa do vinho, ordenou em mim o amor. Confortai-me com flores, fortalecei-me com frutos, porque desfaleço de amor. A sua mão esquerda está debaixo da minha cabeça, e a sua direita abraça-me.

Dominica largou a folha. Deus olhou lá de cima e colocou seus pensamentos em palavras. O calor da mão de Garren voltou a aquecer seu seio e a envolver suas pernas. Voltou a olhar para a folha. Cântico de Salo­mão. Um dos livros do Antigo Testamento.

As freiras nunca leram aquele.

Dominica tampou o tinteiro com mãos trêmulas. Não me deixe cair em tentação, Senhor. Este é o meu lugar, nesta paz silenciosa. Quando chegarmos ao san­tuário dentro de alguns dias, Larina me dará um sinal.

Os dedos de seus pés encolhiam-se nas pedras frias do chão do scriptorium do mosteiro de Tavistock..

Que penitência devo pagar?

Parou à porta, lembrando-se do scriptorium do con­vento, da alegria de aprender cada letra e formar pala­vras com elas. O que poderia ser penitência maior do que ser impedida de entrar nessa sala para sempre? O que poderia ser pior do que perder a vida que sempre quis?

Ela estremeceu.

Perder o desejo de viver aquela vida.

 

Na manha do dia seguinte, Dominica procurou por Garren nos aposentos dos hóspedes, na casa de aqueci­mento, e até na capela, onde sua determinação vacilou como a vela da imagem da Virgem.

Encontrou-o nos estábulos. A visão daqueles dedos rudes acariciando a crina de Roucoud trouxe uma leve onda de fraqueza.

Nenhuma dúvida mais, relembrou-se, séria.

Um bocejo vincou o rosto de Garren enquanto ele dobrava um cobertor cuidadosamente sobre o dorso do cavalo. Dominica sorriu, feliz por ele não ter dormido melhor do que ela.

Um bocejo semelhante deixou-a de boca aberta justo quando ele a avistou.

— Dormiu bem? — perguntou ele.

Dominica engoliu seu bocejo com uma expressão séria.

— Tanto quanto você — respondeu ela, duvidando que fosse verdade. Depois que voltou para o quarto, a tosse seca da Irmã competiu com seu pensamento nele e a manteve acordada até o amanhecer.

— Então não dormiu nada. — Garren inclinou-se para levantar a sela. — Como está a Irmã esta manhã?

— Vai ser difícil para ela montar em Roucoud.

— Por isto alugamos uma carroça para levá-la e um burro para puxar.

— Obrigada. — Ela evitou maiores agradecimentos. Não queria pensar em Garren com carinho nesta ma­nhã. O que tinha de dizer já seria difícil. — Quero falar com você a sós.

— Só os animais poderão ouvir. — Virou-se para um burro de orelhas compridas na baia mais próxima.

— Bom dia, amigo — disse ele, afagando-lhe o nariz.

— Está pronto para uma viagem? Onde puseram as suas rédeas?

— A noite passada... — Dominica falava para as costas largas de Garren, enquanto ele examinava a fila arrumada de pregos cravados nas vigas. Ela criou cora­gem e falou. — Por favor, olhe para mim.

Quando ele virou, ela se arrependeu de ter pedido. Algum tipo de esperança acendia os olhos dele como a luz do sol brilhando através das folhas verdes. Deus estava tornando isto muito difícil. Dominica despejou as palavras ensaiadas de um fô­lego só, antes que perdesse a coragem.

— Com a ajuda de Deus, você me salvou do afogamento. Agradeço. Mas eu estava confusa porque Deus me salvou, mas não a minha escrita. Eu não sabia o que Ele queria para mim. Achei que tinha enviado você para me dar respostas. Foi por isso... — Ela fez uma pausa. — Por isso procurei você para me confessar.

Uma sombra intensificou-se nos olhos de Garren, mas eles não se desviaram dos dela. O burro, ignorado, cutucou-lhe as costelas. Garren afagou seu nariz com uma das mãos, ainda a fitando.

Ela falava mais rápido agora, temendo não conse­guir terminar a parte mais difícil.

— Fui uma tola em duvidar da resposta. Eu sempre soube. Meu lugar é no convento. Deus me dará um si­nal. Não importa se você é um santo ou um diabo, ou simplesmente um homem, já não poderá me tentar mais. — Seu corpo vibrava diante daquele olhar e cha­mava-a de mentirosa. Ela elevou a voz para calá-lo. — Eu não falharei.

De rosto quente, ela lhe lançou um olhar severo.

— É errado ser uma mulher em vez de uma freira?

— Para mim, é.

— Talvez eu seja a única pessoa que realmente sabe quem você é, e o que realmente quer.

— Você não sabe o que eu quero. — E ela, sabia? Desobediente, Garren pegou a mão dela e beijou cada nó de seus dedos, um por um. Depois, tentou exci­tá-la passando a língua na pele sensível entre os dedos, até ela soltar um gemido.

Queria sentir a alma dele fluir para dentro da sua para não ficar tão só. Mas não podia se permitir desejar essas coisas.

— O que vai dizer quando tiver que se confessar a um padre de verdade?

Ele sabia. Como se estivesse sentindo o calor au­mentando pelo corpo dela. Garren sabia que ela se der­retia ao seu toque.

— Por que quer me destruir?

— Quero salvá-la de uma vida que não quer mais.

— Mas eu quero! — Dominica puxou a mão e exa­minou os dedos, com medo de que os lábios de Garren tivessem manchado mais forte do que a tinta.

— Que tentação pode existir nos cânticos monóto­nos a um Deus ingrato?

— Deus traz a calma, a paz. — Nada disso ela sentia agora, seu corpo contraído sob aquele olhar intenso e implacável. — Um lugar no céu. — E mais uma coisa, a mais importante. — E um lugar para escrever.

— Você já escreve.

— É mais do que isso.

— O que mais, Nica? Conte-me. — Ele juntou as mãos dela, cobrindo-as gentilmente com as suas, gran­des e quadradas, mas seus olhos desnudavam a alma dela de suas proteções. — O que você quer?

— Ter um lar meu de verdade, pertencer! — Tre­mendo, virou-se de costas, os braços em volta da cintu­ra, tentando guardar a dor lá dentro. As lágrimas emba­çaram seus olhos.

Garren envolveu-a por detrás, curvando seu corpo em torno dela. Ela apoiou a cabeça em seu peito.

— Nica, existem outros lugares além do convento de Readington. O mundo é grande.

— O que me importa isso? — Envolta nos braços de Garren e protegida, Dominica contestou o seu consolo e continuou numa confissão mais difícil que a anterior. — Eu não tenho dinheiro para viajar como a viúva. Nem um marido para cuidar de mim, como Gillian. A única coisa que tenho é o dom da escrita. O único lugar onde posso escrever é no convento. E a única forma de eu poder escrever é me tornando freira. — Sua voz se elevava a cada palavra. — O único lar que eu tenho é dentro daquelas paredes. Sabe o que é não ter um lar, não pertencer a lugar algum, nem a ninguém?

Ainda abraçando-a, Garren não falou nem se mexeu. Ela sentiu o rosto dele encostar na sua cabeça.

— Sim — respondeu, sua respiração quente contra o couro cabeludo dela. — Eu sei. — Os braços que a ani­nhavam enrijeceram e caíram.

Dominica o ouviu murmurar alguma coisa para o burro ao colocar as rédeas nele. Quando se virou, era como se ele tivesse uma viseira no rosto que tirava a luz de seus olhos. Claro que ele sabe. Garren de lugar nenhum.

Ao conduzir o burro para fora da estrebaria, Garren parou na frente dela, seus olhos tristes.

— Não procure suas respostas em mim, ou no seu Deus, ou qualquer outro, Nica. Procure-as dentro de você. — Ele não olhou para trás.

Como poderia encontrar respostas dentro de si mes­ma? A única certeza vinha daquela voz tranqüila e sua­ve que era Deus.

Ao observá-lo puxar o burro para a carroça, sentiu-se como se tivesse perdido um lar que não sabia que tinha.

 

Garren caminhou sozinho no fim da fila, as rédeas frouxas de Roucoud na mão, e a tosse da Irmã a marte­lar seus ouvidos. O chá de pulmonária não fizera ne­nhum efeito. Ao lado da carroça de duas rodas em for­mato de ataúde, Dominica e o médico conversavam baixinho.

Apesar de tudo, Garren não conseguia tirar os olhos de Dominica. Ela desabrochara com seu toque, os seios ficaram mais cheios, e os olhos azuis mais escuros sob as sobrancelhas arqueadas. Ele a tornara mais madura, mais triste, mais sábia. E quando ele terminasse o que precisava ser feito, ela estaria mais triste ainda.

E o faria de qualquer jeito, pois não suportava dever mais nada além do que já devia a William.

A vida dela vai continuar mais ou menos como an­tes, dissera-lhe a Priora. Uma mentira. Ah, ainda a deixariam fazer o serviço pesado do convento, mas ela não moraria mais dentro de seus muros, cercada de um ban­do de irmãs amáveis. Eles a casariam com algum ho­mem rude do vilarejo, se é que se preocupariam em casá-la. Dominica não tinha dote, nenhuma aliança fa­miliar para levar para um casamento. Nada, só o seu bom nome. Ele a privaria até disso.

Sabe o que é não ter um lar?

Sim, sabia. Bem demais. E a dor que viu nela quase o impediu. Quase, mas não exatamente.

Dominica sobreviverá, também, um dia de cada vez, pois quando ele tiver feito o pior, só lhe restará o hoje.

O som de patas de cavalo interrompeu seus pensa­mentos. Vinha de trás.

— Ladrões? — perguntou Jackin, ficando na frente da esposa, sem soltar-lhe a mão.

— Provavelmente, não. É só um cavalo. — E estava cambaleando.

— Eu vou ver. — Simon empunhou a espada.

— Não — respondeu Garren, puxando Roucoud. — Trate de esconder todo mundo. Eu vou ver quem é.

Montou Roucoud e virou o cavalo para subir o cami­nho que tinham acabado de fazer. Olhando para trás, viu Simon e Dominica lutando com dificuldade com a carroça oscilante, grande demais para ser escondida. Gravou uma última imagem dela, querendo dizer que se escondesse, se defendesse, que ele não era Salvador de ninguém. Nem mesmo dele próprio.

Ao chegar no alto da ladeira, Garren avistou o via­jante, magro, melancólico e ofegante, como o cavalo exausto que montava. Garren parou Roucoud e desembainhou a espada, apoiando-a sobre a sela.

O desconhecido diminuiu a marcha do cavalo. Por um instante, parecia procurar a espada, depois cumpri­mentou com um aceno da mão.

— Garren, é você? Sou eu, Lorde Richard. — Garren foi acometido de uma fúria visceral, e a mão da espada chegou a pulsar. Não respondeu ao cumpri­mento. Richard baixou a mão.

Não foi isto que senti com Lorde Richard. Se libe­rasse a raiva que tomava conta de si, estraçalharia a boca, os dedos, a língua, qualquer parte daquele ho­mem que pudesse ter maculado Dominica. Mas conteve-a. Certamente, Richard não tinha cavalgado até tão longe só para satisfazer seu desejo. Podia muito bem fazê-lo no conforto do seu próprio quarto.

A uma distância que dava para conversar, o cavalo de Richard diminuiu o passo. Ò manto pintado com uma cruz vermelho-sangue salpicada de chuva não lhe caía bem. Por que veio? Terá ele trazido notícias que confirmariam a inutilidade desta viagem? A promessa de Garren pesava mais do que a mensagem em seu saco de viagem. Teve medo de não dar mais tempo.

— Onde estão os outros? — perguntou Richard.

— Mandei-os na frente para o caso de você ser um ladrão.

— É você quem precisa de dinheiro, pelo que me re­cordo — retrucou Richard com uma voz de desprezo.

Ele deve saber.

— Como vai William?

— Vivo. Quando saí.

Uma sensação de alívio inundou suas veias. Talvez, a fé no poder das plumas roubadas o tenha mantido pre­so à vida, pensou Garren, percebendo a esperança se­creta de que Deus teria piedade de um peregrino des­crente, e pouparia a vida de William.

— Vivo, e você lamenta isso?

As narinas de Richard dilataram-se de indignação.

— Como pode dizer isso? Vim orar por sua recupe­ração.

Garren bufou enfurecido. Richard devia ter menos fé em Deus do que ele próprio. Só estava querendo usar os que tinham.

— Deveria ter vindo rezar por sua própria alma.

— Um mercenário não entenderia. Se eu puder fazer algo para salvar a vida do meu irmão, farei.

Garren duvidava.

— Estranho ter chegado a essa conclusão só depois que nós partimos. — Por que terá vindo? O que terá mudado em seis dias?

Sem conseguir uma resposta, Garren olhou na dire­ção em que os outros estavam escondidos. Não podia negar a um peregrino o direito de juntar-se a eles.

— Venha. Estão logo depois da ladeira. Os cavalos marcharam no mesmo ritmo.

Simon estava sozinho com a espada desembainhada diante da carroça meio tombada.         Uma roda tinha enter­rado na lama do lado da estrada. Dentro dela, a Irmã, de olhos fechados, abraçava o cachorro e orava.

— Onde estão todos? — perguntou Richard.

— Escondidos.

— Está tudo bem. Vim juntar-me a vocês.

A um sinal de Garren, Simon baixou a espada. A Irmã abriu os olhos e levantou a cabeça. Inocente, li­berto, pulou para o solo, a latir. A Irmã arrastou-se até a borda da carroça, onde Simon a levantou com mais facilidade do que tinha levantado a espada.

— Ah, Lorde Richard — disse ela. — Temíamos que fosse um bando de ladrões.

Inocente pulava, tentando morder o pé de Richard. Pule só um pouco mais alto, garoto, pensou Garren. Está quase conseguindo.

— Não passo de um humilde peregrino como vocês. — A voz estridente de Richard competia com o latido de Inocente. Ele olhou furioso para o cão. — Enquanto rezava por meu irmão, tive a intuição de que deveria juntar minha voz às preces de vocês, a Deus, e à Aben­çoada Larina.

Sentindo repugnância, Garren observou o grupo aproximar-se para cumprimentá-lo, em uma demons­tração de respeito aos Readington que ele não merecia. Inocente sabia julgar melhor seu caráter, pensou.

— Onde está a garota? — perguntou Richard. — O que fez com ela?

A culpa mordeu Garren.

— Eu? Nada. O que você fez a ela? — De sobrancelha empinada, Richard fingia inocência.

— Garren, estou preocupado com todos que estão sob sua proteção. Ou será que William só pagou a você o necessário para chegar lá com a sua carta?

A carta de William. Aquela que Richard tentara tirar de sua mão. O que ela dizia? Pela pressa da viagem, Richard já sabia. De algum modo, descobriu depois que eles partiram. E, pelo brilho em seus olhos, Garren achou que a resposta era uma questão de vida ou morte.

Richard não se lembrava o quanto a garota era exu­berante, até que a viu entre os peregrinos que se incli­navam para cumprimentá-lo. Lábios finos, pensou, examinando-a, mas a opulência dos seios enrijeceu seu membro. Mudou de posição na sela, curioso para saber se Garren já a tinha possuído.

— Dominica.

— Saudações, Lorde Richard. Como está o seu irmão? — Seu irmão, seu irmão. Será que nenhum deles se preocupa com meus ossos doloridos depois de tantos dias a cavalgar sentado em uma sela?

— Ainda estava vivo quando parti. — Richard pren­deu o sorriso. Estava difícil soar triste, pois precisava falar mais alto que o latido do cão. — Claro que já es­tou na estrada há muitos dias.

— Com Deus, tudo é possível.

Quando Dominica não estava sorrindo, como agora, seu rosto ficava tão sério quanto o do corvo ao seu lado. Qual é mesmo o nome da velha freira? Aquela atitude de santa o irrita.

— Sim, claro. Deus faz milagres — concordou ele.

— Rezamos sem parar pela saúde dele — disse a ve­lha freira. Irmã Marian, este é seu nome.

— E pela minha também, claro — retrucou ele.

— Oramos por todas as criaturas de Deus, Lorde Ri­chard. — O tom afável do corvo com tosse mostrou-lhe que ele não era mais importante do que o vira-lata que beliscava seus calcanhares, sem ser detido. Além de ler e escrever, a freira ensinou isso à ordinária. Sua arro­gância não combina com a sua posição. Como órfã, de­veria ser grata por lorde dirigir-lhe a palavra.

— Está na hora da refeição do meio do dia — disse Garren. — Simon, Ralf, Jackin, vamos levantar aquela carroça e colocá-la na estrada.

Richard apeou do cavalo e aproveitou para golpear a mandíbula do cachorro com a bota. O barulho da pan­cada deixou-o satisfeito. O cão ganiu, e a garota deu um berro, caindo de joelhos para acariciá-lo.

Talvez agora ela entenda que ele gosta de ajustar as contas.

Dominica pegou o animal no colo, aninhando-o como a um bebê, enquanto ele lambia seu rosto. Re­pugnante. Poderia exigir que colocasse o cachorro no chão, mas lembrou que estaria mais seguro se ela man­tivesse a fera sob controle.

— Fale da jornada, Dominica.

Ela o agrediu com aqueles olhos azuis altivos como se ele não merecesse sua atenção. O mesmo olhar que seu pai lhe dirigira um dia.

— Preciso ajudar a preparar o almoço, Milorde.

— Não me obrigue a mandar em você, Dominica. Que coisas novas aprendeu na peregrinação? — Ele procurava algum sinal de culpa que pudesse indicar sua violação.

— Ah, o mundo de Deus é amplo e maravilhoso, Mi­lorde. E repleto de coisas.

— Que coisas?

Com o cão nos braços, Dominica esquivou-se.

— Fez o mesmo caminho que nós, Milorde. O sol nos aqueceu. A brisa refrescou nosso rosto. Os botões-de-ouro nos cobriram até a cintura. Caminhamos quase dez quilômetros e, se o senhor não nos atrasar demais, estaremos em Liskeard a tempo de rezar às vésperas.

Sua voz esbanjava desprezo. Ele transformaria aqui­lo em respeito dentro em breve.

— E você tem escrito durante a viagem, Dominica?

— Nada interessante, Milorde.

— As palavras são mágicas, não é verdade, Domini­ca? Elas podem fazer coisas aparecerem e desaparece­rem. Criou algumas palavras interessantes, não foi?

— Copio a Palavra de Deus, Lorde Richard.

— Ah, não só isso. Você copiou as palavras do meu irmão, também. As palavras que o mercenário leva.

O colorido de camponesa que Dominica tinha adqui­rido durante a viagem desbotou em um instante.

— O que ele lhe contou? — Primeiro, ele a provocaria.

— Ou talvez o meu irmão nunca tenha dito essas pa­lavras, e você as tenha escrito, simplesmente. Isso seria um pecado, não seria? Mentir.

— Eu não... não estou entendendo.

Richard sorriu, gratificado. Agora que via medo nos olhos dela, era mais fácil enfrentá-los. A vagabunda era esperta o bastante para reconhecer uma ameaça.

— Ah, eu acho que está, sim. — Richard envolveu-a com o braço direito e deixou a mão balançar próximo aos seios, com um olho nos dentes do cão. — Mas pode ajudar-me. Esqueça o que sabe, Dominica.

Antes que percebesse seu movimento, Richard ficou sem ar ao receber uma cotovelada no estômago.

— Ah, Lorde Richard, mesmo que eu esqueça, Deus se lembra. Deo gratias. — Dominica fugiu precipitada, e o cão acompanhou-a.

— Richard — gritou Garren. — Venha pegar um pouco de comida. Precisamos seguir viagem.

Comida. A ordinária tinha golpeado seu estômago. Mais uma conta para acertar quando a tivesse na cama.

 

Deus falhou comigo desta vez, pensou Dominica, ao observar Lorde Richard de uma distância segura.

Tinha conseguido escapar, mas nem para tão longe, nem tão rápido. Só quando chegassem ao santuário Garren e ela estariam salvos.

Lorde Richard os acompanhava na caminhada.

Agradeceu ao Pai Celeste por não ter contado nada a Garren sobre a mensagem. Fazia parte da sabedoria do Conde, e ficou feliz por manter seu segredo. Era uma forma de retribuir um pouco do muito que o convento devia aos Readington, mas havia algo mais profundo que isso. Algo que não sentia por Lorde Richard.

Enquanto Garren carregasse a mensagem, estaria em perigo. Santo ou diabo, ela não poderia permitir que ele sofresse nenhum mal. Só a promessa a Lorde William já era motivo suficiente para protegê-lo, independente­mente de outros nos quais não queria pensar.

— Hora de partirmos — avisou Garren alto.

— Cavalgue comigo. Meu cavalo cansado pode le­var dois.

Garren pegou as rédeas e levou o cavalo para longe.

— Bem-vindo à peregrinação, Lorde Richard.

O ódio que dirigiu para Garren fortaleceu a decisão de Dominica. Encontraria uma maneira de roubar a mensagem esta noite. Depois, contaria a Lorde Richard que a tinha consigo e que Garren não sabia nada a res­peito. Garren estaria seguro, e ela seria a única a ficar em perigo. Certamente, Deus a protegeria.

Dominica deu uma olhada para Lorde Richard que, contrariado, caminhava sozinho à frente dos outros.

Ou ela acabaria mais próxima da morte do que Lor­de William.

 

De costas para uma fogueira quase apagada, Dominica observava a lua minguante. Roubar a mensagem seria impossível em uma hospedaria cheia.

Um coro de sons diversos provocados pelos viajan­tes cansados vagava pelo ar da noite.

Um som novo destoava da harmonia que já era fami­liar. Um som que provocava calafrios. A respiração cavernosa de Lorde Richard.

Garren não fazia nenhum barulho. Em seu catre, à sombra das árvores no fim do acampamento, ele dor­mia em total silêncio. Espreguiçou-se uma vez, e Do­minica não soube distinguir se estava dormindo ou acordado, até que o mais velho dos irmãos Miller se aproximou para a troca da guarda. Os roncos de Miller uniram-se ao coro antes que Garren desaparecesse na floresta em sua primeira ronda do acampamento.

Ela não teria muito tempo.

Quando se pôs de pé, Inocente agitou a orelha.

— Shh. Fique. — Dominica balançava o dedo indi­cando não, enquanto, ansiosa de preocupação, ficava atenta a qualquer som de passos entre as árvores.

A Irmã levantou a cabeça.

— O que é, Nica? O que há de errado?

—Nada. Só preciso ir me aliviar. Volte a dormir.

Dando uma rápida olhada para as figuras adormeci­das, Dominica correu até a cama de Garren, e recuou ao ouvir o estalo de um galho atrás de si. Prendeu a respi­ração, mas o coro dos adormecidos continuou.

Ajoelhou-se e pegou o saco de viagem, torcendo para que ele não, tivesse levado a mensagem consigo esta noite. Sem se descuidar de vigiar a floresta onde ele estava, tateou dentro do saco. A túnica envolvia um pergaminho dobrado. Ela o tirou do saco, deixou cair tudo, levantou e se virou, pronta para correr.

Deparou-se com uma barreira alta, larga, com bra­ços fortes, mãos suaves, e uma voz baixa e rouca.

— Então, veio para a minha cama, afinal?

Com Dominica novamente em seus braços, o pri­meiro pensamento de Garren foi como seria tê-la entre suas pernas. Ele a aproximou mais, inalou o cheiro de grama úmida e violetas, e sentiu a respiração rápida e forte junto ao seu corpo. Levou um momento até perce­ber que ela segurava algo contra seu peito.

Afastou o peito e viu um pergaminho enrolado, fura­do por um fio e com um lacre vermelho rachado.

A danadinha tinha tirado a mensagem de seu saco de viagem.

Sentia um misto de desapontamento e surpresa.

— O que está fazendo com isto? — perguntou ele.

Dominica deu uma risadinha que jogou seus quadris contra a virilha latejante de Garren. Ele prendeu um ge­mido.

— Deixe isto comigo — sussurrou ela. — Você es­tará mais protegido.

— De quem?

Uma pergunta estúpida. Olharam para a figura de Richard, que dormia.

Sem soltá-la, ele a levou para o meio das árvores. Uma rajada de vento fez as folhas do carvalho farfalharem, soprando bolotas que deslizavam pelo tronco até o chão.

Por que Dominica queria uma mensagem que tinha escrito? O que ela dizia? Na noite anterior, ele permiti­ra que ela guardasse o segredo. A chegada de Richard mudava tudo.

— Nica — falou Garren, suavizando a voz —, sei que prometeu a William, mas agora Richard está aqui. Precisa me contar o que escreveu.

— Ele pediu para não contar a ninguém.

Garren precisou lutar contra a admiração pela leal­dade de Dominica a William, tão forte quanto a sua. Pousou a mão no ombro dela.

— William confiou em mim para levar a mensagem. Sabe que eu nunca faria algum mal a ele.

Ou a você, pensou ele, afagando sua garganta com o polegar, sem falar alto, temendo que fosse verdade.

— Você está correndo perigo. Quero protegê-la.

— Deus me protegerá.

— Deus não protege ninguém.

—Como pode dizer isso? — Garren não precisava ver os olhos sombrios de Dominica para saber que ela o acu­sava de falta de fé. — Deus salvou Lorde William.

Garren segurou-a pelos braços, frustrado.

— Dominica, pare com isso. Ou você me conta o que William escreveu para a bendita santa, ou eu mesmo vou quebrar o lacre.

— Não, não pode fazer isso. Ele não escreveu para Larina. Foi para o Monge que cuida do santuário.

— E você se lembra das palavras?

— Sim.

— Então conte-me, para que eu não precise ler. — No silêncio, o sangue de Dominica pulsava nas mãos de Garren. Soltou, então, de seu braço, os dedos da mão esquerda dele. Calmo, ele a deixou colar a mão direita na sua esquerda, palma com palma, apontando para o céu em oração.

E, por um momento, Garren sentiu-se novamente em uma capela à luz de velas; quis ouvir sua confissão, quis pousar os lábios nos dela, entreabertos, e arrancar dela a verdade com a língua.

Dominica fechou os olhos, e as palavras rolaram de sua memória num tom monótono como na missa.

— "Quando isto for entregue, eu certamente já esta­rei morto pelas mãos de meu irmão." "Não. Morto, não..."

— Mas Richard disse que ele ainda está vivo!

— "... morto pelas mãos de meu irmão, apesar dos es­forços milagrosos de meu amigo, Garren, que, com a aju­da de Deus, me trouxe dos campos da França de volta para casa, quando todos os outros me abandonaram à morte. Porém, na minha própria cama, eu pioro. Meu ir­mão me mata aos poucos. Ele envenena minha comida e pensa que eu não sei. Escrevo isto para que Deus e Santa Larina possam ser meus testemunhos de sua traição."

Veneno. É a arma de um covarde que destrói William por dentro e irrompe sua pele em pontos brancos e verrugas pretas. Agora, pensou Garren, sei o tipo de al­quimia que o italiano de Richard pratica. Preguiçoso ou covarde demais para trilhar seu caminho no mundo como segundo filho, Richard, como um Caim invejoso, preferiu assassinar o irmão.

— Eu deveria tê-lo deixado morrer em batalha — disse Garren. A vida presenteada a William transfor­mou-se em maldição para ambos. Mas William sabia que estava sendo envenenado. Uma raiva desleal domi­nou-o. — Se ele sabia, por que deixou isso acontecer?

— Ele estava fraco e confuso. Talvez, alguns ali­mentos estivessem contaminados, e outros, não; ou ele tentasse manter a força; ou o tenham forçado a comer. Acreditou que só lhe restava pedir ajuda a Deus.

— Por que não me pediu? Por que não vi? — A cul­pa bateu fundo em seu coração. Richard assassinou William diante de seus olhos, e ele estava cego.

— Como poderia pedir a você para agir sem prova? — perguntou Dominica.

— A palavra de William é a prova de que necessito. — Como poderia reparar isso? Deveria voltar para Readington agora? Mas sequer sabia se William estava vivo ou morto. Dera sua palavra que entregaria a mensagem que exporia Richard. Este era o plano de Wil­liam. Mas alguma coisa saiu errada. Muito errada. E se a Igreja não o punisse? — Farei Richard pagar por isso.

— Foi exatamente por isso que William não contou a você. Ouça. Há mais. Diz respeito a você. — Ela apertou as mãos, pigarreou, fechou os olhos e recitou outra vez. — "Peço à Igreja que puna Richard por seu pecado de assassinato. Também peço ao Rei que dê meu castelo, minhas terras e tudo que seria do meu ir­mão com a minha morte ao meu amigo Garren, que foi mais do que um irmão para mim."

As pernas de Garren bambearam. Um lar. Terras in­glesas de um verde tão assustador que dói os olhos. Tudo pronto para morar. Um lugar para viver, envelhe­cer e morrer.

Mas o preço, a vida de William, era alto demais.

— Eu nunca pedi. Não iria querer isso dessa forma. — Garren tentou ver os olhos de Dominica no escuro, precisava que ela acreditasse nele. — Além do mais — acrescentou —, o Rei nunca concordaria.

Mas quem pode saber o que um Rei faria? Por que o Rei tinha permitido que a casa de Garren passasse do controle Real para o da Igreja?

— Nada disso importa, não vê? Se matar Richard, todos dirão que o fez para receber Readington, e não para vingar William. Devemos deixar que Deus puna Richard.

— O mesmo Deus que o deixou matar? — Deus dei­xou Caim viver. Garren não seria tão generoso com Ri­chard.

Dominica olhou-o bem nos olhos.

— Garren, se Richard sabe o que a mensagem con­tém, veio para matá-lo.

As palavras de Dominica dissiparam a raiva e a tris­teza que ele sentia, e o fizeram enxergar a realidade: era Nica que estava em perigo.

— E a você também. — Ele apertou-a em um abra­ço. — Não vou deixar, sabe disso.

— Mas não vê? Além de matar nós dois, ele precisa destruir a mensagem. Como acredita que está com você, enquanto não a tiver nas mãos, você está seguro.

Garren tirou uma folha do seu cabelo e acariciou sua cabeça. Dominica aninhou-se em seu peito, com o pergaminho na mão. Era um plano maluco. Richard iria querer ambos mortos no final.

— E quanto a você?

— Deus me protegerá — respondeu ela.

Suas palavras não eram mais desafiadoras, e Garren se perguntou se a fé que sempre a acompanhara estaria tão abalada quanto a voz.

— Então acha que Deus a protegerá, mas que você precisa me proteger. É assim que a sua fé funciona? — perguntou ele, quase rindo.

Ninguém se preocupava em protegê-lo há dez anos. Escapara de flechas e golpes de espada nos campos de batalha, sem nunca temer por sua própria vida, somente pela de William. Seria isso que Nica sentia?

E ele sentia o mesmo por ela?

— Deus protegerá nós dois — insistiu ela — mas, às vezes, Ele precisa de um empurrãozinho.

— Está bem — disse ele, deixando-a ir, ainda que relutante. Esta noite nenhuma discussão levaria a nada. — Leve-a. Vou pensar em alguma coisa.

Escapulindo dos braços de Garren, Dominica suspi­rou, mas ele não conseguiu distinguir se foi de alívio ou de pesar.

— Nica, vou dar a Deus uma grande ajuda — disse ele, ao vê-la guardar a mensagem dobrada nos seios e sair correndo por entre as árvores.

Dominica estava com a mensagem, mas Richard não poderia saber disso. Contaria a Richard que William chamou ao castelo um escriba desconhecido. Isto afas­taria a atenção de Richard em Nica.

Mas, por mais que odiasse admiti-lo, eles precisa­riam, mesmo, de uma ajudazinha de Deus.

 

Bem depois do amanhecer do dia, Garren encontrou Nica curvada sobre a Irmã, com os braços em volta dos ombros frágeis e trêmulos. Ajoelhou-se e cocou distraído o ponto sensível atrás da orelha inexistente de Inocente. O rabo curto e reto batia feliz na sua perna.

— Como está esta manhã, Irmã Marian? — Garren sabia que não gostaria da resposta.

— Ela está cansada — respondeu Nica. — Não des­cansou bem.

— Estarei bem — disse a Irmã, abatida.

— Talvez um dia de repouso... — disse Nica, com os olhos implorando por sua ajuda. Todos os seus medos estavam reunidos naquele olhar.

Perder mais um dia para William. Arriscar mais um dia com Richard. Temer que o descanso não fosse sufi­ciente. Dominica deve ter esquecido completamente como foi o outro dia de descanso em Tavistock.

— O Castelo de Restormel fica próximo, ao norte. — Garren estivera lá com William. — Acho que pode­mos, chegar lá antes do fim do dia.

— Um dos castelos do Príncipe? Nós seríamos bem recebidos?

— O Príncipe tem mais castelos do que pode contar. Ele não estará lá, mas o administrador lembrará de mim. — Garren virou-se para a Irmã. — Vamos acolchoar a carroça com mais cobertores.

— Agradeço — disse ela. — Não quero atrasar os outros. — Seus olhos encontraram os de Garren. Como um soldado no campo, ela sabe que sua hora chegou. Olhou para Nica, reunindo os cobertores para acolchoar melhor a carroça. A Irmã fez um sinal para ele não falar nada. E não quer que a garota saiba. Garren mentalizou um soco para Deus. Esta, tam­bém, não. É uma das suas.

— Vou falar com os outros — disse ele. — Tenho certeza de que ficarão felizes de compartilhar da hospi­talidade do Príncipe.

Ninguém protestou. Murmuraram alguma coisa, fi­zeram o sinal-da-cruz e, com as mãos unidas, lamenta­ram, no fundo felizes por não serem eles.

— Mal posso andar esta manhã. — Richard bocejou em cima de Garren. Como dois irmãos podiam ser tão diferentes? William era cordial, louro, guerreiro e eru­dito; Richard era superficial, moreno e egoísta. — Não posso dormir mais uma noite no chão.

— Então vai gostar do meu plano. Esta noite, dormi­remos em Restormel. A Irmã necessita de repouso.

— Também vou precisar de um dia de repouso, de­pois de ouvi-la tossir a noite inteira. Você carrega aquela freira velha como se fosse a rainha, e eu nem sequer posso montar o meu próprio cavalo!

— Sua noite mal dormida deve ter apagado as suas aulas de cavalheirismo.

As narinas finas de Richard soltaram fumaça, e ele vestiu a máscara de piedade, cobrindo o peito com a mão estirada para se desculpar.

— Desculpe-me. É a minha preocupação com o meu irmão. Ainda está com a mensagem que ele lhe deu?

Mostrou as garras muito rápido, pensou Garren.

— Claro. Ainda está lacrada, como ele me entregou. — A fronte de Richard mostrou um leve sinal de alívio.

Talvez tenha conseguido convencer Richard de que não sabe nada sobre o que a mensagem diz.

— Ele deu a você porque eu não vinha. — Richard estendeu a mão. — Agora que estou aqui, cuidarei para que chegue ao destino.

Esperto. Parece que Nica estava certa. Precisa terá prova nas mãos antes de nos matar.

— Ah, não será necessário. Dei a ele minha palavra que ninguém além do Monge a veria.

— Ah, quando ele disse ninguém, não se referia a mim. Seu desejo é que eu a leve. Ele me falou. — Os olhos de Richard desviaram-se, incapazes de enfrentar os de Garren na mentira, mas seu sorriso permaneceu. — Quando rezávamos. Logo antes da minha partida.

— Estou certo de que é verdade — disse Garren, sa­bendo que não era — mas dei minha palavra. Fiz um juramento. William fez tanto segredo, chegou a chamar um escriba de White Wood para escrevê-la.

— Dominica foi a única escriba que vi.

Garren não tirou os olhos dos de Richard. Um men­tiroso obstinado como ele com toda certeza saberia identificar outro mentiroso.

— Só sei o que ele me contou. Deve ser alguma pe­nitência secreta. — Garren forçou-se a um tapinha ami­gável nas costas de Richard. — Só podemos esperar que a Santa responda todas as nossas preces, as de Wílliam, as suas e as minhas para ele.

— E de Dominica. — Richard sorriu. Os músculos de Garren retesaram-se.

— De Dominica?

— De Dominica — respondeu Richard de pronto. — Para ser aceita na ordem.

Era um terreno incerto como o lodo escorregadio do pântano. Como Richard soube? E o que mais ele sabia? Garren cruzou os braços outra vez, querendo limpar a mão que encostou nas costas de Richard.

— Ela tem uma fé que pode mover montanhas.

— Mas talvez se adapte melhor a outras vocações.

A garota não foi feita para o véu, dissera a Priora. E incrível o fato de Richard concordar. Garren pigarreou, temendo parecer ansioso demais.

— O que quer dizer?

— Não se pode dizer que nasceu de forma digna. Sem dúvida, é filha de alguma prostituta que não tinha um lugar melhor para largar a filha,

Garren reprimiu o impulso de defendê-la. Se Ri­chard soubesse que ele se importava com ela, suas ra­zões para defendê-la seriam suspeitas. Fingiu indife­rença, e demonstrou uma leve curiosidade.

— Que vocação poderia ajustar-se a ela?

— Poderá ser uma excelente companheira na cama para algum homem. Não concorda?

Seu corpo concordava, mas a insinuação de Richard fez seu sangue pulsar de ódio. Será que ele ousaria pos­suí-la primeiro, e depois matá-la?

— Eu não sei. É um pouco alta.

— Ah? Achei que tinha visto vocês dois entrarem na mata juntos ontem à noite.

— Deve estar enganado. Além do mais, por que eu quereria ir para a cama com alguém que ama a Deus mais que a mim?

— Ela ainda não é uma freira, sabe disso.— Os olhos castanhos de Richard deixavam transparecer um ar malicioso. — E não acredito que venha a ser algum dia. — E, de repente, Garren deu-se conta do que acon­teceria a Dominica. Depois.

Seu ódio por Richard e pela Priora faiscou como um relâmpago. Depois, ele caiu em si.

Foi ele quem concordou em arruinar Dominica por trinta moedas de prata. Antes de conhecê-la. Antes de conhecer seus sonhos. Seria o instrumento para des­truí-los. Não agiria em nome de Deus, ou mesmo do diabo, mas de uma aliança entre Richard e a Priora. Ri­chard esperava, sorrindo.

O ódio ardente transformou-se em fúria gelada. Mais uma razão para Richard morrer. Garren deixou sua culpa de lado para enfrentá-la mais tarde. Neste momento, o jogo tinha ficado perigoso. Se Richard es­perava que ele fizesse mal a Dominica, precisava enga­ná-lo e fingir que o faria, ou o próprio Richard poderia violentá-la. Aliás, isso ele poderia fazer de qualquer maneira. Garren só não sabia o que Richard queria mais: o corpo, ou a vida de Dominica; mas cuidaria para que ele não tivesse nenhum dos dois.

— Não, ela ainda não é uma freira. — Garren des­viou, os olhos para ela, como que pensando na avalia­ção de Richard. — Talvez você tenha razão. E tem ca­belos lindos, não é?

— Algum homem vai possuí-la, Garren. Guarde o que estou dizendo.

Suas palavras eram uma ameaça.

 

O Castelo de Restormel ficava acima do fosso como uma coroa enferrujada, cercado por um parque repleto de cervos. Preocupada em ouvir a respiração da Irmã acima do chocalhar da carroça, Dominica quase não re­parou. Logo que cruzaram a ponte levadiça, ela obser­vou Garren tirar a Irmã da carroça com tanta facilidade como se fossem as plumas de Larina. Com administra­dor do castelo e o médico, ele atravessou o pátio.

Os dedos esqueléticos de Lorde Richard seguraram o pulso de Dominica, antes que ela pudesse segui-los. Enquanto tentava livrar-se daquela mão, ela viu Garren entrar por uma porta em arco com a Irmã nos braços.

— Não se preocupe, Dominica. Se a Irmã morrer em peregrinação, irá direto para o céu.

— Estou certa, Lorde Richard — disse ela, levantan­do a voz acima do rosnado de Inocente —, de que a Irmã irá direto para o céu, seja qual for o momento que Deus escolha para chamá-la.

Dominica conseguiu se soltar, agarrou seu saco de viagem e abriu caminho entre os peregrinos no portão de entrada, e seguiu em direção ao quarto para onde Garren tinha levado a Irmã. Gillian jogou para ela uma manta cinzenta.

— Leve-a. Para o caso de ela precisar de mais uma.

— Obrigada por sua bondade. Tenho certeza que de manhã ela estará bem. Sinto atrasar a sua viagem.

A viúva abraçou Dominica contra seus seios am­plos.

— A Abençoada Larina pode esperar um dia. Vá, ela precisa de você.

Com Inocente aos seus pés, Dominica atravessou o pátio, ignorando os murmúrios por onde passava. Tal­vez sussurrassem o que somente o arrogante Lorde Richard pode dizer.

Quando chegou, o médico e o administrador saíram do quarto.

Garren e a Irmã não a viram. De olhos cerrados, a Irmã estava deitada em uma cama estreita, tão pequeni­na que só o hábito preto lhe dava substância. Com as costas largas viradas para a porta, Garren, desajeitado, enfiou mais um travesseiro debaixo da cabeça da Irmã coberta pela touca.

Seu cuidado com a Irmã sensibilizou o coração de Dominica.

Irmã Marian encostou a mão pálida no braço direito forte de Garren. A voz que Dominica conhecia melhor que a sua própria tremia.

— Lembre-se, minha criança. Deus não espera que o amemos primeiro. Ele conhece nossos segredos e nos ama mesmo assim.

— Ah, Irmã — disse ele, com um sorriso maroto na voz —, vou deixá-la guardar os seus segredos. Deixe eu guardar os meus.

Dominica prendeu a respiração para ouvir, com cer­teza a Irmã não tinha segredos, mas ela queria desesperadamente ouvir Garren falar dos seus.

Quando Garren se virou, a tristeza dos seus olhos desmentia o otimismo de sua voz.

Então, ele também acha que ela vai morrer.

— Obrigada. — Foram as únicas palavras que Do­minica pôde dizer.

— Ela merece mais — respondeu Garren. Dominica acenou concordando, e enterrou o rosto no cobertor áspero de Gillian, feliz por Garren estar na sua frente para que a Irmã não a visse chorar. A mão dele, grande e quente, aninhou sua cabeça. Ao seu to­que, uma grande paz tomou conta dela, o tipo de paz que ela esperava sentir quando se ajoelhou pela primei­ra vez no pátio empoeirado de Readington para pedir-lhe a bênção, há muitos quilômetros dali. Depois, ele retirou a mão, e a sensação desapareceu.

Quando Dominica levantou a cabeça, ele estendeu a mão na direção do saco que ela trazia nas costas.

— Está aqui. Seguro — murmurou ela; e enfiou a mensagem na sua camisa, próximo ao coração. — Mas trate de mantê-lo longe de mim.

Garren fez uma expressão de quem ia discutir, mas Dominica fez sinal para ele calar, olhando de relance para a Irmã.

— Preciso cuidar dos outros. — Garren falou alto para a Irmã ouvir, mas seus olhos não se afastaram de Dominica. — O administrador vai trazer alimento e acender a lareira. Vou cuidar para que não sejam inco­modadas. Por ninguém. Estarei por perto.

Dominica já queria chamá-lo de volta.

Deitada em um leito no chão ao lado da cama da Irmã Marian, Dominica dormiu a noite toda um sono interrompido, ora por crises de tosse, ora por um desa­gradável silêncio.

Já era dia quando a viúva apareceu à porta. A Irmã finalmente cochilava.

— James está preparando um novo remédio — sus­surrou a viúva.

O bocejo de Dominica transformou-se em um sorri­so. Quando o médico tinha passado a ser James para a viúva Agnes?

— Ela está dormindo, agora.

— E aposto que não dormiu nada a noite inteira. Vá — disse ela, acenando com as mãos. — Leve o cachor­ro para fora. Ambos precisam de ar fresco. Vou ficar com ela. Criei cinco filhos e só perdi um.

 

Na ponte do outro lado do fosso, com Inocente atrás de si, Dominica tentou respirar fundo, mas um peso pressionava seu peito e a impedia de encher os pul­mões. A mensagem esmagava sua pele. Deus mantinha cada folha de grama presa tenazmente à terra. Por que não a Irmã?

Dominica ajoelhou-se e começou a tirar tufos de grama pelas raízes e a jogá-los em um tronco de árvore insensível. Inocente corria atrás de cada ramo que se desintegrava para trazer de volta para ela. Soluços tão fortes quanto a tosse da Irmã Marian sacudiam seu pei­to, até que ela se inclinou e enterrou o rosto nos dedos cobertos de terra.

Deus, por favor, não a deixe morrer, pensou.

— É esta uma nova maneira de rezar? — Dominica olhou para cima. Limpou as mãos na saia, e viu Garren apoiado numa árvore.

— Ele não vai levá-la — disse ela, como se as pala­vras fossem a verdade. — Não pode.

— É a primeira vez que Deus leva alguém de você. — Garren não perguntou nada.

— Implorei para que Ele a poupasse.

— Implorou? Não Lhe disse o que fazer? — Dominica engoliu as lágrimas e sacudiu a cabeça. Às vezes Deus precisa de um empurrãozinho. Como essas palavras pareciam atrevidas agora. Tão distantes da­quela garota no convento que estava sempre certa do que Deus iria fazer. Desesperançada, Dominica fechou as mãos apoiadas no colo. Será que Deus ouviria se ela as apertasse e as apontasse para o céu?

— Estou disposta a implorar, se isto mudar a respos­ta de Deus.

— E se Ele não responder às suas preces? O que vai acontecer?

— Eu não sei. — Nunca tinha passado um dia de sua vida sem a Irmã Marian. Tentou imaginar-se voltando para o convento, vestindo o hábito e pegando a pena, dia após dia, sozinha. Só pensar nisso deixou-a perdi­da. — Vai ser a primeira vez que Ele me falta.

— Vai aprender a viver com as faltas de Deus. — A amargura em sua voz ocultava seus segredos.

Dominica envolveu os braços de Garren com as mãos, dizendo a si mesma que seu carinho era por pura compaixão.

— O que Deus fez a você para ressentir-se tanto d'Ele?

— Eu tinha acabado de completar dezessete anos. — A emoção embargou sua voz. — Havia saído de casa, e estava morando no mosteiro. Minhas únicas preocupa­ções eram com Deus e os votos que eu faria.

Ela sorriu, imaginando-o com a idade de Simon, os ombros não tão largos, os lábios não tão finos, o rosto ainda resplandecente de fé. Sentiu uma dor no coração pelo menino que há muito deixara de existir.

— Onde era a sua casa?

— Perto de Berwick. Uma terra que era inglesa ou escocesa, dependendo da força das tropas e da sorte do dia. Meu pai só queria viver em paz. Sua lealdade era exclusivamente à sua terra. Isto não o tornou popular com nenhum dos lados.

— Você era um segundo filho? — Só depois que a terra estava segura com um herdeiro, um filho teria a permissão de dedicar a vida a Deus.

Garren confirmou.

— Meu irmão chamava-se James.

— Quantos anos ele tinha?

— A idade de William. — Garren fitou as mãos dela que descansavam sobre seus joelhos. — Sempre conse­guia me vencer na queda de braço.

— Você estava no mosteiro — adiantou ela. — E o que aconteceu depois?

— A peste negra chegou. Temi pela minha família, então fui para casa. Mas a praga chegou mais rápido. Ela matou James quando eu cruzei a ponte levadiça. Depois, sua esposa. E seu bebê. Mandei um recado para o meu Abade, pedindo-lhe que nos desse conforto, que orasse a Deus para poupá-los. O Abade não pôde, ou não quis ir. — As lembran­ças terríveis o levaram a apertara mandíbula. — As ho­ras passavam como se fossem semanas. A morte ocor­ria tão rápido quanto em um campo de batalha. Mas eu sabia, com certeza, que os monges oravam por nós oito vezes por dia, Eu sabia que Deus ouviria aquelas pre­ces. — Agora ele falava consigo, fitando as árvores como se estivesse olhando para o passado. — Minha mãe caiu doente no dia seguinte. Meu pai não saiu de perto.

Ambos, pai e avô, oraram juntos no leito de morte de uma esposa. Não é para menos que Garren ainda vivia sozinho. Ela se perguntou como seria ser amado assim.

— Depois, meu pai adoeceu. Finalmente, o Abade mandou uma mensagem. Meu pai precisava assinar um papel doando sua propriedade à Igreja. Depois, segun­do ele prometeu, Deus nos salvaria.

O medo pressionou os ombros de Dominica. Nem mesmo um Abade pode fazer promessas por Deus.

— O que o seu pai fez?

— Ele assinou. Ajudei-o a fazer um X. Depois, levei o rolo de pergaminho para a abadia, usando a concha de meu avô, e fiz a minha própria promessa. Quando eles fossem salvos, eu faria o caminho que meu avô havia feito até Compostela. Passei horas com a testa contra o chão de pedra diante do altar. "Leve-me em seu lugar", eu dizia. — Agora, murmurava como se novamente im­plorando a Deus: "Leve-me em seu lugar."

Deus nem sempre responde às nossas preces da ma­neira que desejamos. Mas Dominica não conseguiu re­petir as palavras ocas. Elas a sufocariam.

Como se voltasse de um transe, Garren fitou-a nova­mente, os olhos frios como a morte.

— Deus matou todos. Meu irmão, sua mulher, seu filho, meu pai e minha mãe. Mas me deixou vivo.

Dominica deitou as mãos sobre as dele, querendo abraçá-lo. Ela não podia desculpar ou explicar o plano de Deus. Os bons morreram com os maus, e a única ex­plicação da Igreja era que toda a raça humana devia pa­gar por seus pecados.

— O que aconteceu com a sua casa?

— O Abade mentiroso refestelou-se na cadeira de meu pai, e me disse que a morte deles era vontade de Deus, mas que a generosa doação reduziria seu tempo no Purgatório. — Sua risada denunciava anos de sofri­mento. — Agora virou pasto para as ovelhas gordas dos monges.

— Como o Rei permitiu isso? O direito de conceder a terra é dele.

— Talvez achasse que Deus podia proteger melhor a fronteira dos escoceses do que eu. — Sob os dedos dela, Garren fechou as mãos em punho. — O Abade ofereceu-se para vendê-la de volta para mim, se eu ti­vesse o dinheiro.

— Se você tivesse preferido trazer prisioneiros como reféns, em vez de... — Como ela podia perguntar isso? — em vez do Conde, teria sido suficiente?

— Para comprar de volta? — Dominica viu de novo o rosto de Garren que ela conhecia. Aquele que estava sempre em guerra com Deus. — Eu não deixaria Deus levar William também.

Desta vez, ele forçou Deus a levá-lo em vez de a um irmão, pensou ela. Desta vez, ele trocou seu futuro pelo do Conde, tentando corrigir um pouco os erros de Deus. Dominica compreendeu. Para ela, Readington, Lorde William, também pareciam ser sua família. E ela sempre se perguntara por quê.

— Faria qualquer coisa por ele, não é?

— Houve um tempo que eu acreditei que sim. — Os dedos de Garren escapuliram dela, e só o vento tocava o seu rosto.

— Sente saudades da sua casa? — perguntou ela. Os olhos de Garren pareciam confusos e distantes.

— Quase não me lembro, mas sinto falta de ter uma casa, um lar.

Você sabe o que é não ter uma casa? Ela mesma já tinha proferido estas palavras com veemência para ele, acrescidas da sua própria dor, sem saber que ambos ti­nham sido crianças sem lar. Pela primeira vez, ela o viu verdadeiramente como um homem, nem santo nem diabo. Um homem que levava relíquias sagradas e usa­va conchas antigas, mesmo sem fé. Um homem que não era capaz de controlar Deus mais do que ela.

— Então, você não acredita em mais nada?

— Promessas e peregrinações não fazem sentido para mim. — Garren levantou-se, como se estivesse tentando afastar-se dela para não tocá-la outra vez. Só. Terrivelmente só. Sem o conforto de uma família ou de Deus. — Você acredita porque não sabe. Quando sou­ber o que Deus pode fazer, nem toda a fé do mundo vai ser suficiente. Eu só acredito no que vejo.

Nem toda a fé do mundo vai ser suficiente. O mundo vazio que ela temia escancarava-se diante dela.

— Como você consegue? Como consegue suportar sozinho, sem Deus?

— Como você consegue suportar sem nada além de Deus?

— Mas o que existe além d'Ele?

A pergunta de Dominica pareceu acordá-lo, e ele apertou seus dedos com uma necessidade de vida ou morte.

— Um ao outro, Nica. Hoje. Aproveite o hoje. Tal­vez não tenhamos o amanhã com aqueles que amamos.

E se a Irmã morrer amanhã? Terá ela aproveitado to­dos os dias? E ela se perguntou se tinha aproveitado cada dia precioso com Garren.

Dominica levantou o rosto, sem saber por quê, e sen­tiu o ar vibrar entre os dois. A esperança e o desespero brigavam nos olhos dele. Ela tocou a manga de sua ca­misa, correu as mãos pelo seu ombro, até as costas, de­sejando que seu toque pudesse curá-lo.

Ele pegou o rosto dela entre as mãos fortes e beijou-a com muito afeto.

Dominica aceitou seu beijo como se estivesse en­trando em uma coberta conhecida, naquele espaço pro­tegido onde suas almas se encontraram. O sol brilhava aquecendo sua cabeça, a brisa brincava com sua orelha como os dedos de Garren, e a presença dele tomou con­ta dela, forte, quente e sólida como a terra.

Um focinho frio, molhado e ciumento cutucou seus dedos e cheirou as costas de Garren. Depois, Inocente pulou entre ambos, latindo para receber atenção.

Garren riu, caindo sobre a grama e as folhas do outo­no, e cocou a cabeça do cão atrás da orelha boa. Depois, com um grito, segurou um galho e arremessou-o atra­vés das árvores. Inocente correu para pegá-lo.

Garren levantou-se de um pulo e puxou Dominica para ficar em pé. O desânimo desapareceu de seu rosto, ele parecia aquele jovem de dezessete anos outra vez.

— Corra comigo.

Segura por sua mão grande e quadrada, Dominica não tinha muita escolha. Respirou fundo e correu como se pudesse se elevar da terra.

Ela estava feliz. Garren soltou suas mãos, e ela caiu de joelhos.

— Você está bem?

Quando ia responder, irrompeu num soluço.

Garren franziu a testa e inclinou a cabeça.

Ela riu. Aquilo provocou mais um soluço, e outro, até que ela deu uma risada e, arfando, caiu de volta na grama. Inocente, pronto para uma nova brincadeira, jo­gou seu galho no chão e correu para lamber-lhe o nariz e as orelhas. Dominica chiava de tanto rir.

Garren deitou-se ao seu lado, apoiado em um coto­velo, e segurando o cachorro com a outra mão.

— Inocente tem a cura perfeita. — Ele se inclinou sobre ela e estancou sua respiração com um beijo.

Mais um soluço escapou, mas os lábios dele estavam presos aos dela e abafaram o som. Dominica sentia-se tomada pelo céu azul e a grama verde.

Garren interrompeu o longo beijo, fítando-a com um sorriso.

— Melhor?

Dominica sentou-se. O ar entrava e saía dela como vida, e depois não ouve nenhum soluço, somente o ba­ter de seu coração. Respondeu que sim.

Com as mãos suaves envolvendo seu pescoço, ele acariciou seus braços, seguindo a curva de sua cintura, e beijou-a novamente, desta vez não apenas com a boca, mas com todo o seu corpo.

Talvez, pensou ela, deitada sobre a grama com ele, o que sentiu antes não foi tentação. Talvez fosse amor. Carpe diem. Talvez não tenhamos o amanhã...

Uma flecha zuniu por cima das costas de Garren e cravou-se na árvore com um som surdo.

Como um guerreiro, o corpo de Garren retesou-se, transformando-se em um escudo sobre ela.

— Pare, seu estúpido. Quem atira?

— Quem está aí? Garren? É você? — A voz de Richard era pura inocência quando ele surgiu das árvores montado no cavalo, puxando um veado morto por uma corda presa ao cavalo. — E Dominica, também? Estou surpreso. Pensei que era um veado.

Mais alguns centímetros, e ela e Garren estariam mortos como o veado. Aparentemente, eles não tinham enganado Richard, afinal.

 

Tremendo como a flecha fincada na árvore, Dominica observou Garren levantar-se para protegê-la de Lorde Richard. Uma onda de medo substituiu a excitação.

Garren ficou sobre ela, aparentemente calmo, mas seus músculos enrijeceram desde as pernas cobertas da malha metálica até a base da espinha. Garren agarrou a flecha com a mão e partiu-a ao meio, deixando a haste com a ponta espetada na casca da árvore.

— Um método de caça incomum, Richard — disse ele. — Nenhum cachorro a rastrear o veado. Nenhum arqueiro com você. — E jogou a flecha quebrada para ele. — E sem muito sucesso. Você errou.

Lorde Richard apanhou a flecha e jogou-a longe. Inocente foi atrás por entre as árvores, pronto para brincar.

— É um parque de veados. Eu não estava esperando encontrar dois amantes.

Amantes. Dominica sentiu o rosto queimar de pensar a impressão que ela dava de costas, toda salpicada de folhas e de grama. Rapidamente se levantou.

— Nós não somos...

— Deveria ter mais cuidado — interrompeu-a Gar­ren, falando com o homem no cavalo. — Às coisas mu­dam rapidamente durante a caçada.

— Sim — retrucou ele. — Vejo que sim.

— Acredito que tenha permissão do Príncipe para matar o veado — disse Garren.

— Eles se reproduzem feito coelhos. O Príncipe vai me agradecer por isso.

— Logo depois de multá-lo pela falta de licença.

— Sempre pensando em dinheiro, não é, Garren? Mas eu sabia disso quando fiz meus planos.

Que planos poderiam incluir Garren? Dominica olhou de relance para ambos, mas viu um rosto inexpressivo em Garren. Sentiu um embrulho no estômago e engoliu a seco; virou-se novamente, forçando-se a olhar dentro daqueles olhos curiosos de Richard.

— Está enganado. Nós não somos amantes. Não agora, pelo menos.

— Não? Uma pena. Achei que poderia ter resolvido ampliar seus talentos — disse ele, com um olhar mali­cioso.                                                                      

Ao seu lado, Garren quis vingar o insulto, mas ela o impediu.

O escárnio na voz de Lorde Richard a fez lembrar do dia em que estivera em uma escada vazia, presa contra uma parede de pedra fria, por aquele homem com o do­bro da sua idade e muito mais força.

Ela escapara dele então. Escaparia de novo.

Com o coração batendo na garganta, Dominica le­vantou o rosto.

— Como eu uso os meus talentos, Lorde Richard, é mais uma preocupação de Deus do que sua.

Para sua surpresa, o homem riu.

— Talvez ela ame você mais do que a Deus — falou Richard. Depois, enfiou as esporas no cavalo e seguiu para o castelo, arrastando o veado de olhos abertos, seguido de Inocente e seus latidos. — Boa caçada, Gar­ren — gritou para eles, com uma risada estridente mais alta que o farfalhar das folhas.

Boa caçada. Ele quis dizer que Garren estava caçan­do ela? Uma desconfiança ofuscou sua visão. Ainda tremendo, ela jogou as palavras para ele.

— Por que ele disse isso? Por que deixou ele pensar que somos amantes?

Um guerreiro de olhos duros tinha se apossado do corpo do enamorado risonho que acabara de livrá-la dos soluços com seus beijos. Os dedos, mais suaves que seus olhos, limparam a grama de sua saia e tiraram as folhas de seus cabelos.

— Nica, Richard acabou de atentar contra as nossas vidas. Isto muda tudo.

— O que ele disse muda tudo.

— Nica, me dê a mensagem. É perigoso demais você ficar com ela.

— Eu peguei porque sabia que você estava em peri­go. O que aconteceu prova isto.

— Isso prova que o seu plano não protege nenhum de nós dois. — Garren sacudiu-a. — Agora, me dê a mensagem.

— Não. Você e Lorde Richard... — Ela buscava a palavra adequada. — Conversaram... Sobre mim.

— Não mude de assunto — murmurou ele, com uma expressão severa.

— O assunto era este, foi você quem mudou. — Era uma discussão tola. Ela sabia disso. Mas neste momen­to, saber era mais importante do que viver. Ou morrer.

Ele a envolveu nos braços, e ela quis se fundir nele.

— Você não é tão forte assim para defender a men­sagem sozinha — murmurou ele. — Eu não posso estar sempre por perto para protegê-la.

— Deus vai me proteger.

Ao contrário da irritação que ela esperava, ele riu.

— Você não confiou em Deus para me proteger sem a sua ajuda. — Ele a apertou. — Ora, eu também não confio n'Ele para proteger a sua vida.

Dominica conseguiu fugir do seu abraço.

— Talvez seja a você que eu não deva confiar a minha vida.

— Nica, pare de me pressionar! Estou tentando fazer o que é melhor. Para você, para mim e para William. Quero que esteja segura. Não acredita em mim?

— Não sei. Por que eu deveria?

— Porque eu amo você! — Seu grito bateu nas árvo­res e voltou.

A esperança reacendeu a pequena chama de paixão que ainda queimava dentro dela.

— Obrigada — murmurou Dominica, com um nó na garganta.

— Dê-me.

Dominica enfiou a mão no pescoço, por dentro do galão da camisa, e pegou a missiva dobrada que estava guardada segura contra sua pele.

— Nada deve acontecer a você — sussurrou ela. Ou eu nunca perdoarei Deus.

Ela queria esconder-se em seus braços. Queria silen­ciar todas as perguntas e ouvir a voz calma que falaria mais alto do que as insinuações de Lorde Richard. Aquela que dizia que ela podia confiar em Garren.

Garren estendeu a mão aberta para ela, pronta.

Boa caçada, Garren.

Tola. Mesmo agora, você confia nele. Mas sabe que ele é apenas um homem. Sabe que pode ser imperfeito como qualquer pecador. O Conde confiou nele, claro, mas seu julgamento estava ofuscado pela doença. Tal­vez Richard tenha subornado Garren para ajudá-lo a matar o Conde.

Seus dedos gelaram segurando o pergaminho. Para matá-la.

Com a mensagem nas mãos, ele poderia destruí-la antes que alcançassem o santuário. Ninguém mais sa­beria da verdade sobre a morte do Conde.

Ela deixou o pergaminho dobrado onde estava.

— Já que não pode explicar o que Lorde Richard quis dizer, vou ficar com ele até Deus me dizer que não devo. — A raiva cegou os olhos de Garren.

— Deus não fala com você — falou ele.

— Ele costumava falar — retrucou Dominica, já não tão certa quanto a Deus e a Garren.

Garren não foi atrás dela.

 

Sentada no chão do quarto da Irmã Marian após a ceia, Dominica passou a faca de afiar na pena com um movimento brusco. Um pedaço grande e despedaçado voou para dentro da lareira, deixando seu instrumento de escrever irregular como a flecha de Lorde Richard.

Eu sabia disso quando fiz meus planos.

Eu amo você.

Em qual das vozes deveria confiar?

— Nica, sabe fazer melhor do que isso! — Excla­mou a Irmã Marian, levantando a cabeça e parando de tirar os gravetos do dia do pêlo preto de Inocente. — Não vai ter uma pena amanhã, se continuar assim.

— Sim, Irmã.

A repreensão da Irmã Marian confortou-a. Sentia falta dos dedos leves que tiravam terra de sua saia, e da voz suave que a censurava para parar de roer as unhas.

— Nica, o que a aflige?

— Nada, na verdade. — Dominica não tinha conta­do nada à Irmã Marian sobre o dia de hoje. Nada sobre os beijos, as flechas, ou as dúvidas. Preocupar-se com a vida e a virtude de Dominica não ajudaria na recupe­ração da freira. — Eu só estava pensando, como se faz para saber em quem se pode confiar?

— O que quer dizer?

— Lorde Richard, por exemplo. Ele é filho do Con­de, mas... — Dominica interrompeu a frase no meio.

— De algum modo não confia nele? — Dominica mergulhou a pena na tinta e deixou que ela vagueasse pelo pergaminho, sem ser dirigida. — A fé nas pessoas é como a fé em Deus. Ela nos permite agir na ausência de prova. Você tem esse tipo de fé em Garren?

Dominica baixou os olhos. Duas palavras novas ex­primiam seu pensamento no pergaminho. Garren + Dominica.

A pena tremeu na sua mão. Ela virou a folha ao con­trário para esconder a evidência de seus sentimentos.

— Com sua licença. — A cabeça do médico apare­ceu no vão da porta, e ele se encaminhou para a cama da Irmã levando um copo cheio de vinho. — Trouxe algo que a ajudará a dormir. — Ele colocou o braço atrás das costas da Irmã para que ela pudesse sentar e beber. — Não é muito. A senhora é muito pequena.

A Irmã Marian murmurou seus agradecimentos.

— A tosse está dificultando o sono.

— Há alguma coisa mais que o senhor possa fazer? — perguntou Dominica.

— A medicina por si só não é suficiente sem a ajuda de Deus. — O médico afagou-lhe o ombro, e escondeu a tristeza pela morte que vira nos olhos da Irmã. — Deus ajuda os que têm fé.

Será? Pensou ela. Por que Ele não ajudara um pe­queno Garren que acreditava tanto?

A Irmã já respirava com mais facilidade. Embrulhando-a no cobertor de Gillian, Dominica falou:

— Lembra como você costumava me agasalhar? Agora é a minha vez.

O vinho adormeceu a Irmã, que segurava a mão de Dominica. Ela parecia tão perto da morte que o cober­tor que a cobria parecia uma mortalha.

Dominica estremeceu diante daquela imagem.

Como morcegos que voam durante a noite, gritos de dor voavam pelo convento e ecoavam das paredes. Com seis anos de idade, Dominica segurava-se às saias pretas da Irmã Marian, com medo de ser pega pela pes­te negra, caso a soltasse. Tantos já tinham morrido.

— Venha — dissera a Irmã Marian, pegando sua mão. — Levante a cabeça. Ande ao meu lado.

Elas caminharam pelo labirinto de corredores de pe­dra até o scriptorium. Em um pátio perto da janela, ha­via uma folha abandonada. A Irmã Marian estendeu uma folha pequena e limpa na frente de Dominica.

— Esta podia ser uma página do nosso livro de cân­ticos, ou uma folha com as palavras de Nosso Senhor, ou um livro de orações. Tudo depende da criação dos dedos da copista.

A Irmã dobrou os dedos gorduchos de Nica em volta da haste de uma pena já sem plumas.

— Esta é uma pena. Com ela, você pode criar as pa­lavras.

Dominica passou a pena pela folha, acreditando que os traços pretos apareceriam.

A folha continuava teimosamente branca.

— Não é mágica — disse a Irmã com um sorriso. Ela envolveu os dedos de Nica com os seus, e mergulhou a pena na tinta. — Agora escreva esta letra. — Ela apon­tou para uma pequena forma em uma folha grande. — Nessa folha.

— Mas não sei como.

— É assim que se aprende. — Guiando a mão de Nica, ela traçou um a tremido sobre a folha limpa.

— Eu a estraguei — disse Dominica, as lágrimas ameaçando borrar mais ainda a bolha preta.

— Não, não a estragou.

— Eu não sei fazer isso.

— Nem eu soube na primeira vez. E preciso paciên­cia e prática. Agora, tente sozinha.

Ela tentou. A tinta escorreu pela página. As lágrimas de Nica ameaçavam fazer o mesmo.

— Belo começo. Da próxima vez, deixe a pena des­lizar, em vez de empurrá-la. Agora, tente outra vez.

Desta vez, ela bateu o excesso de tinta e fez um traço seguro, inclinado, e um círculo à esquerda, ligado ao traço. Tomou um quarto da página. Não escorreu ne­nhuma tinta. Ela sorriu.

— Está muito bom — disse a Irmã. — Mas só temos esta folha. As melhores copistas enchem a página com letras pequenas e uniformes. Além do mais, as letras menores lhe darão mais prática.

— Posso usar essa?

— Mais tarde. Depois de praticar muitos anos. Ago­ra, faça outra letra.

Cantarolando, Nica mergulhou a pena na tinta e de­senhou três letras. Duas delas estavam reconhecíveis.

— Estarei longe por um tempo. Continue pratican­do. Quando eu voltar, quero que me mostre que apren­deu a escrever as letras a e b.

Um grito de morte penetrou seu santuário.

— Não me abandone.

— Preciso fazer uma peregrinação ao santuário da Abençoada Larina.

— Quando vai voltar?

— Logo que puder.

— Como posso aprender sem você?

— Uma letra de cada vez. — A Irmã apontou para cada uma na longa lista. — Esta aqui, depois esta, de­pois a seguinte. É só exercitar uma letra de cada vez. Depois, vou ensiná-la a fazer palavras. — Ela olhou para a menina nos seus joelhos. — Não tenha medo. Lembra o que São Bernardo disse?

Dominica fungou.

— "Cada palavra que você escreve é um sopro con­tra o diabo."

A Irmã abraçou-a.

— É isto mesmo. Enquanto você faz o trabalho de Deus, Ele a protege.

Nas semanas em que a Irmã estava longe, a prática protegeu Dominica do medo. Ela aprendeu paciência e as letras a, b, c, d, e, f.

Dominica traçou as letras, agora tão familiares como todas as outras, com os dedos, no cobertor que cobria a Irmã, que dormia intermitentemente. Há muitos anos, Deus a trouxera de volta salva. A vida inteira ela não fez nada além do trabalho de Deus. Por que Ele não a protegeria desta vez?

Deus ajuda àqueles que acreditam. Mais dois dias, e eles estariam no santuário.

Mais dois dias, e estaria na hora do seu sinal.

Se é que haveria um.

Seu coração palpitou loucamente quando ela percebeu que tinha duvidado de Deus. Distraída com Garren, tinha absorvido sua descrença. Como homem, ele era mais perigoso do que como diabo. Sabemos que um diabo questiona Deus. No desespero por sua família, ele tornara sua dúvida tão compreensível, até para ela.

Talvez as suas aflições estivessem matando a Irmã Marian.

Mas Deus não a abandonaria. É óbvio que receberia o seu sinal. Um sinal que qualquer um identificaria. Claro. Inconfundível. Algo que provaria a sua fé. Algo que salvaria a Irmã Marian. Algo que até Garren acre­ditaria.

Ela provaria a Ele e a si própria que ela acreditava. Na ausência de prova, Deus teria que lhe dar um sinal. Talvez, Ele precisasse de um empurrãozinho.

 

No dia seguinte, seguindo o rio até a costa, Garren tentava pensar em tudo: no caminho, em Richard, em William e em deixá-la ficar com a mensagem. Procu­rou pensar em tudo, exceto no que admitira. E no signi­ficado daquilo.

Eu amo você. Agora ele sabia. Agora Deus sabia. E agora Deus podia levá-la como levara a todos que ele amou.

Atrás dele, a gritaria dos peregrinos abafava o canto dos pássaros.

"Asas para voar como Larina, voar como Larina, voar como Larina."

Como se santos voadores fossem páreo para a mal­dade de Richard, pensou ele. Ou a minha.

A concha de chumbo balançava acusadora no seu cajado. Durante toda a tarde, procurou pensar com ló­gica sobre as suas escolhas.

A Priora estava certa. Nica não tinha nascido para ser freira. Mas se ele a possuísse, destruiria todos os seus sonhos. Ah, se William ainda estivesse vivo, ele poderia dar-lhe um presente final, reembolsá-lo por tudo, de alguma forma. Talvez ainda sobrasse algum dinheiro para ajudá-lo a começar uma vida nova.

Mas para pagar a William o que devia, contudo, ele recompensaria seu assassino. E Nica terminaria sendo a amante de Richard, ou pior.

O corpo de Garren doía de tanto desejá-la. Ele ansia­va por abraçar, dar carinho, fazê-la feliz. Dar o que ela queria.

Ele suspirou, O que ela queria era um lar no conven­to, por mais absurdo que isso fosse. Se ele voltasse para William de mãos vazias, precisaria enfrentar seu desa­pontamento. Também enfrentaria a raiva de Richard. Seria expulso e precisaria se fazer no mundo sozinho, pelo próprio esforço, ainda que já estivesse mais fraco a cada ano.

Mas se não a protegesse, Richard a teria mais cedo ou mais tarde. E de uma maneira mais cruel.

E, neste momento, Garren não podia oferecer a ela nada além do medo que sentia de que Deus a levaria embora como a todos os outros.

— Eram árvores iguais a estas — disse a Irmã Ma­rian no fim do dia. O sol piscava através das folhas, e ela deixou que ele pousasse no seu rosto frágil, cada dia mais pálido. — Foi nesta floresta que Larina correu.

Garren não prestava muita atenção. Talvez, as plumas de Larina fossem mesmo um bom presente. Mas se Dominica algum dia descobrisse que ele iria roubar uma relíquia, o pouco de confiança que ainda tinha nele desapareceria. Quem sabe, se ele voltasse para William com a pluma de ganso e dissesse que era a verdadeira. Por que não? Não faria nenhuma diferença mesmo ele dar seu último suspiro em uma pluma de ganso ou ou­tra, se é que já não estava morto.

Finalmente, as árvores do caminho ficaram para trás.

— Vejam. O mar! — Dominica gritou de alegria. Depois, abriu os braços e clamou para os céus. — Eu me coloco nas Suas amadas mãos.

E, então, começou a correr em direção à beira do pe­nhasco, veloz como Santa Larina perseguida pelos javalis selvagens.

 

Garren correu atrás de Dominica com a pressa de quem está indo atrás da sua própria vida. O relicário golpeava seu peito a cada pisada, Dominica o superava, correndo a toda velocidade, como se estivesse possuí­da, nem parecia que estava em peregrinação há dez dias. Como se não fosse parar na beira do penhasco. Garren acelerou a corrida.

Próximo aos penhascos altos que descem para o mar, Dominica abriu os braços e rodopiou, dançou, gi­rou, sem olhar onde pisava. Uma onda bateu contra as rochas, e uma rajada de gotículas cobriu seu cabelo cor de mel. Temendo chegar tarde demais, Garren orou. Salve-a, Deus, e deixarei que ela seja Sua. Dominica vibrava, já sem distinguir alto de baixo, mar de terra.

Garren investiu para cima dela, e jogou-a ao chão a pouco menos de dois metros do penhasco.

— Sua maluca! — gritou ele para o vento, deslizan­do as mãos por sua cabeça, acariciando seus ombros, explorando suas costas, investigando se havia algum osso quebrado. — Podia ter se matado.

Garren virou-a para ele, envolveu-a com o corpo e ouviu sua respiração. Queria senti-la para ter certeza que ela estava ali.

Dominica aninhou-se nele. A respiração estava irre­gular, os olhos fechados, mas ela estava viva. Viva.

— Nunca mais me assuste assim — sussurrou ele, pressionando os lábios na curva suave e quente de seu pescoço. A pulsação dela contra os seus lábios.

Dominica abriu os olhos com um sorriso atordoado, o vento soprando os cabelos no rosto. Garren saiu de cima dela, e ela se sentou. Não o via, Nem a nenhuma criatura da terra.

— Por que me impediu? Eu ia voar. — Dominica piscou os olhos e sacudiu a cabeça, confusa, até que o viu pela primeira vez. — Ah, você tem razão. — Ela enfiou a mão dentro da roupa, e jogou a mensagem amassada na mão dele. — Ela podia ter caído no mar.

Antes que ele pudesse tocá-la, Dominica ficou de joelhos e, cambaleante, foi novamente na direção do mar, Garren segurou sua mão, mas sua força era quase páreo para a dele, como se Deus a estivesse ajudando.

Dominica estancou por um momento.

— Deixe-me ir. Quero mostrar a você. — O vento salgado arrebatou sua risada, leve como uma pluma. Ela levantou o braço livre como se fosse uma asa, cheia de fé e sem nenhum medo. — O espírito está aqui. Eu o sinto. Eu posso voar.

Ele a puxou para os seus braços lutando para segurá-la, para trazê-la de volta à realidade.

— Nica, você não pode voar. Ninguém pode voar.

— Latina voou!

— É apenas uma história, Nica. As pessoas não po­dem voar de verdade.

Como se vindo de muito longe, na direção das árvo­res, Garren ouviu o grito de Simon, ou talvez de Jackin, muito fraco para chegar até ele contra o vento. Domini­ca era sua única realidade.

Enlouquecida, ela empurrou o peito de Garren com as mãos, desviando o corpo para libertar-se.

— O que quer dizer? É por isto que estamos aqui. E por isto que você está carregando as plumas dela. — De repente, ela se acalmou e acariciou o relicário de prata amassado que ele trazia no pescoço. Envolveu-o com a mão e encarou Garren. — Dê-me uma pluma. Assim poderei voar. — Garren soltou sua mão do relicário e bloqueou o ca­minho para o penhasco.

— Elas não são das asas da santa. — Garren queria falar mais calmo, suave, mas precisou gritar acima do vento, e chocalhar o relicário de prata diante do rosto dela, na tentativa de levá-la a recobrar a razão.

— O que quer dizer? — A calma desapareceu, e um tremor tomou conta de todos os seus membros, como se ela realmente tivesse asas, e elas estivessem batendo para levá-la dali. — É claro que são. Eu as vi.

Garren sentiu raiva. Raiva da fé tola, da Igreja com suas mentiras, de Richard e da Priora por levarem-no à beira deste precipício. E dele mesmo.

— Nica, elas são plumas. — O vento incessante le­vou as palavras e as jogou no rosto de Dominica. Ele a salvara. Continuaria mantendo-a salva. Não importava o que precisasse fazer. — Plumas. É tudo o que são. Nada mais. Nada além do que você vê.

Ele a soltou só para abrir o relicário.

O vento levou a pluma de ganso para o céu. Domini­ca gritou e pulou mas só segurou o ar.

As plumas voaram na direção do mar.

Garren pegou a mão dela, mas, com a força da fé, ela o arrastou para o penhasco ao perseguir as inúteis plumas de ganso. Elas giraram em um redemoinho de ven­to na beira do penhasco, dançaram ao lado de uma gaivota e desapareceram.

Dominica o fitou com um misto de dúvida e de fé ardente nos olhos.

— Como pôde jogar fora as plumas de Larína?

— Ainda não entendeu? — Ele envolveu suas mãos frias nas dele. — Eram simples plumas que eu catei na lama dos gansos.

— Não. — Dominica afastou-se bruscamente, ace­nando as mãos para espantar as palavras dele. — Você me disse que eram de Larina.

— Eu menti.

Dominica esquivou-se como se ele tivesse jogado uma pedra.

— O Salvador mentiu?

— Eu nunca usei a palavra salvador. Foi você.

— Que outras mentiras você contou?

— Nica...

— Era mentira que você me amava?

— Não. — Ela precisava saber disso. — Por que acha que eu não a deixei pular e morrer?

— Deveria ter deixado. Se eu não conseguisse voar, pelo menos teria morrido feliz. Mas teve que se fingir de Salvador outra vez. — Ela riu, agora num tom amar­go como o dele. — Não basta você não ter fé? Precisa destruir a minha também?

— Deus nem sempre responde às nossas preces da maneira que desejamos.

— Uma frase fácil para um homem que não acredita que Deus responde alguma coisa. — Dominica caiu de joelhos, derrotada. Toda a força que a mantinha se es­vaiu, e ele sabia que, se a tocasse, ela desmoronaria.

Salve-a, Deus, e eu deixarei que ela seja Sua.

Não, Deus não respondeu como ele imaginara.

A fé de Dominica em Garren era como uma prece, pensou ela, ao observar uma onda que se elevava sobre o rochedo onde as gaivotas se ajuntavam. A resposta de Deus foi cruel.

Em uma rocha acidentada, um pássaro cinzento abria as asas salpicadas de preto. Alçado pelo vento, pairou acima da rocha e foi forçado a retornar, sem conseguir subir. Finalmente, guardou as asas e ficou na rocha.

Nem os pássaros conseguem voar contra o vento.

Trêmula, Dominica fechou os olhos. Ela abraçou o corpo quente e agitado só por hábito, sem sentir con­forto. Ou dor, ou raiva, ou alegria. Só um vazio esma­gador.

Sem muita consciência do braço de Gillian em seus ombros, ou da voz do médico, Dominica deixou-se le­var para o lado das árvores e ser colocada na carroça. Os braços da Irmã Marian a envolveram, leves como as plumas perdidas. Dominica afundou o rosto no ombro em que chorara tantas vezes quando criança. Agora, a clavícula era frágil sob a pele transparente.

Garren tocou sua mão, e ela o fitou. O rosto irregular e os olhos verde-mar opacos pareciam de um parente que se foi e é lembrado.

— Deixem o burro andar no seu próprio passo — disse ele, guardando as rédeas na carroça. — Estare­mos sempre à vista. Devemos chegar ao santuário antes do anoitecer.

Gentil, pensou ela, por deixá-la em paz. Ela o obser­vou juntar-se aos outros, sempre próximo de Roucoud. Cada rosto que se virava lhe era familiar, mas não fazia mais parte do mundo dela. Gillian a fitava como se ela fosse um anjo; Ralf, como se tivesse visto Deus; e Si-mon, como se estivesse demente.

O burro, paciente, seguia o caminho sem ninguém segurar as rédeas.

— Eu tentei voar, Irmã. — Seu rosto estava ressecado das lágrimas ou da água do mar. — Estava pronta para provar a minha fé, e Deus me faltou.

Os dedos pálidos e determinados da Irmã viraram seu rosto para ela e obrigaram-na a responder aos olhos amados e cansados.

— A força da sua fé depende das preces atendidas? — As palavras ofenderam.

— Eu queria dar a minha vida a Deus, como você.

— Qualquer vida pode ser dada a Deus. Eu dei a mi­nha à Igreja.

— Deus não me deu o sinal que eu precisava — dis­se Dominica, engolindo as lágrimas.

— Lembra-se quando me contou sobre Gillian e a corrente de ouro? Achou que um pedido desses era in­digno. "Deus não é um fornecedor de presentes do Dia de Reis", foram suas palavras.

— O que eu quero não é o mesmo! Quero servir a Deus.

— Quer o que interessa a você. E se Deus quiser ou­tra coisa? — A Irmã continuou. — Achar que você sempre sabe qual é a vontade de Deus não é fé. É orgu­lho. Está pressionando Deus como costumava pressio­nar a pena.

— Mas só posso difundir a palavra d'Ele como membro da Igreja.

— Se acreditasse nisso, não pensaria em escrever as palavras de Deus para as pessoas terem acesso a elas sem ser através da Igreja.

— Então, talvez Deus esteja me punindo pela minha heresia.

— Heresia é uma palavra da Igreja, não de Deus. — E sem sentido, pensou Dominica. Se não há nenhu­ma razão para a fé, não há razão para heresia.

A Irmã Marian acariciou os cabelos de Dominica. Cambaleando com a carroça, sua menina via o mundo passar, exatamente como era antes. Terra, árvores e céu. Nada milagroso.

— Eu pensei que Deus me deixaria voar...

— Há mais de uma maneira de voar — disse a Irmã. — O pardal bate as asas até elas ficarem indistintas. A gaivota é levantada pelo vento.

Nem sempre, pensou Dominica.

— Garren tem razão. Deus faz o que Ele quer, inde­pendente da nossa fé.

— A sua fé não pode depender de ninguém. Garren talvez não entenda a fé dele. Ele voa diferente de todos nós. — Sua voz transformou-se num sussurro, como se ela não mais estivesse falando com Dominica. — Tal­vez, Deus aja através dele, mesmo que ele não acredite como você.

— Já não sei em que eu acredito. — A Irmã tentou confortá-la.

— Talvez eu tenha procurado incutir em você a mi­nha fé, em vez de deixá-la livre para encontrar a sua. Mas eu queria corrigir...

Recostada contra as ripas de madeira da carroça cambaleante, Dominica estendeu a mão para apertar a da Irmã.

— Você não fez nada além de me amar a minha vida inteira. Não houve nenhuma coerção nisso.

— Amanhã, minha filha, quando chegarmos ao santuário. Seu sinal pode estar lá.

Dominica pegou as rédeas sem responder. Não pro­curaria mais sinais. Não pularia mais de penhascos. Ninguém salvaria a vida da Irmã. Ou a dela. Garren esvaziara seu universo de Deus. A irritação de Garren diminuía, e seu espanto au­mentava. Ao reviver o momento em que achou que ela estava perdida, ele repetia as palavras mentalmente. Salve-a, Deus, e eu deixarei que ela seja Sua. E ela tinha sido salva.

Tarde demais para argumentar que ele poderia tê-la alcançado sem aquela prece. Tarde demais para explicar a Deus que a queria agora para abraçá-la, protege-la, e dar-lhe carinho. Deus sabia. E, por isso, a estava tirando dele. Não para a morte, como os outros, mas para uma vida onde ele a perderia do mesmo jeito. E porque a amava tanto, queria que ela conseguisse reali­zar seu desejo. Se estava disposta a morrer por isso, ele a deixaria viver para isso.

Não podia competir com Deus, pois não tinha nada a lhe oferecer. Só o seu coração.

Frente à vontade de Deus para Nica, sabia que a Priora ainda precisaria de um sinal. O que poderia con­vencê-la para permitir que Nica entrasse na ordem?

Riu. Simon e o médico o encaravam, como que se perguntando se ele também tinha sido tocado como Dominica. Garren fez um gesto com a mão para tran­qüilizá-los.

Criaria uma prova em que até a Priora acreditaria. Quando voltasse, contaria que Deus tinha aparecido em uma visão e pedido que não tocasse na jovem e a mantivesse pura, pois Ele a escolhera para ser uma noi­va de Cristo. Diria à Priora que o próprio Deus tinha descido e atrapalhado seus planos mesquinhos, trans­formando o coração de um incrédulo pecador para que fizesse Sua vontade. Ah, sim, pensou ele, reprimindo a dor de perdê-la, seria um instrumento de Deus, afinal.

 

— Santa Mãe de Deus! — A voz da viúva ribombou no ouvido de Dominica, quando os peregrinos se agru­param na praia. Juntos observaram a água que se esten­dia entre eles e uma pedra que mal tinha tamanho para ser chamada de ilha.

— Não é a Catedral de Santiago, é?

Reprimindo seu próprio desapontamento, Dominical cambaleou quando a Irmã se apoiou nela. Os pedidos de Dominica e de Garren não a dissuadiram de percor­rer o último quilômetro descalça. Agora, os pés san­grando quase não a mantinham ereta.

— Todas as vezes, venho à Abençoada Larina como uma humilde pecadora — insistiu ela.

Não mais humilde do que o santuário de Larina, pen­sou Dominica.

O Santuário da Abençoada Larina confundia-se com a pedra que o apoiava, construído por mãos amorosas, porém não qualificadas.

— Catedral? — falou Lorde Richard ríspido. — É uma pedra coberta de estéreo.

Até Garren parecia desanimado.

Dominica compreendeu. Estava agradecida por Gar­ren tê-la feito ver que sua fé era exagerada quando acreditava em milagres celestiais, e ela agora se ques­tionava sobre os milagres terrenos. Onde estava o po­der, ou autoridade da Igreja, que prenderia e levaria a julgamento Lorde Richard?

— Bem-vindos, peregrinos. — Um irmão leigo, a cabeça com tufos de cabelo desalinhado, de perna dura, saiu mancando de uma cabana rústica. Um sorriso in­fantil vincou seu rosto redondo ao dirigir-se, cambaleante, para o grupo.

— Irmã Marian? É você?

A Irmã levantou a cabeça do ombro de Dominica, tateando à procura das mãos do Irmão, cansada demais para abrir os olhos.

— Irmão Joseph? Ainda está aqui?

Dominica olhou para Garren, que pareceu entender sua preocupação. Este homem simples não era de quem eles precisavam.

— Está doente? — Ele acariciou-lhe as mãos com seus dedos gorduchos. — Não tenha medo. A Aben­çoada Larina irá curá-la como já o fez antes.

— Desta vez, vim por outros motivos, Irmão Joseph.

— Precisamos falar com o responsável pelo santuá­rio — falou Garren. — Onde ele está?

— Ora, no santuário, claro — respondeu o Irmão, e o sorriso infantil enrugou de novo seu rosto redondo.

— Pergunte a um tolo e terá uma resposta imbecil — comentou Lorde Richard com uma risada sarcástica.

Dominica levou um susto com sua crueldade, mas o sorriso gentil do Irmão Joseph não vacilou. Ela se aproximou de Garren e apontou para três pequenos barcos atracados na praia.

— Poderíamos pegar um barco e estar lá antes do anoitecer.

Os ouvidos do Irmão Joseph eram aguçados, apesar de sua mente simples. Ele sacudiu a cabeça:

— Não, não, não. Os barcos são para levar supri­mentos.

— O que devemos fazer? Nadar? — zombou Lorde Richard.

— Arrastar-se — respondeu o Irmão Joseph, com um sorriso puro, e a Irmã Marian concordou. — Quan­do a maré estiver baixa.

Dominica se arrastaria, então, para entregar a men­sagem.

— E a que horas será a maré baixa? — perguntou Garren, paciente.

— Amanhã ao meio do dia. Mas nosso santuário é pequeno. Só podem ir três de cada vez. Deixe-me con­tar. — O Irmão Joseph caminhou por eles, tocando o nariz de cada peregrino com um dedo diferente. — Vai levar quatro dias para todos visitarem.

Lorde Richard quase lambeu os lábios. Dominica sentiu um calafrio. Mais quatro dias que ele teria para matá-los. Não seria prudente esperar.

— Talvez eu pudesse descansar agora — vibrou a voz frágil da Irmã ao seu lado.

Sentindo-se culpada por ter esquecido da Irmã, mes­mo que por um breve momento, Dominica virou para trás. Garren, mais rápido, segurou-a nos braços e diri­giu-se para a cabana. Ela estava mole de fraqueza.

— Leve a Irmã para o meu quarto — disse o Irmão. Dominica seguiu-o para dentro da cabana, passando por um banco de madeira lascado, onde havia inúmeras medalhas expostas para serem vendidas. Plumas de chumbo. Pesadas como seu coração. A cabana não era mais confortável do que uma estalagem para peregrinos, e o quarto não passava de uma cela, sem sequer o conforto de uma lareira. Ao canto, uma vela redonda e larga, que nunca era acesa, estava assentada em um suporte de ferro bem rústico. Um amontoado de palha no chão estava posicionado de for­ma que o Irmão Joseph pudesse avistar o santuário.

— Ele me faz um sinal quando precisa de alguma coisa — disse o Irmão Joseph, enquanto acendia a pre­ciosa vela e indicava com a cabeça o buraco quadrado, tosco, na parede de taipa.

Dominica forrou a palha com seu próprio manto an­tes de Garren deitar a Irmã de frente para a pedra que ela tinha andado tanto para alcançar.

— Vou cuidar dos outros — disse o Irmão Joseph, deixando-os a sós.

Dominica via em Garren o homem suave e firme, e não mais O Salvador. Mesmo assim, ele, de certa for­ma, a tinha salvado das ilusões tolas, pensou, e ela ain­da não tinha agradecido. Mesmo quando orava pela vida da Irmã, Dominica não acreditava que Deus ouvi­ria. Só acreditava no que eles podiam fazer: entregar a mensagem que levaria um assassino à justiça.

— Ainda está com a mensagem? — perguntou ela. Ele afirmou sem tirar os olhos dela.

— Dominica, quando voltarmos para Readington, há uma maneira...

— Jejuar? Não vou jejuar esta noite! — explodiu Lorde Richard atrás deles. — Meus pés estão sangran­do! Descubra alguma comida para mim nesta choça.

Garren se levantou, endireitando os ombros.

— Preciso ir.

Dominica encantou-se quando ele assumiu mais uma vez o fardo de líder, perguntando-se por que um ateu teria vindo.

Logo que ele saiu, Gillian, delicadamente, veio ficar ao seu lado. Grata por seu oferecimento silencioso de ajuda, Dominica tratou de deixar a Irmã mais confortá­vel. Retirou o véu preto e desamarrou a touca de borda branca. Finos tufos de cabelo grisalho misturavam-se à palha grossa. Juntas, elas tiraram seu hábito. Sem a roupa preta, coberta com a manta de Gillian, seu pe­quenino corpo parecia estar encolhendo até sumir.

Inocente pulou para cima da manta, escondendo o focinho frio.

O médico entrou, de mãos vazias. Não haveria ne­nhum vinho quente esta noite. Gillian fez espaço para ele tocar a testa da Irmã e segurar os finos ossos de seu punho, onde um pouco de vida ainda pulsava.

— Após uma noite de descanso, ela estará melhor — disse Dominica, como se ainda acreditasse que as pala­vras podiam tornar aquilo realidade.

— Se for a vontade de Deus. — Os olhos empapuçados do médico falavam a verdade. Amanhã não seria melhor do que hoje.

Gillian abraçou-a e deixou-a a sós com a respiração difícil da Irmã, e os olhos melancólicos de Inocente.

Quando criança, Dominica sempre esparramava os dedos sobre a mão da Irmã Marian, querendo que o dedo médio criasse um sulco e um calo como o da Irmã, onde a pena se acomodava. Agora, à luz tremida da vela, via que aqueles mesmos dedos de sua mão tinham crescido mais que os da Irmã, e que a pequena protuberância ao lado do nó do dedo igualava-se à dela.

O baralho das ondas tornava indistintos os murmú­rios que vinham do outro quarto, quando os outros co­meçaram a dormir. Pelo buraco da parede, via-se o anoitecer. Somente o brilho fraco de uma lanterna perpétua, acima dos ossos de Larina, iluminava a escuri­dão lá fora.

Dominica não percebeu que tinha dormido, até que as palavras da Irmã a acordaram. Devido aos muitos dias de tosse, sua voz era quase irreconhecível, mas as palavras eram tão familiares quanto a missa.

— Era uma manhã de verão. Eu ainda era uma novi­ça, com a função de abrir o portão para os viajantes, mas, naquela manhã, o sol apareceu antes de mim.

Dominica sorriu. As palavras a levaram de volta à infância, onde nada jamais mudava.

— Silêncio, esta noite você está cansada demais para contar a história.

A Irmã continuou:

— E eu fui até o portão e lá estava uma cesta coberta com um pano.

— Maçãs — concluiu Dominica, como de hábito. — Como Moisés.

— Coberta com um pano na cor azul de Readington. — Dominica ficou mais atenta. Certamente, tinha ouvi­do mal por causa das ondas.

— Azul como os meus olhos. A história é assim.

— Eu não contei a você a história toda, Nica.

— O que não me contou?

— Aquela mulher jovem e tola era eu.

Devo estar cansada. Ou não estou ouvindo direito a voz frágil da Irmã com o barulho do mar. Dominica in­clinou-se e chegou mais perto.

— O que quer dizer?

— Eu sou a sua mãe.

As ondas continuavam vindo, incontroláveis, mas certamente o mundo deve ter parado. Aquele barulho deixou-a tonta, como se tivesse chegado ao fim da terra e pudesse cair dali.

— Minha mãe? — Dominica repetia como um papa­gaio. — Ah, sim, você sempre foi como uma mãe para mim...

— Dominica. Você é minha filha. — Dominica deitou a cabeça nos ombros da Irmã, não, da sua mãe. A mulher que mais a amou no mundo. Agora sabia por quê.

— O tempo todo. O tempo todo eu tive você. Você estava lá para mim, e eu não sabia.

— Você sabia. À sua maneira. Eu não pretendia con­tar a você mais do que aquilo.

Sua vida, a vida da Irmã, nada no mundo era o que ela pensava. Tinha uma mãe. Isto significava...

— Quem era... — Dominica engoliu a seco. Não conseguia dizer o meu pai. — Quem era o homem?

— John. Conde de Readington. — A Irmã afastou um fio de cabelo da testa de Dominica. — Você tem os olhos dele.

— O pai de Lorde Willíam? — Tal como o filho, um homem grande e louro, forte e corajoso que admirava suas letras infantis ao soletrar a Oração do Senhor. Pater noster, qui es in coelis... — Mas como... — Domi­nica gaguejou, sem saber como perguntar.

Uma lágrima da idade de Dominica escorreu dos olhos até o cabelo ralo da Irmã Marian.

— Ele tinha muito interesse no nosso trabalho. Mais do que um patrono. Quis aprender a escrever, e a Priora me escolheu para ensinar. Passamos muitas horas tra­çando as letras. Juntos.

Juntos. Próximos. Próximos o suficiente para senti­rem o espírito mover-se entre eles. Como estivera com Garren, pensou Dominica.

— Quando descobri que estava carregando você, ocultei sob um manto de peregrino, e vim até a Aben­çoada Larina pedir ajuda. Ela me disse para ficar com você.

— Eu nasci aqui? Então como cheguei ao convento?

— John enviou uma ama de leite comigo, e foi quem a deixou no portão. Ele tinha muito orgulho por você saber escrever. Queria que você sempre tivesse um lar no convento. "Todos os que ali moram." Escreveu es­tas palavras por sua causa.

O convento e todos os que ali moram. O lar que a vida inteira quisera sempre tinha sido seu.

— Madre Julian sabe? — A Irmã negou.

— Lorde William?

— Não.

— O irmão dele?

— Você foi um pecado só meu.

Pecado. Para Dominica, a palavra não combinava com a Irmã, não importa o que a Igreja pudesse dizer.

A Irmã procurou a mão da filha e apertou-a com uma força que surpreendeu Dominica.

— Deve guardar o segredo, — A Irmã ofegava que­rendo respirar. — É perigoso... se acharem que a filha de Sir John quer... Readington.

— Não vou contar a ninguém. Prometo. — A pro­messa era pela reputação da Irmã, não para sua própria segurança. Uma mulher órfã, fruto de uma relação nada convencional, não era nenhuma ameaça para Lorde Richard. Além disso, ele já a queria morta mesmo. Não havia necessidade de dar-lhe mais motivos. Para ela, saber que Readington era seu lar, já era o suficiente.

— Eu vim... para agradecê-la novamente — conti­nuou a Irmã. — Você deve vir. Quando eu for embora.

— Isso vai ser daqui a muito tempo.

— Não é hora de mentiras — retrucou a Irmã.

Dominica tentou orar. Sabia que a Irmã tinha razão.

Não haveria uma cura milagrosa. Deus já tinha respon­dido com um não.

Dominica levantou-se do chão duro de terra. Se a morte está aqui, pelo menos podia suavizar o caminho da Irmã para o céu.

— Vou chamar o Irmão Joseph para fazer os últimos ritos. — Certamente, Deus entenderia se um irmão leigo conduzisse os ritos em vez de um padre.

— Não.

Ela deve estar delirante, pensou Dominica, ajoelhando-se ao seu lado, soltando seus dedos delicada­mente. Depois de uma vida tão piedosa, deve querer os últimos ritos.

— Se morrer sem confissão, não poderá ir para o céu. — Palavras em que ela não acreditava mais. Um resíduo do treinamento que se sobrepunha à experiência.

A Irmã voltou a segurar a saia de Dominica.

— Sem confissão.

— Mas você se confessava todos os dias.

— Nunca confessei isso.

— Ele a perdoa. Todos que têm arrependimento no coração são perdoados.

— Eu não me arrependo. — A Irmã caiu para trás sob o manto, e olhou para o céu lá fora vazio de estre­las. — Deus conhece os meus segredos. É Ele, e não a Igreja, que deve julgar a minha vida.

— Mas você deu a sua vida à Igreja! Este foi o sen­tido da sua vida.

— Era o propósito. Você era o sentido. Eu queria que você fosse a freira que eu não pude ser. — Ela fechou os olhos e relaxou os dedos. —Talvez eu tenha feito pressão demais sobre Deus — sussurrou ela.

Dominica enfiou a vela de volta no suporte. Resol­veu deixar o Irmão Joseph dormir.

— Direi que você fez sua última confissão a mim.

Eu queria que você fosse a freira que eu não pude ser. Talvez eu tenha feito pressão demais sobre Deus.

A peregrinação de Dominica nunca foi dela de ver­dade. Agora, tinha terminado em uma pedra vazia na beira do mundo. Aquela que fora seu modelo de vida, com a fé perfeita, vivera uma mentira. O que mais ela precisava para aprender? Até mesmo a fé perfeita não levava a nada. Não há razão para ter fé em Deus. Ne­nhuma razão para fazer nada além de existir até a liber­tação pela morte.

— Cuide de Inocente. Quando eu for embora.

— Não se preocupe. — Dominica acariciou-o, e eles ficaram unidos em um círculo. Com uma mão seguran­do a Irmã, e a outra Inocente, não sobrou nenhuma para enxugar a lágrima que pingava do queixo.

— Nós só estivemos... juntos uma única vez — falou a Irmã. — Eu me apeguei a essa lembrança que me acompanhou todas as noites da minha vida.

— Pater noster, qui es in coelis — começou Domi­nica — sanctificetur nomen tuum.

Dominica adormeceu segurando a mão da Irmã, e acordou em um quarto escuro e frio, vazio da sua alma imortal.

 

Do lado de fora, as ondas rolavam uma após a outra, exatamente como antes. Dominica olhou pelo buraco tosco da parede para ter certeza. Algumas nuvens ainda cobriam o horizonte, camuflando a aurora. Gaivotas dormindo ocupavam a pedra de Larina.

Como o mundo podia parecer o mesmo quando tudo o que ela conhecia estava despedaçado?

Dominica voltou a olhar para a Irmã. Não, para o corpo que a Irmã recuperaria com a ressurreição. Tal­vez estivesse enganada. Talvez ela não estivesse morta. Dominica chegou mais perto. Nenhuma respiração movimentava o peito da Irmã. Deliberadamente, abriu a boca e engoliu o ar. Quem sabe, com a sua inalação, a Irmã pudesse respirar de novo.

Os peregrinos deveriam orar na noite anterior à ida ao santuário, mas, em vez disso, dormiam, irrefletidamente, desejando sair do mundo por algumas horas. Com a certeza de que retornariam.

Com dedos indiferentes, Dominica tirou do saco o pergaminho, a pena e a faca. Pareciam peso morto nas suas mãos. Queria escrever palavras de louvor, elogios e recordações para a Irmã, mas as palavras não vieram.

Nunca mais pegaria uma pena.

De repente, precisou sair do quarto. Mais tarde, en­frentaria as conseqüências da morte, responderia a cada peregrino que se aproximasse para polidamente dizer bom-dia e perguntar se a Irmã estava se sentindo melhor hoje. Agora, precisava gritar, chorar e soluçar onde os sons não acordariam ninguém.

Beijou a fronte fria da Irmã. Estendido sobre a man­ta, Inocente não levantou a cabeça.

— Cuide bem dela — murmurou para o cão. Quando passou, pé ante pé, pelos peregrinos que dormiam, nem sequer olhou para ver Garren.

Do lado de fora, encheu os pulmões de ar salgado, livre do cheiro da morte, e caminhou pela areia úmida, apertando o pergaminho em uma mão e a faca e a pena em outra. A maré vazante encalhou os pequenos barcos de suprimento do Irmão Joseph no alto da praia rocho­sa. Os peregrinos se arrastam quando a maré está bai­xa, dissera ele. Hoje, após uma noite de jejum e uma manhã de confissão, estariam se arrastando pelas pe­dras molhadas para fazer sua prece diante da santa. Do­minica já não orava para receber um sinal para entrar para a ordem. Não havia nada que a prendesse ao mun­do que conhecia. Nem Deus, nem a Irmã, nem a escrita.

Ela guardou o pergaminho, a pena, e a faca no saco, e escalou o muro, aceitando os arranhões da pedra ás­pera contra as palmas da mão.

Da última vez, Deus tinha afogado sua escrita nas águas. Desta vez, ela própria se encarregaria de acabar com as suas palavras.

Pegou o pergaminho com uma mão, e a faca com a outra. Estendeu o pergaminho e o golpeou com a faca.

O couro rebelde resistiu, exceto por um pequeno ta­lho. Ela golpeou outra vez, com mais força, e fez um buraco maior, Deixou a faca escorregar pela pedra, agarrou o pergaminho com as duas mãos e tentou rasgá-lo. Finalmente, prendeu um lado na pedra sob a sola do sapato e puxou. Metade do pergaminho soltou na sua mão. Ela o arremessou para a água verde-acinzen-tada, monótona, e sem brilho.

— Nica, o que está fazendo?

Ela se assustou com a voz de Garren. Ele estava abaixo dela, zangado, em uma praia arenosa do outro lado da pedra.

— Não faça isso — disse ele. Antes que pudesse al­cançá-la, ela lançou o outro pedaço, que se afastou boiando na onda. — Nica, por quê? Sua escrita é parte de você.

— Sinto muito. Você pagou um bom dinheiro por aquilo.

— O dinheiro não é nada. À escrita é você. — Dominica olhou na direção da linha indistinta do ho­rizonte. A escrita se foi. Tudo o que eu conhecia se foi.

— A Irmã foi ao encontro de Deus. — As palavras tremeram na sua garganta, e seus ombros balançavam. Ele a tomou nos braços, abrigando-a do vento.

— Minha pobre Nica — murmurou ele, com seus lá­bios afetuosos e quentes contra o cabelo dela.

Seu toque preencheu um pouco do vazio sofrido. Garren penetrava seu ser. Garren que tinha estado ao seu lado, na sua respiração, na sua pele pelos dias e dis­tâncias que passaram juntos. Garren que lhe trouxera alegria e dúvida.

Dominica aconchegou-se mais, sentindo o prazer do seu calor, do seu cheiro de homem, a sensação comovente e perturbadora de estar próxima dele. O peso no seu peito aliviou.

— Mas mesmo sem a Irmã, você não pode desistir de escrever. A escrita é a sua vida.

— A minha vida não é o que eu pensava.

— A de ninguém é.

Eu pensava que era uma órfã sem nome, e queria viver para a glória de Deus. Mas sou uma bastarda de uma freira e um lorde. E agora, o que quero?

Ela procurou os olhos verde-folha de Garren, que­rendo contar-lhe, dividir com ele o mútuo amor por William, mas não podia revelar o segredo da Irmã.

— Se eu pudesse, a salvaria dos desapontamentos de Deus.

Ela sorriu com uma sensação de paz e certeza que não sentia há muitos dias e quilômetros. Sabia o que lhe restava. Ser uma mulher. Viver um dia de cada vez. Aqui na terra. Só uma vez. Uma vez para recordar to­das as noites da minha vida.

Aconchegada nos braços grandes de Garren, incli­nou a cabeça para trás à procura dos olhos dele.

— Talvez Deus queira que salvemos um ao outro.

Ela o abraçou com força e correu as mãos para cima e para baixo pelas suas costas, amando cada centímetro de vida que sentia quando ele reagia ao seu toque. Seus lábios encontraram a curva do pescoço, sob a correia de couro que prendia o relicário vazio, e o beijaram. Ele soltou um gemido que vibrou em seus lábios.

Até que Garren a afastou e pulou para fora da pedra.

— Eu não posso.

Ela o seguiu, descendo com dificuldade para a areia molhada.

— "Carpe diem", você disse. A morte pode chegar amanhã.

Garren soltou-se dela.

— O seu amanhã é no convento.

— Deus me deu um sinal. Não devo me tornar uma freira.

— Só porque não pode voar? Há uma maneira. Pos­so fazer a Madre Julian acreditar...

— Deus nem sempre responde às nossas preces da maneira que desejamos. Compreendo isto agora. Você é a minha resposta.

Os olhos de Garren a acariciavam, repletos de dese­jo, desesperados, com uma dor que vinha de suas entra­nhas, onde ele jamais lhe permitira chegar.

— E você é a resposta às preces que nunca pude fa­zer — disse ele. — Mas a resposta veio tarde demais.

— Não. O espírito se move entre nós. Eu o sinto. — Ele balançava os braços rebeldes, como se estivesse tentando fazer qualquer coisa, menos tocá-la.

— Você não pode desistir do seu sonho por causa de... — Garren fechou as mãos em punho, e abaixou os braços retesados. — ...por causa disso.

Isso. Uma palavra tão pequena para o elo que ligara suas almas. Dominica deitou a mão sobre o peito dele, querendo sentir seu coração bater.

— Não, não por causa disso.

— Você não pode. Não vou deixar. — Sua voz fa­lhava de agonia.

— Eu não vou embora enquanto não ceder.

— Não. — Claro. — Nem agora, nem nunca.

— Por quê? — As lágrimas brotavam nos olhos de Dominica de um lugar profundo e precioso, dentro de seu corpo que clamava por ele.

— Porque não é a vontade de Deus.

— Não me fale da vontade de Deus! — As palavras irrompiam da sua garganta. — Eu acreditei na vontade de Deus. Até pensei que podia moldá-la. Agora eu sei. Ele não tem nenhuma vontade para mim.

— Mas Ele tem. — Seriedade, tristeza e alegria con­fundiam-se no semblante de Garren. — Quando você estava tentando pular, prometi a Deus que, se Ele a sal­vasse, eu O deixaria tê-la.

Todo o ardor esvaziou-se do rosto de Dominica. E ela ouviu a gargalhada de Deus no grito das gaivotas que acordavam. Depois, cerrou as mãos e respondeu.

— Não me importa que promessas você fez a Deus.

— Vou dizer à Priora que Larina deu um sinal a você. Ainda poderá viver a vida que deseja.

— Não há nada naquela vida que eu queira agora. — Dominica sorriu com a tristeza da mulher madura que se tornara em três semanas. — Eu quero você.

Mais do que a minha alma imortal.

O coração de Garren bateu forte ao som daquelas pa­lavras e as ondas corriam em direção à praia com a ra­pidez do sangue das suas veias.

Por trás da dor da morte da Irmã, ele via uma cente­lha de vida nos olhos ardentes de Dominica. A cada morte, uma parte sua morrera junto, até ele pensar que apenas vivia. Não deixaria o mesmo acontecer com ela. Dominica esticou os dedos para tocar seu rosto. Ele não os afastou.

— Por favor.

Eu a salvei. Deus. Ela é minha.

Ela se aproximou e acariciou sua barba, suas ore­lhas, e emaranhou os dedos no seu cabelo. Quando o beijou, ele sentiu o gosto do sal. Todo o desejo que Garren vinha sentindo ao seu lado explodiu. Ele a aper­tou, primeiro suave, depois mais forte, como se pudes­se torná-los uma só pessoa. Beijou sua boca amorosa, absorveu sua língua e seus lábios, sentiu o gemido no fundo da sua garganta, e devorou-a como se estivesse morrendo de fome e quisesse saborear o alimento vital. A maré vazante passava por cima dos sapatos, su­gando a areia sob os seus pés.

— Venha. — Garren levou-a pela mão para um re­canto coberto de areia seca, protegido do vento, fora da visão da cabana e da ilha. Depois, tirou seu manto e estendeu-o sobre a areia.

Quando Dominica, nervosa, se atrapalhou com seu vestido, ele pegou suas mãos e beijou cada dedo.

— Calma. Calma. — Ele falava para si mesmo, tanto quanto para ela.

Os lábios de Dominica curvaram-se em um sorriso que parecia mais experiente do que ele esperava.

— Suave, não pressione.

— O quê?

— É o que a Irmã Marian me dizia quando eu praticava minhas letras. Que eu fazia com muita força.

— Não faça nada. — Ele deixou a boca demorar-se nos dedos dela, provocando-a ao passar a língua na pele sensível entre eles. Lambeu o pequeno calo no dedo médio onde a pena apoia, depois introduziu cada um dos dedos na boca, observando seus olhos arregalarem de choque, e entreabrirem de êxtase a cada toque da sua língua. Quan­do endureceu, pronto para ela, quis saber se os seus seios estavam intumescidos, se ela estava molhada de desejo como na noite em que se confessou.

— Venha — disse ele. — Sente-se. Ela se sentou no manto, as pernas estendidas. Ele de­samarrou sua saia, descobrindo-a parte por parte. Ela curvou um joelho, e a visão de suas pernas brancas como a lua, suavemente esculpidas daqueles dias de caminhada, quase o desmontou. Ele apoiou a mão grande e quadrada no joelho dela e acariciou a parte in­terna de sua coxa com o polegar.

Dominica estremeceu quando ele pressionou os lá­bios na sua pele quente acima do joelho. Seus dedos emaranharam-se nos cachos da nuca de Garren.

— Seu cabelo é áspero como um arbusto espinhoso — disse ela ofegante, deixando os dedos descerem da nuca e entrarem pela túnica. Ansiosos os dedos roça­ram as costas nuas de Garren, provocando um calor que se estendia e pulsava entre as pernas dele.

Em resposta, a mão dele subiu por sua coxa e demo­rou-se na pele intocada próxima à sua parte mais ínti­ma. Ela se aproximou mais da mão dele, e ele a deitou suavemente sobre as costas e tomou seus lábios de novo, maravilhado com a sensação daquele corpo pres­sionado inteiro contra o seu.

— Vire ao contrário. Deite sobre o estômago.

— Por quê? — perguntou ele colado à sua boca, sem querer soltá-la.

— Verá. — Empurrou o ombro dele para trás. Relu­tante em virar-se, ele se acomodou sobre o manto.

— O que está fazendo?

Dominica levantou a túnica dele, deixando suas cos­tas expostas ao ar marinho, e encheu a mão de areia.

— Shh. Fique de olhos fechados.

Garren sentiu-a esfregar a areia nos ombros, entre as omoplatas, descendo a coluna, depois tirar. Com um dedo delicado como uma pluma, ela desenhou traços ondulados da esquerda para a direita nas costas dele. Uma onda de calor desceu por seus braços e pernas, confortante e excitante. Ele aliviou o peso dos quadris, dando espaço ao seu membro duro, e deu uma olhadela. Pelos olhos semi-abertos, observou-a morder o lábio em atitude de concentração. Com o último traço, ele sentiu a pontuação de um beijo quente e úmido abaixo da omoplata direita.

— O que foi isso? — perguntou, apoiando-se nos cotovelos para olhar para ela que se deitou ao seu lado.

— Escrevi: "meu amado é meu, e eu sou dele." Garren abraçou-a, apertado em torno da cintura dela, e sentiu os seios macios em seu peito. Meu.

— Lindas palavras — murmurou ele no seu ouvido.

— Deus as escreveu.

Surpreso, afastou-se para ver o rosto dela.

— O quê?

— No Cântico de Salomão. Não teve que ler a Bíblia no mosteiro? — perguntou ela, num sorriso.

Ele nunca a tinha visto com tanta disposição para provocá-lo, e alegrou-se com aquilo.

— Ler nunca foi fácil para mim.

— Eu queria que nós nos sentíssemos daquele jeito. — Ela o abraçou e o apertou bastante, tirando-lhe a res­piração, e suas palavras abafaram-se contra o peito dele. — Só uma vez.

— Uma vez, não — murmurou ele. — Sempre.

Lamentando a aspereza de seus dedos e tudo o que já tinha passado por eles, Garren os deslizou pelas costas de Dominica, na curva da cintura, acima dos quadris, até o braço, e pelos seios, e sentiu o mamilo intumescido através da lã áspera. Ela ofegava ao seu toque.

Ela pressionou os lábios contra os dele, e ele se per­deu nela, tão perdido quanto estivera na neblina, até es­quecer onde estava e quem era, e o que tinha prometido à Priora, e até mesmo o que tinha prometido a Deus.

Quando entrou nela, sentiu-se chegando em casa, e silenciou a voz no seu interior que sussurrava E se você a perder agora ?

 

O grito entusiasmado das gaivotas acordou Domini­ca do que parecia ser um sonho maravilhoso. Nem o seu momento com Garren, nem o pesadelo da morte da Irmã podiam ser reais. Mas Garren ainda estava deita­do ao seu lado, tangível, protetor. Ainda sentia na pele a sensação do seu toque.

— Seus olhos estão diferentes — disse ela.

— Os meus? — Garren fez uma expressão interrogativa. — Como?

— Eles eram mais escuros. Como o musgo sobre o tronco de uma árvore. Agora, parecem o sol através das folhas verdes.

— E os seus já não são tão intensos a ponto de atin­gir um bárbaro.

Ela se deitou de novo, admirando o céu azul cinzen­to, escuro como o mar.

— Eu poderia adormecer de novo neste instante. — Ele riu e a abraçou, cobrindo-a com o corpo, sussur­rando no seu ouvido:

— Provavelmente, porque quase não dormiu na noi­te passada. Está cansada demais para perceber que a areia está úmida.

Dominica estendeu um braço acima da cabeça. Onde as ondas não tinham chegado, pegou uma mão cheia de areia seca e jogou por dentro da túnica sobre as costas nuas de Garren.

— Não me importa se estamos cobertos de areia.

Garren deu um grito, segurou os braços dela e virou-a de costas. Ela riu e o beijou, e ele correspondeu, e ela novamente explorou a pele dele com as mãos, feliz de ver que a areia ainda não tinha chegado aos pontos mais secretos.

Depois, Dominica tentou ouvir algum barulho da cabana, e ficou surpresa e grata por ainda estar em silên­cio, pois o dia já havia raiado.

As ondas continuavam indo e vindo. Atrás da pare­de, o santuário ainda estava assentado na sua pedra. A Irmã ainda se importara. Dominica levantou, abruptamente, sacudiu a saia amarrotada, e limpou a areia úmida dos dedos dos pés, da trança e da cabeça.

Estava na hora de enfrentar a morte outra vez. E a vida. Mas, agora, vida significava Garren.

— Precisamos enterrá-la de frente para o santuário — disse Dominica.

— Ela gostaria disso. Nica, sinto muito pela Irmã. Eu também vou sentir sua falta.

As lágrimas brotaram, finalmente, embaçando a li­nha entre o mar e o céu. Os soluços apertaram sua gar­ganta, golpearam seu peito e torceram seu estômago, até ela não conseguir mais prendê-los. Ela tremia nos braços dele, e enterrou a cabeça no seu peito.

Garren acalentou-a sem palavras de falso conforto. Nada sobre uma eternidade com Deus. Ela não acredi­taria nisso agora.

Dominica chorou até a garganta ficar doendo, e os olhos ficarem quentes e inchados.

— Ela compreendia nossas fraquezas, e nos amava mesmo assim — disse ele.

— Porque tinha as suas próprias fraquezas. — E agora, ela, tal como a mãe, reconhecia a sua própria fraqueza por este homem.

Dominica sentiu o cheiro forte e penetrante do mar misturado ao da pele quente de Garren. Ainda sentia uma umidade entre suas pernas e coxas, e, talvez, hou­vesse uma criança em sua barriga. Fechou os olhos para guardar a lembrança do calor daquele corpo pres­sionado contra o seu, enquanto a água lambia a areia.

Na beira do mar, ajoelhada na areia úmida, Domini­ca mergulhou os dedos na água, depois levou-os aos olhos quentes, que arderam do sal. Um batismo gelado para entrar em um novo mundo.

Agora precisava fazer uma última coisa. Levar a mensagem de Lorde William para o padre. Ter a certe­za de que Richard seria punido.

— Hoje, enterraremos a Irmã Marian. Amanhã, le­vamos Lorde Richard para a justiça — disse Dominica.

— É perigoso demais. Irei sozinho — retrucou.

— Preciso ir, porque fui testemunha das palavras dele. — E porque ele era meu irmão, mas isto não podia dizer.—E depois...

— Eu vou cuidar de você. — Dominica aceitou.

 

Tremendo de frio sob a chuva fina, Dominica sentou-se no banco de madeira, esvaziado das plumas de chumbo. Com a maré baixa, o fundo do mar se estendia ao longo do caminho até o santuário, mas o Padre não veio da ilha, nem para enterrar a Irmã. O Irmão Joseph deu de ombros.

— Ah, ele nunca abandona a Abençoada Larina. Eu levo o que ele precisa. Alimento, velas, vinho. — Ele sorriu com um orgulho de criança. — Mas vou cuidar da Irmã Marian. Cuido dela desde a primeira vez que esteve aqui. — E suspirou. — Há muito tempo atrás.

Despidos de camisa e de vaidade, Garren e Jackin cavaram juntos o túmulo da Irmã. Dominica conforta­va-se olhando a curva do ombro de Garren, recordando a sensação daqueles músculos sob os seus dedos. Quando ele virou de costas, sentiu como se as palavras que havia escrito devessem ficar gravadas para todos verem. "Meu amado é meu, e eu sou dele."

Todos se aproximaram dela com palavras de conso­lo. Os irmãos Miller falaram em harmonia, a viúva murmurou suas condolências. Até Ralf veio, com os olhos vermelhos, torcendo a túnica entre os dedos.

— Pode escrever uma coisa para eu levar para a Abençoada Larina? Quero que ela saiba o que a Irmã Marian fez por mim. E para dizer a Larina que ela ten­tou chegar.

— Eu não posso escrever agora — negou Dominica. Não poderei nunca mais.

Bom demais para sujar as mãos cavando, Lorde Richard aproximou-se arrogante para mentir.

— Uma inspiração para todos nós. — Dominica fi­tou aqueles olhos maus, as sobrancelhas estreitas e os dedos finos procurando alguma semelhança com o pai. Seu pai. — Você encontrará conforto no santuário.

— Amanhã, Garren e eu vamos caminhar até lá quando a maré permitir. — E voltaremos para fazer com que você seja julgado.

— Irei com vocês. Estou ansioso para rezar pela re­cuperação do meu irmão.

— Mas não pode! — Eles precisavam ter um tempo a sós para explicar tudo ao Padre. — Quero dizer, a Irmã seria a terceira, e agora...

— Agora eu estarei com vocês. Orando. — Dominica procurou por Garren nervosa.

— Acho que o Irmão Joseph precisa aprovar.

—Não se preocupe. Já falei com ele. — Richard aper­tou tanto o braço dela que mais parecia um beliscão.

Gillian e a viúva saíram da cabana onde prepararam a Irmã para o enterro.

— Ela está pronta — disse Gillian. — Quer ficar so­zinha com ela um pouco? — Dominica assentiu.

Uma vela nova tremeluzia na escuridão do quarto úmido. Inocente a viu entrar, mas não se mexeu. O cor­po pequenino da Irmã, embrulhado na mortalha feita de seu manto de peregrina, já estava menor, como se o seu espírito tivesse ocupado um espaço físico.

— Vim me despedir — começou ela para o quarto árido. — Sou uma mulher diferente daquela da noite passada. Não vou escolher o mesmo caminho que você, mas sei que vai compreender.

Falar com a Irmã em voz alta confortou-a.

— E quero agradecê-la. Por tudo. Até pela vida, mesmo sem saber o que faço dela agora.

Ficou esperando por um som ou sensação de certeza. Nos braços de Garren sentira tanta segurança. Queria a bênção da Irmã, mesmo agora. Mas se ela tinha ido ao encontro de Deus, não voltaria para Nica.

Levantou-se, soluçando, para participar da cerimô­nia do enterro.

 

Com os músculos tensos, Garren ficou deitado, com os olhos fechados e os ouvidos atentos, a ouvir o coro das respirações de cada um, antes de sair da cabana.

Abriu um olho e observou o quarto.

Não viu Dominica, que dormia na cela do Irmão Joseph. De onda em onda, o barulho do mar suavizava as tosses e os roncos.

Somente Richard estava deitado de costas, com as mãos atrás da cabeça, piscando para o teto.

Durante o longo dia de escavação, e enchimento de túmulo, Garren observou a manobra de Richard para fazer parte do primeiro grupo que se iria ao santuário no dia seguinte. Garren não o impediu. O tempo se es­gotara. Se William tinha de ter sua pluma e sua justiça, precisaria ir ao santuário esta noite. Sozinho.

Deu mais uma olhada em Richard. Seu rosto relaxa­do estremecia com um ronco. Agora.

Garren saiu furtivamente, segurando o relicário na mão, e, em seguida, colocou-o em volta do pescoço, antes de empurrar um dos pequenos barcos do Irmão Joseph para dentro da água.

A viagem levou mais tempo do que ele esperava. O vento competia com ele pelo controle do barco. Sensí­veis de tanto escavar, os ombros doíam quando ele for­çava os remos contra as ondas que rolavam para a praia, implacáveis como os arcos dos arqueiros ingle­ses que batiam contra a muralha formada pelos homens do rei francês em Poitiers.

Relembrando aquela manhã, encheu-se de culpa, como as ondas ameaçavam encher o barco de água.

Eu quero você. Tudo tinha mudado.

Não tiveram mais nenhum momento a sós. Mal fala­ra com Dominica durante o dia, temendo não conseguir enganá-la, nem os outros. Se chegasse muito perto, era capaz de segurá-la nos braços e clamar que ela era sua, não importando quem pudesse ver e ouvir.

Amanhã. Depois que a tivesse salvo de Richard.

Dominica ficaria com raiva quando descobrisse que ele tinha ido sozinho, mas certamente entenderia quan­do William fosse justiçado. E não entenderia, nem mesmo agora, por que ele precisava profanar um san­tuário.

Garren duvidava se ele próprio se entendia.

Vou cuidar de você. Ele prometera. E iria, apesar de não saber como.

O barco bateu na praia rochosa da pedra com um som de ossos esmigalhando. Ele o puxou para dentro das sombras assimétricas da lua, e se aproximou furti­vamente da pequena porta de madeira.

O abrigo rústico, em pedras da rocha em que se as­sentava, era pouco maior do que o túmulo da santa. A rocha da ilha formava o chão. Paredes de seixo rolado elevavam-se acima de onde ele podia alcançar, como se tentando imitar o teto de uma catedral. Os buracos em cada parede deixava entrar o barulho das ondas e a luz fraca da lua minguante.

Uma laje polida, coberta de pedras, marcava o lugar de descanso da santa. Diferentemente de alguns santos, seu rosto não estava exposto para o povo. Tampouco, algum osso extraviado. Sem dúvida não havia nada que valesse a pena guardar, depois que ela se estraçalhou nas rochas ali embaixo.

Uma pequena porta do outro lado levava à cela do Padre. Garren deu um passo. Ficou tenso. Atento.

Roncos. Mais altos que os da viúva.

Primeiro as plumas. Uma luz incerta oscilava em uma lanterna sobre a pilha de pedras onde a santa esta­va. Atrás dela, havia pendurada uma pequena caixa de bronze facetada. Olhou através do pequeno vidro da porta.

Dentro, havia alguma coisa felpuda.

Só uma pequena, prometera a William.

O ar salgado esfriou o suor que brotava da sua cabe­ça. Só uma pequena pluma que tinha prometido a um homem que provavelmente estava morto. Por que não tinha pegado mais penas de ganso? William, se é que ainda respirava, nunca saberia a verdade.

Mas quando o relicário balançou, Garren teve a sen­sação de que Deus estava observando, e esperava que ele cumprisse sua promessa.

 

Despertada por um barulho desconhecido, Domini­ca viu a lua que parecia um biscoito comido pela meta­de. Já deve estar na hora do último cântico da noite.

A Irmã, não, Minha Mãe foi enterrada hoje.

O Irmão Joseph falou as palavras do enterro. Depois, quando a terra cobriu a mortalha, Inocente enroscou-se feito uma bola ao lado do túmulo e recusou-se a sair dali. Agora, então, Dominica dormia sozinha, sem o conforto da Irmã e de Inocente. Até mesmo sem Garren.

Eu vou cuidar de você.

Não tiveram chance de ficar a sós de novo depois da manhã mágica. Mas os olhos de Garren encontraram os dela quando ele percebeu o que Lorde Richard estava tentando fazer. Não se preocupe, diziam.

Mas ela se preocuparia enquanto não entregassem a missiva ao Padre amanhã. Depois, poderiam fazer pla­nos para as suas vidas.

Dominica tentou rezar pelas almas da Irmã e de Lor­de William. É estranho pensar em rezar para sua mãe e seu irmão. Mas estava tão vazia de palavras para orar quanto para escrever.

Cansada de ficar deitada acordada, levantou, e se in­clinou sobre as pedras ásperas do buraco da parede da cela para olhar para o céu cheio de estrelas que emoldu­rava a rocha de Larina. A lua minguante cintilava nas ondas pretas em movimento como estrelas brilhando na água. Uma pequena forma preta pareceu balançar na água, mas podia não passar de uma impressão provoca­da pelo luar e pelas ondas. Ela piscou.

Ainda estava lá. Era um barco.

Olhou novamente e reconheceu a silhueta familiar de ombros largos. Garren. O alívio que sentiu deixou-a sem energia. Então era isso. Agora entendia por que não devia se preocupar. Garren estava levando a men­sagem para o Padre esta noite.

Dominica sentiu uma pontada de decepção. Tam­bém devia estar lá para vingar seu irmão. Agora, bem acordada, observou o barco balançar até desaparecer no santuário. Teve a impressão de que a sombra dele se mexeu, mas sombra, luar e ondas se movendo confun­diam seus olhos.

Richard saiu da cabana, correu pela enseada e em­purrou o segundo barco para dentro d'água.

Dominica abaixou a cabeça para que ele não a visse. Até que o som dos remos na água sumiu.

O barco de Richard ia em direção do santuário.

Dominica segurou seu manto, sem parar de pensar como poderia manejar um barco e deter Lorde Richard. Deus a salvara das águas uma vez. Certamente, Ele a ajudaria em consideração a William. E a Garren.

Dominica empurrou o barco e entrou na água. O mar sorveu seu manto e encharcou sua saia. Ela lutava para conseguir entrar no barco, O sal fazia arder a palma da mão que arranhara nas pedras. O barco balançava ao acaso. Ela tentou dominá-lo, mas ele escapou e ficou à deriva, carregado pelo vento e pela mudança da maré.

Dominica entrou em águas mais profundas, levada pelas ondas com seu manto ensopado.

Fez força para não se lembrar dos momentos horrí­veis no rio. Desta vez, não tinha nenhum Salvador. Pre­cisaria salvar-se. E a Garren. Seus dentes rangiam, e ela puxou o barco de volta para onde a água batia na sua cintura. Conseguiu se apoiar na lateral do barco e se jogar para dentro, caindo de rosto numa poça. Quando levantou a cabeça, viu que a maré vazante a levava na direção do santuário.

Sentou-se, de costas para o santuário, observando a areia recuar e, toda atrapalhada, procurou os remos. Remava com um, depois com o outro para manter o barco alinhado com a cabana. Os remos deslizavam ao longo da borda do barco e furavam sua mão com lascas de madeira. Dominica olhou com saudade para o muro de seixo rolado que escondia a pequena enseada onde ela e Garren tinham se deitado. Não era hora de sonhar. Se fosse muito para a esquerda, bateria nas rochas; muito para a direita, seria levada para o oceano.

Dominica virou-se para ver se estava remando em linha reta. A sombra magra de Lorde Richard a aguar­dava.

Não podia mais fazer a volta, pensou ela, levantando os dois remos. Deus, ou o destino, lhe dera esta oportu­nidade. Precisava ser corajosa e aproveitá-la.

Seus ombros doíam, e uma ferida queimava sua mão direita. O purgatório não seria pior do que este ziguezague em direção ao desastre, sem ter nada a que se ape­gar além da esperança.

O barco fez um baque surdo ao bater na praia. Ri­chard levantou a traseira do barco da água, e Dominica foi jogada para a frente.

A gargalhada estridente vibrou no seu ouvido.

— Foi muita gentileza sua ter vindo. Economizou-me o esforço de procurar outra maneira de matá-la.

Dominica tentou gritar e avisar, mas Richard silen­ciou-a com uma mordaça, antes que ela conseguisse.

— Quando terminar com ele, vou empurrá-la lá de cima. Vai ser encontrada morta. Como todos a viram tentar voar, vão achar que repetiu a tentativa. E, desta vez, não vai haver ninguém para salvá-la.

Dominica deu um tapa no rosto dele, mas, em segui­da ele segurou suas mãos. Em uma luta corpo a corpo, conseguiu colocá-la no fundo do barco, amarrar suas mãos e, depois, os tornozelos. Pelo menos, deixei-o sem fôlego, pensou ela, observando o peito de Richard subir e descer. Quem sabe não ajudei Garren com al­guns minutos de vantagem.

Lorde Richard desembainhou sua adaga, e enfiou-a cuidadosamente em uma pequena sacola.

— Fique aí — ordenou ele.

As pedras faziam barulho com seus passos, ao entrar na pequena construção onde uma luz tremeluzia.

Com os dedos entorpecidos, Dominica começou a forçar a corda que prendia seus tornozelos.

 

Mesmo acocorado precariamente nas pedras empi­lhadas sobre o túmulo de Larina, Garren não conseguia alcançar o relicário pendurado. Uma gaivota o obser­vava. Estranho, pensou, a esta hora, os pássaros dor­mem.

Limpou na túnica a mão escorregadia de suor e virou-se novamente para as plumas.

Agarrou o pequeno fecho e o sacudiu. Encoberta por uma grossa crosta salgada de muitos anos, a caixa ran­geu relutando em ser aberta. Inclinando-a para baixo, ele olhou dentro. Lá, havia três plumas.

Uma era cinza como a pena de uma gaivota. A se­gunda, mais longa, estava sem as plumas para ser usada como pena de escrever. Finalmente, viu uma pequena e fofa pluma de ganso.

Com os dedos trêmulos, estendeu a mão para pegar a pluma de ganso. Uma brisa afastou-a.

Garren fechou a pequenina porta com um tapa. As dobradiças quebraram e as outras plumas caíram e su­miram na escuridão. Ele ficou de joelhos para procurá-las pelo chão, pressionando as palmas molhadas no chão úmido, tentando sentir uma pluma no meio da ter­ra marcada pelos anos de pisadas de peregrinos.

Atrás dele, a grande porta de madeira rangeu.

Com os sentidos aguçados de um guerreiro, Garren desembainhou sua adaga e levantou, examinando o pe­quenino cômodo como se fosse um campo de luta.

Richard, de adaga em punho, entrou.

Richard mostrou os dentes, mais um rosnado que um sorriso, e apontou a adaga para a porta aberta pendura­da da caixa de bronze. A lanterna lançou uma luz de vela amarela e irregular nas paredes.

— Ora, ora. Roubando relíquias. O Salvador não é tão santo quanto finge ser.

— O que o traz ao santuário no meio da noite, Ri­chard? Uma oração particular? — Garren elevou a voz. — Vou acordar o Padre.

— Não se preocupe em gritar. Ele está desmaiado de tanto beber, como acontece todas as noites.

— Então você deve ter vindo me matar como matou o seu irmão.

— Que acusação! — exclamou Richard. — Estou aqui para recuperar uma certa carta. — E estendeu a mão. — Agora me dê.

— Eu não sei do que está falando.

— Claro que sabe. É aquela que dizem ser do meu irmão me acusando de envenená-lo. E deixando tudo para você. É uma história tão trágica. Um homem que todos chamavam de O Salvador estava planejando to­mar a terra do homem que ele dizia ter salvo.

— Ambos sabemos quem matou William pelas ter­ras — afirmou Garren.

— Sim, tão trágico, você chegou a seduzir Dominica para forjar a carta. Espantado por eu saber disso, não é?

— Saber o quê? — Garren deu um passo para a di­reita, com cautela, mantendo a pequena pilha de pedras entre ele e Richard. Precisava manter o controle.

— Não sabia que era eu quem ia lhe pagar para deitar-se com Dominica, não é verdade? A Priora não tem um vintém.

— Você? — Garren vestiu uma máscara de surpresa por cima do seu ódio. Deixe-o pensar que é esperto. Deixe-o falar. Acompanhe o jogo. — Então me dê meu dinheiro. Fiz por merecer.

— Não viverá para aproveitá-lo. — A risada de Richard transformou-se em uma tromba. — Agora me dê a carta, ou vou tirar do seu cadáver. Ninguém vai me culpar por matar um assassino. E a pequena escriba vai cair nas pedras depois de tentar voar outra vez.

Nica. Ela dormia a salvo na cabana.

— O que quer dizer?

— Ela me seguiu até aqui. — Ele riu. — Acho que pensou que seria a sua salvadora desta vez.

Os grãos de areia do chão queimavam contra a pal­ma de Garren que empunhava a adaga. Ele conteve o impulso de pular na garganta de Richard. A língua do homem a maculava.

— Onde está ela?

— Ah, então você gostou de experimentá-la?

— Está com inveja, Richard?

— Deixei que um pecador como você lhe tirasse a virgindade. Uma vez que ela se perdeu... — Ele deu de ombros. — Bem, um homem pode se sentir tentado.

Vou deixar Richard falar até cansar, pensou Garren. E deu um passo para a direita. Richard fez o mesmo. A lanterna, agora firme, projetava sombras em volta do túmulo. Entrando e saindo das sombras, o rosto de Ri­chard ficava branco, depois preto como a morte.

— Não se prepare para uma luta longa, Salvador. Niccolo é especialista em venenos. — A luz da vela fez cintilar a adaga. — Um arranhão será suficiente.

Veneno. Garren estremeceu. Nem ao menos uma morte honrosa.

— Então vou levá-lo comigo.

Richard pulou, cantarolando, movimentando sua adaga em pequenos círculos. Não precisava esperar uma oportunidade para um bom golpe. Só precisava de um toque que cortasse a pele dele.

Garren recuou, os dedos doendo do esforço. Só tinha uma chance, para Nica e para si.

De volta ao ponto de partida, com Richard na porta, nenhum dos dois tinha feito nenhum movimento. Ri­chard deu uma risadinha.

— Espero que tenha lutado com mais bravura quan­do estava sendo pago, mercenário.

Entre os dois, a porta se abriu, e Nica entrou aos tro­peços. Com as mãos amarradas e uma mordaça, ela olhou para Garren. E o coração dele parou quando viu que Richard a alcançaria antes dele.

— Nica! Atrás de você!

Richard prendeu-a pela garganta, e seu cotovelo pa­recia a mandíbula de um animal feroz.

— Eu não falei para você ficar no barco? — A adaga de Richard pairou logo abaixo da orelha dela.

— Não se mexa, Nica. Está envenenada — avisou Garren.

Richard riu, mantendo a vítima presa.

— Isto será perfeito. Vão encontrá-los juntos, mor­tos por Deus por profanarem o santuário de Latina. — Ele encostou a boca na orelha de Dominica e sussurrou alto para Garren ouvir. — Que pena. Eu queria provar você primeiro. — Richard puxou a mordaça e pôs os lábios em seu lugar.

Garren investiu para cima dele, mas Richard se afas­tou, avisando com a cabeça para não fazê-lo, e pressio­nou a adaga contra o pescoço de Dominica.

Dominica botou a língua para fora, como se tentasse tirar o gosto dele da boca.

— Onde está o Padre? Por que não mostrou a carta a ele?

— Eu estava cumprindo uma promessa.

Dominica inclinou-se para se afastar da adaga de Ri­chard, mas seus olhos não saíram de cima de Garren.

— Você não acredita em promessas. E não mantém as que faz.

— Ela está certa, mercenário. As suas promessas só valem o ouro que você recebe por elas. — Ele apertou mais ainda o pescoço dela e se inclinou para sussurrar um segredo no seu ouvido. — Eu o peguei roubando as plumas de Larina.

Impotente, Garren viu, no rosto de Dominica, a per­cepção de tudo, depois a descrença. Ela olhou para o pequeno frasco vazio no pescoço dele.

— Então, as plumas eram para isso — murmurou ela. — Quem o pagou para trocá-las pelas verdadeiras?

— Ninguém.

— Por que eu deveria acreditar?

— Mas você ainda não sabe qual foi a tarefa mais importante que ele recebeu, em troca de um bom di­nheiro — falou Richard, com um sorriso de escárnio. — Acha que Garren é algum santo? Vai saber o quanto ele é santo.

O mundo parou, e Garren podia ver cada pestana preciosa em volta dos grandes olhos azuis de Nica, e ele soube, impotente, o que Richard diria a seguir.

— Você já sabia que William me pagou para ser seu peregrino — disse Garren, desesperado. O medo que apertava seu estômago era maior do que jamais sentira em batalha. Mesmo que salvasse a vida dela agora, po­deria recuperar sua confiança? Ele apertou a adaga com mais força.

 

Onde está o Padre? Preciso pensar. Richard só está tentando me confundir.

Talvez pudesse confundi-lo e salvar Garren. Virou-se para Sir Richard, odiando a sensação de seu corpo contra o dele. Engoliu a seco, com a adaga fria contra sua garganta.

— Garren é inocente. Não sabe nada a respeito da mensagem de Lorde William.

— Inocente! — gargalhou Richard, jogando o nariz tão perto do rosto de Dominica que ela podia sentir o cheiro de seu hálito azedo. — Inocente é o cachorro.

Um tremor tomou conta do corpo de Dominica. Não queria ouvir, mas suas mãos atadas não podiam cobrir seus ouvidos. Os lábios de Richard roçaram sua têmpo­ra. Ela se afastou, mas não podia impedir as palavras dele.

— O seu precioso Garren que a tocou, beijou e aca­riciou, fez isso por dinheiro.

A humilhação deixou o rosto dela em brasa.

— Está mentindo. — Dominica não pensou em ne­gar as carícias de Garren. — Quem lhe pagaria por isso?

— Eu.

— Por que ele faria alguma coisa para você?

— Ah, não sabia que era eu. Achou que era a Priora.

Se houver algum problema, a Priora ameaçara. En­tão até a Priora pressionou Deus.

— Garren queria o dinheiro. Nunca quis você. — E ela sentiu frio, calor e azia como se tivesse tomado um pouco do veneno que Richard dava a William, e queria mesmo ter tomado. Visto através das lágrimas, Garren transformou-se numa figura irreconhecível.

— Nica, por favor, deixe-me explicar.

Ele nunca quis você.

Dominica pedira, implorara a Garren que a possuís­se. Porque acreditava nele, mesmo quando percebeu que não era o homem que ela pensava. Acreditou até que aproveitar o dia fosse uma forma de viver.

— E verdade? Você fez por dinheiro? — Dominica engoliu, e sua garganta pressionou a lâmina.

— Nica, vou cuidar de você. Naquela época, eu não conhecia você.

— Você me conheceu ontem. — Você me conheceu quando nós nos amamos.

Dominica fechou os olhos. Quando os abriu, era uma mulher diferente, e o mundo era infinitamente ve­lho, e tudo a que sempre se apegara tinha acabado. Sa­bia que iria morrer nesta pequena choça suja de pedra que cobria os ossos de uma mulher morta.

— Parece que eu fui tão ingênua a seu respeito quan­to Deus.

 

Garren estava derrotado, tenso, e queria nunca tê-la conhecido. Tinha destruído tudo que a sustentava e não lhe dera nada. Dominica não tinha nenhuma razão para acreditar nele. Deus deve estar rindo agora, pois conse­guiu a vingança perfeita.

— Nica, precisa acreditar em mim. — Por quê? Ele mesmo não acreditava. — Quando nós... quando eu... eu não estava pensando em...

— Chega. — Richard puxou-a para o seu peito. Com as mãos atadas, Dominica parecia pronta para morrer como uma mártir amarrada ao pelourinho. — A pere­grinação acabou. Dê-me a mensagem.

Garren enfiou a mão na túnica e tirou o precioso pergaminho dobrado, manchado da viagem. Segurou-o contra a luz da lua, atraindo os olhos de Richard. — Tome-a. — Garren viu a faca desviar-se da garganta de Dominica. — Solte Dominica, e a mensagem é sua.

— Jogue-a no chão — ordenou Richard.

— Mas se eu a colocar no chão, ela poderá voar. — Garren deu um passo à frente. Richard ainda estava a mais de um braço de distância. — Venha pegá-la.

— Não! Você prometeu a William. — Nica tentou livrar-se da mão de Richard. Ele deu um passo atrás e voltou a encostar a ponta da adaga sob a mandíbula dela. O coração de Garren oscilava.

Garren abanava o ar com a mensagem dobrada, se­duzindo Richard a tentar pegá-la de novo, em vez de segurar Dominica.

— O que está esperando? Ela está de mãos atadas.

— Ela anda com os pés, não com as mãos — retru­cou Rjchard.

— Vou vingá-lo, se você não o fizer — disse ela.

Fique calma, Nica. Deixe-me salvá-la.

— Aqui, Richard. Venha pegar.

Ainda segurando Dominica com a mão esquerda, Richard mudou seu ponto de apoio ao esticar a mão da adaga na direção de Garren. Entre os dois, e sem muito equilíbrio, não podia atacar ninguém.

Agora.

Garren investiu para as costelas de Richard.

E errou.

Dominica desvencilhou-se de Richard e bateu com as mãos ainda amarradas na barriga dele. Richard res­pondeu com um golpe da adaga e cortou o braço direito de Dominica. Fugindo dele aos tropeços, ela bateu na parede e caiu no chão.

— Não se mova, Nica. — Nenhum dos dois sobrevi­verá se ele falhar desta vez. — O veneno irá se espa­lhar.

Com a silhueta marcada pela luz da lua, Richard dançava de um pé para o outro, cortando o ar vazio com a adaga ensangüentada.

— Assista à morte dela. Depois irei matá-lo.

Garren forçou-se a olhar para Richard em vez de para Nica. Precisava aproximar-se o suficiente para uma estocada fatal.

Rindo, Richard girou o braço da adaga em um enor­me círculo e passou a lâmina a poucos centímetros da gaivota cinza empoleirada na janela a leste. Com um grito, o pássaro abanou as asas e investiu.

Assustado, Richard tentou afastá-la de sua cabeça batendo com ambas as mãos.

Garren agarrou sua chance. Jogou-se para cima de Richard pelo lado esquerdo.

Combalido, Richard soltou o cabo da adaga, que se estatelou nas sombras.

— Malditos! — gritou ele, mas recuperou-a antes que Garren pudesse atacar de novo. Um sorriso terrível exaltou seu semblante. — Aquela foi a sua única chan­ce, mercenário.

O grito de Richard chamou a atenção dele.

A gaivota atacara de novo.

Garras prendiam-se nos cabelos dele, e as asas ba­tiam próximo às suas orelhas. Balançando uma mão loucamente para afastá-la, ele acertou, sem perceber, o corpo macio coberto de plumas. A ave voou para fora de seu alcance, depois investiu para ele, mergulhou e picou suas orelhas e o rosto, e atacou as mãos com as garras, até ele estar ensangüentado com as pequenas espetadelas. Enlouquecido, Richard estava sozinho com o seu medo e o pássaro.

Depois, como se ele fosse um galho de árvore em uma manhã de maio, ela pousou no seu antebraço es­querdo, quieta. Em um instante, percebendo onde ela estava, levantou a adaga e deixou-a pairar sobre ela. A gaivota, sem medo, continuou imóvel. Até que ele arre­messou a lâmina na direção dela.

O pássaro bateu as asas e se afastou, e ele cortou o próprio braço até o osso.

Richard gritou diante da adaga cravada no seu braço. Caiu de joelhos e trincou os dentes com a dor que ape­nas começava. Enlouquecido, olhou para Garren.

— Eu não quero morrer como ela. — Seus lábios tre­miam. — Por favor, me mate.

A adaga de Garren estava frouxa em sua mão. Eu deveria deixá-lo morrer. Certamente esta seria a vin­gança de Deus. Atrás dele, Nica gemia.

Sim, uma morte rápida seria bom demais para o ho­mem que matou William e destruiu a vida de Nica. O que poderia um Salvador fazer por este homem?

Porém, quando as lágrimas de dor e apelo lavaram seu rosto, Garren descobriu que ainda lhe sobrava um pouco de piedade. A compaixão superou a vingança.

— Você só vai chegar no inferno mais rápido.

— Faça isso. Agora.

Quando Garren desferiu o golpe, pensou que o infer­no seria um lugar muito familiar para Richard.

Não parou para pensar na sorte dele. Soltou a adaga è ajoelhou-se ao lado de Dominica. O sangue encobria o rasgo na manga, abaixo do cotovelo direito.

— Mantenha as mãos abaixadas, Nica. — Garren fa­lou firme, mas não conseguiu acalmar seu coração agi­tado. — Deixe-me ver.

Garren afastou a lã cinza, ensopada de sangue e exa­minou a ferida. Desamparado. Se Richard preferiu uma morte rápida, mesmo um corte superficial significava um fim lento e doloroso. A morte tinha sido a coisa mais generosa para Richard.

— É verdade? O motivo de você... de nós... de você ter se deitado comigo? — Ela abraçou o peito dele.

Os olhos de Dominica o acusavam de todos os seus erros, mas este era o maior. Desta vez, ele queria ser o seu Salvador. Queria que ela vivesse, mesmo que a per­desse depois para Deus. Mas não sabia como.

Seus pensamentos gritavam mais do que Richard. Deus, estou em suas mãos. Sua vontade será feita.

Em vez de uma resposta, Garren ouviu o som das ondas e o arruino de um pássaro.

Seu coração desacelerou e acompanhou o vaivém das ondas. Uma paz tão tangível como se um manto o cobrisse. A sensação silenciou o alvoroço da morte de Richard, bloqueou o olhar de dor de Dominica e aquie­tou seus medos. Ele olhou para a ferida de sua amada e soube o que devia fazer. Afastou a manga do corte e limpou o sangue. O corte voltou a sangrar.

Ele levou os lábios ao corte e sorveu, enchendo a boca com o gosto forte e doce, e depois, cuspiu.

Outra vez.

Sorvia e cuspia, tirando o sangue e o veneno sem pensar no que aconteceria a ele se o engolisse.

— Você está certo, você sabe. — Garren quase não podia ouvi-la. — Não há razão... para acreditar... em nada que não se pode ver. — Seus dedos escorregaram. Ela piscou, lentamente. Os olhos, ainda abertos, assu­miram uma expressão vazia.

Por um instante, Garren viu, neles, os olhos azuis de William. Voltou a sentir o cheiro do solo francês mis­turado ao sangue de seu amigo. E entendeu que ela pre­cisava querer viver, como William quis, para ele conse­guir salvá-la do purgatório, ou do céu, ou de onde quer que Deus quisesse levá-la.

Queria balançá-la, mas em vez disso apertou seu ombro, temendo espalhar o veneno.

— Nica, olhe para mim.

Ela apertou os olhos, desorientada, como se não sou­besse onde estava.

— Você me chamou de O Salvador. Agora, vou sal­var você. — A voz de Garren falhava, e ele pigarreou para limpar a garganta. — Mas você precisa me ajudar.

Dominica balançou a cabeça, negando ajuda.

— Por que eu deveria acreditar em você? — Garren olhou para ela e viu que acreditava nela mais que em qualquer outra coisa que já teve na vida.

— Você acreditou em mim quando nem sabia o meu nome. Tenha fé em mim agora que sabe tudo o que sou.

Dominica fechou os olhos. Silêncio. Ele esperou, paciente. Queria continuar sorvendo o veneno, mas ela precisava estar com ele. Ela e Deus.

— Nica? — Uma eternidade se passou. Ela não respondeu. Garren aproximou um dedo das narinas dela e tranqüilizou-se ao sentir a respiração quente. Mas ele a estava perdendo. O espírito que sen­tira no pântano estava indo embora. Ele precisava al­cançá-la, segurá-la, trazê-la de volta.

Garren levantou a mão dela, levou-a à boca e come­çou a fazer cócegas com a língua na pele sensível entre os dedos. Dominica ensaiou um sorriso.

Ele colocou na boca seu dedo médio. Dentro dele. Um. Tão unidos como nesta manhã, na areia.

O sorriso dela ampliou-se. Garren sentiu a esperança correr seu corpo quando beijou o dedo dela.

— Agora, vou sorver o veneno para fora do seu cor­po, e você vai ficar deitada, imóvel, e rezar para a Abençoada Larina.

Um sorriso tênue corou os lábios de Dominica.

— Às vezes, Deus precisa de um empurrãozinho.

— Dê a Ele — ordenou ele num grito explosivo, e levou a boca de novo ao corte para evitar sua morte.

Os gemidos de Richard desapareceram gradualmen­te. Garren voltou a ouvir o mar, em ritmo constante como as batidas do seu coração. Atrás dele, o relicário vazio rangia acompanhando o barulho das ondas.

Quando a respiração de Dominica estabilizou-se, ele levantou a cabeça para respirar fundo pela primeira vez. Empoleirada na beira da janela, contra o dourado do céu matinal, a gaivota inclinou a cabeça. Do lado de fora, suas companheiras gritavam, saudando o novo dia. Ela respondeu, depois levantou as asas e voou. Deixou três plumas no chão de terra. Garren fitou-as por um momento, incapaz de se mo­ver. Uma era da asa, comprida, cinza, de ponta preta. A segunda, um tufo de penugem branca. A haste da ter­ceira era nua, com uma franja de pluma na ponta.

Garren estendeu a mão para pegá-las, justo quando o vento as soprou para a pilha de pedras que era o túmulo de Larina. Ele foi atrás.

Do outro lado, seis plumas agruparam-se no chão. Um som de pés se arrastando no chão veio da cela do Padre. Eu o ouço, Deus. Ela pertence a Vós. Vou ga­rantir isto desta vez.

— Quem está aí? — A voz vinha da cela do Padre.

Com os dedos trêmulos, Garren abriu a tampa do re­licário vazio em volta do pescoço e pegou as três plu­mas mais próximas.

— O que está acontecendo aqui? — disse o Padre.

O sol já estava alto. Garren explicou ao Padre o por­quê de o sangue de um homem morto e de uma mulher ferida terem encharcado as pedras de seu santuário. Com Dominica nos braços, ele explicou, mais de uma vez, a Batalha de Poitiers, o pedido de William, Richard, a visita no meio da noite e a adaga envenenada. O velho, com os olhos lacrimosos piscando contra a luz, desdobrou o pergaminho amarrotado e leu a men­sagem três vezes. Finalmente, disse que Deus tinha es­colhido sua própria punição para um Caim que mataria o irmão. Depois, com os dedos trêmulos reverentes, pe­gou três plumas no chão, devolveu-as ao relicário e fe­chou o trinco. Garren não mencionou a gaivota.

 

Dominica não voltou ao santuário.

O Irmão Joseph fez um grande alarido em torno da ferida, e o médico amarrou uma atadura bem apertada em torno do braço. Ela resistiu aos apelos de Gillian para permanecer deitada a fim de se curar. Garren ex­plicou alguma coisa sobre Richard ter ido ao santuário para uma penitência secreta, e Deus, ao ouvir sua pre­ce, tê-lo levado imediatamente.

A viúva fez um comentário em voz alta de que não acreditava que Deus o tivesse levado para o céu.

Ficou claro, contudo, que a Abençoada Larina tinha feito mais um milagre misterioso.

Dominica não perguntou como Garren explicou sua ferida.

Durante três dias, enquanto os outros completavam a peregrinação, ela se levantou com o sol e sentou-se na pequena praia que Garren e ela tinham compartilhado. Inocente seguia seus passos.

Às vezes, falava com a Irmã e explicava sua decisão de não retornar para o convento.

— É como se eu fosse um pássaro. — Inocente ouvia atento com sua única orelha. — Um pássaro que cres­ceu mais que o ninho, e descobriu o céu inteiro.

O toque de Garren trouxe-a para este mundo, de alma e de corpo. Ele a pegou nos braços e levou de vol­ta ao barco, murmurando palavras de conforto. Que a levaria para casa. Que resolveria tudo com a Priora. Que ela teria a vida que desejava.

E Dominica queria dizer-lhe Eu quero uma vida com você, mas era uma órfã, e ele era um cavaleiro que tinha feito tudo por dinheiro, mesmo que agora lamentasse. Estava claro que ele a queria no convento. Fora do seu caminho. Eles não ficaram mais a sós.

E, em uma manhã triste da festa de São Pedro e São Paulo, Dominica, com o braço latejante pendurado ao lado do corpo, juntou-se ao grupo silencioso e fatigado que retornaria para casa.

Eles voltaram a Tavistock em dia de mercado. Do­minica não quis enfrentar as barracas com os outros. Após o jantar, o calor do alto verão conduziu-a para o pátio, onde os cânticos das vésperas ecoavam das pilastras. Ela tinha fugido dele por esse claustro, de tudo o que a fez sentir, para se abrigar no scriptorium onde renovou sua promessa.

A promessa que quebrara, como Garren quebrara a dele.

Subitamente, ele apareceu emoldurado sob o arco, os ombros largos preenchendo o espaço entre as colu­nas. Os olhos e o corpo de Dominica viam-no agora. Os cachos rebeldes de cabelo áspero. A sensação dos lá­bios suaves abrindo os seus. A pele quente das costas sob a sua mão.

Dominica fechou os olhos para interromper a lem­brança, e tentou agradecer a Deus pelo que tinha, sem pedir nada mais.

— Pedi a você para ter fé em mim — falou ele abruptamente, como se tivessem acabado de conversar.

Ela concordou com a cabeça.

— Apesar do que Richard disse.

— E eu confiei, não foi?

— Merece saber o que fiz. E por quê. — Dominica passou a mão pela superfície do banco, ao lado de onde estava sentada, sua pele ansiando por ele.

— Quer sentar?

Garren não quis, encolhendo-se como se ela fosse uma chama.

— Sabe que prometi levar a mensagem de William. E que ele queria me pagar por isso.

— Soube disso há muito tempo.

— Eu devia muito a ele. Sabe por quê. — Dominica fechou os olhos e viu o parque dos veados. — A jornada seria um presente meu para ele. A fé de William era tão forte quanto a sua — con­tinuou Garren. — E prometi que voltaria com uma pluma para ele. Da santa.

— Então Lorde Richard estava certo. — Dominica não entendeu por que não ficou desapontada. Qual era a diferença, afinal, entre a pluma de uma gaivota e a de uma asa de santa? — Você foi lá roubar as relíquias.

— Para William. Eu achei que a esperança poderia... — Garren respirou fundo — mantê-lo vivo.

— Mas você não tem fé.

— Mas eu acreditava na fé que ele tinha.

— E o resto da sua confissão? Lorde Richard não mentiu, não é? Sobre... — engoliu a seco, as palavras tristes. — Por que você me amou?

— Eu queria dar esse presente a William. — Suas palavras pareciam pedras que ele precisava levantar. A Priora me ofereceu dinheiro. Disse que você não tinha vocação.

Agora que Dominica não podia mais suportar, ele se sentou ao seu lado e envolveu suas mãos, sem deixar que as retirasse, sem deixá-la desviar os olhos da con­fissão que faria.

— Eu queria tirar alguém de Deus — sussurrou ele. — Deus tinha tirado todo mundo de mim.

— E o dinheiro poderia ser suficiente...

— Mas depois, quando conheci você...

— Fui eu que me entreguei a você.

— Você estava perturbada. Eu nunca deveria ter... — Garren soltou as mãos dela e enterrou o rosto nas dele. — Eu sinto muito, Dominica. Eu não vou contar a verdade à Priora. Vai ter o que deseja.

— O que eu quero é... — Você. Não. O que eu quero é que você me queira também.

Solafide.

— O quê? — Uma língua estrangeira ecoando.

— Só a fé, Dominica. A sua fé trouxe o seu sonho para você.

Nunca a fé trouxera uma vitória tão insípida.

— Eu joguei aquele sonho no mar com o meu pergaminho e a minha pena.

Garren cobriu as mãos unidas de Dominica com as suas, um gesto fraternal como suas palavras.

— Vai voltar a escrever.

— Eu não tenho pergaminho nem pena.

Garren tirou de dentro da túnica o relicário de prata amassado e abriu. A caixa delgada continha três plumas. Ele tirou uma e deu a ela.

— Isto é para você. Da Abençoada Larina.

Sem fala, Dominica pegou a pluma. A haste lisa amarelada, há muito sem as plumas, não recebia tinta há muito, muito tempo. Menor que uma pluma de gan­so, encaixou-se perfeitamente na sua mão. Maravilha­da, ela fitou a pena, depois Garren.

— Como assim, da Abençoada Larina?

Ele fez uma busca dentro do saco e retirou uma pe­quena folha de pergaminho usado, uma faca e um tinteiro de chifre, e depositou-os sobre o banco.

— E estes vêm de mim.

Dominica pegou um de cada vez e colocou-os na mão como se fosse um metal precioso.

— Escreva, Dominica. — Garren levantou-se e jo­gou o saco sobre os ombros. — Deus não queria que você abandonasse os seus sonhos.

Com os dedos apertando a pena, a felicidade min­guou perante a dor de perdê-lo. Ela sorriu, triste.

— Então, agora Deus fala com você?   .

— Sobre você, Ele fala.

Antes que ela pudesse dizer algo, Garren se foi.

Dominica segurou apertado o tinteiro de chifre e a pena. Depois, deixou-os de lado e pegou o pergaminho e a faca. Queria segurar tudo bem apertado e ao mesmo tempo, temendo que desaparecessem como Garren. O pergaminho usado já estava riscado com linhas capri­chadas, e a tinta velha cuidadosamente raspada por um meticuloso antigo dono.

Deus, eu não sei imaginar a vida sem o convento. Só sei que é para onde eu preciso ir. Não posso mais dizer o que deve fazer. Você me diz.

Ela mergulhou a pena na tinta e escreveu. Para a Irmã. Para Garren. Para Deus. Obrigada.

 

A Priora passou a primeira segunda-feira de julho de joelhos, em penitência, igual a todas as segundas-fei­ras, desde a partida de Lorde Richard.

A freira aliviou o peso no joelho esquerdo entorpeci­do. Três ave-marias, e Deus poderia perdoá-la. Não sa­bia, porém, se algum dia ela se perdoaria.

— Madre Julian, os peregrinos chegaram. — Estranho, pensou ela, esforçando-se para levantar do banco de oração de madeira. A voz da Irmã Agnes não mostrou nenhum entusiasmo.

— Que dia feliz, Irmã Agnes. Traga a Irmã Marian até aqui. — Falaria com Dominica mais tarde.

— Não posso.

— O que quer dizer com isso?

A Irmã Agnes choramingou. Lágrimas correram pelo seu rosto.

— A Irmã Marian está morta.

Madre Julian fez um sinal-da-cruz com os dedos trê­mulos.

— Como isso aconteceu?

— Não sei. Dominica estava com ela.

Madre Julian suspirou. Estava na hora de encarar seus pecados.

— Traga a garota até mim.

Sem ter sido convidado, o mercenário a acompa­nhou. Veio recolher seu pagamento, sem dúvida, pois o mereceu. Ela percebeu isso no instante em que os viu juntos, tão próximos que couberam lado a lado no vão da porta. Mas teria sabido de qualquer modo. Uma sen­sualidade abrandava a energia inquieta que antes ani­mava cada movimento da garota.

Não era mais virgem. Lorde Richard ficará satisfei­to, pensou a Priora, estremecendo, mas o pecado é meu. A garota não suportará a punição.

— Bem-vinda ao lar, Dominica. — A Madre abra­çou-a como a criança que ela era antigamente. — Sinto muito pela Irmã Marian.

— Priora — começou Garren —, devo contar-lhe...

— Agora, não — disse ela, balançando a cabeça por cima do ombro da moça. — Meu cordeiro está de volta.

— Mas Deus me deu um sinal...

— Estou certa de que foi um sinal para Dominica entrar para a ordem.

Garren ficou boquiaberto. Depois, sorriu.

— Exatamente, Madre Julian.

— Ele me mandou um sinal parecido. — Ela preci­saria resolver o problema com Lorde Richard de algu­ma forma. O mercenário pareceu aliviado. Que bom. Talvez ele não peça o dinheiro.

Madre Julian segurou Dominica à distância de um braço. A garota cresceu? O hábito mais novo da Irmã Marian não chegaria perto dos tornozelos, mesmo se elas descessem a bainha, e não tinham tempo nem di­nheiro para fazer um novo.

— A Irmã Marian a verá do céu quando fizer os vo­tos na próxima semana.

— Eu não vou entrar para a ordem.

— Você cumpriu sua promessa, minha querida. Não faço objeção. — Ela reconheceu uma humildade nova, como a sua própria, suavizando aqueles olhos azuis re­beldes. Também pensou ter reconhecido mais alguma coisa. Ou talvez uma outra pessoa, mas não conseguia identificar quem.

— Nica, isto é o que você sempre quis...

— Deus me deu um sinal, Madre Julian. Não foi o que eu esperava.

Deus age de maneiras misteriosas, pensou a Priora, sentindo-se levemente culpada pelo seu alívio. Ela afundou na cadeira e fez um sinal com a mão.

— Sente-se, minha filha. Conte-me.

— Mais tarde. Talvez.

De lábios apertados, Garren olhou para a garota como se ela fosse o Santo Graal.

Então, é assim, pensou a Madre. Será que ela sabe?

— O que vai fazer, minha filha? Como vai conseguir sobreviver? — Certamente ela não esperava voltar para trabalhar como criada. Seria uma pena Lorde Richard tê-la afinal, se bem que, na verdade, não era mais pro­blema seu. Talvez o mercenário a quisesse. Não como esposa, claro.

— Primeiro, eu vou orar pela alma de Lorde William. Pedir perdão pela responsabilidade que tenho por sua morte.

— Morte dele? Mas Lorde William está vivo. — A máscara de maturidade da garota caiu.

Um sorriso amplo rasgou o rosto do mercenário.

— Mais um milagre.

Garren agarrou a mão de Dominica e beijou-lhe os nós dos dedos.

Teriam que resolver isso entre eles, pensou a freira. Dominica teria sorte se o pegasse, se bem que ele não tinha nada além do que trazia nas costas,

— Lorde William começou a melhorar pouco depois que vocês partiram — disse a Madre. Ou depois da par­tida de Lorde Richard.

— Precisamos vê-lo.

Madre Julian gritou um aviso quando saíram.

— O Conde não é mais o homem que era.

Dominica corria na frente, mas o mercenário se vi­rou.

— Madre Julian, eu também não sou.

E a Madre pensou que muitos milagres tinham acon­tecido nessa peregrinação.

— Lorde Richard já está no castelo? — Ela precisa­ria responder a ele agora. — Estou certa de que ele fi­cará satisfeito com a recuperação do irmão.

— Lorde Richard está morto. Seja feita a vontade de Deus.

Madre Julian fez o sinal-da-cruz. Mais um resultado de seu pecado. Pai, perdoe-me por minha alegria com a morte dele. Ela olhou para o mercenário. Como poderia pagar-lhe com a moeda de um homem morto?

— As dívidas dele morreram junto — disse Garren.

Ah, Deus, pensou a Madre, quando fazia o sinal-da-cruz, desculpe-me por minha falta de fé no resultado do seu grande plano.

Não havia bandeiras pretas de luto tremulando sobre os baluartes de Readington. Firmemente segura pelos braços de Garren, sobre o lombo do galopante Roucoud, Dominica não tinha mais fôlego para perguntar se, agora, ele acreditava nela. Deixaria o convento para trás. Em Exeter, Deus lhe mostrara um outro caminho.

Mas Garren pegara sua mão. Bem na frente da Ma­dre Julian.

— Garren! Bem-vindo ao lar! — Um homem alto, macilento, de cabelos claros, caminhou para a ponte, impaciente, de braços bem abertos. Seu irmão.

Garren ajudou-a a descer. William envolveu-o em um abraço. Eles bateram nas costas um do outro, se afastaram pasmos, como se ambos tivessem ressuscita­do, e abraçaram-se outra vez.

Dominica pestanejou, surpresa. Wiliiam estava vivo. Talvez Deus tivesse um plano, afinal.

Garren afastou-se para olhar para ele, ainda seguran­do o braço de Wiliiam.

— Como você está vivo?

Wiliiam sorriu, uma cópia desbotada de seu pai, o cabelo menos louro, os olhos não tão azuis.

— Logo que Richard partiu, Niccolo parou o veneno.

Atrás dele, um italiano de lábios grossos deixava pa­cientemente Inocente cheirar suas botas de couro ma­cio. Era a primeira vez que Dominica via o homem à luz do sol. Ele mostrou os dentes em um sorriso estra­nhamente simpático.

— Ele tentou matá-lo! Por que está ao seu lado?

— Ele me deu uma quantidade de veneno para enga­nar Richard, mas não o suficiente para me matar.

— Só pela graça de Deus — respondeu Garren. Wiliiam abraçou os ombros de Garren.

— Teve suas razões. Foi ele quem cuidou da minha recuperação. Pediu perdão.

Garren corou.

— Quem de nós não precisa de perdão?

Dominica esperava que ele olhasse para ela para im­plorar seu perdão mais uma vez. Sim, ela diria a ele. Sim e sim, novamente.

Wiliiam virou-se para a estrada vazia.

— Onde está o meu irmão?

— Morto.

Um ligeiro pesar passou pelo rosto de Wiliiam.

— A vingança da Igreja foi rápida.

— Não tão rápida quanto a de Deus.

Wiliiam fez um ar surpreso.

— Vejo que Deus nos deu longas histórias para con­tar, meu amigo.

— Deus deu a você mais uma coisa. — Garren abriu o relicário amassado e pinçou a pequena pluma com o polegar e o indicador. — Um pássaro deixou isto no santuário. — Ele colocou a felpa na mão calosa de Wil­iiam, e fechou os dedos ainda manchados sobre ela.

-É...?

Garren confirmou, fechando a tampa cuidadosa­mente sobre a pluma remanescente no relicário, e de­volveu-a para dentro da túnica. Ele tilintou alegremen­te ao lado da sua concha de chumbo.

— Para lembrá-lo de que milagres ainda acontecem. — Segurando a pluma, Wiliiam fitou Dominica pela primeira vez.

— Dominica, desculpe-me por não saudá-la adequa­damente. Onde está a Irmã Marian? No convento?

Ela quase caiu em prantos. Talvez as lágrimas ocul­tassem seus segredos.

— A Irmã Marian morreu olhando para o santuário. — William levou a mão direita fechada à testa, ao peito e aos ombros. A dor vincou seu rosto.

— Ela será lembrada pelos Readington. Sei que sen­tirá falta de sua presença no convento, mais do que qualquer outra pessoa. — Wiliiam olhou para Domini­ca como que esperando uma palavra sua.

— Sinto muita falta dela, Milorde — começou ela, lenta. Os olhos de Garren não se afastavam dela, como se as palavras fossem para ele, em vez de para Wiliiam. — Mas não voltarei para o convento.

— O que vai fazer? — perguntou Garren.

— Você salvou o meu presente e a minha vida. — E a minha alma, pensou ela. — Conheci um escriba em Exeter que precisa de ajuda. Um homem bom, com os olhos fracos devido à idade. Vê as letras embaçadas na folha. — Dominica escreveria, se bem que muito pou­co seria relativo às palavras de Deus.

— Isto é absurdo — falou Garren num tom áspero. — Não vou permitir que você viva sozinha na cidade.

— Não estarei só. Vou morar com a família dele. Você mesmo disse que Deus quer que eu escreva.

— Eu quis dizer que você devia copiar a Escritura no convento de Readington.

— "Eu quis dizer?" Então não era o que Deus que­ria. Você me queria fora da sua vida.

— Não é verdade!

— Eu disse a você que seria uma única vez. E você quis garantir isso.

— Eu arruinei a sua vida, a sua fé, arruinei tudo!

— Você não arruinou a minha vida. Você me deu vida. Como deu vida a William.

— Quero reparar isso.

— Mas eu não quero a sua culpa. Quero o seu amor! — As palavras de Dominica ecoaram no silêncio. Wil­liam e Niccolo viraram de costas, fingindo serem surdos.

— Não sou o mesmo homem que saiu deste castelo. Sei que precisamos de fé para nos dar coragem para agir. A fé é tão forte quanto o próprio Deus.

O sangue de Dominica ficou quente diante das pala­vras dele, mas elas não mudavam seu futuro.

O homem que não tinha fé pegou sua mão.

— Precisa entender. Sobre o que Lorde Richard fa­lou. É verdade que eles me ofereceram dinheiro. Mas quando a conheci, eu a quis... — Ele se atrapalhou. — Por você. Quando Deus a salvou de novo, eu fiz uma promessa de ir a Compostela.

— Acredita tanto assim? — Garren confirmou.

— Venha comigo como minha mulher, Nica. Escre­va um guia para os peregrinos.

Dominica não parava de sorrir.

— Nós poderíamos ser um instrumento de Deus e divulgar a Sua obra pelo mundo.

Garren estremeceu e apertou a mão dela.

— Não tenho nada para oferecer a você depois que a peregrinação terminar.

— Você tem, sim. — William pigareou.

Eles se viraram, juntos, surpresos por não estarem a sós. Garren a abraçava.

— Garren, quando pensei que ia morrer, eu quis que você tivesse as minhas terras. Já que estou vivo por sua causa, quero que você tenha a posse do castelo e das terras de White Wood.

— Já devo a você muita coisa. Até mesmo essa jor­nada.

— Você me deu a vida. Nada se compara a isso.

A felicidade no rosto de Garren quase fez Dominica chorar. Finalmente, ele tinha o lar que sempre quis.

Mas isso significava que ela não teria. Um castelo exigia uma dama, não uma órfã. Ela se afastou, já sen­tindo falta dele.

— Congratulações, Sír Garren de White Wood. Es­tou certa que Lorde William o ajudará a encontrar uma dama de acordo.

— Quando ofereci a terra, supus que você seria a dama, Dominica. — E o sorriso de seu irmão a fez conjeturar se mais alguém conhecia o segredo da Irmã.

— Diga sim, Nica, e a nossa peregrinação juntos nunca vai ter fim. Você tem fé em mim?

Dominica respondeu sim, com olhos e coração.

— Credo quia absurdum est.

— Conte-me. O que isso significa?

— "Acredito porque é impossível." Tenho fé em você. Fé suficiente para voar.

 

                                                                               Blythe Gifford  

 

 

           Biblio"SEBO"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades