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A AGUIA E OS LOBOS / Simon Scarrow
A AGUIA E OS LOBOS / Simon Scarrow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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A CADEIA DE COMANDO ROMANA EM 44 D.C.
General Áulo Pláucio
Contingente montado de 120 homens, provavelmente comandado por um centurião. Dividido em quatro esquadrões de 30 homens, comandados por um decurião.
Coortes Auxiliares (tropas de apoio, aproximadamente 20 000 homens)
XX Legião
XIV Legião
IX Legião
Prefeito do acampamento
Centurião-chefe Comandante da Primeira Coorte
Centuriões superiores Cada um comandando uma Coorte
Cinquenta Centuriões (incluindo Macro e Cato)
Cada um comandando uma Centúria)
Tribuno senatorial
II Legião Comandada pelo Legado Vespasiano
Cada Centúria inclui um Optio (sub-comandante), um Porta-estandarte, e oitenta Legionários divididos em dez secções de oito homens cada

 

 

 

 

 

 

 

 

I

- Alto! - Exclamou o legado, erguendo o braço.
Enquanto a escolta montada que o seguia se detinha, Vespasiano esforçou-se por detectar de novo o som que tinha escutado um momento antes. Agora que já não era abafado
pelo ruído dos cascos a percutirem a superfície do caminho, ouvia-se o som das trombetas de guerra Britânicas, vindo da direcção de Caleba, a alguns quilómetros
dali. A cidade era a capital dos Atrébates, uma das poucas tribos aliadas a Roma, e por instantes o legado questionou-se se Carátaco, o comandante inimigo, teria
tido a ousadia de atacar tão profundamente na retaguarda das forças Romanas. Se Caleba estava a ser atacada...
- Vamos!
Dando com os calcanhares nos flancos do cavalo, Vespasiano encolheu-se sobre a sela e encorajou a montada a subir a encosta. A escolta, uma dúzia de batedores da
Segunda Legião, seguiu-o. Proteger o comandante era o seu dever sagrado.
O caminho subia a encosta na diagonal até uma longa crista, descendo para Caleba do outro lado. A cidade estava a ser utilizada como sede do depósito avançado de
abastecimentos da Segunda Legião. Esta tinha sido destacada do exército comandado pelo General Áulio Pláucio, com ordens para derrotar os Durotriges, a última das
tribos meridionais que lutava ainda ao lado de Carátaco. Só depois da destruição destes é que as linhas de abastecimento romanas ficariam seguras, permitindo então
às legiões o avanço para Norte e para Oeste. E sem abastecimentos, o general Pláucio não alcançaria qualquer vitória, e a prematura celebração da conquista da Britânia
pelo Imperador seria desmascarada como uma fraude perante o povo de Roma. O destino do general Pláucio e das suas legiões - de facto, o destino do próprio Imperador
- estava portanto dependente das artérias, finas e esticadas ao máximo, que alimentavam as legiões, as quais podiam ser cortadas com facilidade por um golpe bem
aplicado.
Colunas de carroças pesadas partiam com regularidade da vasta base que os romanos tinham estabelecido no estuário do Tamisa, o rio que serpenteava pelo interior
da Britânia, à qual chegavam as provisões e os equipamentos enviados da Gália. Há já dez dias que a Segunda Legião não recebia abastecimentos de Caleba. Vespasiano
deixara as suas forças a cercarem uma das maiores fortalezas dos Durotriges e dirigira-se à cidade para investigar a questão. A sua legião já estava a rações reduzidas,
e havia pequenos bandos de inimigos à espreita nas florestas vizinhas, preparados para atacar os grupos que tentassem obter alguma caça, e que para isso se afastassem
do corpo principal da legião. A não ser que Vespasiano conseguisse resolver o assunto e assegurar a entrega de víveres aos seus homens, a Segunda Legião ver-se-ia
forçada a recuar para o depósito de Caleba.
Era-lhe fácil imaginar a raiva com que o General receberia notícias de tal revés. Áulio Pláucio tinha sido nomeado pelo Imperador Cláudio para o comando do exército
romano cuja missão era adicionar a Britânia e as suas tribos ao Império. Apesar das vitórias do general sobre as tribos bárbaras no Verão anterior, a verdade é que
Carátaco reorganizara o seu exército, e ainda desafiava Roma. Tinha aprendido bastante com a campanha do ano anterior, e agora recusava-se a enfrentar as legiões
em campo aberto. Ao invés, organizava colunas que se deslocavam rapidamente e atacavam as linhas de abastecimento da imensa máquina de guerra romana. Cada milha
que o General e as suas legiões avançavam aumentava a vulnerabilidade das vitais artérias por onde circulavam os abastecimentos romanos.
Assim, o resultado da campanha deste ano dependia de qual das estratégias triunfaria. Se o General Pláucio conseguisse forçar os Bretões a enfrentá-lo numa batalha
em linha, as legiões triunfariam. Por outro lado, se aqueles conseguissem evitar as batalhas e limitar a capacidade de abastecimento das legiões, deixá-las-iam enfraquecidas
e talvez conseguissem forçar o General a uma perigosa retirada até a costa.
Enquanto Vespasiano e a sua escolta galopavam até à crista da colina, os sons das trombetas tornaram-se mais estridentes. Conseguiam-se agora ouvir homens a gritar,
os choques metálicos das armas, e os sons abafados dos golpes que se abatiam sobre os escudos. Antes de alcançar o cimo, Vespasiano reparou na forma como as longas
ervas se recortavam contra o céu; depois o seu olhar concentrou-se na cena que se desenrolava do outro lado da colina. A esquerda, via-se Caleba, uma extensão apreciável
de esquálidas e pequenas cabanas com telhados de colmo, envolvida por baluartes de terra e uma paliçada. Sobre a cidade espalhava-se uma fina névoa de fumo. Uma
linha de solo esventrado indicava a estrada que saía da alta torre de madeira que sobranceava o portão da cidade e se dirigia ao Tamisa. E nessa estrada, a meia
milha de Caleba, viam-se alguns dos vagões de um
comboio de abastecimentos, protegidos por um pequeno número de tropas auxiliares. À sua volta circulava o inimigo, pequenos bandos de guerreiros pesadamente equipados,
mas também infantaria ligeira, equipada com fundas, arcos e dardos. Mantinham uma barragem de projécteis sobre o comboio e a escolta. O sangue escorria pelos flancos
dos animais que puxavam as carroças, e o trajecto estava juncado de cadáveres.
Vespasiano e os seus homens pararam, enquanto o legado avaliava a situação. Enquanto observava, um grupo de Durotriges avançou sobre a retaguarda do comboio e lançou-se
contra as tropas auxiliares. O comandante do comboio, fácil de identificar na sua capa escarlate, de pé sobre o banco do condutor do vagão da frente, pôs as mãos
em concha e berrou uma ordem, que fez com que o comboio se detivesse. Os auxiliares tinham feito recuar os atacantes com alguma facilidade, mas os seus camaradas
na frente eram agora alvos estáticos para os projécteis do inimigo, e quando o comboio se voltou a colocar em movimento já havia mais alguns corpos de soldados da
escolta espalhados pelo chão.
- Onde está a merda da guarnição? - Resmungou um dos membros da escolta de Vespasiano. - Por esta altura já deviam ter percebido o que está a acontecer.
Vespasiano lançou um olhar sobre as linhas regulares do depósito fortificado, adjacente aos baluartes de Caleba. Viam-se pequenas figuras escuras a correr por entre
os edifícios, mas não havia sinais de uma formação de combate. Tomou uma nota mental para desancar o comandante da guarnição assim que entrasse no depósito.
Se lá conseguisse chegar, reflectiu, já que a escaramuça se desenrolava entre a posição que ocupava com o seu grupo e os portões de Caleba.
Se a guarnição não fizesse rapidamente uma sortida, o comboio seria dizimado e finalmente destroçado pelo inimigo. Apercebendo-se de que o momento decisivo se aproximava,
os Dutotriges encurtavam a distância para as carroças, berrando gritos de guerra e batendo com as espadas nos escudos, para se motivarem ainda mais.
Vespasiano arrancou a capa dos ombros. Segurando com firmeza as rédeas numa mão, empunhou a espada com a outra, e virou-se para os batedores.
- Formem uma linha!
Os homens olharam-no, surpreendidos. O legado tencionava carregar sobre o inimigo, mas isso era o equivalente a um suicídio.
- Formem a linha, porra! - Gritou Vespasiano, e desta vez os homens obedeceram de imediato, espalhando-se de ambos os lados do legado, e preparando as lanças. Assim
que a formação ficou pronta, Vespasiano deu sinal, baixando a espada.
- Vamos!
Naquela manobra não existiu nenhum traço da precisão de uma parada. O pequeno grupo de cavaleiros limitou-se a esporear os cavalos, forçando-os a lançarem-se sobre
os inimigos, sem qualquer preparação. Enquanto o sangue lhe latejava aos ouvidos, Vespasiano deu por si a questionar a sanidade daquela carga selvagem. Teria sido
mais fácil ficar a assistir à destruição do comboio, e esperar que o inimigo triunfante se retirasse dos destroços, antes de seguir para Caleba. Mas teria sido também
uma cobardia, e no fim de contas aqueles abastecimentos eram desesperadamente necessários. Cerrou portanto os dentes e empunhou firmemente a espada na mão direita,
à medida que se aproximava das carroças.
Na base da encosta, o som dos cavalos que se aproximavam fez com que as faces se virassem naquela direcção, e a barragem de projécteis que se abatia sobre a coluna
diminuiu de intensidade.
- Ali! Por ali! - Berrou Vespasiano, apontando para uma linha esparsa de arqueiros e fúndibulários. - Sigam-me!
Os batedores formaram uma linha atrás do legado e carregaram obliquamente pelo declive, avançando sobre os Durotriges equipados com armas ligeiras. À frente dos
cavaleiros, os Bretões já dispersavam, os gritos de triunfo a morrerem-lhes nos lábios. Vespasiano apercebeu-se de que o comandante do comboio tinha aproveitado
a diversão e de que os vagões já rolavam novamente na direcção da segurança dos baluartes de Caleba. Mas o líder dos Durotriges também não era parvo, e um rápido
relance mostrou a Vespasiano que a infantaria pesada e os carros de combate inimigos já se moviam para cortar o caminho à coluna Romana antes que esta atingisse
os portões da cidade. A curta distância à sua frente, homens em trajes imundos desviavam-se desesperadamente, tentando evitar a carga dos cavaleiros romanos. O legado
fixou o olhar num gigantesco fundista que envergava uma pele de lobo à volta dos ombros, e baixou a ponta da espada. No último instante o bretão apercebeu-se do
cavalo que se lançava sobre ele e virou-se, os olhos muito abertos de terror. Vespasiano apontou um pouco abaixo do pescoço do homem e preparou-se para o impacto,
mas o outro conseguiu atirar-se para o chão e evitar o golpe.
- Merda! - Exclamou Vespasiano por entre os dentes. As espadas de infantaria eram de pouca utilidade quando se combatia montado, e ele amaldiçoou-se por não trazer
uma longa espada de cavalaria, como os batedores.
Nesse momento, outro guerreiro inimigo surgiu à sua frei^e- Mal teve tempo para se aperceber do seu aspecto frágil e magro, e do cabe o branco em crista, antes de
mergulhar a lâmina no pescoço do homem, com um som húmido. O bretão grunhiu, tombou para a frente e desapareceu,
enquanto Vespasiano continuou a galopar para o comboio. Olhou em redor e viu que quase todos os batedores tinham refreado os cavalos e se ocupavam a espetar com
as lanças os bretões que viam a arrastar-se pelo solo. Era o momento perfeito para os homens da cavalaria: a matança, depois de destroçada a linha inimiga. Mas esqueciam-se
do perigo representado pelos carros de combate dos bretões que já corriam pela encosta na direcção do pequeno grupo de cavaleiros romanos.
- Deixem-nos! - Berrou Vespasiano. - Deixem-nos! Para os vagões! Vamos!
Os batedores recobraram o bom senso e cerraram as fileiras, galopando atrás de Vespasiano na direcção do mais atrasado dos vagões, a menos de cem passos de distância.
As tropas auxiliares da retaguarda festejaram a chegada e encorajaram-nos, abanando os dardos. Os cavaleiros já quase tinham alcançado os seus camaradas quando Vespasiano
ouviu um leve silvo, e uma flecha lhe zumbiu junto à cabeça. No momento seguinte ele e os seus homens viram-se no meio dos vagões, refreando os cavalos estafados.
- Fechem! Fechem a retaguarda!
Enquanto os homens colocavam os cavalos em formação atrás da última carroça, Vespasiano dirigiu o cavalo até ao comandante da coluna, que ainda estava de pé sobre
o banco do vagão que conduzia. Assim que viu a faixa que assinalava o posto e que se enrolava na armadura de Vespasiano, o homem saudou-o.
- Obrigado, senhor.
- E tu és...? - Inquiriu Vespasiano.
- Centurião Gio Aurélio, Décima Quarta Coorte Auxiliar Gaulesa, senhor.
- Aurélio, mantém os vagões em movimento. Não pares por nenhum motivo. Por nada, percebes? Eu encarrego-me dos teus homens. Tu tratas das carroças.
- Sim, senhor.
Vespasiano fez o cavalo dar meia-volta e trotar até junto dos homens, inspirando profundamente antes de proferir as suas ordens.
- Décima Quarta Gaulesa! Formem uma linha junto a mim!
Vespasiano indicou a posição com a espada, e os sobreviventes da
escolta apressaram-se a ocupar os seus lugares.
Lá atrás, os Durotriges tinham recuperado do choque da carga, e agora, que se tinham apercebido de quão poucos homens os tinham feito entrar em pânico, ardiam de
vergonha e de desejo de vingança. Avançaram numa densa e desordenada massa de infantaria, ligeira e pesada, ao mesmo tempo que os seus carros se precipitavam sobre
os flancos do comboio romano, tentando evitar que este alcançasse os portões e aprisionando os legionários
numa tenaz. Vespasiano concluiu que nada podia fazer quanto aos carros de combate. Se eles conseguissem cortar o caminho, então Aurélio teria simplesmente que tentar
forçar a passagem, confiando no poder dos seus bois para afastar os cavalos e os carros dos durotriges, bastante mais leves.
O mais que Vespasiano podia fazer era manter a infantaria inimiga à distância, por tanto tempo quanto fosse possível. Se eles conseguissem alcançar os vagões, tudo
estaria perdido. Olhou uma última vez para o escasso número de homens que tinha, e para as expressões sombrias e determinadas dos inimigos que se aproximavam, e
percebeu imediatamente que ele e as suas tropas não teriam qualquer hipótese. Teve que se impedir de soltar uma gargalhada amarga. Ter sobrevivido a todas aquelas
sangrentas batalhas contra Carátaco e o seu exército no ano anterior, para perder a vida numa escaramuça menor - era demasiado vergonhoso. E ainda havia tanto que
ele queria conseguir. Amaldiçoou o destino, e também o comandante da guarnição de Caleba. Se esse sacana tivesse imediatamente levado as suas tropas em socorro do
comboio, talvez tivessem tido uma hipótese.

II
- Aqui? Nem penses! Isto é só para oficiais. - Gritou o centurião Macro.
- Desculpe, senhor. - Respondeu o enfermeiro que segurava a extremidade mais próxima da maca. - Ordens do chefe.
O centurião barafustou por momentos, e depois voltou a deixar-se cair na cama, tendo o cuidado de evitar que o lado ferido da sua cabeça entrasse em contacto com
a estrutura do leito. Tinham passado quase dois meses desde que um druida tentara tirar-lhe o escalpe à espadeirada e, embora a ferida se tivesse fechado, as dores
persistiam, sobretudo as tremendas enxaquecas que mal começavam agora a diminuir. Os enfermeiros entraram na pequena cela e baixaram cuidadosamente a maca, gemendo
com o esforço.
- E qual é a história desse?
- Cavalaria, senhor. - Retorquiu o enfermeiro, depois de se reerguer. - A patrulha caiu numa emboscada esta manhã. Os sobreviventes começaram a chegar há pouco.
Macro escutara o toque a reunir algum tempo antes. Voltou a sentar-se.
- Porque é que não fomos informados?
O enfermeiro encolheu os ombros.
- Para quê? São apenas dois pacientes, senhor. Não havia razão para vos incomodar.
- Ei, Cato! - Macro virou-se para a outra cama da cela. - Cato! Ouviste esta? O tipo acha que dois centuriões de caca como nós não precisam de saber o que se está
a passar... Cato?... CATO!
Macro praguejou, olhou em volta, agarrou na sua vara de videira, que se encontrava junto à cama, apoiada na parede, e espetou deliberadamente a forma imóvel que
se via na outra cama.
- Vá lá, miúdo! Acorda!
Ouviu-se um resmungo vindo de debaixo do cobertor, e depois as dobras da manta de lã afastaram-se e os caracóis negros de Cato surgiram de dentro daquele quente
refúgio. O companheiro de Macro tinha sido recentemente promovido a centurião, mas antes tinha sido o seu optio. Com apenas dezoito anos de idade, era um dos mais
jovens centuriões das legiões. Tinha chamado a atenção dos seus superiores pela coragem demonstrada nas batalhas, e pela forma expedita como tinha desempenhado uma
difícil missão de salvamento no interior do território inimigo, nos primeiros meses daquele Verão. Nessa ocasião, tanto ele como Macro tinham sido feridos com gravidade
pelos druidas. O chefe destes tinha atacado Cato com uma pesada foice cerimonial, abrindo-lhe o peito junto às costelas. O jovem quase morrera, mas agora, muitas
semanas depois, estava em franca recuperação, e olhava a cicatriz avermelhada em volta do peito com algum orgulho, embora lhe provocasse dores horríveis sempre que
tinha que utilizar os músculos daquele lado do torso.
Os olhos de Cato entreabriram-se, depois piscaram, e ele olhou para o outro centurião.
- Que se passa?
- Temos companhia. - Macro apontou para o homem na maca com o polegar. - Parece que a canalha do Carátaco anda outra vez ocupada.
- Devem andar a ver se apanham alguma coluna de abastecimentos.
- comentou Cato. - A patrulha deve ter sido atacada quase por acaso.
- Se bem me lembro, é o terceiro ataque este mês. - Macro olhou para o enfermeiro. - Não é?
- Sim, senhor. É a terceira vez. O hospital está a ficar lotado, e não temos descanso. - As últimas palavras foram pronunciadas com algum ênfase, enquanto os dois
enfermeiros davam um passo sorrateiro na direcção da porta. - Se nos der licença, senhor, vamos voltar às nossas tarefas.
- Calminha aí. Conta-me lá a história do comboio de abastecimentos.
- Não sei, senhor. Só me encarrego dos feridos. Ouvi alguém dizer que o que restava da escolta ainda andava lá por fora, aqui perto, a tentar salvar as últimas carroças.
Uma estupidez, acho eu. Deviam tê-las deixado para os bretões, e ter-se posto a milhas. Bom, senhor, dá licença...?
- O quê? Ah, sim. Raspem-se, vá.
- Obrigado, senhor. - O enfermeiro sorriu e, empurrando o colega à frente, saiu da cela e fechou a porta.
No momento em que a porta se cerrou, Macro lançou as pernas sobre a borda da cama e agarrou nas botas.
- Senhor, onde vai? - Perguntou Cato, meio sonolento.
- Ao portão, ver o que se passa. Levanta-te, também vens.
- Vou?
- Evidentemente. Não queres saber o que está a acontecer? Não estás farto de estar fechado na porra deste hospital há quase dois meses? Além disso - juntou Macro,
enquanto apertava as botas -, dormiste a maior parte do dia. O ar fresco vai-te fazer bem.
Cato fez uma careta. O motivo de dormir durante o dia era o ressonar do seu colega de quarto, tão forte que tornava quase impossível dormir durante a noite. De facto,
estava absolutamente farto do hospital, e mal via o momento de regressar ao serviço activo. Mas, reflectiu amargamente, ainda faltava algum tempo para essa situação
se verificar. Mal tinha recuperado a força para se manter de pé. O seu companheiro, apesar da terrível ferida na cabeça, tinha uma constituição mais forte, e já
quase estava em condições de voltar à actividade, aparte as ocasionais mas incapacitantes dores de cabeça.
Enquanto Macro se atarefava a atar as botas, Cato observou a cicatriz lívida que se lhe estendia pelo cimo do crânio. A ferida tinha deixado a pele enrugada, e nenhum
cabelo crescia em volta dela. O médico prometera que algum cabelo acabaria por nascer, o suficiente para esconder a maior parte da cicatriz.
- Com a sorte que tenho - tinha sido o comentário amargo de Macro -, isso vai suceder mesmo na altura em que começar a ficar careca.
Cato sorriu ao recordar a cena. Depois ocorreu-lhe um argumento que poderia justificar que ficasse na cama.
- Tem a certeza de que deve sair, senhor, depois daquele desmaio da última vez que nos sentámos no pátio? Será prudente?
Macro encarou-o, irritado, os dedos a acabarem de apertar as botas automaticamente, como o tinham feito na maior parte das manhãs anteriores, ao longo de quase dezasseis
anos. Abanou a cabeça.
- Já te disse, não precisas de me chamar "senhor" a toda a hora - só à frente dos homens, e em ocasiões formais. Portanto, daqui para a frente, é só "Macro". Percebido?
- Sim, senhor. - Foi a imediata resposta de Cato; então franziu o sobrolho e deu uma pancada na sua própria testa. - Desculpe. É difícil habituar-me a essa ideia.
Ainda nem me habituei ao facto de ser um centurião. Devo ser o mais novo deste exército.
- Suponho até que na porra toda do Império.
Por um instante Macro lamentou o comentário, e reconheceu um traço de amargura em si mesmo. Embora tivesse ficado genuinamente contente com a promoção que Cato recebera,
depressa o veterano esquecera o
entusiasmo, e de vez em quando deixava escapar uma frase sobre a necessidade de experiência para se ser um bom centurião. Ou então lançava uns conselhos sobre a
conduta adequada de um homem com aquela patente. Era um bocado forçado, reconhecia, uma vez que ele próprio tinha sido promovido ao centurionato apenas cerca de
ano e meio antes de Cato. Era verdade que já tinha dezasseis anos de serviço nas águias, e que era um veterano respeitado, com uma folha de serviço muito aceitável,
mas o seu posto era quase tão recente como o do seu jovem amigo.
Enquanto via Macro a apertar as botas, Cato reflectia sobre a insegurança que sentia depois da promoção. Não podia deixar de pensar que tinha sido precipitada, e
sentia alguma vergonha quando se comparava com Macro, um soldado completo, se alguma vez existira algum. Já temia o momento em que, finalmente recuperado, veria
ser-lhe atribuído o comando de uma centúria. Não era preciso ter uma grande imaginação para prever a forma como reagiriam homens muito mais velhos e experimentados,
ao verem um miúdo de dezoito anos a comandá-los. Claro que notariam as medalhas na sua couraça, e perceberiam o valor do seu centurião, e que ele tinha chamado a
atenção de Vespasiano. Talvez até reparassem nas cicatrizes que tinha no braço esquerdo, outra prova da sua coragem em combate, mas nada disso poderia apagar o facto
de ele mal poder ser chamado um homem, e de ser mais novo do que os filhos de alguns dos homens que serviriam na sua centúria. Isso seria duro de engolir, e Cato
sabia que haviam de o observar atentamente, e nunca lhe perdoariam qualquer erro que cometesse. Não pela primeira vez, questionou-se se existiria alguma forma discreta
de requerer que fosse rebaixado ao seu anterior posto, e voltar ao papel confortável de optio de Macro.
Este terminara finalmente de apertar as botas; levantou-se e pegou na sua capa militar de tom escarlate.
- Vamos, Cato! De pé. Embora.
No exterior do quarto, os corredores do hospital estavam cheios de enfermeiros e feridos, que continuavam a chegar. Os médicos furavam por entre a mole humana, avaliando
rapidamente as feridas e enviando os casos fatais para a pequena enfermaria junto à parede do fundo, onde os moribundos seriam confortados até que a morte os reclamasse.
Os outros eram amontoados em qualquer espaço disponível. Com a continuação da campanha de Vespasiano contra os fortes dos Durotriges, o hospital de Caleba tinha
já esgotado a sua capacidade, e a construção de um novo bloco ainda não tinha sido concluída. As sortidas constantes contra as colunas de
abastecimento do exército do general Pláucio traziam ainda mais pacientes às já esgotadas capacidades do hospital, e assim os homens estavam a ser colocados em colchões
improvisados nos corredores. Felizmente era Verão e por isso não sofriam grande desconforto quando chegava a noite.
Macro e Cato dirigiram-se à porta principal. Envergando apenas as suas túnicas e capas, iguais para todos os legionários, levavam as varas de videira para indicar
a sua patente, e os outros homens abriam caminho em sinal de respeito. Macro também levava posta a protecção de feltro para a cabeça, em parte para esconder a ferida
- estava farto dos olhares de medo que recebia das crianças locais - mas sobretudo porque a exposição ao ar fazia com que a cicatriz lhe doesse. Cato levava a sua
vara na mão direita e mantinha o cotovelo esquerdo erguido para proteger o lado ferido de qualquer choque.
A entrada do hospital dava para a alameda principal do depósito fortificado que Vespasiano tinha feito edificar encostado a Caleba. Encontravam-se por ali várias
carroças ligeiras, e os feridos ainda estavam a ser descarregados da última a chegar. As camas nas carroças vazias eram uma confusão de equipamento militar abandonado
e escuras manchas de sangue.
- Os sacanas estão a ficar ambiciosos. - Afirmou Macro. - Isto não é o trabalho de um pequeno grupo de atacantes. Parece-me que há uma força numerosa na região.
Estão cada vez mais audazes. Se isto continua, as legiões vão ter muito trabalho para prosseguir o avanço.
Cato assentiu. A situação era séria. O General Pláucio já tinha sido forçado a instalar uma cadeia de fortins para proteger as lentas colunas de carroças com abastecimentos.
Cada guarnição que era preciso deixar para trás significava o emagrecimento da sua força, e esta acabaria por se tornar um alvo irresistível para Carátaco.
Os dois centuriões avançaram rapidamente pela rua até aos portões do depósito, onde a diminuta guarnição do campo fortificado estava a formar apressadamente. Homens
debatiam-se com fivelas e cintos, enquanto o Centurião Verânio, comandante da guarnição berrava insultos às portas das casernas, e acertava umas vergastadas nos
retardatários, que se juntavam aos camaradas enquanto lutavam com o equipamento. Macro trocou um olhar sabedor com Cato. A guarnição era composta pelo refugo da
Segunda Legião, o tipo de homens para quem Vespasiano não tinha lugar na sua campanha surpresa pelo coração das terras dos Durotriges. A fraca qualidade daqueles
soldados era evidente para qualquer olho experiente, e uma ofensa mortal para o profissionalismo de Macro.
- Foda-se, os locais devem ficar com uma bonita ideia ao verem esta confusão. Se isto se sabe lá fora, o Carátaco percebe logo que pode vir cá
quando quiser e muito bem lhe apetecer, e dar ao Vérica um grandessíssimo pontapé no cu.
Vérica, o idoso rei dos Atrébates, era um aliado dos Romanos desde que as legiões tinham desembarcado na Britânia, no ano anterior. Não que tivesse tido muito por
onde escolher. Tinha concordado com a aliança em troca do seu regresso ao poder como soberano dos Atrébates, antes mesmo que as legiões tivessem avançado sobre a
capital de Carátaco, Camaloduno. Quando a campanha se estendera às tribos hostis do sudoeste, Vérica tinha sugerido Caleba como base de operações ao General Pláucio.
E por isso o depósito tinha sido construído. Para lá de conseguir a boa-vontade de Roma, Vérica tinha assim assegurado um caminho de fuga para o caso de os Atrébates
sucumbirem aos apelos das tribos que ainda resistiam aos invasores, e resolverem trocar de lado e lutar contra os Romanos.
Os dois centuriões atravessaram o portão e entraram em Caleba. Embora Vespasiano tivesse deixado apenas duas centúrias, sob o comando de um oficial, para a defesa
do depósito, a área compreendida no interior dos baluartes era suficientemente grande para acolher várias coortes. Ao lado da parada situavam-se o hospital e os
edifícios do comando. Ao seu lado viam-se algumas filas de casernas de madeira. Por trás, ficavam os silos de cereais e outros armazéns, com todo o material de que
a Segunda Legião necessitava na sua progressão para ocidente. O líder dos Bretões, Carátaco, tinha adoptado uma táctica de terra queimada perante o avanço das legiões
de Pláucio, e por isso as colunas Romanas dependiam da longa cadeia de abastecimento que começava na enorme base de Rutúpias, junto ao ponto em que as legiões primeiro
tinham posto o pé na Britânia.
O contraste entre o interior arrumado do depósito e a confusão de cabanas, celeiros, redis e as acanhadas e enlameadas vias de Caleba voltou a impressionar Cato.
A capital tribal tinha perto de seis mil habitantes em épocas normais, mas com os ataques do inimigo às colunas de abastecimento e quintas por todo o reino, a população
tinha aumentado para perto do dobro. Empilhadas nas rústicas habitações de Caleba, as pessoas sentiam-se a cada dia mais desesperadas e esfomeadas.
Apesar da sua localização ideal, no cume de uma colina de encostas suaves, nunca tinha sido feito nenhum esforço para criar um sistema de drenagem eficaz, e às ruas,
se mereciam tal nome, tinham grandes valas, e estavam cobertas por imundíce. Poças de fedor intenso formavam-se em qualquer local em que o solo estivesse tão saturado
que mais nada era absorvido ou conseguia fluir, e Cato sentiu nojo quando avistou duas crianças a fazerem bolos de lama junto aos rastos inundados que a passagem
de um vagão deixara.
Quando os dois centuriões chegaram ao portão principal da cidade,
uma mistura de nativos e Romanos amontoava-se nos baluartes de terra, para assistir ao drama desesperado que se desenrolava na encosta abaixo. Para além dos homens
da guarnição, o Império estava representado pela primeira vaga de negociantes, mercadores de escravos e agentes de terras, desejosos de enriquecer antes que a nova
província se civilizasse a ponto de os nativos perceberem os seus golpes.
Por enquanto, todos tentavam obter os melhores lugares para ver como os restos da coluna de abastecimentos lutavam para atingir a segurança da cidade. Cato avistou
o optio que comandava o destacamento encarregado do portão, e ergueu a sua vara para que o outro se apercebesse do seu posto. O optio deu imediatamente ordens a
um punhado de homens para que abrissem caminho aos dois centuriões, e eles entregaram-se à tarefa com a habitual insensibilidade dos soldados. As bossas dos escudos
foram lançadas contra os corpos dos nativos, sem preocupação quanto a idade ou sexo, e gritos de ira depressa se ergueram acima das exclamações de dor e surpresa.
- Calma aí! - Lançou Cato acima do clamor, atingindo o escudo do legionário mais próximo com a sua vara de videira. - Calma, já disse! Esta gente é aliada de Roma!
Não são nenhuns animais. Percebido?
O legionário colocou-se em sentido à frente do seu superior, fixando com o olhar um ponto sobre o ombro de Cato.
- Sim, senhor!
- Se te apanho, ou a algum dos teus camaradas, a tratarem assim os nativos, farei com que passes o resto do ano de faxina às latrinas. - Cato inclinou-se para o
homem, e continuou com voz suave. - Aí é que vais estar mesmo na merda, não é verdade?
O legionário tentou não sorrir, e Cato acenou.
- Podes prosseguir.
- Sim, senhor.
Enquanto o legionário se afastava por entre a turba, os protestos dos locais diminuíam, já que tinham visto punida a brutalidade dos soldados.
Macro deu um toque em Cato.
- Para que é que foi aquilo? O rapaz estava a fazer o seu papel.
- O orgulho ferido vai sarar em pouco tempo. É muito mais difícil conseguir estabelecer boas relações entre nós e os atrébates. E destruí-las é obra de um instante.
- Talvez. - Admitiu Macro a contragosto, mas então lembrou-se do quase sorriso do homem perante o último comentário de Cato. O toque de humor tinha diminuído consideravelmente
o ressentimento do legionário.
- De qualquer maneira, foi bem feito da tua parte.
Cato encolheu os ombros.
Entraram para a penumbra da casa da guarda e subiram a escada para o patamar que se situava por cima das grossas vigas que amparavam os portões da cidade. Ao sair
da passagem estreita, Cato avistou a um lado Vérica e um punhado dos seus guardas pessoais. Cato saudou o rei enquanto atravessava o pavimento de madeira e se dirigia
à paliçada, para olhar para a estrada que seguia para o norte, na direcção do Tamisa. A menos de um quilómetro de distância, seis grandes carroças, cada uma puxada
por quatro bois, arrastavam-se pelo caminho. À sua volta marchava uma cortina de tropas auxiliares, e um pequeno grupo de batedores montados formavam a retaguarda.
O sol reflectiu-se numa couraça peitoral e Cato franziu os olhos ao ver uma figura a cavalo, no meio da coluna.
- Aquele não é o legado?
- Como queres que saiba? Os teus olhos são melhores que os meus. Diz-me tu.
Cato concentrou o olhar durante mais algum tempo.
- É! É mesmo ele.
- O que diabo está ele aqui a fazer? - A surpresa de Macro era genuína. - Devia estar com a legião, a arrasar aqueles malditos fortes das colinas.
- Presumo - reflectiu Cato - que tenha vindo ver onde param os seus abastecimentos. Deve ter encontrado os vagões pelo caminho.
- É o nosso Vespasiano, sim senhor! - Riu Macro. - Não consegue manter-se afastado de uma boa luta.
Seguindo a coluna viam-se vários pequenos grupos de tropas inimigas, acompanhados pelos rápidos carros de combate que muitas tribos britânicas ainda utilizavam.
Uma barragem contínua de setas, lanças e projécteis de funda caía sobre a coluna Romana. Enquanto Cato observava, um dos auxiliares foi atingido na perna por uma
lança e tombou pelo solo, deixando cair o escudo. O homem que o seguia passou por cima do camarada caído e continuou, escondido atrás do seu escudo oval e sem olhar
para trás uma vez que fosse.
- É duro. - Disse Macro.
- Pois...
Os dois homens sentiam-se frustrados pela sua impossibilidade de ajudar os camaradas. Enquanto estivessem sob vigilância médica, eram apenas dois supranumerários
no depósito. Além disso, o centurião que comandava a guarnição não veria com bons olhos que eles interferissem com o seu comando, fosse de que forma fosse.
Antes que a coluna tivesse ultrapassado completamente o homem que fora ferido, um dos tratadores dos animais deixou o seu par de bois e correu para o auxiliar, que
tentava libertar-se da lança. Enquanto a
multidão no torreão de Caleba olhava, o tratador pegou na lança e soltou-a. Então ajudou o seu camarada ferido, e juntos tentaram alcançar a traseira do último vagão
da coluna.
- Não se vão safar. - Disse Cato.
Os vagões continuavam em movimento, aproximando-se da segurança dos baluartes, e os condutores incitavam os animais com chicotadas desesperadas; a distância entre
o último veículo e os dois homens não parava de crescer, até que eles desapareceram entre as fileiras da retaguarda montada. Cato esforçou os olhos, à procura de
mais indícios do par.
- Devia tê-lo deixado. - Foi o amargo comentário de Macro. - Aquele estúpido só vai fazer com que se perca outra vida.
- Lá estão eles!
Macro olhou para trás dos batedores, e viu o par ainda a tentar acompanhar a coluna. Avistou então o grupo mais próximo de bretões, que se precipitava para uma matança
fácil. O tratador olhou por cima do ombro e parou de repente. Depois dessa curta pausa, libertou-se do companheiro ferido e correu para a segurança da coluna. O
auxiliar caiu de joelhos e esticou o braço na direcção do outro enquanto os inimigos se aproximavam. Desapareceu sob uma massa de gente com a cara pintada e os cabelos
cheios de visco. Alguns dos Bretões continuaram a correr, tentando alcançar o tratador. Mais jovens, em melhor condição física e mais rápidos, depressa diminuíram
a distância, e ele foi abatido por uma lança que o atingiu no fundo das costas. Depois também ele deixou de se ver sob os golpes selvagens dos guerreiros Britânicos.
- Uma pena. - Macro abanou a cabeça.
- Parece que os outros vão tentar qualquer coisa. - Cato estava a observar o maior dos grupos de carros, onde uma figura de elevada estatura, o líder, agitava uma
lança sobre a cabeça para atrair a atenção. Então, com um rápido movimento da arma, apontou-a na direcção dos restos da coluna, e os Bretões soltaram um grito de
guerra e carregaram sobre ela. Os auxiliares cerraram as fileiras, formando uma linha lamentavelmente esparsa entre os Durotriges e os vagões. O legado tinha-se
reunido aos seus batedores montados e estes espalharam-se rapidamente, protegendo a retaguarda da coluna e preparando-se para carregar.
- O que diabo pensa ele que está a fazer? - Perguntou Cato, espantado. - Vão ser destroçados.
- Talvez consigam obter o tempo de que os outros precisam para chegar aos portões. - Macro virou-se e olhou para os baluartes do depósito. - Onde está a guarnição?
Um ruído distante de cascos e o grito de desafio, Augusta! anunciaram a carga dos batedores. Cato e Macro observaram com receio crescente
enquanto o punhado de cavaleiros correu pela planície banhada pelo sol na direcção da massa ululante de Bretões. Num momento os dois lados eram forças distintas,
Romano contra Bretão, no momento seguinte já só havia um caos de homens e cavalos, gritos de guerra e de dor alcançando com clareza aqueles que observavam impotentes
dos baluartes de Caleba. Alguns dos homens a cavalo separaram-se do inimigo e voltaram para junto dos vagões.
- O legado está entre eles? - Inquiriu Macro.
- Sim.
O sacrifício dos batedores não conseguiu mais do que atrasar o inimigo por um curto período, mas os vagões e a escolta de infantaria já estavam a apenas duzentos
passos dos portões. Os que assistiam das muralhas gritavam encorajamentos e acenavam-lhes freneticamente para que se apressassem.
Os Durotriges voltaram ao ataque, uma massa indistinta de homens e carros de combate que se aproximava da presa. Os auxiliares prepararam-se para receber o impacto
da carga. As hastes escuras dos últimos dardos disponíveis fizeram as suas curvas pelo ar e precipitaram-se sobre o inimigo. Cato viu uma atingir um cavalo na cabeça,
e o animal empinou-se e caiu sobre o flanco, arrastando o carro que puxava e esmagando o condutor e o lanceiro. Os Bretões prosseguiram, ignorando o acidente, e
atiraram-se aos escudos e às espadas dos auxiliares, forçando-os a recuar para os vagões, que continuavam entretanto a avançar.
Cato ouviu então um som ritmado de passos, vindo de trás, e virou-se para ver a vanguarda da guarnição emergir do coração de Caleba e dirigir-se ao portão. Sob as
madeiras do patamar do torreão, Cato ouviu o ranger das pesadas vigas quando as portas foram abertas para dar passagem aos legionários.
- Já não era sem tempo, porra! - Resmungou Macro.
- Acha que farão alguma diferença?
Macro viu como a luta desesperada engolia a retaguarda da coluna de abastecimentos, e encolheu os ombros. Talvez a visão dos legionários fizesse os Bretões suspenderem
o assalto. Ao longo dos últimos dois anos, os nativos tinham aprendido a temer os homens com os escudos vermelhos, e por bons motivos. Porém, aqueles eram os mais
velhos dos veteranos, homens já cansados que não conseguiam acompanhar os seus camaradas mais jovens, e os menos velhos eram preguiçosos em quem ninguém confiava
para manter uma formação no calor da batalha. No momento em que o inimigo se apercebesse do real valor dos homens que avançavam contra ele, tudo estaria perdido.
As primeiras fileiras da guarnição passaram sob o torreão. O centurião
lançou uma ordem, e a coluna alterou a formação; alguns legionários saíram da estrada de forma a criar uma linha com quatro homens de profundidade. Assim que a
manobra foi concluída, a linha avançou de novo, em socorro da coluna envolvida no combate. A retaguarda dos Bretões destacou-se para enfrentar a nova ameaça, e os
fundibulários e os arqueiros lançaram os seus mísseis contra os Romanos. A barragem desfez-se sem consequências contra os escudos destes, e então fez-se silêncio,
quando a infantaria inimiga avançou para defrontar os legionários. Não ocorreu nenhuma carga selvagem: as duas linhas limitaram-se a encontrar-se com um barulho
crescente de lâminas a tinir e de pancadas sobre escudos. Os legionários avançaram na direcção do primeiro vagão, abrindo caminho através dos Durotriges.
A centúria progredia, mas era evidente, para os observadores no portão da cidade, que o passo se reduzia cada vez mais. Ainda assim, chegaram até perto da junta
de bois do primeiro vagão e conseguiram criar o espaço suficiente nas linhas inimigas para que o carro avançasse, libertando-se da confusão e dirigindo-se aos portões
abertos. O segundo e o terceiro vagões seguiram-no, e os auxiliares que ainda sobreviviam lutaram desesperadamente para engrossar a formação dos legionários. Vespasiano
desmontou e lançou-se na refrega ao lado dos seus homens. Por momentos, Cato sentiu um baque no coração, ao perder de vista o legado; mas depois avistou, por entre
a massa tremeluzente de capacetes que refulgiam sob o sol e de armas ensanguentadas, a distintiva crista vermelha no cimo do capacete de Vespasiano.
Cato inclinou-se sobre a paliçada para observar os vagões passarem pelo portão, cada um deles carregado com pilhas de ânforas embrulhadas em palha. Ter-se-ia salvo
algum cereal e azeite, portanto. Mas era tudo. Quando voltou a olhar para o combate, percebeu que os dois últimos vagões tinham caído em mãos Britânicas, e que os
condutores e tratadores jaziam mortos ao lado dos carros. Só um dos vagões era ainda disputado por ambas as partes mas, enquanto Cato observava, os Bretões começaram
a empurrar os Romanos para longe.
- Olha para ali! - Exclamou Macro, apontando para outro sítio. O líder Britânico tinha reunido de novo os carros de combate e levava-os a rodear a área da escaramuça,
no intuito óbvio de os lançar contra a retaguarda Romana. - Se aqueles tipos os apanham antes de chegarem ao portão, os nossos vão ceder.
- Ceder? - Desdenhou Cato. - Vão mas é ser feitos em bocados... Espero que consigam ver o perigo a tempo.
A linha Romana já cedia terreno sob o peso do ataque dos Bretões. Os homens na fileira da frente atacavam e bloqueavam, preocupados apenas
com a tarefa de matar o inimigo que se lhes apresentava, mas os seus camaradas das fileiras de trás deitavam olhares nervosos sobre os ombros, enquanto tentavam
recuar para a segurança do portão. Com um grito selvagem, os cavaleiros inimigos chicotearam os seus cavalos, carregando sobre o curto espaço existente entre os
legionários e o torreão. Cato conseguia sentir o patamar de madeira a agitar-se debaixo dos seus pés, devido à aproximação dos carros, que fazia estremecer o solo.
O centurião que comandava a guarnição lançou um olhar para os carros inimigos e gritou um aviso. Os legionários e os auxiliares imediatamente desfizeram a formação
e correram para o portão, esquecendo os guerreiros que os defrontavam. Vespasiano corria no meio dos outros. No torreão, Vérica colocou as mãos junto à boca e gritou
uma ordem aos homens que guarneciam a paliçada. Dardos foram erguidos e arcos preparados para criar uma barragem que permitisse a fuga aos Romanos. Alguns já se
precipitavam pelos portões adentro, mas outros não o conseguiriam. Os soldados mais velhos, lutando penosamente contra o peso do seu equipamento, estavam a ficar
para trás. Muitos tinham-se libertado de escudos e espadas, e tinham-se lançado em corrida, olhando para a direita, de onde se aproximavam os carros, as crinas dos
cavalos chicoteando ao vento, as narinas muito abertas e as bocas a espumar; por trás deles, as expressões selváticas dos condutores e dos lanceiros, exultantes
perante a iminente destruição dos Romanos.
O Centurião Verânio, fiel às tradições do seu posto, ainda empunhava o escudo e a espada, e corria ao lado dos mais atrasados dos seus homens, gritando-lhes para
se despacharem. Quando os carros não estavam a mais de vinte passos de distância, apercebeu-se de que não escaparia. Verânio voltou-se, virou-se para os carros inimigos
e levantou o escudo, mantendo a espada apontada à altura do peito. Enquanto Cato observava, sentindo as entranhas a revolverem-se, o centurião ergueu o olhar para
o torreão e mostrou um sorriso triste. Acenou uma saudação aos rostos que assistiam ao seu derradeiro combate, e virou o rosto para o inimigo.
Ouviu-se um grito, abruptamente interrompido quando os carros atropelaram os legionários mais atrasados, e Cato reparou na forma como os corpos protegidos por cotas
de malha eram esmagados e triturados pelos cascos e pelas pesadas rodas dos carros inimigos. Verânio avançou, cravando a espada no peito de um dos cavalos mais próximos,
mas depois foi derrubado e desapareceu na confusão de cavalos atrelados e das estruturas de vime dos carros.
Com um ruído arrastado, os portões foram encerrados, e a tranca caiu nos seus encaixes. Os carros detiveram-se em frente ao portão, e o ar encheu-se de gritos e
bramidos de dor dos cavalos, quando os dardos e
flechas dos homens de Vérica choveram sobre a concentração inimiga. Os Bretões ripostaram com os seus próprios mísseis, e um projéctil abateu-se sobre a paliçada
muito perto de Cato. Agarrou Macro pelo ombro e arrastou-o na direcção da escada que levava ao interior dos baluartes.
- Não há nada que possamos fazer aqui. Só atrapalhamos.
Macro assentiu, e seguiu-o.
Quando emergiram no espaço aberto por trás do portão, deram de caras com o confuso amontoado de vagões, bois e sobreviventes da escolta e da guarnição. Havia homens
espalhados pelo chão, os peitos a arfar. Os que se mantinham de pé apoiavam-se nas lanças, ou estavam dobrados, tentando recuperar o fôlego. Muitos nem se davam
conta das feridas, e o sangue manchava o solo em seu redor. A um lado encontrava-se Vespasiano, inclinado sobre si mesmo, as mãos apoiadas nos joelhos, também ele
a tentar respirar. Macro abanou a cabeça com lentidão.
- Que porra de desastre completo...

III
Os sons da batalha esmoreceram rapidamente, à medida que os Durotriges se retiraram das proximidades de Caleba. Apesar de terem infligido uma clara derrota aos Romanos
e aos seus desprezíveis aliados Atrébates, tinham compreendido que qualquer tentativa de tomar de assalto a cidade seria um desperdício de vidas. Aos gritos de vitória
e júbilo recuaram para além do alcance dos projécteis dos defensores, não se inibindo porém de continuar a provocá-los com insultos até ao cair da noite. Quando
a escuridão se espessou, desapareceram como se se tivessem fundido com as trevas, deixando no ar apenas um leve ressoar das rodas dos seus carros de combate, até
que Caleba se viu rodeada pelas sombras silenciosas.
Os nativos que guarneciam o torreão das portas da cidade e os baluartes em redor afrouxaram a vigilância e abateram-se sobre o passadiço. Só algumas sentinelas se
mantiveram de pé, olhos e ouvidos esforçando-se para perceber se os Durotriges se tinham realmente retirado, ou se a manobra não teria sido um mero truque que lhes
permitisse uma nova investida a coberto da noite. Ao emergir do torreão, Vérica parecia cansado, e o seu corpo magro movia-se de forma pouco firme. Descansou a mão
no ombro de um dos seus guardas pessoais. À luz tremeluzente de uma única tocha, o pequeno séquito dirigiu-se lentamente ao recinto real e às suas altas edificações,
percorrendo a principal via da cidade. Ao longo do caminho, pequenos grupos de habitantes calavam-se quando se apercebiam da passagem do rei; o ressentimento notava-se
nas faces que a luz laranja do archote iluminava. Vérica e os seus nobres estavam bem alimentados, mas o povo sofria com a falta de víveres. Os seus depósitos de
cereais estavam vazios, e na cidade só restavam alguns porcos e ovelhas. Nos arredores, muitas quintas tinham sido abandonadas, algumas queimadas; os seus antigos
ocupantes estavam mortos, ou refugiados na cidade.
A aliança com Roma não lhes trouxera nenhum dos benefícios que Vérica prometera. Longe de serem protegidos pelas legiões, parecia que os
Atrébates tinham atraído sobre si toda a fúria das tribos leais a Carátaco. Pequenas colunas de atacantes, vindas das terras dos Durotriges, dos Dubónios, dos Catuvelaunos
e até dos selvagens Siluros, infiltravam-se por entre as legiões que avançavam, e traziam a destruição a terras situadas muito atrás das linhas romanas. Os Atrébates
tinham perdido as suas fontes de alimentos, e não viam chegar nenhum do cereal prometido por Roma, uma vez que os comboios eram atacados e destruídos pelos guerreiros
de Carátaco. Os poucos víveres que conseguiam completar a viagem desde Rutúpias eram armazenados no depósito de abastecimentos da Segunda Legião, e entre os habitantes
de Caleba já circulavam rumores de que os legionários engordavam, enquanto os seus aliados Atrébates se viam forçados a alimentar-se de cada vez menores rações de
papa de cevada.
Este ressentimento estava bem presente nas mentes de Cato e Macro, sentados num banco improvisado, na realidade um tronco, mesmo à entrada do depósito. Um mercador
de vinho de Narbonesa tinha instalado uma banca, tão próximo quanto possível dos seus clientes, os legionários, e tinha disposto os supostos bancos de ambos os lados
da sua tenda de couro com um balcão rústico. Macro tinha comprado dois copos de vinho barato, e os dois centuriões equilibravam cautelosamente os copos de couro
no colo, enquanto observavam o rei dos Atrébates a passar com a sua guarda pessoal. As sentinelas do depósito puseram-se em sentido, mas Vérica limitou-se a lançar-lhes
um olhar glacial e continuou o caminho até aos seus domínios pessoais.
- Um aliado pouco agradecido. - Resmungou Macro.
- Que é que se esperava? O seu próprio povo parece odiá-lo mais do que ao inimigo. Foi-lhes imposto por Roma, tudo o que trouxe aos Atrébates foi sofrimento, e não
há grande coisa que possamos fazer para o ajudar. Evidentemente que nos olha com pouca simpatia.
- Mesmo assim, acho que o sacana devia demonstrar alguma gratidão. Vai a correr para o Imperador, queixar-se que os Catuvelaunos o expulsaram do trono. Cláudio resolve
invadir a Britânia, e a primeira coisa que faz é devolver-lhe o reino. Que mais é que ele queria?
Cato olhou um bom bocado para o copo antes de responder. Como habitualmente, Macro via as coisas da forma mais simplista possível. Embora fosse verdade que Vérica
tinha recolhido algum benefício do seu apelo a Roma, também era certo que a súplica do velho rei tinha aparecido no momento certo para o Imperador Cláudio e a administração
imperial, que buscavam afanosamente uma oportunidade para uma aventura militar. O novo Imperador precisava de um triunfo, e as legiões de algo que as fizesse esquecer
o seu perigoso apetite pela política. A conquista da Britânia roera as mentes de todos os políticos de Roma desde que César tinha tentado
expandir os limites da glória de Roma para lá do mar, para as enevoadas ilhas das mais selvagens das tribos Célticas. E esta era a oportunidade de Cláudio estabelecer
o seu nome, e de se mostrar um herdeiro digno das proezas dos seus antecessores. Pouco importava que a Britânia já não tivesse nada do ar misterioso com que César,
sempre disposto a marcar pontos para a posteridade, a descrevera nos seus comentários. Pouco depois, no tempo de Augusto, a ilha tinha sido percorrida de lés a lés
por mercadores e viajantes de todas as bandas do Império. Era apenas uma questão de tempo até que este último bastião dos Celtas e dos druidas fosse conquistado
e adicionado ao inventário das províncias dos Césares.
Vérica tinha, sem se aperceber, precipitado o fim da orgulhosa tradição de desafio e independência daquela ilha perante Roma. Cato sentiu pena de Vérica e, mais
ainda, do seu povo. Tinham sido apanhados entre a irresistível força das legiões, que avançavam sob as suas águias douradas, e o sombrio desespero de Carátaco e
da sua pouco coesa confederação de tribos Britânicas, preparados para tomar qualquer medida para forçar os homens de Roma a abandonar aquelas paragens.
- Aquele Vespasiano é doido! - Macro riu enquanto abanava a cabeça. - É difícil de acreditar que ainda está vivo. Viste como ele se atirou aos Bretões como se fosse
a porra de um gladiador? O tipo é chanfrado.
- Sim, não é exactamente o comportamento recomendado a um futuro senador. - Admitiu Cato.
- Então o que é que ele anda a fazer?
- Deve pensar que tem algo a provar. Ele e o irmão são os primeiros da família a alcançarem a classe senatorial - portanto, ele é muito diferente dos habituais aristocratas
que passam uns tempos como legados. - Cato olhou para o outro centurião. - Deve ser uma mudança agradável.
- Podes dizê-lo. A maior parte dos senadores que tive como comandantes achavam que lutar contra as hordas bárbaras estava abaixo da sua dignidade.
- Não é o caso do nosso legado.
- Não, ele não. - Macro concordou, e despejou o copo. - Embora não lhe vá servir para nada. Sem abastecimentos, a campanha da Segunda vai acabar por ser interrompida.
E sabes muito bem o que acontece a legados que não conseguem sucesso. O desgraçado vai acabar como governador de alguma província esquecida em África. É assim que
as coisas se passam.
- Talvez. Mas atrevo-me a dizer que outros legados partilharão esse destino, a não ser que se faça alguma coisa acerca destes ataques às nossas linhas de abastecimento.
Os dois homens calaram-se por instantes, considerando as
implicações da alteração de estratégia por parte do inimigo. Para Macro, era a chatice das rações reduzidas e a frustração de ver as legiões a recuar, a perder terreno,
a verem-se forçadas a construir pesadas defesas para as suas linhas de comunicação antes de tomarem de novo a ofensiva. Pior ainda, as legiões do General Pláucio
teriam de adoptar a táctica de destruir impiedosamente as tribos, uma a uma. Assim, a conquista avançaria a passo de caracol; ele e Cato teriam morrido de velhos
antes que as horrorosas tribos daquela maldita ilha fossem completamente subjugadas.
Os pensamentos de Cato seguiram as mesmas linhas que os do seu camarada, mas depressa se moveram para um plano mais estratégico. Esta extensão do Império podia muito
bem ter sido uma má ideia. Claro que existiam benefícios a curto prazo, sobretudo para o Imperador, que tinha dado um impulso à sua duvidosa popularidade em Roma.
Mas, apesar da capital de Carátaco, a cidade de Camaloduno, ter caído nas mãos dos Romanos, o inimigo não se tinha apressado a negociar, muito menos a render-se.
De facto, a sua determinação parecia ter aumentado: a liderança de Carátaco não tinha outro objectivo que não fosse impedir o avanço das águias. E a conquista estava
a revelar-se bem mais custosa do que o estado-maior imperial alguma vez podia ter imaginado. Para Cato, era evidente que o que havia a fazer, logicamente, era impor
um tributo, conseguir uma promessa de aliança das tribos britânicas, e abandonar a ilha.
Mas isso não aconteceria, pelo menos enquanto a credibilidade do Imperador estivesse em jogo. Às legiões e às coortes auxiliares, nunca seria permitida a retirada.
E os reforços chegariam a conta-gotas - apenas o bastante para manter uma curta vantagem sobre os nativos. Como sempre, era a política que controlava todos os outros
factores. Cato suspirou.
- Olha ali. - sibilou Macro, com um aceno na direcção do portão do depósito.
Sob o brilho tremeluzente dos brasèiros que ladeavam o caminho avistava-se um pequeno grupo de homens a sair do depósito. Quatro legionários vinham à frente, seguidos
por Vespasiano e outros quatro soldados. O grupo tomou a direcção do recinto de Vérica e marchou pela escuridão sob o olhar dos dois centuriões.
- O que será isto agora? - indagou Cato.
- Uma visita de cortesia?
- Duvido que a recepção seja muito amigável.
Macro encolheu os ombros, demonstrando claramente a sua falta de preocupação acerca da cordialidade das relações de Roma com uma das poucas tribos dispostas a aliar-se
a Cláudio. Preferia concentrar-se num assunto muito mais premente.
- Mais um copo? Ofereço eu.
Cato abanou a cabeça.
- Acho melhor não. Estou cansado. É melhor voltarmos ao hospital, antes que algum sacana de um enfermeiro se lembre de dar as nossas camas a outros tipos.

IV
Apesar de ainda excitado por ter sobrevivido à desesperada escaramuça junto aos portões de Caleba, Vespasiano estava de mau humor enquanto percorria as malcheirosas
ruas na direcção do recinto real. E não era apenas por não ter apreciado a convocatória pouco delicada que recebera do rei dos Atrébates. Assim que recuperara o
fôlego depois de entrar em Caleba, Vespasiano encaminhara os sobreviventes da coluna e os últimos dos seus batedores para o depósito. Todos os homens disponíveis
tinham sido colocados nas muralhas, para o caso dos Durotriges decidirem montar um assalto mais ambicioso. No depósito, o legado tinha tido que acalmar uma torrente
de oficiais subalternos que pediam a sua atenção. Ocupando o gabinete do falecido centurião Verânio, tinha tratado dos assuntos um de cada vez. O hospital estava
repleto de feridos, e o médico-chefe da legião exigia mais homens para instalar outra enfermaria. O centurião que comandava o comboio de abastecimentos pedia que
lhe fosse atribuída uma coorte da Segunda Legião, para proteger os vagões na viagem de regresso à base no Tamisa.
- Não posso responsabilizar-me pelos abastecimentos se não tiver protecção adequada, senhor. - Justificou-se prudentemente.
Vespasiano encarou-o com frio desdém.
- És responsável pelos abastecimentos em quaisquer circunstâncias, e sabes isso muito bem.
- Sim, senhor. Mas aqueles sacanas auxiliares Hispânicos que me forneceram são uns inúteis.
- A mim pareceu-me que se estavam a portar bem, há bocado.
- Sim, senhor. - Concedeu o centurião. - Mas não é a mesma coisa que ser protegido por legionários. A nossa infantaria pesada faz os nativos borrarem-se de medo.
- Pode ser, mas não te posso dispensar nenhuns dos meus homens.
- Senhor...
- Nem um. Mas amanhã enviarei ao general um pedido para que te mande alguma cavalaria bataviana. Entretanto, quero um inventário completo do material que há no depósito,
e depois preciso que aprontes todos os vagões que encontrares, para nos pormos a andar.
O centurião aguardou um instante, esperando por mais instruções, mas Vespasiano indicou-lhe a porta, e acenou para que o homem seguinte se apresentasse. A prioridade
era levar abastecimentos aos seus homens, o mais depressa possível. Naquele momento, um dos batedores já regressava à Segunda Legião com ordens para que duas coortes
se dirigissem a Caleba. Podia ser uma força desproporcionada, mas Vespasiano tinha que se assegurar que conseguia transferir o máximo de abastecimentos do depósito
para a legião. As frequentes sortidas inimigas não permitiam assegurar um fluxo regular de provisões.
Carátaco oferecia-lhe uma escolha paradoxal: se continuasse a avançar, ficaria sem abastecimentos; porém, se protegesse as linhas de comunicação, o avanço seria
interrompido. Mais a norte, as forças do general Pláucio já estavam no limite da dispersão, e quase não sobravam homens para escoltar as colunas de abastecimentos,
ou para guarnecer os fortins de passagem, ou até para defender este depósito vital em Caleba. O espectáculo miserável que a guarnição oferecera naquela tarde mostrava
bem o calibre dos homens que podiam ser dispensados para desempenhar aquele papel. Vespasiano necessitava, acima de tudo, de efectivos. Prontos e bem treinados.
Porém, compreendeu enquanto cerrava os dentes com amargura, isso era o mesmo que pedir a lua.
Havia ainda outro problema. O comandante da guarnição morrera. Verânio fora um oficial adequado - adequado a ser dispensado para aquele comando -, mas a Segunda
Legião não se podia dar ao luxo de dispensar outro centurião da campanha para destruir os fortes. Como sempre, a taxa de mortalidade entre os centuriões era desproporcionada,
já que era seu dever comandar a partir da linha da frente. Já havia várias centúrias a serem comandadas por optios, o que não era de forma alguma satisfatório...
Fora nesse ponto que chegara um mensageiro de Vérica, solicitando a sua presença assim que fosse possível.
Tudo isto lhe pesava no pensamento enquanto percorria as escuras ruas de Caleba, evitando escorregar na lama e na imundície que se espalhavam sob as suas botas.
Aqui e ali manchas de luz alaranjada espalhavam-se pelo irregular piso das ruas, vindas de portas abertas nas cabanas dos nativos. Lá dentro Vespasiano avistava
as famílias agrupadas ao redor do fogo, mas poucas pareciam estar a comer alguma coisa.
Um portão alto surgiu à frente do legado e da sua escolta, e dois guerreiros atrébates armados de lanças surgiram das sombras ao ouvirem os
passos que se aproximavam. Baixaram ameaçadoramente as lâminas largas, em forma de folha, até que reconheceram o legado no seio das trevas. Abriram então passagem,
e um deles apontou para o grande edifício rectangular no lado distante do recinto. Enquanto atravessava o grande terreiro com a sua escolta, Vespasiano olhou em
redor, e notou os estábulos, os armazéns baixos com telhados de colmo, e uma série de edifícios longos e com estruturas de madeira, a partir dos quais se podiam
ouvir as vozes roucas e sonoras de homens em conversa. Era então assim que vivia a realeza atrébate - de forma muito diferente dos palácios dos seus pares nas distantes
terras do oriente do Império. Um outro padrão civilizacional, reflectiu Vespasiano, e um que Roma bem podia ter ignorado. Levaria muito tempo até que estes bretões
subissem ao nível dos outros súbditos do Império e pudessem ocupar um lugar entre eles.
Ardiam tochas de ambos os lados da entrada para o grande salão do rei dos atrébates. À luz que delas emanava Vespasiano apercebeu-se de que o edifício tinha sido
concluído desde a sua última visita a Caleba. Era evidente que o rei tinha aspirações a um padrão de vida mais elevado. Não era uma surpresa, pensou Vespasiano,
já que muitos dos nobres da ilha tinham passado anos de exílio nas confortáveis acomodações que Roma fornecera.
Um vulto surgiu na entrada, um jovem com pouco mais de vinte anos de idade, calculou o legado. Tinha cabelo castanho claro, apanhado, e era largo de ombros e alto
- tinha uns bons centímetros a mais do que Vespasiano. Vestia uma curta túnica sobre calças aos quadrados e botas de cabedal macio, um compromisso entre o traje
local e o estilo romano.
O homem agarrou no braço de Vespasiano com um sorriso familiar.
- Saudações, Legado. - Falava num latim com pouco sotaque.
- Conheço-te? Não me recordo...
- Nunca fomos formalmente apresentados, senhor. Chamo-me Tincómio. Estava com o séquito do meu tio quando ele cavalgou ao seu encontro, quando a sua legião aqui
chegou no início da Primavera.
- Estou a ver. - Vespasiano acenou, embora não se recordasse de todo do sujeito. - O teu tio?
- Vérica. - Um sorriso modesto. - O nosso rei.
Vespasiano olhou de novo para ele, avaliando-o mais pormenorizadamente.
- Falas latim com grande fluência.
- Passei grande parte da minha juventude na Gália, senhor. Abandonei o meu pai quando ele aceitou ser súbdito dos Catuvelaunos. Portanto, juntei-me ao meu tio no
exílio... Bom, se quiser deixar aqui a sua guarda pessoal, levá-lo-ei à presença do rei.
Vespasiano ordenou aos seus homens que o esperassem ali, e seguiu Tincómio através das altas portas de carvalho. Lá dentro havia um salão imponente, com um tecto
abobadado e alto, suportado por grossas vigas. Tincómio reparou que o legado estava impressionado.
- O rei recorda o tempo passado no exílio com alguma saudade da arquitectura romana. Este edifício foi terminado há um mês.
- São com certeza instalações dignas de um rei. - Respondeu Vespasiano de forma educada, enquanto seguia Tincómio pelo salão. O bretão tinha virado à direita e fizera
uma vénia respeitosa, e Vespasiano imitou-o. Vérica estava só, sentado num estrado. A um dos lados via-se uma pequena mesa coberta com pratos requintados. No outro
lado, no chão, estava uma elegante braseira de bronze, na qual ardiam alguns ramos sobre brasas bem vivas. Vérica acenou-lhes para que se aproximassem, e Vespasiano
escutou o eco das suas botas cardadas ao avançar para o rei dos atrébates. Embora tivesse quase setenta anos de idade, os olhos brilhavam-lhe com vivacidade sob
a pele enrugada e o longo cabelo cinzento. Era alto e magro, e ainda tinha um ar de comando que lhe devia ter granjeado enorme respeito quando estivera no auge das
suas capacidades, pensou Vespasiano.
Lentamente, o rei acabou de comer o pastel que tinha na mão, e atirou as migalhas para o chão. Tossiu para limpar a garganta.
- Solicitei a tua presença para discutir os acontecimentos desta tarde, Legado.
- Supus que seria essa a razão, senhor.
- Tens que pôr um fim a estes ataques do inimigo contra as terras dos atrébates. Não se pode permitir que continuem nem mais um momento. Não são só os vossos comboios
que são atacados; o meu povo vê-se obrigado a abandonar as suas quintas.
- Sei disso, senhor.
- A simpatia não enche estômagos, Legado. Porque não nos disponibilizas parte das reservas do vosso depósito? Têm lá muitos víveres, mas o teu centurião Verânio
recusou-se a fornecer-nos provisões.
- Agiu segundo as minhas ordens. A minha legião pode vir a precisar de tudo o que lá se encontra.
- Tudo? Deve lá estar muito mais do que aquilo de que vocês poderão precisar. E o meu povo morre de fome, neste momento.
- Senhor, não tenho dúvidas de que esta será uma longa campanha.
- Contrariou Vespasiano. - E também não duvido de que perderemos mais abastecimentos por causa dos ataques dos Durotriges, antes que acabe a estação. Evidentemente,
terei que constituir reservas para abastecer uma base avançada durante o Inverno.
- E o meu povo? - As mãos de Vérica indicaram um prato de tâmaras com mel. - Não posso permitir que passem fome.
- Assim que derrotarmos os Durotriges, o vosso povo pode voltar às quintas. Mas não o conseguiremos se as minhas tropas não tiverem nada nos estômagos.
Era um impasse, e ambos o sabiam. Por fim, Tincómio rompeu o silêncio.
- Legado, já ponderou o que poderá suceder se o nosso povo não for alimentado? E se os Atrébates se revoltarem contra Vérica?
Vespasiano já tinha de facto considerado essa possibilidade, e as consequências que adivinhava eram profundamente perturbantes. Se os Atrébates depusessem Vérica
e se juntassem às outras tribos que lutavam ao lado de Carátaco, então o general Pláucio e as suas legiões ficariam separados da base de abastecimentos em Rutúpias.
Com inimigos pela frente, pelos lados e por trás, Pláucio teria que recuar para a segurança de Camaloduno. E se os locais, os Trinobantes, apesar de submetidos,
se entusiasmassem com a revolta dos Atrébates, então só um milagre poderia evitar que Pláucio e as legiões tivessem o mesmo destino que o general Varo e as suas
três legiões nas profundezas da Germânia, há quase quarenta anos.
Vespasiano controlou a ansiedade e lançou um olhar duro a Tincómio.
- Achas que é provável que o vosso povo se revolte contra o rei?
- Contra o rei, não. Contra Roma. - Retorquiu Tincómio. Depois deixou que um sorriso se abrisse. - Por enquanto limitam-se a resmungar. Mas quem sabe do que são
capazes homens esfomeados?
Vespasiano manteve uma expressão fixa enquanto Tincómio continuava:
- E a fome não é o único perigo. Alguns nobres não são exactamente entusiastas acerca da nossa aliança com Roma. Neste preciso momento, há centenas dos nossos melhores
guerreiros a lutar ao lado de Carátaco. Roma não deve pensar que a lealdade dos Atrébates está garantida.
-Estou a perceber.-Um leve sorriso aflorou os lábios de Vespasiano.
- Ameaçam-me.
- Não, meu caro Legado! - Interrompeu Vérica. - De forma alguma. Deve compreender o rapaz. Os jovens são dados ao exagero, não é verdade? Aqui o Tincómio apenas
se limitava a expor uma possibilidade nos seus contornos mais extremados, por pouco credíveis que sejam.
- Compreendo.
- Seja como for, deve compreender que existe uma verdadeira ameaça à minha posição, e que alguns a explorarão se continuar a permitir que o meu povo passe fome.
Havia agora uma tensão palpável entre os três homens, e a ira de Vespasiano peránte a descarada tentativa de o chantagear ameaçava explodir num chorrilho de acusações
que nada teriam de diplomáticas. Forçou-se a acalmar os ânimos e a reavaliar a situação. Já era mau que os Atrébates não fossem unânimes acerca da aliança com Roma,
não havia nada a ganhar em piorar as coisas estragando as relações com os que ainda honravam esse laço.
- Que querem que eu faça?
- Entregue as provisões. - Foi a resposta de Tincómio.
- Impossível.
- Então dê-nos homens suficientes para que possamos perseguir e destruir os atacantes.
- Também é impossível. Não posso dispensar nem um homem.
Tincómio encolheu os ombros.
- Então não podemos garantir a lealdade dos Atrébates.
A discussão andava em círculos, e a frustração de Vespasiano ameaçava de novo transformar-se em ira. Tinha que haver uma maneira de resolver a questão.
Teve uma ideia.
- Porque não os perseguem vocês?
- Com que tropas? - ripostou Vérica. - O General não me permite mais do que cinquenta homens armados. Mal chegam para proteger o recinto real, quanto mais os baluartes
da cidade. O que poderiam cinquenta homens contra aquela força que atacou hoje o vosso comboio?
- Então recrute mais homens. Pedirei ao General Pláucio que suspenda os limites impostos às vossas forças.
- Isso soa muito bem - afirmou Tincómio calmamente -, mas temos muito poucos guerreiros disponíveis. Muitos preferiram juntar-se a Carátaco a depor as armas. Alguns
- não muitos - mantiveram-se fiéis a Vérica.
- Então comecem por esses. Deve haver muitos outros que gostariam de se vingar dos Durotriges - aqueles cujas quintas foram destruídas pelos atacantes, por exemplo.
- São camponeses. - Afirmou Tincómio com desprezo. - Pouco sabem de combates. Não têm sequer armas apropriadas. Seriam chacinados.
- Treinem-nos! Posso fornecer as armas - assim que tiver autorização do general -, há-as no depósito para pelo menos mil homens. São mais do que suficientes para
enfrentar os bandos de atacantes... a menos que os Atrébates tenham medo.
O sorriso de Tincómio foi amargo.
- Vocês, Romanos, são muito corajosos por trás das vossas armaduras, dos vossos grandes escudos e de todos aqueles equipamentos que usam no campo de batalha... Que
sabem vocês sobre coragem?
Vérica tossiu.
- Se pudesse fazer uma sugestão...
Os outros dois viraram-se para o idoso ocupante do trono. Vespasiano curvou a cabeça, assentindo.
- Por favor.
- Passou-me pela cabeça que podias emprestar-nos alguns oficiais para treinar os nossos homens ao estilo romano. Ainda por cima, lutarão com as vossas armas. Podes
com certeza dispensar uns homens - se ajudar a resolver todos os nossos problemas?
Vespasiano ponderou a ideia. Fazia sentido. Caleba proteger-se-ia a si mesma, e aquela força podia aliviar a pressão sobre as linhas de abastecimento romanas. Valia
bem a pena destacar alguns oficiais para aquela missão. Olhou para Vérica e assentiu. O rei sorriu.
- É claro que tal força precisaria de provisões adequadas para ser eficaz... Tu o disseste, Legado. Os soldados só têm valor se tiverem as barrigas cheias.
- Sim, meu senhor. - Reforçou Tincómio, e continuou, com um toque de cinismo na voz. - Atrevo-me a dizer que a perspectiva de uma boa refeição atrairá grande número
de voluntários. E uma barriga cheia é um excelente antídoto contra instintos de rebelião.
- Esperem aí. - Vespasiano ergueu a mão, desejoso de não se comprometer a mais do que podia oferecer. Estava furioso com o ancião por o ter manobrado até àquela
posição, mas não podia evitar a pertinência do argumento. O esquema até podia funcionar, desde que o general Pláucio concordasse com o facto de distribuir armas
aos atrébates. - É uma proposta interessante. Tenho que meditar sobre ela.
Vérica assentiu.
- Evidentemente, Legado. Mas não leves dias a fazê-lo, hã? Treinar homens leva tempo, e disso temos muito pouco, se queremos que isto sirva para alguma coisa. Dá-me
a tua resposta amanhã. Podes ir.
- Sim, senhor.
Vespasiano virou-se abruptamente e marchou para fora do salão, sob o olhar silencioso dos dois Bretões. Estava ansioso por se ver livre daquela companhia, e ir para
um sítio tranquilo, onde a sua mente cansada pudesse analisar o plano, sem se preocupar com as manipulações do astuto rei dos atrébates.

V
- Centurião, segure aqui, por favor. - O médico entregou um gládio a Cato. Este empunhou-o na mão direita e, devagar, levantou-o até à altura do peito. A luz do
sol matinal fez refulgir a lâmina.
- Muito bem. Agora estique o braço o mais que puder, e mantenha a posição.
Cato olhou ao longo do braço e fez um esgar de esforço, porque lhe era difícil manter a arma em posição elevada; não conseguia evitar que a ponta dançasse no ar,
e depressa o próprio braço lhe começou a tremer.
- Agora para o lado, senhor.
Fez um arco rápido com o braço, obrigando o médico a agachar-se para evitar a lâmina. Macro piscou o olho a Cato, enquanto o outro se voltava a endireitar, bem longe
da espada.
- Bom, bom, está visto que não há problemas com esses músculos! E o outro lado, como é que o sente?
- Preso. - Respondeu Cato, de dentes cerrados. - Parece que há qualquer coisa demasiado esticada.
- Doloroso?
- Muito.
- Já pode baixar a espada, senhor. - O médico esperou que a arma regressasse à bainha, e voltou à posição que ocupara antes. Cato esperou à sua frente, de tronco
nu, e o outro percorreu com o dedo a espessa linha vermelha que fazia uma curva sobre o lado esquerdo do torso do jovem centurião, e continuava pelas costas. - Os
músculos estão muito rígidos, aqui por baixo da cicatriz. Vai precisar de os soltar, e para isso é preciso muito exercício. Vai ser doloroso, senhor.
- Pouco importa. - Replicou Cato. - Só quero saber quando é que posso voltar para a legião.
- Ah... - O médico fez uma careta. - Isso é capaz de levar algum tempo e, bom, muito francamente, é melhor não alimentar grandes esperanças.
- O quê? - Havia uma calma intensidade na voz de Cato. - Eu vou recuperar.
- Claro que vai, centurião. Claro que vai. Mas é capaz de ter alguma dificuldade para aguentar o peso de um escudo no braço esquerdo, e isso, mais o esforço de empunhar
a espada, pode fazer com que os músculos desse lado se rasguem. O que provocaria uma dor agonizante.
- Já enfrentei a dor antes.
- Sim, senhor. Mas esta dor seria incapacitante. Não há uma maneira fácil de dizer isto, senhor, mas o facto é que a sua carreira militar pode estar acabada.
- Acabada? - Respondeu Cato sem mostrar emoção. - Mal tenho dezoito anos... Não pode ser.
- Não disse que estava, senhor. Disse apenas que é uma possibilidade. Com bastante exercício, e tomando algumas precauções quanto a esse lado do corpo, também é
perfeitamente possível que possa voltar ao serviço activo.
- Estou a ver... - Cato sentiu-se mal. - Obrigado por tudo.
O médico fez um sorriso que tentou ser animador.
- Bom, então vou andando.
- Sim...
Depois de a porta se ter fechado, Cato vestiu a túnica e deixou-se cair sobre a cama. Passou a mão pelo cabelo, afagando os caracóis escuros. Era inacreditável.
Ainda nem tinha completado dois anos de serviço nas Águias, mal tinha sido promovido, e um médico dizia-lhe que estava acabado.
- Ele que se vá lixar. - Disse Macro, numa tentativa canhestra de animar o amigo. - Do que tu precisas é de exercício, de ficar em forma outra vez. Vamos a isso
os dois juntos, e hás-de ver que te ponho à frente da tua própria centúria em menos de nada.
- Obrigado.
Macro estava apenas a tentar ajudar; apesar da sua agonia interna, Cato tinha que se mostrar grato. Endireitou-se, e forçou-se a sorrir.
- Bom, então é melhor começar com o exercício tão depressa quanto possível.
- É assim mesmo! - Soltou Macro, e preparava-se para mais encorajamentos, quando se ouviu um arranhar na porta.
- Entre! - Gritou o centurião.
- Centuriões Lúcio Cornélio Macro e Quinto Licínio Cato?
- Somos nós, sim.
- O legado solicita a vossa presença.
- Agora? - Macro fez uma careta ao olhar através das persianas abertas. O sol tinha nascido há já algumas horas, o que era denunciado pela
posição que ocupava no céu. Olhou para Cato com o sobrolho arqueado.
- Diz-lhe que vamos imediatamente.
- Sim, senhor.
Depois de o batedor sair, fechando a porta, Macro apressou-se a pegar nas botas e a dar uma palmadinha de encorajamento a Cato.
- Vamos lá, miúdo.
Vespasiano designou com a mão o banco do outro lado da mesa onde tomava o pequeno-almoço. Havia uma escudela com pãezinhos, uma malga de azeite e um jarro de molho
de peixe. Os olhos de Macro encontraram os de Cato, e ele encolheu os ombros para assinalar o seu desapontamento. Se era assim que os legados se alimentavam, bem
podiam ficar com aquilo.
- Bom - começou Vespasiano, enquanto espalhava o escuro molho de peixe sobre um naco de pão -, como é que vai a vossa recuperação? Já estão em condições de voltar
ao serviço, para coisas leves?
Macro trocou um olhar rápido com Cato, enquanto o legado arrancava um pedaço de pão e o colocava na boca.
- Senhor, estamos praticamente restabelecidos e prontos para o serviço. Vamos regressar à legião? - Perguntou Macro, com esperança na voz.
- Não. Para já, pelo menos. - Vespasiano não conseguiu deixar de sorrir perante a evidente pressa do centurião em voltar à acção. - Preciso de dois homens de qualidade
para outra tarefa. Algo de muito importante para o sucesso da campanha.
Cato franziu o sobrolho. A última tarefa especial que lhes tinha sido atribuída quase que tinha acabado com os dois. O legado leu correctamente a expressão que preenchia
o rosto do jovem centurião.
- Oh, não é nada como a última vez. Nada de perigoso. Bom, pelo menos, não deve ser perigoso. - Vespasiano mordeu outro pedaço de pão e começou a mastigá-lo. - Nem
devem precisar de sair de Caleba.
Os seus dois interlocutores relaxaram visivelmente.
- Bom, senhor - continuou Macro -, então para que precisa de
nós?
- Sabes que o Centurião Verânio foi morto ontem?
- Sim, senhor. Vimos o que aconteceu, estávamos no portão. - Por momentos, Macro esteve tentado ajuntar algumas palavras que exprimissem a tristeza que era suposto
sentir. Mas recusou-se a mostrar qualquer sentimentalismo, até porque nunca tinha gostado particularmente de Verânio.
- Era o único oficial que eu podia dispensar para comandar esta guarnição.
Havia na afirmação um julgamento implícito sobre as capacidades do
homem, e Macro sentiu-se ligeiramente surpreendido pela concordância de pontos de vista entre ele e o legado.
- Agora preciso de outro comandante. Não deve ser um papel que não possas desempenhar enquanto continuas a recuperar.
- Eu, senhor? Comandar o depósito? - A surpresa de Macro acentuou -se. Então, a perspectiva do seu primeiro comando independente encheu-o de orgulho e aqueceu-lhe
o espírito. - Obrigado, senhor. Sim, ficaria feliz - seria uma honra - se me fosse atribuído tal cargo.
- Macro, isto é uma ordem - a resposta de Vespasiano foi seca -, não é um convite.
- Oh, claro.
- Há mais., - O legado fez uma curta pausa. - Quero que tu e o Centurião Cato treinem uma pequena força que ficará ao serviço do rei aqui em Caleba. Um par de coortes,
era a minha ideia.
- Duas coortes? - As sobrancelhas de Cato ergueram-se em sinal de surpresa. - Mas isso são mais de novecentos homens. Onde é que os vamos arranjar, senhor? Duvido
que haja na cidade tantos homens com a qualidade que precisamos.
- Vérica que espalhe a notícia. Não me parece que, na presente situação, haja falta de voluntários. Quando aparecerem, escolham-nos e treinem-nos na nossa maneira
de combater; depois, serão vocês os seus comandantes, responsáveis perante Vérica.
Macro mordeu o lábio.
- Senhor, será isto aconselhável? Armar os Atrébates? Pensava que a política do general era a de desarmar as tribos nativas. Mesmo as que são nossas aliadas.
- Sim, é essa a política - admitiu Vespasiano -, mas a situação alterou-se. Não posso dispensar mais homens para proteger Caleba, nem para enfrentar os ataques às
nossas colunas de abastecimento. Não tenho outra escolha senão usar os Atrébates. Portanto, comecem a treiná-los o mais depressa possível. Tenho que regressar à
legião ainda hoje. Mandei uma mensagem ao General Pláucio a informá-lo destes planos, e a pedir-Lhe permissão para equipar os homens de Vérica com material aqui
do depósito. Treinem-nos, alimentem-nos, mas não os armem antes de receberem autorização do general. Percebido?
- Sim, senhor. - Respondeu Macro.
- Acham que conseguem dar conta disto?
Macro arqueou os sobrolhos, e abanou lentamente os ombros.
- Bem, senhor, acho que podemos fazer qualquer coisa com estes tipos, sim. Não prometo é que sejam tropas de choque.
- Bom, o que peço é que consigam fazer com que Vérica e o seu
povo se sintam protegidos, e que os cabrões dos Durotriges pensem duas vezes antes de atacar os nossos comboios de provisões. Acima de tudo, assegurem-se de que
nada acontece a Vérica. Se ele for deposto, ou morto, os Atrébates podem virar-se contra nós. E se isso acontecer... podemos ter de abandonar a conquista desta ilha.
E podem imaginar como isso seria visto em Roma. O Imperador não ficaria nada satisfeito connosco. - Vespasiano encarou os dois centuriões, para sublinhar a importância
do aviso que lhes dera. Se a Britânia fosse perdida, não haveria misericórdia para com os oficiais directamente responsáveis pela derrota: o legado da Segunda Legião,
e os dois centuriões a quem ele atribuíra a defesa de Caleba e a protecção do rei dos Atrébates. - Portanto, senhores, mantenham Vérica vivo. É tudo o que lhes peço.
Façam um bom trabalho, e depois poderão regressar à legião, assim que estiverem em condições.
- Sim, senhor.
- Bom, e agora - Vespasiano afastou o prato e levantou-se do banco que ocupava -, ainda tenho que tratar de alguns assuntos antes de regressar à legião. Quero que
te mudes para estas instalações, e que assumas imediatamente o comando da guarnição. Quanto ao outro assunto, terás que ir ao recinto real e falar com um dos conselheiros
de Vérica. Chama-se Tincómio. Diz-lhe aquilo de que precisas, e ele tratará de tudo. Acho que é de confiança. Pronto, vê-los-ei de novo quando puder. Boa sorte.
Depois de Vespasiano sair, Macro e Cato sentaram-se à mesa.
- Isto não me agrada. - Começou Cato. - O legado está a assumir um grande risco ao armar os nativos. Serão realmente leais a Vérica? Poderemos mesmo confiar neles?
Já viu como as coisas andam pelas ruas. Não há por ali grande amor a Roma.
- É verdade. Mas eles ainda gostam menos dos Durotriges. Pensa nisto, Cato. Uma oportunidade de criar e comandar o nosso próprio exército!
- O exército de Vérica, não o nosso.
- De nome, sim, mas só isso, quando eu tiver terminado.
Cato apercebeu-se do brilho de excitação nos olhos do amigo, e concluiu que não valia a pena, de momento, tentar contradizê-lo. Adivinhava que treinar nativos arregimentados
ia ser mais difícil que treinar novos recrutas para as legiões. Havia muitos factores a ter em conta, e a língua não era o menos importante deles. Tinha conseguido
apanhar uns rudimentos de Céltico durante estes meses em Caleba, mas percebia que ia ter que melhorar, e muito, se queria ser entendido pelos recrutas nativos. Macro
tinha razão numa coisa: era uma oportunidade excitante. Podiam abandonar o hospital e dar os primeiros passos no caminho do regresso à verdadeira vida militar.
Quando o centurião Macro saiu do edifício do comando, a luz do sol ainda não tinha atingido o cimo da paliçada do depósito. Vestia uniforme completo, botas cardadas
e grevas(1) prateadas, a cota de malha ornada com todas as suas medalhas e, por fim, o capacete com a crista transversal, brilhando fracamente à sombra dos baluartes.
Na mão transportava uma vara de videira, o símbolo do direito que lhe fora concedido por Imperador, Senado e Povo de Roma de castigar o sacrossanto corpo de um cidadão
Romano. Rodava a vara entre os dedos da mão direita enquanto se dirigia à silenciosa massa de nativos que o esperava no terreno de treino. Desde que, a partir da
capital dos Atrébates, se tinha espalhado a notícia de que se iam organizar coortes de nativos, milhares de homens de todo o território se tinham juntado aos de
Caleba, na esperança de serem seleccionados.
Depois de perto de dois meses no hospital, a recuperar da ferida que recebera na cabeça, Macro sentia-se bem por regressar às rotinas familiares na vida de um centurião.
Não, corrigiu-se, à parte as malditas dores de cabeça que de vez em quando quase lhe estoiravam o crânio, a vida não era boa, era simplesmente maravilhosa. Espetou
o peito para fora, assobiando alegremente para si mesmo ao aproximar-se dos recrutas.
Perto da multidão, o Centurião Cato entretinha-se na conversa com Tincómio. Era a primeira vez que Cato envergava o uniforme e o equipamento de um centurião, e a
Macro parecia-lhe que lhe assentava tão bem, ou tão mal, como o de optio. O jovem era alto e magro, e a cota de malha parecia mais pendurada nele do que vestida
por ele. Empunhava a vara de forma pouco decidida, e era difícil imaginá-lo a empregá-la nas costas de um legionário recalcitrante, para não dizer nas de um daqueles
nativos. A estadia hospitalar não tinha feito grande coisa pela sua aparência esquelética, e a perda muscular nas pernas era bem evidente pelo facto de as costas
das grevas chegarem a sobrepor-se ligeiramente.

(1) Parte da armadura que protegia a perna, do joelho ao pé. (Nota da Correctora)

Em contraste, Tincómio estava são como um pêro; apesar de ser ainda mais alto do que Cato, tinha uma largura de ombros proporcional, e parecia não apenas forte mas
também rápido. O rei tinha encarregado o jovem aristocrata atrébate de desempenhar as funções de tradutor e conselheiro, e este mostrava-se interessado em aprender
tudo sobre as legiões Romanas. Não devia ser mais do que um ou dois anos mais velho do que Cato, e agradava a Macro vê-los a conversar e a rir juntos, enquanto se
dirigia na sua direcção. Cato que se tornasse amigo do Bretão; assim Macro não teria necessidade de o fazer. O centurião mais velho desconfiava dos desconhecidos,
e dos bárbaros ainda mais.
- Meus senhores - interrompeu -, não estamos aqui para contar piadas. Temos um trabalho a fazer.
Cato virou-se para o seu superior, e pôs-se em sentido. Apesar de terem a mesma patente, a antiguidade contava para a hierarquia, e Cato seria sempre subalterno
de Macro, a não ser que - por qualquer perverso capricho da providência - lhe fosse atribuído o comando de alguma coorte auxiliar, ou fosse promovido para a Primeira
Coorte da Segunda Legião, casos que não eram de todo prováveis de suceder durante muitos e longos anos.
- Preparado, miúdo? - Macro piscou o olho na direcção de Cato.
- Sim, senhor.
- Então vamos a isso! - Macro enfiou a vara debaixo do braço e esfregou as enormes mãos. - Vamos pô-los em formação. Tincómio, destes, quantos é que têm alguma experiência
militar?
O bretão virou-se para a multidão e indicou com a cabeça um pequeno grupo que se mantinha à parte. Eram uns vinte ou trinta homens, despreocupados, todos aparentando
estar no auge da vitalidade.
- São da nossa casta guerreira. Treinados para o combate desde pequenos. Também sabem montar.
- Bom, já é um começo. Tincómio?
- Sim?
Macro inclinou-se para ele.
- Uma palavrinha quanto ao protocolo. Daqui em diante, deves tratar-me por "senhor".
As sobrancelhas do aristocrata atrébate ergueram-se de espanto. Para suprema irritação de Macro, Tincómio lançou um olhar interrogador a Cato.
- E olha para mim quando estiver a falar contigo! Percebido?
- Sim.
- Sim, o quê? - Lançou Macro, com uma ameaça velada na voz.
- Sim, o quê?
- Sim, senhor.
- Assim é melhor! Agora nunca mais te esqueças.
- Sim... senhor.
- Bom, vamos ver. Os outros que género de experiência é que
têm?
- Nenhuma, senhor. Quase todos são lavradores. Devem estar em forma, mas o mais próximo que estiveram de um combate foi na luta para manter as raposas fora dos galinheiros.
- Bom, vamos lá ver se estão mesmo em forma. Só podemos ficar com os melhores, portanto temos que começar a eliminar o lixo. Vamos usar os teus guerreiros para orientar
a formação. Chama-os cá. Cato, tens as marcas?
- Sim, senhor. - O centurião mais jovem deu um toque num saco que tinha aos pés.
- Então porque é que ainda não estão nas posições devidas?
- Desculpe, senhor. Vou tratar disso imediatamente.
Macro assentiu discretamente, e Cato pegou no saco e afastou-se uma pequena distância na direcção dos voluntários. Parou e remexeu o interior do saco até extrair
uma marca numerada, que espetou no chão. Então contou dez passos e espetou a marca seguinte, e assim por diante, até que no terreno estavam duas linhas com dez marcadores
cada; as suficientes para o primeiro lote de duzentos recrutas. Nos dias seguintes, os dois centuriões tinham que recrutar doze centúrias com oitenta homens em cada
uma, num total de novecentos e sessenta recrutas, mas o número dos que tinham respondido ao apelo de Vérica era muito superior. Tinha bastado a promessa de alimentação
regular para atrair homens de todo o reino.
- Tincómio!
- Sim, senhor.
- Coloca um dos teus guerreiros junto a cada uma das marcas. Diz-lhes que são os comandantes das secções. Depois, agarra em nove dos outros e alinha-os pelo primeiro.
Percebido?
- Sim, senhor.
- Óptimo. Executa, então.
Macro esperou pacientemente enquanto Tincómio conduzia os voluntários até às marcas e Cato os puxava e empurrava até às posições correctas. O sol já há muito que
se elevava acima dos baluartes quando toda a gente ficou em posição, e o capacete de Macro, extremamente polido, refulgiu quando ele se dirigiu aos atrébates. À
sua direita estava Tincómio, preparado para traduzir as palavras do centurião. À esquerda encontrava-se Cato, imóvel, em sentido.
- Primeira coisa! - Berrou Macro, fazendo logo uma pausa para que Tincómio traduzisse. - Sempre que eu der esta ordem "Formar",
quero que todos se dirijam exactamente à posição em que estão neste momento. Memorizem-na!... Segunda, nesta altura isso está uma confusão. Temos que endireitar
essas linhas.
Tincómio fez uma pausa antes de traduzir.
- Quer que eu traduza isso tudo, senhor?
- Porra, é evidente que quero! Despacha-te!
- Certo. - A educação linguística de Tincómio, evidentemente, tinha sido mais orientada para o discurso refinado do que para o vernáculo. Berrou em céltico, e uma
revoada de gargalhadas dos voluntários sublinhou as suas palavras.
- CALADOS! - Rugiu Macro. Os recrutas calaram-se, sem necessidade de tradução. - Bom, agora, cada homem levanta o braço até à horizontal, como eu estou a fazer.
A mão deve tocar no ombro do homem do lado. Se não o fizer, movam-se até que isso aconteça.
Os nativos começaram a mexer-se de um lado para o outro assim que Tincómio acabou de traduzir, e um suave murmúrio começou a ouvir-se em céltico.
- EM SILÊNCIO!
Continuaram então a arrumar-se com as línguas presas, à excepção de um desgraçado que atraiu imediatamente a atenção de Macro.
- Tu aí! Estás a ver se me fazes passar por parvo? Braço direito, disse eu, NÃO É A PORRA DO BRAÇO ESQUERDO! Cato! Dá-lhe uma ajuda!
O centurião mais jovem correu até ao objecto da raiva de Macro. O nativo era baixo e entroncado, com uma expressão bovina de incompreensão estampada no rosto. Cato
resistiu à tentação de o saudar com um sorriso amigável, e empurrou o braço esquerdo do homem para baixo, até junto ao corpo. Deu-lhe um toque no ombro direito.
- Este! - Disse em céltico. - Braço direito... braço direito. Percebes? O braço direito para cima! - Cato levantou a mão para demonstrar, e o bretão sorriu com ar
de idiota. Cato sorriu e deu um passo atrás antes de voltar a tentar. - Verificar formação!... Não, o braço direito, disse eu! Como os outros todos!
- Centurião Cato, o que está a fazer? - Vociferou Macro ao aproximar-se. - Vá! Sai do meu caminho. Só há uma maneira de ensinar sacanas tão cretinos como este.
Macro especou-se em frente do voluntário, que ainda sorria, agora mais nervoso.
- Estás a rir de quê? Achas-me piada, é? - Riu Macro. - É isso? Bom, vamos lá a ver se me achas assim uma diversão tão grande!
Ergueu a vara e aplicou uma vergastada no braço esquerdo do homem.
- BRAÇO ESQUERDO!
O bretão gritou de dor, mas antes que pudesse fazer alguma coisa, Macro atingiu-o no outro lado.
- BRAÇO DIREITO!... Bom, vamos ver se aprendeste alguma coisa... Braço esquerdo!
O nativo ergueu rapidamente o braço esquerdo.
- Braço direito!
Um braço abaixou-se, o outro levantou-se.
- Bravo, pá! Ainda havemos de fazer de ti um soldado. Prossiga, centurião Cato.
- Sim, senhor.
Quando finalmente os voluntários conseguiram formar de maneira satisfatória para Macro, chegou a altura de testar a sua condição física. Secção por secção, os Atrébates
lançaram-se em corrida a passo regular em volta do perímetro do depósito. Cato e Macro colocaram-se na diagonal, em cantos opostos, encorajando cada secção à medida
que esta descrevia a curva e se lançava na recta seguinte. Pouco depois as secções já estavam desorganizadas, e uma linha contínua de homens corria, arfando e arquejando,
à volta do depósito. Tal como Macro antecipara, depressa os guerreiros e os mais atléticos dos outros homens se juntaram na frente, e começaram a destacar-se.
- Isto não é nenhuma corrida! - Rugiu Macro, com a mão em concha para melhor ser ouvido. - Cato! Diz-lhes que quero ver quanto tempo aguentam a correr num ritmo
regular. Eles que vão mais devagar.
Toda a manhã Macro os obrigou a correr. Ao fim de algum tempo, os primeiros homens começaram a parar: os mais fracos e os mais velhos, já sem capacidade para aguentar
aquele ritmo. Foram imediatamente conduzidos aos portões do depósito e dispensados. A maior parte aceitou de bom grado a rejeição. Alguns mostraram-se claramente
envergonhados, e lançaram comentários grosseiros por cima dosombros ao saírem para as ruas de Caleba. Os restantes forçaram-se a continuar a correr, volta após volta,
muitos com cerradas expressões de determinação estampadas nos rostos.
Cerca do meio-dia, Macro atravessou indolentemente a parada e juntou-se a Cato.
- Acho que já chega. Vamos dar comida e descanso a estes, e ver o que nos traz o próximo lote. Assim que fizeres as contas, diz-me com quantos é que ficámos.
À medida que os voluntários passavam por ele, Cato fazia-lhes sinais para que parassem, contava-os e ia inscrevendo os números numa placa, antes de os mandar para
o edifício do comando, onde membros da guarnição lhes distribuíam pão e taças de vinho aguado. Depois do último homem se arrastar na direcção que lhe tinha sido
indicada, Cato apresentou o relatório.
- Ficaram oitenta e quatro.
- Algum dos guerreiros do Tincómio desistiu?
- Nem um.
- Impressionante, sim senhor. Vamos ver como é que se aguentam com o equipamento completo. Bom, vamos lá ao lote seguinte.
O processo prosseguiu da mesma forma nos três dias seguintes, até Macro conseguir reunir elementos suficientes para as suas duas coortes. Ao entardecer do terceiro
dia, chegou a Caleba uma coorte da Segunda Legião para escoltar um comboio de abastecimentos. Todas as carroças que Macro conseguira reunir estavam prontas, repletas
de víveres e equipamentos. Desta forma, Vespasiano conseguiria manter a sua força no terreno mais algum tempo, embora os homens do depósito ficassem a depender da
chegada segura dos abastecimentos de Rutúpias, que devia acontecer daí a menos de três semanas. Esse comboio que estava para chegar não teria mais do que uma pequena
escolta quando deixasse para trás a fortaleza junto ao Tamisa, na última parte da sua viagem. A menos que uma coluna partisse de Caleba ao seu encontro e reforçasse
a escolta, haveria grandes possibilidades de que os batedores Durotriges a detectassem e se desse uma emboscada. Com mais mil bocas para alimentar com os víveres
existentes no depósito, era claro que as duas novas coortes iam ter que trabalhar para justificar a sua existência.
- Não vamos estar prontos a tempo. - Cato e Macro jantavam galinha fria nos aposentos do segundo quando o jovem centurião emitiu aquela opinião.
Macro e Tincómio, que os acompanhava, levantaram os olhos dos pratos. Macro acabou o pedaço que mordiscava, e limpou a gordura dos lábios com as costas da mão.
- Pois não, a não ser que recebamos autorização para lhes distribuir armas. Enviá-los para o terreno com paus e foices seria o mesmo que mandá-los para o matadouro.
- Então como é que vamos fazer? - Perguntou Tincómio.
- Continuamos com a instrução. Temos em armazém algumas cangas.
Vou pedir aos carpinteiros para as dividirem em pedaços. Podemos ao menos começar o treino básico de espada.
Tincómio assentiu, e limpou o prato com o último pedaço de pão. Empurrou o prato.
- E agora, senhor, se me der licença, tenho que voltar ao recinto real e passar lá a noite.
- Porquê?
- O rei reuniu alguns dos nobres para um serão entre amigos.
- Bebida?
- Bem, vai haver lutas de cães, luta livre, umas histórias bem inventadas. Mas sobretudo, bebida.
- Vê se estás de volta antes da madrugada. O treino começa assim que alvorecer.
- Lá estarei, senhor.
- É bom que estejas. - Macro acenou significativamente na direcção da sua vara de videira, apoiada à parede num canto da sala.
- Está a brincar? - Admirou-se Tincómio. - Seria capaz de espancar um membro da casa real?
- Podes crer, filho. A disciplina das legiões tem que ser aplicável a todos os homens, ou não o será a nenhum. E vai ser assim , tem que ser assim - se queremos
enfrentar os cabrões dos Durotriges.
Tincómio fitou o centurião durante alguns instantes, e depois acenou em concordância.
- Voltarei antes da madrugada.
Quando os dois romanos ficaram sozinhos, Macro refastelou-se na cadeira e pôs-se às pancadinhas ao estômago. Emitiu um sonoro arroto, fazendo com que Cato erguesse
o olhar, sobrolho franzido.
- O que foi?
- Nada, senhor. Peço desculpa.
Macro suspirou.
- Lá vens tu outra vez com o senhor. Pensei que já te tivesse passado essa mania.
- Sou um homem de hábitos. - Gracejou Cato. - Mas estou a trabalhar no assunto.
- É bom que o faças.
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer que tens andado um bocado murcho nos últimos dias. Se me vais mesmo ajudar a treinar estes Atrébates para enfrentarem o inimigo, vais ter que melhorar
a tua técnica.
- Vou tentar.
- Tentar não chega, miúdo. Treinar homens para fazer a guerra é um
assunto sério. Tens que ser duro com eles desde o primeiro instante. Tens que os castigar ferozmente por cada erro que cometam, por mais pequeno que seja. Tens que
ser tão cruel e maldoso como puderes, porque, se não fores, vais deixá-los mal preparados para quando tiverem mesmo que enfrentar o inimigo. - Macro encarou-o, para
garantir que as suas palavras penetravam na mente do jovem. Depois sorriu. - Além disso, não queres que te chamem um maricas por trás das tuas costas, pois não?
- Não, provavelmente não.
- É assim mesmo. Sempre decidido. Bom, amanhã começamos o treino com armas. Encarrega-te disso. Tenho que tratar dumas papeladas que se estão a atrasar. Comandar
a porra duma guarnição é uma trabalheira do caraças. Tenho que arranjar lugar e provisões para os meninos do Vérica. Vou-lhes distribuir tendas. Podem instalá-las
do lado de dentro dos baluartes. E a seguir tenho que verificar o inventário, antes de começar a distribuir túnicas e botas aos nativos. Senão, algum cabrão do quartel-general
imperial há-de-me fazer pagar pelas discrepâncias. Filhos da puta de controladores.
Os olhos de Cato brilharam quando lhe ocorreu um pensamento óbvio.
- Não prefere que eu me encarregue do inventário? Pode ficar com o treino de espada.
- Não! Porra, Cato, agora és um centurião, age como tal. Além disso, tu sabes alguma coisa do linguarejar deles. Amanhã, vais ter com eles e pô-los a treinar no
duro. Podes ver se arranjas uns tipos para te ajudar, mas de resto, estás por tua conta, miúdo... Bom, vou-me deitar. Fazias bem em descansar um bocado, também.
- Sim, assim que acabar de comer.
Ao ficar sozinho na mesa, Cato olhou para a comida; o seu apetite desaparecera. No dia seguinte teria que enfrentar mil homens e mostrar-lhes como combater com a
espada curta das legiões. Mil homens; alguns muito mais velhos do que ele, muitos com muito maior experiência de combate do que ele, provavelmente nenhum com vontade
de aceitar de bom grado ordens de um centurião que não o era há mais de dois meses, e que só há pouco tinha atingido a idade em que podia ser legalmente considerado
um homem. Sentir-se-ia uma fraude, já sabia, e temia que a maior parte dos homens na parada o desmascarassem em poucos instantes.
E depois, havia ainda o facto de que os últimos três dias o tinham deixado de rastos. Dois meses de convalescença tinham-no deixado muito fraco. Tinha horríveis
dores lombares, e começava a desconfiar de que não seria o exercício, por muito que fizesse, que o deixaria mais confortável.

VII

Cato aclarou a garganta e encarou os voluntários. À sua frente, a um dos lados da parada, estavam cem Atrébates, formados em silêncio, como lhes tinha sido ensinado.
Dez homens da guarnição, seleccionados pela sua perícia com as armas, e nomeados instrutores por Cato, vigiavam a formação. Quando estes cem nativos tivessem terminado
o treino matinal seriam encarregados de transmitir os seus conhecimentos ao resto dos recrutas. Era a forma mais prática de ensinar os rudimentos do manejo de armas
quando só havia um tradutor. Cato virou-se para ele.
- Pronto?
Tincómio assentiu, e preparou-se para traduzir.
- Hoje vão conhecer o gládio, a espada curta que é utilizada pelas legiões. Para alguns, é a nossa arma secreta. Mas uma arma começa por ser apenas uma ferramenta
como outra qualquer. E o que distingue uma ferramenta de uma arma é o homem que a empunha. Esta espada curta, por si só, não é mais nem menos letal que outra espada
qualquer. Aliás, se não for usada como deve ser, não está à altura de uma espada de cavalaria, ou das longas espadas que vocês, Celtas, preferem utilizar. Quando
em combate singular, falta-lhe alcance; mas, numa batalha em formação, não há melhor arma que um homem possa desejar.
Cato procurou a sua própria espada, e lembrou-se mesmo a tempo de que já não a usava à direita, como fizera quando era optio. Com um sorriso, segurou o punho de
marfim e extraiu-a da bainha, elevando-a no ar, para que todos a pudessem apreciar.
- A característica mais óbvia desta espada é a ponta em cunha. Foi pensada para um tipo particular de golpe - a estocada. A partir deste momento, não se esqueçam
desta regra: alguns centímetros de ponta são muito mais mortais do que qualquer extensão de gume. Digo-vos isto por experiência pessoal, e muito feliz por o fazer.
Há alguns meses, um tipo aplicou-me um golpe com uma arma que só tinha gume. Ele está morto, e eu ainda aqui estou.
Fez uma pausa para que a história penetrasse bem fundo nas mentes dos recrutas e, enquanto escutava a tradução de Tincómio, veio-lhe à lembrança o ataque do druida
em todos os detalhes, incluindo a horrível dor que sentira quando a foice rompera por entre as suas costelas. Sentiu-se, mais do que nunca, uma fraude. Se aqueles
tolos imaginassem o terror que sentira... Cerrou os dentes perante a memória, e tentou afastá-la da mente. No fim de contas, o druida tinha ido ao encontro dos seus
tenebrosos deuses, e ele estava vivo. Se o outro tivesse utilizado uma arma pontiaguda, as coisas podiam ter sido diferentes.
Entretanto Tincómio terminara, e esperava que Cato continuasse.
- Pode não parecer nada de espectacular, mas quando lutamos em formação cerrada, quando o nosso escudo está a pressionar o corpo do inimigo, quando a fronha dele
está a centímetros da nossa cara, nessa altura o real valor desta espada vem ao de cima. Oiçam atentamente o que vos disserem os instrutores, aprendam a usar a espada
como nós, e depressa os cabrões dos Durotriges não serão mais do que a memória de uma praga esmagada.
Uma onda de entusiasmo assinalou a tradução do último comentário, e Cato soube deixá-la prolongar-se o tempo adequado, antes de levantar a mão a pedir silêncio.
- Bem sei que estão ansiosos por começar, mas antes de lhes ser permitido empunhar uma espada das legiões, têm que treinar os movimentos básicos, tal e qual como
nós, legionários, fizemos. Quando em combate, têm que estar confiantes nas vossas capacidades de utilização da arma, e não podem cansar-se muito depressa. Por isso,
vão começar o vosso treino com estas...
Cato aproximou-se de uma carroça e afastou a cobertura de couro. Lá dentro estavam feixes de bastões, do comprimento aproximado de um gládio, mas mais pesados e
grossos. Essa diferença era deliberada. Todo o equipamento de treino utilizado nas legiões tinha como objectivo o desenvolvimento da técnica, mas também da força.
Se e quando os recrutas Bretões fossem equipados com espadas verdadeiras, ficariam surpreendidos com a facilidade com que as usavam. Cato pegou num dos bastões curtos
e levantou-o, para que os voluntários o apreciassem. Um gemido de desapontamento espalhou-se pelas fileiras, precisamente como o centurião esperava, e ele sorriu.
Também já tinha experimentado aquele sentimento.
- Sim, não é grande coisa que se veja, mas asseguro-vos que estar do lado errado deste bastão também custa. Já chega. Sentido!
Virou-se para o pequeno grupo de legionários que assistiam à cena apoiados à parede da caserna mais próxima.
- Fígulo! Tu e o resto dos instrutores, para aqui!
Os legionários apressaram-se a obedecer, e cada um recolheu os maços de armas suficientes para cinco pares de recrutas. Fígulo, um gigante narbonense, tinha sido
designado optio por Cato.
- Por hoje, dêem só as noções básicas. - Lembrou-lhes Cato. - Bloqueio, defesa, estocada e avanço, e chega por agora.
Os legionários dirigiram-se às secções que lhes tinham sido atribuídas e distribuíram as armas. Enquanto Fígulo e os outros mostravam aos recrutas as posições que
deviam assumir, Tincómio acompanhou Cato numa ronda pelos grupos, traduzindo sempre que necessário. Os Bretões foram colocados numa linha e imitaram tão bem quanto
conseguiam as acções dos legionários. Como sempre num período de treino, a manhã foi interrompida por gritos de raiva e frustração dos instrutores, enquanto alternavam
entre elogios e insultos aos homens que tinham a seu cargo. Lembrando-se do conselho que Macro lhe dera na noite anterior, Cato obrigou-se a manter-se à parte, embora
esperasse que a sua presença impedisse os instrutores de serem demasiado ríspidos.
Um repentino grito de dor atraiu Cato e Tincómio a um dos grupos. O instrutor estava de pé sobre uma figura caída, e batia-lhe nas costas, enquanto o centurião furava
pelo meio do grupo de Atrébates para ver melhor o que se passava.
- Porra, o que é que tu não percebes? - Grunhia o instrutor. - Não posso fazer isto mais simples, meu estupor! Bloqueio, defesa, estocada, avanço! Não inventes,
meu cabrão!
- O que se passa aqui?
O instrutor colocou-se em sentido.
- Este imbecil está-se a armar em parvo, senhor. Finge que não se consegue lembrar da merda de quatro simples passos.
- Estou a ver. - Cato assentiu, e olhou para o homem encolhido no chão. Este rodou lentamente a cabeça e sorriu para o centurião.
- Oh, não! Tu outra vez. Como te chamas? - Perguntou Cato em céltico.
- Bedríaco.
- Bedríaco? Trata-me por "senhor".
O homem sorriu de novo, pondo em evidência uma linha de dentes estragados. Fez que sim com a cabeça, e apontou o dedo ao seu próprio peito.
- Bedríaco, senhor! Bedríaco, senhor!
- Sim, obrigado. Já todos percebemos. - Cato devolveu o sorriso, e depois virou-se para Tincómio. - Sabes alguma coisa sobre ele?
- Oh, sim. É um caçador. Perdeu a família toda numa sortida dos Durotriges. Foi encontrado ferido, meio-morto.
- Com meio cérebro, pelo que parece. - Resmungou o instrutor.
- Basta! - Cortou Cato. Deu um toque a Tincómio. - Não tenho a certeza de que o possamos utilizar.
- Ele é bom. Especialmente com uma faca. Ontem vi-o a derrubar dois dos nossos guerreiros.
- A força não é tudo.
- Não, não, de facto não é. Mas este tipo quer vingança. E merece-a.
Cato assentiu, compreendendo a situação. O desejo de vingança era uma motivação tão boa como outra qualquer, e o centurião tinha visto o suficiente do trabalho sanguinário
dos Durotriges e dos seus druidas para ser capaz de sentir simpatia pelas suas vítimas.
- Está bem. Ficamos com ele, se ele conseguir aprender. Instrutor!
- Senhor!
- Podes prosseguir, Mário.
De repente, Cato apercebeu-se de uma confusão junto aos portões do depósito, e virou-se para ver melhor. Um grupo de cavaleiros tinha entrado, e dirigia-se a trote
para a parada. Pareciam locais, mas Cato só conseguiu reconhecer um rosto.
- Vérica. O que vem ele cá fazer?
- Veio ver como está a decorrer o treino. - Retorquiu Tincómio.
Cato lançou-lhe um olhar gelado.
- Bom, obrigado pelo aviso.
- Desculpe. Ele falou nisso ontem à noite. Lembrei-me agora.
- Pois... - Cato deu um murro amigável no ombro do outro. - Vamos lá.
Deixaram os grupos de instrução e foram ao encontro do rei dos Atrébates e do seu séquito. Vérica deteve o cavalo e desmontou lentamente, antes de saudar o seu sobrinho
e Cato. Tincómio olhou para o tio com aparente preocupação.
- Está tudo bem, rapaz. Estou um bocado empedernido, é tudo. Acontece, na minha idade. - O rei sorriu. - E então, centurião Cato, como é que vai o meu exército?...
O que diabo estão eles a fazer com aqueles pauzinhos? Onde é que estão as armas?
Cato tinha previsto a pergunta, e tinha a resposta pronta:
- Estão a treinar, sire. Ser-lhes-ão distribuídas armas verdadeiras assim que estiverem em condições de as receber.
- Oh? - O desapontamento do ancião era claro. - E quando é que isso vai acontecer?
- Dentro de pouco tempo, sire. Os vossos súbditos aprendem depressa.
- Podemos observar o treino?
- Claro, sire. Será uma honra. Se fizer a gentileza de me seguir...?
Vérica acenou aos membros do séquito, que obedientemente desmontaram e se dirigiram lentamente até junto do rei.
Cato inclinou-se para Tincómio e sussurrou:
- Faz o que quiseres, mas mantém-no longe daquele grupo do Bedríaco.
- Claro.
Vérica percorreu lentamente a parada, aparentemente interessado nos gestos de treino, parando de vez em quando para tecer um comentário ou fazer uma pergunta a Cato.
Ao regressarem para junto do primeiro grupo, um dos acompanhantes de Vérica, um homem de cabelo escuro e de tronco nu debaixo da capa, tirou o bastão de treino a
um dos recrutas. O instrutor preparava-se para protestar quando se apercebeu do aviso de Cato, que meneava lentamente a cabeça. O sujeito do cabelo escuro observou
o bastão com uma expressão de desdém, e soltou uma gargalhada.
- Quem é aquele? - Perguntou Cato a Tincómio, num murmúrio.
- Artax. Outro dos sobrinhos do rei.
- Uma família numerosa, não?
- Nem imagina. - Suspirou Tincómio, enquanto Artax se dirigia a Cato:
- Porque é que os nossos guerreiros são obrigados a entreterem-se com brinquedos, quando se deviam estar a preparar para destruir os nossos inimigos?
Artax aproximou-se mais e atirou o bastão aos pés do centurião, com o escárnio bem evidente no rosto. Cato manteve-se sem expressão enquanto o outro o olhava de
alto a baixo, e continuava a manifestar o seu desprezo em palavras:
- Não é de admirar que os Romanos dêem brinquedos aos homens, quando os oficiais pouco passam de crianças.
Cato sentiu o pulso a acelerar, e não conseguiu evitar um sorriso, ao responder:
- Gostaria então de ver do que és capaz com esse brinquedo, se fores homem para isso.
Artax riu, e avançou com a intenção de atingir o ombro de Cato. Mas este foi mais rápido e, dando um passo atrás, desapertou a capa escarlate que envergava e entregou-a
a Tincómio. Então abaixou-se, apanhou a espada de treino e empunhou-a da forma adequada. De novo a expressão de Artax se encheu de desprezo; também ele tirou a capa,
e tirou outro bastão das mãos do recruta mais próximo. Em volta dos dois homens todos se afastaram, para lhes dar espaço, e Cato agachou-se, pronto para a luta.
Artax lançou-se imediatamente sobre ele, com um grito selvagem, tentando atingi-lo com uma série de golpes dirigidos à cabeça. Os Atrébates depressa começaram a
incentivar Artax com gritos e aplausos, enquanto este forçava Cato a recuar passo a passo. O centurião aparava os golpes friamente, cerrando os dentes de cada vez
que um impacto se transmitia ao longo do seu braço. Então, depois de avaliar a velocidade de reacção do oponente, Cato esperou que Artax erguesse o braço para desencadear
uma nova série de golpes. Nesse momento, fingiu que lhe ia atacar a garganta. O Bretão lançou a cabeça para trás, expondo o peito. Então, Cato baixou a ponta do
bastão e atingiu-lhe em cheio o estômago. Havia músculos sólidos naquela barriga peluda, mas ainda assim Artax não pôde evitar um urro de dor, e cambaleou, afastando-se
do Romano.
O Centurião baixou o braço, tendo demonstrado o que pretendia e dando por terminada a contenda. Mas o adversário não era da mesma opinião. Com um rugido de raiva,
Artax voltou a lançar-se sobre Cato, brandindo ferozmente a arma. O jovem apercebeu-se de que o outro tinha por objectivo magoá-lo seriamente. E todos em volta o
compreenderam também. Mais uma vez, os Atrébates fizeram ouvir o seu apoio a Artax, enquanto os instrutores gritavam avisos e encorajamentos a Cato. A um dos lados,
Vérica e Tincómio observavam em silêncio.
O distinto som do choque da madeira encheu os ouvidos de Cato, e de repente sentiu uma dor aguda no peito, já que Artax tinha conseguido transpor as suas defesas
e o atingira na região da antiga ferida. Arfou, dando um passo atrás e evitando à justa o golpe seguinte. Artax deteve-se, e rodou ligeiramente para se vangloriar
e apreciar o aplauso dos seus conterrâneos. Cato respirava em curtas e rápidas golfadas; a dor era tão lancinante que lhe era impossível respirar mais profundamente.
Apercebeu-se da festa que os Atrébates estavam a fazer, e compreendeu que tinha cometido um erro. Tinha permitido que o seu orgulho pusesse em causa o treino dos
homens. Se desistisse naquele momento, se abandonasse o combate, nunca mais eles teriam fé na maneira romana de fazer a guerra. E sem o treino adequado, nunca teriam
qualquer hipótese contra os Durotriges. A dor que sentia aumentava a cada segundo. Tinha que arriscar e pôr termo à luta rapidamente, fosse como fosse.
- Artax!
O príncipe Bretão virou-se para ele com a surpresa estampada no rosto, ao vê-lo a convidá-lo para que se aproximasse. Encolheu os ombros e avançou. Mas desta vez
foi Cato quem atacou, por baixo e em velocidade, apanhando-o de surpresa. Ele recuou, tentando desesperadamente atingir a arma do Romano, que continuava a lançar
estocadas violentas. Cato ensaiou então uma finta que baralhou o ritmo do oponente. Voltou a atingi-lo
no estômago. Depois nas costelas, e logo em seguida no nariz. O sangue jorrou, e Artax fechou os olhos, tentando absorver a dor. Cato lançou um derradeiro golpe
contra as virilhas do adversário, e Artax rolou pelo chão gemendo de dor.
Os Atrébates estavam agora em silêncio, surpresos com a reviravolta súbita. Cato estava de pé, e afastou-se do adversário derrubado. Olhou para os nativos, e ergueu
o bastão.
- Lembrem-se daquilo que vos disse: alguns centímetros de ponta são mais perigosos que todo o gume que quiserem. E aqui está a prova.
- Apontou para Artax, que ainda se contorcia no solo.
Decorreu um desconfortável momento de silêncio, mas então um dos guerreiros Atrébates ergueu o seu bastão e saudou Cato. Um outro lançou um viva, e depressa todos
os recrutas celebravam a sua vitória. Cato encarou-os de forma desafiadora, a princípio, mas depois deixou que um sorriso lhe moldasse o rosto. A lição estava percebida.
Deixou que a animação prosseguisse ainda mais uns instantes, e depois fez sinal com a mão para que se acalmassem.
- Instrutores! De volta ao trabalho!
Enquanto os Atrébates dispersavam e regressavam ao treino em grupos, dois dos elementos do séquito real pegaram em Artax, colocaram-no em cima do cavalo e seguraram-no
enquanto esperavam que Vérica montasse. O rei aproximou o cavalo de Cato e sorriu-lhe.
- Os meus agradecimentos, centurião. Foi muito... educativo. Tenho a certeza de que os meus homens estão em boas mãos. Avise-me se precisar de alguma coisa.
Cato inclinou a cabeça.
- Muito obrigado, sire.

VIII

Nos dias que se seguiram, todas as manhãs os recrutas receberam treino básico de espada. Cato tinha ordenado que fossem erigidos uma série de postes grossos num
dos lados da parada, e os bretões praticavam as estocadas contra estes alvos, produzindo um ruído monótono que ecoava por todo o depósito. Os recrutas mais avançados
praticavam aos pares, aprendendo as sequências correctas de ataque e defesa para situações de combate singular.
Sempre com Tincómio ao lado, Cato fazia rondas pelos grupos de instrução, para avaliar os progressos e para ir conhecendo os homens. Com a ajuda do nobre Atrébate,
começava a entender o dialecto local, e apercebia-se com alegria de que não era assim tão diferente do pouco que aprendera do dialecto Iceno, uns meses antes. Os
recrutas, pelo seu lado, e à excepção de Bedríaco, já respondiam rapidamente a palavras de comando em Latim. Tinha sido uma exigência de Macro, pois em face do inimigo
não haveria tempo para traduções.
Quanto mais observava Bedríaco, mais desesperado se sentia Cato. Se não conseguisse apreender os passos mais básicos da vida militar, o homem seria muito mais um
risco que uma ajuda para os seus camaradas. Porém, Tincómio insistia em que o caçador ainda haveria de mostrar o seu valor.
- Nunca o viu em acção, Cato. Não há nada que se mova no solo que ele não consiga seguir. E é letal com uma faca.
- Pode ser, mas se não conseguir aprender a manter a formação e a atacar no momento certo, não temos lugar para ele. Vamos enfrentar homens, e não bestas do mato.
Tincómio encolheu os ombros.
- Há quem diga que os Durotriges são piores do que as feras. Já viu como eles tratam o nosso povo.
- Sim. - Respondeu Cato sombriamente. - Sim, já vi... Foi sempre assim?
- Só desde que se deixaram cair sob a influência dos druidas. A partir desse momento, isolaram-se a pouco e pouco das outras tribos. A única razão para lutarem ao
lado de Carátaco é que odeiam Roma acima de tudo. Se as legiões deixassem a Britânia, atiravam-se aos vizinhos antes que as vossas velas desaparecessem no horizonte.
- Se saíssemos da Britânia? - O pensamento divertiu Cato. - Achas que há alguma possibilidade de isso vir a acontecer?
- É na poeira que o futuro está escrito, Cato. A mais leve brisa pode alterá-lo.
- Isso é muito poético. - Cato sorriu. - Mas o futuro de Roma está gravado em pedra.
A réplica fez com que Tincómio sorrisse por sua vez, mas depois continuou de forma séria.
- Vocês, Romanos, vêem-se mesmo como uma raça predestinada, nãoé?
- É assim que somos educados, desde que nascemos, e a história ainda não o desdisse.
- Alguns poderiam chamar a isso arrogância.
- Talvez; mas não teriam oportunidade de o repetir.
Tincómio lançou a Cato um olhar interrogador.
- E é nisso que acredita?
Cato encolheu os ombros.
- Não tenho certezas quanto ao destino. Nunca tive. Tudo o que se passa no mundo se deve às acções dos homens. Os mais sábios tentam moldar o seu próprio destino,
pelo menos naquilo que está ao seu alcance. Tudo o resto é apenas acaso.
- Estranha visão do mundo. - Tincómio franziu o sobrolho. - Para nós, são os espíritos e os deuses que governam a nossa vida, em todos os aspectos. Vocês têm também
muitos deuses. Acredita com certeza neles?
- Deuses? - As sobrancelhas de Cato errgueram-se. - Roma parece inventar um novo deus todos os dias. Parece que não podemos estar satisfeitos se não tivermos algo
de novo em que acreditar.
- É um homem estranho, Cato.
- Só um segundo. - Cato interrompeu a conversa. Estava a observar um guerreiro Atrébate particularmente bem constituído, o corpo coberto de tatuagens, que lançava
o seu grito de guerra enquanto ia estraçalhando a sua arma de treino contra um poste. - Tu! Tu aí! Pára!
O guerreiro imobilizou-se, a respiração pesada, enquanto Cato agarrava num bastão de treino e se aproximava.
- É suposto dares estocadas, isto não é nenhuma porra de nenhum machado.
Demonstrou mais uma vez os golpes recomendados, e atirou o bastão ao guerreiro, que sacudiu a cabeça e falou em tom zangado:
- Não há dignidade nessa forma de combate!
- Não há dignidade? - Cato forçou-se a reprimir o riso que lhe nascera na garganta. - Mas que porra de dignidade há numa luta? Quero lá saber se ficas bem ou mal
visto, só quero é que mates o inimigo.
- Eu combato a cavalo, não a pé! - Cuspiu o guerreiro. - Não fui criado para lutar ao lado de camponeses e lavradores.
- Ah, sim? - Cato virou-se para Tincómio. - O que é que este tem de especial?
- É da casta dos guerreiros, e foi educado como cavaleiro. São muito sensíveis a esse respeito.
- Estou a ver. - Cato reflectiu na questão, lembrando-se do enorme respeito que a cavalaria celta granjeara junto das legiões. - Há mais do género deste a treinar
aqui connosco?
- Há. Para aí umas dúzias.
- Bom, vou pensar no assunto. Era capaz de dar jeito ter connosco alguns batedores montados, quando começarmos a caçar Durotriges.
- Sa! - Foi a resposta do guerreiro, que fez um gesto com o dedo a atravessar a garganta, com um sorriso macabro.
Nesse instante Cato reparou noutro homem do grupo, e estacou. Fitando-o com ar de poucos amigos, no meio das filas de recrutas, encontrava-se Artax. O rosto estava
coberto de manchas negras e púrpura, e o nariz - partido - estava inchado.
- Tincómio, o que está ele a fazer aqui?
- O Artax? A treinar, como os outros. Juntou-se a nós esta manhã. Quer realmente aprender a forma de combate dos romanos. Parece que a lição que lhe deu teve um
forte impacto.
- Muito engraçada, essa.
Cato olhou para o outro durante algum tempo, e Artax respondeu ao olhar, os lábios cerrados numa linha fina. O centurião não tinha a certeza se seria boa ideia ter
ao lado um tipo que ele tinha humilhado de forma tão pública. Tinha que haver algum ressentimento a residir no peito do orgulhoso e arrogante bretão. Mas, para já,
seria boa política deixar que o homem, do sangue de Vérica, se mantivesse como membro da coorte. E, de qualquer maneira, se ele tinha sido voluntário, talvez existisse
um outro lado na sua personalidade. Talvez albergasse o desejo de se redimir e recuperar o orgulho perdido. Talvez, reflectiu Cato. Mas, pelo sim pelo não, era melhor
mantê-lo debaixo de olho, pelo menos por uns tempos.
À tarde era Macro quem se encarregava dos treinos, e ensinava aos recrutas as manobras fundamentais dos movimentos de conjunto. Como sempre, era complicado fazer
com que pés não acostumados a tal se movessem em uníssono, mas ao fim de uma semana os bretões também já eram capazes de marchar, fazer alto, volver, e dar meia-volta
com a confusão reduzida ao mínimo.
O dia de treinos terminava sempre com uma marcha rápida em redor de Caleba, uma vez e outra, até ao anoitecer. Depois os homens eram de novo conduzidos ao depósito
e, secção por secção, recebiam as rações, que tinham ainda que cozinhar. Para os nativos, a parte mais difícil desta estrita rotina era o fim precoce que eram obrigados
a dar às suas noites. Quando a trombeta dava o sinal para o início do segundo turno de sentinelas, os instrutores percorriam as linhas de tendas, acima e abaixo,
berrando aos homens para que se recolhessem e dormissem, e entornando as panelas por cima das fogueiras que não fossem rapidamente extintas. Não sobrava nada das
noites de bebedeira, de histórias contadas em altos berros e de anedotas de mau gosto que eram uma parte tão importante do modo de vida celta. Homens em regime de
treino apertado precisavam de descanso, e Macro recusara-se a ceder um milímetro quando Tincómio o tinha abordado com as pretensões de inúmeros guerreiros, que a
ele se tinham queixado amargamente.
- Não! - Fora a resposta firme de Macro. - Amolecemos agora, e lá se vai a disciplina por água abaixo. É duro, mas não mais do que o necessário. Se eles se queixam
por estarem a ser mandados para a cama, então é porque não estão suficientemente cansados. Amanhã, o treino acaba com uma corrida à volta de Caleba, em vez de uma
marcha. Isso deve chegar.
E chegou, mas Cato continuou a notar a existência de um ressentimento surdo nas faces dos homens que encontrava todas as manhãs. Faltava qualquer coisa. Havia uma
vaga impressão de desprendimento, de falta de coesão nas duas coortes. Levantou o assunto com Macro e Tincómio, uma noite no fim da primeira semana de treino, quando
os três se encontravam nos aposentos do centurião mais velho.
- Há algo que não estamos a fazer como deve ser.
- O que é que queres dizer com isso? - Resmungou Macro. - Tudo corre bem.
- Disseram-nos para treinar duas coortes, e fizemo-lo, tão bem como nos foi possível. Mas os homens precisam de mais qualquer coisa.
- Qual coisa?
- Já viu como eles são. Interessados em aprender a usar as nossas armas, e em manobrar como nós. Mas não têm consciência de fazerem pare
de uma unidade militar. Nós temos as legiões, os estandartes, as nossas tradições. Eles não têm nada disso.
- O que é que sugeres? - Macro fez uma careta. - Que lhes demos uma águia, para que a sigam?
- Sim. Algo do género. Um estandarte. Um para cada coorte. Vai dar-lhes espírito competitivo, vai dar-lhes identidade.
- Pode ser. - Concedeu Macro. - Mas nem pensar numa águia. Isso é só para as legiões. Tem que ser outra coisa.
- Sim, com certeza. - Cato acenou na direcção de Tincómio.-Que é que tu sugeres? Há alguns animais que sejam sagrados para a tua tribo?
- Uma data deles. - O bretão começou a contar pelos dedos. - Coruja, lobo, raposa, javali, lúcio, arminho.
- Arminho? - Macro desatou a rir. - O que raio há de sagrado num arminho?
- O arminho - ágil e veloz, rei dos rios até à foz. - Entoou Tincómio.
- Oh, fantástico. Já estou a ver: Primeira Coorte dos Arminhos Atrébates. O inimigo há-de-se mijar a rir.
Tincómio corou.
- Está bem, então não usamos o arminho. - Interrompeu Cato, antes que Macro fizesse mais estragos na sensibilidade do Atrébate. - Gosto da ideia do lobo e do javali.
Dá uma boa noção de perigo e ferocidade. Tincómio, o que achas?
- Os Lobos e os Javalis... soa bem.
- Macro?
- Está bom.
- Óptimo, então, vou ver se se arranjam uns estandartes ainda esta noite. Com a sua permissão, claro.
Macro assentiu.
- Concordo, sim.
Ouviram-se passos no corredor, e alguém bateu à porta.
- Entre!
Um escrivão surgiu sob o clarão das lâmpadas de óleo. Trazia na mão um rolo lacrado.
- O que é?
- Uma mensagem do general, senhor. O correio chegou agora mesmo.
- Dá cá! - Macro pegou no rolo, quebrou o selo e percorreu a mensagem com o olhar, enquanto os seus companheiros esperavam em silêncio. Apesar de saber ler, fazê-lo
era ainda assim um esforço considerável, e foi preciso um momento para que o conteúdo do despacho do general lhe
penetrasse no cérebro, já que vinha embrulhado na floreada e desnecessária linguagem usada por oficiais com demasiado tempo livre.
- Bom - acabou por dizer -, para lá de umas quantas reservas sobre o tipo de operações que poderemos conduzir, e avisos sobre o número de homens que armamos, parece
que o general nos dá licença para equiparmos os, hã, os Lobos e os Javalis.

IX
A cerca de cinquenta quilómetros a oeste de Caleba, Vespasiano olhava para o fumo que volteava sobre a crista da elevação próxima. O forte, com pouco mais de duzentos
passos de largura, era o mais pequeno dos que a legião tinha arrasado até àquele momento. Mas os construtores tinham escolhido bem o local: uma colina escarpada,
encravada na curva de um rio com uma corrente poderosa. Os flancos expostos da colina tinham estado bem fortificados, com fossas e montículos, paliçadas espessas
e uma gama de obstáculos anti-pessoais muito inventiva, embora alguns fossem evidentes cópias de originais romanos, e não muito bem conseguidas. Bom, podiam não
ser muito fiéis aos originais, mas tinham infligido algumas feridas bem graves aos mais incautos dos legionários que tinham assaltado os baluartes por volta do meio-dia.
Uma fila contínua de baixas passava pelo legado, a caminho da enfermaria, no interior do campo provisório da Segunda Legião: homens com os pés estropiados e sangrentos,
a quem as pontas afiadas escondidas por baixo do mato tinham penetrado as solas; outros com feridas perfurantes, por terem sido empurrados contra pontas aceradas
pelos camaradas que os seguiam e não viam as armadilhas. E havia também homens feridos pelos projécteis que tinham chovido sobre os atacantes, lançados pelos aguerridos
defensores dos portões; homens atingidos por tudo, de lanças a setas, a pedras, velhas sertãs, ossos de animais e cacos de loiça. Por fim, havia os que tinham sofrido
ferimentos quando se tinha dado o contacto entre os legionários e os inimigos. Esses apresentavam os habituais buracos, golpes e esmagamentos produzidos por lanças,
espadas e maças.
Tinham passado apenas dois dias desde que a legião tinha estabelecido um campo a curta distância do fosso exterior, e já havia oitenta baixas
- o equivalente a toda uma centúria. A conta final, sabia Vespasiano, estaria à sua espera sobre a secretária, na sua tenda. Por isso se mostrava relutante em abandonar
o espectáculo do forte em chamas. Se os Durotriges
continuassem a delapidar as suas forças àquele ritmo, daí a pouco a legião não teria poder suficiente para continuar uma campanha independente do corpo principal
do exército do General Pláucio. Seria um golpe amargo para Vespasiano, que contava com esta oportunidade para fazer nome antes de terminar o seu período de serviço
na legião. Se queria uma carreira política quando regressasse a Roma, precisava de um bom passado militar. A sua família era ainda demasiado recente entre a classe
senatorial para que ele pudesse beneficiar da rede de favores que amparava todos os que tinham uma linhagem aristocrática bem estabelecida. Vespasiano enfurecia-se
com regularidade ao ver como homens muito menos capazes do que ele recebiam cargos de maior responsabilidade bem mais cedo nas suas carreiras. Não era apenas injusto,
incitou-se a prosseguir, obviamente não era eficiente e conduziria ao desastre. Para o bem de Roma, e do seu destino abençoado pelos deuses, o sistema teria que
mudar...
Este forte era o sétimo povoado que a sua legião tomara e saqueara. Este tinha levado apenas dois dias a conquistar, mas havia alguns aspectos da operação que podiam
ser melhorados, estava seguro disso. Um punhado de inimigos tinha conseguido escapulir-se por entre as linhas romanas na primeira noite de cerco, depois da legião
ter acampado em frente ao forte. Fora deplorável, e o optio que comandava as sentinelas tinha sido despromovido. Para a próxima, decidiu o legado com firmeza, colocaria
paliçadas nas linhas de fuga prováveis.
E depois tinha havido um número limitado de munições para a barragem de artilharia que deveria ter desmoralizado os defensores e destruído a paliçada. Embora tivessem
conseguido danificar as defesas junto ao portão principal, e eliminar um bom número de guerreiros inimigos, as catapultas e balistas não tinham conseguido criar
brechas suficientemente grandes. Quando a Primeira Coorte se tinha lançado ao assalto, tinha encontrado uma resistência muito mais determinada do que esperava. Para
a próxima, a legião esperaria até que a artilharia conseguisse produzir o tipo de barragem que quebrava a vontade de resistir do inimigo, decidiu também Vespasiano.
Sentia-se culpado por ter apressado o assalto, e era suficientemente honesto para admitir que a verdadeira razão por trás da ordem de ataque era a sua ambição de
conseguir um grande número de vitórias. E os homens tinham pago a sua ambição com sangue. O legado tentou evitar a auto-crítica dirigindo os pensamentos para um
outro problema, ainda relacionado com a questão. Os Durotriges tinham sido tão fanáticos na luta final como tinham sido na preparação das defesas. Em resultado desse
facto, não tinha havido sobreviventes quando os raivosos legionários tinham finalmente irrompido pelo portão e se tinham espalhado pelo interior do
forte. Todos os homens, mulheres e crianças tinham sido passados a fio de espada.
Uma perda terrível, reflectiu Vespasiano. Para a próxima, teria que insistir em que fossem capturados com vida o maior número de inimigos possível. Um celta em boas
condições físicas valia no momento um bom preço em Roma, já que estava na moda, entre aqueles que tinham mais dinheiro que gosto, possuir escravos bárbaros. O quinhão
de Vespasiano valer-lhe-ia uma pequena fortuna. Tal como aos seus homens, se conseguissem resistir à sede de sangue o suficiente para se aperceberem de que os prazeres
da violação e da pilhagem passavam depressa, enquanto que os lucros do negócio de escravos lhes dariam um excelente complemento aos fundos para a reforma. Teriam
que ser dadas ordens aos centuriões para que acalmassem os homens quando a legião tomasse o próximo forte, resolveu. Não haveria mais desperdício de vidas valiosas,
romanas ou bretãs.
Só as ovelhas, o gado bovino e alguns porcos tinham resistido com vida ao assalto romano. Estavam agora a ser conduzidos para o campo romano, pela encosta abaixo.
Os animais não sobreviveriam aos seus anteriores proprietários muito mais tempo, e os legionários deliciar-se-iam de novo com carne fresca, assada nas fogueiras.
Vespasiano estava contente com este suplemento às provisões. Porém, a legião iria em breve enfrentar uma cadeia de fortes muito maiores, e mais uma vez ficaria dependente
de um fluxo regular de abastecimentos do depósito de Caleba.
E era aí que estava a maior dificuldade. As colunas rápidas que Carátaco enviava para atacar as linhas de abastecimento romanas podiam acabar por forçar os homens
de Vespasiano a viverem do que conseguissem apanhar. Pior ainda, faltaria o equipamento de substituição para as armas perdidas em combate, e para o material desgastado.
Tudo dependia do rei Atrébate manter a aliança com Roma, e garantir passagem segura às colunas de abastecimento que atravessavam o seu território. A constituição
das duas coortes nativas talvez aliviasse a pressão, e levantasse algum do peso da ansiedade que pesava sobre os ombros de Vespasiano. O legado estava seguro de
que podia confiar no centurião Macro - e no centurião Cato, já agora - para desempenhar aquela tarefa a contento.
Vespasiano sorriu ao recordar o momento em que informara o jovem da sua promoção, meses atrás. Cato jazia numa cama de hospital, no depósito, em Caleba. Mal tinha
conseguido suster as lágrimas de orgulho. Cato prometia muito, e já justificara vezes sem conta a avaliação que o legado dele fazia. Devia ser interessante ver como
se estava a sair o jovem perante as suas novas responsabilidades, pensou Vespasiano. Ainda nem tinha vinte anos, e quando regressasse ao seio da Segunda Legião ia
enfrentar uma das mais duras experiências que se podiam apresentar a um homem,
quando tomasse posse do seu primeiro comando e dos oitenta homens que o constituiriam.
Vespasiano lembrava-se bem da dolorosa presunção com que se tinha dirigido à pequena patrulha que liderara ao ser nomeado tribuno, há quase catorze anos atrás. Os
veteranos de ar duro tinham-no escutado sem comentários, mas não tinham escondido o desdém que sentiam pela sua falta de experiência. Pelo menos isso Cato tinha
em abundância, o que lhe devia dar um suplemento de confiança. No curto período em que servira nas Águias, Cato já tinha visto mais combates do que muitos legionários
viam em toda a carreira. E tinha tido a boa fortuna de ser iniciado na vida militar pelo centurião Macro. Tão duro e de confiança como Cato era inteligente e engenhoso;
complementavam-se de forma excelente.
O legado não tinha dúvidas de que eles fariam um bom trabalho no treino dos homens de Vérica. Porém, gostaria muito de os ter de volta à Segunda legião. Quando eles
estivessem completamente recuperados, e as linhas de abastecimento seguras, chamá-los-ia imediatamente. Uma legião era tão boa como os centuriões que a lideravam
em combate. Vespasiano queria que a Segunda fosse boa - tão boa como ele conseguisse torná-la
- e isso queria dizer que tinha que aproveitar ao máximo homens do calibre de Macro e Cato.
Uma gota de suor percorreu-lhe a pele sob a túnica de linho.
- Merda, está calor! - Resmungou.
Um dos tribunos do seu pessoal levantou a cabeça e olhou para ele, mas Vespasiano fez-lhe um gesto com a mão para que continuasse a trabalhar, como se afastasse
uma mosca irritante.
- Não é nada... Talvez vá nadar um pouco, mais tarde.
Os dois homens olharam com ânsia ao longo da encosta na direcção do rio, umas centenas de metros distante. As formas claras de homens nus estendiam-se nas margens
relvadas, enquanto outras andavam pela água ou nadavam, levantando salpicos brancos. Aqui e ali parecia que havia rápidos no rio, onde os mais exuberantes dos homens
brincavam na água.
- Estava capaz de matar por um banho, senhor. - Disse o tribuno calmamente, enquanto limpava o suor da testa com as costas da mão.
- Alguns deles já o fizeram. Deixem-nos divertir-se. Mas há trabalho a fazer. - Vespasiano acenou na direcção das ruínas do forte. - Eles que continuem. Não quero
ver nada de pé quando anoitecer. Nada que possa voltar a ser fortificado.
- Sim, senhor.
Apesar de já ser o fim da tarde, o sol continuava a assolar os legionários que trabalhavam na colina. Os poucos edifícios que tinham escapado incólumes aos projécteis
incendiários das baterias de artilharia da Segunda
Legião tinham já sido ateados. Os centuriões organizavam agora grupos de homens para destruir a paliçada, e para atirar as madeiras para o fosso defensivo. Depressa
o forte no alto da colina não passaria de umas estruturas de madeira enegrecida e fumegante e de uns anéis de buracos escavados na terra, elementos estranhos na
paisagem natural. E, depois disso, seria apenas uma memória que se iria apagando nas mentes dos legionários que o tinham destruído, e dos nativos que por ali tinham
alguma vez passado.
Vespasiano acenou, satisfeito com os progressos no desmantelamento das fortificações ainda existentes, e depois virou-se, dirigindo-se através do campo até ao seu
quartel-general. Havia poucos homens por ali, já que os que não estavam de serviço se protegiam dos escaldantes raios do sol no interior das tendas que se estendiam
em fileiras perfeitas de ambos os lados da alameda principal do campo. Mesmo com ambas as extremidades abertas, Vespasiano sabia que o interior das tendas de couro
de cabra seria infernal. Por isso é que tinha dado permissão às coortes desactivadas para irem até ao rio - ao menos podiam sentir-se um pouco melhor. E os homens
ficariam com certeza mais limpos. Para alguém que crescera habituado ao hábito romano de banhos frequentes, o cheiro permanente de homens sujos e a suar era quase
insuportável. Portanto, qualquer ocasião para os homens se lavarem, e às suas roupas, não podia ser desperdiçada. Além disso, o médico-chefe da legião pedia-lhe
constantemente que obrigasse os homens a adoptarem medidas higiénicas. Deviam lavar-se com frequência. Segundo Esclépio, isso contribuía para reduzir a lista de
enfermos. Era de esperar, uma vez que o homem seguia a escola medicinal do oriente, com as suas práticas curiosas. Não que Vespasiano não tivesse nelas fé, mas,
como a maior parte dos Romanos, ele acreditava que o Oriente era um foco de corrupção e um antro de gente demasiadamente bem instalada na vida e com atitudes efeminadas.
Os homens de guarda ao quartel-general mantinham-se rigidamente nos seus postos, com armaduras completas. Vespasiano perguntou-se como aguentariam eles o calor,
e ao passar por eles e entrar na tenda viu que o suor lhes escorria livremente pelas faces. Lá dentro, a sombra não oferecia alívio do ar quente e parado do exterior;
de facto, estava até muito mais quente. Vespasiano acenou ao seu criado.
- Quero água. Do rio. Assegura-te de que é captada a montante do campo. E quero uma túnica leve, a de seda. Depois, quero que levem a minha secretária lá para fora,
e coloquem um toldo para a proteger do sol. E depressa.
- Sim, senhor.
Quando o homem saiu, Vespasiano manteve-se imóvel, enquanto o seu escravo pessoal desapertava as fivelas da armadura e retirava a placa
peitoral. Por baixo, a grossa túnica militar estava ensopada em suor e colava-se-lhe ao corpo, enquanto Vespasiano tentava tirá-la pela cabeça. Lá fora, ouvia a
confusão gerada enquanto os homens cumpriam a sua ordem e montavam a mesa e o toldo. Havia demasiados assuntos a tratar, e abanou a cabeça quando o escravo lhe perguntou
se desejava um banho.
- Traz-me só a túnica.
- Sim, meu senhor.
A seda sabia bem contra a pele-suave e fresca, perfumada com umas gotas do óleo de limão que a sua esposa lhe enviara de Roma. Depois de esfregar vigorosamente o
cabelo suado com um pano de linho, Vespasiano saiu da tenda e sentou-se à secretária. Um escrivão sentava-se numa das pontas da mesa, preparado para tomar notas,
e uma pilha arrumada de pergaminhos e tábuas de cera esperava pelo legado na outra ponta, ao lado de um jarro e de um copo. Vespasiano serviu-se de água e sorveu-a
de uma vez, apreciando a sensação refrescante. Encheu outra vez o copo e, com um suspiro, começou a tratar da papelada do dia.
Em primeiro lugar, vinham listas de baixas e relatórios de efectivos das diferentes unidades. O número de doentes da Terceira Coorte parecia excessivo, e ele tomou
uma nota numa tábua de cera para convocar o comandante da coorte e ter com ele uma pequena conversa. Era pouco provável que o centurião Hortênsio aceitasse de boa
vontade um tão grande número de homens incapazes para o serviço. Vespasiano conhecia bem a reputação do sujeito, de comandar os homens de forma selvática; embora
aprovasse a disciplina firme, não aceitaria crueldade e dureza desnecessárias. Suspirou. Não seria uma reunião fácil. A maior parte dos legados serviam apenas alguns
anos, e poderia parecer presunçoso da parte de Vespasiano dar um sermão sobre disciplina a um centurião de muito mais vasta experiência. Mas não podia deixar que
o homem abusasse dos homens que comandava, se era essa a razão para a inflacionada lista de doentes. E se não era essa, então qual era? Fosse como fosse, Vespasiano
tinha que saber, e enfrentar o problema.
Lançou um rápido olhar sobre os últimos inventários de provisões e equipamentos, aprovou-os com um rápido traço da agulha e atirou-os ao escrivão.
- Arquiva-os. Temos falta de pontas de dardos - põe isso na nossa próxima requisição de material.
- Sim, senhor.
A seguir, Vespasiano leu o último despacho chegado de Caleba. O centurião Macro relatava que tinha conseguido suficientes homens de valor para constituir duas coortes.
O treino tinha-se iniciado e, apesar das dificuldades linguísticas, os instrutores romanos faziam bons progressos
na preparação dos homens de Vérica. Vespasiano tinha recebido uma cópia da mensagem enviada para Caleba que autorizava Macro a armar as coortes nativas, e ainda
estava admirado pela rapidez com que o General tinha concordado com essa medida. Embora Pláucio estivesse desesperado por reforços que permitissem proteger as linhas
de abastecimento a sul do Tamisa, não era prática comum ou sequer bem vista a criação de unidades para actuarem na província de origem. Tinha havido ocasiões no
passado em que aliados tribais, supostamente leais, se tinham virado traiçoeiramente contra os seus amigos Romanos. Apesar da óbvia afeição e apreciação que Vérica
sentia por tudo o que era romano, não se tinha completamente libertado dos seus modos bárbaros. Vespasiano redigiu rapidamente uma resposta para Macro, felicitando-o
pelos seus esforços e pedindo-lhe que lhe relatasse imediatamente qualquer sinal de deslealdade que pudesse surgir entre os Atrébates.
- Uma cópia para os arquivos, e depois mandem isso para Caleba logo que amanheça.
- Sim, senhor.
Por fim, o legado debruçou-se sobre os relatórios com informações recolhidas em diversas fontes. O pequeno grupo de cavaleiros que acompanhava a legião desempenhava
tarefas de batedores, mensageiros e reserva de cavalaria de último recurso. Tinham patrulhado o terreno à volta do forte, e os relatórios dos comandantes de esquadrão
forneciam informação detalhada sobre a geografia local, que era cuidadosamente adicionada aos mapas que os escrivães de Vespasiano preparavam. Além disso, os batedores
também referiam a existência de quaisquer povoações nativas que encontrassem. Os habitantes locais eram pagos ou espancados para que fornecessem informações sobre
as movimentações inimigas que tivessem testemunhado.
Vespasiano inclinou-se sobre a mesa para ler com mais atenção os últimos relatórios. Voltou a um relatório mais antigo, que parecia confirmar a suspeita que crescia
no seu espírito. Não podiam ficar grandes dúvidas. O inimigo estava a concentrar forças a norte, mas nesta margem do Tamisa. Pior, alguns dos locais afirmavam terem
visto Carátaco em pessoa entre as colunas inimigas que chegavam à área. No entanto, o último despacho do General informava Vespasiano de que o corpo principal do
exército inimigo se encontrava à frente de Pláucio e das suas três legiões.
Vespasiano coçou o queixo e fez uma careta. O que estaria o astuto Carátaco a preparar agora?

X
Enquanto examinavam os seus novos equipamentos, os Atrébates enchiam o depósito com conversas excitadas. Macro e Cato tinham passado toda a manhã com o responsável
pelos equipamentos, na sua secretária no edifício de comando, anotando cuidadosamente as marcas de identificação de cada peça que deixava os armazéns para ser distribuída
aos nativos. Silva tinha alcançado o posto que ocupava graças a uma mente ordenada, e ao facto de documentar cada passo; noutra vida, teria sem dúvida dado um advogado
competente. Cada um dos Atrébates tinha recebido espada, bainha, cinturão, botas, túnica, capacete e escudo, tudo vindo dos inesgotáveis armazéns de equipamento.
Não havia armaduras de substituição, e os escudos eram do formato oval, geralmente atribuído às tropas auxiliares, e não rectangulares, como os que usavam os legionários.
Ter-lhes-iam sido fornecidos dardos, mas algum cretino de um escrivão em Rutúpias tinha-se esquecido de enviar os pinos de fixação junto com as pontas de ferro e
as hastes.
- Esperem até eu descobrir quem foi o cabrão do responsável por isto! - Rosnou Macro. - Juro que lhe prego,os tomates ao solo assim que encontrar essas estacas.
Cato mostrou que concordava com a ideia do outro centurião.
- Não tenho nada a ver com isso. - Silva encolheu os ombros, com toda a certeza de alguém que sabe que pode provâr uma afirmação do género. - Deve ter sido um erro
dos escrivães do Quartel-General. Os pinos estão provavelmente algures no depósito, com um rótulo errado. Vou pôr a minha malta à procura deles.
Macro acenou, satisfeito.
- Bom, creio que podemos pôr de lado por agora o treino com dardos, e continuarmos a concentrar-nos no básico. E os estandartes, estão prontos?
Cato assentiu.
- O que é que usaste?
- O Tincómio arranjou umas cabeças esculpidas, estavam numa parede.
- Onde?
- Bem, ele disse que o Vérica não lhes ia sentir a falta.
- Ah, muito bem, sim senhor.
- Bom, seja como for, temos uma cabeça de lobo e outra de javali. De facto, é uma cabeça de porco. Pus-lhe umas estacas de tenda a fazer de presas, e mandei dourar
as cabeças. Estão bonitas. Montei-as num par de estandartes de cerimónia e pintei Atrébates I e II nos pendentes de cabedal.
Macro lançou-lhe um olhar frio.
- Usaste estandartes de cerimónia?
- Estava com pressa.
- Mas foram tocados pela própria mão do Imperador. - Macro estava escandalizado. - Merda! Se isto se sabe...
- Se não disser nada, eu também não digo.
Macro lutou para controlar a zanga.
- Cato, juro-te, se não estivesses ainda a recuperar dessa maldita ferida, dava-te uns bons pontapés... Bom - continuou em tom resignado -, vamos lá a ver como é
que ficaram.
Cato guardou os documentos numa arca e seguiu o seu superior hierárquico para a parada. A cena era caótica, com os instrutores a percorrerem as fileiras a apertar
fivelas e cordões, a mostrar qual era o lado em que se devia usar a espada, e a ignorar olimpicamente os que tentavam queixar-se por causa das botas.
Macro deu-lhes mais uns instantes para aprontarem o equipamento, e então inspirou profundamente.
- FORMAR!
Os recrutas já estavam rotinados; já não se fazia sentir a necessidade das marcas coloridas. Apressaram-se a ocupar as suas posições, alinhando-se com os comandantes
de secção e ajustando automaticamente as linhas para se assegurarem que o espaço entre cada par de homens era o correcto. Cada centúria era composta por dez secções,
e comandada por um legionário escolhido por Macro. E cada coorte tinha seis centúrias.
- E aqueles palhaços, quem são? - Macro apontou para pequenos grupos de guerreiros, dos dois lados da parada.
- Batedores montados, senhor.
- Batedores montados... hum, não lhes falta qualquer coisa?
Tincómio adiantou-se até ao lado de Macro.
- Vérica prometeu-nos cavalos. Devem estar cá amanhã.
- Está bem.
- E dei-lhe uma palavra sobre os estandartes. Achei que seria bom para o moral dos homens se lhes fossem entregues pelo rei em pessoa. Já avisei que estávamos prontos
para a cerimónia. Ele deve estar a chegar.
- Isso seria muito agradável. - Concordou Macro, sem evitar o sarcasmo. - Alguma ideia sobre os candidatos a porta-estandartes?
- Bem, veio-me logo um nome à cabeça. - Disse Cato. - Bedríaco.
Tincómio não acreditou no que ouvira, e desatou a rir.
- Bedríaco?
- Porque não? Tu próprio disseste que ele é forte e nunca recua.
- Sim, mas...
- E assim não estraga a formação.
O argumento era de peso, e Tincómio acabou por concordar.
- Muito bem. - Continuou Macro. - Um já está. Fica na tua coorte, Cato. Quem mais?
- Bem, que tal o Tincómio para a sua coorte?
- Eu? - O príncipe atrébate pareceu pouco satisfeito. - Porquê eu, senhor?
- Macro precisa de um tradutor, não é verdade?
- Escusas de estar sempre a repetir. - Resmungou o outro centurião.
- É uma honra. - Lá conseguiu Tincómio afirmar.
- Pronto, essa questão está arrumada; e, uma vez que sou o oficial mais antigo, fico com a primeira coorte dos atrébates, com o estandarte do javali.
Cato tocou-lhe no braço. - Senhor, o rei aproxima-se.
Vérica chegava a pé, vindo do portão principal. Seguiam-no alguns nobres atrébates, envergando as suas melhores vestes. Fiéis ao espampanante estilo celta, mostravam
cores berrantes, padrões estranhos e ouro trabalhado. Os olhos de Macro foram imediatamente atraídos pela joalharia, conduzindo avaliações de forma automática.
- Ei, Cato - disse calmamente achas que os Durotriges se vestem da mesma forma?
Cato sorriu divertido, e empurrou Tincómio.
- Ele está a brincar. Vai buscar os estandartes. Estão no meu gabinete, ao lado da porta.
Enquanto Vérica passava lentamente em revista as fileiras dos seus homens, claramente impressionado pela visão dos guerreiros em uniforme, Tincómio correu até ao
edifício do comando. Regressou num passo mais digno, com um estandarte em cada mão, apoiados nos ombros. Vérica terminou a inspecção e juntou-se a Macro e Cato.
- Os meus parabéns, Centurião Macro! Tem um aspecto formidável. - Baixou então a voz. - Mas conseguirão combater com tanta eficiência como formam? Na sua opinião
profissional.
- São tão bons como quaisquer outros homens que já treinei. Mas nunca tive que preparar homens para o combate tão à pressa. A maior parte deles nunca se viu metido
numa luta. - Macro encolheu discretamente os ombros. - Não posso dizer nada. Teremos que esperar e ver, senhor.
- Esperemos não ter de aguardar muito tempo. - Vérica sorriu.
- Bom, então. Vamos lá à cerimónia.
O rei voltou-se para encarar as duas coortes, inspirou profundamente e começou a discursar. Cato ficou surpreendido pelo rico timbre da voz do rei, e apesar de não
perceber todas as palavras, o discurso pareceu-lhe formidável. No seu auge, Vérica devia ser uma figura imponente entre os nativos. Mas havia algo de familiar no
discurso, algo que Cato não conseguia localizar com precisão, e buscou entre a memória por um eco daquilo que sentia. Então fez-se luz no seu espírito; não havia
nada de um dom natural naquela actuação, era apenas a aplicação da retórica grega a um contexto cultural diferente, e olhou para o rei dos Atrébates com um respeito
renovado. Um homem de vastos talentos, e de profundos conhecimentos.
Vérica acabou de arengar às tropas, terminando numa voz que ressoava com a emoção. Cato apercebeu-se de que Tincómio, ao seu lado, olhava para o chão, sem qualquer
expressão no rosto. Macro também o havia notado, e olhara para Cato com o sobrolho levantado. Cato, porém, tinha poucas dúvidas sobre o jovem príncipe dos Atrébates;
também ele se sentira nervoso antes do seu primeiro combate. A batalha faz o homem. E ele sabia que Tincómio estaria à altura quando chegasse o momento.
Assim que Vérica concluiu, as tropas manifestaram a sua aprovação, empunhando as espadas e levantando-as no ar, de modo que a Cato pareceu que as duas coortes se
encontravam debaixo de uma cobertura de lâminas flamejantes.
- E agora, por favor, os estandartes. - Pediu Vérica, sobre o ombro.
- Dá-mos cá! - Reagiu Macro, apercebendo-se de como seria ridículo que Tincómio passasse os estandartes ao rei, e logo a seguir recebesse um deles de volta. O príncipe
atrébate entregou-os ao centurião e deu um passo ao lado quando Macro depositou nas mãos do rei a grossa haste com a cabeça de javali, com tanta formalidade quanto
possível. Vérica empunhou-a e elevou-a bem ao alto, fazendo com que os homens se manifestassem ainda com mais entusiasmo. Quando a aclamação diminuiu de volume,
Tincómio avançou e inclinou a cabeça perante o tio, antes de estender as mãos. O barulho reduziu-se, enquanto os homens esperavam para ver o
que se seguiria. Então o rei passou solenemente o estandarte para as mãos do sobrinho e, agarrando-o pelos ombros, deu-lhe dois beijos calorosos nas faces. Com o
estandarte bem seguro em ambas as mãos, Tincómio virou-se e marchou para ocupar a sua posição à frente da Coorte dos Javalis.
Macro entregou então o estandarte com a cabeça de lobo ao rei, enquanto Cato ordenava:
- Bedríaco! À frente!
Durante um momento nada se moveu, até que o homem que estava atrás do caçador lhe deu um ligeiro empurrão. Bedríaco avançou então, marchando tão aprumado quanto
conseguia à medida que se aproximava do rei. No momento em que o estandarte lhe foi passado, o duro rosto abriu-se num largo sorriso, os dentes irregulares a brilharem
sob a luz do sol. Voltou-se para a Coorte dos Lobos e, num impulso, ergueu o estandarte bem alto, fazendo-o subir e descer. O ar encheu-se com uma nova vaga de entusiasmo
sonoro, enquanto Bedríaco se dirigia para junto dos seus camaradas.
- Tens a certeza de que foi uma boa escolha? - Resmungou Macro.
- Como disse, ao menos não atrapalha os outros. E agora que lhe deram aquilo, parece-me que vão ter que o matar se lho quiserem tirar.
- Aí deves ter razão.
De repente, Cato apercebeu-se de que um homem com as roupas enlameadas furava por entre os nobres, aproximando-se do rei. Quando o alcançou, inclinou-se para se
fazer ouvir acima das comemorações. Vérica escutou-o atentamente, e assim que o homem terminou enviou-o para outras tarefas. Virou-se para os dois centuriões, os
olhos a brilhar de excitação.
- Parece que vão ter ocasião de descobrir do que são feitos os meus homens, mais depressa do que contavam.
Macro adivinhara o conteúdo da mensagem, e não conseguia disfarçar o seu entusiasmo.
- Os Durotriges andam por aí!
Vérica assentiu.
- O batedor avistou uma coluna de fumo a um dia a cavalo para o sul. Com certeza que se preparam para atacar a próxima coluna de abastecimentos.
- Pode apostar nisso. - A perspectiva de acção tinha apagado qualquer protocolo da mente de Macro. - Quantos são?
- Disse ele que não são mais de quinhentos. Infantaria, na maior parte, mas também alguns cavaleiros e carros de combate.
- Maravilhoso! - Macro esfregou as mãos, contente. - Simplesmente maravilhoso!

XI
- Acho que nunca vi melhor lugar para uma emboscada. - Disse Macro, de mãos na cintura, enquanto avaliava o terreno que circundava o vau. - E temos justamente o
tempo necessário para preparar as coisas antes que caia a noite.
- Também achei que ia apreciar o sítio. - respondeu Cato, com um sorriso.
Estavam na orla de uma floresta que se estendia por uma pequena colina, e com eles encontrava-se Tincómio. Abaixo, o terreno descia até ao caminho que os Durotriges
tomariam para preparar a emboscada ao comboio de abastecimentos. Do outro lado do caminho, o terreno tornava-se lamacento, descendo suavemente até ao rio. A pouco
menos de um quilómetro para a direita, o rio aproximava-se do caminho, antes de se afastar numa curva gentil, criando um estrangulamento. À esquerda da posição que
ocupavam ficava o vau, e do outro lado do rio o caminho subia até uma pequena crista no terreno. A última centúria da coorte que Cato comandava acabava de alcançar
essa crista, e depressa deixou de se avistar. Cato tinha-lhes ordenado que atravessassem o rio um pouco mais a jusante, de forma a não deixarem marcas de passagem
no outro lado do vau. A coorte de Macro estava escondida ao longo da linha das árvores, os batedores e os seus cavalos acoitados do outro lado da floresta, e preparados
para avançarem em redor da colina e fecharem a armadilha. Tinham-lhes sido atribuídos os melhores cavalos dos estábulos de Vérica, e facilmente conseguiriam alcançar
e derrubar quaisquer sobreviventes do embate principal.
- Só a nado é que aqueles cabrões podem ter hipótese de escapar desta. - Macro riu, e virou-se para Cato. - Como é evidente, não quero que te sintas obrigado a persegui-los
pelo rio abaixo.
Cato corou.
- Ainda não tive tempo para aprender a nadar decentemente. Sabe bem disso.
- Só me pergunto se alguma vez terás tempo. Já vi gatos que gostavam mais de ir ao banho do que tu.
- Juro, um dia hei-de aprender, Macro.
- Não sabe nadar? - Tincómio estava espantado. - Pensava que todos os legionários sabiam nadar.
Cato presenteou-o com um sorriso amarelo.
- Acabas de conhecer a excepção que confirma a regra.
- Atenção! - Macro esticou o pescoço para a direita. Um batedor montado tinha surgido da curva por trás da colina e galopava pelo caminho, deitado sobre a crina
dardejante do cavalo. Enquanto ele se aproximava, Macro e os outros correram pelo declive para o interceptar. O homem puxou as rédeas, fazendo o cavalo estacar com
brusquidão. Falou muito depressa, mal respirando enquanto as palavras célticas lhe escorriam dos lábios. Quando terminou, Tincómio fez-lhe uma pergunta curta, e
depois enviou-o para a cobertura da floresta. O batedor desmontou e levou o cavalo pela encosta, até desaparecer de vista.
- Então? - perguntou Macro.
- Estão a uns quatro quilómetros daqui, e marcham em coluna, com alguns cavaleiros adiantados algumas centenas de passos. Cerca de quinhentos homens, como nos disseram.
- Cato, vais ter que tratar desses cavaleiros antes que eles consigam dar o alarme.
- Isso vai ser complicado.
- Eu encarrego-me deles. - Tincómio afagou o punho da sua adaga enquanto falava.
- Tu? - Foi a pergunta de Cato. - Porquê?
- Quero desferir o primeiro golpe em nome do meu povo.
- Não. - Macro abanou a cabeça. - Não estás treinado para esse género de coisa. Acabavas por nos denunciar. E além disso preciso de ti por perto, para traduzires.
O olhar de Tincómio dirigiu-se ao solo, e ele encolheu os ombros.
- Como desejar, senhor.
- Muito bem então, Cato - Macro deulhe uma palmada nas costas -, volta para junto dos teus homens. Sabes o que tens a fazer. Assegura-te de que os apanhamos nos
dois lados do vau. Até depois.
Cato sorriu, virou-se e afastou-se a correr pela estrada, até ao vau, enquanto os outros dois subiam de novo para o esconderijo no meio das árvores. Depois de recomeçar
com o exercício físico, a dor que sentia no corpo tinha-se intensificado, e a marcha rápida dos últimos dois dias, pelo meio do mato, para interceptar os Durotriges,
tinha piorado as coisas.
Entrou pelos baixios junto à margem, e depois começou a atravessar
o rio, a passo. Saiu do outro lado a pingar, e correu pelo caminho na direcção da crista da colina baixa que acompanhava o rio também naquela margem. Na relva alta
que cobria a outra encosta as centúrias já tinham formado numa linha paralela ao rio, conforme as ordens que emitira.
- Baixem-se! - gritou em céltico, e os Atrébates agacharam-se e desapareceram de vista no meio das ervas.
- Bedríaco! Comigo!
O estandarte com a cabeça do lobo ergueu-se do solo, seguido de perto pela cara sorridente do caçador. Correu para o centurião, e Cato indicou-lhe que se devia abaixar,
antes de correrem os dois de novo pela encosta acima. Ao alcançar a crista, Cato deitou-se de bruços junto ao caminho. Bedríaco juntou-se-lhe, depondo cuidadosamente
o estandarte na erva. O centurião desapertou o capacete e pô-lo de lado; depois ergueu-se sobre os cotovelos e perscrutou o caminho do outro lado do vau. Por momentos
os seus olhos foram atraídos para a linha das árvores, onde a coorte de Macro estava escondida, mas não viu nenhum movimento. Tudo estava preparado, e a paisagem
parecia tão tranquila que com certeza não despertaria as suspeitas dos Durotriges, quando surgissem pela estrada.
O sol já estava próximo do horizonte, e as ervas já se tingiam com um leve tom alaranjado, ao mesmo tempo que soprava uma ligeira brisa, que agitava a fina vegetação.
Ainda haveria luz do dia por umas horas, porém, e os Durotriges seriam aniquilados antes que pudessem escapar graças à escuridão.
Devia ter passado perto de uma hora quando os batedores avançados da coluna inimiga surgiram a uns oitocentos metros do vau. Durante todo esse tempo, Bedríaco tinha-se
mantido perfeitamente imóvel. Apenas os olhos se moviam, perscrutando a paisagem sem cessar, e a confiança de Cato no caçador começou a aumentar. Sentiu o ligeiríssimo
toque de uma mão no seu braço, e olhou para Bedríaco. Este acenou ligeiramente na direcção da estrada, e os olhos de Cato buscaram por instantes até se fixarem nas
figuras distantes. Dois cavaleiros, lado a lado, aproximavam-se lentamente, fazendo a curva em torno da colina. Notava-se que avançavam com cautela extrema, olhando
em redor enquanto se aproximavam do vau.
- Bedríaco... - Disse Cato baixinho.
- Sa?
Cato apontou para os batedores e fez um gesto com o dedo sobre a garganta; depois indicou o caminho, mesmo abaixo da crista. Bedríaco fez o seu sorriso meio desdentado
e assentiu, deslizando para mais longe de Cato e escondendo-se atrás de um tufo de ervas espinhosas, mesmo ao lado da estrada. Então imobilizou-se de novo.
Olhando cautelosamente através das ervas, Cato observou os
batedores a levarem os cavalos a passo até ao vau, a não mais de cem passos de distância. Pararam e trocaram algumas palavras, fazendo gestos em direcção à força
principal. Depois os dois homens desmontaram e levaram as montadas até aos baixios atapetados por seixos. Enquanto os cavalos baixavam os focinhos e bebiam da corrente
preguiçosa, um dos batedores avançou alguns passos para jusante, desapertou os atilhos que lhe prendiam as calças e deixou sair um longo arco dourado de urina, enquanto
soltava um ruído de satisfação que se espalhou pela paisagem até chegar aos ouvidos de Cato. Quando terminou, o homem deixou-se estar a contemplar o rio por um instante,
e depois puxou as calças para cima e voltou a apertá-las. Regressou à margem, sentou-se ao lado do companheiro e lançou o olhar para a outra banda. Cato forçou-se
à imobilidade. O Sol estava já muito baixo e nas costas dos batedores Durotriges, portanto a crista estava bem iluminada e qualquer movimento seria facilmente
notado. Mas, enquanto o tempo passava, os batedores não mostraram sinais de suspeitarem do que quer que fosse.
Algo faiscou à distância, e Cato dirigiu o olhar para além dos dois homens. Uma coluna de carros de combate bretões avançava aos solavancos pela estrada, e a luz
baixa reflectia-se nos elmos de bronze polido dos guerreiros que os conduziam, de pé nas pequenas plataformas por cima dos eixos. Catorze carros apareceram, antes
de surgir a vanguarda da infantaria inimiga. Com o Sol mesmo por trás deles, Cato teve que semicerrar os olhos para se aperceber dos pormenores do equipamento que
traziam. O seu coração alegrou-se quando compreendeu que a maior parte deles trazia armas ligeiras e apenas um pequeno número usava capacete. Traziam os escudos
às costas, e uma variedade de armamento, geralmente espadas e lanças, além dos grandes sacos onde transportavam as suas rações. Na retaguarda da desorganizada coluna
vinha um pequeno grupo de guerreiros com equipamento pesado, e atrás deles uma vintena de cavaleiros. Nada que os Atrébates não conseguissem enfrentar, desde que
se lembrassem do treino que tinham tido e mantivessem a formação.
Assim que se aperceberam da aproximação da coluna, os batedores colocaram-se de pé, montaram, e atravessaram o vau. Cato escondeu a cabeça, virou-se para Bedríaco
e emitiu um silvo. Os olhos do caçador encontraram-se com os dele, e o outro acenou. Cato colocou o capacete e apertou-o nervosamente, antes de voltar a mergulhar
na erva. Ouviu as vozes dos batedores, conversando alegremente no seu cantado dialecto céltico, despreocupados. Sob o timbre agudo das vozes ouvia-se o bater dos
cascos no caminho, e o resfolegar de uma das montadas. À medida que se aproximavam, Cato sentia o coração a bater cada vez com mais força e, surpreso, reparou que
a dor no dorso tinha desaparecido. Libertou a espada
da bainha, e segurou o escudo com determinação. Os sons dos batedores inimigos eram agora tão distintos que ele supôs que não podiam estar a mais de alguns passos.
Porém, o tempo parecia esticar indefinidamente; observou uma abelha a pairar junto à sua cabeça, com um halo laranja, provocado pelo sol que se escondia no horizonte.
Depois, sombras projectaram-se sobre as longas ervas, à medida que os dois Durotriges começaram a atravessar a crista. Não podiam com certeza deixar de o avistar
agora. E se não a ele, notariam seguramente Bedríaco, ou as centenas de homens que se escondiam na encosta mais abaixo. Mas, nesse momento, Cato apercebeu-se de
que a sua coorte estava nas sombras. E levaria ainda algum tempo até que os olhos dos batedores se habituassem à penumbra, depois de subirem a encosta batida pelo
sol desde o vau. Ouviu-os a passarem pela posição que ocupava. Deviam estar quase sobre Bedríaco. A mente de Cato acelerou. Porque raio é que o caçador não atacava?
O que...
Ouviu-se uma exclamação vinda da estrada, um relincho de um cavalo, um homem a inspirar fundo preparando-se para gritar, e depois o som de um corpo a ser derrubado.
Quando Cato se ergueu sobre os joelhos já tudo estava acabado. A poucos metros de distância, Bedríaco amparava um dos corpos enquanto este deslizava de cima do cavalo.
O homem já estava morto; o punho de uma faca projectava-se abaixo do queixo, a lâmina cravada até ao cérebro. O companheiro ainda se mexia na erva, o sangue a sair
em golfadas da garganta cortada, e a espalhar gotas escarlates pelos rebentos à volta. Depois o homem imobilizou-se.
Bedríaco soltou a faca do crânio do primeiro inimigo e limpou-a no longo cabelo do morto, enquanto olhava para o centurião. Cato acenou em aprovação e apontou para
os cavalos, que se mostravam nervosos e com vontade de fugir devido ao choque da aparição súbita do caçador. Aproximando-se lentamente, Bedríaco murmurou palavras
calmas e afagou os sedosos flancos dos animais, até que conseguiu agarrar as rédeas.
- Para trás. - Sussurrou Cato em céltico.
O caçador assentiu, deu um estalo com a língua, levou os animais pelo caminho, passando pelas centúrias dissimuladas na erva, e soltou-os. Fosse qual fosse a magia
que ele tinha exercido sobre os animais, continuou a fazer efeito, já que os cavalos se deixaram ficar calmamente a mordiscar os rebentos que cresciam ao lado da
estrada. Bedríaco regressou para junto de Cato, recuperando o estandarte e colocando-se ao lado do seu comandante.
O ruído das rodas no outro lado do vau era agora claramente audível, e na altura em que escutou o som de água a ser pisada, Cato virou-se para a encosta e, com as
mãos em concha, gritou tão alto quanto se atreveu:
- Coorte! De pé!
Quase quinhentos homens se levantaram entre as ervas, silenciosamente, os escudos ovais de tropas auxiliares firmemente empunhados. Os sons vindos do vau aumentaram
de volume, à medida que a infantaria inimiga começou a atravessar o rio. Já não se escutava o som produzido pelos carros. Deviam ter parado, como Cato supusera que
fariam. O vau era um local perfeito para os Durotriges instalarem um acampamento para passar a noite; quase escondido no meio da paisagem, em terra firme, mas com
água disponível para os homens e para os cavalos.
- Empunhar espadas! Preparar para avançar!
Cato virou-se para Bedríaco.
- Fica aqui.
O caçador assentiu, e Cato subiu o caminho, agachado, esticando o pescoço para apreciar a situação junto ao vau. Metade da coluna inimiga já tinha atravessado. Os
condutores dos carros de combate já estavam a soltar os cavalos, enquanto os guerreiros que os acompanhavam estavam em grupo junto ao rio, ao redor de um homem baixo,
forte como um touro e de tranças louras, que distribuía ordens para a noite. Enquanto olhava para os seus homens, imobilizou-se repentinamente, com os olhos na direcção
precisa em que Cato se encontrava. Tinha avistado a crista vermelha no topo do capacete do centurião, que os raios do sol poente iluminavam brilhantemente.
- Merda! - Furioso, Cato bateu com a espada na perna. Levantou-se, tornando-se assim perfeitamente visível para todos os homens que se encontravam junto ao vau.
Uma onda de alarme espalhou-se pelas fileiras dos Durotriges. Os homens que ainda atravessavam o rio estacaram ao avistar a figura na crista distante, cuja armadura
resplandecia sob a luz do sol.
- Coorte! - Cato bradou a ordem. - Avançar!
As seis centúrias de Atrébates marcharam pela encosta acima, esmagando a relva no seu caminho. Ao alcançarem a crista saíram das sombras e formaram uma linha de
vermelho brilhante ao longo do cimo da colina, com a cabeça de lobo dourada a refulgir no topo do estandarte, como se estivesse em chamas. Lá em baixo, o chefe
da coluna inimiga tinha rapidamente recuperado do choque, e berrava ordens. Os condutores já tentavam desesperadamente voltar a atrelar os cavalos. A infantaria
retomou a marcha, espalhando-se pela margem e esperando ansiosamente a aproximação da linha de escudos inimigos.
Para lá do vau, Cato apercebeu-se de movimentos na orla da floresta, e depois viu Macro e a sua coorte a descerem a encosta e a formarem no caminho, fechando a armadilha
para os Durotriges. Estes não se aperceberam
imediatamente da situação, tão concentrados estavam na visão das fileiras vermelhas dos homens de Cato que desciam a encosta na sua direcção. Mas então ouviram-se
mais gritos, braços apontaram, e mais e mais cabeças se viraram para ver o que se passava no outro lado do rio. Um lamento de desespero e terror ergueu-se da massa
desorganizada de homens, cavalos e carros.
Cato refreou o passo até ocupar o seu lugar na linha da frente da coorte, com Bedríaco logo atrás. Os Durotriges estavam agora a menos de vinte passos, uma massa
de vultos escuros cujas silhuetas se recortavam contra o brilho do rio. Colocando o escudo em posição à sua frente, Cato ergueu a espada para o ataque.
- Lobos! À carga!
Com um rugido, a linha Atrébate lançou-se em corrida nos últimos metros da descida e embateu contra a confusa massa inimiga, com um som de esmagamento. Logo o ar
se encheu de gritos de agonia e dos sons metálicos do choque de armas. O centurião usou o escudo para empurrar a massa humana, golpeando com o gládio pela fresta
existente entre o seu escudo e o do guerreiro imediatamente à direita. A lâmina encontrou algum alvo, começou a torcer, e Cato forçou-a a penetrar. Ouviu o homem
a gemer quando perdeu o fôlego, e então o romano puxou a espada de novo para si, um repuxo de sangue sujando-lhe o punho e o braço. À sua direita, o guerreiro atrébate
lançava o seu grito de guerra enquanto atingia um inimigo na cara com o escudo e o acabava com uma estocada ao pescoço. Por momentos o orgulho invadiu Cato, por
ver que o intenso treino dos últimos dias tinha resultado e que estes celtas estavam a combater como romanos.
Voltou a usar a espada, sentiu que o golpe era desviado, e pôs o seu peso por trás do escudo, consciente de que a linha dos Atrébates continuava a avançar de ambos
os lados. Mesmo assim, era preciso manter o impulso da carga inicial. Avançar sempre, até o inimigo ser destroçado.
- Lobos, em frente! - Gritou Cato, a voz esforçada, quase histérica.
- Para a frente! Vamos! Vamos!
Os homens que o rodeavam juntaram as suas vozes ao brado, e os gritos de pânico e terror dos Durotriges deixaram de se ouvir. Apercebendo-se de um corpo aos seus
pés, Cato levantou cautelosamente o pé antes de o pousar do outro lado e preparar o golpe seguinte.
- Romano! - gritou Bedríaco mesmo atrás dele, e Cato sentiu o corpo que julgava inanimado a mover-se contra a barriga da sua perna. Mal teve tempo de olhar para
baixo e avistar os dentes descobertos do guerreiro durotrige enquanto este se levantava do solo com uma adaga na mão. Então o homem gemeu, estremeceu e caiu de novo,
a ponta aguçada
do estandarte dos Lobos a surgir no seu peito, logo abaixo do pescoço.
Não havia tempo para agradecer ao caçador, e Cato prosseguiu, rechaçando os Durotriges na direcção do vau. Sobre as cabeças agrupadas avistou a outra coorte, que
atacava a retaguarda da coluna inimiga, enfrentando os cavaleiros que a compunham e liquidando-os antes que se lembrassem de fugir.
De repente um vulto enorme destacou-se dos durotriges na frente do centurião: um guerreiro experiente, com uma cota de malha sobre uma túnica leve. A espada estava
erguida sobre a cabeça, e a longa lâmina faiscou ao sol quando atingiu o cimo do arco que descrevia. Quando ela desceu, Cato lançou-se sobre o corpo do inimigo,
usando o gládio para lhe atacar o peito exposto. Ficou preso na cota e não penetrou, mas o homem arfou quando o golpe lhe expeliu o ar dos pulmões. O golpe que executava
pouco foi afectado, mas o centurião estava demasiado próximo, e a lâmina passou-lhe sobre o ombro; só o punho o atingiu pesadamente no lado do capacete, destruindo
a crista de pelo de cavalo. Cato mordeu a língua, enquanto a sua visão era dominada por uma explosão de brancura que quase o cegava por um instante, e ele caía pelo
solo.
Ouviu um grito, sacudiu a cabeça e pestanejou, e a sua visão clareou. O guerreiro inimigo estava caído por cima dele, o crânio rachado ao meio. Cato olhou para cima,
e viu Artax. Os olhos dos dois homens encontraram-se, e a espada do bretão subiu na direcção da garganta de Cato. Durante um breve instante os olhos de Artax estreitaram-se
e, com um arrepio, Cato sentiu-se certo de que o outro lhe ia aplicar um golpe mortal e se vingaria ali, no calor da batalha, em que a morte do jovem centurião seria
facilmente compreendida. Quando se preparava para tentar desviar-se da lâmina de Artax, o Atrébate sorriu e abanou a ponta da espada, trocista. Depois virou-se e
desapareceu, envolto pela massa de homens que avançavam para esmagar os Durotriges.
Cato sacudiu a cabeça, colocou-se de pé, e avançou também. Notou que chapinhava na água, e apercebeu-se de que a carga da Coorte dos Lobos tinha empurrado o inimigo
até ao vau. Mais um esforço e o combate estaria terminado. Até já conseguia ouvir Macro, bramando gritos de triunfo e de batalha enquanto destroçava a retaguarda
da coluna inimiga. E já conseguia ver os escudos e as túnicas vermelhas da outra coorte, através das desgarradas fileiras dos Durotriges que o enfrentavam. Um deles
encarou Cato de repente, atirou a espada para o rio e ajoelhou, implorando clemência. Antes que o centurião pudesse decidir o que fazer, o guerreiro atrébate que
seguia à sua direita cravou a sua espada no peito do homem. Cato olhou em redor e apercebeu-se de que mais e mais dos inimigos baixavam as armas e tentavam render-se,
um gesto vazio naquelas circunstâncias. Os Atrébates,
enlouquecidos à vista do sangue dos Durotriges, continuavam a abatê-los sem piedade.
- Parem! - Gritou Cato, tentando desesperadamente fazer-se ouvir acima do clamor da batalha. - Coorte dos Lobos! Alto! PAREM!
Quando o guerreiro à sua direita se preparava para fazer mais uma vítima, Cato deu-lhe uma pancada com a face da espada no braço, fazendo o homem largar a sua própria
arma.
- Basta!
Os Atrébates recuperaram lentamente a calma, enquanto os oficiais romanos davam ordens para acabar com a carnificina. Os Durotriges sobreviventes tinham-se lançado
ao solo, ou escapado para águas mais profundas, para escapar aos terríveis golpes das espadas curtas, e esperavam o destino mergulhados até ao peito na corrente
ensanguentada.
- Cato! Cato, miúdo! - Era Macro que se aproximava, sorridente e coberto de sangue. Ao seu lado, empunhando o estandarte dos Javalis, estava Tincómio, com um golpe
no braço. - Conseguimos!
Mas Cato olhava para jusante, onde um pequeno bando de Durotriges escapava pela margem.
- Ainda não, senhor. Repare!
Macro olhou para a área que Cato apontava.
- Muito bem, põe os teus homens atrás deles. Eu arrumo as coisas por aqui.
Cato virou-se, correu pela água até sair do vau, evitando tropeçar nos corpos semi-submersos. Chegado ao caminho, puxou Bedríaco do meio da confusão, e pôs a mão
em concha para gritar:
- Lobos! Lobos! Comigo!
Os comandantes das centúrias obedeceram imediatamente, apresentando-se a correr, mas os Atrébates já se entretinham com o saque aos corpos dos inimigos.
- Lobos! - Voltou Cato a gritar.
- O que diabo estão eles a fazer? - Perguntou Fígulo. - Oh não...
Cato virou-se e avistou um dos seus homens, de pé sobre um corpo inimigo, segurando-o pelo cabelo com uma mão enquanto cortava os últimos tendões do pescoço com
o seu gládio. Olhando à volta, Cato apercebeu-se de que todos estavam entretidos com aquela actividade. Olhou outra vez para os Durotriges que escapavam.
- Centurião Cato! - Berrou Macro, ainda no vau. - De que diabo está à espera? Atrás deles!
Cato correu até aos seus homens, agarrou o guerreiro mais próximo pelo braço e empurrou-o na direcção dos Durotriges.
- VAMOS! MEXE-TE!
Alguns levantaram os olhos, viram o que ele apontava e lançaram-se atrás do inimigo, encaixando as cabeças cortadas debaixo dos braços.
- Foda-se! - Explodiu Cato. - Deixem a merda das cabeças para depois!
Ignoraram-no, mas ao menos iniciaram a perseguição pela marugem. Cato deteve um dos homens e, com uma cara ameaçadora, arrancou-lhe a cabeça das mãos. O guerreiro
Atrébate rosnou um aviso e ergueu a espada em jeito de ameaça.
- Tincómio! - Berrou Cato, mantendo o outro debaixo de olho.
- Chega cá!
O nobre atrébate furou por entre os homens e aproximou-se.
- Diz-lhes para deixarem as cabeças em paz.
- Mas é uma tradição.
- Que se foda a tradição! - Exclamou Cato. - Os Durotriges estão-se a escapar. Diz aos nossos que larguem as cabeças e os persigam.
Tincómio gritou as ordens de Cato à coorte, mas a única reacção foi um murmúrio zangado. Por esta altura já os Durotriges tinham um avanço de quase quinhentos metros,
e desapareciam por entre a escuridão que se adensava.
- Muito bem - Continuou Cato, desesperado -, diz-lhes que podem ficar com as cabeças que já têm. E prometo que voltamos para apanhar as outras.
Satisfeitos com a promessa do seu comandante, os Lobos deixaram os cadáveres mutilados e os poucos prisioneiros ao cuidado dos seus camaradas da Coorte dos Javalis.
Liderados por Cato, que levava Bedríaco junto a si, e com as cabeças debaixo dos braços, começaram a perseguir os Durotriges.
Os inimigos que tinham escapado eram sobretudo pessoal das carroças, e o equipamento pesado que transportavam atrasava-os. Apesar do avanço que levavam a distância
foi diminuindo gradualmente, já que Cato impôs um ritmo rápido, embora olhasse constantemente para trás, para se certificar que os homens o acompanhavam. Os que
não transportavam os macabros troféus mantinham-se a par, ansiosos por obter o seu quinhão de glória no combate. Os outros arrastavam-se com os escudos, as espadas,
e uma ou mais cabeças.
Não havia nenhum trilho na margem do rio, e os durotriges abriam caminho pelo mato, lutando pelas suas vidas, liderados por um homem de tranças. Alguns estavam feridos,
e começaram a ficar para trás.
Por fim, Cato estava quase a alcançar o inimigo mais atrasado. O coração batia-lhe desenfreadamente enquanto se forçava a correr mais depressa e se preparava para
cravar a espada entre as omoplatas do homem.
Quando pouco mais de três metros os separavam, o bretão olhou para trás, e os seus olhos arregalaram-se de terror. Por causa disso, não se apercebeu da cova devida
ao desmoronamento de parte da margem, e tropeçou, caindo no solo, à mercê de Cato. O centurião mal se deteve, o tempo suficiente para o trespassar, e continuou a
perseguição.
Vários outros retardatários foram assim liquidados, e os homens da Coorte dos Lobos continuaram a aproximar-se do último grupo de Durotriges, enquanto a luz do dia
que se extinguia projectava as longas sombras dos homens em corrida nas ervas da margem do rio. Por fim, o inimigo apercebeu-se de que a fuga não ia ter sucesso,
e o líder deu uma ordem aos sobreviventes. Pararam de correr e enfrentaram os perseguidores, juntando-se, com os peitos a arfar do esforço da corrida.
Cato e os seus homens estavam igualmente cansados quando cercaram a vintena de guerreiros que formavam um semi-círculo, as costas contra o rio. Os inimigos eram
claramente soldados experimentados e, mesmo sabendo que o fim se aproximava, preparavam-se para levar consigo o maior número de Atrébates que pudessem.
Cato tentou ainda assim oferecer-lhes uma oportunidade de sobrevivência. Apontou para o líder e fez sinal com a mão.
- Desistam. - Disse em céltico, ofegante. - Larguem as armas.
- Vai-te foder! - O líder inimigo escarrou no solo, antes de gritar algo de ininteligível a Cato. Fosse o que fosse, deu aos Atrébates uma desculpa para atacarem,
e eles lançaram-se sobre os inimigos numa onda vermelha. Cato seguiu-os, enquanto ao seu lado Bedríaco soltava um grito de guerra. O entroncado chefe do bando empunhou
a espada com as duas mãos, fazendo-a descrever um longo arco, e o mais afoito dos Atrébates na conquista da honra de o matar foi quase cortado ao meio quando a pesada
arma lhe destroçou o escudo, amputou o braço, e se cravou no tronco. Outros Atrébates, com armas ligeiras, caíram aos pés do pequeno grupo de guerreiros Durotriges,
mas o resultado final da escaramuça nunca esteve em dúvida. Um a um os Durotriges foram sendo derrubados, e aniquilados no solo. Por fim só o líder restava, exausto
e coberto de sangue.
Cato enfrentou o homem das tranças, levantando o escudo e preparando a espada para a investida final. O seu oponente avaliou o esquálido romano, e fez soar o seu
desdém. Tal como Cato esperava, lançou um golpe com a sua grande espada para tentar cortar o Romano em dois. O centurião lançou-se para a frente e para baixo, atingindo-o
nas pernas. O homem caiu sobre as costas de Cato, mesmo aos pés de Bedríaco. Com um grito selvagem de triunfo, o caçador enterrou a sua espada no crânio do inimigo,
com um ruído surdo. O corpo estremeceu, e ficou imóvel.
Enquanto Cato se levantava pesadamente, Bedríaco cortava o
pescoço do chefe inimigo morto. Era uma tarefa difícil, e Cato virou a cara, olhando para o vau, quase a um quilómetro de distância. Estava tão cansado que cada
inspiração era uma agonia, e sentia-se um pouco tonto. Quando olhou outra vez, Bedríaco tentava amarrar a cabeça ao estandarte, pelas tranças.
- Não! - Gritou zangado. - Na porra do meu estandarte, nem
penses!

XII
As notícias da vitória espalharam-se pelas enlameadas ruas de Caleba assim que o entusiasmado enviado de Macro fez chegar a nova a Vérica. Quando as duas coortes
se aproximaram do portão principal da cidade, verificaram que uma multidão as esperava. Um imenso grito de triunfo e prazer soou das gargantas dos populares quando
avistaram os soldados. Finalmente os Durotriges, que tanta dor e sofrimento tinham causado nos meses precedentes, tinham levado uma boa sova. Na realidade, o confronto
não passara de uma breve escaramuça, mas para um povo desesperado a mais pequena das vitórias era boa razão para comemorar. E assim, os vivas e aclamações continuaram
enquanto a coluna se aproximava de Caleba. Seguindo-a a curta distância vinham as carroças do comboio de abastecimentos que os Durotriges tinham planeado interceptar
e destruir. Tinham-se encontrado com as coortes na manhã seguinte à emboscada.
Macro marchava orgulhoso pelo caminho, à cabeça da Coorte dos Javalis. Apesar das suas dúvidas sobre o valor militar dos nativos, tinham-se portado à altura. Poucas
semanas atrás, a maior parte deles não passava de camponeses, e o instrumento mais perigoso que alguma vez tinham manejado era a enxada. Agora tinham travado a sua
primeira batalha, o moral estava em alta, e talvez ainda fossem capazes de conseguir a sua difícil aprovação. Os inimigos tinham sido completamente destroçados,
só um punhado deles conseguira escapar ao cair da noite, atirando-se ao rio e seguindo a corrente. Tinham sido feitos cinquenta prisioneiros, depois dos oficiais
romanos terem recuperado o controlo sobre os seus homens e interrompido a caça aos troféus, isto é, às cabeças dos inimigos. Os Atrébates tinham sido particularmente
impiedosos para com os poucos guerreiros da sua própria tribo que tinham sido descobertos entre os Durotriges, e muito poucos deles tinham sido poupados.
Eram homens que não suportavam aquilo que entendiam como a cobarde aliança de Vérica com Roma. Tinham portanto deixado a sua tribo
e tinham-se ido juntar a Carátaco, cujo efectivo aumentava rapidamente, graças a todos aqueles que ainda mantinham a fé nas antigas glórias dos povos Celtas. Os
prisioneiros arrastavam-se entre as duas coortes, formando duas linhas, os braços atados atrás das costas, uma corda a uni-los através dos laços que se viam em redor
de cada um dos pescoços dos cativos. Embora Macro tivesse alguma esperança de os vender aos mercadores de escravos de Caleba, sabia perfeitamente que os Atrébates
haviam de querer torturá-los e usá-los para saciar a sua sede de vingança. Uma pena, quando escravos em condições decentes alcançavam preços tão elevados nos mercados
da Gália, suspirou Macro. Talvez Vérica se deixasse convencer a oferecer à populaça os fracos e os feridos, e a guardar os melhores exemplares para fins mais rentáveis.
Macro olhou para trás, para Tincómio. O jovem nobre avançava solenemente, erguendo bem alto o reluzente estandarte dos Javalis.
- Grande recepção. - Macro acenou na direcção da multidão próxima.
- Essa gente festejava fosse o que fosse...
Macro não conseguiu evitar um sorriso perante a atitude cínica do jovem.
- Vai perguntar ao Cato se se quer juntar a nós. Podemos perfeitamente saborear o momento juntos.
Tincómio abandonou a formação e correu ao longo da coluna de escudos vermelhos e ondulantes, fazendo ouvidos moucos aos alegres comentários e incentivos dos homens
por quem passava. Quando encontrou o centurião que comandava a Coorte dos Lobos, saudou rapidamente Bedríaco e passou a marchar ao lado do romano.
- O centurião Macro deseja saber se quer juntar-se a ele quando chegarmos aos portões.
- Não.
- Não? - Tincómio arqueou as sobrancelhas.
- Agradece-lhe por mim, mas acho muito melhor que eu marche à frente da minha coorte.
- Ele pensa que ambos merecem ser aclamádos.
- Como todos estes homens. - Cato considerou que era perfeitamente natural que Macro se quisesse apropriar daquele momento de triunfo. Natural, mas pouco hábil em
termos políticos. - Os meus respeitos ao centurião Macro, mas entrarei em Caleba à frente dos meus homens.
Tincómio encolheu os ombros.
- Muito bem, senhor. Como desejar.
Cato abanou a cabeça enquanto o bretão regressava à sua unidade. Era importante que Vérica e os Atrébates vissem esta vitória como sua. Não
era ocasião para embarcar em triunfos pessoais e mesquinhos, por muito que a perspectiva de ser aclamado como um herói atraísse a parte mais recôndita do seu espírito.
Além do mais, tinha sido uma vitória fácil, perante um inimigo descuidado. Os Durotriges tinham-se por certo habituado a percorrer as terras dos Atrébates sem preocupações,
tomando tudo o que queriam. Julgando-se suficientemente rápidos para escapar às legiões, e com a força necessária para esmagar qualquer tentativa de resistência
dos Atrébates, não era de admirar que tivessem caído tão facilmente na armadilha. E uma emboscada vitoriosa era uma coisa, mas como reagiriam aqueles homens, cujo
treino mal tinha começado, numa situação de batalha frontal contra um inimigo preparado? Quanto tempo duraria o elevado moral daqueles minutos de festejo? Depressa
a fanfarronice os abandonaria. As bocas ficariam secas. O abraço gelado do medo apertar-lhes-ia as imaginações, delas extraindo todas as sombrias premonições que
afectam os homens enquanto esperam pela batalha.
Agora que tinha sido promovido a centurião, a tendência de Cato para se auto-analisar era mais forte do que nunca. Apesar dos vibrantes festejos que se desenrolavam
à sua volta, o jovem sentia-se consumido por uma amarga melancolia, e teve que se obrigar a sorrir quando se virou e viu o riso insano de Bedríaco, o caçador que
era o portador do estandarte da Coorte dos Lobos, agora erguido tão alto quanto possível e baloiçado de um lado para outro.
À sua frente, a multidão excitada avançava pelos flancos das duas coortes, obrigando os guardas pessoais de Vérica a actuarem para evitar que o rei fosse arrastado.
Os vivas dos habitantes de Caleba ressoavam aos ouvidos de Cato enquanto as faces afogueadas quase lhe roçavam pela cara, e mãos calejadas lhe davam palmadas nos
ombros. Não havia qualquer hipótese de manter as colunas em ordem, e a marcha triunfal colapsou, à medida que os homens das coortes se foram misturando com o povo
que os vitoriava. Aqui e ali, guerreiros orgulhosos mostravam as cabeças dos inimigos, para admiração de família e amigos. Embora tivesse acabado por gostar e, até
certo ponto, admirar aqueles homens, Cato sentiu-se um tanto enojado com aquela exibição. Quando a ilha estivesse pacificada, os Atrébates poderiam ser convencidos
a adoptar modos mais civilizados; por agora, as singulares tradições guerreiras dos Celtas tinham que ser toleradas.
Ouviu-se no seio da multidão um repentino grito que rapidamente se tornou num agudo lamento de pesar; os que se encontravam por perto viraram-se, na tentativa de
identificar a origem do som. Uma mulher levava a mão à boca, os dentes cravados na carne por trás do polegar, enquanto os
olhos esbugalhados não se desviavam de uma cabeça que um dos homens de Cato exibia perante a multidão. A mulher urrou de novo, e depois lançou-se para a frente,
tentando agarrar a cabeça pelos esparsos caracóis do cabelo, colados pelo sangue seco. O guerreiro ergueu a cabeça mais alto, para fora do alcance da mulher, e riu-se.
Ela guinchou, arranhando-lhe os braços, até que o homem a lançou por terra com um golpe da mão livre. Então a mulher lançou-se num choro convulsivo que lhe vinha
das entranhas, tremendo enquanto se agarrava à bainha da túnica do guerreiro, suplicando.
- O que vem a ser isto? - perguntou Cato.
Como todos os outros, Tincómio tinha observado a confrontação.
- Parece que a cabeça é a do filho dela. Ela quer dar-lhe um funeral.
- E o novo proprietário quere-a como troféu? - Cato sacudiu tristemente a cabeça. - É duro.
- Não. - Murmurou Tincómio. - É uma afronta à honra. Segure aqui, sim?
Passou o estandarte dos Javalis para as mãos de Cato e colocou-se entre a mulher e o guerreiro, que mantinha a cabeça decepada bem no alto. Puxando-lhe o braço para
baixo, Tincómio falou em tom zangado, indicando a mulher enquanto o fazia. O guerreiro manteve a cabeça bem guardada atrás das costas, e respondeu-lhe com o mesmo
grau de indignação e ira. Ao escutá-lo, as pessoas aglomeraram-se em volta, gritando o seu apoio
- embora, como Cato reparou, algumas se mantivessem caladas, apoiando implicitamente a posição de Tincómio. O príncipe Atrébate não estava com disposição para aceitar
a menor falta de respeito para com o seu estatuto e, repentinamente, esmurrou a face do adversário. Os assistentes afastaram-se ligeiramente, enquanto o guerreiro,
meio dobrado, tentava recuperar do golpe. Tincómio aproveitou para o pontapear no estômago, tirando-lhe o fôlego e forçando-o a manter-se encolhido. Enquanto o homem
lutava para respirar, de boca muito aberta e olhar espantado para o atacante, Tincómio desprendeu-lhe calmamente os dedos do cabelo do inimigo e ofereceu a cabeça
à mulher, com gentileza. Ela manteve-se quieta durante um momento, e depois, com um esgar de dor, aceitou tudo o que lhe restava do filho. Indiferente à dor da mulher,
a maior parte da multidão fez ouvir o seu protesto, e avançou ameaçadoramente sobre Tincómio.
- ALTO! - Gritou Cato, desembainhando a espada e agitando o estandarte do Javali sobre a cabeça, para atrair a atenção. - SILÊNCIO!
Os protestos esmoreceram, e todos se viraram para Cato com hostilidade, pouco satisfeitos com a intervenção, mas ao mesmo tempo cientes do poder dos homens de Roma
e temerosos da sua ira. Os olhos de Cato varreram a multidão, desafiando os populares a enfrentá-lo; depois ele encarou
a mulher sentada no chão, com a cabeça no colo, acariciando as faces geladas.
Uma imensa dor encheu-lhe o peito, enquanto gastava um instante a observá-la, sentindo a mágoa daquela mãe. Então engoliu em seco e endureceu o espírito, antes de
voltar a encarar a multidão. Tinha que agradar àquela gente, dar-lhes o que pretendiam, em nome da aliança entre Roma e os Atrébates, e por muito que isso o revoltasse.
- Tincómio!
- Centurião?
- Devolve a cabeça a este homem.
Tincómio franziu o sobrolho.
- O quê? O que disse?
- Devolve a cabeça cortada a este guerreiro. É um troféu, e é dele.
Tincómio apontou a mulher, com o dedo em riste.
- É o filho dela.
- Já deixou de o ser. Agora, faz o que eu te disse.
- Não.
- É uma ordem. - Cato avançou para Tincómio, até que as faces de ambos ficaram a poucos centímetros de distância, e falou calmamente.
- Ordeno-te que o faças... agora mesmo.
Por um instante, Cato viu naqueles profundos olhos azuis a determinação de o desafiar. Mas depois Tincómio respirou fundo, e desviou o olhar na direcção das pessoas
ao redor. Devagar, assentiu.
- Farei o que me ordena, centurião Cato.
O príncipe atrébate virou-se para a mulher e falou-lhe gentilmente, enquanto a sua mão avançava. Ela olhou-o com horror, a mão ainda na face do filho, e abanou a
cabeça.
- Na!
Tincómio agachou-se ao lado dela, falando baixinho, e acenou na direcção de Cato enquanto lhe afastava as mãos da cabeça decepada. Ela fixou o centurião com um olhar
de ódio gelado e fanático, até se dar conta de que a cabeça do filho lhe estava a ser retirada. Com um grito, tentou recuperá-la, mas Tincómio segurou-a com uma
mão, enquanto com a outra atirava o macabro troféu ao guerreiro. O homem não conseguiu disfarçar a sua surpresa e contentamento por ter de volta a cabeça, e levantou-a
ao alto imediatamente; a multidão reagiu ao gesto com um rugido de triunfo.
A mulher tentou mais uma vez alcançar a cabeça, desesperada, mas Tincómio manteve-a pregada ao solo, e então ela virou-se de repente para ele e cuspiu-lhe na cara.
O príncipe atrébate recuou, surpreendido, e com um último gemido a mulher deixou-se cair numa bola no chão e chorou
amargamente. Cato retirou Tincómio da confusão, na direcção do outro estandarte.
- Tinha que ser feito. Não havia outra maneira. Viste como a turba reagiu.
Lentamente, Tincómio limpou o cuspo da cara, antes de responder:
- Mas era o filho dela. Tinha o direito de o honrar.
- Mesmo depois de ele ter traído o seu povo? Depois de a ter traído
a ela?
Tincómio imobilizou-se por um instante. Então assentiu, devagar.
- Bom, suponho que sim. Suponho que era necessário. Só que sen ti...
- Sei como te sentiste.
- Sabe? - Tincómio pareceu espantado por um instante, antes de a sua expressão se recompor e ele anuir. - Calculo que até os romanos compreendam a mágoa.
- Podes contar com isso. - Cato sorriu ligeiramente. - Agora pega no estandarte, e regressa para junto do centurião Macro.
Felizmente, enquanto Cato e Bedríaco furavam pelo meio da multidão para entrarem em Caleba, não ocorreram outras cenas do género. A um dos lados dos portões, Vérica
encontrava-se sobre uma carroça, rodeado pelos seus nobres e pela guarda real. Cato avistou o estandarte dos Javalis a dirigir-se hesitantemente na direcção de Vérica,
e virou-se, puxando Bedríaco até uma distância em que o caçador o conseguisse ouvir. O centurião apontou na direcção do rei dos Atrébates.
- Vem comigo!
O outro assentiu e, antes que Cato o pudesse deter, Bedríaco avançou pela turba, empurrando à bruta as pessoas, para abrir caminho para o centurião. Por momentos
Cato temeu que o ambiente se toldasse, mas os Atrébates sentiam-se demasiado felizes para se ofenderem facilmente. Já tinha sido consumida uma enorme quantidade
da "erveja local nas celebrações, e os soldados que agora regressavam davam o seu melhor para recuperar o tempo perdido, aproveitando as canecas que circulavam livremente.
Apesar dos esforços do caçador, levou bastante tempo até que Cato se juntasse a Macro e Tincómio. Depois dos encontrões no meio da tumultuosa tribo, Cato sentiu-se
aliviado quando conseguiu por fim passar por entre os escudos dos guardas reais e chegar à presença de Vérica.
- Centurião Cato! - Vérica sorriu, erguendo uma mão em saudação. - As minhas mais sinceras felicitações pela vitória.
- A vitória é vossa, senhor. Vossa, e do vosso povo. Que bem a mereceu.
- Um belo louvor, vindo de um oficial das legiões.
- Sim, senhor. Tenho a certeza de que os homens continuarão a justificar o vosso orgulho neles.
- Claro. Mas por agora devemos deixá-los celebrar. - Vérica virou-se para Macro. - Depois de repousarem, gostaria de ouvir toda a história. Por favor, considerem-se
meus convidados para o salão real, esta noite.
Macro inclinou a cabeça.
- Será uma honra, senhor.
- Muito bem, até lá então.
Vérica foi auxiliado a descer da carroça. Dirigiu-se para o portão, e a sua guarda pessoal rapidamente formou um escudo em redor do rei, abrindo caminho por entre
a multidão.
- Vamos embora. - Disse Macro, depois de transmitir as ordens para que as coortes se apresentassem no depósito na manhã seguinte. - Temos que meter este comboio
no depósito antes que esta gente perceba o que está no meio deles e resolva ficar com os abastecimentos.
Depois de Macro e Cato terem escoltado as carroças dos abastecimentos para o interior de Caleba, tornou-se rapidamente evidente que muitos dos Atrébates não estavam
com disposição para festejos. Pequenos grupos de homens juntaram-se nas imediações de algumas das cabanas, olhando em silêncio enquanto as carroças percorriam as
irregulares ruas da cidade, a caminho do depósito. Só as crianças pareciam imunes à tensa divisão de simpatias que se sentia em Caleba, e corriam alegres em redor
dos vagões, rindo e trocando palavras com os condutores. Tinha-se espalhado um rumor de que parte dos abastecimentos seria distribuída entre a população, e até as
crianças esperavam ter a oportunidade de encher os estômagos.
Ao avistarem Macro e Cato, as crianças correram na direcção dos centuriões que tinham derrotado os Durotriges, e aglomeraram-se à volta deles, palrando incessantemente
na sua língua cantada.
- Está bem! Está bem! - Macro sorriu ao mostrar as mãos vazias.
- Estão a ver? Não tenho nada para vocês. Nada!
A cerrada expressão de Cato tinha afastado todas menos as mais descaradas das crianças; ele enfrentou-as com má cara, até que todas perceberam a mensagem e se viraram
também para Macro.
- Porquê essa cara de enterro? Ei, Cato!
Cato olhou para o amigo.
- De enterro?
- Parece que acabaste de perder uma batalha, não de a vencer! Vá lá, miúdo. Junta-te às comemorações.
- Mais tarde.
- Mais tarde? Porque não agora?
- Senhor. - Cato assinalou as crianças.
Um dos miúdos, mais atrevido, remexia no fecho de um dos medalhões de prata que Macro usava na armadura.
- Oh, meu sacaninha! - Macro deu uma forte palmada na orelha do miúdo. - O que é que julgas que estás a fazer, espertinho? Vocês todos! Já se divertiram o suficiente,
agora ponham-se a andar!
Afastou-os com gestos largos, como se os varresse; alguns foram atingidos, e foram ter ao chão, no meio de um coro de gritos e guinchos. Os outros mantiveram-se
fora do alcance do centurião, e riram quando ele lhes fez uma cara de ameaça.
- Grrrr! Raspem-se, antes que o papão romano vos apanhe para o jantar.
As crianças continuaram a segui-los, mas o cansaço de Macro depressa levou a melhor sobre a sua boa disposição; virou-se e desembainhou a espada. Ao avistarem a
lâmina reluzente, as crianças Atrébates fugiram aos gritos pelos estreitos becos entre as cabanas.
- Assim é melhor. - Macro meneou a cabeça, satisfeito. - Mas os pestinhas são difíceis de convencer.
- A culpa é dos pais. - Cato sorriu sem vontade. - À velocidade a que a campanha avança, não ficarei surpreendido se aqueles miúdos tiverem idade suficiente para
lutar contra os Durotriges antes de nos irmos embora. Ou para lutar connosco.
Macro parou e encarou o outro centurião.
- Estás mesmo com uma disposição de merda, não estás?
Cato encolheu os ombros.
- Só estou a pensar. É tudo. Ignore-me.
- A pensar? - Macro arqueou as sobrancelhas, depois abanou a cabeça tristemente. - Como sempre, rapaz, há um tempo e um lugar próprios para isso. Devíamos estar
a celebrar como os nossos rapazes. E tu em especial.
Foi a vez de Cato arregalar os olhos.
- Eu?
- Demonstraste que aqueles charlatães estavam enganados. Há poucas semanas todos queriam passar-te à disponibilidade por razões médicas. Se te tivessem visto em
acção! Por isso, vamos mas é celebrar. Aliás, assim
que estas carroças estiverem bem seguras no interior do depósito, vamos beber um copo. Pago eu.
Cato tentou não mostrar o alarme que sentiu ao pensar nas noitadas de bebida com Macro. Ao contrário do amigo, que tinha uma constituição de ferro e rapidamente
recuperava fosse qual fosse a quantidade de bebida ingerida, a cerveja e o vinho depressa subiam à cabeça de Cato, e as terríveis consequências faziam-se sentir
ao longo de vários dias. Por muito que lhe agradasse ter provado que os médicos estavam errados, havia outros assuntos que exigiam a sua atenção.
- Senhor, temos que redigir um relatório para o legado, e para o general, e depressa. E depois, fomos convidados por Vérica para a festa desta noite.
- Que se lixe o Vérica. Vamos mas é apanhar uma bebedeira.
- Não podemos fazer isso. - Continuou Cato pacientemente. - Não podemos correr o risco de ofender o rei. As ordens de Vespasiano foram muito claras nesse ponto.
- Ordens de merda.
Cato assentiu, concordando, mas depois tentou mudar de assunto.
- E temos que avaliar a forma como os homens se portaram na travessia do rio.
- Avaliar o quê? Demos uma boa carga de porrada nos Durotriges.
- Desta vez, sim. Da próxima vez que os enfrentarmos podemos não ter a vantagem da surpresa.
- Os rapazes portaram-se bem. - Protestou Macro. - Atiraram-se ao inimigo como verdadeiros soldados. Bom, talvez nem tanto - nunca se poderão comparar às legiões.
- Precisamente. E é isso que me preocupa. Estão muito convencidos. E isso pode ser muito perigoso. Precisam de mais treino.
- Claro que precisam! - Macro deu-lhe uma palmada nas costas.
- E nós somos as pessoas indicadas para isso. Vais ver, vamos fazê-los treinar até gastarem as solas, vamos fazê-los amaldiçoar o dia em que nasceram. E hão-de acabar
por se tornar tão bons como quaisquer das tropas auxiliares que servem com as Águias. Lembra-te das minhas palavras!
- Espero que sim. - Cato forçou-se a sorrir.
- Ora é assim mesmo! E agora vamos até ao depósito, ver se encontramos um jarro de vinho... ou dois.

XIII
Assim que deixou a multidão que festejava, o rei Vérica regressou ao seu recinto privado, e convocou o seu conselho, bem como os membros da família em que podia
confiar. Esperou até que o último escravo das cozinhas deixasse a sala antes de começar a falar. A audiência estava sentada a uma comprida mesa, aguardando com enorme
expectativa o discurso do rei. Cada um dos homens tinha o seu copo, e tinham sido colocados na mesa vários jarros de vinho, para que todos se servissem à vontade.
Embora Vérica desejasse que a situação fosse avaliada por cabeças sóbrias, convinha-lhe que cada um exprimisse a sua opinião da forma mais honesta possível, e o
consumo de vinho em razoável quantidade era geralmente um bom método para soltar as línguas.
Para além do conselho de sábios, constituído pelos mais velhos e respeitados membros da aristocracia atrébate, os mais poderosos dos jovens nobres estavam representados
por Tincómio, Artax e Cadmínio, o comandante da guarda real. Vérica tinha necessidade de auscultar uma faixa de opiniões tão vasta quanto possível entre aqueles
de cuja lealdade dependia o seu reinado. Os jovens estavam excitados e não pouco admirados, por terem sido convocados para tão importante reunião.
Depois do trinco da porta se fechar, houve um momento de silêncio, antes de Vérica começar. Conhecia bem o valor do silêncio como meio de atrair a atenção. Clareou
a garganta e iniciou o discurso.
- Antes de entrarmos nas questões que justificam este encontro, exijo que façam um juramento, de que nada do que aqui for dito esta tarde será repetido fora destas
paredes. Jurem!
Os convidados colocaram as mãos sobre os punhos das respectivas adagas e fizeram um juramento colectivo num murmúrio sombrio. Um ou dois mostravam-se algo ofendidos
pela exigência.
- Muito bem, comecemos. A esta altura, já todos sabem que os nossos homens capturaram alguns Atrébates na emboscada de há dias. Muitos
de vós estiveram na recepção às coortes. Talvez tenham testemunhado aquela cena infeliz com a mulher que descobriu a cabeça do filho entre os troféus de um guerreiro.
Cadmínio sorriu ao lembrar-se, e um júbilo cruel perante a macabra descoberta da mulher fez com que alguns soltassem uns risos. A face de Vérica não mostrou qualquer
expressão, excepto os olhos, que se arregalaram ao de leve, mostrando algum choque e ira perante as gargalhadas. Quando estas cessaram, ele inclinou-se ligeiramente
para a frente.
- Senhores, não há nada nesta situação que vos deva divertir. Não há lugar a festejos quando o nosso povo se divide por dois exércitos inimigos.
- Mas, sire - protestou um velho guerreiro -, o homem era um traidor. Todos eles nos traíram. Mereceram o destino que encontraram, e aquela mulher não se devia ter
coberto de vergonha ao lamentar um filho que se tinha virado contra o seu próprio povo, contra o seu próprio rei.
Houve um rumor de aprovação a estas palavras, mas Vérica levantou a mão para o calar.
- Concordo, Mendaco. Mas, e o povo lá fora? As gentes de Caleba, e das terras para lá dos baluartes? Quantos de entre eles concordam connosco? Nem todos, com certeza.
Como seria isso possível, se tantos lutam agora ao lado de Carátaco? Lutam contra nós, e contra os nossos aliados Romanos. Responde-me a isso!
- Esses homens são loucos, sire. - Retorquiu Mendaco. - Impulsivos. Jovens impressionáveis que são facilmente levados a atitudes impensadas...
- Loucos? - Vérica abanou a cabeça com tristeza. - Não, não o são. Insensatos não, pelo menos. Não é fácil para ninguém virar as costas ao seu próprio povo. Eu sei-o
bem.
O rei levantou o olhar e avaliou os rostos ao redor da mesa. A sua vergonha reflectia-se nas expressões que encontrou. Fugira para salvar a vida quando Carátaco
avançara sobre Caleba, anos atrás. Escapara pela noite, como um cobarde, e lançara-se aos pés dos Romanos, pedindo auxílio. Estes tinham compreendido que o ancião
poderia vir ainda a desempenhar um papel nos desígnios do Império, e tinham-lhe dado abrigo e cuidado dele. Mas a hospitalidade tinha um preço. Quando o tempo chegou
ele foi cobrado, e o secretário do imperador, Narciso, tornou bastante claro que Roma lhe exigia obediência eterna em troca do regresso ao trono. Menos do que isso
não seria aceite. E Vérica concordara prontamente, tal como Narciso e ele mesmo sabiam que faria. E quando as legiões aportaram na Britânia, Vérica acompanhou-as.
O reino tinha-lhe sido devolvido pelas pontas das espadas romanas, e os que se tinham mantido fiéis aos soberanos Catuvelaunos fugiram para o exílio, ou resistiram,
e morreram.
A maior parte dos homens que se sentavam àquela mesa tinham compreendido rapidamente que era impossível resistir ao avanço do poderio das legiões. Tinham-se apresentado
para receber Vérica quando quatro coortes de legionários o tinham escoltado na entrada em Caleba, percorrendo as ruas tortuosas e tomando posse do recinto real.
Um ano antes, denunciavam Vérica como um cobarde e um fantoche de Roma. Agora, tinham engolido o orgulho e os princípios, e tinham-se tornado eles os fantoches.
E sabiam-no.
Vérica recostou-se na cadeira e continuou:
- Os homens a quem chamamos traidores agem por convicção pessoal. Tem um ideal - algo, devo dizer, que é escasso ao redor desta mesa, esta noite... - Vérica desafiou-os
a enfrentarem o seu olhar e negarem a afirmação. Só Artax encarou o rei e aguentou o brilho do seu olhar. Vérica assentiu em sinal de aprovação e prosseguiu. - Esses
homens acreditam num laço que une os Celtas, para lá das divisões tribais. Crêem num ideal que merece mais lealdade que a mera obediência cega ao seu rei.
Cadmínio abanou a cabeça.
- Que maior lealdade pode haver que essa?
- A lealdade a uma raça, a uma cultura, ao sangue de que proviemos. Não será ela digna de que lutemos por ela? De que morramos por ela?
- Vérica concluiu calmamente. - E então...?
A retórica do rei encerrava um poder que tocara os corações de alguns dos homens presentes. Alguns atreveram-se mesmo a mostrar a sua concordância com um gesto da
cabeça. Mas Tincómio olhava para o tio com uma expressão calculista.
- Sire, que sugeris então?
- O que é que achas que estou a sugerir? Se é que, de facto, sugiro o que quer que seja. Queria apenas tentar explicar-vos a razão porque alguns dos membros da nossa
tribo escolheram virar-nos as costas, mergulhar as suas famílias na vergonha, e ir lutar ao lado de Carátaco. Temos que compreender as suas razões, se queremos resistir
à acção dessa ideia nas mentes de outros. A
- Teremos também que reconsiderar a nossa aliança com Roma?
- Perguntou Tincómio, sem alarido.
Ouviu-se uma inspiração comum de espanto, quando os outros nobres avaliaram a aparente candura da questão posta por Tincómio. O rei Vérica encarou-o, e pouco a pouco
um sorriso aflorou-lhe os lábios.
- Porquê? - Perguntou ao seu familiar. - Porque estaria eu disposto a reconsiderar?
- Não afirmo que o desejes, apenas sugiro que devemos considerar todas as escolhas possíveis. É tudo... - A voz de Tincómio foi-se tornando
mais sumida, quando reparou que todos os outros o encaravam com atenção.
- Para continuar a discussão - Vérica falou em tom neutro -, quais são as escolhas que pensam que temos? Gostaria que todos os aqui presentes dessem a sua contribuição.
Temos que avaliar todas as posições possíveis de forma aberta, mesmo que por fim as rejeitemos. Portanto, Tincómio, que escolhas temos, na tua... humilde opinião?
O jovem percebeu que se tinha deixado apanhar numa armadilha, e tentou não mostrar ressentimento quando falou, depois de uma curta pausa para ordenar os pensamentos.
- Sire, é óbvio que a escolha fundamental é entre Carátaco e Roma. A neutralidade é impossível.
- Porquê?
- Talvez Carátaco respeitasse a nossa neutralidade, não lhe custaria nada e seria um contratempo para as operações romanas. Mas Roma nunca a aceitaria, já que as
nossas terras estão mesmo no caminho das linhas de abastecimento das legiões. Temos portanto que escolher um lado, sire.
Vérica anuiu.
- E de facto escolhemos. A questão, meus senhores, é: será que escolhemos o lado certo? Será que Roma vai triunfar nesta guerra?
Os nobres reflectiram por momentos, e então Mendaco chegou-se à frente, apoiado nos cotovelos, e clareou a garganta.
- Sire, sabeis que já vi as legiões em combate. Estive em Mead Way no Verão passado, quando Carátaco foi esmagado. As legiões são imbatíveis.
Vérica sorriu. Mendaco tinha lá estado, de facto - a combater ao lado de Carátaco, tal como outros dos presentes. Vérica também lá estivera, mas do outro lado do
rio, com Tincómio. Tudo isso agora pertencia ao passado. Depois de restaurado o seu trono, e sob ordens de Narciso, Vérica tinha mostrado clemência e recebido os
nobres rebeldes de novo na sua corte. Tinha duvidado da sabedoria desse gesto, mas Narciso tinha-se mostrado inflexível. O secretário imperial tencionava mostrar
uma imagem clara da magnanimidade de Roma. Portanto Vérica tinha devolvido as terras aos nobres, e tinha-lhes concedido o perdão. Olhou em volta da mesa, e depois
voltou a encarar Mendaco.
- Imbatíveis, dizes?
- Ninguém é imbatível! - Artax rosnou o seu desprezo. - Nem os vossos Romanos.
- Os Vossos romanos? - Repetiu Mendaco, e ergueu o sobrolho.
- Depois de te teres recentemente colocado ao serviço dos nossos dois centuriões romanos, suporia que tinhas melhor noção do teu lugar.
- O que dizes, velho? De que me acusas? Sirvo o rei, e nenhum outro homem. Desafio-te a afirmar outra coisa.
- Apenas me interroguei sobre a eficiência do vosso treino.
- Continuou Mendaco, suavemente. - Até que ponto tinhas sido... Romanizado.
Artax deu um murro na mesa, derrubando alguns dos cálices.
- Lá para fora! Agora mesmo, velho sacana! Tu e eu! Vamos resolver esta questão.
- Paz! Senhores, por favor... por favor. - Interrompeu Vérica, em tom fatigado. As divisões entre a nobreza atrébate tinham sido grandemente acentuadas pelos acontecimentos
dos últimos anos, e agora havia demasiadas histórias sujas, que podiam ser atiradas de uns a outros sem interrupção. Mais do que nunca, eram clareza de raciocínio
e sentido de propósito que eram necessários. Vérica encarou Artax até que este se acalmou, e se deixou cair na cadeira com uma expressão enfadada. Só então o rei
prosseguiu.
- A razão deste encontro é encontrar forma de que o nosso povo possa viver em paz, ou pelo menos na paz possível. Sei bem que há entre nós diferenças de opinião.
Deixem-nas de lado. Afastem das mentes as injustiças e as afrontas passadas. Concentrem-se na situação presente. Se puder oferecer-vos um resumo...
- Para já, servimos Roma, e Roma parece estar em condições de triunfar. Mas, tal como sublinhou Artax, isso não quer dizer que, no fim de tudo, Roma triunfe de facto.
Já foram derrotados no passado, e voltarão a sê-lo, sem dúvida. Se Carátaco conseguir tal proeza, quais serão as consequências para nós? Duvido que possamos esperar
clemência da parte dos Catuvelaunos. Se os romanos estiverem à beira da derrota, ou se forem forçados a retirar, então poderemos abandonar a nossa aliança com eles
e juntarmo-nos a Carátaco. Estamos na posição perfeita para aplicar aos romanos um golpe fatal na retaguarda. E isso colocar-nos-ia em boa posição para a posterior
divisão dos despojos entre as tribos. Evidentemente, há a possibilidade de mudarmos de lado e ainda assim os romanos triunfarem. Nesse caso, a nação atrébate estaria
arruinada. Roma não teria qualquer piedade. Disso estou certo. - Vérica baixou a voz para dar ênfase às suas últimas palavras. - Todos os que aqui estão seriam capturados
e executados. As nossas famílias veriam as suas terras confiscadas, e seriam reduzidas à escravatura. Pensem nisso... Portanto, o que devemos fazer?
- Haveis dado a vossa palavra a Roma. - Disse Artax. - Um juramento, um tratado. Sire, não é isso que conta?
Tincómio abanou a cabeça.
- Não. O que interessa é o resultado da luta entre Carátaco e Roma. Isso é que importa.
- Sábias palavras, meu filho. - Assentiu Vérica. - Portanto, quem vencerá?
- Roma. - Concluiu Mendaco. - Aposto nisso a minha vida.
- Já o fizeste. - Tincómio sorriu. - Mas diria que as possibilidades estão a alterar-se lentamente.
- Dirias? - Mendaco cruzou os braços, e sorriu em resposta. - E com que base afirmarias tal coisa? Na tua vasta experiência em assuntos militares? Diz-nos, por favor.
Seremos com certeza ouvintes atentos.
Tincómio recusou-se a morder o isco.
- Não temos muito que procurar para ver os sinais. Porque estaria Roma disposta a treinar e armar as nossas duas coortes se não estivesse com falta de homens? Estão
demasiado dispersos. As linhas de abastecimento nunca estiveram tão vulneráveis, e Carátaco mostrou que é capaz de enviar grupos para trás das linhas romanas, com
quase total impunidade.
- Pensei que tinham aniquilado uma dessas colunas há uns dias
atrás?
- Sim, derrotámos uma coluna. Quantas mais existem? Quantas mais tem Carátaco capacidade para enviar? As sortidas são cada vez mais frequentes. Por muito poderosas
que sejam em combate, a força das legiões depende dos abastecimentos. Destruam-nos, e o general Pláucio e o seu exército ficarão sem armas e sem provisões. Serão
forçados a retirar até à costa, sob ataques constantes. Sangrarão até à morte.
Mendaco soltou uma gargalhada.
- Se é assim tão óbvio que os romanos serão derrotados, então porquê lutar ao seu lado?
- São nossos aliados. - Explicou Tincómio com simplicidade. - Como afirmou Artax, o nosso rei fez um juramento, e devemos honrá-lo. A não ser que, ou até que o rei
mude de opinião...
Todos olharam dissimuladamente para o rei, mas Vérica tinha o olhar perdido num ponto acima das suas cabeças, na estrutura das vigas de madeira que suportavam o
telhado. Parecia não ter escutado o último comentário, e instalou-se um silêncio penoso, interrompido pelo som de pés arrastados e tosses oportunas, enquanto os
nobres esperavam pela resposta real. Mas Vérica acabou por se limitar a mudar de assunto.
- Há outro tema que devemos analisar. Seja qual for a minha decisão sobre a aliança com Roma, temos que considerar qual vai ser a resposta dos outros nobres, e do
povo.
- O vosso povo fará a vossa vontade, sire. - Afirmou Mendaco.
- É esse o seu dever.

Uma expressão de divertimento passou pela face enrugada de Vérica.
- Esse teu desejo de me agradar é um bocado recente, não concordas?
Mendaco corou, embaraçado, e mal disfarçou a ira.
- Falo agora como um dos vossos mais leais servos, sire. Tendes a minha palavra.
- Ah, pronto, está tudo certo. - Murmurou Artax.
- Exactamente. - Assentiu Vérica. - Com toda a deferência à tua palavra, Mendaco, sei bem que muitos dos nossos melhores guerreiros vêem a aliança com Roma como
algo de desprezível, e que a opinião nas ruas de Caleba é a mesma. Estou velho. Não estou senil. Sei o que dizem as pessoas. Sei que há nobres que conspiram, neste
momento, para me derrubar. Estranho seria que eles não existissem, e temo que seja apenas uma questão de tempo até que ponham os seus planos em movimento. Quem sabe
quantos dos nossos guerreiros os seguiriam? Mas, se me unir a Carátaco, estará a minha posição mais segura? Duvido muito...
Mendaco fez menção de falar, mas Vérica ergueu as mãos para o impedir.
- Não. Não digas nem mais uma palavra sobre a lealdade dos meus súbditos.
Mendaco abriu a boca, mas depois o bom senso ganhou a batalha ao descaramento, e ele encerrou-a com tanta dignidade quanta conseguiu reunir, e arqueou os ombros
num gesto de resignação, enquanto o rei prosseguia.
- Penso que o caminho a seguir se me tornou mais claro esta noite, meus senhores. Os melhores interesses do nosso povo serão mais bem servidos se mantivermos a nossa
aliança com Roma, admito. Portanto, para já, continuaremos a desempenhar o nosso papel no auxílio ao Imperador e às suas legiões.
- E quanto aos que se opõem à aliança, sire? - Inquiriu Tincómio.
- Chegou o momento de lhes mostrar quanto custa desafiar as minhas decisões.
- Porquê atacá-los, sire? São seguramente uma pequena minoria. Tão pequena que nos podemos permitir ignorá-los.
- A oposição a um rei nunca é demasiado pequena para ser ignorada! - Ripostou Vérica. - Já aprendi essa lição às minhas próprias custas. Não, tomei uma decisão,
e não tolerarei nenhuma oposição. Da última vez, ofereci aos meus adversários a paz, em termos aceitáveis. Se permitir que a oposição floresça, por pouco que seja,
parecerei apenas fraco, e não misericordioso. Tenho que mostrar ao general Pláucio que os Atrébates são

completamente leais a Roma. E tenho que mostrar ao meu povo qual será a sua sorte se se atrever a desafiar-me.
- Como o fareis, sire? - Perguntou Tincómio. - Como alcançareis esse objectivo?
- Esta noite, depois do banquete, haverá uma pequena demonstração. Tenho uma ideia. Quando terminar, asseguro-vos que só um homem de facto muito corajoso se atreverá
a colocar em causa a minha pessoa e a minha autoridade.

XIV
- Que é que achas?
- Ainda não acabei. - Murmurou Cato, mal afastando os olhos do rascunho do relatório que Macro tinha ditado. O escrivão tinha evidentemente passado um mau bocado,
a julgar pelo número de frases riscadas e outras correcções. Cato desejou que Macro não tivesse bebido tanto antes de começar a elaborar o relatório que seria enviado
a Vespasiano, com cópia para o general. Agora que o sol se punha, e que se encontravam sentados à mesa do gabinete de Macro, sob o fraco brilho das lamparinas a
óleo, os efeitos do vinho pareciam estar a diminuir. O suficiente, pelo menos, para se debruçarem sobre os relatórios. Macro tinha sido breve, quase lacónico, na
descrição que fizera da emboscada, mas os factos importantes estavam claramente mencionados, e os dois oficiais superiores que iam ler o relatório deveriam ficar
satisfeitos, decidiu Cato. Apenas a parte final do relatório lhe levantava algumas questões.
- Não tenho a certeza sobre esta parte.
- Qual parte?
- Aqui, onde descreve a situação em Caleba.
- O que é que está mal?
- Bem... - Cato pensou durante um momento. - Acho que a situação é um bocado mais complicada do que o que é dado a entender no relatório.
- Complicada? - A face de Macro franziu-se. - O que é que há de complicado? A população está lá fora a festejar, e Vérica banha-se na glória que as suas tropas,
sob o nosso comando, conquistaram. Tudo corre pelo melhor. Os nossos aliados estão felizes, demos uma boa sova no inimigo, e tudo isso não custou nem uma vida romana.
Cato abanou a cabeça.
- Não me parece que possamos contar com a felicidade de muitos dos Atrébates, a acreditar naquilo que vi hoje.
- Alguns tipos descontentes, e a velha bruxa de que me falaste? É pouco para acreditar numa ameaça séria de revolta, parece-me.
- Pois - admitiu Cato -, mas não queremos dar uma impressão errada a Pláucio.
- E também não queremos chatear o general com histórias de gente descontente, quando ele está concentrado no avanço das legiões contra Carátaco. Cato, meu velho,
a melhor maneira de singrar neste exército é errar sempre pelo lado do optimismo.
- Preferia errar do lado do realismo. - Respondeu Cato com alguma brusquidão.
- É contigo. - Macro encolheu os ombros. - Mas não contes com mais promoções. Agora, se não há mais nada que aches que eu deva mudar, vamos mas é aperaltar-nos e
juntarmo-nos aos festejos.
O recinto real estava fortemente iluminado, com tochas a arder a toda a volta. Todos os nobres, todos os guerreiros com algum renome, e os mais respeitáveis dos
mercadores e negociantes estrangeiros, tinham sido convidados para a festa de Vérica. Ao passear o olhar pela multidão que atravessava o terreiro a caminho do grande
salão, Cato sentiu-se como um maltrapilho. Macro e ele usavam as suas melhores túnicas mas, apesar de estarem impecáveis, o material de que eram feitas não se podia
comparar com os extravagantes padrões que os Celtas apresentavam, ou com os finos tecidos que adornavam os mercadores e as suas esposas. A única concessão ao luxo
que era permitida aos centuriões pelo traje militar que envergavam, eram a pulseira e o colar que Macro usava. Este último era uma bela peça. Como era de esperar,
já que tinha sido propriedade de Togoduno, irmão de Carátaco, morto por Macro há quase um ano, em combate singular; o colar já atraia olhares de admiração dos outros
convidados de Vérica. Pela sua parte, Cato apenas possuía um conjunto de medalhões, e tentava consolar-se com o pensamento de que o carácter de um homem valia mais
do que quaisquer bugigangas que pudesse comprar para se exibir.
- Vai ser uma noite e peras. - Disse Macro. - Acho que está aqui metade da população de Caleba.
- Só a metade que tem dinheiro, parece-me.
- E nós. - Macro piscou o olho. - Não te preocupes, miúdo, ainda não encontrei um centurião que não se tenha safado bem numa campanha.
- a razão principal para Roma entrar em guerra - manter as legiões felizes com os saques que conseguem.
- E distraídas de ambições políticas.
- Se tu o dizes. Pessoalmente, estou-me a cagar para a política. Isso ,é o passatempo tradicional dos teus queridos aristocratas, não é para nós, ralé. Tudo o que
eu quero é arranjar o suficiente para comprar uma pequena quinta na Campânia para quando me reformar, e com o que sobrar tenciono passar os meus últimos anos num
estado de torpor alcoólico permanente.
- Então boa sorte.
- Obrigado. Espero poder praticar mais um bocadito esta noite.
À entrada do grande salão foram saudados por Tincómio. O príncipe atrébate tinha-se libertado da túnica militar e vestia uma túnica nativa com um elegante padrão,
por cima das calças e botas. Sorriu à laia de cumprimento e indicou-lhes que entrassem.
- Acompanhas-nos numa bebida? - perguntou Macro.
- Talvez mais tarde, senhor. Neste momento, estou de guarda.
- O quê? Não tens uma folga como nós, para celebrar?
- Está bem. - Tincómio riu. - Quando cá estiverem todos. Até lá, lamento, mas vou ter que vos revistar.
- Revistar?
- A todos, senhor. Desculpe, mas o Cadmínio foi muito firme nesse ponto.
- Cadmínio? - Cato ergueu uma sobrancelha. - Quem é? Não reconheço o nome.
- É o comandante da guarda real. Vérica nomeou-o enquanto estávamos fora.
- O que aconteceu ao anterior?
- Parece que morreu num acidente. Embebedou-se, caiu do cavalo, e esmagou o crânio.
- Uma tragédia. - Murmurou Cato.
- Sim, suponho que sim. Agora, senhor, se me permite...
Tincómio revistou-os aos dois com rapidez, e depois deu um respeitoso passo ao lado enquanto eles entravam no grande salão do rei Vérica. O fresco ar da noite que
imperava no exterior foi substituído por uma atmosfera quente e abafada. Fogueiras elevadas ardiam nas extremidades do salão, enchendo-o com um brilho alaranjado
e ondulante que projectava estranhas sombras contra as paredes, fazendo com que parecesse que todos os convidados participavam numa dança lenta e sinuosa. Mesas
longas tinham sido colocadas em três dos lados do salão e eram ladeadas por bancos corridos. Apenas a Vérica era permitida uma posição de relaxe, e ele sentava-se
num trono de madeira finamente esculpida no topo do salão, perto de um dos fogos. De ambos os lados, membros da guarda real mantinham-se atentos e de armas a postos.
- O nosso caro Vérica não parece querer correr quaisquer riscos.
- Macro teve que elevar a voz para se fazer ouvir acima da conversa ruidosa e das gargalhadas alcoolizadas dos convidados nativos.
- Não o censuro. - respondeu Cato. - Está velho e nervoso, e provavelmente quer morrer em paz na cama, suponho.
Macro, ocupado a procurar com os olhos qualquer coisa que se bebesse, nem o ouviu.
- Oh, merda!
- Que se passa?
- Só há daquela cerveja merdosa. Malditos bárbaros.
De repente, Cato apercebeu-se de uma presença volumosa junto ao ombro, e virou-se rapidamente. Um guerreiro gigantesco, de cabelo louro comprido e uma face larga,
olhava com curiosidade para os dois Romanos. Tinha olhos estreitos que faiscavam, reflectindo a luz das fogueiras.
- Posso ajudá-lo?
- Vocês romanos? - O sotaque era espesso, mas compreensível.
- Romanos chefes dos homens do rei?
- Somos nós. - Macro exultava. - Centuriões Lúcio Cornélio Macro e Quinto Licínio Cato, ao seu serviço.
O bretão fez uma careta.
- Lucélio...
- Esquece, pá. Vamos ficar por qualquer coisa simples - Macro e Cato servem muito bem por agora.
- Ah! São os nomes que eu quero. Venham.
Sem esperar pela resposta ao brusco convite, o Bretão virou-se e dirigiu-se ao trono onde o rei se sentava, cálice na mão, apreciando a cena enquanto mordiscava
um pernil de borrego assado. Quando avistou Cato e Macro atirou-o para o lado, e aprumou-se notrono, sorrindo. Um grupo de grandes cães de caça saltou sobre o pernil
meio comido, e lutou pela sua posse.
- Cá estão! - Vérica saudou os soldados que se aproximavam. - Os meus convidados de honra.
- Sire. - Cato inclinou a cabeça. - Honrais-nos em demasia.
- Disparate. Tinha receio de que estivessem demasiado ocupados com a vossa papelada e que não se pudessem juntar a nós. Sei bem, graças aos meus longos anos no exílio,
que vocês, Romanos, são doidos porrelatórios. - Vérica sorriu. - Mas o Cadmínio encontrou-vos. São bem-vindos. Há dois lugares reservados para vocês na mesa de honra,
para quando a comida for servida. Se chegar a ser servida. - Virou-se para Cadmínio e fez alguns comentários incisivos, que magoaram de forma evidente o comandante
da guarda real. A pedido do seu senhor, dirigiu-se apressadamente
a uma diminuta porta nas traseiras do salão. Através da pequena abertura, Macro avistou corpos em tronco nu, brilhando enquanto se debruçavam sobre leitões que
assavam lentamente sobre fogueiras de cozinha. A boca do centurião encheu-se de água perante a perspectiva de se deliciar com um apetitoso porco assado, depois de
dias de rações de campanha.
- Diga-me, centurião Macro, quais são agora os vossos planos para as minhas coortes? - Perguntou Vérica.
- Planos? - Macro franziu o sobrolho. - Suponho que continuaremos o treino. Ainda estão, ah, ainda estão um bocado verdes.
- Verdes? - Vérica pareceu ter ficado pouco agradado.
- Nada que um pouco de treino duro não resolva. - Apressou-se Macro a continuar. - Não é verdade, Cato?
- Sim, senhor. O treino nunca é demais para um homem.
Macro lançou-lhe um olhar de aviso; não era altura para ironias.
- Os soldados precisam sempre de treino. Mantém-nos em forma e prontos para enfrentar o inimigo em qualquer ocasião. Verá o resultado muito em breve, senhor.
- Centurião, quero soldados - não fiscais. Preciso de soldados por um simples motivo: para liquidar os meus inimigos... onde quer que eles estejam. - Com um quase
imperceptível movimento da mão esguia, Vérica indicou as figuras que enchiam o grande salão.
Cato sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha ao escutar as palavras do rei. Perscrutou rapidamente as faces mais próximas por entre os convidados, tentando adivinhar
em quantos deles se escondiam propósitos traiçoeiros. Vérica reparou na alteração do semblante do jovem centurião, e riu com suavidade.
- Calma, centurião! Não devo correr perigo, pelo menos esta noite, graças à vossa vitória sobre os Durotriges e os seus aliados. Temos que aproveitar esta pausa
enquanto ela durar. Só queria saber que planos têm vocês os dois para uma campanha contra os Durotriges.
- Campanha? - Macro espantou-se. - Não há nenhuma campanha, sire. A emboscada foi uma coisa isolada, uma oportunidade feliz que agarrámos e aproveitámos ao máximo.
E é tudo. As coortes, as vossas coortes, foram criadas apenas para proteger Caleba e os comboios de abastecimentos, sire.
- Porém, já demonstraram o seu valor em combate. Porque não aproveitar a oportunidade? Porque não usá-las para atacar o inimigo? Porquê?
- Sire, não é assim tão simples.
- Simples? - O sorriso de Vérica desapareceu abruptamente.
Cato engoliu em seco e intercedeu antes que Macro ficasse numa posição ainda mais difícil.
- O que o centurião Macro quer dizer é que as coortes precisam de mais treino para se prepararem para um papel mais exigente. Esta vitória foi apenas a primeira
de muitas, e da próxima vez que os Lobos e os Javalis marcharem para a batalha, asseguro-vos, sire, que esmagarão os vossos inimigos e farão crescer a vossa glória.
Macro olhou para ele de boca aberta, mas Vérica tinha voltado a sorrir, e parecia satisfeito com as perspectivas que o jovem centurião lhe oferecera.
- Muito bem então, senhores! Mais tarde farei com certeza um brinde à continuação do sucesso desta parceria entre o meu povo e Roma. Mas eis que Cadmínio regressa.
A comida deve estar pronta - será melhor que assim seja. Far-me-ão o favor de ocuparem os vossos lugares ali na mesa. Juntar-me-ei a vós dentro em pouco.
Os dois centuriões inclinaram as cabeças e dirigiram-se à mesa que lhes tinha sido indicada.
- Que porra foi aquele discurso? - Sibilou Macro. - No que diabo andas tu a pensar? Aquelas duas coortes são apenas para guarnecer a cidade e proteger os comboios.
E é todo o trabalho que têm. Não lhe vão conquistar nenhum império, nem sequer uma batalha em condições conseguirão vencer.
- Claro que não. - Retorquiu Cato - Toma-me por um completo imbecil?
- Mas disseste...
- Disse o que ele queria ouvir, é tudo. Mudará de opinião em pouco tempo, assim que o seu povo começar a resmungar outra vez. Nessa altura, quererá as coortes tão
próximas quanto possível.
Macro encarou o seu jovem companheiro.
- Espero que tenhas razão. Espero que não tenhas semeado ideias estúpidas naquela cabecinha real.
Cato sorriu.
- Quem, no seu perfeito juízo, aceitaria conselhos de alguém tão jovem que dificilmente pode ser considerado um homem feito?
- Quem, de facto? - resmungou Macro.
Os escravos da cozinha surgiram finalmente com a comida, esforçando-se sob o peso dos leitões reluzentes nos seus espetos. Os ombros de Cadmínio mostravam claramente
o alívio que sentia, agora que o seu soberano tinha deixado de bater o pé e olhava gulosamente o naco de carne fumegante que estava a ser trinchado, e que se lhe
destinava. Vérica tinha abandonado o trono e deitara-se numa poltrona ao estilo romano, sobranceira ao salão, com os seus mais distintos convidados dispostos pelos
outros três lados. A mesa de honra situava-se numa plataforma elevada, de forma a que o rei e o seu grupo tivessem a melhor visão dos divertimentos. A Macro e Cato
tinham sido dados os lugares de honra, à direita de Vérica; os outros lugares eram ocupados por nobres atrébates, e por um rotundo mercador grego, cujo cabelo se
mostrava fortemente oleado e perfumado. Junto a Cato estavam Artax e Cadmínio. Os olhos de Cato encontraram-se brevemente com os do primeiro, e o romano viu neles
a mesma arrogância que Artax mostrara quando do primeiro encontro entre eles, no depósito. Tincómio, terminados os seus deveres na entrada, tinha-se juntado ao grupo,
e sentava-se também na proximidade dos dois centuriões.
Cato deu-lhe um toque enquanto esperavam que Vérica começasse a comer.
- Alguma ideia sobre o espectáculo que nos vai ser oferecido depois do banquete?
- Nenhuma. O velho manteve o segredo bem guardado. Penso que o Cadmínio sabe alguma coisa. Por isso é que tem estado tão nervoso a tarde toda - quer que a grande
surpresa seja deliciosa para a audiência.
- Duvido que resista até lá se tiver que esperar pela comida mais um minuto...
Havia uma tensão palpável no salão enquanto os convidados esperavam em silêncio que o rei desse a primeira dentada. Só depois é que eles poderiam lançar-se sobre
a comida empilhada nos seus pratos. Com graça
teatral, o idoso rei levou uma lasca de carne de porco aos lábios, e mordiscou-a. Por trás dele, um dos guardas ergueu o estandarte real, fez uma pausa, e deixou-o
escorregar até ao chão, produzindo um efeito sonoro quando bateu no pavimento de lajes. Imediatamente os convidados reataram as conversas e começaram a encher as
bocas de comida e cerveja. Cato ergueu o seu copo, e inspeccionou a bebida: uma cor escura, de mel, alguma espuma na beira do copo. Sentiu-se enjoado quando o cheiro
adocicado a malte lhe encheu as narinas. Como podia aquela gente beber aquela mistela?
- Faças o que fizeres - disse-lhe Macro ao ouvido -, não apertes o nariz quando engolires. Aguenta como um homem.
Cato assentiu e preparou-se para o primeiro gole. A acidez foi uma surpresa, agradável, acabou por decidir. Talvez a cerveja Britânica tivesse futuro, no fim de
contas. Baixou a taça e atacou um naco de porco fumegante.
- É boa! - Moveu a cabeça, num aceno a Macro.
- Boa? É mesmo do caraças!
Durante algum tempo, os convidados comeram em silêncio, gratos pela comida depois de tão longa espera. Vérica, mais velho e requintado que os seus nobres, segurava
a carne de forma delicada, e mordiscava continuamente o porco com os dentes que lhe restavam. Depressa o seu apetite foi saciado e, limpando os dedos gordurosos
no comprido pelo de um dos seus cães de caça, ele ergueu a taça e olhou na direcção dos dois Romanos.
- Um brinde aos nossos amigos Romanos, ao Imperador Cláudio, à rápida derrota de todos os que forem suficientemente loucos para se oporem ao avanço de Roma.
Vérica repetiu o brinde em céltico, e as suas palavras foram repetidas pelos que se sentavam em redor da mesa - embora nem todos as dissessem com o mesmo entusiasmo
que o rei, decidiu Cato, enquanto deitava um olhar de esguelha a Artax. Seguindo o gesto do rei, levou a taça aos lábios.
- Tem que beber tudo de um trago. - Sussurrou-lhe Tincómio.
Cato assentiu, e quando todos começaram a beber a cerveja, forçou-se a começar, lutando contra o refluxo que a bebida de forte sabor provocava, e cerrando os dentes
para evitar engolir o espesso sedimento que se acumulava no fundo do copo. Limpou a espuma dos lábios com as costas da mão, e colocou o recipiente quase vazio de
novo sobre a mesa.
Vérica acenou com a cabeça em sinal de aprovação, e chamou um dos criados para que voltasse a encher os copos, antes de olhar intensamente para Macro, que se atarefava
a desfazer com os dentes um pedaço de couro.
- Senhor. - Murmurou Tincómio.
- Sim? O que foi?
- Espera-se que devolva o gesto.
- O quê? Qual gesto?
- Faça um brinde.
- Oh! - Macro cuspiu o courato que lhe ocupava a boca, e ergueu a taça. Todos olhavam para ele, expectantes, e de repente Macro não conseguiu lembrar-se de nada
apropriado para dizer. Lançou um olhar suplicante a Cato, mas o amigo entretinha-se a observar Artax, e não se apercebeu da sua aflição. Macro lambeu os lábios,
tossiu e começou hesitante. - B-bem, vamos lá então. Ao rei Vérica... aos seus nobres súbditos e... à sua interessante tribo.
À medida que Tincómio traduzia, os nativos franziam as faces, perante a estranha e desadequada escolha de palavras. Macro corou de embaraço, pouco habituado a cerimónias
sociais daquele género. Tentou prosseguir numa veia mais aceitável.
- Que possam os Atrébates continuar como fiéis aliados de Roma por muitos e longos anos. E que muito beneficiem com a rápida derrota das tribos bárbaras desta ilha.
Macro ergueu a taça, e sorriu aos outros convidados. Todos pareciam desconfortáveis, à excepção de Vérica. Artax bebericou ostensivamente da sua taça, antes de a
pousar e dedicar a atenção à carne que tinha no prato.
Enquanto os convivas desviavam a vista, Cato murmurou:
- Isso podia ter saído melhor.
- Pois, para a próxima falas tu.
O mercador grego colocou delicadamente a sua taça na mesa, e encetou uma conversa amável com o seu vizinho, distraindo-o do silêncio tenso que se instalara. Vérica
mordiscava uns bolos delicados, e agitou um dedo para chamar a atenção de Macro.
- Um brinde interessante, centurião.
- Sire, não pretendi ofender-vos. Para dizer a verdade, nunca me tinha sido atribuída uma tal tarefa - pelo menos, nunca em face de um rei. Quis apenas celebrar
a aliança que nos une, e olhar para o futuro... foi isso, sire.
- Foi evidente. - Replicou Vérica, com naturalidade. - Não me senti ofendido. Pelo menos eu não, embora nada possa dizer em relação a alguns membros mais exaltados
da minha família. - Indicou Artax, com uma gargalhada. - E aqui o jovem Tincómio - enquanto estive exilado,
o pai dele foi tudo menos um amigo de Roma. Levou-lhe algum tempo a perceber que o pai trilhava um caminho errado. Mas olhem para ele agora.

Cato avistou um leve rubor a passar pela face do jovem príncipe, antes que este respondesse, em latim:
- Eu era então mais jovem, sire, e mais fácil de enganar. Desde que travei conhecimento com o modo de vida romano, e depois das lutas que travei ao seu lado, aprendi
a respeitá-los e a dar valor àquilo que podem oferecer aos Atrébates.
- E o que têm eles para oferecer aos atrébates? - Interrompeu o mercador grego. - Gostaria de ouvir a vossa opinião. De a escutar em primeira-mão, se me entendem.
- Suponho que um grego deveria saber a resposta.
O mercador sorriu a Tincómio.
- Desculpai-me, mas vivemos debaixo do domínio romano há tempo demais para que possamos recordar como era a vida antes. E, já que estou a investir uma fortuna no
desenvolvimento de ligações comerciais com a nova província, gostaria apenas de perceber qual é a visão que os nativos têm da situação. Se não se importar, jovem
príncipe?
Tincómio olhou ao redor da mesa com evidente desconforto, enfrentando brevemente o olhar curioso de Macro.
- Diz-nos, Tincómio. - Encorajou-o Vérica, suavemente.
- Sire, tal como vós, vivi muito tempo na Gália, e vi as mesmas coisas: as grandes cidades com todas as suas maravilhas. E haveis-me contado sobre a interminável
rede de rotas comerciais que unem o império, das riquezas que por elas passam e chegam aos limites do mundo. E, sobretudo, falaste-me da ordem. Uma ordem que não
tolera conflitos, que obriga os seus súbditos a viverem em paz com os vizinhos ou a enfrentarem consequências terríveis. E é por isso que Roma tem que prevalecer.
Macro avaliou cuidadosamente o orador. O homem parecia sincero. Mas, com aqueles bretões, nunca se podia estar seguro, reflectiu, enquanto despejava outra caneca
de cerveja.
Tincómio prosseguiu:
- Desde que me lembro, os Atrébates têm combatido outras tribos. Os Durotriges, sempre, mais recentemente os Catuvelaunos, que tão cruelmente vos expulsaram, sire.
Vérica franziu o sobrolho perante a menção, pouco simpática, da sua remoção do trono, devida a Carátaco e à sua tribo.
- Nunca conheci outra coisa A guerra é a nossa vida, a vida de todas as tribos celtas desta ilha. É por isso que habitamos estas miseráveis cabanas, que não possuímos
o nosso próprio império. Não temos um propósito comum, e por isso devemos unir-nos a quem o tem... o Imperador.
- Embora o Carátaco não se esteja a portar mal quanto a isso! - terrompeu Macro, com a voz um pouco arrastada. Cato fez um cálculo
rápido e chegou à conclusão de que o centurião já ia na quarta caneca de cerveja - depois de todo o vinho que tinha passado a tarde a beber. Macro fez um gesto de
concordância com Tincómio. - Quer dizer, vejam quantas tribos já conseguiu ele reunir contra nós. Se não lhe limparmos o sebo depressa, sabe-se lá os problemas que
esse sacana ainda vai provocar ao general!
- Exactamente! - O mercador mostrou um sorriso untuoso. - Mas não queremos com certeza dar alguma credibilidade à ideia de que o inimigo tem alguma hipótese real
de desafiar as legiões, pois não, centurião? Pergunto-me o que pensará o outro oficial romano presente.
Cato, que baixara os olhos envergonhado enquanto Macro falava, levantou a cabeça e apercebeu-se de que todos olhavam para ele, à espera. Engoliu em seco, nervoso,
e obrigou-se a uma curta pausa, para evitar que lhe saísse pela boca fora alguma coisa que o fizesse parecer um idiota.
- Não tenho grande autoridade na matéria. Há menos de dois anos que cumpro serviço nas Águias.
As sobrancelhas do mercador arquearam-se.
- E já és centurião?
- E dos bons! - Exclamou Macro, e teria continuado, se Cato não lhe atalhasse a palavra rapidamente.
- Durante este período combati os Germanos e os Catuvelaunos, os Trinobantes e os Durotriges. Todos eles são excelentes guerreiros, como o são os Atrébates. Mas
nenhuns deles podem opor-se às legiões. Quando uma nação se ergue em armas contra Roma, só pode existir um resultado. E este pode ser atrasado por algum percalço,
ou por um inimigo que usa o tipo de táctica que Carátaco agora emprega contra nós, de toca-e-foge. Mas as legiões continuarão a avançar, esmagando sob os seus pés
cada ponto forte do inimigo, um por um. E por fim, nem mesmo Carátaco será capaz de aguentar. Não haverá mais quem lhe forneça homens nem equipamentos nem, sobretudo,
comida e abrigo.
Cato interrompeu o discurso, para permitir que Tincómio traduzisse as suas palavras para aqueles que pouco ou nada compreendiam do latim. Artax fungou com desprezo
e abanou a cabeça .
- Longe de mim desrespeitar as tribos que ocupam estas terras. - Continuou Cato. - De facto, aprendi a respeitá-las em muitos aspectos.
- Uma visão dos macabros troféus que os seus homens tinham recolhido depois da emboscada passou-lhe pela mente. - Há entre elas muitos grandes guerreiros, e é nisso
mesmo que reside a sua fraqueza. Um exército composto por uma multidão de homens desse calibre pouco valor possui, a não ser que seja moldado como uma unidade com
um único propósito, acção coordenada e sujeição a uma única vontade. E é por isso que as legiões
derrotarão Carátaco. E por isso destruirão tudo o que se lhes opuser até que Carátaco se submeta. Ele já devia ter compreendido que não pode triunfar. Devia saber
que tudo o que conseguirá com a sua resistência será prolongar o sofrimento das tribos, e isso faz-me pena.
- Pena? - interrompeu Vérica. - Tens pena do teu inimigo?
Cato assentiu.
- Sim, sire. Acima de tudo, desejo a paz. Uma paz de que os povos romano e celta possam beneficiar em simultâneo. A paz há-de chegar de uma forma ou outra, mas sempre
nos termos impostos por Roma. Quanto mais tempo as outras tribos se recusarem a anuir àquilo que vós e os atrébates já aceitaram, mais o sofrimento de todos os envolvidos
se prolongará. Resistir é infrutífero. Não, pior do que isso. É imoral que se permita que o sofrimento continue quando se sabe que não há hipótese de triunfo.
Deu-se um curto silêncio depois de as palavras de Cato serem traduzidas. Então Artax ergueu a voz, calmamente.
- Pergunto-me se não será antes imoral que sejamos forçados a tal posição. Porque veio Roma a estas paragens? Que necessidade tem das nossas pobres habitações, quando
possui grandes cidades e incomensurável riqueza em si mesma. Porque quer Roma tomar o tão pouco que temos?
- Artax encarou-o com ar de poucos amigos.
- Podem ter pouco agora, mas se se juntarem ao Império terão muito mais no futuro. - Respondeu Cato.
Artax deu uma risada amarga.
- Duvido que Roma aqui esteja para nosso benefício.
Cato sorriu.
- Tens razão, por agora. Mas no fim talvez vejas esta terra transformada para melhor, graças a Roma.
Tincómio franziu o sobrolho.
- Mas ainda não entendo porque quereria Roma chegar cá, se não visse nisso qualquer possibilidade de lucro.
- Política! - Exclamou Macro. - A merda da política. Uma oportunidade para os ricaços coleccionarem umas migalhas de glória. Conseguem um lugarzinho nos livros de
história, enquanto a malta das fileiras só consegue ser morta. É isso que se passa.
- Então trata-se apenas de dar uma boa imagem do imperador Cláudio?
- É claro. - Macro parecia chocado perante a ingenuidade do príncipe bretão. - Além disso - continuou, agitando o dedo -, o que é que vos faz pensar que por aqui
é diferente? A guerra é sempre por causa disso
- fazer com que um sacana ou outro fique bem visto. Bom, para onde foi a porra da cerveja? Escravo! Vem cá!
Enquanto Macro aguardava que a sua caneca fosse de novo cheia, Cato aproveitou para mudar de assunto.
- Sire, quando poderemos assistir ao misterioso entretenimento que haveis preparado para nós?
- Paciência, Centurião! Primeiro temos que comer. - Vérica acenou na direcção de uma das mesas próximas, em que as esposas de alguns dos nobres conversavam em tons
elevados. - Duvido que alguns dos estômagos mais delicados aguentassem continuar a comer depois de verem o que tenho preparado para vossa diversão.
Quando os últimos pratos foram recolhidos pelos escravos, Cadmínio solicitou que os convidados se levantassem das mesas, que os mesmos escravos empurraram então
para os lados do salão, encostando-as às paredes. Vérica regressou ao trono elevado, do qual tinha uma visão desimpedida sobre todo o comprimento do salão, e os
convidados que tinham tido lugar na mesa de honra juntaram-se aos outros convivas, amontoando-se nas mesas. Os jarros de cerveja saíram da cozinha em quantidade
e foram distribuídos pela turba, já bem bebida e animada, aos gritos, que ecoavam entre as vigas do tecto. Os Celtas agruparam-se, e os convidados estrangeiros reuniram-se
num pequeno e notório magote junto ao trono de Vérica. Só Tincómio ficou com eles. Artax e os restantes nobres tinham-se ido reunir aos seus amigos guerreiros e
todos competiam alegremente para ver quem conseguia beber mais cerveja de uma vez. Um punhado deles, de estômagos menos resistentes, já tinha perdido os sentidos,
enquanto outros vomitavam junto às paredes de pedra.
- O vosso rei sabe dar uma festa. - Macro sorriu com evidente aprovação, enquanto observava a multidão..- Mal posso esperar pelo espectáculo.
- Não terá que o fazer. - Retorquiu Tincómio. - Olhe para ali.
As portas principais foram abertas de par em par, e alguns membros
da guarda real manobraram um vagão coberto, levando-o até ao centro do salão. O barulho da multidão tomou um tom de excitação, enquanto todos se esforçavam para
ter a melhor vista. As rodas chiavam sobre as lajes do pavimento, e algo se movia por baixo da cobertura, algo que soltou um rosnado poderoso que se ouviu acima
do ruído dos convidados. Os guardas deixaram a carroça quase no centro do salão. A cobertura foi então retirada, e os convivas soltaram exclamações de surpresa e
contentamento quando viram as duas jaulas. Na maior estava um enorme javali, assustado e enraivecido. Na outra, menor, viam-se três cães de caça, de pernas esguias,
peitos
pronunciados e pelo cinzento, curto e rijo, que se eriçava nas suas costas enquanto rosnavam na direcção do porco selvagem.
- Isto deve ser bom! - Alegrou-se Macro, e voltou a despejar a sua caneca. - Desde Camaloduno que não vejo uma boa luta de animais.
Cato assentiu.
Enquanto alguns dos guardas colocavam as jaulas em posição, outros iam acendendo archotes no grande fogo que ardia ao fundo do salão. Depois formaram um círculo
irregular junto ao vagão, criando uma espécie de arena fortemente iluminada. Quando tudo estava preparado, Cadmínio deu sinal para que as jaulas fossem abertas.
O javali saltou primeiro, empurrado para fora da jaula e do vagão pelos golpes das lanças dos homens encarregados de vigiar os animais. Embalou imediatamente, dirigindo-se
a uma brecha existente entre os homens com as tochas. Estes responderam de imediato, fechando-a, e agitando-lhe as chamas bem perto do focinho, forçando a besta
a recuar para o centro do salão, emitindo profundos roncos enquanto os olhos escuros se agitavam à vista da multidão ululante. Os cães foram retirados da jaula pelas
correntes que traziam ao pescoço, já cheios de vontade de se lançarem sobre o javali e forçando os tratadores a empregar toda a força para os reterem. O porco olhou-os
nervosamente, balançando-se como se dançasse em resposta a uma música lenta. Os tratadores dos cães puxaram as correntes, desprenderam-nas e agarraram firmemente
nas coleiras.
No trono, Vérica raspou com uma caneca contra o braço de madeira do cadeirão, fazendo um som tão alto que se sobrepôs à animação geral, às gargalhadas e às apostas.
Os convidados emudeceram, obedientemente, e só se ouviram os sons estrangulados dos cães e o crepitar das chamas na fogueira e nos archotes. Erguendo-se, Vérica
fez chegar a sua voz a todos os recantos do salão. Cato traduziu para Macro, num sussurro.
- Pede desculpa pelos cães, mas não conseguiram encontrar lobos assim à pressa. O combate é uma homenagem às Coortes dos Lobos e dos Javalis, bem como aos seus comandantes.
O vencedor desta luta terá oportunidade de participar na fase seguinte dos divertimentos desta noite.
- Outra fase? - Macro virou-se para Tincómio. - O que é que isso quer dizer?
Tincómio encolheu os ombros.
- Não faço ideia. A sério.
- Bom, enquanto o velhote tiver espectáculos para oferecer... - concluiu Macro.
Vérica ergueu o braço, manteve-o nessa posição durante um curto período, e depois deixou-o cair com um floreado dramático. Os tratadores soltaram as coleiras, e
correram para a segurança do exterior da linha de
archotes. A multidão berrou quando os cães se precipitaram na direcção do javali, que ainda se balançava, mas agora com a cabeça baixa e a boca aberta, pronto para
enfrentar os atacantes e os ferir gravemente.
O mais rápido dos cães saltou para o pescoço do javali, as mandíbulas bem abertas, pronto para as cerrar sobre a garganta do outro animal e a destroçar. Mas o javali
alcançou-o antes que isso sucedesse, atirando-o para o lado com o focinho, como se não pesasse mais do que um saco de penas. O cão caiu no pavimento empedrado com
um ruído surdo e um latido de dor. A turba animou-se: um coro algo desanimado por parte dos que tinham apostado nos cães, vivas por parte dos que defendiam o javali.
Os outros dois cães, mostrando a inteligência da sua raça, afastaram-se e tomaram posição em lados opostos do porco, atacando-o com movimentos rápidos que lhes permitiam
fechar as grandes mandíbulas sobre o outro animal. Fazendo um lento círculo, o javali manteve as presas baixas, sempre pronto para desferir golpes mortais ao primeiro
cão que se atrevesse a aproximar-se.
- Nenhuns cães, sejam quais forem, vão conseguir matar aquele bicho. - Gritou Macro acima do som da multidão. Cato assentiu; o primeiro cão ainda se debatia para
se levantar.
- Não esteja tão seguro, senhor. - Gritou Tincómio em resposta.
- Já alguma vez viu cães desta raça?
Macro abanou a cabeça.
- Vieram do outro lado do mar.
- Gália?
- Não. Para o outro lado. Acho que vocês, romanos, lhe chamam Hibémia.
- Já ouvi falar. - Mentiu Macro.
- Pelo que me disseram, é tão inóspita que duvido que até um romano pense em invadi-la. Mas criam bons cães de caça. Como aqueles três. O javali está metido num
sarilho, e não vai escapar com vida.
- Queres apostar?
- O que é que apostamos?
- Vinho. Estava capaz de matar para me ver livre do sabor desta cerveja.
- Até agora, não dei por que tivesse algum problema com ela.
Macro lançou um braço amigável sobre o ombro do jovem celta enquanto agarrava o mais próximo jarro de cerveja.
- Os soldados bebem qualquer coisa quando querem apanhar uma valente. Qualquer coisa, rapaz. Até esta porcaria. À tua!
- Muito bem, senhor, então aposto uma ânfora de vinho nos cães.
- Disse Tincómio, enquanto afastava casualmente o braço do centurião.
- Feito. Macro levou o jarro aos lábios e sorveu longamente, o líquido acastanhado a escorrer pelos lados da boca.
O primeiro cão a atacar tinha-se finalmente refeito; levantara-se e colocara-se entre os outros dois, esperando sem pressas por uma oportunidade para avançar e cravar
os dentes no javali. Este tinha agora que se manter em guarda nas três direcções, e a sua gigantesca cabeça virava-se constantemente para aqui e para ali. Cato via
o espectáculo com uma curiosa mistura de sentimentos. Tinha ido aos jogos em Roma algumas vezes, e tinha tido ocasião de apreciar sangrentos combates entre animais.
Sempre lhe tinham parecido um pouco de mau-gosto, mesmo quando vibrara com a atmosfera tensa e com a excitação das lutas propriamente ditas, mas depois sentia-se
sempre um pouco culpado e sórdido. Ali, naquela ocasião, o combate entre o javali e os cães provocava-lhe as mesmas impressões, o interesse compulsivo e a repulsa
profunda.
Ouviu-se um latido de agonia quando o cão já lesionado tentou abocanhar uma das patas do javali e não recuou com velocidade suficiente para evitar as presas. Agora
jazia onde tinha caído, o peito e o ventre rasgados. Os intestinos brilhantes escorregaram para a piscina de sangue espalhado pelos movimentos das patas do cão,
ao tentar pateticamente colocar-se de novo em pé.
Macro deu uma palmada na perna.
- Já estou a saborear esse vinho!
O javali aproveitou a queda do adversário; avançou e usou de novo as presas, rasgando ainda mais o cão. Ao fazê-lo, porém, precipitou a sua própria sorte. Uma mancha
cinzenta lançou-se sobre o seu dorso, e um dos cães enterrou os caninos no pelo eriçado do pescoço do javali. O terceiro cão avançou lateralmente e abocanhou-lhe
a garganta. No mesmo instante o porco baixou a cabeça, tentando sacudir os oponentes, mas as poderosas mandíbulas mantiveram a prisão, esmagando-lhe a traqueia.
Pouco a pouco a besta foi perdendo as forças, as patas a agitarem-se cada vez menos. Por fim o javali estremeceu uma última vez, antes de as pernas cederem e ele
se deixar cair no chão, com as mandíbulas dos cães ainda fechadas sobre ele. Um grito de prazer soltou-se da multidão, abafando os lamentos dos que tinham apostado
no javali.
- Foda-se! - Gritou Macro. - Mas onde é que foram buscar aquele porco? A porra da luta estava combinada!
Tincómio riu-se.
- Centurião, quer que passe pelos seus aposentos amanhã para receber o meu vinho?
- Faz como quiseres.
Cato ignorou-os, e observou fascinado e enojado ao mesmo tempo a
forma como os cães destroçavam a garganta do javali, com toda a eficiência adquirida ao longo dos anos de treino para o papel que tinham a desempenhar numa caçada.
Quando o outro animal estava comprovadamente morto, os tratadores aproximaram-se e, com toda a precaução, voltaram a colocar as coleiras nos cães. O que tinha sido
morto foi colocado no carro, e depois meia-dúzia de guardas esforçaram-se por manejar o peso morto do javali, tentando levantá-lo e colocá-lo por cima da forma esventrada
do seu inimigo de há momentos. A seguir o vagão foi arrastado para fora do salão, e um novo murmúrio de excitação percorreu a turba, enquanto esperavam pela última
diversão da noite.
Depois de um curto intervalo, os guardas regressaram ao salão. No meio de cada par de homens arrastava-se um prisioneiro, de mãos e pés atados, oito no total. Foram
colocados num dos lados do salão, próximo dos convidados sentados às mesas. No lado oposto estavam os cães, o sangue a pingar dos focinhos, os flancos ainda ofegantes
do esforço do combate contra o javali.
- O que diabo se passa agora? - Inquiriu Macro, virando-se para Cato. - São os nossos prisioneiros, porra!
Cato olhou para os cativos.
- Conheço-os. São os Atrébates que capturámos... Oh, não. Ele não vai... - A cor fugiu das faces de Cato.
- O que é? - Perguntou Macro. - O que se passa? De quem é que estás a falar?
Vérica levantara-se de novo, e desta vez os convidados não precisaram de sinal para fazer silêncio; os seus olhos viajavam entre o rei dos Atrébates e os prisioneiros
amarrados, que lançavam olhares temerosos na direcção dos cães. Vérica começou a falar. Desta vez não havia calor na sua voz, nem qualquer traço da anterior hospitalidade.
- Os traidores devem morrer. Fossem eles Durotriges, e ser-lhes-ia dado um fim menos terrível. Não pode haver uma morte fácil para aqueles que se viram contra a
tribo que lhes deu vida, e que lhes exige em troca lealdade eterna. Morrerão portanto como cães, e os seus corpos serão lançados para a fossa de Caleba, para que
os necrófagos os devorem.
- Não pode estar a falar a sério. - Sussurrou Cato a Tincómio. - Não pode.
- Não com a porra dos meus prisioneiros! - Juntou um indignado Macro.
Antes que eles pudessem protestar, uma figura saltou do seio da multidão e correu para o espaço vazio entre os cães e o magote de prisioneiros. Artax apontou para
estes e dirigiu-se ao rei e aos convidados numa voz ressoante, imperiosa.
- O que é que ele está a dizer? - Perguntou Macro.
Cato compreendia algumas das palavras, mas Artax falava de forma inflamada. Esse facto, e demasiada cerveja, tornavam a torrente de palavras difícil de seguir. Cato
agarrou no braço de Tincómio e fez um sinal na direcção do outro bretão.
- Ele conhece estes homens. - Explicou Tincómio. - Um deles é seu meio-irmão. Um outro é primo da sua esposa. Quer que sejam poupados. Nenhum membro da nossa tribo
deveria morrer desta forma.
Um murmúrio de concordância acompanhou as palavras de Artax, mas Vérica apontou um dedo trémulo aos prisioneiros e respondeu em tons de ira e indignação:
- Eles vão morrer. Serão um exemplo para todos aqueles que prefeririam juntar-se aos inimigos dos Atrébates e de Roma. Esta lição deve ser compreendida. Todos aqueles
que se atreverem sequer a pensar em trair o seu rei devem conhecer a sua terrível vingança.
Um coro sonoro fez-se ouvir em apoio do rei, e um cálice vazio atravessou o salão e foi atingir um dos prisioneiros na cabeça. Artax abanava a cabeça enquanto o
rei falava, e depois voltou a erguer a sua voz em protesto. Tincómio voltou a traduzir para os dois romanos.
- Suplica ao rei que não prossiga por esta via, que esta atrocidade vai virar o povo contra si.
Vérica, furioso, calou Artax, e fez sinal a Cadmínio para que o nobre fosse retirado do salão. Artax continuou a fazer ouvir os seus protestos, mesmo depois de o
capitão da guarda lhe ter agarrado o braço, o ter arrastado para a entrada do grande salão e o ter atirado para o exterior. Sem mais demoras, Cadmínio dirigiu-se
ao grupo de prisioneiros, pegou no homem que estava mais próximo pela corrente que lhe ligava os pulsos, e arrastou-o para o centro do salão. Deixado sozinho, o
prisioneiro lutou desesperadamente contra os nós que o prendiam, e gritou por ajuda. Os tratadores dos cães libertaram-nos e estalaram os dedos para atrair a atenção
dos animais. Apontaram a vítima, e depois deu-se um momento de terrível silêncio, até por parte do prisioneiro que observava os cães, fascinado. Então a ordem foi
dada, e os cães saltaram sobre o homem indefeso. Este gritou, de forma estridente e horrível, enquanto os cães lhe destroçavam a face, lutando por lhe alcançar a
garganta. Depois os gritos foram abafados, e só se ouviu um estranho borbulhar. E depois mais nada. O homem já não se mexia. Os cães atiravam-no de um lado para
outro como se fosse um boneco de palha para treinar.
Houve festa por parte da multidão. Mas quando Cato olhou em redor, tornou-se claro que muitos dos convidados estavam horrorizados com o espectáculo, e era em silêncio
que assistiam.
- Merda... - Murmurou Macro. - Merda... Não é maneira de um homem morrer.
- Nem sequer um traidor? - Inquiriu Tincómio, com ácido na
voz.
Os tratadores forçaram os cães a afastar-se do cadáver. Não foi uma tarefa fácil, depois de lhes terem despertado os instintos assassinos. Dois homens arrastaram
o corpo para longe, enquanto Cadmínio escolhia a vítima seguinte e arrastava o homem para as lajes sujas de sangue sobre as quais o seu companheiro tinha sido morto.
Cato olhou para Vérica, esperando que o rei mudasse ainda de opinião. Mas o frio olhar de satisfação no rosto do soberano era evidente para todos no salão.
Cato deu um toque a Macro, enquanto se levantava.
- Tenho de ir. Não posso ver isto.
Macro virou-se para ele e Cato surpreendeu-se por verificar que até aquele rijo veterano já tinha visto mais do que conseguia suportar.
- Espera por mim, miúdo.
Macro levantou-se da mesa e lutou para se manter de pé depois de toda a cerveja que tinha consumido ao longo da noite.
- Dá-me aqui uma ajuda. Tincómio, vemos-te no depósito, amanhã.
O bretão fez um vago aceno de concordância, sem desviar os olhos do destino do segundo prisioneiro.
Cato colocou o braço de Macro sobre o ombro e dirigiu-se à entrada, mantendo-se tão longe dos cães quanto lhe era possível, enquanto eles se lançavam sobre outra
vítima. Quando emergiram para o exterior, Macro não aguentou mais. Libertou-se do apoio do companheiro, deu alguns passos vacilantes para se afastar dele e dobrou-se
sobre si mesmo, vomitando. Enquanto Cato aguardava que ele recuperasse, uma fila ininterrupta de nobres Atrébates deixava o grande salão do rei, tentando esconder
o horror e repulsa que sentiam, enquanto, por trás deles, novos gritos rompiam a noite.

XVI
- Quando é que isto chegou, precisamente? - O General Pláucio atirou o relatório para a mesa do chefe dos seus escrivães. O homem endireitou o pergaminho, e à luz
de uma lamparina de óleo percorreu com o dedo a parte superior do documento até encontrar a anotação que indicava a data e hora da chegada.
- Só um momento, senhor, por favor. - Disse, enquanto se levantava da cadeira.
O general anuiu e virou-se para espreitar por entre as cortinas que fechavam a entrada da tenda. O céu estava carregado, e apesar de o sol se ter posto ainda há
pouco, já estava muito escuro. Escuro e quente. O ar húmido oprimia-o de forma insuportável, e ameaçava uma interrupção no bom tempo que se tinha feito sentir nos
últimos dias. Por muito que uma tempestade ajudasse a eliminar a atmosfera opressiva que se sentia, o general receava o efeito que teria nos seus veículos de transporte.
De todos os locais em que combatera ao longo da carreira, esta ilha horrível tinha de ser a pior, pelo menos no que dizia respeito ao tempo. Era verdade que esta
terra não conhecia o longo frio selvagem de um Inverno germânico, nem o calor abrasador das planícies da Síria, mas conseguia, à sua maneira, ser particularmente
desconfortável.
O problema da Britânia, decidiu o general, era que a ilha estava sempre mais ou menos húmida. Umas poucas horas de chuva deixavam o terreno empapado e cheio de lama,
e qualquer tentativa de deslocar nem que fosse uma pequena força de homens e veículos rapidamente criava um pântano que prendia os homens e deixava tudo sujo de
lama. E isto era no terreno bom. Pláucio já tinha visto o suficiente dos pântanos britânicos para saber que eram impenetráveis para as suas forças. Os nativos, porém,
tinham usado bem o seu conhecimento do terreno, e tinham implantado os seus campos avançados nos pedaços de terreno firme que existiam na vasta extensão de pântanos
que se encontrava a oeste do curso superior do
Tamisa. E, a partir dessas bases, Carátaco lançava as suas sortidas através da esparsa rede de fortins romanos. Atacavam as colunas de abastecimento das legiões,
destruíam as quintas e os povoados das tribos que se tinham aliado a Roma e, quando a ambição fazia com que o quente sangue dos guerreiros Celtas lhes subisse às
cabeças, até atacavam as patrulhas romanas ou as fortificações de menor importância.
Os invasores morriam lentamente, dos mil golpes recebidos, e Pláucio já esgotara o seu capital político junto do Imperador; daqui para a frente poucos reforços chegariam.
E as tropas que fossem enviadas para a Britânia viriam acompanhadas pelo pedido seco e sarcástico de Narciso, de que Carátaco fosse rapidamente derrotado. A última
mensagem do género tinha deixado o general mergulhado numa ira gelada, graças ao seu ferrão delicadamente fraseado: " Meu caro Áulio Pláucio, se não vais usar o
teu exército nos próximos meses, seria pedir demais que mo emprestasses uns tempos?"
O general rangeu os dentes de frustração perante a facilidade com que os ocupantes dos gabinetes revestidos a mármore do Palatino enviavam ordens, sem qualquer preocupação
com as condições em que, no terreno, os soldados lutavam em terras distantes para preservar ou ampliar o Império. Pláucio endireitou os ombros e deu um murro na
palma da mão.
Uma mão-cheia de escrivães ocupavam-se em tarefas diversas nas mesas que ocupavam um dos lados da tenda, e olharam-no quando ele deu largas à sua frustração. Pláucio
olhou-os com cara de poucos amigos.
- Onde diabos foi aquele cretino? Tu!
- Senhor?
- Alça o traseiro e vai à procura dele.
- Sim, senhor.
Enquanto o homem se afastava na direcção das tendas do pessoal, Pláucio esfregou o ombro. A humidade tinha-lhe afectado fortemente as articulações no Inverno, e
uma dor irritante nos ombros e joelhos ainda lhe aparecia de vez em quando. Sonhava com o calor e a luz do sol que nunca faltavam na sua casa de Estábias. Intermináveis
dias de Verão passados junto ao mar, com a sua esposa e os filhos. Sorriu perante o impacto que a nostalgia tivera sobre si. A última vez que tinha passado um Verão
com eles tinha sido há quase quatro anos - uns poucos dias conseguidos depois de uma curta viagem a Roma para apresentar a situação no Danúbio. As crianças tinham
passado o tempo com zaragatas, chateando-se um ao outro, e a todos os adultos à volta, com gritos e exclamações de raiva e indignação enquanto roubavam os brinquedos
um ao outro. Só quando as crianças tinham sido entregues a uma ama é que os pais tinham tido tempo para se dedicarem um ao outro. O iminente regresso de Pláucio
ao seu comando
tinha emprestado a esses dias uma pungência difícil de aguentar, e ele tinha prometido à mulher que regressaria de vez assim que pudesse.
E agora ali estava ele, nas fases iniciais de mais uma campanha. Muito provavelmente morreria de velhice antes que aqueles Bretões se resignassem ao destino. Nunca
assistiria ao crescimento das crianças, nunca envelheceria ao lado da esposa.
Pensar na família enchia-o de uma saudade dolorosa. No início do ano a mulher e os filhos tinham tentado juntar-se-lhe na campanha, mas as consequências tinham sido
tão desastrosas que não havia qualquer possibilidade de voltarem a pôr os pés na Britânia.
Pláucio sabia que estava quase no limite da resistência física e mental. Era preciso um homem mais jovem para desempenhar aquele papel, alguém com energia suficiente
para levar o trabalho até ao fim; para derrotar Carátaco por completo, para esmagar o exército Britânico, e para reduzir as tribos daquela terra a temerosos súbditos
de Roma. Alguém como o legado Vespasiano, reflectiu.
Embora Vespasiano só tivesse alcançado o comando de uma legião uns anos depois do que era comum com os seus pares, tinha compensado o atraso com o seu estilo esforçado.
Por isso é que Pláucio tinha destacado Vespasiano e a Segunda Legião para conduzirem operações na parte meridional da Britânia. Até ali, o legado tinha-se mostrado
mais do que merecedor da confiança do seu superior, esmagando sem pausas uma cadeia de fortes. O problema é que estava a ter demasiado sucesso. Avançando com tanta
rapidez, o legado tinha exposto as suas linhas de comunicação a ataques em força por parte do inimigo. Pláucio tinha-lhe refreado os ânimos durante algum tempo,
ordenando-lhe que arrasasse os fortes que resistiam na fronteira com os territórios dos Atrébates, antes de se lançar com a Segunda Legião para o sul, para capturar
a grande ilha que existia na costa meridional. Quando chegasse esse momento, a distância entre as duas forças romanas aumentaria ainda mais. Vespasiano também estava
consciente do perigo, e tinha dado voz às suas preocupações no mais recente relatório que enviara ao superior. Tudo dependia da manutenção da lealdade dos Atrébates.
Um som abafado de trovões percorreu a paisagem, e o general Pláucio espraiou o olhar sobre as filas ondulantes de tendas, até ao horizonte, onde um clarão de luz
pálida anunciava uma mudança no tempo. Uma brisa fresca levantou-se de repente e fez dançar as dobras da tenda. Pláucio teria uma boa perspectiva da aproximação
da tempestade. O seu quartel-general tinha sido erigido numa pequena crista no centro do campo. Os engenheiros tinham protestado, garantindo que o local não era
apropriado, uma vez que ficava a alguma distância da intersecção das duas alamedas do campo,
mas Pláucio queria ser capaz de observar as instalações das legiões e para lá disso, a paliçada, e ainda mais longe, a paisagem que descia para o ocidente. À distância,
uma mão-cheia de pequenas luzes avistavam-se na orla de uma colina arborizada.
Era o campo do inimigo, comandado por Carátaco. Há dias que os dois exércitos se enfrentavam a algumas milhas de distância, e as escaramuças entre os batedores dos
dois campos eram frequentes, na terra de ninguém que os separava. Pláucio sabia que se tentasse avançar na direcção do inimigo, o sagaz Carátaco se limitaria a retirar
e a atrair as legiões para mais longe ainda. E assim continuariam, mas Carátaco recuaria sempre sobre as suas próprias linhas de abastecimento, enquanto o general
estenderia ainda mais as suas. Por esse motivo, Pláucio tinha deixado de avançar, pelo menos por agora, e ocupava-se na consolidação da cadeia de fortins que lhe
protegiam os flancos e a retaguarda. Quando essa tarefa estivesse terminada levaria as suas legiões a avançar e forçaria os bretões a cederem mais terreno. Acabariam
por não ter mais para onde recuar, e teriam que se virar e enfrentá-lo. E então os Romanos esmagá-los-iam sem piedade.
Bom, esse tinha sido o plano, sorriu Pláucio com amargura. Mas o plano era sempre a primeira baixa em qualquer operação militar. Há poucos dias tinha recebido um
relatório preocupante de Vespasiano, sobre a presença de outro exército britânico que se reunia a sul do Tamisa. Era possível que Carátaco tivesse a intenção de
reunir as duas forças, e nesse caso tentaria escapar a Pláucio e precipitar-se para o sul, para destruir Vespasiano. Uma alternativa era que o bretão se sentisse
suficientemente forte para enfrentar a principal força romana. Mas isso, lembrou Pláucio, era uma fantasia sua, e ele devia ter mais respeito por Carátaco, sobretudo
face ao documento que tinha atirado sobre a mesa do seu chefe dos escrivães: outro relatório, este enviado pelo centurião que Vespasiano deixara no comando da diminuta
guarnição de Caleba.
O centurião Macro relatava uma escaramuça recente em que tinha triunfado contra uma das colunas inimigas que executava investidas sobre os comboios de abastecimento.
Eram boas notícias, e o general lera o relato com prazer. Tinha depois chegado à secção em que o centurião mencionava a situação em Caleba. Apesar da tentativa de
Macro de soar confiante, quando Pláucio chegou ao fim do relatório sentia-se muito preocupado.
- Senhor!
O general virou-se, enquanto o chefe dos escrivães entrava pelas traseiras da tenda.
- Então?
- Há cinco dias, senhor.
- Cinco dias? - Repetiu Pláucio. Nas suas costas viu-se um relâmpago
que caiu sobre a paisagem campestre deserta. Poucos momentos depois ouviu-se o trovão, que fez estremecer o legionário.
- Quinto, queres explicar-me como é que isto levou cinco dias a chegar à minha atenção?
- Parecia um relatório de baixa prioridade, senhor.
- Leste-o?
- Sim, senhor.
- Todo?
O escrivão ficou calado um momento.
- Não me recordo, senhor.
- Estou a ver. Isto não é lá muito satisfatório, pois não, Quinto?
- Não, senhor.
O general encarou-o por algum tempo, até que o escrivão não lhe conseguiu aguentar o olhar e baixou os olhos, envergonhado.
- A partir de agora, assegura-te de que todos os relatórios são lidos de uma ponta a outra. Não tolerarei outra asneira deste calibre.
- Sim, senhor.
- Agora, chama o tribuno Quintílio.
- O tribuno Quintílio, senhor?
- Caio Quintílio. Juntou-se à Nona há poucos dias. Hás-de encontrá-lo na messe da legião. Quero falar com ele nos meus aposentos, assim que lhe for possível. Vai.
O escrivão virou-se e saiu apressado da tenda, feliz por se poder afastar do general rapidamente. Enquanto Pláucio o via a afastar-se atravessando as cortinas que
fechavam a tenda, ponderou a sua indulgência. Há alguns anos atrás, por um erro daqueles, teria enviado o homem para as fileiras. Devia estar a amolecer. Mais uma
prova da sua incapacidade como comandante no terreno.
Enquanto o tribuno Quintílio lia o relatório, a tempestade estava mesmo por cima do campo romano. Os relâmpagos faiscavam brilhantemente por entre as abas da entrada
da tenda do general, que tinham sido deixadas abertas. De cada vez que surgia uma explosão de luz, as gotas de chuva lá fora pareciam ficar suspensas como estilhaços
de vidro sem peso num mundo esbranquiçado. Depois o clarão desaparecia. Imediatamente o trovão se fazia ouvir, ribombando e enchendo o mundo, fazendo estremecer
os copos que estavam sobre a mesa, entre os dois oficiais. E depois ficava apenas o tamborilar da chuva sobre o couro da tenda, e o lamento do vento.

O general Pláucio estudou o homem que se sentava à sua frente, a cabeça inclinada sobre o pergaminho enquanto analisava o relatório. Quintílio provinha de uma das
mais antigas famílias de Roma, que ainda possuía vastas extensões de terreno a sul da cidade. Era o último de uma longa linhagem de aristocratas que tinham feito
distintas carreiras no senado. A sua colocação na Nona Legião era a paga por um grande empréstimo, livre de juros, que o pai de Quintílio fizera ao general Pláucio
há alguns anos atrás. Mas envolvia mais do que a resolução de uma antiga dívida. O tribuno tinha ligações ao Palácio Imperial, e a única razão para qualquer aristocrata
cultivar esse tipo de relação era a sua ambição. Muito bem, reflectiu Pláucio, um homem ambicioso era geralmente um homem implacável, e essa característica serviria
perfeitamente os interesses momentâneos do general.
- Muito interessante, de facto. - Disse Quintílio, colocando o pergaminho sobre a mesa e pegando graciosamente no copo, no mesmo movimento. - Mas, senhor, posso
perguntar o que tem isto a ver comigo?
- Tudo. Vou enviar-te a Caleba assim que nascer o dia.
- Caleba? - Por um brevíssimo instante, um ar de surpresa atravessou a face perfeita do tribuno, mas logo a máscara de suprema indiferença voltou a cair. - Bem,
porque não? Seria agradável experimentar um pouco da cultura local, antes que acabemos com ela...
- Precisamente. - Pláucio sorriu. - Mas tenta não dar aos nativos, quando os encontrares, a impressão de que uma aliança com Roma é outro nome para rendição. Não
me parece que caia lá muito bem.
- Farei o meu melhor...
- ...ou morrerás a tentar. - O sorriso do general tinha desaparecido, e já não havia como ocultar a seriedade da conversa. Quintílio sorveu um gole e baixou o copo,
observando atentamente o seu superior.
- Tens uma certa reputação como um tipo que sabe movimentar-se, Quintílio. E é precisamente de alguém assim que preciso para este trabalho. Espero que a tua reputação
seja justificada.
O tribuno assentiu modestamente.
- Óptimo. Se bem me lembro, chegaste há poucos dias.
- Há dez dias, senhor.
- Dez dias. Não tiveste portanto muito tempo para te familiarizares com as nossas operações, não é?
- Pois não, senhor. - Admitiu Quintílio.
- Bom, não interessa. Narciso recomenda-te fortemente.
- É muito generoso, e raro, da parte dele.
- Sim... muito raro. Por isso é que te escolhi. Preciso de um bom par de olhos e ouvidos no terreno em Caleba. O centurião Macro é compreensivelmente renitente na
expressão das suas dúvidas sobre a firmeza
do rei Vérica com o seu povo. Aprecia o seu comando independente, e não quer oficiais superiores a vigiarem-no. Para ser honesto, ele está a fazer um excelente trabalho.
Angariou uma força de Atrébates a partir do nada, e já conseguiu uma vitória sobre os Durotriges. Uma verdadeira proeza.
- Sim, senhor. Parece-o, de facto. Esse Macro deve ser um bom oficial, e os homens que treinou devem ser extraordinários, para nativos.
O general deitou-lhe um olhar gelado.
- A condescendência é um luxo perigoso. Uma penosa lição que tive que aprender com estes bretões.
- Se o diz, senhor.
- Digo-o mesmo. E devias aproveitar a minha experiência.
- Evidentemente, senhor. - Quintílio inclinou a cabeça.
- Muito sábio... O sucesso de Macro coloca-me numa posição difícil. Sabes, o rei Vérica é um homem idoso. Duvido que sobreviva ao próximo Inverno. Até agora, conseguiu
levar o seu povo a manter a aliança com Roma. Mas há gente na tribo que não nos vê com tão bons olhos.
- E não é sempre assim?
- Infelizmente. O problema é que estes descontentes têm grande influência, e podem lançar um candidato quando o conselho de anciãos da tribo se reunir para escolher
um sucessor para Vérica. Se esse candidato vencer...
- Estaremos enterrados na imundície, senhor.
- Mesmo até aos pescoços. Não apenas teremos uma tribo hostil na retaguarda, mas, graças ao centurião Macro, ela terá o armamento e a disciplina necessários para
nos provocar terríveis danos nas linhas de abastecimento.
- Ele desrespeitou as ordens ao treinar e armar essas coortes, senhor?
- Não, de forma alguma. Agiu de acordo com as ordens do legado Vespasiano.
- Então é o legado o responsável.
- Não, ele pediu e recebeu a minha aprovação para a formação das coortes.
- Estou a ver. - Respondeu o tribuno com evidente tacto.
- O problema é que o centurião Macro não é muito claro acerca das lealdades divididas dos nossos amigos Atrébates.
- Podia ordenar-lhe que desmantelasse as coortes e confiscasse as armas.
- Não é muito praticável. Não conheces estes Bretões como eu. A maior ofensa que podes fazer a um guerreiro bretão é tirar-lhe as armas. Consideram o seu porte como
um direito de nascença. Se lhes confiscarmos
as armas, então teremos grandes hipóteses de nos vermos a braços com uma revolta. Até podíamos perder a lealdade do rei Vérica, se nos metêssemos nisso.
- Que confusão. - Replicou o tribuno, com ar pensativo. - Pergunto-me como é que foi permitido que esta situação nascesse. Narciso quererá saber.
Pláucio debruçou-se sobre a mesa.
- Então aproveita para dizer ao teu amigo Narciso que me envie mais tropas. Se me tivessem dado as coortes auxiliares suficientes logo de início, nunca teríamos
tido necessidade de recorrer a Vérica, ou de formar estas duas coortes.
- Desculpe, senhor. - Retorquiu calmamente Quintílio. - Era apenas uma observação, não uma crítica. Peço desculpa se dei a impressão errada. É uma situação complicada.
- Para dizer o menos. Agora já entendes porque é que preciso de uma noção clara do que se passa em Caleba. Tenho que saber se podemos correr o risco de manter as
coortes em existência. Se achares que elas constituem um perigo para nós, teremos que as desactivar, e enfrentar as consequências. Ao mesmo tempo, tenho que saber
se os atrébates honrarão o tratado que estabeleceram connosco, mesmo com vim novo soberano. Se houver uma única possibilidade da tribo resolver passar-se para o
lado de Carátaco, teremos que agir imediatamente.
- Um trabalho e tanto para um único homem. - Comentou Quintílio.
- Não estarás completamente sozinho. Um dos nobres locais é pago por nós. É próximo de Vérica e pode dar-te toda a ajuda de que precises. Depois dou-te os detalhes.
- Muito bem, senhor. - O tribuno observou cuidadosamente o general. - E que autoridade me atribuirá para desempenhar esta missão?
Pláucio mexeu na parte lateral da cadeira e passou um pergaminho para as mãos do tribuno. Estava enrolado sobre um cilindro de marfim, tocado pelas mãos do Imperador
Cláudio, e tinha o selo do general.
- Em primeiro lugar, deves observar e felatar-me as conclusões a que chegares. Se achares necessário actuar, então poderás invocar os poderes de procurador. Todas
as terras dos atrébates serão confiscadas e colocadas sob administração de Roma, com o estatuto de província. Terás poderes para ordenar às forças de Vespasiano
que anexem e guarneçam o reino de Vérica.
- Isso é uma grande responsabilidade. - Considerou Quintílio.
- O legado não ficará contente quando souber.
- Se tivermos sorte, ele nem precisará de saber.

XVII
A atmosfera no depósito manteve-se tensa por alguns dias a seguir ao banquete. O treino continuou sob o olhar disciplinador dos instrutores, e até Cato estava satisfeito
com as melhorias dos recrutas nas técnicas que treinavam e no manejo das armas. No entanto, também estava consciente de uma distracção e tensão gerais, que pairava
sobre os grupos de nativos como uma nuvem negra. Por isso, forçou-os ao trabalho, mantendo-os ocupados no máximo de tempo possível, de forma a que as suas mentes
se mantivessem ocupadas com outros assuntos que não o terrível espectáculo que o seu rei oferecera aos convidados quando do banquete. Para piorar as coisas, Vérica
tinha mandado colocar as cabeças das vítimas em postes, de ambos os lados da estrada que conduzia ao portão principal de Caleba. Os restos dos corpos tinham sido
despejados sem cerimónia no fosso exterior à paliçada, onde eram disputados por cães selvagens e necrófagos.
A lembrança do macabro preço pago por aqueles que tinham ousado desafiar o rei limitou fortemente o debate acerca da aliança dos Atrébates com Roma. Em vez disso,
havia umas raras palavras trocadas entre aqueles que confiavam uns nos outros, e os homens calavam-se assim que se apercebiam da aproximação de um estranho, observando-o
com um misto de culpa e suspeita até que se afastasse. Ao caminhar pelas lamacentas ruas de Caleba, Cato viu-se repetidamente confrontado com essa situação; e onde
antes existira apenas um ar de ressentimento, via agora uma hostilidade mal disfarçada em muitas das faces que cruzava.
E essa atitude não se limitava aos habitantes da cidade. Os membros das duas coortes também se dividiam entre aqueles que achavam que os traidores tinham merecido
ser atirados aos cães, e uma minoria significativa que mal se manifestava, deixando implícita a sua crítica a Vérica. Não tão disfarçada, porém, que escapasse à
atenção de alguns dos seus camaradas. Os instrutores já tinham dado conta de algumas zaragatas nas fileiras. Felizmente a maior parte ocorrera fora das horas de
serviço, e podiam ser
tratadas como infracções menores à disciplina. Uma pequena luta tinha, porém, ocorrido durante um treino de armas que estava a ser orientado por Macro. Os cinco
homens envolvidos na situação tinham sido punidos perante uma assembleia convocada para a ocasião, no depósito.
Os homens das Coortes do Lobo e do Javali tinham sido colocados em sentido em três dos lados da parada para assistirem ao castigo aplicado aos seus camaradas. Ao
lado de Macro, em rígida imobilidade, Cato cerrava os dentes para não estremecer à medida que um par de instrutores desferia vergastadas nas costas e nos membros
dos homens que, um a um, eram lançados ao solo à sua frente e se deixavam ficar enrolados, a sofrer a punição. Macro contava os golpes para cada homem numa voz
neutra, e ordenava a paragem do castigo quando chegava aos vinte. Imediatamente a seguir dois ordenanças do hospital pegavam nas vítimas e levavam-nas para a enfermaria.
Quando o terceiro homem foi colocado em posição para receber o castigo, Tincómio inclinou-se para Macro.
- Não percebo, senhor. - Sussurrou. - Primeiro são espancados, e depois recebem assistência médica. Então para que serve o castigo?
- Para que serve? - As sobrancelhas de Macro elevaram-se. - Eles têm que ser punidos. Mas o exército não pode permitir que isso interfira com os seus deveres. Aqueles
homens ainda são soldados. Queremo-los em condições de combater o mais depressa possível.
- Senhor? - Um dos legionários indicou o homem que, no solo, já se preparava para aguentar as vergastadas.
Macro endireitou as costas e gritou:
- Prossigam com a punição!
Os dois legionários começaram a atingir o homem que estava por terra, e as terríveis pancadas das varas de videira faziam com que o ar fosse expulso dos seus pulmões,
de modo que ele grunhia e gemia quase sem fôlego. A textura irregular das varas depressa começou a danificar a pele exposta, deixando vergões sangrentos onde a carne
era atingida. Macro contou as pancadas numa voz suficientemente elevada para ser ouvida por todos os homens que assistiam em silêncio.
- Doze!... Treze!... Catorze!
Cato perguntava-se como podia Macro ser tão insensível aos gritos e gemidos dos homens enquanto rebolavam nus no solo salpicado pelo sangue, com os braços a proteger
a cabeça. O jovem centurião questionava frequentemente a dureza da disciplina das legiões, que punha ênfase na dor e humilhação extremas em resposta a quase qualquer
infracção que ocorresse nas horas de serviço. Praticamente não existiam multas ou faxinas, mas as punições brutais abundavam. A Cato parecia que os homens responderiam
de melhor vontade a um sistema que os tratasse como mais do que meras bestas de carga, levadas para a guerra. Podia-se sempre conversar com homens, afinal, e encorajá-los
a um bom desempenho através de uma liderança razoável, em vez de pela crueldade.
Tinha-o sugerido a Macro uma vez, enquanto partilhavam um jarro de vinho. O veterano tinha-se rido da ideia. Para Macro, tudo era simples. A disciplina era dura
para que os homens fossem duros, e para que assim tivessem hipóteses de sobreviver quando encontrassem o inimigo. Se os homens fossem tratados com decência, isso
seria a sua sentença de morte, no fim de contas. Sendo tratados com crueldade, seriam duros e teriam uma hipótese decente de sobreviver aos longos anos de serviço
nas legiões.
As palavras de Macro voltaram a surgir-lhe de forma vívida enquanto via o terceiro homem a ser carregado pelos médicos. O seguinte foi arrastado para o seu lugar,
e Cato sentiu que o sangue se lhe enregelava quando Bedríaco foi lançado aos pés dos dois legionários e das suas canas ensanguentadas. O caçador ergueu a cabeça
e sorriu quando os seus olhos encontraram os do seu comandante. Por um momento, os cantos da boca de Cato desenharam também um sorriso. Foi uma resposta automática
mas, felizmente para si mesmo, Cato conseguiu emendá-la e apresentar uma expressão fria e austera. Bedríaco fez uma careta de incompreensão, antes de a primeira
vergastada o atingir entre os ombros. Imediatamente a sua face feia e enrugada se tornou uma máscara de agonia, e ele soltou um grito estridente. Cato estremeceu.
- Deixa-te estar quieto. - Disse Macro entredentes. - És um oficial, porra. Portanto, porta-te como tal... Três!... Quatro!...
Cato forçou os braços contra os lados do corpo e deixou-se ficar a observar os golpes que continuavam a abater-se sobre a pele nua num ritmo regular. Um nó numa
das varas provocou uma ferida num ombro do caçador, e o sangue escorreu da carne torturada. Cato sentiu que a garganta se lhe apertava, e a vontade de vomitar subiu-lhe
bem do fundo das entranhas. À décima vergastada Bedríaco encarou-o com os olhos esbugalhados, a boca descaída entoando um guincho horrível. O som era pontuado por
uma respiração ofegante, à medida que cada pancada lhe expulsava o ar dos pulmões. Finalmente Macro chegou aos vinte. Cato apercebeu-se de uma dor nas palmas das
mãos e, olhando para baixo, viu que as mãos tinham formado punhos tão cerrados que os nós dos dedos estavam brancos. Forçou-se a relaxar e observou os dois médicos
que se debruçavam sobre o Bretão prostrado. Bedríaco estava completamente imóvel, e os dois homens debateram-se para o levantar e começar a arrastar na direcção
do hospital. Os olhos ainda estavam abertos, como os de um animal
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selvagem, enquanto o guincho profundo continuava a sair-lhe da garganta.
O último dos infractores foi retirado das fileiras. Tincómio deu um pulo, e virou-se rapidamente para Macro.
- Ele não. Ele não pode ser vergastado!
- Silêncio!
- Senhor, imploro-lhe! Ele é de sangue real.
- Cala-te! Regressa à tua posição.
- Não pode.
- Obedece, ou juro que és o próximo.
Tincómio apercebeu-se da seriedade da ameaça que o centurião proferira, e deu um passo atrás. Artax foi atirado ao chão sem cerimónias, à frente dos oficiais. Olhou
para cima, os olhos faiscando num desafio amargo. Antes que Macro ordenasse o início da punição, Artax cuspiu na direcção dos dois centuriões. Macro olhou calmamente
para a mancha escura e húmida na poeira.
- Para este são trinta vergastadas. Comecem!
Ao contrário de Bedríaco, Artax aguentou a punição sem um murmúrio. Os lábios estavam cerrados, e os olhos esbugalhavam-se com o esforço de resistir às ondas sucessivas
de dor. Nem uma vez desviou o olhar de Macro, e respirava em curtas golfadas explosivas, através das narinas dilatadas. No fim, levantou-se com rigidez, sacudindo
irado as mãos dos dois enfermeiros que tentavam ajudá-lo. Encarou Cato, depois voltou a enfrentar Macro. O centurião veterano devolveu-lhe um olhar frio e sem expressão.
Artax virou-se e dirigiu-se cambaleante para o hospital.
- Os castigos estão concluídos! - Berrou Macro. - Regressem ao treino!
As duas coortes foram divididas em centúrias e levadas a marchar pelos instrutores romanos, de volta ao regime interminável de treinos de manobras e de armas. Cato
observou-os de perto, os seus apurados sentidos indicando uma subtil alteração na disposição das tropas; uma espécie de comportamento automático que tomava o lugar
de um fluxo contido de energia.
Macro observou as costas de Artax enquanto este se afastava, e depois murmurou:
- Duro, aquele ali. Tomates de bronze sólido.
- Pode ser - retorquiu Cato em tom neutro -, mas não sei até que ponto é que posso confiar nele. Sobretudo depois deste castigo.
- Precisamente! - Concordou Tincómio.
O tom crítico das últimas palavras não passou despercebido a Macro, e ele virou-se para os outros dois com um sorriso irónico:
- Vocês os dois, especialistas, acham que não devia tê-lo punido?
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Cato encolheu os ombros.
- Especialistas?
- Desculpa. Por momentos pensei que vocês eram especialistas na arte da disciplina e no comportamento da soldadesca. Quer dizer, eu sirvo nas Águias há apenas, o
quê, dezasseis anos? Evidentemente, isso não é nada comparado com a vossa vasta experiência...
Macro fez uma pausa para que Cato sentisse bem o embaraço. Far-lhe-ia bem ser colocado no seu lugar. Macro era suficientemente honesto para reconhecer que Cato era
um homem muito mais inteligente do que ele próprio, e destinado a grandes coisas, se sobrevivesse o tempo suficiente. Mesmo assim, havia alturas em que a experiência
era mais importante do que toda a educação do mundo, e um homem sábio devia pelo menos reconhecê-lo.
Macro sorriu.
- O Artax vai ficar bem, acredita. Conheço o tipo dele: tão forte que não consegues vergá-lo, e tão orgulhoso que há-de querer demonstrar que estás errado.
- Ele não é apenas um tipo qualquer, senhor. - Protestou Tincómio.
- Artax é um príncipe de sangue real, não um soldado comum.
- Enquanto servir na minha unidade, é um soldado comum. Leva vergastadas como outro qualquer.
- E se ele decidir ir-se embora? Perde Artax, e perde um quarto, talvez metade dos homens.
Macro parou de sorrir.
- Se ele fugir, trato-o da mesma forma que outro desertor qualquer, e até tu sabes qual é o castigo nesse caso, Cato.
- Lapidação...
Macro anuiu.
- Não pensaria duas vezes antes de o fazer a um Romano, muito menos a um Celta com ideias de grandeza.
Tincómio ficou siderado perante a possibilidade de uma morte tão desonrosa para o seu primo afastado.
- Não pode tratar um príncipe real como um criminoso vulgar!
- Já te disse, enquanto Artax estiver a servir na porra do meu exército, não passa de um soldado. Só isso.
- O seu exército? - Tincómio ergueu uma sobrancelha. - Engraçado, pensei que as coortes estavam ao serviço de Vérica.
- E Vérica serve Roma! - Ripostou Macro. - O que faz de ti, e deste teu povo, sujeitos às minhas ordens, e tu vais chamar-me senhor sempre que falares comigo daqui
em diante.
O queixo de Tincómio descaiu ao ver-se tratado desta forma. Cato
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reparou que a mão do jovem nobre se crispava em redor do punho da adaga, e interveio rapidamente.
- O que o centurião quer dizer é que todos os aliados de Roma preferem trabalhar com as normas do exército romano. As coisas mantêm-se simples, e permitem uma cooperação
mais harmoniosa entre as legiões e os seus camaradas aliados.
Tincómio e Macro olhavam agora os dois para ele, ambos de rostos franzidos.
- Eu sei o que queria dizer - afirmou Macro friamente -, mas ninguém percebe de que porra é que estás para aí a falar. O que estás tu a tentar dizer, Cato?
- Apenas a tentar assegurar a Tincómio que os nossos interesses coincidem. E que estamos orgulhosos de conduzir tão bravos guerreiros ao serviço de Vérica, e de
Roma. É tudo.
- Não foi isso que me pareceu... senhor. - Contestou Tincómio.
- Pareceu-me mais que nós somos apenas vossos servos, ou mesmo escravos.
- Escravos! - Macro soltou uma gargalhada de frustração. - Porra, o que têm a merda dos escravos a ver com isto? Estou a falar de disciplina, só isso. Não estou
a dizer que vos vou fazer passar um mau bocado só por serem vocês. Não há diferença nenhuma entre a maneira como vos trato e a maneira como trato os romanos. Cato,
não é verdade, isto?
- Oh, sim, isso é bem verdade.
- Pronto! Estás a ver?
Tincómio encolheu os ombros.
- Não gosto de ver o meu povo tratado como animais, senhor.
- Como animais, só em combate. - Riu Macro. - E são bem bons
nisso!
- Até parece que está orgulhoso de nós, Centurião.
- Orgulhoso? Foda-se, é óbvio que estou orgulhoso. Trataram bem da saúde aos Durotriges. Repara, ainda não estão exactamente no ponto. Mas quando eu e o Cato acabarmos
de os treinar, terás entre mãos o mais letal grupo de Celtas que esta ilha conheceu.
Tincómio assentiu satisfeito.
- Estás contente agora?
- Sim, senhor. Desculpe ter duvidado, senhor.
- Bom, por esta passa. Agora, junta-te aos instrutores. Vocês, bretões, podem ser lutadores natos, mas quanto a línguas não vêem um boi. Agora desaparece.
Depois de Tincómio os deixar, Macro virou-se para Cato, espetando-lhe um dedo no peito.
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- Nunca mais te atrevas a contradizer-me à frente dele!
- Sim, senhor.
- E não me chames senhor.
- Desculpe.
- E não estejas sempre a pedir desculpa, porra!
Cato abriu a boca, fechou-a de novo e assentiu.
- Bom, Cato, afinal o que era aquilo tudo? Aquela conversa que arranjaste sobre camaradas.
- Bem, limitei-me a pensar, dadas as correntes tensões em Caleba, que devíamos lembrar o facto de que os Javalis e os Lobos foram criados para servir Vérica.
- É o que lhes dizemos. - Concordou Macro. - Mas qualquer idiota percebe que são apenas mais duas coortes auxiliares ao serviço de Roma.
- Cuidado com as pessoas a quem diz isso. Eu não o repetiria à frente de tipos como o Artax.
- Ou deste miúdo do Tincómio! - Retorquiu Macro. - Mas estou a ver que ele já te enganou... Olha, Cato, não sou assim tão parvo. Mas, no fim das contas, nós treinámo-los,
armámo-los e até os alimentamos. Isso faz deles nossos.
- Duvido que a maior parte deles veja a questão da mesma maneira.
- São tolos, então. E agora, deixa de te preocupar com isso.
- E se alguém como o Artax não apreciar o facto de receber ordens de um romano?
- Trataremos desse caso se e quando ele se der. - Concluiu Macro impacientemente. - Bom, tenho uma série de registos para verificar, e tu tens um treino para orientar.
Mas Cato olhava sobre o ombro do outro, na direcção dos portões do depósito. Um pequeno grupo de cavaleiros tinha entrado, vindo de Caleba. Eram chefiados por uma
figura alta com uma capa escarlate, que montava um magnífico cavalo negro. Macro virou-se para ver o que o seu jovem amigo apreciava com tanta atenção. Um dos cavaleiros
esporeou o cavalo e aproximou-se velozmente dos dois centuriões.
- Os teus olhos são melhores que os meus. Quem é aquele junto ao portão?
- Não faço ideia. - Respondeu Cato. - Nunca o vi antes.
- Bom, já vamos saber. - Macro acenou ao cavaleiro, que fez estacar a montada a curta distância dos dois centuriões, e escorregou suavemente para o solo. Olhou rapidamente
para o par, e fez a saudação militar na direcção de Macro.
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- Senhor! O tribuno Quintílio apresenta os seus cumprimentos e , solicita a presença do comandante do depósito no edifício do comando,
imediatamente.
- Quem, exactamente, é esse tribuno Quintílio? - Macro inclinou
a cabeça na direcção do portão.
- Vem do quartel-general, senhor. Sob ordens do general. Se quiser
falar com o tribuno, senhor, o mais cedo possível...?
- Sim. - Rosnou Macro. - Evidentemente.
O cavaleiro voltou a saudar, montou e regressou para junto do tribuno.
Macro trocou um rápido olhar com Cato e cuspiu para o solo.
- O que eu quero saber é o que diabo está um sacana de um tribuno
a fazer no meu quintal.
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XVIII
- Fizeram um excelente trabalho, vocês os dois. - O tribuno Quintílio sorriu.
Macro mexeu-se na cadeira, pouco confortável, enquanto Cato sorria com modéstia. O tribuno, encorajado pela resposta do jovem centurião, continuou a elogiá-los com
o seu discurso melífluo, típico de um aristocrata.
- O General Pláucio ficou maravilhado com o relatório que lhe enviaram.
Macro sabia que devia sentir-se agradado pela aprovação dos seus superiores. Lá fora o céu estava de um azul perfeito e os pássaros cantavam, ignorando por completo
os gritos selvagens dos instrutores que supervisionavam o treino dos homens na parada. A independência de que gozara soubera-lhe bem; recrutara e treinara com sucesso
o seu pequeno exército, levara-o a uma retumbante vitória contra o inimigo. Tudo devia estar a bater certo. E estaria, se não fosse aquele tribuno sentado à sua
frente.
- Tão maravilhado que o enviou para verificar a situação... senhor.
A amargura na voz de Macro era tão clara como o céu de Verão, e os
finos lábios do tribuno estreitaram-se ainda mais por um instante, antes do sorriso regressar e ser acompanhado por um sacudir da cabeça.
- Não fui enviado para te espiar, centurião. E podes ficar descansado, não tenho ordens para tomar o comando. O depósito, a guarnição e as duas coortes nativas estão
sob as tuas ordens. A forma como tu e os teus homens se portaram não justifica nem aconselha qualquer alteração, e o general não a aceitaria. Ele gosta dos seus
heróis, e sabe muito bem que o sucesso tem que ser encorajado, para que conduza a novos sucessos.
Macro não ficou totalmente satisfeito com a resposta, mas fez um curto gesto de assentimento com a cabeça. No passado, tinha lidado com
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suficientes tribunos para ficar a saber que eram treinados na politiquice desde a mais tenra infância. Um ou dois, dos que tinha conhecido, preocupavam-se mais com
os aspectos militares. Eram a excepção. Todos os outros eram gente ambiciosa, desesperados por se mostrarem e atraírem o olhar de Narciso, o chefe supremo do estado-maior
imperial. Este não perdia ocasião de recrutar os jovens aristocratas que mostravam capacidade política e flexibilidade moral.
Não era por isso difícil de perceber que Macro tivesse os tribunos em fraca conta - e os legados também, pensou, mas depois reconsiderou. Vespasiano era diferente.
O legado já tinha demonstrado ser um homem honesto, corajoso, que não hesitava em partilhar os desconfortos e os perigos que ameaçavam os seus homens. Essa era a
qualidade que Macro procurava em todos os oficiais sob os quais servia. Uma pena, portanto, que Vespasiano estivesse condenado a uma vida na obscuridade, assim que
o seu turno de comandante da Segunda Legião terminasse, concluiu. A sua própria integridade era o seu maior inimigo.
Abandonando essa linha de pensamento, Macro concentrou-se no tribuno sentado à sua frente. Decidiu que Quintílio era um exemplar típico da sua classe. Jovem. Não
tão jovem como Cato, mas suficientemente novo para não possuir experiência nos campos em que ela era mais necessária. Apesar dos poucos anos de vida, Cato era rijo,
inteligente e, em combate, pelo menos tão letal como a maior parte dos soldados que Macro conhecera. Quintílio, em contraste, parecia mole. Não havia gordura no
seu corpo alto e elegante, mas a pele mostrava aquela suavidade massajada que traía um crescimento em meio protegido. O cabelo escuro apresentava-se bem cortado,
os caracóis oleados bem evidentes. Também o uniforme era adornado com pequenos e ricos detalhes que indicavam a fortuna e o estatuto da família, com clareza mas
sem ostentação. Quintílio falava com calma segurança, dando ênfase às palavras com leves floreados da mão, que lhe tinham sido sem dúvida ensinados por algum professor
de retórica. Com tal graciosidade, bem parecido e com uma fortuna importante a ampará-lo, Quintílio devia com certeza ter grande sucesso junto do sexo feminino.
Quanto a Macro, por puro instinto, detestou-o.
- Há, infelizmente, um aspecto do relatório que gostaria de discutir.
- Quintílio sorriu mais uma vez, extraindo um rolo de pergaminho de uma sacola de cabedal que tinha aos pés.
Macro reconheceu o seu relatório com um sentimento de derrota.
- Ah, sim?
O tribuno desenrolou o pergaminho e passou os olhos rapidamente pelas últimas linhas.
- Mencionas, de passagem, que existem, entre os Atrébates, elementos
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que não são tão entusiastas como o rei quanto à aliança com Roma.
- Sim, senhor. - Macro tentou relembrar exactamente as frases que usara no relatório. Detestava ver-se assim em cheque, obrigado a justificar as palavras que tinha
escrito há dias por um oficial superior que tinha a vantagem de ter todo o relatório bem à sua frente. Não era justo, mas havia muito pouco de justo nas legiões.
- E o que queres dizer com isso, precisamente? - Foi a questão levantada por Quintílio.
- Nada demais, senhor. Há alguns descontentes que resmungam acerca dos planos futuros de Roma quanto aos Atrébates, mas nada que o rei não consiga resolver.
Cato lançou um olhar de surpresa na direcção do amigo, mas depressa compôs a expressão na sua face, uma vez que o tribuno voltara a erguer os olhos do relatório.
- Sim, é isso que dizes aqui, mais ou menos. Mas soube que o rei tratou do assunto de uma forma mais drástica do que o relatório implica... pode-se dizer que ele
filou os resmungões, se me perdoarem a expressão. Quer dizer, lançar os críticos aos cães é uma resposta um bocado exagerada...
- Como soube disso?
O tribuno encolheu os ombros.
- Isso não interessa. O que importa agora é que me digam qual é a verdadeira situação aqui em Caleba.
- Senhor, não eram meros críticos. Eram traidores, e tiveram o que mereciam. Um tanto ou quanto à bruta, mas não podemos esquecer que esta gente não passa de bárbaros.
Vérica resolveu o problema à sua maneira.
- É verdade. Mas porque não foi tal facto mencionado no relatório?
- Porque foi escrito antes de Vérica liquidar os traidores.
- Muito bem. Não te posso culpar por isso. - Concedeu Quintílio.
- De facto, não, senhor.
- Bom, e como tem sido a situação depois disso?
- Calma. Alguma tensão nas ruas, mas nada mais do que isso.
- E será seguro afirmar que o trono do Rei Vérica não está em perigo?
- Penso que sim. - Macro olhou de relance para Cato. - Não achas?
Cato concordou com um quase imperceptível movimento da cabeça, o que fez com que Macro o olhasse com fúria.
- Diria que o Centurião Cato tem uma opinião ligeiramente diferente sobre o assunto. - Foi o calmo comentário de Quintílio.
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- Senhor, o centurião Cato tem alguma falta de experiência.
- Isso vejo eu.
Cato corou.
- Considero porém que seria útil ouvir uma segunda opinião, só para clarificar a situação. - O tribuno fez um gesto na direcção de Cato.
- Então?
Pareceu a Cato que uma negra onda de ansiedade e depressão o engolia. Não podia deixar de responder ao tribuno, mas a lealdade que sentia para com Macro obrigava-o
a não dar a impressão de estar a minar a versão que o amigo apresentara. Amaldiçoou o temperamento irritável do seu camarada. Não tinha melhor impressão da arrogância
aristocrática do que Macro, mas como tinha crescido no palácio imperial estava habituado a ela, e sabia enfrentá-la. Por muito que Macro apreciasse o seu comando
independente, longe das vistas de oficiais superiores, Cato estava consciente de que seria perigoso subestimar as dificuldades políticas que Vérica enfrentava. Além
disso, sendo ele mais dado à especulação do que Macro, apercebia-se das implicações estratégicas que afectavam Roma. Se os Atrébates se tornassem hostis, não apenas
a campanha que decorria seria perdida, mas a conquista da Britânia teria provavelmente de ser abandonada. E as vergonhosas consequências desse desenlace poderiam
tornar-se uma ameaça ao próprio Imperador. Cato refreou a especulação e regressou ao presente. O esquema geral das coisas estava bem presente no seu espírito, mas
ali era Macro que estava metido em trabalhos, e precisava do seu apoio.
- Senhor, o Centurião Macro tem razão...
As mãos de Macro descansaram sobre os joelhos, e ele endireitou-se na cadeira, tentando não sorrir.
- Tem razão. - Repetiu Cato, pensativo. - Mas seria prudente considerarmos a possibilidade de ocorrer algum problema. Afinal de contas, o rei está velho. E os anciãos
têm alguma predilecção pela morte, ajudados ou não...
O tribuno soltou uma risada.
- E sabes de alguém que não se importasse de dar uma ajuda - além de Carátaco e dos Durotriges?
- Senhor, as famílias dos homens que ele fez executar têm boas razões para isso.
- Mais alguém?
- Só os descontentes de que Macro falava.
- E, na tua opinião, quantos são esses?
Cato pensou aflito na resposta que ia dar. Se dissesse um número alto, Macro passaria no mínimo por frouxo, talvez por mentiroso. Se o número
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fosse baixo, o tribuno regressaria para junto do General Pláucio com a garantia de que a aliança entre Roma e os Atrébates estava firme. E se tal não se confirmasse...
- Quantos?
- É difícil dizer, senhor. A linha dura que Vérica adoptou em relação aos opositores faz com que eles não se mostrem.
- Há razões para nos preocuparmos? - Perguntou Quintílio, e depois precisou a sua questão. - Há mais alguma coisa que aches que eu deva dizer ao general?
- Na minha opinião, senhor, é como afirmou o centurião Macro. Por agora, o problema está contido. Mas, se a situação se alterar, se Vérica morrer ou se sofrermos
alguma derrota pesada e o rei for deposto, quem sabe? O sucessor que o conselho real escolher pode não se manter leal a Roma.
- Isso é provável?
- É possível.
- Estou a ver. - O tribuno Quintílio encostou-se na cadeira, mantendo o olhar no chão de terra batida, entre os pés. Esfregou o polegar na penugem que lhe crescia
sob o queixo, enquanto considerava a situação. Por fim, quando Macro já se remexia na cadeira, desconfortável, o tribuno voltou a erguer os olhos. - Senhores, vou
ser honesto convosco. A situação preocupa-me mais do que aquilo que esperava. O general não vai ficar satisfeito quando ler o meu relatório. Neste momento, as quatro
legiões estão dispostas ao longo de uma enorme frente, tentando conter Carátaco e fixá-lo, de modo a que possamos lançar um ataque final. Por trás das legiões, as
linhas de abastecimento estendem-se até Rutúpias. A maior parte delas passa pelas terras dos Atrébates. Já estamos a ter muito trabalho para manter em cheque as
colunas que o inimigo utiliza para os ataques rápidos por trás das nossas linhas. Se os Atrébates se juntarem a Carátaco, acaba-se a brincadeira. O general Pláucio
será forçado a retirar e recuar até à fortaleza do Tamisa. Levar-nos-ia anos a recuperar todo esse terreno. E entretanto Carátaco tiraria partido da nossa retirada.
As tribos juntar-se-iam a ele em massa. Com gente suficiente, mesmo sendo Celtas, Carátaco poderia derrotar as nossas legiões. - Quintílio encarou Cato e Macro.
- Compreendem a delicadeza da situação?
- Senhor, não somos parvos. - Retorquiu Macro. - Evidentemente que sabemos em que ponto estão as coisas. Não é, Cato?
- Sim.
Quintílio assentiu, quando pareceu chegar a uma conclusão.
- Não ficarão então surpreendidos quando souberem que o general me atribuiu poderes de procurador sobre este reino, e ordens para que os
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assuma se me aperceber de alguma ameaça às linhas de abastecimento das legiões.
- Senhor, não pode estar a falar a sério! - Cato meneou a cabeça.
- Anexação? Os Atrébates nunca o aceitariam.
- Mas quem disse que eles teriam voto na matéria? - Quintílio reagiu friamente. - Enquanto tiverem o bom senso de fazer aquilo que lhes pedimos, podem ter lá o seu
rei. Mas assim que puserem em causa os nossos interesses, serei obrigado a agir. A Segunda Legião será chamada a Caleba para fazer respeitar as minhas determinações.
Os nativos, as suas terras, ficarão sob as ordens directas de Roma; o reino dos Atrébates deixará de existir.
- Não. - Murmurou Macro. - Eles preferirão a morte.
- Disparate! Não sejas melodramático, centurião. Farão o que for necessário para sobreviver, como qualquer pessoa impotente para alterar o curso dos acontecimentos.
Já devem ter uma boa ideia do preço de desafiarem Roma. - A chama da ambição sem escrúpulos brilhava nos olhos do tribuno. - E, se não souberem, eu mostrar-lho-ei.
- Se tal se tornar necessário. - Arriscou Cato.
- Sim. - O tribuno assentiu. - Se tal se tornar necessário.
A mente de Cato ressoava ainda com a audácia do golpe que o tribuno estava disposto a desferir. Podia facilmente imaginar a reacção do orgulhoso e sensível Artax.
E de Tincómio. Até o humilde Bedríaco podia muito bem ficar pouco satisfeito com a imposição arbitrária do controlo romano directo. Ao longo dos meses, Cato sentia
que tinha começado a compreender um pouco daquele povo. À medida que aprendia a língua, tinha conhecido a cultura local, e até lhes tinha ganho algum respeito em
muitos campos. Estes Bretões possuíam uma integridade que não se vislumbrava em nenhuma das raças que viviam há muitos anos sob a sombra das Águias. Na Gália, Cato
tinha visto até que ponto a paisagem tinha sido transformada numa cópia imperfeita das grandes propriedades que cobriam a Itália. Gerações de nativos tinham perdido
os seus territórios ancestrais, e agora trabalhavam nas mesmas terras a troco de umas rações miseráveis. À volta das propriedades em que havia trabalho escravo,
os descendentes das outrora orgulhosas tribos que quase tinham levado a melhor sobre o próprio César eram forçados a procurar trabalho nas pequenas indústrias que
tinham nascido em redor das novas cidades romanas espalhadas pela Gália.
Quaisquer que fossem as exigências estratégicas da situação, Cato achava que os Atrébates mereciam melhor. Homens de valor tinham derramado o seu sangue para defender
as rotas de abastecimento das legiões. Vira-os morrer. Claro que também tinham estado a defender-se dos seus
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agressivos vizinhos, mas o que verdadeiramente o impressionara era o respeito mútuo e, era preciso admiti-lo, a amizade que tinha forjado um laço entre os guerreiros
atrébates e os seus instrutores da segunda legião. Sobretudo com Fígulo, que conhecia a língua e, fora do uniforme, era um Celta sem tirar nem pôr.
Através da janela aberta do gabinete de Macro eram perfeitamente audíveis os sons dos homens a treinar na parada, e Cato sentiu-se surpreendido pela facilidade com
que os jogos de poder podiam destruir um trabalho tão bem feito. A tremenda tensão que se seguira ao banquete oferecido por Vérica acabaria por diminuir, e a divisão
na tribo seria apagada. Mas o que Quintílio propunha faria com que todos os homens, excepto um punhado deles, se unisse contra Roma. Era uma loucura, e era preciso
que o tribuno o entendesse.
- Senhor, organizámos aqui duas magníficas coortes de guerreiros. Combatem bem, e lutam ao nosso lado porque acreditam que somos seus amigos, não seus opressores.
Poderão um dia ser autorizados a servirem como tropas auxiliares, e onde eles forem outras tribos acabarão por segui-los. E tudo isso seria perdido se o reino fosse
reduzido a uma província romana. Pior, eles unir-se-iam contra nós... Duvido que o general aprovasse tal plano.
Quintílio franziu o sobrolho durante alguns instantes, até que a sua expressão relaxou e mostrou um sorriso resignado.
- Tens razão, claro. Não podemos desperdiçar a ocasião que vocês souberam criar. Enquanto as vossas coortes existirem, é melhor andarmos com calma.
Cato acalmou, e assentiu. Então o tribuno levantou-se graciosamente da cadeira. Macro e Cato levantaram-se também e colocaram-se em sentido.
- Bem, senhores, se me desculpam, tenho mesmo que ir apresentar os meus respeitos ao rei Vérica, antes que ofenda os nossos aliados.
Depois de o tribuno se afastar, Macro sorriu.
- Meteste-o num bonito embrulho! O sacana vai ter que nos deixar em paz, pelo menos por agora.
- Não estou assim tão certo.
- Oh, Cato, caramba! Porque é que tens sempre que ser desconfiado? Ouviste o que ele disse: o tipo acha que tens razão.
- É o que ele diz...
- E?
- Não tenho a certeza. - Cato olhou para os pés. - Não confio
nele.
- Achas que ele tem alguma preparada?
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- Não. Não deve andar a conspirar. Mas é ambicioso. Não é todos os dias que o general atribui poderes de procurador.
- O que é que queres dizer?
- Quero dizer que o nosso amigo Quintílio se pode sentir fortemente tentado a utilizar esses poderes, haja o que houver. Mesmo que isso signifique provocar uma rebelião
dos Atrébates.
Macro olhou para ele durante um momento, e depois abanou a cabeça.
- Não. Ninguém é assim tão estúpido.
- Ele não é um ninguém. - Disse Cato calmamente. - É um patrício. E os do tipo dele não servem Roma. Da maneira como ele vê a coisa, Roma existe para o servir, de
qualquer forma que ele possa aproveitar. Se os atrébates se revoltarem, então ele pode usar os seus poderes para requisitar todas as tropas disponíveis e esmagar
a tribo. Uma vitória gloriosa tem uma maneira engraçada de apagar as razões que a tornaram necessária à partida.
Quando Cato terminou, o centurião mais velho soltou uma profunda gargalhada.
- Que os deuses nos ajudem se alguma vez decidires dedicares-te à política. Tens uma porra de uma mente retorcida, jovem Cato.
Cato corou ligeiramente perante a crítica implícita, antes de encolher os ombros.
- Deixo a política àqueles que para isso foram educados. Só quero sobreviver. E por agora estamos sentados num ninho de escorpiões. Temos duas coortes de tropas
nativas, perigosamente convencidas de que chegam para qualquer adversário. Temos uma cidade cheia até cima de uma turba esfomeada, e um velho rei que se assusta
com cada sombra, porque está convencido de que os seus próprios nobres conspiram para o liquidar. Lá fora temos colunas inimigas que atacam as terras dos Atrébates
e os nossos comboios de abastecimento. E agora... agora temos um tribuno arrivista, ganancioso, à procura da primeira desculpa para anexar os nativos.
- Olhou para Macro e abanou a cabeça. - Porque é que não havemos de nos preocupar?
- Tens razão nesse ponto. - Macro assentiu. - Vamos mas é ver se arranjamos qualquer coisa que se beba.

XIX
O tribuno Quintílio avançava lentamente pelas imundas vias de Caleba. Atrás dele seguiam os guardas que trouxera do quartel-general do exército: seis homens escolhidos
pela sua dureza; cada um deles tão alto e largo de ombros como o próprio tribuno. Sabia que impressão queria projectar nas mentes daqueles bárbaros. Como representante
do general e, por extensão, do Imperador, tinha que ser a verdadeira imagem da raça conquistadora, escolhida pelos próprios deuses para subjugar as gentes atrasadas
que pululavam no mundo para lá dos limites do Império.
Lançou o olhar em redor, curioso, enquanto escolhia o caminho por entre as cabanas de colmo e se dirigia ao recinto real. Muitos dos habitantes locais estavam sentados
à entrada das casas, formando um conjunto de faces magras, com o desespero bem vincado nas expressões. Ainda não tinham chegado ao ponto em que a fome os deixaria
apáticos e sem acção. Portanto, ponderou o tribuno, ainda constituíam um perigo. Podiam ainda ter a energia necessária para responder a um apelo à revolta contra
Vérica e Roma.
O silêncio era impressionante, depois de todo o ruído do treino no depósito, e Quintílio sentiu-se aliviado quando contornou uma curva e se deparou com os portões
de madeira e a paliçada elevada do recinto privado dos reis dos Atrébates. Para sua surpresa, os portões estavam encerrados. Aparentemente, os ocupantes do recinto
estavam bem conscientes das tensões que ferviam pelas quentes ruas de Caleba. Quando os Romanos se aproximaram, uma das sentinelas no passadiço sobre os portões
virou-se para o grande salão do rei e avisou da chegada dos visitantes. Mas os portões mantiveram-se fechados quando Quintílio se dirigiu a eles. Começava a temer
que ia passar pela tremenda indignidade de lhe ver ser recusada a entrada quando um rosto surgiu na paliçada sobre as sólidas vigas da estrutura dos portões. Quintílio
olhou para cima, franzindo os olhos por causa do sol radiante e apercebendo-se do vulto de um enorme guerreiro.
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- Falas latim, por acaso? - Perguntou o tribuno, com um sorriso.
O homem fez que sim com a cabeça.
- Então, por favor, informa o teu rei de que o tribuno Quintílio solicita uma audiência. Fui enviado por Áulio Pláucio.
Os olhos do bretão arregalaram-se ligeiramente quando ouviu o nome do General.
- Espera aí, romano.
Então desapareceu, e os portões permaneceram imóveis. Quintílio encarou os toros e bateu com a mão na coxa, em sinal de frustração. Os romanos esperaram debaixo
do sol escaldante, entre as pobres cabanas que delimitavam a rua irregular. O fedor que provinha de uma pilha de estrume próxima, aquecida pelo sol até libertar
vapores fétidos, enchia o ar parado, e o tribuno franziu o nariz, desgostado. As moscas desenhavam trajectórias preguiçosas ao redor do oficial e dos guardas romanos,
e ali perto um cão ladrava incessantemente. Quintílio adoptou um ar de desprendimento, e andou lentamente para trás e para a frente junto ao portão, as mãos por
trás das costas. Decidiu que toda a cidade estava a precisar de ser demolida. Começou a imaginar Caleba como sede do governo da província: filas regulares de casas
com telhados sólidos, dispostas em torno de um palácio modesto e de uma basílica, que proclamariam que a lei e a ordem romanas tinham triunfado mais uma vez.
Ouviu-se por fim um som pesado do outro lado dos portões, quando a tranca foi removida. Momentos depois, uma das portas moveu-se lentamente para dentro. O bretão
que tinham avistado antes convidou-os a entrar, e o portão voltou à posição inicial.
- Por aqui. - O bretão indicou com um dedo a direcção do grande salão do rei. Quintílio engoliu a ira pela brutal falta de maneiras do outro, e acenou aos guardas
para que o seguissem.
O recinto estava quase tão calmo como a cidade para lá dos portões. Um punhado de guardas percorria lentamente a paliçada, observando atentamente as cabanas do outro
lado. Outros homens estavam sentados ou dormitavam nas sombras, e Quintílio sentiu que vários pares de olhos o observavam cuidadosamente ao passar. À entrada do
salão estavam quatro guerreiros, agachados à sombra. Levantaram-se à aproximação do pequeno grupo. Quando lá chegaram, o bretão virou-se para Quintílio.
- Os teus homens esperam aqui.
- São os meus guardas pessoais.
- Esperam aqui. - Repetiu o bretão, com firmeza. - Tu vens comigo.
Depois de uma ligeiríssima hesitação, de forma a mostrar aos seus anfitriões que estava a fazer uma concessão, Quintílio seguiu o homem


para o interior do edifício. O contraste com a brilhante luz do exterior era tremendo, e Quintílio admirou-se com os ecos na escuridão enquanto caminhava atrás da
forma escura do bretão, sobre um chão irregularmente pavimentado. Uma pequena abertura no alto do telhado permitia que um raio de luz penetrasse por entre as vigas,
e viam-se partículas de pó a dançar por entre a suave claridade dourada. Quintílio reparou que o ar estava agradavelmente fresco, mas que cheirava a cerveja e a
cozinhados. Ao fundo do salão havia uma pequena porta, com uma cortina de couro no lado de dentro. A um dos lados da entrada encontrava-se um guarda de espada desembainhada,
embora a ponta se apoiasse no solo, entre os pés. O companheiro do tribuno acenou ao guarda, que se desviou, e depois bateu na madeira da ombreira. Uma voz respondeu,
e então o bretão afastou a cortina para o lado, entrou, e fez sinal ao tribuno para que o seguisse até ao interior do quarto.
Pelos padrões romanos, os aposentos privados do rei eram pobres, e Quintílio viu-se imediatamente obrigado a reprimir um gesto que trairia o seu desgosto e condescendência,
de forma muito pouco diplomática. As paredes abauladas estavam cobertas por peles de animais, e o chão juncado de arcas que guardavam as posses do rei. Perto da
entrada via-se uma grande mesa com várias cadeiras em volta. Ao fundo do quarto estava a cama, larga, também coberta por peles. Ao lado do leito, Vérica vestia uma
longa túnica sobre as peles descaídas e enrugadas do seu magro corpo. Uma gargalhada leve e estridente chamou a atenção do tribuno para a cama, e ele avistou a face
de uma mulher, jovem, pouco mais do que uma menina, por entre as cobertas. Vérica disse-lhe qualquer coisa, e apontou a porta com os dedos. A rapariga afastou imediatamente
as mantas, saltou para o chão, agarrou um vestido esfarrapado que estava ao pé da cama, e correu na direcção dos visitantes. Quintílio desviou-se para ela passar,
e lançou um olhar aprovador ao corpo esguio.
- Quere-la? - Perguntou Vérica, encaminhando-se para ele de forma hirta. - Depois de conversarmos, claro. Ela é boa.
- Muito agradecido, mas receio que vá estar demasiado ocupado para poder aproveitar. Além disso, prefiro-as um pouco mais velhas - e mais experientes.
- Experiência? - Vérica franziu a face. - Cada dia fico mais farto da experiência. Na minha idade, um homem deseja a vida que teve antes dela ser arruinada pela
experiência... Perdão. - Sorriu e levantou uma mão, à laia de saudação. - Tenho andado demasiado preocupado com questões de idade nos últimos tempos. Senta-te aqui
à mesa, tribuno, por favor. Já pedi mais vinho. Sei bem que os nossos amigos romanos preferem vinho à nossa cerveja.
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- Muito obrigado, sire.
Enquanto os dois homens se sentavam à mesa, um jovem escravo chegou com um par de copos e um jarro. Deitou um líquido vermelho escuro em cada um deles. Assim que
a tarefa foi completada, o rapaz desapareceu do quarto. Vérica acenou com a cabeça para uma cadeira na ponta distante da mesa, e o bretão que tinha escoltado o tribuno
juntou-se-lhes.
- Cadmínio é o capitão da guarda real. - Explicou Vérica. - Mantenho-o sempre por perto. Tudo o que tiveres a dizer-me pode ser ouvido por ele.
- Estou a ver.
- Bom, tribuno Quintílio, a que devo o prazer da tua visita?
Quintílio deplorou a rudeza do homem. Mas havia que dar um desconto à falta de graça social e de jeito diplomático dos celtas. Afinal de contas, o homem tinha sido
criado no meio da miséria bárbara, e tinha apenas passado alguns breves anos como convidado de Roma. Mesmo assim, Quintílio forçou-se a sorrir.
- Aprecio a vossa franqueza, sire.
- Tenho pouco tempo para formalidades, tribuno. Tenho muito pouco tempo seja para o que for, por estes dias.
Excepto para satisfazer o apetite por carne jovem, pensou Quintílio, e depois voltou a obrigar-se a sorrir.
- O General envia os mais calorosos cumprimentos ao rei Vérica, o mais querido amigo de Roma.
Vérica riu.
- Estranho mundo este, em que uma tribo tão insignificante como os Atrébates assume tamanha importância aos olhos de um poder tão imenso como Roma.
- Ainda assim, sire, vós e o vosso povo sois importantes para o Imperador, e para o General, como deveis saber.
- Claro. Qualquer homem que tenha outro a guardar-lhe as costas se pergunta se esse homem é amigo ou inimigo. Tal é a medida da nossa importância, não é assim?
Quintílio riu por sua vez.
- Descreveis a nossa relação de uma forma admiravelmente sucinta, sire. O que nos traz ao motivo da minha visita.
- Áulio Pláucio quer saber até que ponto pode confiar em mim.
- Oh, não, sire! - Protestou Quintílio. - O general não tem quaisquer dúvidas sobre a vossa lealdade a Roma. Nenhumas.
- Que reconfortante.
Vérica pegou no copo e bebeu, a maçã de Adão a balançar para tras
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e para a frente na esquálida garganta à medida que a base do copo subia mais e mais. Então, com gotas vermelhas a escaparem-se pelos lados e a correrem pelos alvos
pelos da barba, Vérica acabou o copo e bateu-o na mesa.
- Bom material! Experimenta, tribuno.
Quintílio levou o copo aos lábios, descobriu que o aroma lhe agradava, e provou. O líquido adocicado estava repleto de sabores e deu-lhe uma agradável sensação de
calor enquanto lhe descia pela garganta. Não era afinal nenhum vinho barato. Não conseguia adivinhar-lhe a origem, mas podia imaginar o custo.
- Muito bom, sire. Uma lembrança dos vossos dias como hóspede de Roma?
- É claro. E pensas, por um instante, que eu seria louco a ponto de me virar contra Roma e desistir disto?
Riram em uníssono, mas depois Vérica abanou a cabeça.
- A sério, tribuno, temos muito a ganhar com a aliança com Roma. E mesmo que não fosse esse o caso, preferia arriscar ao lado de Roma do que dar uma ajuda a esse
filho da mãe do Carátaco. Estaria morto em poucos dias, e um qualquer fanático anti-romano ocuparia o meu lugar.
- E esse homem seria facilmente encontrado entre os Atrébates?
- Sondou Quintílio.
Vérica olhou para ele um instante, todos os traços de boa disposição desaparecidos da sua face.
- Há alguns que talvez pensem que a nossa tribo está do lado errado,
sim.
- Alguns? Quantos?
- Os suficientes para me causarem apreensão.
- O que vos preocupa, sire, preocupa Roma.
- Oh, tenho a certeza disso.
- Sabeis quem são esses homens?
- Alguns, sim. - Admitiu Vérica. - De muitos outros, limito-me a suspeitar. E quanto ao resto, quem sabe?
- Então porque não tratar deles, sire?
- Tratar deles? Que diabo de eufemismo é esse? Diz o que queres dizer, tribuno. Temos que ser claros naquilo que dizemos. Os eufemismos são para os cobardes, e só
conduzem a posteriores desencontros e recriminações. Queres que mate gente do meu povo?
Quintílio assentiu.
- Para vossa própria segurança, e como um exemplo para outros.
- Suponho que o bom centurião Macro te tenha contado que já tentei esse método, e que não resultou.
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- Talvez não tenhais removido um número suficiente dos vossos inimigos, sire?
- Talvez tenha 'removido' mais do que devia. Talvez nunca devesse ter removido nenhum deles. É o que pensa o Cadmínio, embora não se atreva a dizê-lo.
Na ponta da mesa, o capitão da guarda real baixou o olhar. Quintílio ignorou-o e inclinou-se para Vérica.
- Isso teria sido visto como fraqueza, sire. Teria encorajado outros a levantarem a voz contra a vossa pessoa. A tolerância leva sempre à fraqueza. E a fraqueza
leva à derrota.
- É tudo tão fácil para ti, não é, romano? - Vérica abanou a cabeça.
- Tudo é preto ou branco. Uma solução para todas as situações. Governar com punho de ferro.
- Para nós resulta, sire.
- Nós? Que idade tens, tribuno?
- Vinte e quatro, sire. Para o mês que vem.
- Vinte e quatro... - O atrébate olhou-o nos olhos por um instante, e abanou a cabeça. - Caleba não é Roma, Quintílio. A minha situação precisa de um equilíbrio
mais apurado. Elimino demasiados dos meus inimigos, e provoco uma rebelião por parte dos que não suportam a opressão. Mato poucos, e provoco uma rebelião dos que
abusam da minha tolerância. Vês o meu problema? E agora pergunto-te, quantos devo matar para conseguir o resultado desejado sem provocar uma revolta?
Quintílio não podia responder, e ficou furioso consigo próprio por se ter deixado conduzir a uma tão óbvia armadilha retórica. Tinha sido ensinado pelos mais caros
professores que o seu pai tinha podido contratar, e sentia-se envergonhado. Maldito rei Vérica. Maldito velho encarquilhado. Tinha arranjado uma confusão dos diabos,
e agora Roma que a resolvesse. Sempre Roma.
- Sire. - O tribuno respondeu com toda a calma. - Reconheço que governar um reino não é uma ciência precisa. Mas tendes um problema. O vosso povo está dividido,
e alguns são hostis a Roma. O que transforma a questão num problema também nosso. Tendes de Encontrar uma solução, para o bem do vosso povo.
- Ou então?
- Ou então terá que ser Roma a resolver a situação.
Deu-se um momento de silêncio, e o tribuno apercebeu-se de que Cadmínio se endireitara na cadeira e tinha fechado a mão num punho. Na outra ponta da mesa, Vérica
recostou-se e juntou as mãos, apoiando os lábios nas pontas dos dedos, enquanto observava Quintílio através de olhos semicerrados.
159

- Ameaças-me?
- Não, sire. Claro que não. Mas permiti-me que descreva as opções que se abrem ao vosso povo, tal como eu as vejo.
- Continua, jovem.
- Os Atrébates devem continuar como aliados de Roma. Temos que ter a garantia de que os nossos abastecimentos podem atravessar as vossas terras em segurança. Enquanto
puderdes garantir tal facto, encontrarás em nós aliados gratos e valiosos. E, se quem vos suceder prosseguir a mesma política, Roma ficará feliz em permitir que
os Atrébates tratem dos seus próprios assuntos - pelo menos enquanto não se derem desenvolvimentos que ponham em perigo os nossos interesses.
- E se tal suceder?
- Então teríamos de vos auxiliar a administrar o vosso reino.
- Queres dizer, anexar-nos? Transformar-nos numa província.
- Claro que espero que isso nunca venha a suceder, sire.
Deu-se uma tensa pausa, antes que Vérica continuasse.
- Estou a ver. E se a nossa política se alterar?
- Seremos então forçados a esmagar quaisquer forças que se oponham a Roma. Todas as armas serão confiscadas. As vossas terras e as dos nobres que se nos opuserem
serão anexadas, e quaisquer prisioneiros que façamos serão vendidos como escravos. É esse o destino dos que quebram a confiança de Roma.
Vérica olhou para o tribuno durante alguns instantes, e depois os seus olhos viraram-se para o capitão da guarda. Cadmínio estava a ter dificuldades para controlar
a sua ira perante a ameaça clara que o enviado romano pusera sobre a mesa.
- Não me deixas grande escolha quanto ao futuro, nem ao meu
povo.
- Não, sire. Nenhuma.

XX
Dois dias depois da chegada do tribuno, o rei Vérica anunciou que ia organizar uma caçada. Uma das florestas nos arredores de Caleba era uma reserva de caça real,
e os camponeses que viviam por perto estavam proibidos de abater quaisquer animais dentro dos limites da mesma.
Na tarde do dia anterior à caçada o ar estava irrespirável. O sol abatia-se sem clemência sobre as ruas desertas de Caleba, enquanto os habitantes procuravam sombras
onde se abrigar. No interior do recinto real, servos e escravos atarefavam-se com as preparações. A imagem romântica e espontânea do homem, nobre criatura, usando
a inteligência contra as tenebrosas forças da natureza, estava muito longe das realidades logísticas desta expedição. As lanças de caça tinham que ser cuidadosamente
seleccionadas para garantir que as hastes estavam em condições, depois de meses armazenadas. Depois tinham que ser limpas e afiadas até se tornarem letais, antes
de serem acomodadas em bolsas de couro para o transporte. Os cavalos tinham que ser avaliados, e as montadas em piores condições devolvidas aos estábulos para outros
serviços. A aparelhagem tinha que ser oleada e polida e ajustada aos animais que seriam montados pelo séquito real. Escravos suavam sob os fardos de material para
os leitos de campanha, que eram empacotados nos vagões parqueados a um dos lados do recinto. Criados ansiosos davam ordens aos servos da cozinha que transportavam
sacos de pão, carnes secas e jarros de vinho e cerveja vindos dos armazéns reais, ao fundo do salão, e os depositavam nos vagões. O capitão da guarda real sentava-se
a uma mesa e recrutava batedores de caça competentes de entre a longa fila que se estendia na direcção do portão. Com tanta falta de comida, os habitantes de Caleba
estavam dispostos a tudo para conseguir um quinhão da carne que seria dividida depois da caçada.
- Qualquer um pode pensar que esta malta vai lançar uma invasão.
- Murmurou Macro, enquanto ele e Cato atravessavam a massa humana fervilhante. - Pensava que íamos fazer uma simples caçada.
161

Cato sorriu.
- Para a outra metade, isso é coisa que não existe.
Falava com conhecimento de causa, já que tinha crescido nos bastidores do Palácio Imperial em Roma. De cada vez que o Imperador decidia, frequentemente por capricho,
que queria 'dar um pulo a Óstia(2) ou escapar para as colinas', para fugir ao calor infernal do Verão de Roma, era ao seu pai que cabia pensar nas miríades de necessidades
e luxos que acompanhavam uma dessas excursões.
O pior tinha sido Calígula, lembrou-se Cato. Os caprichos do Imperador louco quase tinham ultrapassado as fronteiras do plausível, e quase tinham levado o seu plácido
progenitor ao desespero. Como da ocasião em que Calígula tinha decidido que queria passear pela baía de Miseno. Não havia qualquer possibilidade de o levar a ser
razoável. Afinal de contas, o homem era um deus, e quando um deus queria que algo fosse feito, era feito. E assim, milhares de engenheiros tinham construído um pontão
flutuante entre Baias e Puteoli, com navios mercantes e de pesca requisitados para a ocasião. Enquanto Calígula e o seu séquito se passeavam para a frente e para
trás no pontão, milhares de pescadores esfomeados e de mercadores arruinados assistiam e davam vivas ao imperador, incitados pelas espadas dos pretorianos. Cato
tinha assistido a tudo isso, e por isso as implicações práticas da decisão de ir à caça que Vérica tinha tomado não o surpreendiam.
Macro ainda olhava em redor com ar desaprovador.
- Pensava eu que era só pegar numas lanças e correr atrás da bicharada selvagem da floresta. Isto tudo? Onde é que se meteu o sacana do tribuno?
Tinham sido chamados ao fim da tarde, e tinham terminado o treino das duas coortes antes de se meterem a caminho pelas ruas quentes e malcheirosas para irem ter
com o tribuno Quintílio. Ambos os centuriões se sentiam desconfortáveis com as suas grossas túnicas, e Cato estremeceu ao sentir uma gota de suor escorrer-lhe pela
pele, por baixo da lã áspera.
- Estás a vê-lo? - Perguntou Macro, esticando o pescoço em todas as direcções. Sendo alguns centímetros mais baixo que Cato, o seu campo de visão era fortemente
limitado pelos altos Celtas que os rodeavam. Mas o que lhe faltava em altura era compensado pelos sólidos músculos da sua figura maciça. E naquele momento, ponderou
Cato, estava suficientemente irritado para ter vontade de os usar.
- Não.
- Então pergunta a alguém, idiota.
Por momentos Cato irritou-se com o seu camarada, e mal conseguiu
(2)Óstia , cidade costeira situada a cerca de 25 quilómetros de Roma. (Nota da Correctora)

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conter a vontade de dizer a Macro que devia ter feito mais esforços para aprender a linguagem local.
- Está bem. - Olhou à volta e fixou um dos guardas reais, que se apoiava na roda de um vagão, os polegares enfiados no cordão que segurava as calças aos quadrados
à volta do seu peludo estômago. Cato acenou ao homem, mas o bretão limitou-se a sorrir e a continuar a observar o trabalho dos escravos em redor. Soltando uma imprecação
em voz baixa, Cato abriu caminho até ele.
- Ei! Tu!
O guarda olhou para o romano que se aproximava com uma expressão irritada.
- Viste o tribuno?
Cato sabia que o seu sotaque era compreensível, mas o homem fingiu que não percebia.
- O tribuno. O romano que chegou há quatro dias. Está por aqui?
- Sa! - O guarda assentiu, uma vez.
- Onde?
O bretão inclinou a cabeça na direcção do salão real.
- Lá dentro?
- Na! A treinar.
Cato virou-se para Macro.
- Está cá. Por trás do salão.
- Bom. - Macro olhava fixamente para o guarda. - És do tipo falador, não é?
O latim era incompreensível para o bretão, e ele limitou-se a devolver o olhar do centurião, em silêncio e sem ceder.
- Vamos. - Disse Cato. - Não podemos fazer esperar o tribuno. Guarde esse mau humor para depois.
Com Cato à frente, os dois centuriões abriram caminho por entre a turba na direcção da entrada do salão. Os dois guardas já os conheciam, e por isso acenaram-lhes
para entrar. O interior estava escuro e fresco, e precisaram de um momento para se ajustar à penumbra. Então Cato apercebeu-se de alguns nobres que descansavam sobre
os bancos que ladeavam o salão. Viam-se copos abandonados e restos de uma refeição em pratos de madeira espalhados pelas mesas largas. Deitados no chão adivinhavam-se
os vultos de cães de caça - todos quietos, excepto uma cadela que lambia um dos cachorros da ninhada que lhe pressionava o flanco. No tecto viam-se alguns raios
de sol que perfuravam o colmo e trespassavam a escuridão.
- Afinal, nem todos estão a trabalhar. - Denunciou Macro. Então ouviram o inconfundível tinir de espadas através de uma das pequenas
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portas que davam para o salão. - Parece que pelo menos um deles está a ver se sua um bocado.
Avançaram para a entrada das traseiras e ficaram ofuscados quando voltaram a sair para o sol brilhante do exterior. Por trás do salão havia um espaço livre que se
estendia até à paliçada do recinto real. A um dos lados havia armações de suporte para espadas e lanças. Alguns elementos da guarda real sentavam-se à sombra contra
a parede do salão, observando o espectáculo que se desenrolava no centro da área de treino. Ali, banhado pelo sol, estava o tribuno Quintílio, em posição de equilíbrio,
o braço e a espada completamente estendidos na direcção do guerreiro bretão a três metros de distância. Cato susteve a respiração quando o viu. O tribuno estava
soberbo. De tronco nu, o físico perfeito a fazer lembrar um gladiador de sucesso: a pele oleada reluzia sobre os músculos perfeitamente torneados, e o peito subia
e descia num ritmo fácil, enquanto ele enfrentava o adversário.
O bretão estava armado com uma espada mais longa e pesada que a do tribuno, mas parecia estar a levar a pior. Havia uma marca vermelha que se estendia pelo ombro,
e o sangue corria do corte pouco profundo. Respirava pesadamente, e não conseguia aguentar a espada parada. De repente, respirou fundo e lançou-se sobre o tribuno,
com um grito. Quintílio esquivou-se, mergulhou sob a lâmina que o bretão apontava para cima, e depois afastou-a com um golpe preciso e deu com o punho da sua arma
na cabeça do outro. Este grunhiu e caiu no solo. Ouviu-se um murmúrio de aprovação dos guardas sentados à sombra, e uma ou duas piadas lançadas ao bretão caído.
Quintílio lançou a sua espada casualmente para o solo e inclinou-se para ajudar o outro a pôr-se de pé.
- Ora aí está. Tudo fino. Obrigado pelo exercício.
O bretão olhou para o tribuno sem perceber uma palavra, e abanou a cabeça, ainda meio zonzo.
- Se fosse a ti, sentava-me um bocado. Recuperar o fôlego, e assim.
Ao ver os dois centuriões que saíam do salão Quintílio fez uma careta, que foi imediatamente substituída por um sorriso amigável.
- Ah! Perguntava-me onde é que vocês se tinham metido! - Endireitou-se, largando o bretão, que voltou a desmoronar para o chão.
- Viemos assim que pudemos, senhor. - Replicou Macro, saudando-o.
- Sim, bem, está certo. Mas, para a próxima, esforcem-se um bocadinho mais, hã?
- Faremos o nosso melhor, senhor.
- Óptimo. - Quintílio voltou a sorrir, um breve instante. - Bom, vamos ao que interessa. Suponho que foram convidados para a caçada pelo rei...
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- Sim, senhor.
- Bom, isso levanta uma curiosa questão de protocolo, não acham?
- Levanta, senhor?
- Oh, sim! - As sobrancelhas do tribuno ergueram-se de surpresa perante a ignorância manifestada pelo centurião. - Estão a ver, também fui convidado.
- Não supus que Vérica o deixasse de fora, senhor.
O ar de surpresa do tribuno foi substituído pelo de aborrecimento.
- Claro que não! O que se passa é que eu não me posso permitir misturar-me com outras patentes. Não seria digno, como concordam por certo. No fim de contas, sou
um procurador, que age em nome do Imperador.
- Sim, senhor. - Respondeu Macro pacientemente. - Lembro-me
disso.
Quintílio assentiu.
- Excelente! Portanto, suponho que queiram deixar-me e ir apresentar desculpas ao rei Vérica.
- Desculpas?
Deu-se uma pausa embaraçada, até que Quintílio desatou a rir e deu uma palmada no ombro de Macro.
- Vá lá, centurião! Não sejas tão casmurro! Vai dizer ao velhote que não podes ir à caçada.
- Não posso?
- Inventa uma desculpa. Serviços, qualquer coisa. Não é o que vocês, centuriões, estão sempre a fazer, serviços?
Cato notou que o amigo estava a ficar verdadeiramente indignado e furioso, e decidiu intervir antes que o orgulho de Macro lhe arranjasse algum sarilho.
- Senhor, o que se passa é que já aceitámos o convite. Se desistirmos agora, será uma ofensa. E os Celtas gostam pouco desse género de coisas, senhor.
- Mesmo assim...
- E não nos podemos permitir ofender os Atrébates. Especialmente nesta altura, senhor.
- Bom... - O tribuno coçou o queixo e ponderou a situação. - Suponho que, para bem das relações diplomáticas, podemos ignorar certas questões nesta ocasião.
- Penso que seria prudente, senhor.
- Muito bem, então. - A relutância implícita no tom foi transmitida sem esforço aos seus inferiores na escala social. Cato arriscou um olhar rápido na direcção de
Macro e viu a linha firme que os seus lábios cerrados desenhavam. O Tribuno Quintílio puxou um lenço de seda da bainha dos
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calções e limpou a fronte. - Algum de vocês já caçou antes? Em ocasiões sociais, quero eu dizer.
- Sociais? - Macro franziu o sobrolho. - Tenho caçado, sim, senhor. O exército treinou-me para isso. Para complementar as rações.
- Isso é giro. Mas caçar para comer é um bocado diferente de caçar por desporto. - Explicou o tribuno. - Há uma certa questão de forma.
- Uma questão de forma, a sério? - Disse Macro calmamente. - Estou a ver.
- Sim. Já usaste uma lança de caça?
- Já usei um dardo uma ou duas vezes, senhor. - A voz de Macro pingava ironia.
- Bom, é um princípio. Vamos ver como te safas, depois posso dar-te alguns conselhos para evitar que faças figura de parvo na caçada.
Quintílio dirigiu-se ao suporte que continha as lanças de caça, escolheu uma e atirou-a a Macro. Enquanto Cato tentava não se afligir, Macro recebeu a arma e manejou-a
como um conhecedor, e rapidamente a colocou em posição de lançamento. A cinquenta passos viam-se alguns alvos com formas humanas. Macro apontou ao longo do braço
livre, puxou atrás a lança e enviou-a contra o alvo central. A lança atravessou o campo de treinos num arco baixo, e atingiu o alvo à altura da anca. Macro virou-se
para o tribuno, tentando não sorrir.
- Nada mau, centurião. E tu, Cato? Apanha esta!
Cato agarrou a lança desajeitadamente, com as duas mãos.
- Tenta não fazeres má figura à frente dos nativos. - Silvou Macro.
- Desculpe.
Cato preparou a lança na mão direita, e fez pontaria ao mesmo alvo que Macro atingira. Com uma última inspiração, puxou o braço atrás, tanto quanto conseguia, e
depois atirou-o para a frente. A lança trespassou o ar, falhando por pouco o peito do alvo, e abateu-se sobre o solo um pouco mais à frente. O tribuno gozou, os
guardas riram, e as bochechas de Cato queimaram.
- Talvez nos queira mostrar a maneira correcta, senhor?-Perguntou Macro.
- Com certeza!
O tribuno seleccionou uma lança, apontou ao mesmo alvo e lançou a arma. Impulsionada pelos poderosos músculos, a lança desenhou uma trajectória quase plana e atingiu
o alvo na região do coração, com um forte impacto.
- Em cheio! - Exclamou Cato, admirado.
Um murmúrio de aprovação soltou-se do grupo de guardas.
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- Pronto! Viste? - Quintílio virou-se para Macro. - Só é preciso -um pouco de prática.
- Um bom bocado de prática, suponho, senhor.
- Nem por isso. - O tribuno comprimiu os lábios. - Não mais do que com qualquer outra arma.
- A sério?
- Evidentemente.
- Há uma diferença entre atirar uma lança e usar uma espada. E há uma diferença entre usá-la contra um alvo de madeira e usá-la contra um homem, senhor. Uma grande
diferença.
- Disparate! É tudo uma questão de técnica, centurião.
- Não, senhor. É uma questão de experiência.
- Estou a ver. - O tribuno cruzou os braços e olhou o centurião de alto a baixo. - Queres pôr a tua teoria à prova, centurião?
Macro sorriu.
- Quer lutar comigo, senhor?
- Lutar? Não, será apenas um pouco de treino de espada. A oportunidade para demonstrares essa tua teoria sobre a experiência.
- Desculpe, senhor - interrompeu Cato calmamente -, mas duvido que seja bom para o prestígio de Roma travar uma luta em frente dos nativos.
- Como eu disse, não se trata de uma luta. Só de um treino. Então, centurião Macro?
Por momentos Macro encarou o outro, e Cato notou que o queixo do amigo se firmava. Sentiu um peso no peito, adivinhando que Macro não seria capaz de recusar o desafio.
Mas então, para sua surpresa, o centurião mais velho abanou a cabeça.
- Não me parece, senhor.
- Oh? Não acreditas nas tuas possibilidades, é?
- Não, não acredito. É claro para mim que passou anos a treinar para isto. Eu não tive esse luxo, senhor. A minha técnica é básica, os movimentos são os que são
necessários em combate, o resto é instinto. Aqui, nestas circunstâncias, eu não teria hipóteses. Mas, se nos encontrássemos numa batalha, penso que as possibilidades
estariam mais equilibradas.
- Achas mesmo?
- Tenho a certeza... senhor.
- Ainda não estou convencido. Enfrenta-me, centurião.
- Isso é uma ordem, senhor?
Quintílio abriu a boca para responder antes de pensar, mas depois abanou a cabeça.
- Talvez não. Não seria justo.

- Não. Mais alguma coisa, senhor?
- Vejam se não fazem má figura amanhã. Os dois. E mantenham-se a uma distância respeitável de mim em todos os momentos. Percebido?
- Sim, senhor. - Responderam os dois em uníssono.
- Estão dispensados.
Ao regressarem para o salão, Cato virou-se para Macro.
- Por momentos pensei que ia aproveitar a oferta.
- E ia. Mas um homem sensato escolhe as suas lutas, não deixa que outros as escolham por ele. Aquele merdas dava cabo de mim. Ele sabia-o, e eu sabia-o. Portanto,
para quê lutar?
- Visto assim, para nada, de facto. - Cato estava contente. Tinha sido uma das raras ocasiões, em todo o tempo em que conhecia Macro, em que o centurião veterano
tinha permitido que a lógica triunfasse sobre o orgulho desmedido. Melhor ainda, de forma muito discreta, Macro tinha derrotado o convencido aristocrata, como as
altivas palavras de despedida do tribuno mostravam claramente. - E foi bem feita.
- Claro que foi. Cabrões daqueles como eu ao pequeno-almoço.
- Devem vir metidos na papa.
Macro olhou para ele, e desatou a rir à gargalhada. Ao ouvi-lo, um dos cães levantou-se, as orelhas em pé e o focinho apontado aos dois centuriões. O dono levantou
a cabeça, fez uma careta aos romanos e aplicou um pontapé ao animal.
Macro deu uma palmada nas costas de Cato.
- És um bom companheiro, miúdo! És porreiro.
No recinto, os preparativos para a caçada continuavam em grande ritmo sob o calor escaldante, e os dois centuriões abriam caminho por entre os servos pesadamente
carregados quando Cato ouviu alguém a chamá-lo pelo nome. Olhando através da multidão, avistou Tincómio. O príncipe atrébate acenou freneticamente e furou até junto
dos romanos, a expressão repleta de ansiedade.
Cato puxou o braço do amigo.
- Vem ali o Tincómio. Passa-se qualquer coisa.
- Hã? - Macro tentou espreitar sobre os ombros dos homens à sua volta. Nessa altura Tincómio alcançou-os, ofegante e desesperado.
- Senhor! Venha comigo imediatamente, por favor!
- O que se passou? - Ripostou Macro. - Explica-te!
- É o Bedríaco, senhor. Foi apunhalado.

XXI
- O que é que aconteceu, exactamente?
- Venha imediatamente, senhor! - Suplicou Tincómio.
Macro respondeu com brusquidão:
- Diz-me de uma vez o que sucedeu!
- Não sei. Encontrei-o no edifício do comando, prostrado no corredor, sangue por todos os lados.
- Está vivo?
- Sim, senhor. Mas por pouco.
- Quem é que está a tomar conta dele?
- O Artax. Apareceu no corredor logo depois de eu o ter encontrado.
Cato agarrou o braço de Tincómio.
- Deixaste-o com o Artax? Sozinho?
O outro anuiu.
- Mandei um homem chamar o médico, antes de vir ao vosso encontro.
- Porquê tanta pressa? - Perguntou Macro.
Tincómio olhou em redor antes de se chegar mais aos romanos.
- Ele estava a perder a consciência. Chamou pelo Cato e disse qualquer coisa sobre Vérica estar em perigo.
- Vérica? - Macro pronunciou o nome numa voz bem alta. - Que tipo de perigo?
- Mais baixo! - Avisou Cato, enquanto um dos criados olhava para eles. - Quer que toda a gente ouça?
Macro ficou momentaneamente surpreendido pela veemência no tom de Cato. Este virou-se de novo para Tincómio e perguntou em voz baixa:
- Afinal, o que é que o Bedríaco disse?
- Queria vê-lo. Tinha qualquer coisa importante a comunicar; tinha
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ouvido alguém a falar do rei. De o assassinar... Foi tudo o que consegui antes do Artax aparecer.
- E o Artax também ouviu isso tudo?
O bretão fez que sim com a cabeça.
- Depois mandou-me à vossa procura.
Cato trocou um olhar com Macro.
- É melhor voltarmos para o depósito, e depressa.
- Tens razão.
? ? ?
- Ele disse alguma coisa?
A pergunta soltou-se dos lábios de Tincómio assim que os três irromperam pelos aposentos de Cato dentro, ofegantes. O médico estava debruçado sobre o paciente. Do
outro lado, ajoelhado no chão, Artax olhou em redor.
- Na...
Uma poça de sangue brilhava à luz que penetrava pela janela do escritório de Cato. Havia mais sangue espalhado pelo chão de terra batida, e via-se também algum nas
paredes de ambos os lados da porta.
Cato respirou fundo quando viu Bedríaco. A face do caçador estava mais branca que a neve, e tinha um aspecto cadavérico. Os olhos abriram-se por um momento e voltaram
a fechar-se, enquanto a boca apresentava um esgar flácido, e a língua se movia fracamente sobre os lábios trémulos. A túnica vermelha que ele envergara tinha-lhe
sido removida e estava a um lado, húmida e escurecida. Só lhe restava a tanga, e aos olhos de Cato a pele exangue e pálida manchada de sangue fê-lo parecer uma criatura
que tinha sido capturada e esfolada.
- Como está ele?
- Como está? - Macro afastou os olhos do médico. - Usa os olhos, porra. Está acabado. Nem é preciso ser um destes carniceiros para ver isso.
- Senhor, por favor, silêncio. - Pediu o médico. - É melhor para
ele.
Cato atravessou lentamente o quarto e ajoelhou junto aos outros homens.
- Artax? Ele disse-te alguma coisa?
Artax levantou a cabeça desgrenhada e enfrentou Cato olhos nos olhos, sem revelar o que quer que fosse na sua expressão.
- Ele disse-te alguma coisa enquanto estavas aqui com ele?
Artax manteve-se imóvel um instante, e depois abanou a cabeça.
- Nada? Absolutamente nada?
170

- Nada que fizesse sentido, romano.
Cato e Artax encararam-se, até que o centurião prosseguiu:
- Acho isso difícil de acreditar.
Artax encolheu os ombros, mas não disse nada. Antes que Cato pudesse prosseguir com o interrogatório, Bedríaco lançou um longo gemido. Os olhos dele abriram-se muito,
encarando de forma selvagem cada uma das faces dos homens que se debruçavam sobre ele, antes de se fixarem em Cato.
- Senhor...
- Bedríaco, quem fez isto? Viste quem o fez?
- Aqui... mais perto...
Cato inclinou-se até a sua cara não estar a mais de vinte centímetros dos oihos fixos de Bedríaco. A mão esquerda do caçador disparou e agarrou a túnica de Cato
pelo colarinho. O centurião tentou libertar-se instintivamente, mas havia uma força louca no aperto do moribundo, e foi ele que forçou Cato a aproximar-se ainda
mais. O romano cheirou o hálito rançoso do caçador, e o aroma doce e penetrante do seu sangue.
- O rei... grande perigo.
- Eu sei... Agora, diz-me só...
- Oiça! Vinha dizer-lhe... Ouvi alguns homens a falar. Nobres... - A face de Bedríaco contorceu-se, e um espasmo violento percorreu-lhe o corpo.
- Segurem-no! - Ordenou o médico, pegando na capa de Cato, que estava pendurada na parede. Lançou as espessas dobras de lã sobre o corpo de Bedríaco. O espasmo passou,
e o caçador afrouxou a força com que agarrava a túnica de Cato. A respiração era agora fraca, e os olhos fixavam-se desesperadamente nos do centurião. Este pegou
na face do bretão com as duas mãos.
- O que diabo está a fazer? - Berrou o médico.
- Calado! - Ripostou Cato. - Bedríaco! Bedríaco! Quem fez isto? Diz-me! Diz-me, enquanto podes!
Bedríaco tentou responder, mas as forçasJá quase o tinham abandonado. Os olhos apontaram para Tincómio, depois voltaram a Cato, e ele conseguiu murmurar:
- A minha vista... tudo escuro...
Tincómio afastou gentilmente Cato, e pousou a mão na testa de Bedríaco.
- Dorme, Bedríaco, grande caçador. Dorme.
- Pára com isso! - Explodiu Cato. - Idiota! Temos que saber.
Tincómio enfrentou-o com uma expressão sombria e zangada.
- O homem está a morrer.
171

- Não o posso evitar. Ninguém pode. Temos que saber. Ouviste-o: alguém quer matar Vérica. Sai da minha frente!
- Demasiado tarde. - Murmurou Artax. - Vejam. Ele já partiu.
Cato largou Tincómio e olhou de novo para Bedríaco. O caçador
estava quieto, os olhos dirigidos ao tecto, a boca descaída e a respiração ausente. O médico debruçou-se sobre ele para tentar detectar algum sinal de vida. Virou
a cabeça e colocou a orelha sobre o peito do bretão. Momentos depois voltou a sentar-se e largou o pedaço de pano ensopado de sangue que ainda mantinha sobre a profunda
ferida do caçador. Quando a compressa improvisada foi afastada, Cato viu o terrível golpe, como uma boca entreaberta e húmida. Então a macabra ilusão desfez-se,
quando o sangue jorrou pela abertura e escorreu sobre a pele até ao chão.
- Está morto. - Declarou oficialmente o médico.
- Bom, então é melhor elaborarmos um relatório. - Disse Macro, levantando-se. - Para onde é que se manda o corpo?
O médico designou os dois bretões ainda agachados junto a Bedríaco.
- Pergunte-lhes a eles, senhor. Não conheço os costumes locais.
- Adeus, Bedríaco. - Disse Artax calmamente. Cato levantou o olhar a tempo de ver um leve sorriso nos cantos da boca do nobre atrébate, enquanto ele continuava.
- Boa viagem para o mundo do além.
Cato dirigiu-se rapidamente à porta e gritou uma ordem à guarda do edifício. Enquanto se ouviam passos no pátio, virou-se para os dois bretões, ainda junto ao cadáver.
Macro veio ter com ele.
- Que se passa? Porque é que chamaste a guarda? Arranjamos outros para levarem o corpo. - O olhar do centurião mais velho apercebeu-se das manchas de sangue espalhadas
pelo chão. - É melhor pô-los também a limpar o teu gabinete.
- Tratamos disso depois. - Respondeu Cato. - Para já, quero que o Artax seja levado e colocado num local seguro. Um sítio tranquilo e escondido, onde lhe possamos
fazer umas perguntinhas.
? ? ?
- Que raio é que se passa? - Explodiu o tribuno Quintílio, ao entrar no gabinete de Cato. - Porque é que interromperam o meu treino?
Reparou então no corpo sobre o chão. Cato tinha colocado a capa de forma a esconder as feições de Bedríaco. Apenas os pés nus do cadáver estavam à vista.
- Quem é esse idiota?
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- Idiota, senhor? - Cato olhou na direcção apontada pelo tribuno.
- É um dos meus homens. Bedríaco, o porta-estandarte.
- Morto?
Macro sorriu.
- Bem visto, senhor. Folgo em verificar que o exército mantém a política de recrutar os melhores e mais capazes.
Quintílio ignorou o comentário, e virou-se para Cato.
- Como?
- À espada, senhor.
- Acidente?
- Não.
- Estou a ver. - Quintílio ponderou por instantes, e então pareceu decidir o que se tinha passado. - Um ajuste de contas, sem dúvida. Se déssemos tempo suficiente
aos Celtas, acabavam por se matar todos uns aos outros. Sempre nos poupavam trabalho. Temos o culpado?
- Não, senhor. - Respondeu Macro.
- E porque não?
Macro lançou um olhar exasperado a Cato, enquanto Quintílio continuava, sem esperar por resposta:
- Se não apanharam o assassino, então para que é que me chamaram? Para me fazer perder tempo? Não posso fazer o vosso trabalho, como muito bem sabem. Então?
-Ainda não identificámos definitivamente o atacante.-Desculpou-se Cato. - Mas a questão é mais complicada, senhor.
- Complicada? - Quintílio sorriu. - O que é que pode haver de complicado numa briga entre nativos?
- Não se trata de uma briga, senhor. Pelo menos não tem ar disso. O Tincómio encontrou-o no corredor.
- Tincómio? - O tribuno franziu o sobrolho, antes de se lembrar da cara a que correspondia tal nome, e de a sua face se iluminar com a descoberta.
- Um daqueles palhaços que andam sempre à volta do rei Vérica? E o que andava ele a fazer por aqui?
- Presta serviço nas coortes que nós organizámos. - Explicou Cato.
- Como muitos outros nobres, aliás.
- E estamos orgulhosos disso, senhor. - Juntou Macro. - São bons homens.
- Sim, bem, óptimo. - Quintílio voltou-se novamente para Cato.
- O que é que esse Tincómio tem a ver com o crime?
- Como já disse, senhor, ele encontrou o Bedríaco, ia à minha procura.
- Quem é que ia à tua procura?
173

Macro quase estourou:
- O Bedríaco!
Cato lançou-lhe um olhar de aviso, e prosseguiu:
- Sim, senhor, o Bedríaco. Queria falar-me de qualquer coisa que tinha ouvido. Algo sobre uma conspiração contra o rei Vérica.
- Uma conspiração? - Quintílio riu. - Mas o que vem a ser isto? Uma peça barata no teatro de Pompeia?
Cato lutou para controlar a fúria, antes de responder:
- Nunca tendo tido a oportunidade de frequentar o teatro de Pompeia, não posso de facto responder, senhor.
- Não perdeste nada. Mas aparentemente alguém está a tentar colmatar as falhas da tua educação. Ou a pregar-te uma partida.
- A pregar-lhe uma partida! - Macro apontou o cadáver com um dedo. - Está aqui um homem morto, senhor. Um bocado pesado para partida, não acha?
- Centurião, se imaginasses as partidas que os jovens pregam uns aos outros lá em Roma... Bom, está bem, nestas circunstâncias talvez haja qualquer coisa por trás
disto. Continua, por favor, centurião Cato. Essa trama?
- Sim, senhor. Foi tudo o que conseguimos arrancar a Bedríaco antes dele morrer.
- E não te disse quem o tinha apunhalado?
- Não, senhor. - Admitiu Cato.
- Oh, vá lá! Isto é ridículo. Tem que haver mais alguma coisa.
- Talvez, senhor. Outro homem se juntou a Tincómio antes de ele nos ir chamar.
- E quem é esse homem? Deixem-me adivinhar - outro dos amigalhaços de Vérica?
- Sim, de facto é verdade, senhor. Mas um que talvez tenha menos razões para ser amigo de Roma que muitos dos seus camaradas.
- Calcule-se.
Cato encolheu os ombros.
- Acho difícil de acreditar que ele estivesse por acaso nas proximidades quando o Tincómio encontrou este homem a morrer, mesmo à porta dos meus aposentos. Sobretudo
quando o Bedríaco tinha algo vital a comunicar-me. É muita coincidência, senhor, não concorda?
- Talvez. Por outro lado, o Artax pode mesmo ter estado a passar por acaso. Tens mais alguma prova?
Uma expressão de espanto percorreu rapidamente o rosto de Cato, mas antes que conseguisse responder, Macro interrompeu:
- O Artax é manhoso. O sacana arrogante tem andado a lançar-nos
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olhares maldosos desde que chegámos a Caleba.
- Ainda assim, faz parte das vossas coortes. - Salientou Quintílio.
- Bem, sim... Mas teria alguma forma melhor de nos manter debaixo de olho?
O tribuno abanou a cabeça.
- Não. Duvido de que ele ande a planear alguma coisa. Os conspiradores tentam passar despercebidos, e muito menos agem de modo suspeito.
- É a experiência a falar, senhor?
- Apenas senso comum, centurião...
Algumas pessoas não conseguem de todo evitar as confrontações, decidiu Cato enquanto observava os dois homens. Mas isto não ajudava em nada. Artax estava detido
numa cela no outro lado do edifício de comando, e Cato tinha a certeza de que ele sabia alguma coisa sobre o ataque, e talvez até sobre a trama que Bedríaco mencionara.
Tinha que ser interrogado, e depressa.
- Senhor, temos que interrogar o Artax. Ele esconde-nos qualquer coisa. Tenho a certeza.
- Tens a certeza? - O tribuno troçou abertamente. - Com que bases? Um pressentimento?
Cato nada podia responder sem fazer figura de tolo. De facto, não existia nenhuma prova que acusasse Artax, apenas a vigilância de Cato nos últimos dias, o peso
da coincidência e, para ser honesto, um pressentimento.
- Bom, então sempre tenho razão? - Quintílio soltou um pequeno sorriso em sinal de triunfo. - Então, centurião?
Cato assentiu em silêncio.
- Então, esse Artax. Até que ponto é que ele está próximo do rei?
- Grande. É do seu sangue, e fazia parte do séquito do rei antes de se juntar às coortes.
- Parece um aliado perfeito, e em tão alta posição que merece ser tratado com respeito, não acham?
- Sim, senhor.
- Então sugiro que o libertem tão depressa quanto possível, antes que ele mude de ideias acerca de Roma. Dada a sensibilidade da situação, acho que não devemos arriscar-nos
a ofensas desnecessárias.
- Senhor, se o pudéssemos interrogar primeiro...
- Não! Já provocaste confusão suficiente, centurião. Ordeno-te que o libertes imediatamente. Trata disso. Vou voltar ao meu treino. - Quintílio dirigiu-se à porta,
mas estacou na ombreira, quase a preenchendo com o seu físico imponente. Enquanto falava, olhou para Macro e Cato. - Se
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souber que vocês demoraram no cumprimento da minha ordem, mando-vos de volta para as fileiras. Perceberam?
- Sim, senhor.
- Quero ver esse Artax no grupo do rei quando formos à caça amanhã. E se ele tiver nem que seja um arranhão, transformo-vos os tomates em pisa-papéis.
À medida que os passos do tribuno se afastavam ao longo do corredor, Macro fechou o punho e deu um murro na palma da outra mão.
- Filho da puta! Grande cabrão! Chega aqui e diz-nos o que havemos de fazer. Quem é que ele pensa que é? O cabrão do Júlio César? Cato? Disse eu, quem é que ele
pensa que é?... O que diabo se passa contigo? Cato!
Cato deu um pulo.
- Desculpe. Estava a pensar.
Os olhos de Macro rebolaram nas órbitas.
- A pensar, com que então? O tribuno deu ordens para que libertássemos o nosso único suspeito, e ficas aí a sonhar com ladrões. Acorda, miúdo. Temos que agir, e
não que pensar.
Cato assentiu, sem prestar atenção.
- Não achou um bocado estranho?
- Estranho? Não, nem por isso. Comportamento típico dum filho da mãe de um tribuno, a meter a pata onde não devia.
- Não. Não é isso. - Cato franziu o sobrolho.
- Então o que é?
- O facto de ele saber que era Artax quem estava metido na coisa, antes que nós falássemos nesse nome...

XXII
Poucas centenas de habitantes de Caleba se deram ao trabalho de assistir à partida do séquito real quando este partiu para a floresta. E mesmo esses não deram ao
acontecimento a habitual atmosfera festiva. Enquanto transpunham os portões, Cato e Macro observavam as esquálidas faces dos cidadãos, de ambos os lados do caminho
que serpenteava ao afastar-se da cidade. Porém, mesmo famintas, as crianças ainda corriam ao lado dos vagões, dos cavalos e da pequena coluna de criados da casa
real. Cato afastou o olhar dos populares. Já muitas vezes tinha visto a face da fome. Até Roma, com todos os seus mercados de comidas exóticas e as suas distribuições
de trigo à população, possuía uma multidão de pedintes e vagabundos espalhados pelas ruas, a passar fome.
Por insistência do tribuno Quintílio, os dois centuriões seguiam mesmo à frente dos escravos da casa real e dos vagões que transportavam todo o material necessário
para o conforto e luxo dos caçadores. À sua frente iam os nobres menos importantes da tribo, nas suas túnicas largas e calças coloridas. Apesar de ser manhã cedo,
os homens já tinham despejado alguns copos, e falavam e riam alto, completamente alheados dos olhos que os observavam nas faces famintas de ambos os lados da estrada.
À cabeça do cortejo seguia o rei Vérica, os seus mais próximos conselheiros e amigos, e um pequeno grupo dos seus guardas pessoais, todos armados e prontos a enfrentar
qualquer ameaça. Perscrutavam atentamente os populares na borda da estrada, as mãos descansando perto das espadas embainhadas. Mas não havia qualquer manifestação
hostil ao rei. Algumas pessoas até davam vivas, embora sem grande entusiasmo. A maior parte mantinha-se em silêncio, até que os vagões de provisões passaram por
eles, recheados de carnes secas, jarros de vinho e cerveja, cestos de pão e frutos.
Um gemido baixo, de desespero, começou a subir até chegar a uma queixa colectiva. Então ouviu-se uma voz clara e cheia de raiva. Cato virou-se, e viu um homem que
erguia nos braços uma criança inchada, os
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olhos esbugalhados na cabeça quase esquelética. O homem gritava, mas a emoção que transparecia nas suas palavras fazia com que fosse difícil a Cato entender as palavras.
Mas tal não era necessário. O olhar letárgico do bebé e a terrível angústia do homem eram evidentes. Outros se juntaram ao grito de ira, e a multidão começou a encaminhar-se
lentamente para os vagões de comida.
Os condutores dos veículos levantaram-se dos bancos, gritando e tentando afastar a multidão com gestos. Mas os avisos foram ignorados, e todos os olhares famintos
se concentraram no conteúdo dos vagões. Porém, antes que a primeira mão se conseguisse apossar de algum artigo, ouviu-se o forte estalar de um chicote, e um grito
de dor. Cato avistou um homem agarrado à face, o sangue a escorrer-lhe por entre os dedos. A multidão estacou, silenciosa por um momento, como se todos respirassem
fundo ao mesmo tempo. E então atiraram-se às carroças, enquanto os condutores tentavam repeli-los com os chicotes, amaldiçoando a multidão esfomeada.
- Impeçam-nos! - Cato ouviu o tribuno a gritar.
Ao mesmo tempo, avistou-o, de espada em riste, a galope, aproximando-se velozmente. Atrás dele vinha a guarda pessoal do rei, forçando as pessoas a saírem do caminho.
- Macro! - Chamou Cato. - Preciso de ajuda!
O jovem centurião fez o cavalo dar meia-volta e dirigiu-se ao mais próximo dos vagões, gritando em céltico:
- Afastem-se, loucos! Recuem!
Rostos cheios de raiva viraram-se para ele, mas as expressões mudaram para o medo quando o magote de gente tentou afastar-se do cavalo de Cato, assustador, de narinas
bem abertas e brilhante de suor. O romano forçou a montada a avançar entre a multidão e a carroça.
- Recuem, já avisei! Para trás! Já!
Apercebeu-se então de que Macro realizava a mesma manobra do outro lado, afastando do vagão a massa de gente aos berros. Os populares recuaram perante os cavalos,
mesmo a tempo de se aperceberem da carga do tribuno e da guarda real, de armas bem aperradas e a brilhar ao sol. Uma maré de gente aos trambolhões afastou-se então
dos carros, tentando escapar em desespero aos cascos e às lâminas dos guerreiros de Vérica.
- Atrás deles! - Berrou Quintílio, agitando a espada na direcção dos habitantes em fuga.
- Parem! - Gritou Cato em céltico aos guardas reais, que se detiveram. Por um momento, pareceu ao centurião que eles o iam ignorar e atropelar as gentes em fúga.
Cato ergueu o braço. - Parem, ordeno-vos! Deixem-nos em paz. Os carros estão em segurança.
Os guardas do rei acalmaram as montadas e baixaram as armas.
178

Quintílio olhou-os com uma expressão de choque, e depois de raiva.
- Mas o que diabo pensam que estão a fazer? Atrás deles! Liquidem-
nos!
Os guerreiros olharam para ele sem reacção, e o tribuno voltou-se para Cato.
- Tu falas esta merda desta língua bárbara. Diz-lhes para perseguirem aquela escumalha! Antes que seja tarde.
- Tarde para quê, senhor?
- O quê? - O tribuno encarou-o com a ira nos olhos. - Diz-lhes! Centurião, do que estás à espera?
Cato viu que a multidão já tinha dispersado e se apressava a fugir na direcção dos portões.
- Já não vale a pena, senhor.
- Diz-lhes! Fá-lo! - Quintílio berrava com ele. - Ordeno-to!
- Sim, senhor. Imediatamente. - Cato fez a saudação regulamentar, virou-se para a guarda real, e franziu o sobrolho. - Assim que me lembrar das palavras exactas.
A face do tribuno fez-se lívida, e os lábios cerraram-se numa linha quase invisível. Macro teve que afastar os olhos antes que desatasse a rir, e fez-se de ocupado
com um ajustamento ao cinturão. Ouviu Cato a estalar os dedos.
- É isso! Já me lembro!... Ei! Para onde é que eles foram?
Quintílio fixou o centurião durante um longo período, a raiva bem
expressa no olhar, e Macro temeu que o seu jovem amigo tivesse passado das marcas. Então, à medida que os homens da guarda pessoal de Vérica baixavam as armas e
regressavam lentamente à cabeça da coluna, o tribuno enfiou furiosamente a sua espada na bainha, e fez um gesto de assentimento na direcção de Cato.
- Muito bem, centurião. Assim seja. Desta vez ganhaste, mas aviso-te: se me aperceber do mais pequeno gesto de desrespeito ou desobediência da tua parte, farei com
que a tua carreira nas Águias se torne um inferno. No melhor dos casos, farei com que voltes a ser um legionário raso, de faxina às latrinas, a acarretar merda com
uma pá para o resto dos teus dias.
- Merda com uma pá. Sim, senhor.
O tribuno Quintílio cerrou os dentes com raiva, deu meia-volta à montada e cravou-lhe os calcanhares violentamente, arrancando a galope na direcção do rei e dos
que o rodeavam. Os dois centuriões ficaram a vê-lo afastar-se. Macro coçou alguns pelos no queixo, e meneou a cabeça devagar.
- Sabes, Cato, meu caro, lixar tribunos não é um hábito saudável. Um dia, mais tarde ou mais cedo, ele há-de chegar a legado, e o que
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sucederá se for ele o comandante da legião em que tu estiveres? Nessa altura, queixa-te.
Cato encolheu os ombros.
- Preocupar-me-ei com isso nessa altura. Mas se o comando de uma legião for alguma vez atribuído a um cabrão daqueles, então mais vale entregar o Império nas mãos
dos bárbaros de uma vez por todas.
Macro riu.
- Não leves a coisa tão a peito! O que se passa é que ele te vê como um obstáculo entre ele e a glória que acha que merece. Não é nada pessoal.
- Oh? - Resmungou Cato. - Pois agora é pessoal. Pelo menos para
mim.
- Que se foda! - Macro aproximou-se e deu uma palmada no ombro de Cato. - Esquece. Ele não está ao teu alcance. Tê-lo como inimigo não te fará bem nenhum. Mete-te
com alguém do teu tamanho. Melhor ainda, esquece esta merda toda.
Cato lançou-lhe um olhar significativo.
- Vindo de si, essa é forte.
? ? ?
O séquito real deixou Caleba para trás, com a sua população e os seus problemas. A capital dos Atrébates depressa desapareceu por trás de uma colina, enquanto a
coluna de cavaleiros, carroças e servos a pé seguiu a tortuosa estrada através da paisagem ondulante, com as quintas de reduzidas dimensões espalhadas e separadas
por pequenos bosques de árvores esguias. Apesar do medo que inspiravam os ataques constantes de Carátaco e dos seus aliados Durotriges, algumas das quintas mostravam
sinais de ocupação e trabalho nos campos. Searas de cevada e trigo ondulavam sob a ligeira brisa que empurrava alguns farrapos de nuvens brancas através do azul
profundo do céu.
A má disposição de Cato foi passando gradualmente, depois de Caleba ter ficado para trás. O tribuno Quintílio circulava por entre o magote de homens que circundava
o rei, e Cato acabou por se esquecer dele, enquanto deixava os olhos espraiarem-se pela fértil paisagem britânica. Não era de facto tão dramática, ou tão culta,
ou mesmo tão bem cultivada como os campos em redor de Roma, mas possuía uma beleza primeva própria, e o centurião saboreou os doces aromas que ela lhe oferecia.
- Será um bom local para passar a reforma. - Considerou Macro, lendo os pensamentos do companheiro. - Assim que dermos uma boa lição ao inimigo.
- Quanto tempo ainda tem para cumprir? - Perguntou Cato, com
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um acesso de ansiedade ao pensar na vida na Segunda Legião sem Macro ao seu lado.
- Onze anos, supondo que o Imperador honra os ritos relativos ao tempo de serviço.
- Acha que ele não o fará?
- Não sei. Depois do desastre do Varo, mantiveram ao serviço alguns veteranos para além do tempo, até que eles mal podiam andar ou mesmo comer. Alguns deles tiveram
que pôr a mão do Germânico(3) nas gengivas desdentadas para ele perceber que já tinham dado tudo ao exército.
- A sério?
- Oh sim! Ainda andavam alguns por aí quando eu me alistei. Pobres tipos. Se os Germanos soubessem que as legiões do Reno eram compostas por velhos que mal conseguiam
erguer as espadas, tinham entrado pela Gália como faca em manteiga no Verão.
- Nem tanto.
- A sério. Nós, soldados, teríamos ficado enterrados na merda até ao pescoço enquanto aqueles cabrões dos políticos em Roma atiravam as culpas uns aos outros. Filhos
da puta.
- Bom, agora é diferente. - Contrariou Cato. - Os que cumprem o seu tempo passam à disponibilidade com um bónus completo. O Imperador parece estar a cumprir essa
regra.
- Claro. O Cláudio parece ser um tipo honesto, mas não vai durar para sempre. - Macro abanou a cabeça tristemente. - Os melhores nunca duram muito tempo. Vamos ter
que aguentar outro merdoso como o Calígula, ou pior, algum Vitélio, se bem conheço a nossa sorte.
Cato abanou a cabeça, com um sorriso forçado.
- Vitélio? Ah, vá lá! Até a escumalha como ele acaba por ser descoberta. Vitélio imperador? Não. Não é possível.
- Achas que não? - Macro falava a sério. - Era capaz de apostar dinheiro nisso.
- E perdê-lo-ia.
- Conheço o tipo dele: nada lhes sossega ambição. - Macro apontou para a cabeça da coluna. - Como ao nosso amigo Quintílio que ali vai.
Os olhos de Cato seguiram a direcção indicada por Macro, e ele reparou que os acompanhantes do rei seguiam numa coluna dispersa, aos dois e aos três. Entre eles,
Cato mal conseguia avistar a capa escarlate do tribuno. Um homem cavalgava bem próximo de Quintílio; um tipo de ombros largos, de cabelo escuro, com tranças, e Cato
interrogou-se sobre o que estaria Artax a fazer, envolvido em tão profunda conversa com o tribuno.
(3)Germânico,15 A.C./19, foi um talentoso general romano,pai de Gaius César, que se tornou Imperador com o nome de Calígola. (Nota da Correctora )
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XXIII
Ao entardecer acamparam, junto a um riacho de leito pedregoso que corria pela orla da floresta em que a caçada do dia seguinte ia ter lugar. O sol estava já baixo
no céu e parecia enorme junto ao horizonte ocidental, enquanto iluminava a parte inferior das escassas e finas nuvens, em tons de laranja e vermelho. As sombras
estendiam-se pela relva que crescia na borda do rio, curta devido ao apetite das ovelhas de uma quinta próxima, que tinha escapado à atenção dos Durotriges. Consistia
num conjunto de cabanas com telhados de colmo, protegidas por uma frágil paliçada, e situava-se no outro lado da corrente. Via-se uma pequena fogueira pela abertura
do maior dos edifícios, e um fio de fumo dispersava-se lentamente por sobre os telhados das outras cabanas.
Ao avistar as gordas ovelhas, o rei tinha decidido que queria carneiro assado para o jantar. O melhor espécime tinha sido abatido pelo encarregado da cozinha, e
o corpo aberto e espetado em paus, de forma a assar lentamente sobre o fogo que alguns dos escravos da cozinha preparavam. Quando as chamas esmoreceram, as brasas
foram espalhadas e começou-se a assar a carcaça. A gordura escorria da carne e pingava sobre o brilhante fulgor das brasas, onde explodia em fumo e curtas labaredas
de cor laranja.
O nariz de Macro animava-se.
- Cheira-me isto! Alguma vez sentiste um tão apetecível aroma?
- É o seu estômago a falar. - Respondeu Cato.
- É claro que sim, mas vá lá, inala bem este cheiro.
Cato nunca apreciara particularmente o cheiro de carne a assar. A refeição era excelente, mas o cheiro fazia-lhe lembrar piras funerárias.
- Mmmm - Macro continuava a sonhar, com os olhos semicerrados -, quase que consigo saboreá-la.
Havia já tanto fumo no ar que os olhos deles começaram a chorar. Sem uma palavra, os dois levantaram-se e mudaram-se para mais perto do
182

riacho. A água era límpida, e CatÀo recolheu um pouco na concha da mão, levando-a aos lábios e sorvendo; era fria e refrescante, depois do dia quente passado a cavalo.
Um dia em que tinha tido imenso tempo para pensar.
- Macro, o que vamos fazer acerca do assassínio de Bedríaco?
- Que podemos nós fazer? O sacana do tribuno lembrou-se de libertar o nosso único suspeito. Aposto que o Artax se está rir de nós.
Macro olhou por cima do ombro, para onde estavam os nobres, que dormiam antes do jantar para recuperar da dura cavalgada. Poucos estavam acordados, mas entre eles
estavam Artax e Tincómio, que falavam em tom baixo enquanto beberricavam cerveja por cornos decorados. Vérica, sob o peso da idade, dormitava encostado a um suporte
de lã de cordeiro, a boca semi-aberta, enquanto ressonava. À sua volta viam-se vários elementos da sua guarda pessoal, perfeitamente despertos e com as armas à mão.
O olhar de Macro regressou a Artax, ao mesmo tempo que Cato continuava a interrogar-se.
- A questão é: porque é que ele deixou o Bedríaco morrer daquela maneira?
- Uma boa facada no peito geralmente resulta. - Macro bocejou.
- Claro que podia ter tentado o teu método, e chateado o Bedríaco com conversa até à morte.
Cato ignorou o tom trocista do outro.
- Conversa, é mesmo disso que se trata.
Macro suspirou.
- Já sabia que havias de dizer uma coisa do género. Pronto, vá lá, diz-me o que é que a conversa tem a ver com o crime.
- É só isto. O Bedríaco queria-nos avisar de alguma coisa. Foi apunhalado por alguém que não queria que nós fôssemos alertados. E o suspeito mais provável é o Artax.
- Sim. E daí?
- Daí, porque é que o Artax não o liquidou enquanto o Tincómio nos foi chamar?
- Não sei. - Macro encolheu os ombros-Talvez o médico tenha aparecido antes que ele o fizesse.
- De quanto tempo precisava ele para aplicar uma segunda estocada mortal? Ou para o sufocar? Teve tempo para isso, com certeza. Tinha que arriscar e acabar com o
Bedríaco. Não podia permitir que ele sobrevivesse o tempo suficiente para falar connosco.
- Talvez. Mas se foi assim, então porque é que ele não o arrumou enquanto pôde?
- Não sei... - Cato meneou a cabeça. - Não sei.
183

- Pode ser que ele estivesse mesmo só a passar, como disse o Tincómio.
Cato virou-se e encarou Macro olhos nos olhos.
- A sério que acredita nisso?
- Não. Foi mesmo ele. Deita uma olhadela àquele filho da puta. Confiavas-lhe a tua irmã?
Artax ainda conversava com Tincómio, ambos inclinados para a frente e falando tão baixo que os sons eram inaudíveis no local em que se encontravam os dois centuriões.
Antes que Cato pudesse responder, ouviu-se pelo acampamento uma trombeta, chamando toda a gente para a refeição vespertina. Os dois romanos levantaram-se da margem
do riacho e avançaram pela relva, para o local em que os nobres atrébates acordavam lentamente das suas sestas. A um dos lados, o tribuno Quintílio estava deitado
de costas, um pé sobre o outro, apreciando o pôr-do-sol. Quando se ouviu a trombeta pela segunda vez, sentou-se e viu que Macro e Cato se aproximavam. Com um discreto
movimento da cabeça, fez-lhes sinal para que se afastassem, e eles mudaram de direcção, para a área onde os nobres de menor estatuto se agrupavam.
- Como de costume, confraternizando com os ricos e poderosos.
- Queixou-se Macro discretamente. - Não sei para quê. Duvido que tenham muito em comum.
- Alguns deles falam Latim - não são fluentes, mas safam-se. Podem traduzir para os outros.
- Isso é só metade do problema! - Macro riu. - E de que diabo vão eles falar? Da última moda em Roma? Ou do que as bem-nascidas matronas dos Trinobantes estão a
usar esta estação? Não me parece.
- Acho que não haverá grandes problemas. - Retorquiu Cato. - A classe social é uma linguagem universal, e funciona. Os filhos da aristocracia jogam todos na mesma
equipa, não vão ter problemas em se entenderem.
? ? ?
E de facto não tiveram. Enquanto a escuridão se espessava e o grupo real se divertia, o tribuno e os seus novos amigos Atrébates embebedaram-se alegremente, cantando
e falando alto com vozes arrastadas, partindo-se a rir à menor piada ou asneira. Os pedaços de carneiro assado foram vorazmente devorados e ajudados a descer com
mais bebida, à medida que a noite avançava. Durante todo esse tempo, o rei manteve-se sentado e em silêncio, aceitando de bom grado a festividade dos seus jovens
companheiros. Pouco comeu, e limitou-se a beber um pouco de vinho aguado. Uma lua
184

brilhante subiu no céu, fazendo desaparecer todas menos as mais brilhantes estrelas, e espalhando uma luz azulada sobre a paisagem adormecida. Por fim, o sono venceu
a maior parte dos companheiros do rei e, um a um, estes foram-se retirando para a zona destinada às dormidas, deixando-se cair nas quentes peles que os criados lhes
tinham preparado. Quando Macro e Cato acabavam com as suas últimas canecas de cerveja, o criado principal do rei aproximou-se, vindo das trevas, e inclinou-se para
eles.
- O rei gostaria que se lhe juntassem ao pé do fogo. - O encarregado falou suavemente na sua língua e, sem esperar por resposta, virou-se e regressou para junto
do seu senhor.
- Que é que foi isto? - Perguntou Macro, em tom sonolento.
- Vérica quer falar connosco.
- Agora?
- Parece que sim.
- A propósito de quê?
- O tipo não disse.
- Merda! Mesmo quando eu me preparava para aterrar. Espero que o velhote não nos faça ficar lá muito tempo.
- Suspeito que é isso que vai acontecer. - Disse Cato. - Tem de ser algo de importante. Senão, porque é que ele esperava que quase toda a gente estivesse a dormir?
Vamos lá.
Macro praguejou calmamente; então levantou-se cambaleante e seguiu Cato, evitando as formas dos homens que dormiam ressonando, até ao fogo já meio apagado que se
situava um pouco à parte do resto do campo. O rei Vérica estava sentado num banco de carvalho, ladeado pelas formas imóveis de dois elementos da sua guarda pessoal.
Um mortiço brilho laranja dançava no rosto enrugado e na barba esparsa, e a mão fazia girar lentamente a taça que se apoiava no colo do velho rei. Quando os dois
centuriões se aproximaram levantou o olhar, e um sorriso momentâneo iluminou-lhe o rosto quando lhes indicou com um gesto que tomassem lugar em redor das brasas
que brilhavam. Mais alguns estavam sentados à volta do fogo: Tincómio, Quintílio e Artax. Cato estacou quando reconheceu este último, mas depois sentou-se no solo
aquecido, do lado oposto do fogo em relação ao tribuno. Macro deixou-se cair pesadamente ao seu lado. De repente, Cato sentiu-se bem desperto e alerta. Porque teriam
sido estes três convocados para esta assembleia real? O que teria Vérica a dizer, tão tarde na noite, e tão secreto?
O rei chamou o chefe dos criados e entregou-lhe a taça vazia. O servo murmurou qualquer coisa, e Vérica abanou a cabeça.
- Não. Já chega. Assegura-te de que não seremos perturbados. Que ninguém se aproxime de tal forma que oiça as nossas palavras.
185

- Com certeza, sire.
Quando o homem se afastou, o rei ergueu a cabeça para olhar a lua em silêncio durante um momento, antes de dirigir a palavra aos seus convidados. Ao começar, era
evidente o cansaço na sua voz.
- Vou falar a maior parte do tempo na minha língua, já que o que tenho a dizer afecta Artax, meu familiar, mais do que outra pessoa qualquer. Os Centuriões Macro
e Cato estão aqui porque conquistaram a minha gratidão e, mais importante, a minha confiança. O tribuno porque representa o General Pláucio. Centurião Cato, sabes
o suficiente da nossa língua para conseguires traduzir para os teus companheiros romanos?
- Acho que sim, sire.
A face de Vérica franziu-se.
- Tenta ter a certeza. Não quero que haja qualquer má interpretação daquilo que vou dizer. Todos vocês serão, esta noite, testemunhas da minha vontade; e exijo que
a honrem nos meses que se aproximam. Compreendes, centurião?
- Sim, sire. Se houver alguma dúvida, o Tincómio pode ajudar-me na tradução.
- Assim será. Agora, explica esta nossa conversa aos outros.
Quando Cato acabou de fazer o que o rei lhe pedira, Macro inclinou-se para ele e sussurrou:
- Miúdo, o que é que se está a passar?
- Não faço ideia.
Vérica inclinou a cabeça e deixou que o seu olhar se fixasse no próprio colo.
- Nestes últimos dias tenho tido uma estranha sensação. Sinto que a minha morte está iminente. Cheguei a sonhar com ela: Lud(4) veio reclamar o meu espírito... durante
a caçada de amanhã.
Olhou para os que o escutavam, como se esperasse uma resposta, mas nenhuma surgiu. Que podia um homem dizer a um rei que dava voz aos seus receios de mortalidade?
Para Cato, que vivera sob três Imperadores que depressa tinham assumido estatuto divino, havia algo de tocante na admissão de Vérica. Talvez ele temesse a morte
tanto como os outros homens. Seria um disparate irresponsável afiançar que o rei não devia temer a morte. Era o tipo de comentário que ficava bem ao mais subserviente
dos homens; que se podia esperar, alto e bom som, da maior parte dos senadores de Roma se alguém arriscasse a menor dúvida de que César, fosse ele quem fosse, ficaria
com os seus súbditos para sempre.
- Por vezes, um sonho é apenas isso, senhor. - Quintílio falou num tom reconfortante. - Estou seguro de que os deuses estão decididos a abençoar os Atrébates com
muitos mais anos sob o vosso domínio.

(4)
Na mitologia galo-irlandesa era reverenciado como o senhor dos deuses, como Júpiter. (Nota da Correctora)
- Quais deuses, tribuno? Os teus ou os nossos? Estou certo de que, nos últimos meses, fiz o suficiente para aplacar o grande Júpiter, mas qual o preço a pagar aos
deuses do meu povo?
- Se Júpiter estiver satisfeito, então não há que temer qualquer outro deus, sire.
- A sério, tribuno?
- Evidentemente. Apostaria a minha vida.
Vérica sorriu.
- Esperemos que tu, e os teus dois centuriões, não tenham que fazer nada de tão perigoso nos próximos dias.
Quintílio pareceu ficar ofendido. Para um homem que parecia ter bebido sem cautelas ao princípio da noite, estava a ser muito comedido, pensou Cato. Então apercebeu-se
de que o tribuno tinha estado a fingir, para agradar aos nobres Atrébates. Não, sorriu Cato, tinha sido para agradar a si mesmo: o vinho e a camaradagem faziam soltar
algumas línguas com maior eficiência do que a intriga e a tortura.
- Sire, estamos em perigo, perante o vosso povo? - Perguntou Cato.
- Estais vós em perigo?
- Não! - Protestou Tincómio. - Sire, o vosso povo venera-vos.
Vérica sorriu com apreço ao seu sobrinho.
- Ainda podes guardar algum afecto por mim, tal como aqui o Artax, mas não estás em posição de falar pelo resto do povo.
- Eles sentem o mesmo que eu, sire.
- Talvez, mas espero que eles pensem mais do que tu.
A boca de Tincómio abriu-se com o choque perante a reprimenda; depois ele baixou os olhos, envergonhado.
Vérica sacudiu a cabeça com tristeza.
- Tincómio... Tincómio... não fiques zangado comigo. Dou todo o valor a essa lealdade. Mas não te deixes cegar por ela. Deves levantar o olhar e ver o mundo como
ele é. E fazer planos de acordo com essa realidade. Sei bem que alguns nobres questionam a nossa aliança com Roma. Sei que eles afirmam que nunca me deveria ter
sido permitido recuperar o trono. Sei que nada lhes daria maior prazer do que juntarem-se a Carátaco e enfrentar Roma. Tudo isso sei, como sabe qualquer homem que
veja e oiça o que se passa em Caleba. Mas essa seria uma asneira de grande magnitude.
- Vérica voltou a dirigir o olhar para os céus, antes de continuar. - Somos um pequeno povo, apanhado entre duas grandes forças. Recordam-se de como fui expulso
do meu reino?
- Era jovem, sire, mas lembro-me. Quando os Catuvelaunos atravessaram o Tamisa?
- Sim. São de facto uma nação gananciosa. Primeiro os Trinobantes,
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depois os Cancios, e por fim exigiram-nos lealdade incondicional, ou as nossas terras. E tive então que deixar Caleba e abandonar o reino nas mãos de um fantoche
do Carátaco. Não tive escolha. Tive que suportar a vergonha e a indignidade do exílio para poupar o meu povo a um destino bem pior, às mãos de Carátaco. Sabem, é
esse o verdadeiro fardo de ser rei. Governar para o bem do povo, não para o seu próprio bem, seja qual for o preço a pagar. Compreendem?
- Sim, sire.
- Óptimo. Então perceberão como a minha vergonha aumentou quando as legiões desembarcaram e me devolveram o trono pela força da espada. Seja quem for o governante
em Caleba, eu ou outro, fazemo-lo sujeitos aos caprichos de poderes bem maiores do que os Atrébates. Tudo o que podemos fazer é sobreviver, tão bem quanto conseguirmos.
E isso significa colocarmo-nos à mercê da mais poderosa dessas forças externas.
- Mas, sire - protestou Cato -, sois um aliado de Roma, não seu vassalo.
- A sério? E qual será a diferença, a longo prazo? Pergunta ao teu tribuno. Pergunta-lhe o que nos sucederá quando finalmente Roma esmagar Carátaco.
Cato traduziu, e rezou silenciosamente para que o tribuno, ao responder, soubesse escolher as palavras.
Quintílio respondeu sem sinais da sua habitual cordialidade.
- Rei Vérica, supus que serias mais grato ao Imperador. Se não fosse por nós, estarias ainda num quarto dos fundos do palácio do governador em Lutécia. Prestaste
bons serviços a Roma, e enquanto fores um aliado leal, continuarás a prosperar.
- E deixar-nos-ão em paz? - Retorquiu Vérica em Latim. - Permitirão que nos governemos a nós mesmos?
- Evidentemente! Enquanto tal for do nosso interesse. - Quintílio aprumou-se. - Tens a minha palavra.
- A tua palavra? - Vérica inclinou a cabeça para o lado, com uma expressão divertida, enquanto se dirigia a Tincómio. - Vês, Tincómio? É esta a escolha que temos
que fazer. A certeza da conquista se Carátaco triunfar, contra a probabilidade de sermos transformados numa província, se Roma vencer.
- Pode nunca acontecer. - Disse Cato.
- Já está a acontecer, centurião. Sei quais são os poderes à disposição do tribuno, como por certo tu e o centurião Macro sabem também. É altura de serem reveladas
as suas ordens.
Cato forçou-se a não olhar para Artax, e lançou de relance um aviso a Macro, mas tal não era necessário. O centurião mais velho lutava para con-
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trolar um bocejo, e as pálpebras pesavam-lhe com a vontade de dormir.
- Tribuno - continuou Vérica -, porque não nos dizes qual é o verdadeiro propósito da tua visita a Caleba? Que instruções recebeste? As que discutiste comigo há
dois dias atrás?
- Senhor, essa conversa teve lugar na mais estrita confidência.
- Não será mais mantida nesse segredo. Daqui a poucas semanas já não terá importância. Provavelmente já não estarei no mundo dos vivos. Os mais próximos dos meus
parentes, Tincómio e Artax, têm que conhecer toda a verdade. Agora, diz-nos tudo.
O tribuno Quintílio cerrou os lábios, enquanto avaliava qual a melhor resposta a dar ao pedido do rei. Por fim, escolheu o menos honroso dos caminhos.
- Não posso. As minhas ordens foram claras - só a vós as posso revelar. Um soldado nunca desobedece às ordens que recebeu.
- Muito corajoso da tua parte. - Foi o comentário mordaz de Vérica. - Muito bem, terei então que ser eu a anunciar as novas. O teu General Pláucio receia que o nosso
povo não honre o tratado que estabeleci com Roma. Portanto, ele... qual era a palavra?... solicita! Solicita-me que esteja pronto a desmantelar as duas coortes assim
que ele mo pedir.
Quando Cato traduziu, Macro sentou-se muito direito de repente, de olhos bem abertos e zangados. Tincómio e Artax mostravam-se igualmente chocados.
- Há pior, muito pior. - Continuou Vérica. - Além do desmantelamento das coortes, ele exige que todo e qualquer guerreiro Atrébate seja desarmado, e que as armas
sejam... inutilizadas. Creio que foi essa a expressão utilizada.
Não! - Artax lançou um urro. - Não! Sire, tal não é aceitável. Não pode ser verdade. Dizei-nos que não é verdade!
Depois de tão longo silêncio da sua parte, a terrível angústia e ultraje evidentes na voz de Artax, que se tinha posto de pé, fez calar todos os outros. Vérica tentou
acalmá-lo com um gesto, mostrando-lhe a mão aberta.
- Artax, por favor...
- Não! Nunca entregarei as minhas armas! Nenhum de nós o fará! Antes a morte.
Cato traduziu a explosão do bretão.
- Tenho a certeza de que o tribuno ficaria feliz de tratar disso. - Sussurrou Macro ao ouvido de Cato, enquanto Artax continuava a vociferar em céltico. - E o sacana
vai acabar com as nossas coortes.
- Por favor, senhor, deixe-me ouvir. - Cato deu um leve toque no braço do amigo.
189

Vérica levantara-se do banco e caminhara até junto de Artax, segurando-o gentilmente pelos ombros.
- Artax, pensa no que estás a dizer! Pensa! É uma ordem de um General Romano. Se lhe resistirmos, estamos acabados. Esmagar-nos-ão como a um insecto. O nosso povo
terá que ser desarmado. Teremos que desmantelar as coortes. Por muito desonroso que seja, a desonra é preferível à morte.
- Não para um guerreiro! - Ripostou Artax.
- Isto não é sobre guerreiros. Diz respeito a todo o nosso povo. Achas que as legiões vão discriminar quem chacinam? Achas? - Vérica abanou-o. - Então?
- Não... - Admitiu Artax.
- Portanto, não temos escolha... Não tens escolha.
- Eu? - Artax perscrutou a face do seu rei. - Sire, que quereis dizer?
- Se, por qualquer razão, eu falecer num futuro próximo, é meu desejo que sejas tu o próximo rei dos Atrébates. E todos os que aqui estão são testemunhas deste meu
desejo... Compreendes agora porque tens que obedecer à ordem do general Pláucio?
Todos os rostos se viraram para o rei, com o espanto marcado. Então Cato gastou alguns momentos a observar cada um dos homens que se encontravam reunidos à volta
da fogueira moribunda. Tincómio estava em choque, e lutava claramente contra a emoção. O tribuno Quintílio estava surpreso, mas depois sorriu, feliz com a decisão.
Vérica parecia simplesmente aliviado por ter finalmente descarregado o peso daquela decisão. Macro parecia zangado.
- Eu? - Artax meneava a cabeça, assombrado. - Porquê eu?
- Sim. - Comentou Tincómio. - Porquê ele, meu tio? Porque não eu? Não tens filhos, e sou eu o filho do teu irmão. Porque não eu?
- Tincómio, desde que abandonaste o teu pai que tens sido como um filho para mim. Um filho bem-amado. Mas és demasiado jovem, demasiado inexperiente, e temo que
alguns dos nossos nobres sejam capazes de te convencer a virares-te contra Roma. Quem me dera que fosses mais velho, e mais capaz de resistir a esses espíritos conspiradores.
Além disso, e tal como eu, regressaste há pouco do exílio, e és pouco conhecido dos homens que contam no nosso reino. Artax é conhecido e respeitado por todos. Todos
o seguem, especialmente aqueles que temem ou odeiam Roma. É um homem honrado, e não tenho qualquer dúvida sobre a sua lealdade. Lamento. Tomei a minha decisão, e
nada mais há a dizer.
A face de Tincómio revelou uma expressão de amargura e mágoa, enquanto o rei se virava para Artax de novo.
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- É claro que a minha decisão tem que ser ratificada pelo conselho, mas duvido que exista alguma oposição. Quando te tornares rei, Artax, verás as coisas com tanta
clareza como eu aprendi a ver. E saberás o que tem que ser feito.
Artax anuiu devagar. Em redor do fogo, houve um longo silêncio. Então, enquanto Cato o observava, um sorriso aflorou nos cantos da boca de Artax.
- É claro, sire. Sinto-me verdadeiramente honrado pela vossa decisão, e vejo agora aquilo que tem de ser feito.

XXIV
No dia seguinte, o tempo mudou. Uma chuva miudinha começou a cair mesmo antes do alvorecer, e os escravos da cozinha real debateram-se para conseguir acender uma
fogueira decente e preparar a ligeira refeição matinal. Vérica e o seu séquito juntaram-se em redor de um fogo que assobiava continuamente, por força das gotas de
chuva que o atingiam. Não havia no céu qualquer traço do laranja da alvorada, apenas um amarelo acinzentado para as bandas do leste. Quando a luz pálida ficou mais
forte, o céu tomou-se uniformemente cinzento.
- Grande dia para caçar. - Resmungou Macro, enquanto apertava as protecções de cabedal em torno das pernas.
- Talvez melhore mais tarde. - Disse Cato, franzindo os olhos ao olhar para a chuva fina que caía.
- E talvez os porcos voem.
- Esperemos que não. - Cato sorriu. - Aposto que já vou ter suficientes problemas com os javalis da variedade não-voadora.
Cato já estava equipado, e apoiava-se na haste de uma longa lança de caça. Ao contrário do dardo dos legionários, a arma tinha uma lâmina larga, com barbilhas que
não permitiam a extracção da ponta a não ser que fossem também arrancados grandes pedaços de carne. Embora fosse possível atirá-la contra um alvo, o peso da haste
só o tornava possível a muito curta distância. Demasiado curta para o gosto de Cato.
Preocupado, Macro perguntou:
- Já alguma vez caçaste javalis?
- Bem, na outra noite estive mais perto do que alguma vez queria estar de um bicho desses.
Macro resmungou.
- Repare, já os vi a serem caçados numa arena. - Continuou Cato.
- Não é exactamente a mesma coisa. - Disse Macro calmamente.
- Bestas feiosas.
1 O")

- São mesmo. Feias e perigosas como o caraças. Se fores parar ao chão à frente dum deles, atenção àquelas presas. Já as vi fazerem um tipo literalmente em tiras.
E não o mataram logo. As feridas infectaram, as presas têm uma espécie qualquer de veneno. Deve ter sido uma agonia. Morreu uns dias depois, aos berros...
- Obrigadinho. Sinto-me muito melhor depois dessa história.
- Tu safas-te. - Macro riu, e deu uma palmada no ombro do companheiro. - Mantém-te junto a mim, e atento.
- Há mais gente a quem esse conselho podia ser útil. - Murmurou Cato, acenando na direcção do rei e dos seus nobres, agrupados à volta da fogueira e brindando repetidamente
com canecas de cerveja. Artax estava próximo ao rei. Cato. reparou que ele não bebia como os outros, e parecia preocupado. E devia, reflectiu Cato. Vérica estava
velho. Daí a meses, talvez semanas, seria Artax o rei dos Atrébates. Esse tipo de perspectiva era bem capaz de afastar a mente de um homem do aqui e agora. Também
Cato sentia o peso desse futuro. Como rei, seria Artax tão orgulhoso e irritável como tinha sido enquanto fora apenas um jovem nobre? E se tal sucedesse, qual seria
a esperança de que se mantivessem as boas relações entre Roma e os Atrébates? Mas talvez Vérica tivesse razão. O velho rei era suficientemente astuto para perceber
que os Atrébates precisavam de um governante que ofendesse os sentimentos do menor número possível dos seus súbditos, e quanto a isso Artax era de facto uma boa
escolha. Seria ele, por seu lado, suficientemente sábio para compreender onde residia a única possibilidade de sobrevivência do seu povo?
- Agora que tem o Artax ao seu lado, o Vérica está em segurança.
- disse Macro.
- Sim. Suponho que sim. Mesmo assim, não confio nesse tipo. Acho que está a preparar alguma.
- Estás com medo das sombras?
- As sombras não matam ninguém.
- Não. - Macro olhou para o céu e depois lançou um olhar em volta. - Vamos lá. Não me parece que isto vá aquecer, ou ficar menos húmido. A
Mal tiveram tempo de agarrar um naco de carne fria e um pão antes de Cadmínio soprar no seu corno, chamando toda a gente para a caçada. De bocas cheias e a mastigar
freneticamente, Cato e Macro lançaram os restos das suas mal começadas refeições nas sacolas, e apressaram-se na direcção dos cavalos. Os caçadores treparam para
as montadas e acomodaram-se, antes de receberem as lanças que os escravos lhes passavam. Vérica precisou de auxílio para montar, e Artax afastou bruscamente um escravo
para garantir que era ele quem ajudava o rei a sentar-se na sela.
193

ri
Este olhou para baixo com um sorriso caloroso, e depois afagou o ombro de Artax.
- Enternecedor, não é? - Murmurou Macro. - Não há nada como ter alguém a oferecer-nos um reino para melhorar as nossas maneiras.
Tincómio fez o seu cavalo dirigir-se na direcção dos dois centuriões.
- Bom dia! - Saudou-o Cato.
- Bom? O que tem de bom? - Retorquiu Tincómio amargamente.
- Este miúdo tem uma grande espinha atravessada na garganta.
- Sussurrou Macro, antes que o bretão se aproximasse o suficiente para o escutar. Este puxou as rédeas e fez o cavalo imobilizar-se ao lado dos dois romanos. Macro
sorriu-lhe.
- Anima-te, rapaz. Se não desatar a chover a sério, a caçada deve ser interessante. A floresta está a abarrotar de javalis, segundo o Artax.
- Artax... Oh, pois, tenho a certeza que ele sabe o que diz.
Macro e Cato trocaram um olhar, antes que Macro continuasse, em tom animado:
- Presumo que não estás muito feliz com a escolha de Vérica para sucessor?
Tincómio encarou-os, o ressentimento bem estampado no rosto.
- Não. E vocês?
- Se ele se portar bem com Roma, por mim está óptimo.
- E você, Cato - o que pensa?
- Não sei. Só espero que Vérica ainda viva bastante tempo. Para as coisas se manterem calmas.
- Calmas? - Tincómio deu uma curta risada. - É isso o que lhes chama? Nada está calmo. Não enquanto esperamos que o velho morra.
Toda a gente está a pensar no que vai acontecer a seguir. Acha realmente que o Artax vai conseguir manter a união no reino?
Enquanto respondia, Cato observou cuidadosamente o seu interlocutor.
- Achas que há alguém capaz de desempenhar a tarefa de melhor forma?
- Talvez.
- Por exemplo, tu?
- Eu? - Tincómio pareceu surpreendido.
- Porque não? És um parente próximo de Vérica. Tens alguma influência na corte. Podias convencer o conselho a escolher-te em vez de Artax.
Macro rosnou:
- Cato, é melhor não metermos a colher nesse assunto. Está bem?
- Só estava a divagar.
- Não. Divagar é o que lhe chamas cá em cima. - Macro apontou
194

para a cabeça. - O que tu estás a fazer é remexer na merda. Não nos metemos na política tribal.
- Se calhar vamos ter que nos meter. Temos que pensar no que vai acontecer. Tincómio, tens que pensar no que vai acontecer. Para bem de todos nós.
Tincómio, lentamente, acenou em concordância; Macro, por seu turno, abanou a cabeça.
- Deixa-te disso. Somos soldados, não diplomatas. A nossa função é proteger Caleba, e preparar os Lobos e os Javalis para a guerra. E é tudo, Cato. O resto é com
os merdosos do género do Quintílio.
Cato levantou as mãos, desistindo. Nesse preciso momento voltou a ouvir-se o corno, e os cavalos agitaram-se enquanto o grupo formava uma coluna atrás do rei. O
cavalo de Macro foi forçado a avançar, e durante um breve instante Cato viu-se empurrado para muito próximo de Tincómio. Os olhos deles encontraram-se.
- Pensa no que eu disse. - Disse Cato suavemente.
Tincómio concordou com um aceno e afastou o olhar na direcção da figura requebrada que liderava a coluna. Então fez um som com a língua e forçou o cavalo a avançar.
- O que diabo andas tu a fazer? - Sussurrou Macro. - Estás a meter-lhe ideias na cabeça?
- Não confio no Artax. - Foi a resposta de Cato.
- Eu não confio em ninguém. - Macro mostrava-se furioso, embora mantivesse o tom de sussurro. - Nem no Artax, nem no Tincómio, e muito menos naquele oleoso tribuno
de merda. Mete-te com essa malta, e vais acabar por fazer com que nos limpem o sebo aos dois.
Quando o grupo alcançou o limite da floresta, os cavaleiros dispersaram-se por entre as árvores. Cadmínio dirigiu-se a Cato e Macro, e atribuiu-lhes posições próximas
do rei, junto a Artax, Tincómio e ele próprio.
- Porquê? - Perguntou Macro.
- O rei necessita de ter por perto gente em quem possa confiar. - Foi a calma resposta de Cadmínio. *
- Então e aqueles? - Macro acenou na direcção dos guardas pessoais do rei, que se mantinham afastados da linha de caçadores, mas formavam uma cortina a curta distância
das árvores.
-Farão demasiado barulho se se mantiverem perto do rei. Espantarão todos os javalis.
- E o rei não acha a situação um tanto arriscada? - Perguntou
Cato.
Cadmínio sacudiu a cabeça, resignado.
195

- Vocês têm-no visto nos últimos meses. Está a ficar velho, e sabe-o. Quer aproveitar a vida ao máximo, enquanto puder. Quem pode censurá-lo?
- Eu não, mas o seu povo talvez.
Cadmínio encolheu os ombros enquanto virava o cavalo.
- Somos nós o seu povo, Centurião. Ele pode fazer o que quiser.
Tendo-se posicionado, o grupo de caçadores esperou pelos primeiros
sons dos batedores. Os cavalos baixaram as cabeças e mordiscaram a relva húmida, enquanto os homens que os montavam se mantinham sentados e quietos, as lanças apoiadas
nas ancas. A chuva miúda continuava a salpicar as folhas e a ensopar as roupas dos caçadores. O cabelo de Cato depressa ficou empastado, e as gotas de água encontraram
um caminho irritante pelo seu nariz, até pingarem para o solo. Amaldiçoando em silêncio a sua sorte, voltou a pegar na carne fria que tinha guardado na sacola, colocou-a
sobre a cabeça, e deixou-se ficar, sentindo-se miserável enquanto mastigava a carne fibrosa e esperava que a caçada se iniciasse. Depressa começou a questionar se
colocar Artax tão próximo do rei seria uma atitude prudente. Podia ser o sucessor designado mas, dada a sua natureza impetuosa e impaciente, estaria ele na disposição
de esperar que o seu benfeitor morresse de morte natural? Felizmente Macro, ele próprio, Cadmínio e Tincómio estavam por perto também; com isto, Cato decidiu não
se afastar muito do rei durante a caçada.
- Cato! - Bradou Macro, a vinte passos de distância. Apontou para as árvores. - Ouve!
Cato inclinou a cabeça na direcção da floresta. A princípio nada mais distinguiu para além do ritmo regular da chuva a cair sobre as folhas. Então ouviu: a prolongada
nota de um corno, à distância, mal se percebendo. Os outros homens despertaram ao ouvirem o som, pegaram nas lanças e prepararam-se para se porem em movimento. O
rei Vérica olhou para o capitão da sua guarda pessoal, e deu um sinal de assentimento. Levando aos lábios o seu corno de caça, Cadmínio inspirou profundamente e
soprou, lançando uma única e poderosa nota. A linha de cavaleiros avançou na direcção das árvores, desaparecendo da vista dos guardas do rei e dos escassos escravos
que acompanhavam o grupo, transportando lanças de substituição.
No interior da floresta, a escuridão do dia era acentuada pelo espesso dossel constituído pelas copas das árvores, e Cato descobriu que tinha que franzir os olhos
para ver com alguma clareza. Macro seguia à sua esquerda, pisoteando os fenos e as árvores ainda jovens. À sua direita era Tincómio quem avançava. Depois devia ser
o rei, mas este já não estava à vista, e para lá dele devia estar Artax. Ao fim de tão curta distância, os densos maciços de arbustos e ervas já tinham separado
os caçadores. Cato conseguia porém
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ouvi-los: um constante quebrar de ramos, e o praguejar ocasional de algum dos cavaleiros, preso no emaranhado da vegetação.
À frente de Cato, as trombetas dos batedores já se ouviam com clareza, e também se escutavam os gritos que eles trocavam ao longo da linha em que avançavam. Algures
entre ele e os batedores estavam as presas de que tinham vindo em busca. Para além dos javalis, poderia haver veados, talvez mesmo lobos, selvagens e aterrorizados
pelos sons pouco habituais que os batedores emitiam. Mas eram os javalis que causavam maior ansiedade a Cato. Para além da besta que tinha visto na festa de Vérica,
já tinha visto os animais nos jogos em Roma. Eram importados da Sardenha, e tinham o pelo castanho e eriçado, e longos focinhos dos quais emergiam as curvas das
terríveis presas. E estas não eram as suas únicas armas. As bocas recheadas de dentes cortantes como lâminas tinham despachado rapidamente os condenados que os tinham
enfrentado naquele dia na arena. Cato tinha visto um dos javalis cerrar as mandíbulas sobre o braço de uma mulher e sacudir a enorme cabeça até arrancar o membro.
A memória tão vívida fê-lo estremecer, e Cato lançou uma prece a Diana, a deusa da caça, para que os javalis da Britânia não se revelassem tão aterrorizadores como
os seus primos da Sardenha.
O som de alguma coisa a mover-se por entre os fenos à sua frente fez com que Cato puxasse as rédeas e imobilizasse o seu cavalo. Baixou a ponta da lança de caça
e apontou-a na direcção do ruído que escutara. No momento seguinte um ondear da vegetação revelou que algum animal se aproximava, e Cato cerrou os dentes e agarrou
a lança com mais força. Uma raposa surgiu de entre os fenos e deteve-se no solo nu da floresta ao avistar o cavalo. Agachada e imóvel, observou Cato durante um instante.
Depois desapareceu, antes que Cato conseguisse decidir se valia a pena tentar abatê-la. Riu devido à libertação da tensão, e deu com os calcanhares nos flancos da
sua montada. À sua esquerda, algures na linha de caçadores, ouviu-se um grito excitado, quando um deles localizou uma presa; seguiu-se uma louca confusão de gritos
e ruídos de manejo de armas, e depois o longo guincho de dor e raiva de um javali ferido.
- Cato! - Chamou Macro. - Ouviste?
- Sim! Parece que alguém teve sorte.
Tinha a cabeça virada para Macro quando o animal surgiu. Por isso ouviu-o antes de o ver, e agarrou com mais força as rédeas do cavalo, por instinto. Este, assustado
com a inesperada aparição, e sentindo a pressão nas rédeas, empinou-se. Cato lançou-se para a frente, para junto do pescoço da montada, para evitar a queda, mas
o javali carregou sobre o ventre exposto do cavalo, atingindo-o junto aos quartos traseiros. Um relincho de agonia soltou-se do focinho do cavalo, que espumava quando
caiu para
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trás e sobre o lado. Cato viu o solo a aproximar-se rapidamente, e mal teve tempo para saltar e evitar ficar preso sob a montada. A queda foi dura, e Cato perdeu
o fôlego com a dor provocada pelo impacto. Sabia que, ali perto, o cavalo derrubado escoiceava enquanto o javali guinchava de raiva e se encarniçava sobre o outro
animal, com as poderosas pernas curtas a levantarem as folhas mortas de cada vez que carregava. Cato forçou-se a pôr-se de pé, arfando e procurando freneticamente
a lança de caça entre os fenos que forravam o solo.
- Cato!
Levantou a cabeça e abriu a boca para pedir ajuda, mas estava demasiado aterrado para conseguir mais do que um guincho de terror. Então avistou a ponta da lança,
a brilhar junto aos seus pés. Agarrou-a pela haste e levantou-a, virando-se no mesmo movimento para o cavalo. Estava deitado sobre o dorso, os cascos dianteiros
a pisotearem o solo, as patas de trás estranhamente quietas; Cato compreendeu que a espinha do animal estava partida. Ouviu-se um ruído doentio quando o javali voltou
a atingir o cavalo, e Cato rodeou-o por trás, agachado, a lança preparada para atacar.
- Cato! - A voz de Macro mostrava agora alguma ansiedade. - O que se passa?
Quando avistou o outro lado, Cato viu o javali atirar a cabeça para trás, as presas a desfazerem os tecidos do ventre do cavalo, formando feridas profundas. Um puxão
selvagem deixou à vista o longo focinho da besta, que brilhava com o sangue arrastado por um pedaço de intestino, arrancado por uma das presas. Os selvagens olhos
vermelhos do javali arregalaram-se quando se apercebeu da presença de Cato, e o animal imediatamente se virou e carregou.
- Oh merda! - exclamou Cato, enquanto mergulhava de novo para o outro lado do cavalo. O javali atravessou o espaço em que ele estivera um momento antes, e logo virou
e voltou a carregar sobre ele. Com um olhar aterrorizado sobre o ombro, Cato correu com a lança na mão, para a direita, onde o chão da floresta estava mais limpo.
O javali perseguiu-o como um aríete, tentando atingi-lo. A qualquer momento as suas pernas podiam ser colhidas e as costas desfeitas por aqueles terríveis caninos.
Pouco adiante estava um espesso tronco, um carvalho que tombara havia muito tempo, e que agora estava coberto por musgo esverdeado que reluzia sob a chuva. Com um
impulso, Cato pulou sobre o tronco, e deixou-se cair no outro lado. Já não havia maneira de escapar. Rebolou até ficar de costas, e apoiou a base da haste da lança
na terra, colocando a ponta na direcção do tronco. Ouviu-se um agitar de folhas quando o javali se preparou para o salto, e de repente surgiu, enorme, o focinho
manchado de sangue, os horrendos e aguçados dentes a brilharem nas mandíbulas
198

abertas. Lançou-se sobre Cato, e o peito encontrou a larga lâmina da lança de caça. A carne do animal engoliu a ponta da lança, que penetrou profundamente nos órgãos
vitais. O impacto arrancou a haste das mãos de Cato, e o comprimento desta fez com que o javali não conseguisse atingi-lo; depois a haste quebrou-se com um som agudo.
A besta caiu por terra com um ronco, guinchando em agonia enquanto lutava para se erguer sobre as patas. A haste da lança quebrara-se junto à lâmina, e saía de uma
ferida que sangrava abundantemente, mesmo abaixo do pescoço do animal. O sangue jorrava e espalhava-se pelo musgo e pelos fenos, à medida que o javali tentava libertar-se
da lança. Cato pegou na haste quebrada e atingiu o dorso do javali com o lado estilhaçado, pondo todo o seu peso no ataque. Os guinchos intensificaram-se e Cato
sentiu as pernas a serem atropeladas pelas patas do animal que se debatia. Ignorou a dor e continuou a fazer força sobre a haste quebrada, movimentando-a de um lado
para outro, alargando a ferida graças ao seu peso. Por fim, os esforços da criatura tornaram-se mais fracos, depois verdadeiramente débeis, e Cato insistiu, os dentes
cerrados, insultando o animal.
- Morre, sacana! Morre!
As perigosas patas já não lhe pisoteavam as pernas, estavam quietas. Ainda por mais um momento, a respiração do animal veio em rápidos e curtos soluços. Por fim,
com um silvo meio suspirado, o javali morreu.
Cato diminuiu lentamente a pressão na haste da lança, que lhe tinha deixado os nós dos dedos brancos, e deixou-se cair de joelhos, tremendo de alívio e excitação.
Tinha conseguido, tinha abatido o seu javali, e estava vivo e sem ferimentos. O coração batia-lhe com força enquanto mirava o animal. Agora que estava morto, parecia
de alguma forma mais pequeno. Não muito, mas mesmo assim mais pequeno. Examinando a cabeça, Cato viu que as mandíbulas estavam semi-abertas e que a língua ensanguentada
saía por entre os dentes afiados. Estremeceu e colocou-se de pé.
- Cato! - Chamou Macro, ali perto, da direcção do cavalo mortalmente ferido. Não podiam ficar dúvidas sobre a ansiedade na voz do centurião mais velho.
- Aqui!
- Aguenta, miúdo! Estou quase aí.
Enquanto Cato se levantava ouviu-se um grito por perto, vindo da direcção do rei. Enquanto ele suspendia a respiração e tentava ouvir alguma coisa, a voz voltou
a fazer-se ouvir.
- Ajuda! Socorro! Assassinos!
Cato reconheceu a voz de Vérica, e gritou sobre o ombro:
- Macro! Por aqui! Depressa!
E desatou a correr na direcção dos gritos, calcando os leitos de fetos e

arranhando-se nos ramos que chicoteavam enquanto ele se apressava para socorrer o rei. Atrás dele, escutou Macro a chamá-lo.
- Por aqui! - Voltou a gritar sobre o ombro enquanto corria. Os pés atingiram um obstáculo e viu-se projectado para a frente, levantando os braços por instinto,
para proteger a face quando atingisse o solo. A queda foi difícil, mas rolou sobre si mesmo e levantou-se de imediato. Avistou Tincómio, no chão, agarrado à cabeça.
O sangue escorria-lhe por entre os dedos, e os olhos estavam desfocados. A lança que lhe fora distribuída estava sobre o peito do bretão.
- Tincómio! Onde está o rei?
- O quê? - O outro sacudiu a cabeça, ainda atordoado.
- O rei?
Os olhos de Tincómio clarearam, e ele rolou sobre o dorso, erguendo o braço e apontando para uma estreita vereda.
- Por ali. Depressa! O Artax persegue-o.
- Artax?
- Tentei impedi-lo. Vá! Peça ajuda! Eu vou segui-los!
Cato ignorou-o, e correu pelo trilho. Olhando para baixo, reparou em gotas de um escarlate brilhante que se espalhavam pelo solo e pelos fetos que atravessava. De
repente, o caminho desembocou numa pequena clareira. A alguns metros via-se o espesso tronco de um carvalho. Na base deste, Vérica estava no solo, derrubado. O cabelo
branco do rei estava manchado pelo sangue que corria de uma profunda ferida no topo do crânio. Sobre ele via-se Artax, com um grosso bastão na mão. Quando Cato saiu
do meio das ervas, Artax avistou-o e mostrou os dentes num sorriso amargo.
- Cato! Boa! Vem cá, rapaz!
- Larga o bastão. - Ordenou Cato. - Larga-o!
- Estou farto das tuas ordens. - Rosnou Artax, e deu um passo na direcção do romano. Então imobilizou-se e olhou em redor, ansioso.
- Onde está o Tincómio?
Cato lançou-se sobre ele, e rolaram juntos pelo solo, perto da imobilizada forma de Vérica. Cato foi o primeiro a pôr-se de pé, e aplicou a bota na face de Artax.
Ouviu-se um som de esmagamento quando as tachas de ferro atingiram o nariz do bretão, e Artax gritou de surpresa e dor. Então também ele se levantou, e tentou alcançar
Cato com o bastão. Cato evitou o ataque e agachou-se, preparando-se de novo para se atirar ao outro. Onde raio estava o Tincómio? E o Macro?
Os dentes de Artax rangeram quando ele rosnou.
- Vais pagar por isto, Romano! Estou-te a avisar, afasta-te!
Cato saltou. Desta vez, Artax estava à espera dele; deu um passo ao lado e usou o bastão para atingir Cato nos ombros. O centurião foi derru-
200

bado, completamente atordoado pelo golpe. Viu Artax mostrar a sua satisfação com um gesto da cabeça, e esperou pelo golpe final que lhe esmagaria o crânio. Ao invés,
Artax virou-se e afastou-se na direcção do rei. Mas não o alcançou. Ouviu-se um som abafado, e Artax grunhiu quando sentiu o impacto da lança de caça de Tincómio.
O golpe derrubou-o e ele caiu de lado sobre a terra, a escura haste apontando para o céu. Tincómio cambaleou até ao corpo, agarrou a haste e colocou o pé junto à
ferida. Com um tremendo puxão, arrancou a ponta barbada da lança do peito de Artax, fazendo o sangue jorrar da ferida aberta. O corpo de Artax estremeceu por um
momento, e pareceu que ele tentava levantar-se. Tincómio derrubou-o com um pontapé, mas mesmo antes de morrer a mão de Artax dirigiu-se ao rei e agarrou uma dobra
da túnica de Vérica.
- Sire!... Sire...
E então ficou quieto.
Cato estava ainda demasiado atordoado para se levantar. A pancada tinha-lhe deixado os braços e os ombros sem força, e eles recusavam-se a mexer-se. Assim, só podia
assistir enquanto Tincómio ajoelhava junto ao rei, a lança ensanguentada na mão, e verificava se havia sinais de vida.
Com um estrondo de ramos partidos, Macro irrompeu pela clareira, lança em riste, preparado para investir contra o primeiro inimigo que avistasse. Olhou em volta,
confundido, e deteve o cavalo, antes de escorregar do seu dorso. Correu para Cato, e voltou-o.
- Estás bem?
- Já vou estar, é só um momento.
Macro assentiu, depois dirigiu o olhar para onde o corpo de Artax se encontrava, com a mão ainda a apertar a túnica do rei. Tincómio virou-se e encarou-o com um
olhar frio.
- Que raio é que se passou aqui?
- Artax. - Murmurou Cato. - Tentou matar Vérica.
- O rei está vivo? - Lançou Macro a Tincómio.
Tincómio assentiu.
- Por pouco.
- Fantástico! - resmungou Macro. - E agora, o que se segue?

XXV
- Como está o velho? - Perguntou Macro. - Alguma melhora?
Cato abanou a cabeça, enqu anto se sentava ao lado de Macro. Acabava de regressar dos aposentos reais, onde o médico do depósito tratava do rei sob o olhar vigilante
de Cadmínio. Macro bebia uma caneca da cerveja local enquanto secava lentamente junto às brasas incandescentes da lareira. Tinha sido um dia longo e desconfortável.
A chuva tinha-se intensificado sobre o grupo de caçadores quando este se apressara a regressar a Caleba com o rei ferido. Tinham alcançado a capital ao entardecer,
ensopados e enregelados, e o tribuno Quintílio tinha ordenado a Cato e aos guardas pessoais de Vérica que acompanhassem o ferido até ao recinto real, enquanto Macro
se apressava até ao depósito, para convocar o médico. Quintílio também tinha activado a coorte dos Lobos, fazendo-a sair das casernas e tomar posições de guarda
no depósito e na longa elipse desenhada pelos baluartes de Caleba, para o caso de algum dos inimigos de Vérica tentar aproveitar a ocasião. Enquanto os homens ocupavam
os postos sob o fulgor de archotes rapidamente ateados, e aguardavam por mais notícias do seu rei, Macro dirigira-se ao recinto real para se juntar a Cato.
O grande salão estava repleto de homens, agrupados em magotes à volta das mesas. Vários dos guardas pessoais do rei barravam o caminho para os seus aposentos, de
espadas em riste e atentos a qualquer perturbação. Sussurros e vozes cuidadosamente dissimuladas enchiam o ar, e todos os olhos se dirigiam de quando em vez para
a porta que dava para o quarto de Vérica. As notícias sobre o ferimento do rei já se tinham espalhado para lá do recinto real, pelas enlameadas ruas de Caleba, e
todos os Atrébates, fosse qual fosse o seu estatuto, esperavam por novidades.
Cato observara o médico a limpar cuidadosamente o sangue e a lama do escalpe rasgado do ancião. Tinha inspirado profundamente antes de sondar suavemente a pele descolorada
sob o cabelo esparso. Depois recostara-se e acenara a Cato.
202

- Por agora, sobreviverá.
- E que hipóteses tem?
- Não sei. Neste tipo de feridas, pode-se recuperar em poucos dias, ou morrer.
- Estou a ver. - Murmurou Cato. - Faz o que puderes.
O rei jazia no leito, a face pálida como a morte, na parte que se avistava sob o penso que o médico aplicara na ferida. A respiração do ancião era leve. Podia-se
imaginar que estava já morto, não fosse o subir e descer do peito.
- Assim que houver alguma alteração, avisa-me. - Disse Cato ao médico.
- Sim, senhor.
Cato afastou-se da cama e dirigiu-se à porta que dava para o salão. Antes de sair do quarto, estacou. Na parede oposta havia outra porta, que conduzia à sala de
audiências privadas do rei, e através dela conseguiam-se ouvir os sons abafados de um debate aceso. Então escutou-se um grito de Quintílio a pedir silêncio. Era
tentador aproximar-se da porta e tentar ouvir melhor, mas Cato não se diminuiria assim na frente do médico. No salão, Cato avistou Macro, que se sentava num banco
próximo, e dirigiu-se ao amigo, para lhe explicar o estado do rei.
- Não melhorou? O que disse o médico?
- Pouca coisa. - Respondeu Cato, consciente de que muitos olhos o fitavam, uma vez que tinha saído do quarto do rei. - O Artax deve-lhe ter dado um golpe poderoso.
Perdeu muito sangue, mas o crânio está intacto. Talvez sobreviva.
- É bom que sim. - Macro olhou em redor. - Tenho a sensação de que muitos dos locais gostariam de ver uma mudança de regime. Não há por aqui muita afeição por nós.
- Talvez. - Cato encolheu os ombros, num gesto de cansaço. - Mas penso que o que eles estão é assustados.
- Assustados? - A voz de Macro elevou-se com a surpresa, e uma vintena de faces, mal iluminadas pelas tochas qye ardiam nas paredes, virou-se para os dois centuriões.-
Macro inclinou-se, aproximando a cabeça da de Cato. - Celtas, assustados? Aí está algo que nunca pensei ver na minha vida.
- Não os pode culpar. Se o rei morrer, tê-lo-ão perdido e ao sucessor designado, os dois de uma vez. Tudo poderá acontecer. Não há outro sucessor apontado. O conselho
terá que escolher um novo soberano. Esperemos que o Quintílio os convença a escolher alguém que mantenha os Atrébates do nosso lado.
- E onde está o nosso excelente tribuno?

- Está com eles agora, na sala de audiências de Vérica.
- Deve estar a usar o seu charme.
- Isso não vai resolver a questão. - Resmungou Cato. - Suponho que ele será muito claro quanto às consequências de qualquer alteração da política da tribo relativamente
a Roma. Espero que os consiga assustar o suficiente para eles serem sensatos, para o bem de todos nós.
Macro manteve-se em silêncio durante alguns momentos, antes de continuar:
- Achas que ele vai ter sucesso?
- Quem sabe?
- Alguma ideia sobre quem será o escolhido?
Cato fez uma curta pausa para pensar.
- O candidato óbvio é o Tincómio. Ou ele ou o Cadmínio. Isto se quiserem manter a paz com Roma.
- É o que eu pensava. - Assentiu Macro. - Era melhor o Cadmínio.
- O Cadmínio? Não sei se o conhecemos o suficiente.
- E achas que conheces realmente o Tincómio? - Macro olhou para o amigo com intensidade. - O suficiente para lhe confiares a tua vida? É uma tolice confiar nalgum
destes tipos.
- Suponho que sim. - Cato passou a mão suja pelo cabelo empastado, e fez uma careta. - Ainda assim, se podemos confiar em alguém, é no Tincómio.
- Não. Discordo.
- Porquê?
Macro encolheu os ombros.
- Não sei exactamente porquê. Há qualquer coisa que não me soa bem naquela história com o Artax.
- Artax. - Cato fungou. - Sempre achei que ele estava a planear alguma, sobretudo depois daquela sova que lhe dei no campo de treinos. Não confiava nele nem um bocadinho.
E tinha razão.
- Sim...
- Não entendo no que estava o Vérica a pensar quando o nomeou como sucessor. Foi o mesmo que assinar a sua sentença de morte.
- Cato, estás enganado. - Macro abanou a cabeça. - O que o Artax fez não faz nenhum sentido. O Vérica está velho. Não viveria muito mais tempo, de qualquer maneira.
Porque é que ele não se limitou a esperar?
- Sabe como eles são. - Cato acenou discretamente na direcção dos nativos que se encontravam no grande salão. - Impacientes e irritadiços. Aposto que o Artax deu
com o rei sozinho durante a caçada e resolveu tomar um atalho para o trono. Felizmente para nós, o Tincómio estava lá.
204

- Dizes tu.
- A última coisa de que precisávamos era de alguém como o Artax a governar as coisas aqui em Caleba. Já temos bastante com que nos preocupar, com o Carátaco ainda
à solta, sem termos que cuidar do que se passa atrás de nós, e verificar se os atrébates não resolvem roer-nos a corda. Estávamos tramados. Para nos safarmos, só
com muita sorte... Por outro lado...
- Sim?
- Não consigo deixar de pensar que vai acontecer alguma coisa ainda pior. Ainda não acabou.
- Oh, foda-se! - Macro deu um murro no ombro de Cato. - Quando é que páras de ver sempre o pior em tudo? Desde que te conheço, tem sido sempre a mesma merda. 'Vai
acontecer alguma coisa ainda pior'. Enxerga-te, puto. Melhor ainda, deita mas é a vista a esta caneca. Eu encho. Não há nada como o fundo de uma caneca para alegrar
um homem.
Por momentos Cato ficou magoado por ser tratado como uma criança. Até há uns meses atrás, não teria havido problema; nessa altura era apenas o optio de Macro, mas
agora tinha sido nomeado centurião. Cato refreou o ressentimento; não serviria de nada oferecer à turba de nativos o espectáculo de dois oficiais romanos às turras.
Forçou-se a esvaziar a caneca que Macro lhe enchera, cerrando os dentes para peneirar o sedimento que adensava a cerveja local, como se fosse lama. Ofereceu a caneca
para que fosse cheia de novo.
- Assim, sim! - Macro sorriu. - Enquanto esperamos pelo tribuno, porque não aproveitar?
Deixaram-se estar sentados à mesa, aquecidos pelo calor da braseira, pequenos remoinhos de vapor a soltarem-se das túnicas húmidas enquanto bebiam mais cerveja.
Cato, muito mais facilmente afectado pela cerveja do que o seu companheiro, sentiu-se sonolento, e começou a escorregar pelo banco, apoiando as costas na parede.
Os olhos piscaram um momento, e a seguir fecharam-se. Pouco depois, com o queixo a descair sobre o peito, o jovem centurião adormeceu.
Macro observou-o com uma expressão divertida, mas nada fez para lhe perturbar o sono. Sentia uma satisfação perversa perante aquele momento de fraqueza. Embora tivesse
celebrado com sinceridade a promoção de Cato, havia momentos em que lhe agradava sentir que, no fim de contas, a sua experiência contava mais do que a inegável capacidade
de Cato. Mesmo com todas as batalhas que o miúdo já tinha travado desde que se juntara às Águias, mesmo com toda a sua coragem e engenho, que já bem demonstrara
em circunstâncias desesperadas, ele ainda não tinha sequer vinte anos de idade.
205

p
À luz suave e alaranjada das chamas que ondulavam gentilmente, a face de Cato era suave e impoluta, não cheia de cicatrizes e rugas como a sua, e Macro deixou-se
tentar por um momento de ternura paternal em relação ao companheiro, antes de tomar outro gole de cerveja e lançar um olhar ao grande salão. A ansiedade nos nobres
atrébates era palpável, e já se formavam diferentes facções, que se reuniam em grupos fechados, nas sombras do salão. Talvez o miúdo tivesse razão, reflectiu Macro.
Talvez ainda viessem por aí coisas piores.
? ? ?
- Acorda! Vá, centurião! Acorda!
- O quê? Que se passa? - Murmurou Cato com ansiedade, enquanto uma mão lhe abanava fortemente o ombro. Os seus olhos abriram-se, e ele sentou-se. O tribuno Quintílio
debruçava-se sobre ele. Macro estava a um lado, os olhos sonolentos, mas de pé. O salão estava silencioso, para além deles. As braseiras tinham-se apagado, e as
brasas escurecidas revelavam apenas as escuras formas de homens que dormiam sobre o solo coberto por caniços.
- Cato, estás connosco? - Perguntou Quintílio.
- Sim, senhor... Sim. - Esfregou os olhos. - Quanto tempo é que dormi?
- Já quase alvoreceu.
- Alvorada? - Cato despertou imediatamente, furioso consigo mesmo. Macro reparou que a sobrancelha do amigo se franzia, e não reprimiu um sorriso. Quintílio afastou-se
e coçou a penugem do queixo, com ar cansado.
- Temos que falar. Sigam-me.
O tribuno virou-se subitamente e dirigiu-se à porta do quarto do rei enquanto Macro e Cato cambaleavam atrás dele. Os guardas pessoais do rei afastaram-se da entrada
para os deixar passar, e voltaram às posições de bloqueio assim que a porta se fechou atrás de Cato. Lá dentro, o pequeno grupo lançou o olhar instintivamente para
a cama onde jazia Vérica. Não se via movimento, apenas o som ritmado da respiração difícil.
- Alguma alteração? - Inquiriu Quintílio.
O médico, sentado num banco ao lado do leito, abanou a cabeça.
- Não recuperou a consciência, senhor.
- Assim que houver alguma coisa, para melhor ou para pior, avisa-nos. Entendido?
- Sim, senhor.
Quintílio indicou que os outros o deviam seguir, e levou-os até à sala
206

de audiências privadas do rei. Estava vazia, para além da grande mesa, dos
> bancos e do trono de madeira ornamentada.
- Sentem-se. - Ordenou, enquanto se dirigia ao trono e se sentava nele sem a menor hesitação. Macro trocou um rápido olhar com Cato e arregalou as sobrancelhas.
Quintílio apoiou-se nos cotovelos e juntou as pontas dos dedos.
- Parece que consegui convencer o conselho a nomear Tincómio como novo herdeiro de Vérica.
- Claro, todos esperamos que Vérica sobreviva. - Contrariou Macro. As reservas que sentia sobre Tincómio continuavam a atormentá-lo.
- Nem é preciso dizê-lo. - Assentiu o tribuno. - Ele constitui a melhor garantia da paz entre Roma e os Atrébates.
- Serviremos Tincómio com dedicação, senhor. - Disse Cato.
- Espero bem que sim. - Quintílio juntou as palmas das mãos.
- Mas, se acontecer o pior e Vérica morrer, teremos que agir depressa. Quem quer que se oponha ao novo regime deve ser capturado e colocado sob prisão no depósito
até que Tincómio estabeleça um firme domínio sobre o seu povo.
- Supõe então que Artax não agia sozinho, senhor? - Perguntou
Cato.
- Não estou certo. Nunca tinha suspeitado que ele fosse um traidor.
- A sério? - Cato não escondeu a surpresa. - Porque não, senhor?
- Porque ele era suposto ser um dos agentes do general Pláucio. Tenho muitas dúvidas de que as notícias de que Artax era um fraco investimento agradem ao General.
- Artax, um espião! - Também Macro estava surpreendido. - Era um filho da mãe temperamental, mas nunca pensei que fosse capaz de dissimular as suas intenções.
- Bem, centurião, estavas enganado. De qualquer maneira, ele não era um espião. Era um agente duplo. - Corrigiu Quintílio. - Ou, pelo menos, foi nisso que se tornou,
ao que parece... Pode*ser que a nomeação como herdeiro de Vérica lhe tenha subido à cabeça, e que tenha agido sozinho.
- Talvez, senhor. - Cato encolheu os ombros. - De qualquer maneira, nunca confiei nele. E não penso que ele fosse o único dos locais com que temos que nos preocupar.
Agora que Vérica está a sair de cena, acho que devemos esperar confusão, sobretudo com Tincómio nomeado para suceder ao tio. Há com certeza quem pense que ele é
demasiado jovem e inexperiente para esse papel. E outros que querem simplesmente ser reis.
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- Sim, alguns podem resistir à escolha do conselho. - Concedeu o tribuno. - Alguns até podem pegar em armas contra o novo rei, se Vérica morrer. Terão que ser as
vossas coortes a tratar deles. - Um sorriso aflorou os lábios de Quintílio. - Os vossos, hã, Lobos e Javalis.
Cato ignorou o toque, demasiado preocupado com as implicações das ordens dadas pelo tribuno. Uma premonição gelada subiu-lhe da base do pescoço até ao alto do crânio.
- Isso pode não ser muito bem aceite por alguns dos homens, senhor. Viu como as coisas estão ali no salão: a tribo já começa a desagregar-se. Não nos podemos permitir
piorar a situação.
- Centurião, não sejas tão melodramático. Os teus homens estão sob o teu comando. Farão o que ordenares. Ou tens medo de não conseguires controlá-los? É trabalho
para um homem a sério, e tu mal passas de um rapaz. Percebo esse receio. E tu, Macro? Os teus homens obedecerão às tuas ordens?
- Claro, senhor, se souberem o que lhes convém.
- É assim mesmo! - O tribuno sacudiu a cabeça, satisfeito. - Ainda bem que há um oficial em quem posso confiar.
Cato ficou a olhar para o tribuno, lutando contra a raiva que o invadia, e tentando perceber se aquilo era um teste ou uma armadilha. Resolveu manter-se calmo -
tão calmo perante este ataque à sua integridade como quando enfrentava o inimigo à frente dos seus homens.
- Pode contar também comigo e com a minha coorte, senhor.
O tribuno encarou-o por instantes.
- Espero bem que sim, Cato. Espero que sim... Mas por agora isto não passa de uma situação hipotética. Vérica ainda está vivo, e enquanto ele viver devemos esforçar-nos
por assegurar que as relações entre Roma e os atrébates não se afastam da senda que têm vindo a seguir.
- Sim, senhor. - Assentiu Cato. - E devemos também esforçar-nos para que os atrébates não se envolvam em lutas internas.
O tribuno Quintílio sorriu.
- Nem é preciso dizê-lo, centurião.
? ? ?
- Sacana! - Resmungava Cato, enquanto acompanhava Macro de regresso ao depósito. O sol, acabado de nascer, ainda estava abaixo do nível dos telhados das cabanas
que ladeavam o caminho enlameado. O ar estava frio e húmido e, à fraca luz da alvorada, Cato tinha-se apercebido de como estava realmente sujo, e suspirava por um
bom banho e uma túnica limpa. Mas o desprezo profundo do tribuno seguia-o como uma sombra, e o jo-
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vem centurião sabia que seria bem mais difícil esquecê-lo do que livrar-se
- da espessa camada de lama e pó que o cobria.
- Não fiques assim! - Riu Macro. - Resmungas como uma noiva enganada.
- Ouviu o que ele disse. lÉ trabalho para um homem a sério! - çat0 imitou o outro. - Sacana. Filho da puta de patrício arrogante. Podia ensinar-lhe uma ou duas coisas.
- É claro que podias. - Macro adoptou um tom conciliador, e ergueu as mãos em ar de desculpa quando Cato lhe lançou um olhar assassino. - Desculpa. Tom errado. Bom,
de qualquer maneira, vê o lado bom.
- Há algum?
Macro ignorou o remoque.
- O Vérica ainda está entre nós. E mesmo que bata a bota, temos um sucessor que serve os nossos interesses. O Tincómio não seria a minha primeira escolha, mas ao
menos não é um traidor como o Artax. As coisa podiam estar piores.
- O que quer dizer que depressa estarão...
Foi demais para Macro. Embora apreciasse sinceramente Cato, o constante pessimismo do rapaz era capaz de ter um efeito profundamente irritante e depressivo num tipo
normalmente jovial como Macro, e ele colocou-se na frente do amigo, impedindo-lhe a passagem.
- Nunca deixas de ser derrotista? - Disparou. - Começas a encher-me a paciência.
Cato olhou para a face do superior.
- Desculpe, senhor, a sério. Devem ser os nervos.
Por momentos, o homem mais velho irritou-se; a tensão nos seus grossos e peludos braços fez com que os punhos se cerrassem. Macro sentiu um forte desejo de inculcar
algum bom senso em Cato, nem que fosse à pancada, e fazê-lo esquecer de veç aquele temperamento depressivo. Mas depois relaxou, levou as mãos às ancas, e falou de
forma deliberada.
- Sabes, pergunto-me se o tribuno não teria razão, afinal de contas. Se ficas tão irritado por causa de umas palavras tfruscas, então se calhar não tens nada que
comandar homens crescidos.
Antes que este percebesse o que estava a fazer, o punho de Cato disparou e atingiu o queixo de Macro. A cabeça do centurião mais velho foi lançada para trás, e ele
cambaleou, afastando-se de Cato. Então recuperou o equilíbrio e apalpou o queixo, erguendo as sobrancelhas quando avistou sangue na palma da mão, proveniente do
lábio rasgado. Encarou Cato, com um brilho frio nos olhos.
- Vais pagar por isto.
209

- Eu- Eu peço desculpa, Macro. Não sei o que me pasmou pela cabeça, não sei porque o fiz. Não quis...
- Mas soube bem, hã? - Macro deu um pequeno sorriso.
- O quê?
- Sentes-te melhor?
- Melhor? Não! Sinto-me horrivelmente. Sente-se bem?
- Estou fino. Dói como o caraças, mas já levei piores. Bem, mas ao menos esqueceste-te do cabrão do tribuno por um minuto, não foi?
- Bem, é verdade. - Admitiu Cato, ainda embaraçado pela sua perda de controlo. - Hã... obrigado.
Macro acenou com a mão, como que para afastar o assunto.
- Vamos, miúdo, de volta ao depósito. Esquece o tribuno, esquece esta merda desta tribo de bárbaros, e vamos mas é ver se engolimos alguma comida decente.
- Sim... - Cato ainda estava especado no sítio em que Macro o detivera. Olhava por cima da cabeça do centurião mais velho, um ar de preocupação a espalhar-se pela
face.
- Calma. - Macro deu uma risada. - Mais cedo ou mais tarde, levas a paga... O que se passa?
- Olhe. - Cato apontou para nascente, onde o céu estava pintado de dourado pelo sol que se erguia. Macro virou-se para olhar na direcção apontada por Cato. A algumas
milhas, várias colunas de fumo erguiam-se no pálido céu do dia que nascia.
210

XXVI
- Coluna de abastecimento? - Perguntou Cato.
- Assim parece.
- Não estava à espera de nenhuma.
- Nem eu. - Macro agarrou-lhe o braço. - Bom, vamos lá.
Os dois correram de regresso ao depósito, com Macro à frente. Assim que passaram pelo portão, este enviou uma das sentinelas chamar o tribuno e Tincómio. Enquanto
o homem corria ao longo do caminho que levava ao recinto real, Macro virou-se para o seu subordinado.
- Forma os Lobos ao pé do portão. Vou buscar os Javalis e junto-me a ti assim que puder.
- Sim, senhor.
Cato correu para o edifício do comando e irrompeu pela sala da administração. Avistou um dos trombeteiros da guarnição, e gritou ao homem que pegasse no instrumento
e o seguisse até ao portão principal de Caleba. O legionário chegou ao passadiço sem fôlego, depois de correr com o peso da espiralada trombeta de cobre e de subir
as escadas para se juntar ao seu comandante. Cato dava palmadas nas coxas, impaciente, enquanto o homem recuperava o fôlego. Por fim, ele cuspiu para limpar a boca,
inspirou profundamente, e soprou pelo bocal. As estridentes notas do toque a reunir espalharam-se pela cidade, e os homens da Coorte dos Lobos apressaram-se a dirigir-se
para a origem do som. *
No depósito soou entretanto outro sinal, e Cato avistou os homens da Coorte dos Javalis a saírem das tendas e formarem na parada. A entroncada figura de Macro saiu
do edifício do comando, o capacete a refulgir sob os primeiros raios de sol, por baixo da crista transversal vermelha. Vinha completamente equipado, e preparado
para entrar em acção. Com um baque de auto-desprezo, Cato apercebeu-se de que tinha deixado a armadura nos seus aposentos; virou-se para o homem mais próximo e encarregou-o
de a ir buscar.
211

Sob o passadiço, os portões gemeram à medida que eraín puxados para dentro. Os primeiros homens da coorte surgiram na rua enlameada, e Cato debruçou-se sobre o parapeito
para gritar ordens a Fígulo.
- Forma a coorte na rua, do lado de dentro do portão!
Enquanto os instrutores romanos punham os homens em posição
e formavam a coorte numa coluna de marcha, Cato lançou o olhar sobre a muralha, na direcção das distantes espiras de fumo que se elevavam no céu, talvez a uns sete
ou oito quilómetros da cidade. Naquela manhã o ar apresentava-se muito estável, e era possível distinguir várias origens separadas para o fumo: cada um dos vagões
de abastecimento incendiados pelos atacantes, concluiu Cato. No momento em que o último homem entrava na formação, o nativo que enviara para buscar o seu equipamento
regressou ao passadiço, ofegando. Cato franziu o sobrolho ao aperceber-se de que o homem não lhe tinha trazido uma túnica lavada, mas já não havia nada a fazer,
e ele enfiou as almofadas dos ombros por cima da cabeça, e pegou na pesada massa da sua cota de malha.
- Centurião, vamos combater? - Perguntou o bretão, enquanto apertava o cinturão de Cato.
- Depende de os conseguirmos apanhar. - Retorquiu Cato em céltico. - Esperemos que sim.
Reparou que o homem sorria ao ouvir a resposta, e compreendeu que o outro mal podia esperar por um combate. Era uma vontade que Cato partilhava, a de destroçar o
inimigo. Depois, numa rápida reflexão, apercebeu-se de que as suas razões eram mais egoístas, e que tinham tudo a ver com a vontade de provar alguma coisa ao sacana
do tribuno, cujos comentários o tinham atingido profundamente.
Assim que a última fivela da armadura ficou apertada, Cato pegou na protecção de feltro, enfiou-a na cabeça e colocou o capacete de centurião, apertando rapidamente
as tiras de cabedal que saíam das guardas laterais.
- Pronto! Vai para baixo. - Ordenou ao guerreiro. - Junta-te à tua centúria.
Cato lançou um rápido olhar na direcção do depósito e ficou agradado ao avistar os Javalis, marchando em coluna para o portão, com Macro à cabeça. Então o jovem
centurião precipitou-se pelos degraus abaixo, e colocou-se à frente da coorte dos Lobos.
- Fígulo! Fígulo! Chega aqui!
O jovem gaulês correu pelas colunas até chegar junto dele, a face corada de excitação.
- Põe-nos a andar. - Ordenou Cato, apontando para as colunas de fumo distante que se dissipavam já, depois de terem atingido o auge.
212

- Quero-os lá fora, prontos a marchar. Junto-me a vocês assim que falar
- com o centurião Macro e com o tribuno.
- Sim, senhor! - Fígulo saudou, e correu para se colocar à frente da pequena coluna. Pôs os homens em sentido, e deu ordem para avançar. Os nativos já estavam habituados
às vozes de comando mais usadas e, assim que o ouviram, começaram a marchar em bom ritmo, atravessando o portão e dirigindo-se para as distantes colunas de fumo.
Cato deixou-se ficar a vê-los passar por um instante e depois, assim que a última fileira da última centúria passou por ele, dirigiu-se ao portão aberto. Ouviu-se
um ruído de cascos e Quintílio e Tincómio surgiram a galope, vindos do recinto real. Estavam armados e prontos para o combate, e detiveram os cavalos quando avistaram
Cato.
- O que se passa? - Bradou Quintílio. - Informa!
- Fumo, senhor! - Retorquiu Cato, indicando-lhe a direcção. - Parece que atacaram outra das nossas colunas de abastecimento.
O tribuno olhou ao longo do caminho, avistando a Coorte dos Lobos.
- Onde está o Macro?
- Vem do depósito com a outra coorte, senhor.
- Óptimo! - Quintílio esfregou as mãos. - Talvez os apanhemos ainda carregados. Vamos embora!
- Senhor, não será melhor enviar primeiro alguns batedores?
- Estamos a perder tempo! - Interveio Tincómio, excitado. - Temos que atacar imediatamente.
Quintílio assentiu.
- É fácil de perceber o que está a acontecer, centurião. E não há tempo a perder.
- Mas, e Caleba? Não podemos deixar a cidade indefesa, senhor. Não nas presentes circunstâncias.
- A guarnição do depósito pode encarregar-se do portão. Manda-os chamar. Agora, vamos!
Ignorando os protestos de Cato, o tribuno deu com os calcanhares e levou o cavalo pelo portão e pela estrada abaÉxo, seguido de perto por Tincómio. Cato ordenou
à sentinela mais próxima que corresse até ao depósito e que trouxesse todos os homens capazes de pegar em armas para proteger os portões da cidade, e então lançou-se
em perseguição do tribuno, ultrapassando a correr toda a coluna até alcançar o estandarte com a cabeça de lobo, que seguia na vanguarda da sua coorte. Lá longe na
estrada viam-se os outros dois, a galoparem na direcção do fumo. Cato entrou no ritmo dos seus homens e olhou para o novo porta-estandarte. Embora jovem, como ele,
remoeu Cato, o homem era um colosso - nada
213
I

da força retesada de Bedríaco, somente uma massa de músculos.
- Chamas-te Mandrax, não é?
- Sim, senhor.
- Bom, Mandrax, mantém o estandarte bem alto e em segurança, e terás desempenhado a tua missão.
- Sim, senhor.
Cato olhou em volta e avistou, por trás da derradeira centúria dos Lobos, a vanguarda da coorte de Macro a emergir pelo portão. Os Javalis marchavam em passo rápido
para se juntarem aos seus camaradas, e só reduziram o andamento quando os alcançaram. Macro correu até à frente, juntando-se a Cato.
- Onde está o tribuno?
- Foi andando com o Tincómio, para ver o que se passa.
- Espero que aquela besta tenha cuidado. - Grunhiu Macro. - A última coisa que queremos é denunciar a nossa presença.
- Ou perder outro dos herdeiros de Vérica.
- Pois.
- Acha que isto é prudente?
- O quê?
- Sair com as duas coortes de Caleba.
- Já o fizemos antes. De qualquer maneira, as ordens de Vespasiano eram para atacar o inimigo sempre que possível, e mantê-los afastados das nossas linhas de abastecimento.
- Um bocado tarde demais para isso, agora. - Cato acenou na direcção das colunas de fumo.
- É verdade. Mas se apanharmos os cabrões que fizeram isso, serão menos alguns inimigos neste mundo. Não hão-de voltar a tocar nas minhas provisões. E, para mim,
isso é bom.
Cato encolheu os ombros e decidiu guardar as preocupações para si próprio.
Os Lobos e os Javalis continuaram a seguir a estrada, a caminho da origem do fumo. Mal tinham percorrido cinco quilómetros, pela estimativa de Cato, quando Tincómio
e o tribuno vieram ao seu encontro. Macro fez a coluna deter-se, e pouco depois os dois cavaleiros refrearam os cavalos e saltaram para o solo, excitados e ofegantes.
- Depois da próxima colina. - Quintílio mal conseguia falar. - Coluna pequena. Todos mortos, os vagões queimados. Os atacantes ainda lá andam, a escolher os despojos.
Apanhámo-los! Macro, envia os batedores e duas centúrias pelo outro lado da colina, para lhes cortar a retirada. O resto forma uma linha na base da colina. Depois
avançamos e apanhamo-los na armadilha. Percebido?
214

- Sim, senhor.
- Bom, Tincómio, regressa à tua coorte, e tenta não te meteres em sarilhos.
- Claro, tribuno. - O bretão sorriu.
- Falo a sério. Tive que me esforçar bastante para garantir que eras o sucessor de Vérica. Se te deixares matar, vais ter que me prestar contas.
Tincómio riu nervosamente. O tribuno virou-se para Cato:
- Mantém-no debaixo de olho. Não deixes que se envolva em situações perigosas. És pessoalmente responsável pela sua segurança, centurião.
- Compreendo, senhor.
- Óptimo.
- Senhor? - Disse Cato, quando o tribuno já se dirigia à sua montada.
- O que é?
- O inimigo, senhor. Quantos são?
Quintílio procedeu a uma estimativa rápida.
- Duzentos, duzentos e cinquenta. Não mais. Porquê? Achas que são demais para ti?
- Não, senhor. - Respondeu Cato sem emoção. - Mas surpreende-me que ainda não se tenham retirado. Sobretudo sendo tão poucos. Devem saber que enviaríamos uma força
para investigar. Porquê arriscar desta maneira?
- Quem sabe, centurião? Quem quer saber? O que interessa é que eles estão ali, e temos a oportunidade de os liquidarmos. Já tens as tuas instruções. Cumpre-as.
- Sim, senhor. - Cato fez a saudação regulamentar.
Macro já tinha corrido para dar ordens, e as duas primeiras centúrias dos Javalis afastaram-se do corpo principal do exército, deslocando-se obliquamente na direcção
da face próxima da colina indicada por Quintílio. Este galopou por um declive nas proximidádes, dirigindo-se à crista. Pela altura em que Cato tinha os homens preparados,
o tribuno tinha desmontado e avançava dobrado e com cuidado pela erva alta.
- Bem, ao menos aquilo sabe fazer. - Murmurou Cato.
- Não gosta muito dele, pois não? - Perguntou Tincómio.
- Não. Nem por isso. Não há muita coisa que gente do tipo dele não faça para conquistar a glória que pensa merecer.
- E eu que pensava que os Celtas já eram suficientemente maus.
Cato virou-se para o seu companheiro atrébate.
- Tincómio, nem sabes da história a metade. Bom, ouviste o tribuno
- não te envolvas. Nada de heroísmos. São ordens.
- Não se preocupe. - Tincómio sorriu. - Sei qual é o meu dever.
215


- Óptimo.
Os comandantes das centúrias não estavam dispostos a correr riscos, e andavam pelas fileiras a dar ordens em voz baixa, o que era raro. Os Lobos tinham formado uma
linha com duas filas de profundidade à esquerda do caminho, e as centúrias de Macro formavam à direita. Cato notou que mais à frente havia uma encosta íngreme, a
seguir à colina que escondia o comboio destroçado e os seus atacantes. Com alguma sorte o inimigo ficaria aprisionado, sem saída do vale excepto se enfrentasse as
fileiras dos atrébates. Parecia que Quintílio sempre ia conseguir a sua fatia de glória.
Assim que as duas coortes ficaram em posição, Macro empunhou a espada e fez um gesto para a frente. Os Lobos e os Javalis avançaram pela erva alta, ainda húmida
do orvalho. Os homens apoiavam as pontas dos dardos nos ombros enquanto avançavam e começavam a contornar a colina. Macro manteve a posição, na ponta direita, o
ponto mais vulnerável da formação, junto à primeira centúria da sua coorte - homens escolhidos a dedo, em quem se podia confiar para lutar duramente e não ceder
terreno.
Cato correu para o flanco esquerdo, ansioso por ter uma vista do terreno que os esperava no vale. Ao longe à direita, as duas centúrias enviadas para fechar a armadilha
desapareciam pelo outro lado da colina. Com sorte atingiriam a posição necessária a tempo de forçar o inimigo a render-se, quando se apercebesse de que não tinha
fuga possível. Se os Atrébates os poupassem, o melhor que podiam esperar era uma vida de escravatura. Pela sua experiência recente de combates contra os Durotriges,
Cato duvidava que os outros se rendessem. Tinham sido levados a resistir às legiões por druidas fanáticos, que prometiam aos homens que as maiores delícias da vida
no além estavam reservadas aos guerreiros que morressem a combater Roma.
Quando a linha começou a rodear a base da colina, Cato avistou a coluna de abastecimentos. Os restos queimados de oito vagões ficaram à vista, alguns ainda em chamas.
Corpos com túnicas vermelhas espalhavam-se pelo solo, por entre as carroças. Por perto viam-se os atacantes, um pequeno grupo de homens que rodeava os animais de
tiro da coluna. Um apoiava-se num dos estandartes serpenteantes dos Durotriges, enquanto outros se ocupavam remexendo nos corpos. Até ao momento, nenhum tinha dado
conta da aproximação da Coorte dos Lobos, e Cato admitiu pela primeira vez que o plano apressado do tribuno podia resultar. Ainda assim, os atacantes deviam ser
bem preguiçosos, para não se aperceberem do perigo que se aproximava. E achava estranho que não existissem sentinelas, pelo menos.
As duas coortes já quase tinham bloqueado a saída do vale quando o alarme foi dado. Cato viu o porta-estandarte inimigo endireitar-se de
216

repente, virar-se e alertar os companheiros. Imediatamente os atacantes pegaram nas armas e se prepararam para enfrentar os Lobos e os Javalis.
- Não vai ser grande luta. - Murmurou Fígulo, ao lado de Cato.
- Devemos ser cinco ou seis para cada um deles. Nem há discussão.
- Pois não.
Mas os Durotriges, ainda assim, prepararam-se para o embate. Formando um crescente, levantaram os escudos e agitaram as lanças. Um movimento ao longe, à direita,
atraiu a atenção de Cato, e ele apercebeu-se de que Quintílio descia a encosta a galope. Aproximou-se das coortes e tomou uma posição por trás do centro da linha;
empunhou a espada e deu uns gritos de encorajamento às tropas nativas.
- Está a gastar a merda do latim. - Disse Fígulo. - Eles não o percebem.
- Pois não, mas talvez o faça sentir-se bem.
A distância entre as duas forças diminuía rapidamente, mas então os Durotriges começaram a recuar, deixando para trás os vagões em chamas e dirigindo-se à extremidade
do vale, em que o espaço entre as íngremes encostas era estreito e permitia uma melhor posição defensiva do que no campo aberto, em que eles seriam facilmente arrasados
pelos números dos atrébates.
- Não lhes vai servir de muito, sobretudo quando os tipos do Macro lhes saltarem em cima.
- Fígulo?
- Senhor?
- Vê se te calas por uns tempos. Não preciso de um comentário constante.
- Sim, senhor.
As duas coortes continuaram a perseguir o inimigo pelo vale, e começaram a passar pela coluna destroçada. Cato lançou um rápido olhar aos vagões enegrecidos, e franziu
a face. Havia qualquer coisa que não estava bem. Os eixos eram demasiado finos, e as rodas leves e a estrutura lateral de verga não tinham nada a ver com as carroças
pesadas das legiões. Quando passou por um dos corpos, Cato apercebeu-se do cheiro pútrido e reparou que a pele do cadáver estava inchada. Aquele homem já morrera
há algum tempo. O corpo seguinte que encontrou estava no mesmo estado. Imediatamente uma terrível dúvida lhe gelou o sangue, e ele deitou um olhar às árvores nas
colinas que ladeavam o vale, dos dois lados. Cato olhou para o tribuno, mas Quintílio tinha os olhos fixos no pequeno grupo de atacantes mesmo à sua frente, e continuava
a gritar encorajamentos. Cato inspirou profundamente e ergueu o braço.
- Coorte! Alto!
217

Os Lobos interromperam a marcha, embora alguns guerreiros não tivessem entendido a ordem, ou não lhe tivessem obedecido imediatamente. O resultado foi uma linha
desordenada estendida pelo vale. Depois de um momento de hesitação, Macro fez eco da ordem de Cato e correu na sua direcção.
- Componham a linha! - Gritou Cato aos seus homens, e os comandantes das centúrias começaram imediatamente a empurrar e pontapear os homens para as posições correctas.
Um ruído de cascos anunciou a aproximação do tribuno
- O que diabo estás a fazer, Centurião? Manda os teus homens avançar!
- Senhor, há aqui algo de errado.
- Manda-os avançar! É uma ordem! Queres que aqueles escapem?
- Senhor, os vagões. Observe-os.
- Vagões? - Quintílio encarou-o. - Que é que tem a merda dos vagões? - Apontou com a espada na direcção de Cato. - Avança, ordeno-te!
- Não são vagões. - Insistiu Cato. - Olhe para eles. São carros de combate.
- Carros? Que raio de disparate é esse?
- Carros atrelados uns aos outros, para parecerem vagões. - Explicou o centurião rapidamente, e encaminhou-se para um dos cadáveres. - E estes homens, mortos muito
antes dos carros serem incendiados.
Macro chegou a correr, ofegante e furioso.
- Que se passa? Porque é que mandaste parar?
Antes que Cato conseguisse responder, ouviu-se um distante grito de guerra. Os atacantes tinham visto que os perseguidores se tinham imobilizado. Tinham parado também,
e agora carregavam sobre os Atrébates, gritando como loucos.
- Não acredito. - Disse Quintílio calmamente. - Estão a atacar-nos.
Cato afastou o olhar do grupo inimigo que se aproximava e varreu as encostas com a vista.
- Ali! Aí está a razão. - Disse com amargura, esticando o braço e apontando para as árvores na colina à esquerda. Das sombras jorravam guerreiros Durotriges, que
formavam uma densa massa a pouco mais de duzentos passos de onde se encontravam. Cato virou-se para a outra colina.
- E ali!
Por momentos, a fachada de boas maneiras do tribuno ruiu, quando a natureza letal da situação a que tinha conduzido as coortes se revelou aos seus olhos.


- Oh, merda...
- Lobos! - Cato rapidamente se virou para os seus homens, a mão junto à boca. - Quarta, Quinta e Sexta Centúrias! Formem o flanco esquerdo!
Enquanto Macro corria para junto dos seus homens, as três centúrias na ponta esquerda da linha atrébate viraram-se para enfrentar os durotriges que se concentravam
na encosta sobre eles. Ao contrário dos homens das coortes, os inimigos apresentavam-se pesadamente equipados, muitos com cotas de malha a protegerem-lhes os corpos.
Cato já se apercebera de que os atrébates estavam em menor número; a situação tinha sido completamente invertida. Gastou um momento a admirar a astúcia do inimigo,
antes de se virar para Tincómio e lhe falar em latim.
- Desaparece! Volta para Caleba, e depressa. Não os vamos conseguir aguentar muito tempo.
- Não. - Retorquiu o bretão. - Vou ficar. Nunca lá chegaria.
- Vais, sim senhor.
Tincómio abanou a cabeça, e Cato virou-se para o tribuno.
- Senhor! Leve-o. Afaste-o daqui.
Quintílio assentiu rapidamente, e tentou pegar na mão do príncipe atrébate, mas este abanou a cabeça e, recuando, empunhou a espada.
- Depressa, louco! - Gritou o tribuno. -Não há tempo para heroísmos. Ouviste o centurião! Dá-me a mão.
- Não!
Por momentos os três homens ficaram imóveis, cada um olhando ansiosamente para os outros, e depois o tribuno retirou a mão e agarrou com firmeza nas rédeas.
- Muito bem. Tiveste a tua hipótese. Centurião, prossegue. Vou buscar ajuda.
- Ajuda? - Cato reagiu com fúria às palavras de Quintílio, mas este ignorou-o. Fazendo o cavalo dar meia-volta com uma decisão brutal, espetou-lhe os calcanhares
e dirigiu-o para Caleba, deixando Cato a olhar, os lábios comprimidos em fúria e desdém.
- Ajuda? - Fungou Fígulo. - Deve pensar que somos parvos.
Antes que Cato pudesse responder ouviu-se uma trombeta de guerra
à esquerda, que foi imediatamente respondida por outra, desta vez à direita. Com um urro de triunfo, os Durotriges desceram a encosta, na direcção das linhas bem
ordenadas dos Lobos e dos Javalis. Enquanto avaliava a posição dos seus homens, Cato percebeu que alguns recuavam instintivamente, deixando as suas posições na linha.
Tinha que os manter em formação, antes que a linha se desordenasse.
- Mantém a tua posição! - Berrou a um homem próximo que
219

parecia pouco seguro, e ele voltou ao lugar, aceitando a sua culpa. Cato pôs as mãos em concha. - Coorte! Preparar dardos!
A segunda linha deu um passo à retaguarda, enquanto os homens da frente alteraram a forma de agarrar os dardos e afastaram os pés, preparando-se para lançar os mortíferos
mísseis contra as desordenadas fileiras do inimigo que carregava. Cato lançou um olhar à esquerda, e depois ao longo do vale. Seria o primeiro grupo que tinham visto
em volta dos carros a alcançá-los primeiro, uma vez que já só estavam a cerca de trinta passos.
- Primeira, Segunda, e Terceira Centúrias... lançar!
Com um grunhido colectivo de esforço, os homens lançaram os braços para a frente e soltaram os dardos. A rajada foi menos coordenada do que a que seria realizada
por legionários com um treino completo, mas obteve quase os mesmos efeitos destrutivos, notou Cato. As hastes escuras desenharam o seu arco no céu e depois desceram
sobre os Durotriges, que se tentaram proteger da chuva mortífera. Era instintivo, mas inútil. Os que tiveram tempo de se cobrir com os escudos foram trespassados
quase com tanta facilidade como os que não o fizeram, uma vez que as pesadas pontas de ferro perfuraram os escudos e se cravaram na carne que se escondia por baixo
deles. Havia quase dois dardos por cada homem da pequena força inimiga, e quando o ruído dos choques da rajada se calou, só metade prosseguiram na sua corrida insana
na direcção dos Lobos, deixando para trás os seus camaradas mortos ou a berrar entre a erva alta. Os sobreviventes não punham grande problema, e Cato virou a sua
atenção para o muito maior grupo de Durotriges que carregava pelo declive abaixo contra as outras três centúrias.
- Preparar! - Gritou Cato, a voz nervosa a tornar-se estridente.
- Lançar!
As fileiras da vanguarda Durotrige foram dizimadas, numa vaga de homens que tombaram e vacilaram. Mas imediatamente os que os seguiam passaram por cima dos seus
mortos e feridos, lançando-se contra os escudos ovais dos Lobos.
- Empunhar espadas! - Ordenou Cato, desembainhando a sua própria arma. O punho de marfim ajustava-se perfeitamente ao seu aperto, e ele furou até se colocar na segunda
linha da centúria de Fígulo. - Mantenham os escudos em cima, e aguentem a linha.
A rajada de dardos tinha cumprido a sua missão, e os embates inimigos na parede de escudos foram assim individuais, em vez de uma onda que tudo submergisse. A primeira
vintena de Durotriges que se lançou contra os escudos morreu imediatamente, devido às estocadas dos gládios que chegavam de todos os lados. Mas então a massa principal
da carga abateu-se sobre a estreita formação dos Atrébates, e a coorte sofreu com o impacto.
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Cato fixou o olhar na expressão selvagem de um guerreiro gigantesco que cortava a direito na sua direcção, preparando a espada para um golpe devastador. O centurião
não lhe deu oportunidade para tanto, lançando-se para debaixo do braço do inimigo e empurrando a sua espada contra a garganta do outro. Uma cascata de sangue quente
caiu sobre a mão de Cato quando o bretão caiu de joelhos, agarrado em desespero à terrível ferida no pescoço. Cato ignorou-o, depressa localizando um novo alvo:
um velho com uma lança. Este veterano não tinha a força do adversário anterior, mas era mais experiente e cauteloso. Fez uma finta e, quando Cato se movimentou para
bloquear o golpe, o velho guerreiro baixou a ponta da lança, fazendo-a passar sob a lâmina do Romano, e depois impulsionou-a contra o peito deste. Só uma torção
selvagem evitou que Cato recebesse um impacto frontal. Mesmo assim, o golpe fê-lo girar e perder o fôlego. O veterano imediatamente puxou a lança para si para executar
o que seria o golpe fatal, mas um escudo esmagou-se contra o seu crânio, e ele abateu-se no mesmo instante.
- Senhor! - Berrou Fígulo, arriscando um rápido olhar ao seu centurião. - Está ferido?
- Não. - Conseguiu dizer Cato, enquanto arrancava um escudo das mãos de um dos mortos que jaziam a seus pés, um dos seus homens, o capacete fendido por um golpe
de machado que lhe esmagara o crânio.
Mantendo o escudo elevado, Cato olhou em volta, apercebendo-se de que a linha defensiva da sua coorte se tinha desintegrado, e que os homens estavam dispersos, combatendo
aqui e ali, no meio da confusão de golpes perfurantes de lanças e de arcos letais de espadas e machados. Os ouvidos encheram-se do ruído de golpes embatendo em escudos
e destroçando corpos, dos choques metálicos quando outros golpes eram desesperadamente bloqueados, e dos gritos e gemidos dos moribundos. Cato deu um passo atrás
e espreitou por cima do ombro. Os homens de Macro também não tinham conseguido suster a feroz carga; e no centro, entre as duas escaramuças desesperadas que se travavam
nos flancos, as três centúrias que tinham enfrentado a carga de menores dimensões estavam a desfazer-se, os homens abandonando as suas armas e fugindo na direcção
de Caleba, tentando salvar as vidas.
- Oh, não...
Um grito súbito de Fígulo salvou Cato, já que este se voltou, viu a lâmina do machado que cortava o ar na direcção da sua cara, e se baixou mesmo a tempo. O machado
assobiou pelo ar sobre a cabeça do centurião, atingindo o suporte metálico da sua crista. Enquanto o pelo vermelho caía para o solo ensanguentado, Cato usou a espada
para atingir o joelho do
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guerreiro inimigo, esmagando o osso e cortando os músculos da articulação. Aquele nunca mais poderia voltar a combater, concluiu Cato, enquanto lutava para se pôr
de pé de novo.
- Cato caiu! - Gritou uma voz próxima. - O centurião morreu!
- Não! - Respondeu Cato. Mas já era tarde. O grito espalhara-se, e o resto da coorte desagregou-se. Por um momento, Cato ficou ao lado de Fígulo, de escudo levantado
e pronto a atacar, mas os Durotriges evitaram-nos, preferindo lançar-se sobre as costas desprotegidas dos que fugiam à carnificina. Tinha sido o pior erro que os
Atrébates podiam ter cometido. Um homem armado e que enfrentava o inimigo estava muito mais seguro do que outro que largava espada e escudo e tentava salvar a vida.
Mas a razão é sempre a primeira vítima do pânico, e os que fugiam eram levados por um instinto animal que os levava à loucura.
- Vamos sair daqui! - Disse Cato. - Fica perto de mim.
Os dois romanos escolheram o caminho por entre os corpos espalhados pelo vale. Enquanto mantiveram uma guarda pronta, foram ignorados pelos Durotriges que procuravam
presas mais fáceis. Mas a dispersão da massa de homens acabaria por atrair as atenções para cima deles.
- Fígulo.
- Senhor.
- Vamos ter que correr. Quando eu disser, atira fora o escudo e segue-me. Mas não largues a espada por nada deste mundo.
- Sim, senhor.
Um momento depois, o caminho à frente deles ficou desimpedido, e à distância Cato avistou os telhados de Caleba. Olhou em volta, e gritou.
- Agora!
Os dois romanos lançaram os escudos para longe e correram atrás dos vultos que se escapavam para a segurança de Caleba. Pelo meio corriam os Durotriges, gritando
de exultação quando alcançavam os inimigos e os derrubavam, aos que eram demasiado lentos ou estavam com demasiado medo para escapar. Cato levou o seu camarada em
linha recta, agachando-se e correndo tão depressa quanto podia. Só uns poucos Durotriges lhes ligaram, e desses, ainda menos tentaram evitar que escapassem. Sozinhos,
não tinham hipóteses contra dois legionários, e foram rapidamente eliminados.
Tinham corrido mais de quilómetro e meio quando Fígulo puxou o braço de Cato.
- Escute!
- O que é? - Cato virou-se, o peito a arfar enquanto tentava recuperar. Correr aquela distância com uma cota de malha deixara-o exausto. Espalhados em redor estavam
sobreviventes das duas coortes, dirigindo-se
222

para Caleba. Os Durotriges tinham ficado para trás, e entretinham-se a saquear e mutilar os corpos dos seus inimigos derrubados.
- Olhe! - A boca de Fígulo estava aberta enquanto ele apontava para os restos fumegantes da suposta coluna de abastecimentos. - Ali!
Uma linha de cavaleiros ultrapassava a crista da colina que escondera a emboscada. Assim que chegaram ao vale espalharam-se, baixaram as pontas das lanças e lançaram
os cavalos contra os restos dispersos dos Lobos e dos Javalis, que ainda lutavam para alcançar os baluartes de Caleba.
- Merda! - Cato arfava enquanto desapertava o cinto. - Corram! Não parem por nada.
Os gritos desesperados dos que eram apanhados por entre a erva alta começaram enquanto Cato se livrava da armadura e arrancava a cota de malha pela cabeça. Atirou-a
para o chão, pegou na espada e correu atrás de Fígulo, que já lhe levava algum avanço. Estava a meio caminho de Caleba quando a antiga ferida se lembrou de se fazer
notar outra vez. Apesar dos seus receios, julgava-a já completamente sarada, mas a actividade física extenuante provocada pelos combates dos últimos dias provocava-lhe
uma dor que pulsava ao longo de todo o corpo, de forma que cada inspiração era uma agonia. O coração batia-lhe com tanta força que o ruído nos ouvidos quase o impedia
de escutar o que quer que fosse, e abafava os gritos dos moribundos, os gritos de vitória dos Durotriges e o espezinhar dos cascos dos cavalos enquanto carregavam
à direita e à esquerda por entre os homens que, em pânico, tentavam salvar as suas vidas.
Cato forçou-se a prosseguir, sabendo que parar seria estender o convite para uma morte impiedosa. A espada pesava-lhe na mão, mas agarrou-a com mais força, e continuou
a correr. A cerca de quilómetro e meio dos portões da cidade encontrou um riacho estreito que desenhava os seus meandros na pequena planície em frente a Caleba.
Antes de perceber o que tinha sucedido escorregou na terra solta que marcava a margem do ribeiro, e foi parar dentro da água pouco profúnda. O choque repentino da
corrente fria abanou-lhe os sentidos. Com um grande esforço de vontade pôs-se de joelhos e procurou a espada que tinha soltado ao cair. A lâmina reluzia sob a superfície
brilhante da água, a alguns metros de distância. Preparava-se para a recolher quando ouviu sons de um cavalo nas proximidades. Apercebeu-se de uma sombra projectada
do outro lado do riacho, e deitou-se na água, forçando o corpo contra a margem, mesmo na base do pequeno talude de terra solta. Um momento depois ouviu o resfolegar
de um cavalo extenuado mesmo por cima dele. Uma pequena avalanche de seixos e terra solta abateu-se sobre a água mesmo junto a Cato. Na outra margem notava-se a
indistinta sombra do par formado por cavalo e cavaleiro, e Cato suspendeu a respiração. Uma ondulação na superfície da corrente fez passar um raio
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de luz concentrada que atingiu a lâmina da sua espada, fazendo-a refulgir sob a água por não mais que um instante.
Mas um instante fora o suficiente. O cavaleiro desmontou e saltou para o riacho mesmo à frente de Cato, salpicando a face do centurião. O guerreiro deu uns passos
para jusante, na direcção da espada, e Cato apercebeu-se de que seria visto assim que o homem apanhasse a espada e se virasse. Não havia tempo para pensar. Cato
levantou-se e saltou sobre as costas do cavaleiro quando ele se debruçou sobre a espada. O impacto fez com que ambos os homens caíssem na água. O centurião ficou
por cima e tacteou à procura da garganta do outro. Encontrou-a, fechou os dedos à volta do pescoço musculado e aplicou toda a pressão que conseguiu. O cavaleiro
lançou-se para cima, saindo da água numa cascata de espuma reluzente, as mãos em garra tentando alcançar por trás da própria cabeça, para desviar os braços de Cato.
Encontrou-os e tentou livrar-se do aperto do jovem romano, mas falhou; então as mãos dirigiram-se ainda mais para trás, tentando atingir a face e os olhos do oponente.
Antes que ele tivesse sucesso nessa tentativa, Cato aplicou o joelho no fundo das costas do homem e empurrou-o para a corrente, de lado, tentando manter-lhe a cabeça
debaixo de água.
O bretão era demasiado forte para ele, e com um esforço tremendo conseguiu colocar-se por cima de Cato, virado para o céu matinal e pressionando o corpo que estava
aprisionado sob o seu. O impacto expulsou o ar dos pulmões de Cato, e ele mal se lembrou de fechar a boca antes que a água se fechasse sobre a sua face. Mas sabia
que tinha pouco tempo. Os pulmões queimavam e pediam ar, e percebeu que seria obrigado a soltar o outro e a tentar regressar à superfície. Pelo canto do olho viu
qualquer coisa a brilhar. A espada. Cato torceu o pescoço e percebeu que a arma estava ao seu alcance, no leito do ribeiro. Largou a garganta do bretão e agarrou-lhe
a cara com a mão esquerda, os dedos à procura dos olhos do outro. A mão direita mergulhou de novo na água, agarrou o punho da espada, colocou a lâmina na posição
necessária e depois, com as últimas das forças que lhe restavam, empurrou-a pelas costas do cavaleiro. O homem estremeceu, num espasmo, depois noutro, tentando desesperadamente
libertar-se da lâmina que Cato fazia trabalhar continuamente no seu peito, para cima e para baixo. A agitação acabou por diminuir, e por fim Cato conseguiu atirar
o corpo para o lado e sair de debaixo de água, quase sufocado. Sentado a ofegar e cuspir no meio de uma mancha vermelha que lentamente começava a alastrar, Cato
examinou o inimigo morto. Jazia de costas. A ponta do gládio atravessara-lhe o coração e saíra pelo peito. O líquido vermelho escuro saía junto à ponta da lâmina
e dissipava-se pouco a pouco na corrente vagarosa. A cabeça estava ainda dobrada para trás e debaixo de água. Os olhos sem vida
224

apontavam para o céu, enquanto o cabelo se alongava com a corrente, tal e qual como os caules das ervas que cresciam junto à margem.
Depois de recuperar o fôlego, Cato colocou o cadáver de lado, pôs-lhe uma bota sobre as costas, junto ao punho da espada, e puxou até libertar a lâmina. Quando saiu,
esta provocou um novo fluxo de sangue; Cato dirigiu-se rapidamente à margem, e cambaleou para jusante, afastando-se do inimigo e aproximando-se de Caleba. Os Durotriges
depressa se aperceberiam do cavalo sem cavaleiro, e investigariam a área com certeza. Ponderara por momentos a hipótese de montar ele próprio o cavalo, mas não estava
seguro de o conseguir fazer de forma correcta. Além disso não era grande cavaleiro, ao contrário dos Durotriges, e eles apanhá-lo-iam muito antes de conseguir sequer
aproximar-se dos portões de Caleba. Portanto deslocou-se ao longo do rio, tão depressa e silenciosamente quanto conseguia, os ouvidos sempre atentos a qualquer sinal
que indicasse a descoberta do corpo e o começo da perseguição. Depois de percorrer algumas centenas de metros, Cato apercebeu-se de que estava a tremer. Estava demasiado
cansado para prosseguir. Tinha que se esconder e descansar durante algum tempo; recuperar energias e então prosseguir até à segurança proporcionada pela cidade.
Segura? Caleba? Repreendeu-se pelo pensamento. As coortes estavam destruídas. A única coisa que separava os Durotriges dos Atrébates era o punhado de legionários
que guarneciam o depósito e os guardas pessoais de Vérica. No momento em que o inimigo o compreendesse, Caleba estaria à sua mercê. Tinha que regressar, reunir os
sobreviventes e tentar salvar a cidade. Então pensou em Macro e em Tincómio. Teria algum deles conseguido escapar? Estariam mortos, algures por entre a erva? Seriam
alimento para os necrófagos, que já descreviam as suas espirais sinistras sob o sol brilhante do fim da manhã?
Movendo-se cautelosamente ao longo do riacho, Cato fez a curva que ele desenhava e deparou-se com uma árvore tombada, arrancada há anos, provavelmente por uma tempestade.
O solo à volta da base da árvore tinha sido levantado, e alguns texugos tinham escavado por ali uma toca, entre as raízes mortas e retorcidas. Cato meteu-se pela
entrada estreita e, rapidamente, empregou a espada para soltar o solo por cima de si. Torrões de terra caíram para a toca, enchendo-a gradualmente e cobrindo o centurião
com uma camada fina de solo. Assim que alguém inspeccionasse cuidadosamente a confusão de raízes ele seria descoberto, mas era o melhor que conseguia. Deixou-se
ficar quieto, observando o riacho através da pequena abertura que tinha deixado ficar, e esperou que o longo e quente dia chegasse ao seu termo.
225

XXVII
Cato acordou sobressaltado, fazendo com que a terra que tinha empilhado sobre o corpo se soltasse. Estava escuro, e havia qualquer coisa a farejar no solo junto
ao seu rosto. Ao sentir o movimento do centurião, a criatura soltou um guincho agudo e afastou-se rapidamente. Um momento depois, a mente de Cato despertou por completo,
e ele recordou com tremenda intensidade tudo o que tinha ocorrido durante aquele dia. Furioso consigo mesmo por se ter deixado dormir, manteve-se imóvel, à escuta
de qualquer sinal de movimento, mas o único som que se ouvia era o do riacho que saltitava sobre o leito pedregoso. Por cima, por entre as raízes mortas, conseguia
avistar algumas estrelas, no meio de farrapos de nuvens prateadas. Tacteou à procura da espada, e depois afastou com cuidado a terra do corpo. Imobilizou-se algum
tempo, tentando perceber se atraíra alguma atenção, e depois saiu da entrada da toca de texugo que ocupara. Mantendo-se junto ao solo, rastejou até ao cimo do talude
na margem do rio, e espreitou sobre os tufos de ervas que ali cresciam. A paisagem era uma massa escura em que quase não se conseguiam distinguir detalhes, e que
se espalhava por todos os lados, só interrompida pelas silhuetas das árvores.
Mas ali, a pouco mais de quilómetro e meio, estava Caleba. Algumas secções dos baluartes estavam iluminadas por feixes de lenha que os defensores tinham lançado
para o solo à frente da paliçada, de forma a tentarem detectar a presença do inimigo. Enquanto Cato observava, mais molhos de lenha em chamas foram lançados sobre
os baluartes por pequenas figuras empunhando forquilhas. Quando caíram para o outro lado, descreveram arcos brilhantes e tombaram sobre o solo, soltando uma chuva
de fagulhas.
Várias pequenas fogueiras em redor dos portões principais da cidade revelavam claramente a posição de alguns dos atacantes. De vez em quando uma flecha em chamas
era lançada e subia, descrevia uma curva graciosa sobre os baluartes e desaparecia entre as cabanas. No céu já se elevavam

algumas colunas de fumo avermelhado, denunciando a existência de alguns focos de incêndio.
A situação parecia desesperada, e Cato levou alguns instantes a decidir o que devia fazer. A Segunda Legião estava a pelo menos dois dias de caminho. Provavelmente
demasiado longe para ter esperanças de conseguir chegar a tempo de salvar Caleba e o depósito de material. Havia uma coorte de infantaria a um dia de marcha na direcção
oposta, a guardar a travessia de um rio, mas essa força seria demasiado pequena para fazer alguma diferença. Além disso, com a área infestada de Durotriges, o centurião
teria que tentar passar despercebido, o que aumentaria o tempo necessário para alcançar o auxílio mais próximo.
Compreendeu que não tinha alternativa. Tinha que arranjar maneira de voltar a Caleba e fazer o que pudesse para ajudar a organizar a defesa da capital dos Atrébates.
Se Macro estivesse morto, então seria ele o comandante dos sobreviventes das duas coortes. E se Tincómio estivesse também morto, com Vérica prestes a segui-lo, os
Atrébates estariam sem liderança. Cato tinha que regressar o mais depressa possível.
Agachando-se, empunhando firmemente a espada, começou a deslocar-se na direcção dos portões principais da cidade. Soprava uma ligeira brisa, fazendo ondular a erva
alta e agitando as folhas das atarracadas árvores que salpicavam a pequena planície. O esforço de se movimentar daquela forma, os músculos sempre tensos e preparados
para o ataque ou para a fuga, os sentidos apurados a tentar detectar qualquer sinal de movimento ou som do inimigo, afectou o jovem centurião, e ao fim de umas centenas
de metros percorridos resolveu parar e descansar um bocado. Entre ele e o portão erguiam-se vultos escuros por entre a erva, constituindo uma cortina de Durotriges
que tentava barrar o acesso a qualquer sobrevivente das coortes que estivesse ainda por perto. Enquanto Cato observava, um dos inimigos aproximou-se de um camarada,
e as suas risadas ferozes ouviram-se perfeitamente. Levantando-se, mas mantendo-se dobrado, o jovem romano apressou-se a aproveitar a brecha no bloqueio, esgueirando-se
sem fazer barulho e olhando em todas as direcções para se assegurar que não era visto. Ninguém deu o alarme, e ele prosseguiu. Pouco à frente estava uma das fogueiras
dos sitiantes. À sua volta viam-se as formas escuras dos homens que dormiam envoltos nas suas capas, a descansar para melhor preparar o assalto a Caleba no dia seguinte.
Um homem fazia de sentinela, aquecendo-se junto ao fogo, a haste da lança apoiada no ombro.
A luz da fogueira banhava uma área bastante grande, e Cato compreendeu que ao atravessá-la podia ser avistado por qualquer dos homens da cortina que tinha acabado
de ultrapassar. Mas mesmo do outro lado estava o portão, a pouco mais de cem passos de distância. Dando uma

última vista de olhos em redor, para se certificar de que ainda não tinha sido notado, Cato levantou-se e começou a correr, aumentando de velocidade à medida que
se aproximava da fogueira. Num instante alcançou o primeiro Durotrige adormecido. Cato saltou sobre ele, e depois sobre outro, e dirigiu-se directamente contra o
homem que se encontrava ao pé do fogo. O guerreiro lançou um olhar por cima do ombro, e imediatamente os seus olhos se arregalaram perante a expressão selvagem na
face do romano que avançava. Tentou empunhar a lança, mas era tarde demais. Cato atingiu-o pelas costas e lançou-o, desequilibrado, mesmo sobre o fogo. Enquanto
Cato rolava para o lado, se punha de pé e continuava a correr para o portão, um grito terrível rasgou a noite. Imediatamente os homens que dormiam no solo acordaram
e se dispuseram a ajudar o seu camarada. Cato não olhou para trás, e continuou a correr tão depressa quanto conseguia para o portão. Atrás dele ouviu-se um grito
quando alguém o avistou, seguido por outros gritos, à medida que o alarme se espalhava.
Tinha um bom avanço, mas já se apercebia de vultos que se aproximavam de todos os lados, tentando cortar-lhe a passagem antes dele chegar à entrada da cidade. Cato
reparou que todas as faces na paliçada se tinham virado para si. Alguém lançou uma flecha contra a figura que se aproximava. Cato desviou-se, e ouviu um silvo próximo,
na escuridão, enquanto continuava a correr.
- Não disparem! - Gritou em latim, antes de se lembrar da senha que estava em vigor. - Espargos cozidos! Espargos cozidos! Não disparem!
Outra seta passou pelas proximidades, mas desta vez lançada de trás, e Cato fez um esgar quando forçou as suas extenuadas pernas a acelerarem o passo.
- Abram o portão! - Gritou, enquanto corria para o fosso defensivo que ladeava a cidade.
- É o centurião! - Berrou uma voz nos baluartes. - Abram a merda do portão!
Cato correu para as grossas vigas e bateu desesperadamente com a espada contra a madeira, que não cedeu.
- Abram! Abram! - Gritou.
Ouviu-se um lamento pesado do outro lado do portão, enquanto a pesada tranca era removida dos suportes. Cato virou-se para ver onde estavam os seus perseguidores.
Aterrorizado, notou que várias figuras se adiantavam da escuridão para a área iluminada pelos feixes em chamas que tinham sido lançados junto ao portão. Uma delas
estacou, a cerca de vinte passos, e lançou um dardo. Foi um bom lançamento, e poderia ter trespassado Cato se ele não o tivesse visto. Lançou-se pelo solo. Um momento
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depois, a ponta de metal cravou-se no portão com um som de madeira estilhaçada, e a lança ficou a abanar. Cato levantou-se rapidamente e voltou a bater no portão.
- Foda-se, abram esta merda!
Finalmente o portão começou a mover-se para dentro, com um som profundo e arrastado. Cato empurrou-o com a força do desespero, mas nessa altura uma espécie de sexto
sentido fê-lo olhar sobre o ombro. Mesmo atrás dele, a menos de dois metros, um guerreiro durotrige preparava um golpe de lança para o trespassar pelas costas. Um
rugido selvático soltava-se da sua boca. Então, de repente, ouviu-se um impacto surdo. O homem imobilizou-se, e Cato reparou nas penas que ornavam a haste da flecha
que se lhe cravara na cabeça. Enquanto o homem tombava, Cato enfiou-se pela estreita abertura que surgira no portão, e deixou-se cair no interior. Imediatamente
os defensores se lançaram sobre o portão, empurrando-o de volta à posição anterior, contra a oposição de alguns Durotriges que se tinham reunido do outro lado. Eram
demasiado poucos para fazerem qualquer diferença, e depressa a tranca voltou ao lugar que garantia a segurança do portão. Cato mantinha-se de gatas, a cabeça para
a frente, entre os braços, enquanto tentava recuperar o fôlego.
Uma forma escura inclinou-se sobre ele.
- Estás num estado lastimável, miúdo. - Macro deu uma risada.
- Onde é que te meteste durante metade do dia?
Cato inspirou profundamente antes de conseguir responder:
- Também fico feliz por o ver... Tincómio?
- Nem sinal dele. Espera, deixa-me ajudar-te.
Macro agarrou firmemente em Cato pelos sovacos, e colocou-o em pé. À luz tremeluzente de uma tocha próxima, Cato percebeu que Macro estava tão sujo como ele, e tinha
uma ligadura, grande e cheia de sangue, na anca.
- Está ferido?
Macro sentiu-se grato pela preocupação manifestada pelo seu jovem companheiro.
- Não é nada. Um cabrão daqueles sonhou que me ia atrasar se me desse um golpe nas pernas.
- É grave?
- Devias ver o estado em que ele ficou. - Macro riu. - Não há-de ir muito longe sem cabeça. Bom, não se pode dizer que tenhas escolhido uma boa ocasião para te
juntares a nós.
- Quantos conseguiram regressar?
- A maior parte dos legionários. O Fígulo foi o primeiro.
- E as coortes?

Macro abanou a cabeça.
- Isto não está famoso. Até agora, mal chegam aos duzentos. Hão-de chegar mais alguns, mas poucos. Livraram-se da maior parte do equipamento quando desataram a fugir.
Menos o teu porta-estandarte.
- Mandrax?
- Esse mesmo. Chegou pouco antes de ti, ainda com o estandarte. Faziam-nos falta mais alguns como ele. Seja como for, mandei o Silva trazer mais equipamentos dos
armazéns do depósito. Está ali, ao pé da carroça. É melhor arranjares também algum equipamento novo. Parece-me que vais precisar. Eu vou para a paliçada.
Enquanto Macro se dirigia para a rampa, Cato olhou em redor e avaliou a situação. Várias casas tinham sido incendiadas nas proximidades do portão, e magotes de habitantes
locais tentavam desesperadamente abafar ou apagar as chamas antes que elas se propagassem e fugissem ao seu controlo. Silva, o veterano que era responsável pelos
armazéns, distribuía equipamentos aos sobreviventes dos Javalis e dos Lobos que tinham chegado entretanto. Saudou Cato quando o viu a aproximar-se.
- Centurião! Tinham-me dito que estava desaparecido. Pensei que se ia candidatar ao recorde.
- Recorde?
- Para a mais curta carreira de sempre no centurionato.
- Muito engraçado. Preciso de equipamento.
- O que deseja?
- Tudo. Menos a espada.
- Parece que voltar com o escudo, ou em cima dele, saiu de moda.
- Resmungou Silva.
- Às vezes parece mais importante sobreviver para poder continuar a lutar. - Cato espreitou para a carroça, e viu que tinha sido carregada com capacetes, espadas,
adagas, cinturões, dardos, escudos e tudo o resto que tinha estado à mão. - Tens alguma cota de malha?
- Desculpe. Já se esgotaram. Só sobrou isto. - Mostrou uma das novas armaduras segmentadas, que começavam a ganhar aceitação nas legiões. - É pegar ou largar, senhor.
- Está bem, levo. - Cato pegou na armadura e colocou-a sobre a túnica. Silva ajudou-o a apertar os cordões, enquanto o centurião enrolava um pano na cabeça, para
substituir a protecção de feltro que tinha perdido.
- Pronto. - Silva recuou. - Já alguma vez tinha experimentado uma destas, senhor?
- Não.
- Vai ver que é bastante confortável. O único inconveniente é que

se torna muito difícil lançar um dardo. De resto, é boa, e mais barata, até. Juntarei o preço à sua conta na messe. Com as outras coisas.
Cato olhou-o com atenção.
- Estás a brincar?
- Claro que não, senhor. Tenho que prestar contas de todo o material.
- Pois... - Cato apertou a fivela do cinturão e, retirando a espada da bainha, lançou-a para o monte de material no vagão e substituiu-a pela sua própria espada.
- Vê se só pões a bainha na conta, sim?
Pegou num escudo e num capacete e afastou-se, enquanto Silva se apressava a marcar numa placa de cera os artigos que o centurião requisitara.
Depois de subir até ao passadiço, Cato procurou Macro. O patamar por cima do portão estava ocupado pelos homens que se preparavam para lançar outro feixe em chamas
para o exterior. Enquanto quatro deles equilibravam no ar o molho de lenha com as forquilhas, o quinto homem aplicava uma tocha à parte inferior da madeira. O feixe
rapidamente pegou fogo, crepitando e ardendo quando tocado pelas chamas. Quando estava bem ateado, foi dada uma ordem e o feixe foi lançado sobre o baluarte, com
tanta força quanto possível. Aterrou para lá do declive e rebolou ainda um bocado, revelando a presença de um grupo de arqueiros inimigos.
- Ali estão eles! - Gritou um dos Atrébates, e uma rajada de flechas, dardos e projécteis de funda caiu sobre os oponentes, derrubando vários homens, que ficaram
pelo solo a contorcer-se e a gritar, à luz alaranjada da lenha que ardia.
- Bom trabalho! - Gritou Macro, reforçando o elogio aos nativos ao mostrar-lhes os polegares elevados. Avistou Cato e acenou-lhe para que se juntasse a ele. - Para
a próxima falas tu! Deve-lhes soar melhor em céltico.
- Tenho a certeza de que eles perceberam a mensagem. - Cato sorriu. - Qual é a situação?
- Por agora, vamo-nos aguentando bem. Tenho homens posicionados a toda a volta dos baluartes, para o caso de nos tentarem surpreender por outro lado, mas até agora
não tentaram atacar a paliçada. Até pararam de lançar aquelas flechas incendiárias. Não faço ideia porquê - estávamos aflitos a correr de um lado para o outro a
tentar apagar os incêndios.
- Alguém viu o tribuno? - Perguntou Cato.
- Ah, sim! - Macro lançou uma gargalhada amarga. - Passou pelo portão antes de cavalgar daqui para fora. Parou só para gritar qualquer coisa sobre ir buscar ajuda.
Depois raspou-se. Foi o Silva que me disse.


- Acha que ele foi realmente buscar ajuda?
- Bem, foi com certeza à procura de um lugar mais calmo.
- Isso também não é difícil.
- Nada.
- Acha que vamos conseguir mantê-los lá fora?
Macro pensou um bocado, depois abanou a cabeça.
- Não. Temos que planear o que fazer quando eles conseguirem entrar. Não somos os suficientes para defender toda a muralha. E não me parece que possamos contar com
alguma ajuda dos civis - nem sequer estão em condições de lutar.
- Nesse caso... - Cato projectou na mente um mapa de Caleba.
- Nesse caso, teremos que recuar para o depósito, no momento certo. Para o depósito, ou para o recinto real.
- O recinto, não. - Disse Macro. - Fica demasiado próximo do resto da cidade. Não os víamos a atacar até ao último instante. Além disso, no depósito temos mantimentos
que nos permitirão aguentar. É a nossa melhor hipótese.
- Suponho que sim.
- Cato! Macro! - Chamou uma voz, vinda da escuridão para lá da muralha. Os dois centuriões espreitaram cuidadosamente sobre a paliçada.
- Cato! Macro!
- Quem diabo grita por nós? - Murmurou Macro. Virou-se para um grupo de arqueiros que se agachavam ali perto no passadiço, e indicou-lhes, por gestos, que deviam
ter as armas prontas. - Preparem-se!
A voz fez-se de novo ouvir, desta vez mais próxima.
- Isto não me agrada. - Adiantou Macro. - Só pode ser algum truque. Bom, vamos estar prontos para aqueles sacanas!
Cato perscrutou a noite, esforçando os olhos na direcção de onde vinha a voz. Depois escutou-a de novo, mais próxima e mais clara - e então teve a certeza.
- É o Tincómio.
- Tincómio? - Macro abanou a cabeça. - Uma gaita! É um truque.
- É o Tincómio, digo-lho eu... Olhe!
À luz mortiça e avermelhada das chamas moribundas que lambiam o último feixe que tinha sido lançado sobre os baluartes, uma figura emergiu da escuridão. Estacou
por um momento, indistinta e tremeluzindo por efeito do ar aquecido.
- Cato! Macro! - Voltou a chamar.
- Avança até à luz, para te poder ver. - Berrou Macro. - Devagar!
232

Se tentares algum truque, morres antes de te conseguires virar!
- Muito bem! Nada de truques! - Retorquiu o homem. - Vou-me aproximar.
Rodeou o feixe que ardia ainda, e aproximou-se lentamente do portão, um braço erguido para mostrar que não transportava armas. Na outra mão trazia um escudo das
tropas auxiliares, um dos que tinham sido distribuídos aos Lobos e aos Javalis. Parou a trinta passos do portão.
- Macro... Sou eu, Tincómio.
- Foda-se! - Sussurrou Macro. - É mesmo ele!


XXVIII
O General Pláucio estava a ficar farto das brincadeiras de Carátaco. Há já algumas semanas que as legiões avançavam pela margem norte do Tamisa, tentando estabelecer
contacto com os Bretões. Mas, quando o exército romano se deslocava, Carátaco limitava-se a recuar, abandonando sucessivas posições defensivas, deixando aos romanos
apenas as cinzas ainda mornas das suas fogueiras. E todos os dias aumentava perigosamente a distância entre o exército de Pláucio e o destacamento de Vespasiano,
muito menor em efectivo; se o inimigo soubesse de tal facto, não deixaria de tentar um ataque de surpresa. Pláucio tinha tentado forçar Carátaco a dar-lhe luta,
ordenando às suas tropas que queimassem todas as quintas e povoações que encontrassem. Todos os animais das quintas também deviam ser destruídos. Apenas alguns dos
habitantes deveriam ser poupados, para que pudessem fazer chegar as suas lamentações aos chefes, que não deixariam de suplicar a Carátaco que pusesse um fim à devastação
provocada pelos Romanos, dando meia-volta e atacando as legiões.
E parecia por fim ter resultado.
Através do vale estreito, Pláucio observou as fortificações que Carátaco tinha preparado na crista do outro lado: um fosso pouco profundo, que ladeava um pequeno
baluarte de terra com uma paliçada pouco resistente. Não seria um grande desafio para a primeira vaga das tropas de assalto, que já formavam na encosta em frente
ao campo romano. Por trás delas estavam dispostas algumas baterias de catapultas, que se preparavam para enviar uma terrível barragem de dardos de ferro capazes
de rebentar com a frágil paliçada e liquidar qualquer homem que se abrigasse atrás dela.
- Isto deve estar despachado antes de cair a noite! - Foi o comentário jocoso do veterano prefeito da Décima Quarta Legião, a unidade que Pláucio designara para
liderar o assalto.
- Espero bem que sim, Praxo. Ataquem em força. Vejam se acabam com eles de uma vez por todas.
234

- Não se preocupe com os meus homens, senhor. Eles têm contas a ajustar. Não deve é haver muitos prisioneiros...
O tom de desaprovação era bem evidente, e Pláucio debateu-se para não mostrar irritação. Havia muito mais em jogo do que cuidar dos fundos para a reforma de um prefeito.
Quando o Imperador tinha regressado a Roma depois de uma visita de dezasseis dias no fim da última campanha, aquele sacana do Narciso tinha anunciado por todo o
lado que a Britânia estava praticamente conquistada. Tinha sido organizado um triunfo para assinalar a vitória, e Cláudio tinha feito oferendas no templo da paz,
com parte do saque obtido.
Porém, quase um ano depois, aqui estava o exército face a face com o mesmo inimigo. Que se estava nas tintas para o facto de que, segundo a história oficial, tinha
já sido derrotado. E agora o estado-maior imperial em Roma estava a ficar irritado com a discrepância entre o relato oficial e a realidade no terreno. Por toda a
Roma, as famílias dos jovens oficiais que prestavam serviço nas legiões de Pláucio espantavam-se com as cartas que recebiam, e que relatavam os constantes ataques
do inimigo, a erosão quotidiana das forças romanas, a incapacidade para atrair Carátaco a uma batalha em linha. Os veteranos e os inválidos que chegavam vindos da
frente longínqua mais não faziam do que confirmar os detalhes contidos nessas cartas, e a opinião pública em Roma estava a tornar-se pouco tolerante. Os despachos
que o general recebia eram cada vez mais impacientes. Por fim, o próprio Narciso tinha enviado uma nota curta e brutalmente franca. Ou Pláucio terminava o trabalho
até ao fim do Verão, ou a sua carreira acabava; e nada de bom se seguiria.
A Décima Quarta tinha completado a formação, e as dez coortes de infantaria pesada apresentavam-se em duas linhas, prontas para avançarem assim que recebessem ordens
para tal. Do outro lado do vale não havia grandes sinais de actividade por parte de Carátaco, nem batedores nem destacamentos avançados, apenas as fileiras densas
dos guerreiros que preenchiam a paliçada, à espera do ataque romano. Aqui e ali um estandarte esvoaçava lentamente ao vento, e o som estridente das trombetas de
guerra espalhava-se pelo vale até ao general Pláucio, que sorriu satisfeito.
Muito bem, decidiu, se o que Carátaco quer é que avancemos e o apanhemos, então é isso mesmo que faremos. Pláucio estava ainda mais satisfeito por saber que, naquele
momento, duas coortes de cavalaria auxiliar e a Vigésima Legião deviam estar a completar um movimento em redor do flanco do inimigo, de forma a cortar-lhe a retirada.
Um chefe local tinha-se oferecido para os guiar através dos pântanos em que Carátaco confiara para proteger o seu flanco esquerdo. O guia não se tinha de facto oferecido
em virtude da sua lealdade a Roma, mas sim com o pensamento na gorda
235

recompensa, e na recuperação da sua família, que era mantida como refém no campo de Pláucio. Era suficiente, pensou o general com confiança, para garantir a lealdade
do homem.
- Autorização para começar o bombardeamento, senhor? - Pediu Praxo.
Pláucio assentiu, e o sinaleiro ergueu uma bandeirola vermelha. Depois ficou quieto, até os sinaleiros nas posições de artilharia erguerem por sua vez as suas bandeirolas,
assinalando a recepção das ordens, e que as baterias estavam prontas para as executar. Então ele baixou a bandeirola. Imediatamente o ar se encheu do ruído agudo
dos braços de torção a avançarem e a lançarem as pesadas flechas de ferro por cima das cabeças da Décima Quarta, na ? das defesas Britânicas. Depressa surgiram brechas
na paliçada, e a continuação da barragem começou a ter efeitos nas fileiras de soldados que a guarneciam.
- Porra! Estes são bons! - Praxo abanou a cabeça. - Aguentam firme as perdas. Nunca vi disciplina tão boa.
- Pode ser. - Admitiu a contragosto Pláucio. - Mas mesmo assim não vão aguentar os nossos rapazes. É melhor tomares a tua posição. O teu legado vai precisar de toda
a tua experiência hoje.
- Sim, senhor. - Praxo deu um sorriso. Nem todos os legados estavam à altura da posição que ocupavam, e os que não o estavam tinham que ser levados ao colo pelos
seus oficiais de carreira superiores, até concluírem as suas comissões. Para dizer a verdade, reflectiu Pláucio, o estado-maior imperial depressa se apercebia quando
um homem não estava à altura, e este era rapidamente nomeado para um posto administrativo de menor importância em Roma.
Praxo saudou o comandante e desceu a encosta a passo largo para se juntar ao grupo de comando da Décima Quarta, apertando calmamente o capacete enquanto caminhava.
Pláucio observou-o por momentos, e depois virou-se para ver os estandartes da Nona a deixarem o campo, à medida que a segunda vaga de assalto marchava para ocupar
as posições iniciais. O general inclinou a cabeça quando a imagem do Imperador passou por ele. Um retrato demasiado lisonjeiro de Cláudio, decidiu, já que as nobres
feições representadas pouco tinham de facto a ver com o idiota trémulo que tinha sido catapultado para o trono há três anos atrás. As fileiras da Primeira Coorte
da Nona Legião desfilaram à sua frente, e o general correspondeu à saudação que lhe fizeram, antes de voltar a concentrar-se nas defesas inimigas.
Assim que a paliçada se mostrou bastante danificada, Pláucio ordenou que a barragem fosse interrompida. Depois do último engenho lançar o seu míssil deu-se uma breve
pausa, e então as trombetas do quartel-general
236

deram o sinal para avançar. As duas fileiras da Décima Quarta ondularam ao mover-se, o sol a reflectir-se nos capacetes prateados dos quase cinco mil homens que
se puseram em marcha, descendo a encosta, atravessando o estreito fundo do vale e começando a subir o declive na face oposta.
- Agora, a qualquer momento... - Murmurou Pláucio para si mesmo. Mas não se deu nenhuma resposta da parte dos defensores. Nenhuma revoada de setas, nada de chuva
de projécteis de fundas. A disciplina do inimigo parecia ter melhorado de forma drástica, admirou-se o general. Nas batalhas anteriores os bretões lançavam toda
a sorte de projécteis assim que pensavam que os romanos estavam ao alcance, desperdiçando assim uma grande quantidade de munições, bem como a oportunidade de provocar
um impacto devastador nos atacantes, que era geralmente o resultado de uma rajada a curta distância e bem coordenada.
As linhas da frente da primeira vaga de legionários desapareceram de vista quando alcançaram o fosso defensivo. Do outro lado da paliçada, no alto do baluarte, os
bretões esperavam impassíveis pela chegada dos romanos, e Pláucio reparou que a tensão tinha tomado conta do seu corpo enquanto esperava que os dois lados se envolvessem
numa confusão letal. A primeira linha de legionários emergiu do fosso, esforçando-se por trepar pelo baluarte e lançando-se depois ao inimigo através das brechas
da paliçada destroçada. O impulso selvagem do ataque era tal que as primeiras cinco coortes penetraram pelas defesas e invadiram o campo inimigo sem a mínima interrupção.
E depois foi o silêncio. Não se ouviram gritos de guerra. Não se ouviram as trombetas inimigas. Não se ouviu o clamor da batalha. Nada.
- O meu cavalo! - Gritou Pláucio, uma terrível dúvida a nascer na sua mente. E se Carátaco se tivesse apercebido da armadilha que os romanos lhe preparavam, e se
tivesse recusado a ser capturado? E se tivesse persuadido os seus homens de que não podiam esperar clemência da parte de Roma? Nenhuma tinha sido mostrada àqueles
cujas terras tinham sido arrasadas ao longo de todo o Verão. Pláucio sentiu-se mal. Teria ido longe demais? Teria involuntariamente convencido Carátaco de que a
única forma que lhe restava de desafiar Roma era cometersuicídio?
- Porra, onde é que está o meu cavalo?
Um escravo aproximou-se a correr, trazendo um garanhão negro, magnificamente tratado. O general agarrou nas rédeas com brusquidão e colocou a bota sobre os dedos
entrelaçados do escravo. Com um rápido impulso lançou a perna sobre o cavalo e acomodou-se na sela. Pláucio virou o cavalo na direcção das fortificações inimigas
e galopou pela encosta abaixo. Alguns dos homens na retaguarda da Nona aperceberam-se da sua aproximação, e avisaram os camaradas mais avançados. Um trilho abriu-se

por entre a densa massa de legionários, e o general avançou por ele, cada vez mais apreensivo. Esporeou o cavalo, abrindo caminho pela retaguarda da Décima Quarta,
quando começou a subir o declive que levava à paliçada. Ao chegar ao fosso, fez o cavalo estacar e saltou para o solo remexido. Atravessou o fosso a correr, quase
desequilibrado, e depois começou a trepar pelo baluarte.
- Saiam da frente! - Gritou a um grupo de homens que aguardava calmamente, junto a uma das brechas na paliçada. - Depressa!
Afastaram-se rapidamente, revelando o campo dos bretões do outro lado da paliçada. Dezenas de fogueiras apagadas fumegavam ainda no espaço por trás do baluarte.
Mas não havia sinal do inimigo. Pláucio olhou ao longo da paliçada arruinada e viu centenas de fantoches de palha derrubados pela barragem de artilharia, ou pisoteados
pela primeira vaga de assalto.
- Onde estão eles? - Perguntou em voz alta. Mas nenhum dos seus homens se atreveu a enfrentar-lhe o olhar. Não tinham melhor ideia acerca da resposta do que ele.
Ouviu-se de repente um tumulto, e Praxo surgiu no baluarte arrastando um bretão. O homem, claramente perdido de bêbado, deixou-se cair enrolado aos pés do general.
- Foi o único que consegui encontrar, senhor. Quando entrámos no campo ainda avistei um pequeno bando a cavalo a escapar naquela direcção, para o rio. - Praxo indicou
um estandarte que ainda se via apoiado à paliçada, serpenteando ao vento. - Deviam ser os que sopravam as trombetas e agitavam os estandartes.
- Sim - respondeu Pláucio, pensativo -, isso faz sentido... Faz sentido. A questão é, onde é que eles se meteram? Onde está Carátaco e o seu exército?
Por um momento imperou o silêncio, enquanto Pláucio olhava para sul, na direcção do rio. Então o bretão começou a cantar, quebrando o encantamento.
- Envio os batedores, senhor? - Perguntou Praxo.
- Sim. Regressa já ao comando e dá as ordens. Cubram todas as direcções. Encontrem-nos, e depressa.
- Sim, senhor. E este aqui? Quer que o interroguemos?
O general Pláucio olhou para o homem, e o bretão enfrentou-lhe o olhar com uma expressão ausente; depois fez um gesto com o dedo, troçando do romano. Esse gesto
atingiu Pláucio como uma onda de ridículo, fazendo-o sentir as primeiras vagas de uma profunda raiva e auto-desprezo. Carátaco enganara-o; fizera-o passar por parvo
em frente das suas legiões e, assim que as notícias alcançassem Roma, ele seria motivo de riso geral.
238

- Este? - Respondeu friamente. - Não tiraremos nada de jeito desta escumalha. Empalem-no.
Enquanto Praxo designava alguns homens para se encarregarem do prisioneiro, o General Pláucio voltou a lançar o olhar para sul, desta vez para lá do rio, para a
neblina acinzentada que se acumulava no horizonte. Algures por lá, bem distante, estava Vespasiano e a Segunda Legião. Se Carátaco se dirigira para sul, Vespasiano
não teria qualquer ideia de que o inimigo se aproximava das suas forças.
239

XXIX
- Abram o portão! - gritou Cato.
- Não! - Macro agarrou-o pelo braço, e inclinou-se sobre o parapeito para gritar aos homens em baixo. - Mantenham o portão fechado!
Cato sacudiu o braço do amigo.
- Senhor, o que raio está a tentar fazer? Ver se o Tincómio é morto?
- Não! Há aqui algo de errado. Cato, pensa! Como é que ele atravessou as linhas do inimigo?
- Eu fi-lo.
- E mal conseguiste chegar ao portão. Olha para ele! Equipamento impecável. Veio calmamente a andar. Foram eles que o deixaram passar.
- Deixaram-no passar? - Cato fez uma careta. - Porquê?
- Vamos já saber. - Macro espreitou para lá da paliçada. - Nunca confiei naquele sacana...
Tincómio esperava a trinta passos do portão, aparentemente nada preocupado com a presença de centenas de Durotriges acoitados na escuridão em volta.
- Macro! - Tincómio falou em latim. - Abra o portão. Temos que
falar.
- Então fala!
O príncipe atrébate sorriu.
- Há assuntos que é melhor discutir com discrição. Abra o portão e venha conversar comigo.
- Deve pensar que somos doidos. - Resmungou Macro. - Estávamos mortos antes de chegar a metade do caminho.
- Garanto a vossa segurança! - Gritou Tincómio.
- Os tomates! - Retorquiu Macro. - Aproxima-te do portão! Sozinho!
- Pode garantir que eu não serei atacado? - Respondeu Tincómio, com ar zombeteiro. - Acho bem que o faça...
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- Aproxima-te! - Cato apontou parabém perto da paliçada. Depois de um momento de hesitação, Tincómio dirigiu-se para eles, avançando
devagar. Rapidamente, os dois centuriões desceram pela rampa e, enquanto Macro ordenava que abrissem o portão, Cato reuniu duas secções de legionários, para o caso
de os Durotriges se lembrarem de aproveitar para atacar a entrada de Caleba. À medida que o portão se abria, apenas o suficiente para um homem se esgueirar pela
abertura, Cato avistou o príncipe dos atrébates que os esperava no exterior. Agarrou uma das tochas que os legionários empunhavam.
- Deixa isso! - Avisou-o Macro, com rispidez. - Queres transformar-te num alvo fácil?
Cato baixou a mão.
- Vamos lá, miúdo. Vamos ver qual é o jogo do Tincómio.
Macro saiu primeiro, espremendo-se pela abertura e afastando-se
para que Cato também passasse, enquanto não perdia de vista o homem que os esperava. Quando Cato chegou ao seu lado, avançou devagar até estar a duas espadas de
distância de Tincómio.
- Que se passa? - Inquiriu Macro.
- O que é que acha? - Tincómio respondeu com um sorriso fino nos lábios.
- Estou demasiado cansado, demasiado lixado para brincadeiras. Desembucha.
- Queremos que se rendam.
- Tu mais quem?
- Os meus aliados ali atrás. - Tincómio apontou com o polegar sobre o ombro, sem se virar, depois acenou na direcção do portão de Caleba.
- E ali dentro.
- Traíste-nos bem depressa. - Disse Cato calmamente. - Quanto tempo é que lhes levou a convencerem-te a mudar de lado, cobarde de merda?
- Mudar de lado? - Tincómio fez um esgar de surpresa. - Não mudei de lado, centurião. Sempre estive do mesmo lado. Daquele que odeia Roma, e tudo o que ela representa.
Esperei muito tempo por isto. Trabalhei duramente para o conseguir. Portanto, rendam-se e observem enquanto tomo o trono, que é meu por direito.
Macro fitou o jovem nobre, e depois virou-se para Cato, rindo com vontade.
- Está a brincar!
- Não. Não, não está. - Cato sentia-se enjoado; a dor desesperada e vazia de um homem que compreende finalmente que foi completamente enganado. À luz das tochas
que ardiam na paliçada, olhou Tincómio nos
241

olhos. - Todo este tempo em que servimos juntos?
- Há mais tempo. Muito mais tempo, Romano.
- Porquê?
- Porquê? - Macro interrompeu. - O que é que achas? Aqui o puto quer ser rei. O único problema, meu traidor, é que a tua gente já tem um rei!
Tincómio encolheu os ombros.
- Por agora, sim. Mas Vérica não durará mais que uns dias, de uma maneira ou doutra. E então serei eu o rei. E levarei o meu povo a lutar contra as legiões, ao lado
de Carátaco.
- Estás é doido! - Macro abanou a cabeça. - Quando isto chegar aos ouvidos do General, os Atrébates serão esmagados como uma barata debaixo de uma bota.
- Acho que subestima seriamente a gravidade da sua posição, Macro. As linhas de abastecimento do general atravessam precisamente as nossas terras. Estrangularemos
as legiões em poucos dias. Terão sorte se conseguirem sair com vida da Britânia. Que pensa, Cato?
Cato não respondeu. Podia ver a situação estratégica a revelar-se na sua mente, e sabia que o príncipe atrébate tinha razão. Ali em Caleba a opinião pública tinha-se
virado aos poucos contra Vérica e os romanos a que ele se associara tão intimamente. Tincómio tinha boas hipóteses de conseguir apoio suficiente para liderar uma
revolta contra Roma. E tinha também razão quanto às consequências globais de tal revolta. O sucesso ou o falhanço da tentativa romana de incorporar estas terras
no Império dependia do que se passasse ali.
Um pensamento terrível atingiu-o.
- Vérica... Foste tu quem o atacou?
- É evidente. - Tincómio respondeu em voz baixa, de forma a que só os dois centuriões o ouviram. - Tinha que o tirar do caminho. Não foi fácil. Afinal, ele é do
meu sangue......
- Poupa-nos à tua auto-piedade.
- Muito bem. Ele tinha que morrer, pelo bem de todas as tribos destas terras. O que é o sangue de um velho contra a liberdade de toda uma raça?
- Portanto, não foi assim tão difícil, não é? - Perguntou Cato calmamente, o horror a crescer no seu íntimo ao compreender o erro grosseiro que tinha cometido ao
avaliar Artax. - E talvez tivesses conseguido... se não fosse o Artax.
- Pois. Pobre Artax - e não nos esqueçamos do pobre Bedríaco também... mais princípios que cérebro - uma falha comum entre o meu povo. Eu bem tentei mostrar ao Artax
onde estavam os seus verdadeiros

interesses, mas ele nem me quis ouvir. Apareceu mesmo quando eu me preparava para despachar o velho. Derrubou-me, não tive hipóteses. Levou o rei, e então apareceu
você. - Tincómio sorriu. - Nem quis acreditar na sorte que tinha tido quando foi em perseguição do Artax. Claro que tive que me assegurar de que ele morria antes
de dizer alguma coisa que me incriminasse. - O príncipe atrébate deu uma risada, e virou-se para Macro.
- Se não fosse a sua desgraçada aparição, podia ter liquidado o rei e aqui o Cato também.
- Ouve, meu sacaninha... - A mão de Macro dirigiu-se ao punho da espada, mas Cato agarrou-lhe o braço antes que o centurião mais velho desembainhasse a arma.
- Macro, chega por agora! - Exclamou Cato de forma ríspida, enfrentando o olhar do outro. - Quieto! Temos que o escutar, saber quais são os termos que propõe.
- É verdade, centurião. - Um sorriso faiscou na face de Tincómio quando olhou para Macro. - É melhor que acalme esse temperamento, se quiser viver. Você e os seus
homens.
Por momentos Cato temeu que Macro fosse explodir, e não descansasse enquanto não desfizesse o Atrébate com as mãos nuas. Mas depois ele inspirou profundamente, as
narinas dilataram-se, e ele assentiu.
- Está bem... Pronto, está certo, grande cabrão. Diz lá o que tens a
dizer.
- Muito gracioso da sua parte. Exijo que retire os seus homens de Caleba, e que regressem para a Segunda Legião. Podem levar as vossas armas, e garanto-vos um salvo-conduto...
até à legião.
Macro fungou com desprezo.
- E o que vale a tua palavra?... Um monte de merda.
- Calado! - Cortou Cato. - E porque sairíamos nós?
- Não podem defender as muralhas com aquele punhado de legionários e com quem quer que tenha sobrado das duas coortes. Se tentarem resistir, só conseguirão a morte,
a vossa e a de muitos dos habitantes de Caleba. Dou-vos a oportunidade de salvarem todas essas vidas. Vida ou morte. É essa a vossa escolha.
- E o que sucederá depois de partirmos? - Perguntou Cato.
- Pode com certeza adivinhar? Informarei o povo de Caleba da morte do Vérica. O conselho nomear-me-á rei, e qualquer um que tenha a má ideia de se opor a uma aliança
imediata com Carátaco será eliminado. E depois destroçamos as vossas colunas de abastecimento.
- Sendo assim, sabes que não podemos render-nos.
- Tinha uma certa esperança de que não fosse essa a vossa resposta. Ainda assim, não tenho pressa. Têm até ao alvorecer para tomarem uma

decisão. Por essa altura já não haverá muitos Atrébates com vontade de lutarem ao vosso lado. Não depois de eu lhes dizer que foram vocês que mataram o rei.
- E o que é que te faz pensar que vais viver o tempo suficiente para isso? - Ameaçou Macro.
Tincómio sorriu nervosamente, e deu um passo atrás. Foi demais para Macro, e ele sacudiu violentamente a mão de Cato e desembainhou a espada.
- Filho da puta merdoso! Estou farto de te aturar.
Tincómio virou-se e correu para o seio da escuridão que rodeava Caleba. Com um grito de raiva incoerente Macro lançou-se na sua perseguição, antes que Cato conseguisse
reagir. Por instinto atirou-se às pernas do amigo e derrubou-o. Quando os dois homens se puseram de pé, já Tincómio não passava de uma sombra que desaparecia na
noite. Furioso, Macro virou-se contra Cato.
- Foda-se, para que é que foi isso?
- Para dentro! - Ordenou Cato. - Rápido!
Macro não estava disposto a aceitar a indicação, e levantou ameaçadoramente a espada. Subitamente uma seta cravou-se no portão, seguida por uma série delas que emergiram
da escuridão, estilhaçando a madeira gasta. Sem mais palavras, Macro mergulhou pela fresta logo atrás de Cato, e os portões foram fechados à pressa, perante a possibilidade
de um ataque inimigo.
- Esta foi por pouco! - Macro abanou a cabeça, e depois virou-se para o seu jovem amigo. - Obrigado...
Cato encolheu os ombros.
- Agradeça-me depois. Primeiro temos que sair desta trapalhada.
Então ouviu-se a voz de Tincómio, algures na escuridão, a bradar em
céltico.
- Que é que ele está a dizer? - Perguntou Macro.
- Convida os habitantes de Caleba a juntarem-se a ele... pede aos sobreviventes dos Lobos e dos Javalis que abandonem os seus senhores romanos e que se tornem de
novo homens livres...
- Oh! Bela ideia. Este tipo devia ter sido advogado. Bom, vamos lá a ver se pomos um fim a isto.
Macro foi à frente pelo baluarte acima. Repararam que vários elementos das tropas nativas os olhavam furtivamente e com ar culpado, e Cato receou que Tincómio tivesse
razão: muitos daqueles homens fugiriam antes do nascer do sol, escapando por cima da paliçada para irem oferecer os seus serviços a um novo rei. Alguns ficariam;
por lealdade a Vérica, por lealdade aos seus camaradas, talvez até por lealdade aos oficiais a quem tinham
244

acabado por respeitar, com a admiração renitente que um guerreiro dedica a outro. Normalmente Cato não aprovava tal sentimentalismo entre os homens, mas naquela
noite sentia-se grato por ele. E pedia aos deuses que o reforçassem, com cada fibra do seu ser. Tincómio continuava a arengar aos homens na muralha, prometendo-lhes
uma gloriosa vitória sobre os soldados da Águia, e uma oportunidade de recuperarem a orgulhosa posição cimeira que em tempos os guerreiros Atrébates tinham ocupado
entre as tribos Celtas.
- Estás a vê-lo? - Perguntou Macro, franzindo os olhos enquanto perscrutava as trevas que rodeavam os baluartes da cidade.
- Não. Parece-me que está para... ali. - Cato apontou.
Macro acenou aos legionários que se encontravam na paliçada, armados com arcos e fundas.
- Vocês! Tentem uns disparos. Apontem para a voz.
Era escusado. As hipóteses de atingirem Tincómio eram pouco melhores do que as de enfiar uma pedra pelo gargalo de uma ânfora a vinte passos, com os olhos vendados.
Mas talvez interrompesse o discurso do príncipe atrébate, e perturbasse a sua tentativa de convencer as tropas nativas a mudarem de campo. Uma descarga de flechas
e projécteis fez um arco pela noite, mas Tincómio continuou a falar ao seu povo. Macro virou-se para o lado da cidade e gritou na direcção do vagão de abastecimentos.
- Silva! Manda-me umas trombetas para aqui, e depressa!
- É melhor despachar-se. - Murmurou Cato. - Está a dizer-lhes que foi você quem atacou Vérica.
- Filho da puta!
- ...E agora diz que temos o rei prisioneiro, afastando-o do povo. Tudo porque Vérica mudou de ideias e percebeu o que significava realmente Roma... Por isso, tivemos
que o afastar.
- E ele espera mesmo que eles engulam essa trampa?
- Se não ripostarmos, é possível que isso suceda.
Macro pôs as mãos em concha.
- Despachem-se com essa merda das trombetas!
Depois de um relance na direcção dos nativos que escutavam a voz do seu príncipe, Macro virou-se para Cato.
- É melhor falares com eles.
- Eu?
- Sim, tu. Explica-lhes as coisas.
- E o que hei-de dizer?
- Sei lá. Usa a cabeça - geralmente não te falta assunto. Garante é que falas mais alto do que aquele tipo, digas o que disseres.
Cato afastou-se da paliçada e começou a falar, enquanto tentava

desesperadamente lembrar-se de alguns dos magníficos discursos que lera na infância; Não era fácil usar a retórica etérea dos historiadores romanos na fala usual
dos célticos. Engasgou-se uma e outra vez enquanto tentava dirigir-se aos atrébates e persuadi-los a ignorar o traidor Tincómio, a manterem-se fiéis ao seu rei,
que o próprio traidor tentara eliminar. Da escuridão, Tincómio renovou os seus esforços, aumentando o tom de voz e contradizendo tudo o que Cato afirmava. O centurião
sorriu e renovou o seu apelo, pondo de parte qualquer tentativa de produzir um discurso no estilo clássico que o seu tutor grego lhe ensinara. Disse tudo o que lhe
passou pela cabeça, qualquer coisa que tivesse significado para os atrébates, qualquer coisa que não os deixasse prestar atenção a Tincómio, que se esganiçava cada
vez mais ao tentar sobrepor a sua voz à de Cato. Mas o centurião estava cansado, e a sua veia inspiradora esgotava-se rapidamente. Sabia-o, e os homens também, e
se não fosse a chegada de Silva com uma mão-cheia de trombetas do depósito, Tincómio teria por certo convencido muitos dos homens.
- Foi quase. - Disse Cato, rouco, enquanto Macro distribuía as trombetas aos confusos legionários.
-Ainda não estamos safos, miúdo. - Retorquiu Macro, depositando uma trombeta nas mãos de um dos homens. O legionário olhou espantado, como se alguém lhe tivesse
atirado para as mãos uma cobra venenosa.
- Porra, não fiques especado a olhar para ela! - Berrou Macro na cara do outro. - Mete os beiços à volta disso, e sopra com as tripas. Se te metes a brincar, juro-te
que te faço engolir a merda da trombeta, e que acabas a peidar com música!... Percebeste?
- Sim, senhor!
- Bom, então toca lá essa merda.
Os legionários começaram a emitir uma cacofonia irritante, lamentável, que se elevou nos céus nocturnos e afogou completamente a voz de Tincómio.
- Boa! - Macro acenou com a cabeça, as mãos nas ancas.- Mantenham isso um bocado, depois descansem. Se o tipo recomeçar, vocês põem os foles em acção. Percebido?
Continuem então.
Virou-se para Cato, aproximando-se para ser ouvido acima do clamor.
- Retira os Atrébates da paliçada. Diz-lhes que descansem. Vão precisar de todas as forças quando chegar a manhã.
246

XXX
Assim que alvoreceu, Macro deu ordens para que todos os homens capazes ocupassem os postos designados. Cato incorporou todos os nativos que ainda restavam na Coorte
dos Lobos, enquanto Macro reunia uma pequena força de legionários do depósito e os mantinha como reserva, junto ao portão. Cato enviou também um emissário requisitando
a guarda real para a defesa do portão, e enquanto Macro expunha aos homens as suas determinações, o centurião mais jovem fez o circuito dos baluartes de Caleba.
Os apelos de Tincómio, repetidos ao longo da noite, tinham tido efeitos e, quando regressou ao portão, Cato já contava mais de cinquenta desertores, que tinham aproveitado
a escuridão para transpor a paliçada e se juntarem ao inimigo. A fina neblina que os tinha ajudado na fuga pairava ainda no ar, fazendo tudo o que estava para lá
do fosso desaparecer num tom cinzento. Cato sentia-se ainda assim feliz por muito poucos dos que tinham fugido serem da coorte dos Lobos. O seu esforço para aprender
a língua e os costumes locais tinha tido algum resultado. Era uma pena, reflectiu, que os políticos e decisores romanos raramente aprendessem com exemplos daquele
género - se é que alguma vez o tinham feito. Muito derramamento de sangue poderia ser evitado, e o Império ganharia um largo campo de recrutamento para as suas coortes
espalhadas pelo mundo.
- Quantos ficaram? - Perguntou Macro, quando Cato regressou à torre de vigia.
- Bem, os oitenta legionários do depósito, mais cento e dez dos Lobos, e sessenta e cinco da sua coorte. E a guarda do rei, à volta de cinquenta homens.
- E podemos contar com esses?
Cato confirmou.
- São leais a Vérica. Fizeram um juramento de sangue. Protegê-lo-ão.
A boca de Macro desenhou um sorriso irónico.
247

- O juramento do Tincómio não lhe fez muito peso na consciência. Podemos confiar no Cadmínio?
- Acho que sim.
- Então, onde é que ele anda?
- Não sai do parque real. Nem autoriza que os seus homens o façam.
- Porquê?
- Diz que têm que proteger o rei.
- Proteger o rei? - Macro deixou cair o punho sobre o corrimão.
- Porra, faziam isso muito melhor aqui fora!
Cato esperou uns momentos, antes de acrescentar:
- Tentei explicar-lhe isso, mas ele recusou-se a sair.
Macro lançou um olhar rápido em volta dos baluartes, avaliando as figuras solitárias que se espalhavam ao longo da paliçada.
- No total, mal chegam a meia coorte... Não chega. Nem de perto.
Cato observou os preparativos do inimigo.
- Devem ser uns milhares. Alguns eram dos nossos.
- E vêm mais a caminho. Enquanto davas a volta chegou alguma cavalaria. Vieram de noroeste.
- Não temos hipóteses.
- Obrigadinho pela opinião moralizadora.
Cato lutou contra a ira que lhe inundou a mente. Macro tinha razão. Devia deixar opiniões do género para si mesmo. Os centuriões não tinham o direito de admitir
abertamente a derrota. O próprio Macro lho dissera, há quase dois anos atrás, da primeira vez que se tinham encontrado. Por isso, o jovem centurião forçou-se a respirar
fundo e a acalmar as dúvidas que o consumiam.
- Bem, suponho que teremos que aguentar até que chegue alguma ajuda. O Quintílio deve alcançar a legião hoje ao fim do dia. Vai levar um bocado até que eles cheguem
cá. Teremos que manter estes à distância até esse momento.
Macro virou-se e estudou a expressão de Cato por momentos.
- Assim, sim, miúdo. Nunca desistir, hã? É parte deste trabalho.
- E que trabalho.
- Oh, vá lá! Não é assim tão mau. O soldo é bom, as acomodações também, temos direito de escolha no saque, e podemos berrar tanto quanto quisermos. Que mais é que
se pode pedir?
Cato riu a contragosto, e sentiu-se profundamente grato por Macro estar ali ao seu lado. Nada parecia abalá-lo. À excepção das mulheres, recordou Cato com um sorriso.
- Porra, o que é que tem tanta piada?
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- Nada. A sério, nada mesmo.
- Então tira essa cara. O Tincómio e os amigalhaços não vão atacar para já. Diz aos nossos para descansarem. E depois diz o mesmo aos teus camaradas cá do burgo.
E descansa um bocado tu também. Estás com um ar acabado.
Cato estacou quando se preparava para descer as escadas nas traseiras da torre.
- E você?
- Descanso quando isto estiver acabado.
- Quando acha que eles vão atacar?
- Como queres que saiba? - Macro avaliou com o olhar as linhas inimigas. - Mas, quando o fizerem, lançarão ataques de várias direcções em simultâneo. A maior parte
será só para enganar, para que os nossos homens se concentrem no local errado. Teremos que estar atentos a isso.
Macro perscrutou a planície, avistando o local do desastre do dia anterior. As colinas que ladeavam o vale erguiam-se acima da neblina, como ilhas num mar nacarado.
Felizmente o nevoeiro cobria as centenas de corpos de Atrébates que jaziam no solo, e não deixava que os homens nos baluartes os avistassem, e que o moral, já tão
baixo, fosse completamente destroçado. Quando o nevoeiro levantasse, não deixariam de ver os cadáveres espalhados pela planície. Perceberiam também as dimensões
da força inimiga que os rodeava, e Macro sabia que haveria mais deserções quando os homens se pusessem a pensar nas fracas hipóteses que tinham de se safar. E os
defensores eram já escassos. Virou-se para as fileiras de telhados de colmo por trás das defesas da cidade. Nem uma alma se mexia pelas cabanas.
- É uma pena que não se consiga convencer os locais a lutar por
nós.
- Sim, mas percebe-se. - Retorquiu Cato. - Não são estúpidos. Sabem muito bem que não temos grandes possibilidades.
O jovem centurião apercebeu-se de que estava a tremer ao ar frio da madrugada, e lembrou-se de que não comia nada desde a alvorada anterior, e de que não descansava
a sério desde há vários dias. Cruzou os braços e esfregou os ombros.
Macro olhou para ele com curiosidade.
- Com medo?
Por momentos, Cato pensou em negar o facto; depois compreendeu que não enganaria Macro, e limitou-se a acenar em concordância.
O outro fez um sorriso cansado.
- Eu também.
Terminada esta mútua admissão, o silêncio tornou-se embaraçoso, até que Cato o rompeu.

- Sabe, é bem possível que o tribuno consiga trazer-nos ajuda a tempo.
- Possível? Só se conseguirmos aguentar mais uns dias.
- Talvez consigamos.
- Não. - Macro respondeu em voz baixa, para se assegurar de que nenhum dos homens o ouvia. - Quando eles transpuserem a muralha - e hão-de consegui-lo - teremos
que retirar para o depósito. E quando eles conseguirem penetrar no depósito, será o fim... Só espero ter uma oportunidade de levar aquele filho da puta do Tincómio
comigo... - Os sonhos de vingança de Macro foram interrompidos por um ruído que veio do seu próprio estômago. - E isto lembra-me que estou cheio de fome. Mandei
o Silva ao depósito, buscar umas rações. Já devia ter voltado.
- Acho que agora não consigo comer nada.
- É claro que consegues. E é melhor que o faças. - Disse Macro, com ar sério. - E faz com que os homens te vejam a comer. Se eles perceberem que, na realidade, tens
os nervos em franja, perdem qualquer resto de coragem que ainda possam ter. Vais comer a tua ração toda, e até vais gostar. Entendido?
- E se me dá para vomitar? - A imagem mental dele mesmo, pálido e a vomitar em frente aos homens, encheu Cato de vergonha e temor.
Macro franziu os olhos, com ar ameaçador.
- No momento em que começares, atiro-te por cima da paliçada. Não estou a brincar.
Por um momento, a dúvida pairou no espírito de Cato: estaria o centurião mais velho a falar a sério? Então a sua expressão fria e dura convenceu o jovem de que o
outro queria dizer mesmo aquilo. Antes que pudesse responder, ouviu-se o guincho de um eixo mal oleado, que anunciava o regresso de Silva e do vagão carregado de
rações obtidas no depósito. Um par de robustas mulas puxava a carroça, e Silva orientou-as na direcção dos legionários estacionados junto ao portão. Macro lambeu
os lábios ao avistar, no carro, ânforas de vinho e presuntos.
- Vamos. - Macro empurrou Cato amigavelmente. - Vamos comer.
Os dois oficiais juntaram-se aos legionários que se agrupavam ao redor do carro, enquanto Silva trepava pelo monte de provisões.
- Calma, pessoal. Chega para todos.
- E os meus homens? - Lançou Cato.
- Esses? - Havia um traço de reprovação na resposta de Silva. - Podem comer o que sobrar.
- Não. Terão a sua parte agora. Encarrega alguns destes homens de lhes levarem a comida.
250

Uma expressão de desgosto passou pela face de Silva, antes de assentir com relutância.
- Sim, senhor.
Enquanto Silva cumpria a ordem, Macro abriu caminho até à carroça, e usou a sua adaga para cortar dois nacos de carne de porco curada. Atirou um a Cato, e o centurião
mais jovem quase o deixou cair. Macro riu, arrancou um pedaço de carne com os dentes e começou a mastigar.
- Força, centurião Cato. - Disse, com a boca cheia. - Come! Pode ser a tua última refeição neste mundo!
O estômago de Cato ainda estava cheio de nós, e a perspectiva de comer a carne fria fez-lhe subir a bílis até à garganta. Fez uma careta, mas Macro lançou-lhe um
olhar de aviso, e Cato levou a carne aos lábios e preparou-se para lhe enterrar os dentes.
Nesse momento, soou uma trombeta distante, para lá dos baluartes. Imediatamente outras se lhe juntaram. Macro atirou a carne que segurava para a lama na parte de
trás do vagão, e cuspiu os pedaços semi-mastigados.
- Às vossas posições! - Berrou. - Eles vêm aí!

XXXI
- Senhor! - Berrou Fígulo da torre de vigia, quando viu Macro e Cato a correrem pela rampa acima. - O inimigo movimenta-se!
- Mantém-nos debaixo de olho!
Quando alcançaram a paliçada, Cato colocou o capacete e apertou-o. Macro lançou uma olhadela às redondezas do portão principal, esforçando-se por distinguir os detalhes
no meio da névoa que se dissipava rapidamente.
- Fígulo! O que andam eles a fazer?
- Parece um ataque frontal ao portão, senhor.
Cato esfregou os seus fatigados olhos, enquanto o inimigo ia surgindo à vista. Os Durotriges progrediam atrás de uma longa linha de protecções rudimentares, feitas
de vimes entrelaçados, que ondulava à medida que avançava pela relva amassada. Olhando em volta, Cato não se apercebeu de mais nenhum sinal de movimento em direcção
a qualquer outra secção da muralha.
- Não será melhor reforçar o portão com alguns dos Lobos?
O olhar de Macro seguiu o mesmo trajecto que o de Cato tinha realizado; coçou os esparsos pelos que lhe cresciam no queixo, fazendo um som de raspar com as unhas
sujas. Abanou a cabeça.
- Já estamos demasiado espalhados, para começar. Terei que me arranjar com o pessoal que está aqui. Volta para junto do teu estandarte.
- Não posso lutar aqui?
- Não.
Cato pensou em protestar, mas depois assentiu. Macro tinha razão. Mais um romano a defender o portão não faria grande diferença. Ele devia permanecer junto aos nativos,
e mantê-los preparados para enfrentar quaisquer novas surpresas que os Durotriges lhes tivessem reservado. Não podia, porém, evitar a vontade de lutar, talvez até
de morrer, junto aos homens da sua Legião, a Segunda. Sorriu para ele mesmo quando se apercebeu de que a legião era aquilo que tinha de mais parecido com uma família neste mundo, e de como era insuportável a perspectiva de se ver separado do resto dos homens
quando o fim chegasse. Mas naquele momento outros homens estavam sob a sua responsabilidade, e então reparou nos guerreiros Celtas da Coorte dos Lobos, agrupados
em volta de Mandrax e do estandarte, observando à distância o seu centurião.
- Até depois, Macro. - Conseguiu murmurar.
Macro acenou-lhe, sem tirar a vista do inimigo que se aproximava, e Cato afastou-se ao longo do baluarte, na direcção dos seus homens. Estava com uma tremenda dor
de cabeça; o latejar era tão doloroso que estava seguro de que ia vomitar e, pior ainda, apercebeu-se de que tinha uma sede terrível; amaldiçoou-se por não ter apanhado
um cantil da carroça de abastecimento antes de se ter dirigido ao baluarte. A língua parecia-lhe grossa e seca, uma sensação que aumentava a náusea que sentia. Cato
mordeu o lábio e tentou forçar-se a pensar noutra coisa qualquer, fosse o que fosse.
- Macro! - Ouviu-se uma voz a gritar, e Cato deteve-se para olhar na direcção do portão. Os Durotriges tinham parado no limite do alcance dos dardos, e uma pequena
abertura surgira no centro da linha. Tincómio avançou cuidadosamente, as mãos em concha, enquanto chamava de novo por Macro.
- Que é que queres? - Retorquiu o centurião. - Vieste render-te?
O tom de desafio na voz de Macro fez Cato sorrir. Tincómio baixou
a cabeça por um momento, e mesmo àquela distância era evidente o desapontamento do bretão.
O príncipe dos Atrébates levantou a cabeça e falou em latim.
- Não podem aguentar muito mais tempo, como sabem com certeza. E tenho notícias ainda piores para vocês. Carátaco virá em pessoa tomar posse de Caleba. Soubemos
que ele estará aqui dentro de dois dias, com todo o seu exército. Nessa altura, Caleba não poderá resistir.
- Então qual é a tua pressa? Tens medo de ficar sem o teu quinhão de glória? Ou precisas de ter alguma coisa para oferecer ao teu novo senhor?
Tincómio abanou a cabeça.
- Não seja parvo, centurião. Você, os seus homens e todos os do meu povo que são idiotas ao ponto de se manterem do vosso lado, todos morrerão... a menos que se
rendam a mim.
- Queres a cidade? Então vem cá buscá-la, merdoso! - Macro pôs as mãos em concha e escarrou ruidosamente, de forma a que os Durotriges e os Atrébates que se lhes
tinham juntado percebessem o desprezo no gesto. Os legionários colocados junto ao portão festejaram ruidosamente o desafio lançado pelo seu centurião.
Tincómio escutou ainda por um momento, depois fez um gesto com

a mão, como se esquecesse o assunto, e recolheu à protecção da cortina móvel. A abertura desapareceu, ouviu-se uma ordem a ser berrada, e a linha voltou a avançar
na direcção do portão.
Cato apressou-se a juntar-se aos homens que esperavam sob o estandarte do Lobo.
- Senhor, o que queria o traidor? - perguntou Mandrax.
- Aconselhou-nos à rendição. Afiançou que deixaria os Romanos partir em paz se lhe permitíssemos a entrada em Caleba.
- E qual foi a resposta do centurião Macro?
- Vocês ouviram. - Cato escarrou ruidosamente, e os homens em redor riram ruidosamente. Um foi ao ponto de dar uma palmada nas costas do jovem centurião. Cato deixou-os
festejar alguns momentos, antes de dar as suas ordens. Lançou um olhar rápido aos pequenos grupos de homens dispersos pelos baluartes e fez um veloz cálculo.
- Quero um homem a cada trinta passos. Quando eles entrarem pelo portão, toda a gente corre para o depósito. Macro quer-nos lá. E é lá que os enfrentaremos.
- O recontro final? - Perguntou um dos guerreiros, um homem já maduro. Cato apercebeu-se da pulseira que o homem usava, uma marca de casamento, e supôs que ele devia
ter família.
- Espero que não. O tribuno foi buscar auxílio. Talvez tenhamos que aguentar alguns dias até chegar a coluna de reforços. - Cato moveu a cabeça gravemente. - Vamos
conseguir.
O homem dirigiu-lhe um sorriso contrafeito, depois baixou a cabeça e afagou com gentileza a sua pulseira. Comovido pelo gesto, Cato fitou-o durante alguns momentos.
- Não te reconheço. Deves ter estado nos Javalis. Como te chamas?
- Verago, senhor.
- Não queres combater ao nosso lado, Verago?
O homem olhou em redor, procurando o mais pequeno sinal de desprezo nas expressões dos seus camaradas; depois, lentamente, acenou em concordância. Cato colocou-lhe
a mão sobre o ombro, gentilmente. Precisava de todos os homens capazes de enfrentar o inimigo com uma arma na mão, mas também precisava de estar seguro de que todos
os homens que iam lutar ao seu lado aí se manteriam, e não o abandonariam.
- Está bem, então, vai ter com a tua família. Não pode haver lugar aqui para homens cujo coração esteja noutro local. Podemos estar todos mortos antes do fim do
dia, e não quero mais sangue nas minhas mãos do que aquele que é necessário. Mandrax!
- Senhor?
- Passa a palavra. Só quero voluntários no depósito. Quem se sentir
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como Verago pode abandonar as armas e o equipamento e regressar para junto da família. Diz-lhes que têm a minha autorização, e deseja-lhes sorte. Bem precisarão
dela se o Tincómio conseguir alcançar o trono.
Mandrax afastou-se a correr pelo baluarte, para transmitir a mensagem de Cato. Houve um silêncio incómodo quando o resto dos homens e o centurião encararam Verago.
O bretão conteve a custo lágrimas de vergonha, e depois estendeu a mão a Cato. O centurião pegou-lhe e apertou-a firmemente.
- Está tudo bem. - Disse Cato de forma suave. - Compreendo a tua posição. Vai. Aproveita o tempo que te resta.
Verago assentiu, soltou a mão e colocou a lança e o escudo no solo do baluarte. Atrapalhou-se com o fecho do capacete, mas acabou por o colocar junto ao resto do
equipamento que lhe tinha sido distribuído poucas semanas atrás. Por momentos fitou o material, depois acenou a Cato e retirou-se, correndo pelo interior do baluarte
e internando-se pelo labirinto de cabanas de colmo. Cato enfrentou os homens que lhe restavam.
- Mais alguém?
Ninguém se moveu.
- Óptimo. Passem a palavra ao resto da Coorte. Mandrax, ficas junto a mim.
Enquanto via os seus homens a distribuírem-se ao longo do baluarte, conseguia escutar as ordens que Macro berrava junto ao portão. Lançou um olhar nessa direcção
e viu os legionários a lançarem dardos sobre a força inimiga que renovava o assalto à entrada de Caleba. Desta vez, porém, era audível o baque surdo do aríete com
que o inimigo tentava destroçar o portão, sob a protecção do seu escudo de vime.

XXXII
De repente, um dilúvio de flechas e outros projécteis abateu-se sobre a paliçada sobranceira ao portão; as pedras, lançadas por fundas, atingiam-na com um som forte,
que marcava uma espécie de ritmo para os impactos surdos das flechas. Por cima deste ruído começaram a ouvir-se os gritos e lamentos dos homens do reduzido destacamento
de Macro, quando eram atingidos. Ao olhar em volta, o centurião contou nada menos do que seis homens por terra. Os outros continuavam a lançar dardos sobre a protecção
do inimigo, tentando desesperadamente trespassá-la e atingir os homens que sob ela se abrigavam, ou pelo menos perturbar-lhes o avanço com o peso dos dardos espetados
na apertada trama de vimes. Mas estavam a conseguir poucos resultados, decidiu Macro, enquanto outro homem caía da paliçada, agarrado à haste da flecha que lhe trespassara
o braço com que lançava os dardos.
- Para baixo! Abriguem-se! - Gritou Macro.
Os legionários obedeceram de imediato, agachando-se atrás da paliçada. Silva e os seus ajudantes apressaram-se a subir o baluarte e, dobrados, retiraram os feridos.
A barragem dos Durotriges rapidamente diminuiu de intensidade quando estes se aperceberam de que não tinham alvos à vista. Mas mal Macro se levantou para arriscar
um rápido olhar sobre o inimigo, foi imediatamente visado, e teve que se agachar de novo quando meia dúzia de flechas silvaram sobre a paliçada e se foram perder
entre os telhados de colmo mais abaixo. Não havia nada a fazer excepto aguentar, fora da vista dos bretões. Tinha-se apercebido de que o inimigo transportava algumas
escadas, pelo que seriam necessários alguns homens na paliçada. Os outros teriam que defender a entrada assim que o portão cedesse. A um ritmo regular, este tremia
sob o impacto do aríete, e a poeira e a terra que se encontravam entre os toros chocalhavam, enquanto alguns grãos maiores se soltavam e saltavam pelo caminho.
- As primeiras duas secções ficam aqui! Os outros, sigam-me!
256

Agachado, Macro apressou-se até à rampa e desceu até à área por trás do portão, seguido pelo resto da sua força. Ao alcançar o nível do solo, outro impacto sacudiu
o portão e uma pequena fissura surgiu entre dois toros, através da qual passou um raio de luz, iluminando a poeira que se espalhava pelo ar.
-Silva! - berrou Macro.
- Senhor?
- Tu e os teus homens, saltem da carroça, já!
- Mas, senhor, os feridos... - Silva apontou os homens deitados no interior do vagão.
- Tirem-nos daí. Levem-nos para o depósito. Depressa!
Assim que os feridos foram retirados, Macro ordenou aos seus homens que largassem os escudos e empurrassem a pesada carroça. Ele e dois outros homens pegaram na
canga e orientaram a carroça na direcção do portão.
- Vamos lá, força! Força, meus sacanas!
Os homens esforçavam-se por mover o tremendo peso morto da grande carroça de abastecimentos, arfando de esforço por entre dentes cerrados. Então, com um arrastado
lamento proveniente do eixo, o vagão começou a mover-se.
- Mantenham-na em movimento! - Macro gemeu enquanto puxava pela canga, firmando os pés no terreno e arrastando a peça de madeira gasta na direcção do portão. - Vamos
lá!
Deu-se outro impacto no portão, e a fissura alargou-se, tornando-se uma brecha através da qual se podiam ver os mais próximos dos inimigos, balançando o aríete para
mais uma investida. No último instante, Macro acenou aos outros homens na canga, e juntos deram um puxão repentino para o lado, derrubando uma pequena braseira que
fumegava desde a noite anterior. A carroça derrapou e deslizou de lado até ao portão, bloqueando a entrada de Caleba.
- Limpem a carroça. Tirem tudo, menos os dardos. E encham o buraco por baixo com palha. Despachem-se!
Os legionários prepararam desesperadamente as defesas improvisadas, enquanto o aríete continuava a embater no portão, provocando a cada investida novas rachas na
madeira. Enquanto Macro olhava, um impacto estilhaçou a barra que cerrava o portão, fazendo-a saltar de um dos encaixes e embater no chão, entre o portão e a carroça.
- É agora! - Macro agarrou no escudo e empunhou a espada; voltou-se para os seus homens. - Esta secção fica comigo na carroça. Fígulo, a tua secção fica aqui atrás.
Se alguém tentar esgueirar-se por baixo, ou à volta - liquida-os.

- Sim, senhor.
- Os outros - e vocês aí no baluarte! Voltem para o depósito, e preparem-se para nos acolher. Vamos aguentá-los aqui um bocado, e depois retiramos. Vão!
Enquanto a maior parte dos legionários fugiam em bando pela rua na direcção do depósito, Macro e os elementos da retaguarda prepararam-se para o combate. O centurião
trepou para a carroça e pegou num dardo. Os cinco sobreviventes da secção tomaram posições à sua volta, os escudos levantados e os dardos preparados para atacarem
o inimigo ao nível da cara, assim que este forçasse a entrada. O aríete voltou a embater contra o portão e, sem a tranca para as manter em posição, as duas metades
do portão cederam, abrindo-se com um gemido de protesto, arrastando a ponta da barra através da terra e desenhando um arco. Os durotriges soltaram um urro triunfal.
Largando o aríete, desapertaram os escudos, pegaram nas armas e precipitaram-se para o interior da cidade. As madeiras quebradas faziam ângulos estranhos e tinham
extremidades aguçadas, contra as quais os primeiros homens foram empurrados pela massa que os seguia. Dois grunhiram de dor quando não conseguiram evitar as pontas
e foram empalados e depois esmagados pelos seus camaradas, sedentos de se atirarem aos romanos.
Quando a primeira fileira de Durotriges passou por cima dos guerreiros que ficaram cravados nas sangrentas estacas improvisadas, Macro pegou no seu dardo e usou-o
contra a cara do homem mais próximo. O guerreiro desviou-se e rolou para debaixo da carroça. Macro ignorou-o e apontou ao inimigo seguinte, acertando-lhe no ombro,
puxando a ponta de ferro para si e forçando-a a rasgar carne e osso, e depois lançando uma nova estocada contra o mar de expressões selvagens que se agitava à sua
frente. De ambos os lados, os legionários usavam os seus largos escudos para bloquear os golpes de espada e lança, e depois ripostavam, tentando acertar nos inimigos.
As suas faces mostravam a expressão de intenso desespero de quem lutava contra hipóteses astronómicas. Uma mão agarrou o lado do vagão mesmo à frente de Macro, e
ele apressou-se a atirar o dardo contra a massa sólida de gente que se lançava contra os portões arruinados. Agarrou a espada e atacou a mão, cortando-a ao meio.
O homem caiu ao lado do vagão, agarrado à mão desfeita. Macro apercebeu-se de que, de ambos os lados, mais inimigos avançavam agachados, escapando às investidas
dos dardos e tentando trepar para a carroça.
- Espadas! Espadas!
Os homens lançaram os dardos e ouviu-se o som das espadas a rasparem nas bainhas ao serem tiradas à pressa; então o pequeno grupo de legionários golpeou os inimigos,
agora tão próximos que o típico cheiro dos
258

Celtas lhes enchia as narinas de cada vez que inspiravam. Na retaguarda, Fígulo e a sua secção usavam as lanças contra qualquer homem que tentasse passar pelos
lados ou por trás da carroça.
Um dos homens junto a Macro soltou um grito de terror, e de relance ele viu que um legionário era arrastado sobre o lado do vagão. Caiu no solo e foi imediatamente
retalhado por uma chuva de golpes frenéticos dos Durotriges. Macro inclinou-se e espetou a espada numa garganta exposta, depois recuou e gritou sobre o ombro.
- Fígulo!
- Senhor?
- Deita fogo à palha! Depois leva a tua secção daqui para fora!
Macro manteve a posição com fúria obstinada, golpeando e espetando os inimigos, o rosto transformado numa máscara animal. Sentia uma estranha energia a possuí-lo,
e uma calma interior. Era para momentos assim que ele vivia. Era naquilo que ele era melhor, a única coisa na vida que era uma verdade incontestável; tinha nascido
para lutar. E mesmo tão próximo da possibilidade de uma morte violenta, estava feliz e contente.
- Vá lá, seus punheteiros! - Gritou Macro, de olhos arregalados de prazer, às faces erguidas dos Durotriges. - Isso é o melhor que conseguem fazer? Paneleiros!
O legionário mais próximo lançou-lhe um olhar ansioso.
- Estás a olhar para o quê? - Rosnou Macro, enquanto abatia a espada sobre o rosto de um inimigo, rasgando-lhe a pele como se fosse a casca de uma melancia demasiado
madura. - Mete-te no espírito da coisa!
- Senhor! - O legionário recuou, afastando-se do inimigo. - Olhe!
Fogo!
Pequenos tentáculos de fumo subiam por entre as tábuas do fundo do vagão, no qual já se notava um brilho avermelhado. Mais fumo corria pelos lados do vagão, e um
dos legionários preparou-se para saltar para o solo.
- Fiquem onde estão! - Berrou Macro. - Ninguém salta até eu
dizer!
O acusado regressou à posição, apressando-se a atacar um guerreiro inimigo, que saltara para o vagão mesmo aos seus pés. Por baixo deles, a palha seca crepitava
à medida que as chamas se espalhavam rapidamente, e o fumo espessava-se numa nuvem negra e sufocante. Os olhos de Macro ardiam e choravam tanto que mal os conseguia
manter abertos. Porém, inacreditavelmente, os Durotriges continuavam a lançar-se para a frente, através das labaredas amarelas que lambiam a parte inferior e as
paredes laterais do vagão, sufocando ao tentarem emitir gritos de desafio aos seus inimigos romanos. O fumo já tomava tonalidades alaranjadas e vermelhas

ao redor de Macro, e os legionários que o acompanhavam já não passavam de formas vagas cujas silhuetas se percebiam contra as chamas que os rodeavam. Sentiu os pés
e as pernas ficarem de repente muito quentes e olhou para baixo; as chamas começavam a passar para a parte de cima do fundo do vagão.
- Saltem! Fora! Para o depósito! Vão!
Os legionários viraram-se, saltaram sobre o lado do vagão e afastaram-se das chamas, correndo pela rua abaixo. Macro colocou-se num canto em que as labaredas não
eram ainda demasiado intensas e olhou em volta para se assegurar de que o inimigo não os conseguia seguir através do fogo. Então virou-se, atirou a espada e o escudo
para o chão e mergulhou atrás deles. Caiu no solo e rebolou sobre si mesmo, sem conseguir respirar. O fôlego custou a voltar e, quando inspirou, o fumo nos pulmões
fê-lo tossir. Enquanto se debatia, alguém lhe pegou no braço e o levantou. Piscou os olhos para se livrar das lágrimas e avistou Fígulo.
- Venha, senhor!
A espada e o escudo foram-lhe passados para as mãos, e depois Fígulo arrastou-o para longe do vagão ardente.
- Devias... estar com... os teus homens. - Conseguiu dizer Macro.
- Eles estão bem, senhor. Mandei-os à frente.
- Espera! - Macro deitou uma olhadela ao portão. A carroça ardia bem, e grandes labaredas erguiam-se e rugiam para o céu, pegando fogo à estrutura sobranceira. O
centurião assentiu, satisfeito. Pelo menos por enquanto, o inimigo não atravessaria o portão. Mas também não lhes levaria muito tempo a escalar a paliçada; a acção
de Macro só lhes tinha conseguido um pequeno intervalo. - Vamos.
? ? ?
Assim que ouviu o aríete a vencer a resistência dos portões, Cato deu a ordem para recuar. Mandrax alçou o estandarte bem alto sobre as cabeças, e agitou-o lentamente
de um lado para outro. Ao longo dos baluartes os homens da Coorte dos Lobos saltaram para o solo e correram pelas ruas na direcção do depósito. Lançando um derradeiro
olhar para verificar que todos os homens tinham visto e entendido o sinal, Cato acenou a Mandrax e desceu pela face interna do baluarte, para o espaço livre de três
metros de largura que rodeava a face interna das defesas de Caleba. Encaminharam-se para uma abertura entre dois núcleos de cabanas. Uma rua estreita e sinuosa levou-os
ao coração da cidade. Enquanto corriam, Cato notava as faces ansiosas que os viam a passar das entradas das habitações. Os habitantes de Caleba depressa iam descobrir
que as coisas iam piorar, mas naquele
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momento Cato nada podia por eles; nada que pudesse dizer lhes daria qualquer conforto. Portanto escolheu ignorá-los, enquanto acompanhava Mandrax a caminho da segurança
da derradeira linha de defesa contra os Durotriges. Quando se encerrassem no depósito, manteriam o inimigo à distância por tanto tempo quanto pudessem, e depois
morreriam.
Cato surpreendeu-se ao verificar que era com calma que aceitava a morte iminente. Sempre supusera que haveria muito mais a recear. Temera que o medo o paralisasse
e o despojasse da sua virilidade na hora final. Mas tudo o que o preocupava de facto era desafiar Tincómio e os Durotriges e resistir ao máximo.
A rua estreita desembocou repentinamente numa alameda que Cato reconheceu como a via principal entre o portão e o recinto real. Alguns homens da sua coorte passaram
em corrida, e ele e Mandrax juntaram-se a eles. Pouco mais à frente havia uma bifurcação com a rua que levava ao depósito, e foi por essa que seguiram, verificando
que a rua estava repleta de legionários e tropas nativas, todos a recolherem ao depósito em passo rápido. Com orgulho, Cato reparou que quase todos ainda mantinham
em seu poder os escudos e as armas. Apesar da aparência de debandada, os homens executavam de facto uma retirada, e uma vez assumida a nova posição defensiva estariam
armados e preparados para enfrentar mais uma vez o inimigo. Com eles vinham os últimos legionários que haviam deixado os portões de Caleba.
- Alguém viu Macro? - Lançou Cato. Um dos legionários virou-se para ele, e Cato apontou-lhe o dedo. - Tu! Onde está Macro?
- Não faço ideia, senhor. Da última vez que o vi, estava a defender o portão com mais uns tipos.
- E deixaste-o lá?
- Ele ordenou-nos que saíssemos dali! - Retorquiu o soldado, zangado. - Disse que viria a seguir, senhor.
- Bom... Vai para dentro e forma com os outros.
Cato olhou ao longo da rua que levava ao portão principal. Dois homens surgiram a correr da curva de uma cabana a cerca de cem passos, onde a rua fazia um ligeiro
desvio para a direita. Fígulo, mais alto e magro, trazia um pequeno avanço sobre Macro, cujas pernas grossas e musculadas se esforçavam duramente para se manterem
ao nível do outro. Instantes depois alcançaram Cato e dobraram-se, tentando recuperar o fôlego.
- Estão bem? - Perguntou o jovem centurião.
Macro levantou o olhar, o peito a arfar. A face estava enegrecida, e os pelos das pernas e dos braços estavam chamuscados. O odor acre do cabelo queimado ainda se
libertava dele, e Cato fez uma careta.
- Devias ver como ficou o outro... - Riu Macro, e depois desatou

a tossir incontrolavelmente. Voltou a dobrar-se, e depois, quando a tosse acalmou, encarou Fígulo. - Quase que me esquecia... Estás marcado, querido. Voltas a desobedecer
a uma ordem... e levas umas vergastadas.
- Sim, senhor. Eu só estava...
Um clamor de vozes distantes soou para lá do portão do depósito.
Algo estava errado. A entrada do depósito estava entupida, homens a quererem entrar e outros a tentarem sair, e as duas massas humanas estavam engalfinhadas numa
confusão total. Gritos de ira e de desespero elevavam-se da turba.
Cato puxou e empurrou até chegar à frente.
- Silêncio! Todos calados! - Berrou. A maior parte dos homens calou-se quando viu o centurião a tomar conta da situação. - O que se passa? Alguém que me diga o que
está a acontecer!
- Estão cá dentro! - Gritou alguém. - Os sacanas já entraram no depósito!
Sobre as cabeças da densa massa de homens que bloqueava o portão, Cato olhou para lá dos edifícios da administração, para junto do silo nas traseiras do depósito.
Nessa área, surgindo como um enxame sobre a muralha, estavam já muitos Durotriges. Na paliçada jaziam corpos de túnicas vermelhas, e as baixas aumentavam entre o
pequeno grupo de homens que tentava suster a invasão. Alguns dos não-combatentes da legião, menos dados a gestos de coragem, já largavam as armas e fugiam pelo depósito,
tentando escapar à massa ululante de guerreiros inimigos, que se espalhavam por toda a zona dos fundos do depósito e se encaminhavam em passos rápidos para os defensores
que se aglomeravam junto ao portão.
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XXXIII
- Se sabes o que é bom para ti, leva-me até ao legado, imediatamente.
O desconhecido mostrava-se irritado enquanto se dirigia ao optio, que era flanqueado por dois legionários. Estes eram rijos veteranos, do género que até os mais
ferozes criminosos de Roma prefeririam evitar. Portanto, o optio não mostrava grande preocupação com o personagem enlameado, de túnica suja, que se apresentara no
portão do campo ao entardecer. As suas dúvidas prendiam-se apenas com a forma como o outro falava, típica dos patrícios. A menos que o homem fosse um actor, havia
uma pequena fortuna por trás daquela pronúncia.
- Quem é que pensas que és, pá? - Perguntou o optio.
- Já te disse. - O homem falava com uma calma elaborada. - Sou o tribuno Caio Quintílio.
- Cá para mim não tens ar de tribuno.
- Apenas porque cavalguei toda a noite e todo o dia para aqui chegar.
- Porquê?
- Há uma emergência lá para Caleba.
- Ah, sim?
- Sim. A guarnição está a ser atacada, e gpstaria que o legado fosse informado, de forma a poder enviar uma força em auxílio do centurião Macro.
- Macro? Ah, bom, assim as coisas mudam de figura. Se Macro está em apuros, é melhor que entres. - O optio virou-se para um dos homens.
- Leva-o ao comando.
Quintílio manteve a boca fechada enquanto entrava no campo provisório da Segunda Legião, seguindo o legionário através da alameda principal, na direcção do conjunto
de tendas em que o legado tinha o posto de comando. Mais tarde teria tempo de humilhar devidamente aquele sacana

do optio. Naquele momento, o fundamental era avisar Vespasiano do perigo que ameaçava Caleba, enquanto ainda havia uma hipótese de salvar a capital dos Atrébates.
Talvez ainda conseguisse extrair algum capital político daquela situação, pensou o tribuno. Afinal, tinha arriscado a vida para fazer chegar a mensagem a Vespasiano.
Na sua desesperada cavalgada em busca de auxílio não tinha encontrado nenhuma força inimiga - mas tal podia ter acontecido. A coragem, lembrou a si mesmo, consiste
em agir perante o conhecimento da possibilidade de perigo. Tinha actuado, portanto era-lhe devida alguma admiração. Estes pensamentos fizeram-no sentir-se muito
melhor, e quando chegaram às tendas do comando já o tribuno se banhava interiormente no morno conforto da auto-estima.
- Quem diabo és tu? - foi a brusca reacção de Vespasiano, assim que ele foi admitido nos seus aposentos. O legado estava sentado à sua secretária, a preparar à luz
fraca do sol poente as ordens para a fase seguinte da campanha. Daí a dois dias a Segunda Legião marcharia de novo para oeste, com o objectivo de destruir uma série
de fortes na fronteira norte das terras dos Durotriges. Depois a legião seguiria para sul, destruindo tudo o que encontrasse pelo caminho até alcançar a costa. Por
essa altura, os Durotriges já deviam estar prontos a implorar a paz, e haveria menos uma tribo aliada a Carátaco.
Vespasiano tinha acabado de ler um relatório sobre o estado das catapultas da legião, e tinha iniciado uma ligeira refeição de galinha fria e vinho, antes de recomeçar
o trabalho. Continuou a mastigar enquanto o indesejado visitante se apresentava.
- Tribuno Caio Quintílio, senhor. Adido ao estado-maior do general Pláucio.
- Nunca ouvi falar de ti.
- Cheguei à Britânia há apenas um mês, senhor. Em substituição.
- Má colocação, mais provavelmente. - Vespasiano arqueou uma sobrancelha. - Estás um bocado perdido, tribuno. Não me digas que foste à caça e te perdeste.
- Não, senhor.
- Então o que se passou?
- Fui enviado pelo General para avaliar a situação em Caleba, senhor.
- Estou a ver. - Vespasiano observou o outro durante um momento. Incomodava-o a ideia de que Aulio Pláucio se preocupasse com uma cidade que estava na área de operações
da Segunda Legião. Imediatamente se interrogou se tinha deixado escapar algum facto importante. Tanto quanto ele recordava, o centurião Macro não tinha feito qualquer
referência a problemas entre os atrébates. Porém, aqui estava aquele tipo, proclamando-se

um tribuno, e afirmando que o general tinha achado necessário enviar um oficial superior para confirmar a situação em Caleba. Havia algo de errado, e Vespasiano
percebeu que teria de andar em bicos dos pés até que fosse revelada a natureza precisa da ansiedade do general. Sorriu fracamente ao tribuno. - E a situação está
ao gosto do general, presumo.
- Nem por isso. - Quintílio parecia extenuado. - Quando deixei a cidade, os Durotriges preparavam-se para atacar. Senhor, se não agirmos depressa, Caleba cairá nas
mãos do inimigo.
Vespasiano preparava-se para pegar no seu copo de vinho, mas a mão ficou imobilizada sobre a secretária.
- O que é que disseste?
- Caleba está a ser atacada, senhor. Ou deve estar, provavelmente, depois do que se passou ontem.
Vespasiano recolheu a mão e recostou-se na cadeira de campanha, forçando-se por manter a compostura.
- E o que é aconteceu ontem, então?
O tribuno Quintílio fez uma breve descrição da destruição das duas coortes nativas, da fuga de volta a Caleba, e das ordens que emitira para a defesa da cidade.
Prosseguiu, no tom mais modesto que encontrou, contando como se oferecera para atravessar as linhas inimigas e procurar a Segunda Legião, e levar ajuda aos restos
da guarnição que defendia Caleba. Quando terminou, esfregou os olhos quase sem dar por isso, e escondeu um bocejo com as costas da mão.
- É uma história e tanto. - Afirmou Vespasiano, sem emoção. - Deves estar exausto. Vou pedir que te tragam alguma coisa para comeres. Depois poderás descansar.
- Sim, senhor. Mas a guarnição... temos que os auxiliar, e depressa.
- Sem dúvida. Temos que apoiar Vérica.
- Vérica? Vérica foi ferido. Gravemente. Da última vez que o vi, parecia estar à beira da morte.
- Permitiste que o rei caísse numa emboscada? - Perguntou Vespasiano, em tom gelado.
- Não, senhor. - Respondeu Quintílio rapidamente. - Foi atacado por um dos mais próximos dos seus nobres.
Vespasiano engoliu a raiva que lhe crescia no peito. De cada vez que o jovem tribuno abria a boca, a situação revelava-se pior.
- Espero que não tenhas mais nada para me contar.
O tribuno abanou a cabeça e apontou para uma cadeira junto à mesa de Vespasiano.
- Senhor, dá licença que me sente?
- O quê? Ah, sim. Sim, claro.

Enquanto o tribuno deixava cair o corpo dorido da sela sobre a cadeira de campanha, a mente de Vespasiano trabalhava febrilmente enquanto reagia às notícias do desastre,
que se abatia não apenas sobre os homens em Caleba mas sobre toda a sua legião. A campanha na região ocidental sofreria um enorme revés.
- Quantos eram os efectivos do inimigo?
- Mil, talvez dois mil homens. - Adiantou Quintílio.
- Não mais do que isso?
- Não, senhor.
A disposição de Vespasiano melhorou ligeiramente.
- Bem, nesse caso podemos tratar deles. É uma chatice, e vai atrasar o nosso avanço, mas não há nada a fazer. Vamos tratar primeiro dos Durotriges.
- Ah... - Quintílio olhou-o com uma expressão de ansiedade. - Receio que haja aí uma pequena complicação, senhor.
Os lábios de Vespasiano comprimiram-se numa linha fina e tensa, enquanto ele resistia à tentação de dar uma valente reprimenda ao tribuno. Então, perguntou calmamente:
- E que género de complicação é essa, tribuno?
- Há uma pequena parte dos Atrébates que querem juntar-se ao inimigo e arrastar com eles toda a tribo. Foram eles que estiveram por trás do ataque a Vérica.
- Estou a ver. - A situação era, portanto, bem pior. Mesmo que Caleba tivesse sido tomada pelos Durotriges, eles seriam rapidamente expulsos pela sua legião, e a
situação seria estabilizada. Mas se toda a tribo fosse persuadida a enfrentar Roma, então o perigo ameaçaria não apenas a Segunda Legião, mas também o General Pláucio
e as outras três legiões.
Vespasiano amaldiçoou o tribuno, em silêncio. Se não agisse imediatamente para derrotar os Durotriges e eliminar os nobres Atrébates que conspiravam contra Roma,
era bem possível que o Imperador perdesse quase vinte mil legionários e quase outras tantas tropas auxiliares. Augusto sobrevivera à perda do general Varo e das
suas três legiões. Por pouco. Mas Augusto tinha tido uma mão firme no comando das legiões e do Império. Cláudio não tinha o mesmo género de legitimidade, e seria
certamente afastado do poder depois de tão grotesca derrota militar. E qual seria o futuro de Roma então? Vespasiano sentiu-se envolto no frio temor das perspectivas
futuras...
Apercebeu-se de repente de que não escutara as últimas palavras do tribuno.
- Desculpa?

- Disse eu que também teremos de lidar com eles, senhor - com os traidores Atrébates.
- Sem dúvida. - Assentiu o legado. - Se Vérica morrer, quem será o sucessor?
- Bom, aí há outro problema, senhor.
Desta vez Vespasiano não conseguiu esconder a frustração, e deu um murro na secretária. Olhou enfurecido para Quintílio, que raspava calmamente os nós dos dedos
na madeira. Forçou-se a incentivar o tribuno com toda a calma do mundo.
- Continua.
- O príncipe que atacou Vérica - Artax - era o herdeiro designado.
- E esse Artax, tomou o trono?
- Não, senhor. Foi descoberto pelos Centuriões Macro e Cato quando atacava o rei, e imediatamente abatido.
- Então a sucessão está em aberto? - Inquiriu o legado. - Para nós, quem poderia ser o melhor candidato?
O tribuno deu uma resposta clara.
- A melhor aposta seria no sobrinho de Vérica, Tincómio. Convenci o conselho real a escolhê-lo como sucessor depois da morte de Artax.
- E que tal é esse Tincómio?
- Jovem, mas esperto. Sabe que seremos os vencedores. Podemos contar com ele, de certeza. Será leal a Roma.
- É bom que seja, para o bem da sua tribo. Se não conseguir controlar o seu povo depois de arrumarmos estas questões, não poderei assumir mais riscos em relação
aos nossos abastecimentos. O reino dos Atrébates acabará. Terei que o anexar em nome de Roma, desarmar a tribo e deixar uma guarnição permanente em Caleba.
Quintílio sorriu; sem o saber, o legado fazia o seu jogo, e estava a ajudá-lo a chegar à posição em que poderia brandir os seus poderes de procurador.
- Sim, senhor, essa seria a melhor forma de tratar da questão.
Vespasiano recostou-se na cadeira e gritou pelo seu escrivão-chefe.
O homem surgiu pouco depois, afastando as cortinas já com uma placa de cera na mão.
- Quero aqui todos os oficiais superiores.
- Todos, senhor?
- Até ao último. Espera aí. - Vespasiano remexeu os papéis até encontrar os últimos relatórios sobre os efectivos disponíveis. Leu-os rapidamente, antes de prosseguir.
- Quero as seguintes coortes formadas e prontas a marchar: a do Lábio, a do Genial, a do Pédio, a do Pólio, a do Veiento,

e a do Hortênsio. Seis coortes devem chegar. Levarão armas e equipamento, água e rações leves. Mais nada, entendido? Será uma marcha forçada, e os comandantes das
coortes devem deixar cá todo e qualquer homem sobre o qual não se sintam seguros. Ninguém pode ficar para trás.
O escrivão não conseguiu disfarçar a surpresa e o alarme perante tais ordens, mas Vespasiano não julgou necessário elucidá-lo. Não seria adequado que o comandante
de uma legião fosse visto a explicar ordens a um subalterno. Estava determinado a manter-se tão distante dos homens que liderava quanto possível. Era uma atitude
que lhe custava, e que frequentemente não conseguia manter, embora depois lamentasse durante dias esses momentos de fraqueza.
- Mais alguma coisa, senhor? - Inquiriu o escrivão.
- Não. Despacha-te com isso, homem!
? ? ?
Um fino crescente ergueu-se no céu ao mesmo tempo que os últimos raios de sol se esconderam por trás do horizonte. Seguiu-se um curto período de trevas, enquanto
o olho se habituava à pálida luz da lua, e então a paisagem revelou o seu aspecto nocturno, um tecido monocromático de retalhos de campos, florestas, e colinas.
Do portão oriental do campo provisório saía uma longa coluna de homens, que se alongava pela estrada que levava a Caleba, a pouco menos de cinquenta quilómetros
de distância. Quase três mil legionários marchavam em colunas informais, o chocalhar do equipamento abafado pelo som das botas cardadas sobre a poeira seca do caminho.
Vespasiano seguia a cavalo, por trás da coorte da vanguarda, com alguns oficiais do seu estado-maior e Quintílio logo atrás.
Se forçasse os homens a fundo, calculava que conseguiriam alcançar Caleba ao anoitecer do dia seguinte. Poderia esperá-los uma dura batalha depois da cansativa marcha,
mas aqueles homens eram legionários, treinados até um nível físico superior. Cansados ou não, seriam suficientes para esmagar uns milhares de Durotriges.

XXXIV
- Como diabo...? - Espantou-se Cato.
- Não interessa. - Foi a brusca resposta de Macro. - Temos que nos pôr a andar daqui para fora.
- Sair daqui? - Cato olhou-o com espanto. - E ir para onde?
- O recinto real. É tudo o que resta.
- E os nossos feridos? - Cato apontou para a enfermaria. - Não podemos deixá-los para trás.
- Não podemos fazer nada por eles. - Respondeu Macro com firmeza. - Nada. Agora, forma a tua coorte. Fileiras cerradas, e sigam a minha centúria bem de perto.
Macro empurrou Cato na direcção dos sobreviventes da Coorte dos Lobos, e chamou os seus homens, berrando ordens:
- Cerrar fileiras. Coluna de quatro, em frente ao portão. Rápido!
Enquanto os legionários corriam e se colocavam na formação indicada, Cato dava as suas ordens em céltico. Orientadas pelos gritos dos líderes das secções, as duas
unidades formaram no caminho em frente ao portão, e cerraram fileiras até se tornarem numa única coluna, escudos justapostos na frente e no lado esquerdo. Macro
olhou em volta, à procura de Fígulo.
- Optio! Como gostas tanto de ficar para trás, passas a comandar a retaguarda. Duas secções. Mantém-nas coesas, e não deixes nenhum daqueles sacanas passar por ti.
- Sim, senhor. - Fígulo correu para a retaguarda, para ocupar a nova posição.
Assim que viu a formação pronta, Macro furou por entre os homens até alcançar a fileira da frente.
- Coluna! - Lançou a ordem preparatória, e esperou até ouvir Cato repeti-la às tropas nativas, e depois prosseguiu. -Avançar!
Os escudos, capacetes e pontas de dardos ondularam ao avançar, e o ritmo das botas cardadas ecoou sob a torre quando os legionários avançaram.


Atrás deles vinham os Lobos, armados de forma mais ligeira, e não tão preparados para marchar ao ritmo dos seus camaradas legionários na vanguarda e na retaguarda
da coluna. Cato tinha-se colocado perto da retaguarda dos seus homens, e olhou para os Durotriges, que corriam a toda a velocidade contra a retaguarda dos legionários
que estava formada do lado de dentro do portão do depósito. Não havia qualquer necessidade de dar ordens para lançar os dardos: os homens atiraram-nos assim que
os inimigos se aproximaram, e vários foram derrubados, trespassados pelas pesadas pontas metálicas. Porém, assim que caíam, desapareciam de vista, tragados pela
mole humana que avançava, com o fito de se atirar sobre a pequena coluna que avançava pela rua, na direcção do recinto real.
- Formação à largura da rua! -Berrava Macro, na frente, usando a espada para indicar a posição correcta aos seus homens, de forma a que a parede de escudos se estendesse
sobre todo o espaço que separava as duas alas de cabanas que ladeavam a rua. Por trás desta barreira, a cabeça da coluna continuou a avançar. Mas antes que a retaguarda
conseguisse sair do depósito, os primeiros Durotriges conseguiram alcançá-la, atacando os escudos rectangulares com as suas longas espadas. Os dois lados combatiam
em silêncio; os Durotriges, sem fôlego por terem corrido por todo o depósito, os Romanos pelo desespero com que combatiam. O choque das espadas e os impactos das
lâminas nos escudos davam a Cato a impressão de ocorrer num treino, e não numa batalha impiedosa. Só os gritos dos feridos denunciavam a intenção assassina dos combatentes
dos dois lados. A retaguarda romana conhecia bem o seu trabalho, e continuava a recuar, desviando os golpes inimigos e atacando apenas quando um oponente mostrava
mais temeridade que bom senso, obrigando-o a pagar por isso um elevado preço.
À frente de Macro, os Durotriges que tinham conseguido trepar pela paliçada em redor dos portões em chamas espalhavam-se pela rua, batendo com as espadas nos escudos
e lançando os seus gritos de guerra.
- Mantenham a formação apertada! - Berrou Macro por sobre o ruído da batalha, espreitando por cima do escudo. A espada ergueu-se até à horizontal, o braço dobrado
e preparado para dar a primeira estocada. A distância entre a coluna romana e a massa ululante dos Durotriges diminuía a ritmo regular. Quando já não era maior do
que vinte passos, o primeiro bretão ergueu a sua lança e carregou sobre a parede de escudos. Os outros seguiram-no imediatamente, fazendo soar os seus gritos de
guerra.
- Não parem! - Gritou Macro, ao ver que o homem à sua esquerda hesitava. - Avancem. Não parem por nada.
A coluna enfrentou os durotriges numa frente estreita, e não havia espaço para que o peso dos números inimigos se lançasse todo sobre os
270

legionários. Macro e os restantes homens da vanguarda lançaram os escudos para a frente, deram estocadas, recuperaram e avançaram; depois continuaram a repetir a
sequência de movimentos, num ritmo automático que tinham ensaiado centenas de vezes. Os Durotriges atacaram com ferocidade e coragem, mas não estavam à altura dos
romanos. Foram forçados a recuar, ou abatidos e esmagados pela coluna que passou por cima deles.
Aqui e ali, um golpe feliz de lança ou espada encontrava uma brecha na parede de escudos e penetrava até encontrar o homem por trás do escudo. Qualquer legionário
que já não conseguisse marchar devido aos ferimentos caía para o solo e o seu lugar era ocupado por um homem das cada vez mais diminutas reservas, de forma a que
a parede de escudos se mantivesse intacta. Os feridos eram deixados para trás enquanto a coluna continuava, e cada homem que passava encontrava os olhos dos seus
camaradas feridos e registava um último adeus. Quando a retaguarda se aproximava, os feridos cobriam os corpos com os escudos e preparavam-se para lutar até ao fim.
Não havia misericórdia, pensou Cato, nenhuma misericórdia. Sabia porém que, se caísse, não podia esperar que os seus homens arriscassem as vidas para o salvar, a
ele ou a outro homem qualquer. Se o fizessem, acabariam por morrer todos.
A retaguarda cedia terreno com regularidade enquanto os inimigos jorravam pelo portão e atacavam a traseira da coluna, tentando desesperadamente ultrapassar a muralha
de escudos e destroçar a pequena força romana. Fígulo, mais alto e entroncado que a maior parte dos legionários, aguentava a sua posição no centro da linha e mantinha
os seus homens agrupados com ordens constantes, enquanto desviava golpes com o escudo e dava estocadas certeiras nos inimigos que pressionavam a coluna.
Passo a passo, os legionários e os Lobos forçaram o caminho pela rua, na direcção do cruzamento com a rua que levava do portão principal de Caleba até ao recinto
real. A terra dura sob as suas botas depressa se fez escorregadia e lamacenta com o sangue e entranhas dos mortos e feridos, e o adocicado aroma do sangue misturou-se
com o cheiro distinto do solo remexido. Da sua posição no meio da coluna, afastado da intensidade do combate corpo-a corpo, Cato viu que tinham chegado à larga rua
que atravessava Caleba.
- Cato! Cato! - A voz de Macro fez-se ouvir acima do ruído da batalha.
- Senhor?
- Assim que passarmos o cruzamento, leva os teus homens e limpa o caminho para o recinto real.
- Sim, senhor!
Lentamente, os legionários foram lutando e avançando pelo cruzamento,

até que a coluna entrou pela rua que levava aos portões do recinto real, isolando um pequeno grupo de inimigos.
- Cato, agora! - Gritou Macro.
- Sigam-me! - Cato chamou os seus homens e carregou pela rua acima.
Alguns dos inimigos, os mais calmos, tentaram aguentar o embate sem ceder. Foram rapidamente dominados e liquidados. Os outros já tinham fugido em desordem pela
rua à direita, tentando encontrar abrigo em qualquer beco ou recanto, e lançando olhares aterrorizados aos seus perseguidores.
Cato parou e olhou em volta, de olhos bem abertos e respiração pesada, por entre dentes cerrados. Mandrax estava junto a ele, o estandarte numa mão e a espada manchada
de sangue na outra. O guerreiro atrébate sorriu ao centurião, cravou o estandarte no chão e agarrou os caracóis cinzentos de um homem que Cato tinha derrubado. Mandrax
puxou-lhe a cabeça para trás e preparou-se para a cortar com a espada.
- Não! - Gritou Cato. - Agora não. Deixa as cabeças para depois. Não temos tempo.
Com um olhar desgostoso, Mandrax largou o cabelo do cadáver e voltou a empunhar o estandarte. Então Cato apercebeu-se de que alguns elementos da coorte já tinham
coleccionado algumas cabeças, e que outros as buscavam afanosamente.
- Larguem-nas! - Gritou Cato em céltico. - Larguem-nas, já disse! Formem!
Os homens obedeceram com relutância, formando apressadamente um bloco sólido que ocupava toda a largura da rua que levava aos portões do recinto real. Assim que
os Lobos ficaram prontos, Cato ordenou-lhes que avançassem cinquenta passos, fizessem alto e esperassem por novas ordens. Então correu de volta ao cruzamento. Os
legionários mantinham o inimigo à distância com alguma facilidade, mas os Durotriges apinhavam-se nas ruas que levavam ao portão principal da cidade, pelo menos
até onde a vista de Cato alcançava.
Macro surgiu de repente, furando por entre as fileiras de trás dos seus homens. Viu Cato e acenou.
- Bom trabalho... Leva os teus homens à frente e assegura-te que o caminho para o recinto se mantém livre.
- Certo.
- Quando o meu grupo estiver perto do portão, mete os teus homens lá dentro. E prepara-te para o fechar assim que o último homem entrar.
Cato fez um sorriso tímido.
- Por acaso não será o senhor?

- Despacha-te.
- Sim, senhor.
Cato regressou a correr para junto dos seus homens e ordenou-lhes que avançassem. Não encontraram resistência por parte dos Durotriges que tinham ficado separados
do corpo principal da sua força, e os poucos que avistaram fugiram assim que perceberam a aproximação de Cato e dos seus homens. Mais à frente a rua alargava, ao
fazer uma curva e chegar à entrada do recinto real. Os portões deste estavam escancarados, e vários membros da guarda real, completamente equipados, vigiavam a paliçada
de ambos os lados. Cadmínio encontrava-se na entrada e saudou Cato quando o viu a aproximar-se à frente da coorte. Cato correu na sua direcção.
- Macro e o que sobra dos nossos homens vem já aí atrás. Temos que manter o portão aberto até eles chegarem.
- Mantê-lo aberto? - Cadmínio abanou a cabeça. - Não posso arriscar. Entre com os seus homens, o Macro terá que se arranjar sozinho.
- Não. - Respondeu Cato com firmeza. - O portão fica aberto até eu dizer que se pode fechar.
Cadmínio abriu a boca para protestar, mas havia um brilho inflexível nos olhos de Cato, e o atrébate desviou o olhar e consentiu.
- Está bem... Vamos precisar de todos os homens que conseguirmos para defender este recinto.
- É bem verdade. - Replicou Cato, já calmo. - Virou-se para os seus homens. - Para dentro. Depois de entrarem, formem como deve ser.
Enquanto os Lobos entravam no recinto, Cato indicou uma posição a Mandrax, e os homens formaram junto ao estandarte, virados para a rua, de onde vinham os sons de
combate. Não tiveram que esperar muito para ver surgir os legionários. Os homens de Macro recuavam em boa ordem, mantendo uma formação cerrada que ocupava a largura
da rua e lhes permitia impedir a passagem à massa de Durotriges que tentava forçar uma brecha na parede de escudos.
- Passem todos os dardos para a frente! - Gritou Cato aos seus homens, e os poucos dardos que lhes restavam foram passados para as mãos dos homens da fileira da
frente, que rapidamente embainharam as espadas.
- São para usar como lanças. - Disse Cato. - Nada de os atirar. Fileira da frente, cerrar formação, escudos sobrepostos! Dois passos em frente. Usem as lanças por
cima dos escudos.
Ouviu-se um ruído metálico à medida que os homens alinharam os escudos e colocaram as lanças em posição, segurando-as ao alto, por cima dos escudos. Daquela forma
tinham um maior alcance e eram uma visão mais aterradora para os inimigos, que viam as pontas mesmo em frente aos

olhos. Então esperaram em silêncio, observando através do portão o recuo dos seus aliados romanos. Cato juntou-se a Cadmínio e a um pequeno grupo de guerreiros que
se preparavam para encerrar os portões, assim que a ordem para tal fosse dada.
Na unidade romana, Macro ordenou que as duas fileiras de trás deixassem a formação e fossem ocupar posições na paliçada. Os homens correram, passando pelos Lobos
e subindo rapidamente para o passadiço que acompanhava a paliçada. A formação romana, agora menos numerosa, começou a ceder mais facilmente perante a pressão dos
Durotriges, e Cato temeu que se rompesse completamente antes que Macro e os legionários alcançassem o recinto murado. A horda inimiga também se apercebeu da oportunidade,
e redobrou a intensidade do ataque, golpeando e cortando com as espadas. Quando se aproximaram do recinto, os soldados já não foram capazes de manter a formação
compacta e encetaram uma debandada perante a turba ululante que os assolava. Irromperam pelo portão, exaustos e ofegantes, mas ainda assim conscientes de que deviam
desviar-se dos homens de Cato. Macro resistia, rodeado por um pequeno grupo de legionários, amaldiçoando e desafiando o inimigo à sua frente, desferindo estocadas,
as pernas bem equilibradas enquanto recuava lenta e cuidadosamente para a segurança do recinto.
Lançando um rápido olhar para trás, Macro avaliou a situação e, depois de um derradeiro grito selvagem contra os Durotriges, gritou ao último homem que o acompanhava:
- Corre!
Viraram-se e atravessaram o portão em corrida, ao mesmo tempo que Cato ordenava aos lanceiros que avançassem. Ao verem as terríveis pontas de ferro das lanças a
sobressaírem na parede de escudos ovais, os Durotriges refrearam o seu avanço, quase por instinto.
- Fechem os portões! - Gritou Cato, empurrando com o ombro, ao mesmo tempo que Cadmínio e os seus guerreiros levavam os portões para a posição de fecho. Mas logo
começaram a tremer e a oscilar, quando os Durotriges recuperaram a confiança e se lançaram contra as portas.
- Ajudem! Ajudem aqui! - Apelou Cato, e os Lobos avançaram, juntando o seu peso ao dos que tentavam desesperadamente bloquear a entrada. Durante um momento os portões
ficaram imóveis, presos entre as duas forças opostas, mas depois Cato sentiu que as botas começavam a escorregar para trás.
- Força! Vamos lá, porra! Força!
Mais homens se lhes juntaram, incluindo Macro e os seus legionários, e de novo os portões ficaram imóveis, a pouco mais de vinte centímetros da posição em que podiam
ser trancados. Macro afastou-se uns passos e
274

dirigiu-se aos homens que guarneciam a paliçada:
- Usem as adagas! Atirem-lhes com tudo o que puderem. Se for preciso, atirem-lhes a porra das espadas!
À medida que os homens lançavam as adagas contra a densa massa que se esforçava por abrir o portão, a atenção do inimigo foi desviada por um instante crucial, e
com um derradeiro esforço os defensores fecharam os portões e colocaram a tranca no lugar.
Enquanto alguns dos homens se deixavam cair no solo ou se dobravam sobre si mesmos, lutando para recuperar o fôlego, Cato forçou-se a manter-se direito. Pegou no
escudo, furou por entre os homens e trepou até à paliçada. Mantendo o escudo elevado, espreitou e verificou que os Durotriges já se afastavam do recinto, ficando
apenas um punhado deles a tentar destruir a paliçada com as suas espadas e lanças.
- Continuem a atacá-los. - Gritou aos homens que o rodeavam, e depois inclinou-se para falar aos que estavam junto ao portão. - Mandem os dardos cá para cima, depressa!
Assim que os dardos com as pontas de ferro começaram a cair entre eles, até os mais decididos dos Durotriges perceberam que a sua raiva era infrutífera, e abandonaram
as proximidades do portão, fugindo pela rua até se porem fora do alcance das armas romanas. Satisfeito, Cato voltou a descer, para falar com Macro. O amigo estava
sentado no chão, de cabeça destapada, examinando uma amolgadela no capacete. Cuidadosamente, passou os dedos pela cicatriz que lhe atravessava o crânio.
- Macro, está tudo bem?
O centurião assentiu, e piscou os olhos.
- Já fico bom. Estou um bocadito tonto. Um cabrão daqueles atingiu-me mesmo no sítio da ferida... Dá-me uma ajuda.
Cato agarrou-lhe o braço e puxou-o até o outro ficar de pé. Olhou em redor, procurando por entre as faces exaustas que se encontravam junto ao portão.
- Onde está o Fígulo?
- Apanharam-no, lá para trás.
- Morto?
- Não consegui ver.
Cato abanou a cabeça, e depois virou-se para o portão.
- Os nossos amigos foram-se, pelo menos para já.
Macro assentiu, e depois olhou para o céu. O sol estava quase a pôr-se, e no horizonte espalhava-se um brilho laranja.
- Daqui a pouco vai ficar escuro. - Macro olhou para Cato. - É melhor arranjarmos umas tochas. Tenho a impressão que o Tincómio e os amigalhaços não nos vão deixar
passar a noite sossegados.
275

XXXV
Com o cair da noite abateu-se sobre Caleba um estranho silêncio. No recinto real, Macro ordenara à maior parte dos homens que descansassem. Depois de o inimigo ter
recuado, fizera com que fosse construído à pressa um reduto defensivo junto à entrada do grande salão. Todos os vagões e carros dispensáveis tinham sido empilhados,
formando um pequeno semicírculo cujas traseiras eram as sólidas paredes de pedra do edifício. Cestas de verga foram cheias com areia e encravadas entre os vagões
para reforçar a estrutura e os manter no lugar, e foram trazidos bancos do interior do salão para garantir uma protecção suplementar aos defensores. Se a paliçada
fosse tomada, o que sucederia infalivelmente, já que pouco mais era do que um muro, então todos teriam que recuar para este reduto, e depois para o interior do salão,
protegendo os aposentos do rei.
Quando o trabalho foi completado, Macro mandou os homens descansar. Espalharam-se pelo terreno, formas escuras enroladas ao pé das suas armas, mal se adivinhando
à luz trémula dos archotes que ardiam na paliçada. Os escravos da casa de Vérica tinham sido enviados em busca de mantimentos para os exaustos defensores, comida
e bebida das cozinhas reais, e era a guarda real que se mantinha vigilante a qualquer sinal do inimigo. Para lá do recinto, entre as numerosas cabanas, só se ouvia
o silêncio; não havia pedidos de clemência nem os gritos de terror que normalmente acompanhavam a conquista de uma povoação. Macro estava sentado, com a cabeça inclinada
na direcção dos restos queimados dos portões da cidade. Os únicos sons que se ouviam à distância eram o periódico ladrar de cães, e de vez em quando uma ordem gritada
no campo inimigo.
Ao fim de algum tempo, Macro desistiu e abanou Cato, que se tinha deixado dormir há pouco tempo.
- Consegues ouvir alguma coisa?
Cato ergueu-se sobre um cotovelo, piscando os olhos doridos, receoso de que Macro tivesse detectado a aproximação do inimigo.
276

- O que é? Que se passa?
- Chiu! Escuta...
Cato sentou-se e esforçou-se para ouvir alguma coisa, mas o silêncio imperava.
- Não oiço nada.
- É mesmo isso que eu digo. - Prosseguiu Macro. - Devia haver barulho. Tomaram a cidade; deviam estar a aproveitar os despojos.
Cato abanou a cabeça.
- Estão a tentar conquistar o coração dos Atrébates. Duvido que Tincómio autorize o que quer que seja quanto a violações e saques. Não o fará, se for tão esperto
como precisa de ser.
Macro olhou para o outro, mal percebendo a sua expressão no escuro.
- Tu admiras aquele traste?
- Não. Não, nem pensar. É um louco. Se conseguir fazer com que os Atrébates mudem de campo, de uma maneira ou de outra acabarão chacinados. É o tipo de rei de que
as pessoas realmente não precisam.
- Não... - Macro desviou o olhar. - Há outra coisa que me preocupa.
- Sim?
- Ele disse que o Carátaco vinha aí.
- Sim. E então? - Cato esfregou os olhos. - Duvido que faça muita diferença. Não vamos estar por aí para ver.
- Talvez não. Mas, e se o Quintílio chegou à legião?
- Duvido que lá tenha chegado. Devem tê-lo apanhado.
- E se não o conseguiram? E se ele lá chegou, e o Vespasiano envia uma coluna de socorro?
Cato manteve o silêncio por momentos, e depois respondeu.
- Esperemos então que não tenha conseguido. É melhor perder umas centenas que uns milhares de homens.
- É verdade. Nós sabemos disso, mas o Vespasiano não. Pelo que sabe, a oposição limita-se à força que nos emboscou. E até o cobarde do Quintílio teria dificuldades
em sobrestimar o número dos atacantes de forma a manter o legado longe daqui. Se Vespasiano vier, virá com quase toda a legião meter-se mesmo no caminho do Carátaco.
Cato fez uma pausa enquanto contemplava essa terrível possibilidade. Olhou para Macro.
- Então temos que o avisar, partindo do princípio de que o Tincómio estava a dizer a verdade.
- Como? - Respondeu Macro com amargura. - Estamos cercados. No instante em que alguém tentar escapar será caçado e morto no lugar, se tiver sorte.
277

- Alguém tem que tentar. - Disse Cato calmamente. - Sè é que há alguma possibilidade que o legado envie alguém para tentar salvar-nos.
- Não. É escusado. Precisamos de todos os homens aqui.
- Que diferença faz? - Persistiu Cato. - Estamos todos praticamente mortos. Deixe-me tentar.
- Não. Tu ficas. É uma ordem. Não vou mandar ninguém numa porra de uma estúpida missão suicida. E, como já disse, não acredito que venha aí nenhuma força de socorro.
Tudo o que nos resta é aguentar e levar connosco tantos destes cabrões como conseguirmos.
- Ou rendermo-nos e arriscar.
- Arriscar! - Macro lançou uma gargalhada amarga. - Oh, talvez poupassem os rapazes, os nativos, e até talvez deixassem que Vérica morresse das feridas. Mas nós,
não. Tem alguma coisa especial preparada para nós. Conta com isso.
- Muito bem - concedeu Cato -, mas talvez poupassem os Lobos, e Cadmínio e os seus homens. Podíamos pedir termos para a sua rendição, e continuar a lutar só nós.
Macro olhou para ele, mas no escuro Cato não conseguia perceber a sua expressão, e portanto continuou:
- Mais mortes que as necessárias não servem para nada. Se os Lobos e a guarda real forem poupados por nossa intervenção, talvez isso sirva para alguma coisa, a longo
prazo. Talvez faça nascer alguma simpatia por Roma.
- Talvez. Por outro lado, talvez não. Se eles morrerem ao nosso lado, os seus clãs poderão culpar os Durotriges pelas suas mortes. Melhor ainda, talvez culpem o
filho da puta do Tincómio.
- Não tinha pensado nisso. - Retorquiu Cato, calmamente. Ficou calado por momentos, e depois continuou. - Será que devíamos levantar a questão com o Cadmínio e os
outros?
- Não, - Foi a resposta firme de Macro. - No momento em que começarmos a ceder, lá se vai o espírito de luta dos rapazes. Pensa nisso, Cato. Pensa em como te sentirias
se visses os nativos a saírem daqui e a deixarem-nos para morrer. Não é a melhor maneira de te aguentares com ele duro, pois não? E que garantias teríamos de que
eles os deixavam com vida? Confiavas a vida deles ao Tincómio? Punha-lhes as cabeças nas pontas de estacas em menos de nada.
- O que poderia ter um impacto interessante na lealdade dos Atrébates, do nosso ponto de vista. - Replicou Cato friamente.
- Cínico! - Macro riu e deu-lhe uma palmada nos ombros.
Cato sorriu.
- Mas tem razão. Não podemos confiar as vidas dos homens às
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mãos do Tincómio. Terão que arriscar connosco. Duvido que protestem. Os guardas reais não são grandes admiradores do Tincómio - mesmo os que acham que nós tivemos
alguma coisa a ver com o ataque ao rei.
- E eles acreditam seriamente nisso?
Cato encolheu os ombros.
- É difícil de dizer. Ouvi alguns a trocarem sussurros sobre isso, e já dei por alguns olhares suspeitos. Parece que as atoardas do Tincómio podem ter feito mesmo
algum efeito. O único que os pode convencer da verdade é o Vérica.
- Sabes alguma coisa dele?
- Não. Mas acho que devíamos ir descobrir. Se houver alguma hipótese de ele recuperar o suficiente para confirmar que quem o atacou foi o Tincómio, já era uma ajuda.
- Está bem, vai lá ver. Mas não te demores. Os nossos amigos podem tentar alguma coisa.
- Acha mesmo que o vão fazer?
- Não... Devem estar tão estafados como nós. Devem querer descansar. E duvido que tenham grande pressa. Estamos aqui presos, sem lugar para onde ir, e eles têm o
Carátaco e a merda do exército todo a chegar para os ajudar. Suponho que podem esperar pela alvorada para tentarem o próximo passo.
- Espero bem que sim. - Cato bocejou ao pôr-se de pé. O curto período de repouso parecia tê-lo deixado ainda mais cansado do que antes. Todos os membros lhe doíam
e estavam rígidos e pesados, e o ar da noite parecia frio demais para o Verão. A cabeça doía-lhe e os olhos picavam, e por um momento deixou que a mente fugisse
para uma visão de um sono tranquilo na sua cama quente e confortável, no depósito. A fantasia era tão real que sentiu um tremor quente a percorrer-lhe o corpo, e
permitiu-se ceder à sensação.
- Ei! Cuidado! - Gritou Macro, amparando Cato com o braço.
- Quase que me caías em cima.
- Desculpe. - Estava agora bem acordado, envergonhado pela sua fraqueza e com receio de que voltasse a suceder. Espreguiçou-se e caminhou até um bebedouro; tirou
o capacete, afastou para o lado o feno que cobria a superfície e mergulhou a cabeça, abanando-a e deixando que a água fria lhe despertasse os sentidos. Ergueu-se,
sem se importar com a água que lhe escorria pela face, sobre a armadura segmentada e sobre a túnica. Com um último espreguiçar, e esfregando os olhos, dirigiu-se
para o salão. Trepou pela brecha entre duas carroças e saltou para o interior do reduto.
Cadmínio e alguns dos guardas estavam sentados à entrada do edifício, conversando calmamente e bebendo de jarros de vinho à luz de uma pequena fogueira. Levantaram
os olhos quando Cato se aproximou. O centurião franziu o sobrolho. Fez sinal a Cadmínio e entrou no salão. O outro levou o seu tempo a vazar o copo, e depois levantou-se
e seguiu-o.
- A beber? Isso é aconselhável? - Perguntou Cato com algum desdém. - Dificilmente estarão em condições de defender o vosso rei, amanhã.
- Romano, beber faz parte da nossa vida.
- Muito bem, mas isso pode arruinar uma boa morte. É assim que queres morrer amanhã? Como um bêbado que mal consegue dar um golpe a direito?
Cadmínio ergueu o punho, e por um momento Cato esteve certo que o guerreiro o ia atingir. Mas, lentamente, Cadmínio relaxou, e então murmurou:
- Estaremos em condições. Dou-te a minha palavra.
- Espero bem que sim. Agora, tenho que ver o rei.
- Não vale a pena. Está na mesma.
- Ainda assim, tenho que o ver. Macro pediu-me um relatório sobre as condições em que ele está. - Não deu oportunidades para mais protestos. Virou-se e avançou para
a porta que dava para os aposentos do rei. Um único guarda estava a vigiá-la, e pegou imediatamente na lança, mas Cadmínio fez-lhe sinal para se afastar.
O quarto do rei estava brilhantemente iluminado com tochas e lâmpadas de óleo, e cheirava a fumo. Um magote de nobres sentava-se à mesa, falando em vozes baixas.
Quase que não se via Vérica, enfiado em peles até ao pescoço. Acima delas, o cabelo branco escorria sobre uma ligadura de cor púrpura. A pele do rei estava quase
tão branca como o seu cabelo, e o som da sua respiração ouvia-se até da porta. O médico do hospital do depósito ergueu a vista quando Cato entrou, e sorriu.
- O rei deu sinais de vida mesmo agora.
- Recuperou a consciência? - Perguntou Cato, juntando-se ao médico na beira da cama e olhando para o frágil ancião.
- Não exactamente. Abriu os olhos, murmurou umas palavras e desmaiou de novo.
- Palavras? Que palavras? O que é que ele disse?
- Nada que eu conseguisse perceber, excepto um nome, Tincómio. O rei estava agitado.
- Só isso? Mais nada? - O médico abanou a cabeça, e os lábios de Cato cerraram-se de frustração. - Se houver alguma alteração, seja qual for, chama-me imediatamente.
Percebido?
- Sim, senhor.
280

Cato lançou um último olhar ao rei e virava-se para se afastar, quando o médico lhe puxou o braço.
- Alguém se safou, do hospital?
- Não.
- Estou a ver. - O médico olhou para os olhos de Cato. - Senhor, que hipóteses temos?
- Poucas. Cumpre o teu dever, enquanto puderes.
- E quando chegar o fim...
- Protege o rei. É tudo.
Depois de ter relatado a Macro a sua visita, Cato fez uma pequena ronda pela paliçada, para ter a certeza de que os homens estavam acordados e atentos a qualquer
sinal do inimigo. Com tão poucos defensores, uma distracção de uma das sentinelas podia levá-los todos à morte. Depois, convencido de que não havia mais nada que
pudesse fazer, Cato procurou um lugar perto do portão, encostou-se a um poste e caiu imediatamente num sono profundo. Não acordou quando mudou a guarda, e só a necessidade
de urinar o despertou, já próximo do alvorecer. A consciência regressou depressa, acompanhada pelo receio de ter dormido demais. Tentou colocar-se logo em pé. A
rigidez dos músculos e o peso da exaustão completa quase que o impediram de se aguentar em pé, e gemeu enquanto se forçava a endireitar-se.
Embora ainda estivesse escuro, e o céu se apresentasse carregado, no oriente o céu iluminava-se com a promessa da alvorada. O ar estava fresco e a respiração dos
homens que se moviam no recinto condensava em frente das suas faces. Havia uma estranha quietude no ar, e o céu nublado prometia chuva, ou mais provavelmente aquela
chuva miudinha e deprimente que era uma característica tão central do clima daquela ilha. Entristecia Cato pensar que o drama da sua morte se ia desenrolar num cenário
tão cinzento. Uma escaramuça menor num canto de um amontoado de espeluncas bárbaras que mal merecia ser chamado cidade. E era ali que ele, Macro, Silva e os outros,
iam ter os seus funerais - na obscura, rústica e atrasada Caleba. Não haveria lugar para eles nos livros de História.
Espreguiçando-se, Cato dirigiu-se ainda empedernido a um pequeno fogo no centro do recinto. Macro supervisionava um grupo de escravos da cozinha que cortava um porco
em porções individuais. O cheiro do porco assado recordou Cato da fome que sentia, e desta vez foi com entusiasmo que agarrou num naco de carne com pele tostada.
Acenou a Macro com gratidão.
- Vais partir os dentes nisso. - Macro sorriu.
- De que serve a vida se não a apreciarmos? - Respondeu Cato.
- Há pão?

- Ali, no cesto.
Cato agachou-se junto ao fogo e começou a comer, mastigando devagar e saboreando cada pedaço da carne e do melhor pão dos armazéns reais. Parecia-lhe estranho que
a comida lhe soubesse tão bem, e Cato percebeu que, em circunstâncias normais, teria que despachar a refeição em três tempos para continuar com os serviços quotidianos.
Naquele dia, por contraste, não havia qualquer pressa. O pequeno-almoço levaria o tempo que ele quisesse, ou que os Durotriges deixassem.
Depois dos escravos serem enviados para acordar os defensores e lhes distribuírem comida, Macro sentou-se junto a Cato e devorou alegremente um pedaço de lombo assado,
enquanto se aquecia. Nenhum dos dois homens falou. À sua volta, enquanto a luz pálida se tornava mais intensa, os defensores acordavam e dedicavam-se à comida que
lhes era entregue. A maior parte tinha apetite que chegasse para mordiscar os petiscos saídos dos armazéns reais, mas alguns estavam demasiado exaustos, ou demasiado
preocupados, e deixavam a comida arrefecer ao seu lado enquanto esperavam, sentados.
Não tiveram que esperar muito. Uma das sentinelas na paliçada sobre o portão, um legionário, chamou Macro, e os dois centuriões imediatamente largaram a comida e
correram pelo recinto. Subiram rapidamente a escada, a rigidez dos corpos esquecida enquanto respondiam ao tom de urgência na voz do legionário.
- Informa! - Ordenou Macro.
- Senhor, ali em baixo! - O legionário apontou para a rua. - Um par deles espreitou da esquina, e depois desapareceu.
- E por causa disso estragaste-me o pequeno-almoço?
- Sim, senhor. Disse...
- Eu sei o que disse, obrigado. Fizeste bem, miúdo. Vamos esperar um bocado e ver o que acontece.
- Já está a acontecer. - Disse Cato. - Olhe.
Da esquina, talvez a cinquenta passos de distância, destacou-se uma figura solitária, ousada e destemida. Parou a uma distância que julgou segura e levou as mãos
em concha à boca.
- Afinal, ainda estão vivos os dois! - Gritou Tincómio. - Estou aliviado.
- Está aliviado. - Macro ergueu uma sobrancelha enquanto trocava um olhar com Cato. - Estou comovido...
- Vim aqui para lhes oferecer uma última oportunidade de se renderem, e de se salvarem a vocês e aos membros da minha tribo que se deixaram enganar e servem Roma.
- Em que termos? - Inquiriu Macro.

- Os mesmos de antes. Salvo-conduto até à vossa legião.
- Não me parece!
- Sabia que ia dizer isso!
Cato teve a certeza que viu Tincómio sorrir. Depois o príncipe atrébate virou-se e gritou uma ordem. Ouviram-se gritos de dor, e alguns berros, para lá da curva
da rua. Então surgiu à vista uma coluna de homens em muito má condição. Muitos tinham ligaduras, alguns mostravam rastos de sangue seco nas caras e nos membros.
Vários envergavam as túnicas vermelhas das legiões, e estavam presos uns aos outros com tiras de cabedal. Ao seu lado vinham homens com lanças, empurrando os prisioneiros
que se mostrassem demasiado lentos. Cato reconheceu algumas faces: homens que tinham servido nas Coortes dos Lobos e dos Javalis, e alguns mercadores gregos e romanos
que tinham sonhado fazer fortuna na Britânia. Tincómio deu uma ordem, e a coluna parou. O primeiro homem foi separado dos outros e trazido até à frente, com as mãos
ainda atadas. O guerreiro que o escoltava deu-lhe um pontapé por trás dos joelhos, forçando-o a cair com um grito. Ficou de lado no chão, a gemer, até que Tincómio
se aproximou e lhe aplicou um pontapé, desta vez na cabeça. O romano tentou proteger-se, puxando os joelhos para junto do peito, e ficou silencioso.
Tincómio virou-se de novo para o portão, apontando para o homem no solo.
- Rendam-se imediatamente, ou este homem morre. E depois os outros, um a um.

XXXVI
- Para demonstrar que falo a sério, por favor, observem... - Tincómio acenou a um homem que se tinha mantido afastado da coluna. Ao contrário dos outros nativos,
só trazia consigo uma pesada maça de madeira. Avançou, e colocou-se sobre o romano que estava no solo, afastando os pés. Então levantou a maça e abateu-a sobre a
canela esquerda do prisioneiro. Cato e Macro ouviram claramente o estalar do osso, mesmo àquela distância. O grito do romano ouviu-se muito mais longe. E piorou
quando o guerreiro lhe partiu também a outra perna - um urro animal de pura agonia, que gelou o sangue de todos os que o escutaram. O homem contorcia-se na poeira
da rua, as pernas abaixo do joelho a moverem-se em direcções obscenas, provocando-lhe ainda maior sofrimento. Os gritos só se calaram quando ele por fim desmaiou.
Tincómio deixou que o silêncio fizesse o seu efeito antes de continuar a dirigir-se aos defensores do recinto.
- Foi o primeiro. Haverá mais, até que vocês percebam e se rendam. Os que sobreviverem podem ir convosco quando deixarem a cidade. Macro, a decisão é sua. Pode pôr
termo a isto quando desejar.
Por cima do portão, Cato reparou que Macro agarrava o punho da espada com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos e os tendões sobressaíam da pele como
se fossem feitos de metal. Cato estava mais enojado do que furioso. O espectáculo tinha-lhe dado vontade de vomitar, e o porco assado e o pão que tanto tinha apreciado
há pouco davam-lhe agora voltas no estômago.
- Filho da puta. - Sussurrou Macro por entre os dentes. - Filho da puta... Filho da puta... FILHO DA PUTA!
O grito de raiva espalhou-se pela rua, e a explosão de Macro fez com que Tincómio sorrisse.
- Cabrão de merda! Eu mato-te. Juro. Eu mato-te!
- Centurião, por favor, se quiser tentar, esteja à vontade. Desafio-o!

- Senhor. - Cato colocou a mão sobre o ombro de Macro. - Não pode...
Macro deu-lhe um olhar furibundo.
- Claro que não! Achas que sou assim tão estúpido?
- Não... apenas furioso, senhor. Furioso e impotente. - Cato indicou os outros homens na paliçada, que olhavam para a rua com expressões de horror e raiva. - Estamos
todos assim.
Macro virou-se para olhar na direcção que Cato apontara e reparou que a paliçada estava agora repleta de homens, com os legionários, os Lobos e até alguns dos guardas
de Vérica. Afastou a mão de Cato e berrou aos homens:
- O que é que pensam que isto é? Algum espectáculo de monstros? Desçam daí e voltem às vossas posições! Querem que eles trepem pela muralha enquanto vocês estão
distraídos com aquele merdoso? Os únicos homens que quero aqui em cima são as sentinelas. Desapareçam!
Os legionários desceram da paliçada com expressões culpadas e espalharam-se pelo recinto, seguidos pelos Lobos, que nem tinham precisado da tradução de Cato. Macro
continuou a olhá-los irritado, e depois voltou a sua atenção de novo para Tincómio.
Quando reparou nisso, Tincómio gritou:
- Macro, vai render-se? Quero uma resposta!
O centurião pôs-se direito e em silêncio, os lábios comprimidos numa linha decidida na face enrugada. Enquanto olhava sem nada poder fazer, um terrível desespero
roía-lhe as entranhas e um ódio e uma raiva sem fim enchiam-lhe a alma, com Tincómio como alvo.
- Muito bem. O próximo homem, então. - Tincómio acenou para que o segundo prisioneiro fosse mandado para a frente.
O guerreiro atrébate escolheu um jovem, pouco mais que um miúdo, em que Cato reconheceu um dos tratadores das mulas do depósito. O rapaz encolheu-se, abanando a
cabeça, mas o guarda agarrou-o brutalmente pelos cabelos enquanto desfazia o nó que o prendia aos outros prisioneiros. Com um puxão selvagem tirou-o da coluna, arrastou-o,
a debater-se e a suplicar misericórdia, para junto da forma imóvel da primeira vítima. Macro deixou-se estar imóvel, mas Cato não aguentou continuar a olhar, e virou-se.
Apressou-se a descer as escadas e a voltar para o recinto. Ao chegar ao solo ouviu o terrível som do golpe e sentiu o grito do rapaz, que cortou o ar matinal, como
uma faca que se lhe cravasse profundamente nas entranhas.

Aquilo durou toda a manhã, e os corpos foram atravancando a rua. Não houve qualquer pausa nos gritos e na agonia dos prisioneiros romanos, que eram deixados a sofrer
as dores dos seus membros despedaçados. Macro obrigara-se a manter-se sobre o portão, em silêncio e sem desfalecer perante as repetidas sugestões de rendição por
parte de Tincómio. De cada vez que Macro se recusava a responder, um cativo era arrastado para a frente, para que os defensores o vissem bem, e agredido selvaticamente
até que as pernas se partissem. Para dar maior ênfase ao processo, Tincómio ordenou ao guerreiro com a maça que começasse também a partir os braços aos romanos,
e assim, quando acabava de lhes destroçar as canelas, o homem atacava-lhes os cotovelos.
Para Cato, mesmo afastado do portão, não havia um momento em que se esquecesse do horror, porque os gritos eram agora contínuos. No recinto, ninguém dizia uma palavra.
A maior parte dos homens olhava para o chão, visivelmente abalados de cada vez que uma nova vítima juntava os seus gritos ao coro que lhes dava cabo dos nervos.
Alguns passavam o tempo a afiar as espadas com vigorosos movimentos das pedras de amolar, que mesmo assim não conseguiam abafar o horrível som que vinha do lado
de fora da paliçada. Por fim, Cato não aguentou mais e voltou a subir para se reunir a Macro. O oficial mais velho não se mexera, e continuava a olhar para a rua
com uma expressão fixa e implacável. Deu a Cato um brevíssimo relance.
- O que é?
- Preocupa-me quanto mais disto é que os homens conseguem aguentar... senhor. - Indicou discretamente os homens no recinto. - Está a dar cabo deles.
- A dar cabo de ti, queres tu dizer. - Desdenhou Macro. - Se não tens estômago para isto, o que diabo estás a fazer nesse uniforme?
- Senhor! - Cato protestou, chocado pela veemência nas palavras do outro. - Eu... Eu...
- Tu, o quê? Vá lá, desembucha.
Cato procurou uma resposta, mas estava demasiado cansado para encontrar uma linha de raciocínio que lhe permitisse defender-se. Soube instintivamente que Macro tinha
razão: estava a pensar mais em si do que nas respostas dos homens, e baixou o olhar em sinal de culpa.
- Nada... Não aguento mais isto.
O veterano olhou-o de perto, com uma expressão amarga na face, os músculos trementes. Por momentos, Cato imaginou que Macro ia explodir e desancá-lo em frente dos
homens. Esta visão humilhante preencheu-lhe a mente, tão grande era o medo que sentia da vergonha e da sua inadequação ao lugar que ocupava. Mas depois o olhar de
Macro dirigiu-se para lá de

Cato, consciente das faces que olhavam para os dois centuriões. Respirou fundo pelo nariz e forçou-se a libertar a tensão que lhe apertava o corpo como um torno.
- Bom, vais ter que aguentar. - Afirmou calmamente. - Não pode ficar pior, Cato. E tens que te manter calmo, controlado, não ceder. Pelo menos, mantém-te tão calmo
quanto conseguires. - Macro abanou a cabeça tristemente, ao recordar a sua explosão inicial quando o primeiro prisioneiro fora torturado.
- Não há nada que possamos fazer?
Macro encolheu os ombros.
- O que é que tens em mente?
- Não sei. Talvez pudéssemos fazer uma sortida, e recuperar os nossos homens.
- Cato, eles estão praticamente mortos. Se os trouxermos, o que faremos com eles? Viverão mais umas horas, até que o recinto seja tomado, é tudo. E se a nossa tentativa
falhar, morremos todos um bocado antes do tempo.
- Portanto, qual é a diferença?
- Não é grande. - Admitiu Macro. - Mas o nosso dever é proteger o rei, e resistir tanto tempo quanto possível.
- E deixamos que continuem com isto? - Cato apontou para a
rua.
- O que mais podemos fazer?
O jovem abriu e fechou a boca. Apesar das vagas de repulsa, desespero e da vontade de fazer qualquer coisa, a verdade é que não havia nada a fazer. Era um membro
da audiência, impotente perante o horror que se desenrolava à sua frente.
- Podíamos tentar uma sortida. - Acabou por dizer.
- Não. Não o autorizo. De qualquer maneira, eles matavam os prisioneiros no momento em que abríssemos os portões. Acabou, Cato. Acabou, percebes?
Cato assentiu, e Macro deu-lhe um toque amiigável no ombro, antes de voltar a virar-se para o inimigo. Sensível à necessidade de distrair o jovem, apontou para os
guerreiros que rodeavam os prisioneiros.
- Já reparaste que ele só trouxe Atrébates?
Cato olhou em volta.
- Sim... Bem jogado.
- Bem?
- Manter os Durotriges fora de vista até que consiga a nossa rendição. Suponho que assim pode fazer isto passar por uma questão interna da tribo, facilmente resolvida.
107

- E os nossos rapazes engoliriam essa?
- Talvez tivesse efeito nalguns. - Concedeu Cato, e então os olhos arregalaram-se-lhe quando viu o prisioneiro seguinte a ser arrastado para a frente, sobre os corpos
retorcidos das vítimas anteriores.
- Oh, não...
- O que foi? - Macro esforçou a vista. - Quem é?
- O Fígulo.
- O Fígulo? Merda..
Enquanto Tincómio acenava ao guerreiro que trazia Fígulo, Cato virou-se para o interior do recinto, gritando em céltico:
- É o Fígulo! Eles têm o Fígulo!
Levantou-se um lamento espontâneo entre os Lobos, que admiravam e apreciavam o seu instrutor romano. Cato chamou-os, incentivando-os a aproximarem-se da paliçada.
- Vão matá-lo. Olhem! Olhem!
- O que diabo estás tu a fazer? - Perguntou Macro.
Cato deu um rápido sorriso.
- É altura de apanhar o Tincómio no seu próprio jogo.
- O quê?
- Observe.
Quando os Lobos chegaram à paliçada começaram a gritar, lançando o seu protesto e pedindo aos seus antigos camaradas que poupassem Fígulo. O optio estava já de joelhos
e o homem da maça estava de lado, a olhar para o prisioneiro, para Tincómio, para o outro guerreiro que guardava os prisioneiros, para o recinto e de novo para o
prisioneiro. Tincómio gritava-lhe furioso, indicando com o dedo o romano ajoelhado. Fígulo limitava-se a olhar em redor, assustado. Um dos guerreiros avançou e falou
com o príncipe atrébate, que lhe deu uma ordem brusca. O homem olhou para Fígulo e abanou a cabeça.
- Isto promete! - Macro sorriu.
Cato sentiu que alguém lhe puxava a manga da túnica e virou-se para descobrir o médico, com uma expressão excitada na face.
- Senhor! O rei! - O médico tinha que gritar para se fazer ouvir.
- Recuperou a consciência!
- Quando?
- Agora mesmo.
- E como está?
- Atordoado, mas lúcido. Cadmínio informou-o da situação. Quer vê-los. Aos dois.
Macro abanou a cabeça.
- Diz-lhe que estamos um pouco ocupados.

- Não! - Interrompeu Cato, com uma expressão excitada. - Podemos transportá-lo?
- Suponho que sim, se for realmente necessário. Não pode piorar, digo eu.
- Boa! - Cato deu um toque no braço do médico. - Então trá-lo para aqui. Depressa.
O médico meneou a cabeça.
- Não sei se isso é possível.
- Bom, é muito simples. - Cato desembainhou a espada e pôs a lâmina debaixo do queixo do outro. - Ordeno-te que tragas aqui o rei, imediatamente. Assim já percebes?
- Hã, sim, senhor.
- Então raspa-te.
Enquanto o médico corria para ir buscar o seu paciente, Macro ria.
- Essa foi de centurião. Ainda vais ao lugar, Cato.
Este tinha voltado a olhar para a rua. Tincómio estava rodeado pelos seus homens e debatia furiosamente, os braços pelo ar para enfatizar os seus pontos de vista.
Mas os outros não aceitavam a sua opinião, e protestavam de forma igualmente animada. Ao lado, Fígulo continuava de joelhos, observando a discussão em silêncio e
tentando permanecer imóvel para não chamar as atenções. Por trás dele estava o homem com a maça, à espera de uma decisão.
- Com sorte - disse Macro -, vão começar à pancada a qualquer momento.
- Duvido. - Retorquiu Cato. Já tinha visto Tincómio em acção, e sabia que o príncipe era capaz de dar a volta à situação. Já o tinham subestimado uma vez antes.
Não era boa ideia repeti-lo. Cato olhou para trás.
- Onde está o sacana do médico?
Enquanto esperavam por Vérica, as falas mansas de Tincómio começaram a conquistar os seus homens. Já era só ele quem falava, enquanto os outros baixavam as cabeças
e escutavam em silêncio o discurso cheio de retórica.
- Aí vem ele. - Avisou Macro, e Cato virou-se a tempo de ver o médico a sair do grande salão, seguido de perto por uma maca transportada por quatro dos guardas reais.
Ao lado caminhava Cadmínio, observando ansiosamente a figura pálida que se apoiava em almofadas.
- Depressa! - Gritou Cato. - Aqui em cima! Rápido.
O pequeno grupo dirigiu-se ao portão em passo acelerado, tentando não sacudir demasiado o rei. Quando chegaram à paliçada, os poderosos guardas levantaram a maca
até que ela ficou ao alcance dos homens no nível superior. Enquanto Vérica era içado para a plataforma larga por cima

do portão, Cato voltou a observar a discussão entre Tincómio e os seus homens. O príncipe já estava farto, e afastara-os, desembainhando a espada à medida que se
dirigia a Fígulo.
- Pára! - Gritou Cato em céltico. - Impeçam-no!
Tincómio mal se dignou olhar para ele, prosseguindo na direcção do romano ajoelhado. Mas antes que o alcançasse, o homem com a clava avançou e colocou-se entre os
dois, sacudindo a cabeça.
- Sai do meu caminho! - O grito de raiva de Tincómio ouviu-se por cima dos gritos dos defensores, ao mesmo tempo que Cadmínio ajudava o rei a deixar a maca e o amparava
enquanto Vérica dava dois passos trémulos até à paliçada. Quando o rei surgiu à vista, os guerreiros atrébates na rua olharam-no, espantados.
- Sire, Tincómio disse-lhes que estavas morto. - Explicou Cato.
- E que nós vos tínhamos assassinado.
O ancião parecia ainda um tanto confuso, e fez um esgar de dor ao voltar a cabeça para Tincómio. Os gritos dos homens na paliçada tinham-se extinguido quando tinham
avistado o rei. Os únicos sons que ainda se faziam ouvir eram os choros e os lamentos dos romanos a quem os membros tinham sido partidos e que jaziam pela rua. O
corpo de Vérica tremia.
- Sire? - Cadmínio segurou com mais força o rei.
- Estou bem... estou bem.
Cato inclinou-se para ele, falando baixinho e rapidamente.
- Sire, tendes de lhes explicar quem vos atacou. Tendes de lhes dizer que Tincómio é um traidor.
- Traidor? - Repetiu o rei com uma expressão magoada.
- Sire, por favor. A vida daquele homem depende de vós. - Cato apontou para Fígulo.
Vérica olhou para o romano ajoelhado, e para o seu sobrinho, e depois tossiu - uma tosse profunda e horrível, que o deixou sem fôlego e agarrado à cabeça, em evidente
agonia. Depois forçou-se a ficar tão direito quanto possível e dirigiu-se aos seus conterrâneos na rua.
- Foi Tincómio... Tincómio atacou-me.
- Foi o Artax! - Berrou Tincómio. - Foi o Artax! Eu salvei o rei!
Vérica abanou a cabeça com tristeza.
- Ele mente! - Tincómio gritou, o desespero na voz. - Os romanos forçam o rei a mentir! Vejam-nos ao seu lado! Forçando-o a dizer isto.
- Não! - Gritou Vérica, a voz a fraquejar com o esforço. - Foste tu, meu sobrinho! TU!
Os guerreiros na rua viraram-se para o príncipe, que reparou na dúvida e no desprezo que se instalavam nos seus rostos.
- Ele mente, digo-vos!

Cato afastou o olhar do drama e chamou os seus homens.
- Mandrax!
- Aqui, Centurião!
- Pega em vinte homens e prepara-te para ir buscar os prisioneiros quando o portão se abrir.
- O que é que tu estás a preparar? - Perguntou Macro. - O que é que disseste?
- Vou tentar apanhar o Tincómio, se puder. E voltar o mais depressa possível.
- Estás doido de todo. - Disse Macro, mas não fez qualquer tentativa para o deter quando Cato desceu, pegou no escudo e no capacete e se virou para os legionários.
- Quando der a ordem, quero este portão aberto e depressa.
O coração batia-lhe com força, antecipando a acção iminente, e toda a exaustão tinha sido varrida, enquanto os sentidos se apuravam. Assim que Mandrax e o seu grupo
assinalaram que estavam prontos, Cato inspirou e berrou:
- Abram o portão!
Os legionários fizeram deslizar a tranca e puxaram o portão.
- Sigam-me! - Gritou Cato sobre o ombro, e correu pela rua. Dirigiu-se aos homens agrupados ao redor de Tincómio, e resistiu ao impulso de empunhar a espada; era
vital que não lhes desse a impressão de que os ia atacar. Tincómio virou-se para o recinto e apontou para Cato.
- Apanhem-nos!
- Lobos! Javalis! - Gritou Cato em resposta. - Agarrem-no. Prendam o Tincómio!
Por um terrível instante, os homens de Tincómio viraram-se contra Cato, e o centurião teve a certeza de que o iam atacar, de que tinha julgado mal a disposição dos
homens. Mas limitaram-se a deixar-se estar, observando Cato e os seus homens enquanto estes percorriam rapidamente a curta distância que os separava do portão. Tincómio
olhou para os que o rodeavam com uma expressão de temor, e então virou-se e desatou a correr.
- Apanhem o traidor! - Gritou Cato. Mas já era tarde. Tincómio tinha rompido o círculo de homens e corria para a esquina e para a segurança dos seus aliados Durotriges.
Talvez tivesse conseguido escapar, mas o guerreiro com a maça lançou-a contra o príncipe e atingiu-o por trás do joelho. A maça meteu-se-lhe entre as pernas, e Tincómio
caiu de cabeça no meio dos prisioneiros romanos que ainda não tinham sido imolados. Estes lançaram-se sobre ele com gritos de furia selvagem, atingindo-o com as
mãos amarradas. Cato parou junto aos homens de Tincómio, que o aguardavam com expressões de dúvida e as armas prontas. O centurião imediatamente

se virou para os feridos espalhados pela rua e berrou as suas ordens:
- Levem os que estão vivos para dentro do recinto! Mexam-se! Os Durotriges vão aparecer a qualquer momento!
A autoridade e urgência que dera à voz resultaram. Os homens encaminharam-se para os romanos que jaziam pelo chão e começaram a arrastá-los pela rua acima, a pressa
a fazê-los ignorar os gritos daqueles que tinham sido seus prisioneiros.
Cato virou-se para Mandrax.
- Leva o resto dos prisioneiros! E não te esqueças de levar também o que sobrou do Tincómio!
Mandrax sorriu.
- Sim, centurião.
Deixando os homens a cumprir as suas ordens, Cato correu pela rua, até à esquina que virava para o portão principal de Caleba. Parou. A trinta passos de distância,
e espalhando-se por todo o cenário, estavam os Durotriges, repousando calmamente entre as cabanas que ladeavam a rua. Centenas deles. Quase ao mesmo tempo, ouviu-se
um grito de alarme e um dos guerreiros pôs-se de pé, apontando para Cato. Outros se levantaram e pegaram nas armas.
- Ups! - Murmurou Cato. Girou nos calcanhares e correu de volta ao recinto real, enquanto começavam a ouvir-se os gritos selvagens dos perseguidores. O centurião
acelerou quando viu que quase todos os homens, prisioneiros e sobreviventes do horror dessa manhã já quase tinham alcançado o portão.
- Mexam-se! - Gritou. - Eles vêm aí!
O rugido crescente ao fim da rua era tudo o que os homens precisavam de ouvir, e percorreram rapidamente a distância que lhes faltava para atingirem o recinto e
passarem o portão, sem cuidar da agonia que provocavam nos feridos que transportavam. Só faltava Cato, a correr para a segurança do portão, que os defensores já
começavam a encerrar. Outra vez, pensou ele, não sem humor. Espreitou por cima do ombro, mesmo no momento em que os Durotriges surgiram deste lado da curva, a menos
de vinte passos e clamando pelo seu sangue. Pesado devido à armadura, Cato não tinha hipóteses de vencer esta corrida, e atirou fora o escudo, lançando-se para a
passagem que se estreitava. Por cima do portão, Macro e os outros debruçavam-se, gritando-lhe encorajamentos desesperados. Cato saltou sobre as formas imóveis dos
prisioneiros que tinham morrido dos ferimentos, a cabeça baixa, as botas a baterem com força na terra batida do caminho. Uma sombra silvou junto à sua cabeça e,
uma dúzia de passos adiante, uma lança espetou-se no chão.
- Vá, Cato! - Berrou Macro. - Estão mesmo atrás de ti!
292

Olhou para cima, viu que estava quase no portão, mas apercebeu-se do perigo e desviou-se. Uma lâmina de espada atravessou o ar e mergulhou no solo, enquanto o homem
que a lançara proferia uma maldição. Cato lançou-se para a frente, pela abertura que lhe tinham deixado, e rebolou pelo solo, já do lado de dentro. Os legionários
imediatamente empurraram o portão, mas o homem que tinha tentado atingir Cato com a espada ficou preso entre as portas. Com um som horrível o crânio do homem foi
esmagado; um legionário atirou o corpo para fora e o portão foi trancado. Os barulhos que os inimigos faziam do lado de fora testemunhavam bem a raiva e frustração
que sentiam, enquanto Cato, de gatas, tentava recuperar o fôlego.
- Cato? - Macro chamou-o. - Estás bem?
Cato acenou com a mão.
- Óptimo! Então vem até cá acima e ajuda-me a tratar do ninho de vespas que atiçaste!

XXXVII
- Levem os feridos para o salão! - Ordenou Cato, forçando-se a subir de novo a escada para se juntar a Macro. Os guardas de Vérica usavam os corpos para proteger
o rei enquanto Cadmínio o ajudava a regressar à maca.
- E quanto a este, senhor? - Perguntou Mandrax, acenando na direcção do príncipe atrébate, ensanguentado e cheio de nódoas negras, que gemia no solo, junto ao estandarte
do Lobo.
Cato espreitou por cima do ombro.
- Leva-o para o salão. Amarra-o bem. Não deve ser molestado, entendes?
Com ar desapontado, Mandrax encorajou Tincómio com a ponta do estandarte.
- Tu, de pé.
Cato não dedicou ao traidor nem mais um pensamento, enquanto furava por entre os guardas reais, a caminho da paliçada. De ambos os lados, legionários e nativos da
Coorte dos Lobos atiravam tudo o que tinham à mão aos Durotriges comprimidos na rua em baixo. Poucos projécteis faziam o caminho inverso, já que a falta de espaço
no meio da massa de guerreiros impedia que alguém conseguisse realizar um bom lançamento, fosse de uma pedra ou de uma lança. Por isso, muitos mais homens tombavam
do lado de fora do portão do que do lado de dentro.
- Estes nunca aprendem. - Gritou-lhe Macro ao ouvido.
- Aprendem sim. - Replicou Cato, ainda mal refeito da sua corrida. Levantou o braço e apontou. - Olhe para ali!
A curta distância pela rua abaixo existiam várias ruelas que conduziam ao interior do labirinto de cabanas que se acumulava junto ao recinto real. Os durotriges
penetravam por esses estreitos caminhos e desapareciam de vista. Macro virou-se para Cato.
- Eu trato das coisas por aqui. Vê se descobres onde vão dar aqueles

becos, e se cobres todas as possíveis vias de aproximação à paliçada.
- Sim, senhor! - Cato virou-se e pegou no guerreiro nativo que lhe estava mais próximo. - Alguma daquelas ruelas passa perto da muralha?
- Algumas, possivelmente, senhor.
- Possivelmente? - Cato lançou-lhe um olhar frio, tentando refrear a fúria. - Bom, muito bem, chama uns homens, dos que não estão no portão, e manda-os para a paliçada.
Quero-os espaçados regularmente. E nenhuma zona sem vigilância. Percebido?
- Eu - penso que sim, senhor. - O homem estava exausto.
Cato agarrou-o pelos ombros, e gritou-lhe na cara.
- Percebes?
- Sim, senhor.
- Então vai!
Enquanto o guerreiro se afastava para cumprir as ordens que recebera, Cato foi andando pelo estreito passadiço até se afastar do portão, e continuou a fazer a circunferência
do recinto. Já o tinha feito umas horas atrás, para tentar esquecer o espectáculo montado por Tincómio, e para se assegurar de que as sentinelas estavam atentas
a qualquer sinal de perigo. Uma aproximação indirecta à paliçada não era só uma possibilidade; era uma certeza. Uma vez que a última tentativa de Tincómio para conseguir
uma rendição rápida tinha falhado, aos Durotriges não restava outra alternativa senão lançar um assalto final. Algures no meio das linhas quebradas dos telhados
de colmo, o inimigo procurava encontrar uma forma de ultrapassar a muralha.
Enquanto Cato se apressava ao longo do passadiço, reparou que a maior parte das construções não se apoiavam directamente no recinto real, e que havia um espaço de
cinco ou seis passos entre as rústicas paredes e a linha de toros que se estendia ao longo do perímetro. Mas, como era habitual com os Celtas, a regra parecia ter
sido esquecida ao fim de algum tempo, e os novos edifícios, e os anexos dos antigos, já se encostavam à paliçada. O fosso defensivo há muito que tinha sido preenchido
com lixo, e ossos e cacos de louça salientavam-se sobre o solo fedorento que o ocupava. Muitas das cabanas situavam-se no interior de pequenos cercados individuais,
delimitados por muros de vime, com redis vazios nos quais tinham sido mantidos animais, antes do período de fome que estava a ser atravessado. Não levaria muito
tempo ao inimigo para encontrar um caminho que levasse à paliçada e, onde quer que surgissem, seria difícil aos defensores reunirem forças para enfrentar a ameaça
a tempo de evitar que os Durotriges trepassem pelos muros baixos. Se conseguissem atacar em vários pontos ao mesmo tempo, não haveria possibilidade de os deter,
apercebeu-se Macro. Os Durotriges irromperiam pela paliçada e tomariam o recinto antes que

se pudesse organizar uma resposta. Os Romanos e os Lobos seriam aniquilados, a menos que conseguissem alcançar o reduto à entrada do grande salão. E daí não haveria
recuo possível, aí teriam que lutar até à morte.
Cato desviou-se para deixar passar Mandrax, que liderava um pequeno grupo de guerreiros. O porta-estandarte designou uma posição a um dos homens, e os outros continuaram
a correr. O centurião olhou em volta e compreendeu que a cortina defensiva era demasiado ténue. Junto ao portão, por enquanto, Macro e os legionários aguentavam-se.
Mas os Durotriges tinham trazido escadas e, enquanto observava, Cato viu duas traves paralelas desenharem um arco e apoiarem-se na paliçada, para logo em seguida
serem desesperadamente empurradas pelos defensores.
- Aí vêm eles!
Cato virou-se e viu um dos Lobos, próximo dele, a apontar para o exterior. Em baixo, um grupo de Durotriges tinha irrompido por um chiqueiro e lançava-se contra
a paliçada. Um dos homens já estava a ser empurrado pelos seus camaradas, e as mãos dele tentavam alcançar o cimo dos troncos. Logo a seguir, a curta distância,
mais inimigos surgiram entre as cabanas e encaminharam-se para a muralha.
- Lobos! A mim! - Gritou Cato, desembainhando a espada. - A
mim!
Correu ao longo do passadiço para se juntar à sentinela que tinha dado o alarme. Alguns dos seus homens acorriam, do outro lado. O primeiro dos Durotriges tinha
chegado ao topo da paliçada e esforçava-se por fazer o corpo transpô-la. Antes que o homem conseguisse lançar a perna sobre o muro, a sentinela atirou-lhe a lança
à garganta, e o homem tombou, agarrado ao pescoço com as duas mãos, enquanto o sangue jorrava sobre os seus camaradas. A vingança foi quase imediata, já que vários
dardos foram enviados em resposta. O defensor levantou o escudo para proteger a cara e conseguiu desviar o primeiro míssil, mas ao fazê-lo expôs o ventre, e dois
dardos atingiram-no simultaneamente no estômago, fazendo-o cair do passadiço para o chão do recinto com a força do impacto. Antes que algum dos outros defensores
chegasse ao local, já outro guerreiro inimigo trepava pela paliçada, e assim que o conseguiu pôs-se de pé, de escudo levantado e espada preparada para atacar.
Olhou para ambos os lados e, vendo que era Cato o mais próximo, soltou um grito de guerra e atirou-se contra o centurião. Enquanto o homem corria na sua direcção,
pareceu a Cato que o tempo passava mais devagar, e foi capaz de se aperceber de cada ruga enlameada na terrível expressão do homem. Era jovem, e tinha uma constituição
de touro, mas com demasiada gordura espalhada pelo corpo. As madeiras do passadiço estremeciam e rangiam sob o seu peso enquanto ele corria para o Romano.
296

Cato cerrou os dentes e acelerou o seu próprio passo. As diferenças de altura e peso jogavam claramente a favor do guerreiro inimigo, e ele mostrou os dentes num
sorriso selvagem quando se preparou para o embate. Mesmo no último instante, Cato atirou-se contra a paliçada, colocando o escudo num ângulo contra o homem que se
precipitava sobre ele. Incapaz de alterar o seu movimento tão depressa, o inimigo embateu pesadamente no escudo e desequilibrou-se na ponta do passadiço. Vacilou
por instantes, balançando o braço com a espada numa tentativa de recuperar o equilíbrio. Cato espetou a espada nas costas do homem e, firmando o pé na carne nua
e escorregadia de suor, empurrou-o para o vazio. A colisão tinha-o deixado sem fôlego e quando se virou, ofegante, viu que mais dois homens tinham ultrapassado a
paliçada e que um se preparava para o enfrentar, enquanto o outro se encaminhava para o pequeno grupo de Lobos que se aproximava. Para lá do seu adversário, Cato
avistou outro grupo de defensores combatendo um segundo grupo de Durotriges, espetando qualquer homem que fosse suficientemente temerário para tentar pular a paliçada.
Cato fixou o olhar no seu novo oponente - um Celta moreno, mais velho e mais prudente que o seu companheiro sedento de sangue. Aproximou-se do centurião com um passo
firme, e depois agachou-se, equilibrando-se nas plantas dos pés, a espada erguida e de lado, pronto para um golpe à cabeça ou ao corpo. Este, compreendeu Cato, não
ia cair no mesmo truque que o amigo. Quando não estava a mais de dez passos de distância, o centurião soltou um rugido repentino e carregou.
O guerreiro esperava um ataque mais subtil e calculado, e o ataque selvagem apanhou-o de surpresa. O pesado escudo atingiu-o e derrubou-o. Cato pisou-lhe a face
quando correu sobre ele e lhe cravou a espada no peito. Não foi um golpe fatal, mas chegou para o manter fora de combate pelo tempo de que Cato necessitava. O guerreiro
Durotrige grunhiu quando a espada se torceu entre as suas costelas e o fez perder o ar. Depois desapareceu, caindo para lá de Cato, enquanto este se dirigia já ao
homem que a seguir tinha ultrapassado a paliçada. Ainda se estava a esticar para pegar na lança quando Cato o atacou, e mal teve tempo para fazer uma cara de surpresa
antes da ponta da espada o atingir no olho e lhe penetrar no crânio até ao cérebro. Cato retirou a lâmina e, inclinando-se, atacou os braços que se projectavam para
o topo da paliçada. A espada penetrou profundamente num ombro, e outro homem tombou. Ninguém quis tomar-lhe o lugar, e os inimigos mais afastados prepararam-se para
lançar os seus dardos contra o centurião. Cato mal conseguiu baixar a cabeça a tempo quando as escuras hastes se precipitaram sobre a paliçada.
Quatro dos seus homens, dobrados, correram na sua direcção pelo passadiço.

- Acabem com esse. - Cato apontou para o inimigo mais velho, agarrado à ferida no peito. Uma espada faiscou e cortou-lhe a garganta. Morreu com um ruído borbulhante,
tombando lentamente para o chão, onde ainda lutou um momento, tentando levantar-se, até que as forças o deixaram. Cato viu-o a morrer, forçado como estava a manter-se
agachado pela contínua chuva de mísseis inimigos.
- Senhor!
- O que é? - Assustou-se, distraído pelo sentimento de culpa, e desviou os olhos do homem morto. Um dos guerreiros nativos apontava por sobre o seu ombro.
- Ali, senhor!
Cato olhou e viu uma mão que se lançava sobre a paliçada, vinte passos adiante. Depois de distraírem os defensores com uma barragem de mísseis, os atacantes tinham
simplesmente alterado o local escolhido para o ataque.
- Venham! - Disse Cato, correndo agachado para enfrentar a nova ameaça. Mas já era tarde demais. Viu que o inimigo já estava deste lado da paliçada, isolando-o do
grupo de Mandrax. Três homens estavam no passadiço, e saltaram para o chão do recinto, sendo imediatamente substituídos por outros que saltavam a paliçada. Cato
apercebeu-se de que havia três escadas apoiadas na muralha, e que os homens se sucediam nos seus degraus. A luta pela paliçada estava portanto terminada. Parou e
virou-se para os seus homens, agarrando o ombro do mais próximo.
- Tu! Volta para junto de Macro. Diz-lhe... Mostra-lhe apenas o sítio onde eles estão a passar a muralha. Ele saberá o que tem de fazer.
- Sim, senhor. - O guerreiro passou pelos seus camaradas e correu na direcção do portão.
- Vamos. - Disse Cato aos outros, e saltou do passadiço. Ordenou aos Lobos que se dirigissem ao reduto, e enquanto eles corriam pelo recinto na direcção do salão,
Cato aproximou-se dos Durotriges que se apinhavam debaixo do local onde tinham pulado a paliçada. Um deles avistou o centurião e deu um grito, avisando os companheiros.
Cato parou e gritou por cima das cabeças dos inimigos.
- Mandrax! Mandrax!
Por trás dos Durotriges, Mandrax olhou em redor e apercebeu-se do perigo.
- Recuem! - Gritou Cato, e indicou o grande salão com um gesto da espada.
Dado o aviso, o centurião virou-se e correu. Não tinha ido longe quando os Durotriges soltaram um grito ensurdecedor e carregaram pelo terreiro. Cato lançou uma
espreitadela sobre o ombro e ficou instantaneamente

com toda a terrível cena impressa na mente. Os inimigos passavam , agora a paliçada em vários locais, e todos os sobreviventes da Coorte dos Lobos fugiam para o
reduto. No seu seio, acima das cabeças e das pontas das lanças, seguia o estandarte com a cabeça de lobo pintada de dourado. Os Durotriges já tinham alcançado alguns
dos feridos, mais lentos, e assanhavam-se sobre eles, derrubando-os e golpeando-os no solo. Mais à esquerda, Macro tinha compreendido que a paliçada estava perdida
antes mesmo que a mensagem de Cato o alcançasse, e os legionários já abandonavam o portão e saltavam para o chão do recinto.
Cato voltou a olhar para a frente e correu pela sua vida, baixando instintivamente a cabeça para a colocar entre as protecções de ombros da armadura, enquanto os
gritos dos Durotriges se erguiam a curta distância atrás dele. À sua frente estava o apressado trabalho de fortificação do reduto; a entrada estava colocada num
dos lados, onde um pesado vagão tinha sido colocado em posição que permitisse o acesso. Os homens já se concentravam naquele ponto, lançando olhares aterrorizados
aos inimigos que os perseguiam. À medida que se aproximava da última linha de defesa possível, gritou aos homens que tentavam desesperadamente entrar no reduto.
- Lobos! Lobos! Voltem para trás, e formem junto ao estandarte! O estandarte!
Alguns dos homens ouviram-no e fizeram meia-volta, erguendo os escudos e preparando as espadas para a acção. Outros ficaram a ver, de olhos esbugalhados, demasiado
assustados para pensar noutra coisa que não a fuga. Mandrax, de pernas compridas e em perfeita forma, alcançou o reduto antes de Cato e virou-se para enfrentar o
inimigo, cravando o estandarte no solo, em desafio. Os homens precipitaram-se para as suas posições dos dois lados do estandarte, e cerraram fileiras. Quando Cato
os alcançou já havia uma linha, pequena mas sólida, entre os homens que se refugiavam no reduto e os Durotriges. Os que não tinham conseguido alcançar local seguro
antes que estes os apanhassem morreram enquanto tentavam escapar, ou pararam e tentaram defender-se, e foram rapidamente abatidos pelos números superiores do inimigo.
Mas ainda assim conseguiram um tempo precioso para os seus camaradas, e a rmaior parte dos defensores conseguiu por isso alcançar o reduto, passando por um e outro
lado da pequena formação de Cato.
Quando os primeiros Durotriges embateram contra a linha de escudos retrocederam, olhando com cautela para o Romano e as suas tropas nativas, e procurando em volta
presas mais fáceis. Pondo-se em bicos de pés, Cato esticou o pescoço para tentar perceber o que tinha sucedido a Macro e aos legionários que o acompanhavam. Então
avistou-os, um grupo apertado de homens marchando na direcção do grande salão, por trás de
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uma cadeia de escudos sem brechas, a crista do capacete de Macro subindo e descendo na frente da formação, à medida que ia abrindo caminho por entre a turba de Durotriges,
gritando encorajamentos aos seus homens e insultos aos inimigos. De súbito, Cato apercebeu-se de que os Durotriges, tendo aniquilado todos os retardatários, se concentravam
na sua frente. Estavam a vinte passos, batendo com as lanças contra o interior dos escudos e entoando os seus gritos de guerra, as faces distorcidas pela excitação
selvagem do combate. Cato percebeu que os homens à sua volta estavam a ser afectados pela exibição inimiga.
- Mantenham a posição! - Gritou, a voz reduzida a um som rouco pelos esforços dos últimos dias. - Mantenham a posição!
Olhou de relance para os legionários que continuavam a abrir caminho pela confusão que reinava no interior do recinto. Os Durotriges chegavam agora de todas as direcções
e alguns, com maior presença de espírito do que os seus selvagens companheiros, tinham retirado a tranca do portão. Sob a pressão dos guerreiros comprimidos na rua
do lado de fora, os portões cederam e, com um urro de triunfo, o inimigo penetrou em força no recinto real. A não ser que Macro acelerasse, os Romanos seriam apanhados
antes de chegarem ao reduto. Cato olhou para os seus homens.
- Aguentem! Só mais um bocado, rapazes.
Uma lança foi atirada do grupo de Durotriges que se concentrava em frente ao salão, e Cato lançou o escudo para cima mesmo a tempo de bloquear a ponta de ferro.
Com o barulho de algo a rasgar, a cabeça do míssil atravessou a faixa de cabedal do escudo, passando mesmo ao lado do seu capacete. Um grito de júbilo soltou-se
da massa de Durotriges, celebrando o guerreiro que quase tinha conseguido trespassar um centurião romano. O escudo imediatamente se tornou difícil de manejar e mais
pesado, e Cato amaldiçoou a sua sorte. Quando o inimigo se aproximasse, um escudo era tão vital como uma espada, mas com a haste do dardo lá espetada, aquele já
não tinha grande utilidade. Gritou sobre o ombro:
- Arranjem-me um escudo!
Os Durotriges que se encontravam suficientemente perto para escutar a ordem gozaram com ele, e aqueles que lutavam sem armadura exibiram os peitos nus com desprezo.
O incidente tinha fortalecido o espírito dos Durotriges daquela forma indefinível em que os sentimentos flúem através de uma multidão, e era claro que eles iam carregar
a qualquer momento.
- Senhor! - Gritou uma voz por trás dele, e Cato espreitou sobre o ombro. Mandrax estendia-lhe um escudo.
- De quem é?
- De um dos mortos, senhor.
- Muito bem, então... - Cato observou rapidamente a frente da força

inimiga: todos festejavam, as espadas e as lanças erguidas para o céu.
Atirou o seu escudo para a frente, virou-se e pegou no que Mandrax lhe oferecia, erguendo-o rapidamente em frente ao corpo. Macro e os seus homens continuavam a
avançar para o reduto, atacados por todos os lados. Um bater regular de espadas e pontas de lanças contra os escudos dos legionários acompanhava o seu progresso.
Os inimigos que encaravam Cato viraram-se para a origem deste som, e os seus gritos esmoreceram. Aqui estava uma oportunidade, decidiu Cato, o coração acelerado.
- Preparem-se para carregar. - Avisou, em voz baixa para que só os Lobos o ouvissem. - E façam barulho! - Permitiu que os homens se preparassem com algumas inspirações
profundas, e depois gritou. - À carga!
Cato soltou um urro como um animal selvagem, e os gritos e brados dos seus homens encheram-lhe os ouvidos quando os Lobos avançaram. Os Durotriges viraram-se outra
vez para o pequeno grupo de homens que estavam a preparar-se para massacrar, com choque e surpresa nos rostos, e ainda não se tinham mexido quando Cato e os Atrébates
os atingiram. Vários foram abatidos antes de poderem oferecer resistência. Cato lançou a bossa do seu escudo contra as costelas de um homem magro, que grunhiu e
se abateu no solo, tentando respirar. O centurião aplicou-lhe um pontapé na face para resolver o assunto e passou-lhe por cima, golpeando o inimigo que a seguir
se colocou ao seu alcance. A espada foi bloqueada no último momento, mas a torção desesperada contra a lâmina do Romano deixou o flanco do guerreiro inimigo exposto
ao Atrébate que seguia ao lado de Cato, e este aplicou-lhe um golpe que lhe expôs as tripas.
Os Lobos encarniçaram-se sobre o inimigo, gritando e urrando enquanto espetavam e cortavam com os seus gládios. Criaram uma cunha na formação dos Durotriges, e antes
que estes pudessem ripostar tinham forçado a passagem até Macro e os seus legionários.
- Cerrar fileiras! - Ordenou Cato. - Mandrax! Comigo!
Enquanto as duas unidades se juntavam, Macro acenou a Cato, mas o
centurião mais jovem sabia que não tinham tempo a perder.
- Senhor, temos que regressar ao reduto antes que eles recuperem.
- Certo. - Macro virou-se para olhar na direcção do portão. Uma massa densa de guerreiros durotriges avançava para eles. Macro virou-se para os seus homens. - Em
corrida... avançar!
Cato reproduziu a ordem para os seus homens e, liderada por estes, a pequena coluna apressou-se na direcção do reduto, sem tentar sequer parar e enfrentar os surpresos
inimigos, e preocupando-se apenas em evitar os golpes dos mais intrépidos dos Durotriges. Mas, mais atrás, a força que tinha irrompido pelos portões corria para
alcançar os defensores. O exemplo destes reforços contagiava os restantes, e um renovado desejo de atacar e

destruir os Romanos e os seus aliados espalhava-se pelos guerreiros inimigos no recinto real.
Os homens que já tinham conseguido alcançar o reduto gritavam aos seus camaradas por trás das fortificações, chamando-os com gestos desesperados. Cato, na frente
da coluna, sentia-se tentado a acelerar o passo, mas sabia que no momento em que a formação abrisse uma brecha seriam desfeitos, uma vez que o inimigo tinha recuperado
a coragem e se lançava de novo sobre eles. Nessa altura, chegaram mesmo à frente do grande salão, e encaminharam-se para a estreita abertura que conduzia ao interior
do reduto.
- Lobos! - Gritou Cato, desviando-se para o lado. - Comigo!
Os seus homens formaram de novo junto a ele, e os legionários correram, ultrapassando-os, ofegantes, enquanto o seu equipamento pesado chocalhava ritmicamente. Mesmo
atrás deles vinham os mais rápidos dos Durotriges que tinham entrado pelo portão, sedentos de uma oportunidade para se vingarem dos homens que tantas baixas lhes
tinham causado a partir da paliçada. Os últimos dos homens de Macro tinham-se virado para enfrentar a ameaça, e recuavam tão depressa quanto conseguiam, sem poderem
verificar onde punham os pés enquanto se defendiam dos ataques inimigos com os largos escudos. Assim que os seus homens formaram em linha, Cato olhou em redor e
verificou que a maior parte dos legionários já tinham entrado para o reduto. Só o pequeno grupo da retaguarda ainda não o tinha conseguido, e continuava a lutar
passo a passo para atingir esse objectivo.
Cato limpou a garganta.
- Mantenham a posição! Esperem até que o último legionário tenha passado.
Assim que a retaguarda ficou à altura dos seus homens, Cato deu ordem de recuo, e o grupo compacto de Romanos e Atrébates dirigiu-se lentamente para a entrada do
reduto, usando constantemente as espadas e os escudos para impedir os ataques do inimigo. Os Durotriges sentiam a proximidade da vitória, e lutavam desesperadamente
para aniquilar os últimos defensores de Caleba. Lançaram-se portanto sobre Cato e os seus homens com uma ferocidade sem limites, cortando, golpeando, pontapeando
e até dando cabeçadas nos escudos que se opunham à sua ânsia de destruir. O último dos legionários recolheu finalmente ao reduto, e foi a vez dos Lobos passarem
aos poucos pela estreita abertura, até que só Cato, Mandrax e mais uns poucos estavam no exterior.
- Leva o estandarte para dentro!
Mandrax desferiu um golpe no homem que o enfrentava, que recuou, e então o estandarte desapareceu no interior da fortificação, deixando Cato
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e outro homem a enfrentar as intermináveis fileiras de faces pintadas e cabelos gordurosos. Por trás deles, Macro surgiu no limite das defesas.
- Cato! Corre, miúdo!
Enquanto lançava o escudo para a frente, o jovem centurião gritou ao homem que o acompanhava para recuar. O guerreiro nativo, levado pela febre da batalha, não obedeceu
e atacou o inimigo mais próximo, esmagando-lhe o alto do crânio. O seu grito de triunfo nem chegou a aflorar-lhe os lábios, porque uma lança lhe trespassou a cabeça,
entrando pela boca e saindo pela nuca, numa massa de sangue, osso e cabelo que lhe fez cair o capacete. Cato usou o corpo do outro para se proteger e correu para
a abertura.
- Fechem isso! - Gritou Macro, e os homens que aguardavam por trás do vagão empurraram-no. Os eixos gemeram quando as rodas maciças troaram na direcção da sólida
parede de pedra do grande salão. Um dos Durotriges conseguiu introduzir-se pela abertura, mas hesitou ao aperceber-se do vagão. Virou-se, mas foi apanhado e esmagado
contra a pedra quando o carro chocou contra a parede, encerrando a abertura. Assim que o veículo se imobilizou, cestos de verga cheios de terra foram empurrados
para debaixo dele, para impedir o inimigo de tentar movê-lo ou penetrar por baixo.
Apesar da maior parte dos legionários e dos guerreiros nativos terem conseguido alcançar a protecção do reduto, o combate estava longe de chegar ao fim. Os Durotriges
lançaram-se imediatamente ao ataque das fortificações, empunhando lanças e espadas e tentando alcançar os homens que as defendiam lá de cima. Macro tinha escolhido
a dedo os defensores e, sob a protecção dos materiais improvisados e dos seus grandes escudos, os legionários mantiveram o inimigo à distância. Alguns dos Durotriges
tentaram escalar pelos lados dos vagões, mas foram rapidamente rechaçados e caíram, mortos ou moribundos, sobre os seus camaradas.
No interior do reduto, Macro olhou para os homens que defendiam aquele semi-círculo que protegia a entrada do grande salão, e sacudiu a cabeça em sinal de satisfação.
Para já, pelo menos, podiam aguentar a investida inimiga, e ele tinha tempo para tratar dos homens e ponderar a situação. À sua volta estavam o resto dos seus legionários
e os homens de Cato, exaustos e, quase todos, feridos; alguns não tinham mais que feridas superficiais, mas outros apresentavam ferimentos profundos que requeriam
atenção. Um dos homens já não tinha salvação; tinha sido atingido no ventre por uma lança e estava sentado, pálido e a suar, com as mãos sobre a ferida, para evitar
que os seus intestinos se espalhassem.
Macro aproximou-se de Cato, que se apoiava nas costas de um vagão enquanto recuperava o fôlego.

- Esta foi por pouco. - Disse em tom tranquilo.
Cato levantou o olhar e assentiu.
- Estás ferido. - Macro apontou para a perna do jovem centurião. Cato moveu-a para a frente e reparou que a barriga da perna tinha sido rasgada. Só se tinha apercebido
de um impacto quando se tinha virado e corrido pela abertura. Agora que via o sangue a escorrer pela parte de trás da perna e pela bota, a ferida começava a doer.
- Liga isso. - Ordenou Macro. - O médico está logo à entrada do salão. Assim que te tiver despachado, manda-o cá para fora para tratar dos outros.
- Sim. - Cato olhou em redor do reduto, vendo as costas dos homens que se esforçavam por conter os Durotriges.
Macro sorriu.
- Está tudo bem, miúdo. Posso dispensar-te por uns minutos. Vai
lá.
Cato ergueu-se e caminhou rigidamente até à entrada do salão. Parou na ombreira para dar uma última olhadela em redor; Macro encontrou-lhe o olhar e apontou o salão
com o dedo. Cato entrou.
O contraste entre o sol da tarde lá fora e o interior sombrio era gritante, e a princípio ele teve dificuldade em perceber as formas; mal se apercebia dos vultos
que se movimentavam sobre o solo coberto de juncos. Quando os seus olhos se habituaram à penumbra, compreendeu que o chão estava repleto de feridos, atendidos pelo
médico e pelos escravos da casa de Vérica. Mas pouco podiam fazer para além de ligar feridas e confortar os moribundos. O médico levantou o olhar e quando avistou
Cato ergueu-se e aproximou-se rapidamente.
- Está ferido, senhor?
- A perna. Liga-a.
O médico ajoelhou e examinou com cuidado a ferida.
- Está mau. Mas parece limpa, pelo menos. Muito sangue. Sente-se tonto?
Ao olhar em redor e ver as terríveis feridas que alguns dos homens tinham sofrido, Cato sentiu-se culpado e envergonhado pela atenção que estava a receber.
- Senhor? - O médico olhava para ele. Tinha retirado um rolo de linho da mochila e enrolava-o agora em torno da perna de Cato.
- O quê?
- Como se sente?
- Vou sobreviver. - Cato sorriu para si mesmo. Pouco importava como se sentia. Estava praticamente morto, de qualquer maneira. Todos eles estavam, e no entanto ali
estava o médico a trabalhar como se houvesse

realmente alguma hipótese de os seus pacientes poderem recuperar. Sentiu vontade de rir e teve que lutar para não entrar em histeria. O médico tinha dito mais alguma
coisa, e parecia estar à espera de uma resposta. Cato encolheu os ombros e mudou de assunto. - Onde está o rei?
- Nos seus aposentos. Mandei-o descansar.
- E como está ele?
- Vai andando, senhor. Mas passava bem sem esta excitação toda.
Desta vez Cato não conseguiu conter uma risada, e o médico olhou-o
com uma expressão preocupada.
- Senhor, acho que se devia sentar um bocado.
- Não. Tenho que falar com o Cadmínio.
- Ele está ali, senhor. - O médico apontou para o fundo do salão, onde o capitão da guarda e alguns dos seus homens defendiam a entrada das traseiras, que dava para
o recinto de treinos. A pesada porta de madeira tinha sido fechada e tábuas tinham sido pregadas sobre ela. Do outro lado ouviam-se pancadas regulares. Cato deixou
o médico e encaminhou-se para Cadmínio, escolhendo o caminho por entre os feridos.
- Como é que estão as coisas? - perguntou Cato em céltico, tentando parecer mais calmo e confiante do que se sentia realmente.
Cadmínio voltou-se bruscamente para ele.
- Vão levar algum tempo até conseguir entrar por aqui. Era preciso um aríete para rebentar com aquela porta.
- Provavelmente já estão a pensar em alternativas, a esta hora.
-É provável... Entretanto podíamos atirar-lhes a cabeça do Tincómio, eles que a usassem se quisessem.
- Tincómio? Onde é que ele está?
- Em segurança. - Cadmínio sorriu. - Atámo-lo com muito cuidado, as mãos e os pés. Não vai fazer mais asneiras. Dei ordens para que acabassem com ele no minuto em
que um daqueles cabrões metesse o pé no salão.
- Bem feito.
- E como está a situação lá fora?
- Por enquanto estamos a aguentá-los.
- E daqui a bocado?
Cato riu e ergueu o dedo, antes de se virar para a entrada do salão.
- Até depois, Cadmínio.
Lá fora, a luz do sol obrigou-o a franzir os olhos. Os inimigos continuavam a bradar e a entoar os seus gritos de guerra, mas tinham-se afastado m pouco, e os legionários
mantinham-se atentos por trás das protecções improvisadas. Alguém tinha encontrado um armazém de lanças de caça, e quase todos os legionários tinham agora uma à
mão.

- Cato! Aqui! - Gritou Macro, empoleirado num vagão na muralha do reduto. Cato evitou os homens que repousavam pelo solo, e subiu para se juntar a Macro. Da pequena
elevação a vista revelava uma densa massa de Durotriges a uma distância facilmente transponível por um dardo. Mesmo à frente do reduto viam-se as pilhas dos mortos
e feridos provocados pelo primeiro assalto. Aqui e ali um homem mexia-se, alguns gritavam em agonia pelas terríveis feridas que tinham recebido, outros gemiam baixinho.
- Quantos perdemos? - Perguntou Cato em voz tranquila.
- Alguns. Mas eles sofreram muitas baixas, e parece que perderam um bocado a vontade de lutar.
Cato olhou para os Durotriges sem grande entusiasmo. Alguns dos guerreiros na linha da frente precipitavam-se para a frente, soltavam desafios contra as faces que
se alinhavam por trás das fortificações improvisadas, e depois recuavam.
- Parece que estão a preparar outra investida.
- Estaremos à espera. Como está a tua perna?
- Viverei.
- Oh, bom. É melhor prepararmo-nos. Tudo indica que vão lançar outro assalto. Quero-te ali no vagão a seguir a este. Mantém o pessoal atento. São os últimos legionários.
Tapa os buracos com os Lobos.
- Sim, senhor.
Cato saltou para o interior do recinto, recuperou o escudo e mandou os seus homens formar. Uma contagem rápida revelou que só dispunha de trinta e quatro. Era tudo.
Trinta e quatro homens, das duas coortes que ele e Macro tinham treinado e conduzido em combate. Os sobreviventes olhavam em frente, os olhos avermelhados, sujos
e muitos deles manchados de sangue, o deles próprios e o dos inimigos. Pareciam pedintes, fazendo lembrar a Cato os mendigos que vira quando criança, vagueando pelas
ruas mais esquecidas de Roma. Quando criança? Tinha sido há pouco mais de dois anos, recordou. Os dois anos passados nas Águias pareciam mais longos que o resto
da sua vida anterior.
Porém, aqueles homens não eram mendigos, e mantinham-se firmes por trás de Mandrax e do estandarte que este empunhava. Cato não fez qualquer tentativa de os incitar
a provar o seu valor, como os generais faziam nos livros de história. Disse-lhes apenas que ocupassem o lugar de qualquer homem que tombasse na defesa do reduto.
Então saudou-os e tomou posição num vagão à esquerda de Macro. À direita do centurião mais velho viu Fígulo, e retribuiu o cumprimento que este lhe enviara.
Macro soltou um grito:
- Aí vêm eles!

O inimigo agitou-se e avançou, e então um grito soltou-se das fileiras, e carregaram sobre o reduto.
- Aguentem! - Gritou Macro por cima do barulho. - Mantenham-nos lá fora!
Cato agarrou o escudo com mais força e apoiou-o na face interna das fortificações. Por sobre a margem do escudo viu como o inimigo avançava na sua direcção, um mar
de vestes em padrões quadriculados e de cabelos espetados. Aproximaram-se do reduto, trepando por cima dos corpos dos seus camaradas que tinham caído na primeira
investida. Alcançaram finalmente as defesas improvisadas e tentaram atingir os soldados que os defrontavam no cimo destas. As vantagens da elevação e do alcance
estavam do lado dos Romanos, e dezenas de Durotriges caíram devido aos rápidos movimentos das lanças. Cato só dispunha da sua espada, e teve que esperar por uma
oportunidade propícia. Então, mesmo abaixo dele, um homem lançou-se para a frente e agarrou-se com os braços à parte lateral do vagão em que Cato se mantinha. Outro
guerreiro trepou imediatamente pelas costas do primeiro e àtirou-se a Cato. O centurião lançou a bossa do escudo contra o ombro do bretão, e ele caiu para o lado.
Enquanto tombava conseguiu agarrar a haste da lança empunhada pelo legionário que combatia ao lado de Cato, arrancando-a das mãos do homem.
- Merda! - O legionário tentou empunhar a espada, mas não se apercebeu da lança que fora atirada de um dos lados. A ponta apanhou-o debaixo do queixo e trespassou-lhe
o pescoço, e a força do impacto lançou-o para trás, fazendo-o cair para a retaguarda do vagão.
- Um homem cá para cima! - Gritou Cato por cima do ombro.
-Já!
Assim que se abriu esta brecha na linha de defensores, um grupo de inimigos pressionou para aproveitar e ampliar a vantagem, e Cato viu-se a enfrentar três homens
com espadas, que tentavam atingi-lo. Encolheu-se por trás do escudo e devolveu-lhes os golpes e estocadas, num frenesim desesperado que pouco tinha a ver com o rigoroso
treino de espada que lhe tinha sido duramente ministrado pelos instrutores da legião. Teve um momento de sorte quando a sua espada alcançou os nós dos dedos de um
dos oponentes, esmagando os ossos da mão que segurava a espada. O homem gritou e caiu para o seio da massa de guerreiros que tentavam encontrar forma de penetrar
no reduto. Mas os seus dois companheiros eram mais prudentes, e enquanto um fingia atacar, o outro procurava uma oportunidade para ultrapassar o escudo do centurião;
só a superfície curva da sua armadura segmentada o salvou de um ferimento quando um golpe resvalou no seu peito. Mas nessa altura a brecha na defesa foi colmatada
pela
chegada de um Atrébate, que imediatamente mergulhou a sua espada num dos homens que tentavam abater Cato.
Por quanto tempo se prolongou o combate no reduto, Cato não fazia ideia. Não havia tempo para pensar; só o instinto permitia lutar e sobreviver. Enquanto espetava
e desviava com a espada, e bloqueava golpes selvagens com o escudo, Cato ia gritando encorajamentos aos homens que o rodeavam, e pedia substitutos sempre que reparava
que mais um tinha caído. Apesar de morrerem cinco ou seis Durotriges por cada defensor que era abatido, os atacantes podiam manter facilmente esse ritmo. De facto,
o aumento das suas baixas parecia ter o condão de fazer crescer o desejo de enfrentar os Romanos e os seus aliados Atrébates, e eles continuavam a pressionar com
cada vez maior intensidade, lançando-se sobre as defesas com tamanha genica que Cato conseguia sentir o vagão a mover-se sob os seus pés.
Quando o sol começou a descer para trás do grande edifício do salão, o reduto ficou na sombra, e a luz baixa iluminou o inimigo de tal forma que criou um enorme
contraste de claro e escuro, fazendo-os parecer ainda mais ferozes e audazes. Os braços de Cato estavam quase sem forças, e o desespero já mal chegava para se manter
em pé. Só uma vontade de ferro fazia com que o escudo se mantivesse erguido e com que a sua espada avançasse com o impulso suficiente para provocar uma ferida mortal.
Mas, por cada homem que ele fazia tombar na turba, outro tomava o seu lugar, com a mesma vontade implacável de aniquilar os defensores.
Então, estranhamente, Cato deu por si à espera do próximo adversário. Mas enquanto preparava o escudo e firmava o braço que já tremia, o mar de faces hostis à sua
frente tornou-se esparso, e depois uma espécie de maré arrastou os atacantes para longe do reduto. Um olhar em redor mostrou-lhe que os Durotriges retiravam em todas
as frentes. Os gritos de guerra calavam-se, e Cato olhou para o recinto e viu que eles se escapuliam pelo portão. Depressa só ficaram à vista os mais atrasados,
acelerando para se reunirem aos camaradas, e a extensão completa do campo de batalha revelou-se aos olhos de Cato. Centenas de inimigos jaziam no solo à frente do
grande salão, muitos ainda vivos, de forma que a confusão de corpos brilhantes de suor e sangue parecia contorcer-se sob o calor e a luz que desapareciam ao fim
daquela tarde de Verão. Cato olhou para Macro, e o centurião mais velho cerrou os lábios e encolheu os ombros.
- Bom, para onde diabo foram eles? - Lançou Fígulo em voz alta.
Os homens mantiveram-se nas posições defensivas, à espera do movimento seguinte do inimigo, ainda não se atrevendo a acreditar que este não regressaria. O chocalhar
das armas e equipamento dos Durotriges calou-se, e então só se escutavam os sons emitidos pelos feridos.
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- Cato!
- Sim, senhor!
- Contagem de efectivos, agora mesmo.
Cato assentiu, e saltou para o chão. Cambaleou por momentos sobre as pernas fatigadas, mas depois começou a contar os sobreviventes na parede defensiva, e o punhado
de homens que ainda estavam como reserva.
- Vêm aí outra vez! - Berrou um legionário, e Cato correu de volta à sua posição. Sob a luz diminuta, podiam-se ver figuras a atravessar os portões e a entrarem
no recinto.
- Mais um esforço, rapazes! - Gritou Macro, e até a sua voz fraquejou debaixo da tremenda tensão.
Cada um dos defensores empunhou com maior determinação o escudo e a lança, e preparou-se para o embate final. E então Cato desatou a rir - um som estridente, nervoso
-, baixou a espada e inclinou-se para a frente, para apoiar os cotovelos nas fortificações.
A passar pelo portão vinha agora um homem volumoso com uma capa vermelha. O sol fez reluzir o seu capacete polido, e sobre este via-se a curva de uma crista vermelha
e brilhante. O homem soltou uma ordem e as tropas espalharam-se ordenadamente pelos dois lados do portão, avançando cautelosamente pelo recinto, na direcção do salão.
Quando se aproximaram, os apurados olhos de Cato reconheceram o oficial.
- É o Centurião Hortênsio! - Cato ria, aliviando a tensão nervosa.
Hortênsio marchou até junto deles, batendo com a sua vara de videira na palma da outra mão.
- Macro e Cato. - Exclamou. - Devia ter adivinhado. Só vocês os dois é que podiam acabar numa porra duma confusão destas!

XXXVIII
- Não. - Foi a decisão de Vespasiano, enquanto olhava em redor e via as sombras que se alongavam sobre os cadáveres espalhados pela área do recinto real. - Está
fora de questão. Há aqui muito para fazer. Ficamos.
Cato e Macro trocaram um olhar repleto de ansiedade. Seria possível que o legado não se apercebesse do perigo em que se encontravam?
Logo a seguir a ter enviado os batedores para se certificar de que os Durotriges tinham abandonado as redondezas, Vespasiano conduzira a coluna de socorro através
das ruínas enegrecidas do portão principal de Caleba. Dirigira-se imediatamente para o depósito, para os restos calcinados do edifício do comando, e para o macabro
espectáculo do que tinha sido o hospital. Embora tivessem arrasado os edifícios romanos, os Durotriges mal tinham tocado nas reservas de víveres. A intenção devia
ter sido a de se banquetearem logo ali e de levarem tudo o que conseguissem, mas a repentina chegada do legado e das suas seis coortes tinha-os feito recuar em pânico,
e abandonar a capital Atrébate de mãos vazias.
Vespasiano dera ordens para que se iniciassem de imediato as reparações das defesas do depósito, e então, acompanhado pelo tribuno Quintílio, tinha-se dirigido ao
encontro da coorte do centurião Hortênsio, que fora enviada à frente para garantir a segurança do recinto real. Assim que avistara Macro e Cato, o legado tinha solicitado
que lhe fizessem um relatório pormenorizado.
? ? ?
- Senhor, não podemos manter-nos nesta posição. - Disse Cato.
- Não podemos? - Mesmo ao lado do comandante, Quintílio repetiu a afirmação do jovem com um sorriso de desprezo. - Centurião Cato, a verdade é que não nos podemos
permitir deixá-la. Até tu deves compreender a situação do ponto de vista estratégico... Vérica está à beira da morte.
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Os seus guerreiros, ou quase todos, já o precederam nessa via. O reino cairá nas mãos do primeiro que atravessar o portão que vocês os dois acharam por bem queimar.
Agora, só Roma poderá garantir a ordem nestas paragens.
Cato colocou a mão atrás das costas e cerrou o punho, sentindo as unhas a cravar-se na palma. Irado e exausto como estava, precisava, naquele momento, de toda a
sua argúcia.
- Senhor, se perdermos estas seis coortes e um legado, não haverá nenhuma situação estratégica com que tenhamos que nos preocupar... será a derrocada.
- Francamente! - O tribuno riu-se e virou-se para Vespasiano. - Senhor, julgo que este jovem enfrentou situações muito difíceis nos últimos dias. É perfeitamente
natural que o seu medo do inimigo esteja exacerbado.
Foi demais para Macro. O seu pescoço maciço avançou.
- Medo? Cato com medo? Não foi ele que se raspou assim que eles nos fizeram umas festinhas.
Vespasiano apressou-se a colocar-se entre os dois homens, e levantou a mão, falando num tom urgente e baixo.
- Meus senhores, chega! Não admito que os meus oficiais discutam à frente dos homens.
- Ainda assim - continuou Quintílio, em voz baixa -, não posso tolerar que um mero centurião sugira que sou um cobarde. Eu fui em busca de auxílio.
- De facto. - Macro fez um sorriso trocista. - E não sugeri que fosse um cobarde... senhor.
- Basta! - Vespasiano voltou a impor a ordem. - Centurião Cato, da maneira como as coisas se passaram, julgo que podemos esquecer o que Tincómio disse, fosse o que
fosse. Não seria a primeira vez que ele enganava um oficial romano.
Quintílio cerrou os lábios.
Se não estivesse tão completamente exausto, Cato teria com certeza abordado o comandante da Segunda Legião com maior tacto; mas sentia que tinha que lhe mostrar
a seriedade da situação.
- Senhor, ele afirmou que Carátaco e o seu exército alcançariam Caleba amanhã. Se nessa altura não estivermos já distantes da cidade...
- Centurião, a minha decisão está tomada. Ficamos aqui. Enviarei os batedores assim que alvorecer. Eles avisar-nos-ão se algum inimigo se aproximar.
- Poderá ser demasiado tarde, senhor.
- Vê se entendes, esse Tincómio é um mentiroso. Enganou-te.


- Enganou-nos a todos, senhor.
- É verdade. E assim, porque haveríamos de acreditar nele agora? Como é que tens a certeza de que ele disse a verdade? Bom, vamos então imaginar que ele não mentiu.
Duvido que Carátaco se conseguisse escapulir ao General Pláucio. A retaguarda do seu exército teria que vir a combater todo o caminho. Teria mais razões para nos
temer do que nós a ele. Não, isto não era mais do que um plano do Tincómio para vos levar à rendição. Com certeza que podes entender que foi isso que se passou.
Macro baixou o olhar, para esconder a irritação que sentiu perante a acusação velada de que tinham sido levados com demasiada facilidade.
Cato persistiu:
- Mas, senhor, e se ele disse a verdade? Seríamos apanhados aqui em Caleba, e destroçados. Vérica seria morto, o trono entregue a Tincómio, e os Atrébates mudariam
de campo.
Vespasiano lançou-lhe um olhar frio.
- O comandante de uma legião não se pode deixar governar por hipóteses histéricas. Preciso de provas.
Observou de perto os dois centuriões.
- Nesta altura, vocês os dois, e os vossos homens, precisam de descanso, acima de tudo. Ordeno-vos que vão dormir, imediatamente.
Era uma forma fácil e brusca de pôr termo à discussão, mas Vespasiano já tinha tomado uma decisão, e não toleraria que ela continuasse a ser posta em causa. Ainda
assim, enquanto Macro fazia a saudação e se virava para deixar a presença do comandante, Cato fez uma última tentativa.
- Senhor, o preço a pagar por esse sono pode ser a derrota e a morte, amanhã.
Vespasiano, que não dormia há mais de dois dias, perdeu de todo a paciência, e irritou-se seriamente, apontando o dedo ao subordinado.
- Centurião! Não te cabe discutir as minhas ordens! Mais uma palavra, e voltas a ser um mero legionário. Agora, desaparece.
Cato fez uma saudação, virou-se e marchou de forma rígida até alcançar Macro e se dirigirem juntos para o local em que os seus homens descansavam, no exterior do
reduto. Muitos dormiam, encolhidos, os braços a servir de almofada.
- Isso não foi lá muito esperto da tua parte. - Disse Macro calmamente.
- Ouviu o que o Tincómio disse . Porque é que não me apoiou?
Macro respirou fundo, para deixar passar a momentânea irritação
que lhe provocara o oficial mais jovem.
- Quando um legado toma uma decisão, nós não a discutimos.
- Porque não?

- Porque não, porra! Percebido?
- Amanhã por esta hora digo-lhe.
Cato deixou-se cair junto a Mandrax, que ressonava ruidosamente, encostado a uma roda, o estandarte firmemente cravado no solo ao seu lado. Macro manteve-se em silêncio
enquanto continuava na direcção do miserável grupo de homens adormecidos que eram tudo o que restava do seu primeiro comando independente.
Mesmo antes de se deitar de lado e adormecer, Macro recordou o aviso de Tincómio, feito em jeito de ameaça, de que Carátaco se aproximava de Caleba. Talvez o príncipe
dos Atrébates estivesse a dizer a verdade... Bom, depressa saberiam. Para já, era o sono que importava. E um momento depois, um profundo ressonar juntou-se aos sons
feitos pelos outros homens que dormiam ali à volta.
? ? ?
- Tu, de pé! - Cadmínio aplicou a bota na figura que jazia no escuro canto da sala, o mais distante da entrada para os aposentos reais, ainda guardada por homens
armados. A noite já tinha caído, e havia tochas a arder nos suportes das paredes. Tincómio conseguiu afastar-se antes que Cadmínio lhe aplicasse outro pontapé, e
o capitão da guarda real teve que agarrar a corda que rodeava o pescoço do prisioneiro e dar-lhe um forte puxão.
- Merda! Isso doeu. - Quase sufocado, Tincómio levou as mãos amarradas à garganta.
- É uma pena que não vivas o suficiente para te habituares ao tratamento. - Cadmínio sorriu com desprezo. - Agora, de pé. O rei quer dar-te uma palavrinha. Talvez
sejam as tuas últimas palavras, hã?
O príncipe dos Atrébates foi levado pela corda como se de um cão se tratasse, sentindo o ódio no olhar de todos aqueles com quem se cruzou ao atravessar o salão.
Um ferido, com uma ligadura de trapos a cobrir a maior parte da cabeça, apoiou-se no cotovelo e tentou cuspir-lhe em cima quando Tincómio lhe passou por perto, mas
as forças faltaram-lhe e a saliva acabou por lhe escorrer para o peito. O prisioneiro parou e zombou do homem.
- És patético! Foi essa a força que te sobrou, depois de os Romanos tratarem de ti?
Cadmínio tinha parado quando o príncipe começara a falar, mas depressa deu um brusco puxão à corda.
- Vamos lá, bonitinho, não sejas rancoroso.
Enquanto Tincómio se debatia com a corda que se apertava em redor do seu pescoço, os homens no salão aplaudiram desordenadamente,

e gritaram insultos ao traidor. Este engoliu em seco, e tossiu para aclarar a garganta, mas a voz saiu-lhe esganiçada.
- Riam, sim... enquanto podem... escravos!
Tinham entretanto alcançado a entrada para os aposentos de Vérica, e Cadmínio empurrou o prisioneiro pela porta. O rei estava sentado na cama, aconchegado, mas a
sua pele estava lívida; fez um gesto fraco para que o capitão da sua guarda pessoal aproximasse o prisioneiro. Sentados em bancos junto ao leito, Vespasiano e Quintílio
observavam. Por perto encontrava-se também um centurião, maciço e hercúleo, com uma expressão dura e cruel no rosto. Vérica tentou erguer a face, mas as forças abandonaram-no,
e a cabeça descaiu-lhe sobre o peito, de forma que só de esguelha conseguia olhar para o sobrinho que o traíra, enquanto este era forçado a ajoelhar-se à beira da
cama.
- Mais próximo. - Disse Vérica, com voz fraca, e Cadmínio empurrou o prisioneiro com o joelho.
Por momentos ninguém disse uma palavra, e os únicos sons que se ouviram foram a fraca e esforçada respiração do rei, e os gritos ocasionais dos feridos no salão.
Vérica falou em céltico:
- Porquê, Tincómio? Porque nos traíste?
Tincómio tinha a resposta preparada, e retorquiu de imediato:
- Traí-te, meu tio, porque tu traíste o nosso povo.
- Não, rapaz... Salvei-os. Evitei que fossem chacinados.
- Para quê? Para serem escravos aqui dos teus amigos? - Tincómio soltou uma gargalhada amarga. - Isso é que é salvar gente. Preferia morrer de pé do que...
- Calado! - Vérica interrompeu-o, irritado. - Quantas vezes tive que escutar jovens patetas a dizerem essas asneiras!
- Asneiras? Eu chamo-lhes ideais.
- E o que são ideais? - Troçou Vérica. - Apenas maneiras de cegar os homens aos horrores que provocam. Quantos milhares do nosso povo aceitas que morram pelo teu
ideal, Tincómio?
- O meu ideal? Velho, não percebes que eles partilham o meu sonho?
- Eles? E quem são eles, exactamente?
- O meu povo. Não me acreditas? Pergunta-lhes. Desafio-te a que lhes falemos ambos, para que compreendas o que eles sentem.
- Não. - Um sorriso triste acentuou a resposta do velho rei. - Sabes que tal não é possível. De qualquer maneira... um ancião... nunca teria o mesmo poder de persuasão
de um jovem apaixonado. As pessoas não gostam do cheiro da morte. Querem ver os seus sonhos moldados por

lábios impolutos. A tua voz soar-lhes-ia estridente e clara. O mundo que lhes apresentarias parecer-lhes-ia simples. Demasiado simples. Como poderia eu competir
com essa visão, eu que não posso sacudir das costas o conhecimento da forma como o mundo realmente funciona? Tincómio, oferecer-lhes-ias um sonho perigoso. E eu
só poderia mostrar-lhes a dolorosa verdade...
- Cobarde! Para que serve esta conversa? Porque é que não acabas comigo de vez? - De repente, Tincómio pareceu agarrar-se a uma hipótese. - A não ser que...
- Tincómio, vais morrer. - Com a tristeza na voz, Vérica cortou-lhe a esperança. - Mas queria que percebesses porque erraste... Eras como um filho para mim. Queria
que soubesses... que soubesses que daria tudo para que não fosses executado.
- Então não o ordenes! - Gritou Tincómio.
- Não me deixas escolha. - O rei virou a cara e murmurou. - Lamento... lamento tanto. Cadmínio, entrega-o aos romanos.
O olhar de Tincómio percorreu o legado e o tribuno, e depois fixou-se na fechada expressão do centurião. O bretão virou-se e lançou-se sobre acama.
- Tio! Peço-te!
- Levanta-te! - Gritou Cadmínio, agarrando-o pelos ombros e afastando-o do ancião. Tincómio debateu-se, tentando renovar a súplica ao tio, mas o capitão da guarda
puxou-o, prendeu-lhe a cabeça com os braços e arrastou-o até Vespasiano. - O rei cede-vos o prisioneiro. Façam com ele o que vos aprouver.
Vespasiano assentiu severamente, e chamou o centurião que aguardava.
- Leva-o para o torreão, e amolece-o um bocado. - Disse o legado, em voz baixa, de forma a que o prisioneiro não o escutasse. - Hortênsio, não o magoes demasiado.
É preciso que ele fale.
O legionário avançou e pegou sem cerimónias no príncipe bretão que se debatia, antes de o levantar do chão e o carregar para o exterior.
- Bem, senhor, porte-se bem, senão vou ter que ser um bocado bruto.
Tincómio não parava de pedir clemência ao tio, pelo que o centurião o lançou contra a parede. Tincómio guinchou em agonia, sangrando de uma ferida aberta na testa.
Calmamente, o centurião pegou-lhe de novo e pô-lo em pé.
- Pronto, já chega de disparates, assim é que é um homenzinho.

Depois de terem comido uma refeição rápida nas cozinhas reais, Vespasiano e Quintílio dirigiram-se ao reduto. O semi-círculo era iluminado no interior por uma pequena
fogueira, na qual tinha sido colocado um dardo. A lâmina estava precisamente no coração das chamas, e já estava em brasa, ostentando um brilho laranja. A um dos
lados, Tincómio estava amarrado a um vagão; o corpo flácido apoiava-se nas ásperas tábuas do veículo. As costas nuas ostentavam dezenas de marcas de pancadas e queimaduras.
O ar estava pesado, com o pungente cheiro da carne humana queimada.
- Espero que não o tenhas morto ainda. - Comentou Vespasiano, com a mão a tapar as narinas.
- Não, senhor. - Hortênsio sentiu-se melindrado pela falta de confiança nas suas capacidades demonstrada pelo legado. Para se ser um torturador era preciso mais
do que saber infligir uma morte dolorosa. Muito mais. Por isso as legiões treinavam cuidadosamente alguns homens na mais arcana das especialidades militares. Havia
uma ténue linha entre provocar tanta dor que garantisse que um homem diria a verdade, e exagerar e matá-lo antes que estivesse disposto a falar. Qualquer torturador,
mesmo os de mais baixo nível, sabia que o truque residia em infligir dor acima do nível de resistência da vítima, e mantê-la nesse patamar tanto tempo quanto fosse
possível. Depois disso, o prisioneiro diria a verdade - garantidamente. O terror de que não acreditassem nele e de que a agonia continuasse asseguravam-no. Hortênsio
acenou na direcção do fogo. - Só está um bocadinho assado.
- Disse alguma coisa útil? - Inquiriu Quintílio.
- Na maior parte do tempo só disse disparates na língua dele.
- E ainda mantém que o Carátaco o virá salvar?
- Sim, senhor.
Vespasiano observou com uma mistura de fascínio e horror a carne mutilada nas costas do príncipe dos Atrébates.
- Na tua opinião, ele diz a verdade?
Hortênsio coçou o pescoço, e anuiu.
- Sim, a não ser que tenha mais tomates que um rebanho de cabrões.
- Interessante expressão. - Comentou Quintílio. - Essa ainda não tinha ouvido. Uma especialidade regional?
- É verdade, senhor. - Foi a resposta seca de Hortênsio. - Inventámo-la para agradar aos turistas. Bom, senhor, posso continuar? - A pergunta foi dirigida ao legado,
que afastou o olhar da figura de Tincómio.
- O quê? Ah, sim, continua. Mas se ele não mudar de história, podes acabar e ir descansar um bocado.

- Acabar, senhor? - Hortênsio inclinou-se para extrair a ponta do dardo do meio da fogueira. Na escuridão, o brilho parecia ainda mais intenso, um amarelo faiscante
salpicado por pontos ainda mais ofuscantes. O ar ondulava à volta da ponta do dardo. - Quer dizer, acabar com ele?
- Sim.
- Muito bem, senhor. - O centurião assentiu, e virou de novo a atenção para o príncipe atrébate, dirigindo a ponta incandescente às nádegas de Tincómio. O legado
apressou-se a deixar o local, fazendo ainda assim um esforço determinado para não andar demasiado depressa e deixar que o centurião e o tribuno percebessem o horrível
desconforto que sentia perante a cena a que assistira. Assim que Vespasiano e Quintílio chegaram ao exterior, ouviram um silvo, seguido por um grito inumano que
rasgou o ar como uma faca. Vespasiano dirigiu-se a um dos armazéns reais onde tinha instalado provisoriamente o seu comando, forçando Quintílio a acelerar o passo
de forma a não ficar para trás.
- Bem, senhor, o que acha?
- Estou aqui a pensar se o Centurião Cato não tinha mesmo razão.
Quintílio olhou-o ansioso.
- Senhor, não pode estar a falar a sério. Carátaco, aqui? Não é possível. O general tem-no encurralado do outro lado do rio.
Foram alcançados por outro grito, e Vespasiano fez um gesto com o polegar por cima do ombro.
- Bem, aquele acha que é possível, ao que parece.
- É aquilo que disse antes, senhor, ele está apenas a tentar assustar-nos.
- Não lhe serve de grande coisa agora, se for esse o caso.
- Suponho que sim. - Relutantemente, Quintílio concordou. - Mas talvez lhe tenham mentido a ele também.
Vespasiano estacou, e virou-se para o tribuno.
- Mas porque é que tens tanto interesse em que fiquemos aqui? Não tem nada a ver com quereres ser o primeiro governador romano dos Atrébates, pois não?
O tribuno manteve o silêncio.
- Bem me parecia. - Vespasiano não ocultou o desprezo. Há aqui em jogo um bocado mais do que a tua carreira, Quintílio. Lembra-te disso.
O tribuno encolheu os ombros, mas nada disse. Vespasiano suspirou, frustrado pela incapacidade do outro em reconhecer os perigos que os ameaçavam.
- Tribuno, se algo me acontecer, serás o oficial mais graduado deste destacamento, percebes?

- Sim, senhor.
- E será teu dever cumprir as minhas últimas ordens. Nesse caso, deves garantir a segurança dos homens sob teu comando. Não arriscarás as suas vidas em vão. E se
isso quiser dizer que terás que abandonar Caleba, fá-lo-ás.
- Será feito como deseja, senhor.
- Não: como ordeno.
- Sim, senhor.
Para vincar bem a importância da ordem, Vespasiano encarou o tribuno durante uns segundos, antes de continuar:
- Preciso que vás dizer aos comandantes das coortes para terem os homens preparados para marchar assim que acordarem. Vai.
O tribuno fez a saudação e afastou-se pela escuridão; Vespasiano deixou-se ficar a observá-lo, até que o mais leve traço da silhueta do homem deixou de ser perceptível.
Se de facto algo lhe sucedesse e Quintílio assumisse o comando, as consequências para os seus homens e para a sua legião seriam terríveis. Talvez devesse deixar
as ordens por escrito, e solicitar a um dos comandantes das coortes que servisse de testemunha. Mas assim que a ideia lhe surgiu, Vespasiano afastou-a com desprezo.
Por muito que detestasse o tribuno, não era admissível desonrá-lo dessa forma. Quintílio tinha recebido ordens, e a sua honra exigir-lhe-ia que as cumprisse.
Os pensamentos do legado voltaram-se de novo para o espectro de Carátaco e do seu exército a aproximarem-se de Caleba. Era difícil acreditar que o comandante britânico
tivesse conseguido enganar o General Pláucio. Mas Tincómio tinha mantido a sua história até ao fim. Nesse caso, cismou, havia uma série de possibilidades. Talvez
o príncipe esperasse que os Romanos, receosos, abandonassem Caleba, permitindo aos Durotriges regressar e terminar o que tinham começado. Por outro lado, se Carátaco
realmente se aproximava, com certeza que Tincómio mentiria, na esperança de que o seu aliado surpreendesse Vespasiano e as suas seis coortes ainda em Caleba, tendo
assim a oportunidade de destruir a maior parte de uma legião. Seria um golpe fatal para a campanha do General Pláucio. Até possuir mais informação, decidiu por fim,
não havia nada a fazer.
Regressando ao armazém, tirou a couraça do peito e espreguiçou-se. Depois mandou chamar o decurião que comandava o diminuto esquadrão de batedores e ordenou-lhe
que reunisse os seus homens. Deveriam sair da cidade imediatamente e reconhecer o terreno a norte e oeste, em busca de um exército de nativos. Depois de dar as suas
ordens, Vespasiano deitou-se satisfeito numa pilha de peles curtidas, e adormeceu profundamente.

Cato acordou sobressaltado. O jovem centurião lutou para se sentar, os olhos meio cerrados e a mente ainda enevoada pelo sono. Enquanto olhava em redor estremunhado,
Cato notou que o recinto real ainda estava envolto pela escuridão, e que no oriente se via o fraco brilho que antecedia a aurora. Pelas trevas em redor moviam-se
sombras, enquanto os oficiais romanos percorriam os grupos de soldados adormecidos, sacudindo-os até que acordassem. Macro aproximou-se.
- O que se passa? - Perguntou Cato.
- Levanta-te. Vamos marchar.
- Marchar?
- Sim. Abandonamos Caleba e regressamos à legião.
- Porquê?
- Ordens do legado. Apronta os teus homens. Mexe-te!
Cato esticou os membros e levantou-se com um gemido. O recinto regressava à vida, com os homens a resmungarem por terem sido acordados, e os gritos ásperos dos centuriões
concentrados nos mais preguiçosos. Junto ao armazém que o legado e o seu pequeno séquito tinham requisitado acenderam-se tochas. À luz das chamas, Cato avistou Vespasiano
a falar apressadamente com os comandantes das coortes. Agachou-se para apanhar a sua couraça segmentada e vestiu-a, lutando com as tiras de couro para a apertar.
Alguns dos homens da Coorte dos Lobos já tinham acordado, e olhavam em volta com um ar ansioso.
- Centurião! - Era Mandrax que se aproximava, e Cato apercebeu-se de que era a primeira vez em muitos dias que o via sem o estandarte nas mãos. - Senhor, o que se
passa?
- Vamos embora.
-Embora?-Mandrax ficou surpreendido, e depois a face do bretão franziu-se. - Porquê, senhor? Ganhámos. O inimigo afastou-se. Porquê sair agora de Caleba?
- Não faço ideia. São ordens. Ajuda-me a formar os homens.
Por um breve instante Mandrax manteve-se imóvel, enfrentando o centurião com uma expressão que Cato entendeu como de desconfiança. Então assentiu devagar, e virou-se
para cumprir o que lhe tinha sido indicado. Cato sentiu a consciência pesada devido às ordens. Aqueles homens, ao lado dos quais tinha combatido, olhavam Roma como
um aliado, e a ordem para abandonar Caleba parecer-lhes-ia uma traição, mesmo que fizesse sentido. Vespasiano devia ter mudado de opinião. Ou, pior, tinha sido demonstrado
que Tincómio falara verdade. Cato apertou o cinturão, colocou o capacete debaixo do braço, e dirigiu-se ao encontro das duas linhas de homens que lhe restavam.
Da Coorte dos Lobos só o nome restava; Cato contou trinta figuras
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desanimadas, alinhadas a seguir a Mandrax e ao seu estandarte. Muitos tinham ligaduras nos braços, mas todos levavam ainda o escudo oval, o dardo e o capacete de
bronze que tinham recebido meses atrás. O orgulho inchou o peito de Cato ao inspeccioná-los rapidamente. Aqueles homens tinham demonstrado que o seu valor e resistência
não ficavam abaixo dos dos legionários, e com mais treino também se igualariam aos seus camaradas romanos quanto à perícia com o armamento. O laço que o unia àqueles
homens, tecido nos treinos e nas batalhas, não era mais fraco do que o que o tinha ligado aos camaradas da Segunda Legião.
Ordenavam-lhes agora que abandonassem Caleba, e as suas famílias, e o centurião receou a reacção dos homens quando olhassem por cima dos ombros e vissem a cidade
indefesa, um fruto maduro pronto a cair nas mãos ávidas de Carátaco e dos seus aliados. Seria esse o verdadeiro teste à sua lealdade, para com ele e para com o estandarte
que era deles.
- Todos os oficiais, ao legado! - Ouviu-se uma voz a gritar no recinto. - Todos os oficiais, ao legado!
Cato virou-se para os seus homens.
- Esperem aqui!
? ? ?
O pequeno grupo de centuriões amontoou-se à volta de Vespasiano, que não perdeu tempo com formalidades e lhes dirigiu a palavra imediatamente:
- Os batedores informam que há uma força numerosa acampada a algumas milhas para ocidente. Demasiadas fogueiras para que possam ser os mesmos que tentaram tomar
Caleba ontem. Parece que, no fim de contas, Carátaco conseguiu escapar ao general. Bem, os batedores também avistaram à distância o brilho das fogueiras de outro
exército, lá longe, atrás das hostes do Carátaco. Pode ser Pláucio; pode não ser. Enviei alguns batedores para clarificarem a situação. É possível que o Carátaco
se movimente em duas colunas, e que o general ainda ande à procura dele na margem norte do Tamisa. Nesse caso, estamos total e completamente fodidos.
Alguns dos oficiais riram nervosamente, antes que o legado continuasse:
- Se nos deixarmos ficar e tentarmos defender o que resta das fortificações de Caleba, não aguentamos mais do que um ou dois dias; seremos destruídos. Depois disso,
o inimigo avançará contra o resto da legião, e acabará com ela facilmente. A nossa melhor hipótese é sair daqui tão depressa quanto possível, dirigirmo-nos a sul
e tentar flanquear o inimigo e atingir a base, onde nos poderemos juntar às outras coortes. Podemos defender o

acampamento enquanto durar a comida, ou até que Pláucio nos alcance. -Levaremos connosco o rei Vérica, e o que resta dos seus homens. Quando a crise for ultrapassada,
poderão voltar a Caleba. Marcharemos em coluna compacta. Vamos levar poucas carroças, só as que forem necessárias para transportar os feridos. Os homens só levarão
as armas e equipamento, e comida para dois dias; mais nada. Há perguntas, senhores?
- Senhor. - As cabeças viraram-se para o tribuno Quintílio. - O que acontece se o inimigo nos alcançar antes de nos reunirmos com as outras coortes?
A resposta de Vespasiano foi curta e ríspida:
- Nesse caso, tribuno, terás que prosseguir a tua carreira noutra vida... Meus senhores! Vamos garantir que tal não suceda. Mais alguém?... Óptimo. Regressem às
vossas unidades. Saímos assim que eu der o sinal... Centurião Macro! Um momento, por favor.
Macro, um homem que preferia sempre a fila de trás de qualquer ajuntamento - um resquício de um breve período de educação formal na meninice - esperou que os outros
oficiais dispersassem antes de se aproximar do legado.
- Senhor?
- Conheces o Centurião Gaio Silano?
- Sim, senhor. Da Segunda Coorte.
- Esse mesmo. Quer dizer, era. Foi morto numa escaramuça ontem. Vais substitui-lo. Leva o que sobra da guarnição contigo.
- Sim, senhor. E o centurião Cato, senhor?
- Que é que tem?
- Os homens dele vêm connosco?
Vespasiano fez que sim com a cabeça.
- Precisamos de todos os homens que possam segurar uma arma. A coorte do Cato - como é que lhe chamaram?
- Os Lobos, senhor.
- Lobos? Bom nome. Bom, de qualquer maneira, eles que guardem os carros.
- Não vão gostar disso, senhor. - retorquiu Macro calmamente.
- Hão-de querer combater.
- A sério? - Contrapôs Vespasiano, com um traço de irritação na voz. - Pois farão o que eu lhes mandar.
- Sim, senhor. Informarei Cato.
- Sim, faz isso.

Antes que os primeiros raios de sol iluminassem o céu, já a densa coluna de infantaria pesada, acompanhada do que restava das forças aliadas nativas, atravessara
as ruínas do portão principal de Caleba. Uma pálida luz azulada espalhava-se pela paisagem e, olhando para cima, Cato apercebeu-se de que seria um dia sem nuvens.
Esperava-os uma dura marcha, com o sol a bater-lhes sem piedade. Assim que saiu, a Primeira Coorte virou para sul, na direcção do acampamento fortificado da legião.
Os vagões que transportavam os feridos e o rei Vérica avançavam no meio da coluna, flanqueados pelos homens de Cato e pela guarda real, capitaneada por Cadmínio.
Vespasiano tinha deixado claro que todas as tropas nativas, sem excepções, estavam sob o comando de Cato, para óbvia decepção de Vérica e do comandante da sua guarda
pessoal.
Quando a retaguarda da coluna deixou a cidade, Cato olhou para trás e viu uma linha de faces na paliçada, observando em silêncio a partida dos Romanos. As expressões
amargas eram claro testemunho dos sentimentos de traição e desespero que sentiam os Atrébates. A um dos lados, onde antes se erguera a torre de vigia, via-se um
poste bem alto, saindo das madeiras calcinadas. No topo, empalada, estava a cabeça de Tincómio, tão maltratada e inchada que era difícil reconhecer nela o outrora
formoso príncipe.
Uma pequena coluna de refugiados apressava-se a deixar também a cidade, fugindo na direcção oposta à que os Romanos tinham tomado, numa tentativa desesperada de
escapar ao inevitável banho de sangue que aconteceria quando Carátaco e o seu exército chegassem a Caleba. Ao longe, a ocidente, viam-se as pequenas figuras de um
destacamento de cavalaria numa encosta, dirigindo-se lenta e deliberadamente para a capital. Atrás deles, atravessando o cume da colina, avistava-se uma espessa
coluna de infantaria. Os Durotriges que tinham retirado das proximidades de Caleba marchavam ao encontro dos seus aliados. Carátaco, ao que parecia, também tinha
começado cedo o dia. Pela estimativa de Cato, havia cerca de oito quilómetros a separar as duas forças. Uma margem curta, mas que os legionários, habituados a marchas
duras, seriam capazes de manter até atingirem o campo fortificado da Segunda Legião.
Pouco tempo depois, a coluna inimiga mudou de direcção, afastando-se de Caleba e dirigindo-se directamente para os Romanos. A pequena força de Vespasiano passou
uma crista baixa e deixou de estar à vista da capital Atrébate. O sol subia no céu claro e nem a mais ligeira brisa perturbava o ar; só os sons das botas a pisarem
o pó do caminho e os guinchos dos eixos e rodas das carroças enchiam os ouvidos dos legionários. A poeira que era levantada pela primeira coorte encontrava caminho
até às narinas e bocas dos homens que a seguiam na coluna, deixando-os com uma sensação de secura. Pelo fim da manhã o sol batia forte, e o suor escorria pelos
322

corpos dos homens que marchavam sem descanso, já que qualquer paragem permitiria aos perseguidores ganhar terreno.
E assim se manteve a situação até por volta do meio-dia, quando a vanguarda da coluna se aproximava de um vale estreito que fazia uma curva em redor de uma pequena
colina despida de vegetação. Vespasiano e Quintílio seguiam à frente da coluna, desprezando a regra habitual que lhes reservava lugar imediatamente a seguir à primeira
coorte. O legado ansiava pelo momento em que reunificaria as suas forças, e queria ter em primeira mão a noção do terreno que o esperava, não perdendo tempo a receber
e interpretar informações de outros.
- Estamos a andar bem. - Dizia Quintílio, só para fazer conversa.
- Sim... vamos bem. - Retorquiu o legado; então endireitou as costas e perscrutou o caminho.
- Que se passa, senhor?
Sem responder, Vespasiano lançou a montada num trote pelo caminho, enquanto esticava o pescoço, tentando perceber melhor o que avistava. Pouco depois, a colina deixou
de lhe obstruir a visão. A menos de um quilómetro à frente da coluna, uma massa densa de cavalaria e carros de combate impedia-lhe a passagem.

XXXIX
Carátaco enviara à frente as suas brigadas ligeiras, mesmo sabendo que estas nunca conseguiriam derrotar os romanos sozinhas. Por outro lado, e Vespasiano sorriu
com amargura ao compreender esse facto, também não precisavam de o fazer. Bastava que atrasassem os legionários o tempo suficiente para que o comandante britânico
e a sua infantaria pesada chegassem ao campo de batalha e atacassem em força a retaguarda da coluna romana. Se agisse depressa, o legado poderia mandar os seus homens
formar em cunha, e talvez a massa de legionários conseguisse forçar a passagem através da força inimiga que lhe bloqueava o caminho. Mas uma tal formação não se
movimentava velozmente, e tudo o que os nativos teriam que fazer era deixar a cunha passar e continuar a atacar os romanos até que os seus camaradas chegassem e
lançassem a sua força decisiva na batalha.
- Senhor? - Quintílio olhava para ele, expectante. - Devo dar ordens para que a coluna faça meia-volta?
- Não. A esta hora já Carátaco se colocou entre nós e Caleba.
- Bem... o que faremos então? - O tribuno observou as forças que se preparavam para enfrentar os romanos. - Senhor?
Vespasiano ignorou-o; fez o cavalo rodar e levantou o braço.
- Alto!
A coorte que conduzia a vanguarda imobilizou-se, e a ordem foi rapidamente transmitida através da coluna. Cada centúria parou por seu turno, e ouviu-se o resmungo
das carroças a deterem-se, até que nada se movia na estrada em que as forças romanas seguiam. O legado avaliava já a paisagem circundante, e o seu olhar deteve-se
numa pequena elevação à direita. Depressa tinha chegado à conclusão de que a melhor hipótese de sobrevivência para a coluna era a defesa estática. Se tentassem prosseguir,
seriam continuamente desgastados e acabariam aniquilados, muito antes de avistarem o resto da legião. Por outro lado, se conseguissem infligir pesadas perdas ao
inimigo, talvez este desmoralizasse o suficiente para lhes permitir

escapar e alcançar o campo fortificado da legião... Estava-se mesmo a ver que era isso que ia acontecer, pensou o legado.
Inspirou fundo antes de dar a ordem que o conduziria, e aos homens sob o seu comando, à acção.
- Coluna... ocupar posições à direita!
- Senhor? - Quintílio fez o cavalo avançar até se pôr à altura de Vespasiano. - O que está a fazer?
- Vamos defender-nos aqui, tribuno. É tudo o que podemos fazer.
- Defender aqui? - As finas e tratadas sobrancelhas de Quintílio ergueram-se de espanto. - É uma loucura. Vão-nos matar a todos.
- É muito provável.
- Mas... senhor! Deve haver algo que possamos fazer... Qualquer
coisa?
- O que sugeres? Desta vez, Quintílio, não vale a pena ires à procura de auxílio. A menos que queiras ver como te safas com aqueles tipos ali à frente, e consigas
escapar por uma brecha.
O tribuno corou perante a mal disfarçada acusação de cobardia, e abanou a cabeça lentamente.
- Eu fico.
- Ainda bem. Agora vê se te tornas útil. Cavalga até ao cimo daquela colina e diz-me se avistas o Carátaco. E... - Vespasiano questionou-se se valeria a pena confiar
na sorte, depois de o destino o ter conduzido àquela armadilha. - E vê lá se descobres a outra força de que os batedores falaram. Podem ser dos nossos.
- Sim, senhor! - Quintílio voltou o cavalo para a encosta, e galopou na direcção da crista da colina.
A Primeira Coorte, com o dobro dos homens das outras coortes da legião, marchava já para lá da posição de Vespasiano, seguindo os porta-estandartes pela encosta
relvada. O resto da coluna também já estava em movimento, ondulando pela estrada. Centúria a centúria, avançavam até chegarem junto do legado e viravam bruscamente
para a direita. Vespasiano observava as forças que Carátaco tinha enviado para o bloquear, procurando sinais de movimento, mas o inimigo parecia satisfeito com o
facto de impedir a passagem dos romanos, e os bretões mantinham-se imóveis sobre os seus carros de guerra e os seus cavalos, observando os legionários a subirem
a encosta. Um comandante mais empreendedor teria tentado ocupar a colina antes que os romanos o fizessem, reflectiu Vespasiano, mas a ausência de disciplina era
um factor característico da forma como os bretões travavam as batalhas, e provavelmente o comandante inimigo tinha razão quando se limitava a manter as suas tropas
em posição.
Quando as carroças começaram a subida, os condutores viram-se

forçados a incentivar os pesados bois que as puxavam, com gritos e vergastadas. O legado observou a situação por um momento, consciente da lentidão dos veículos,
e então deu uma ordem.
- Centurião Cato!
- Senhor?
- Põe os teus homens a empurrar as carroças. Quero-as lá em cima tão depressa quanto possível.
Cato saudou, e ordenou aos seus homens que colocassem o equipamento nas carroças. Depois, enviou um punhado de guerreiros para cada uma das oito carroças, e os poderosos
Celtas esforçaram-se por empurrá-las pela ladeira acima. Cadmínio e os seus homens encarregaram-se da carroça que transportava Vérica, tentando ao máximo evitar
que o rei fosse sacudido. Entretanto, os legionários continuaram a passar por eles, e por fim apenas a guarda recuada ficou para proteger as carroças até que estas
alcançassem a posição que o legado lhes designara. O trabalho de as empurrar era pesado, e exigia não apenas força, mas também concentração. De vez em quando o movimento
era interrompido, e nessas alturas era preciso colocar rapidamente por trás das rodas os grandes calços que cada carroça transportava na traseira, de forma a evitar
que os pesados vagões começassem a deslizar pela colina abaixo. Se tal acontecesse, nada os conseguiria parar, e os homens poderiam facilmente ser esmagados, as
carroças poderiam embater umas nas outras, e os animais, presos como estavam, seriam arrastados e facilmente poderiam partir uma perna. E tudo isto sob o inclemente
sol do meio-dia. Quando finalmente alcançaram uma zona perto do topo, onde o declive diminuía, Cato e os seus homens suavam abundantemente, e deixaram-se cair ao
lado dos veículos, os peitos a arfar, na tentativa de recuperar o fôlego.
- O que raio estão vocês a fazer? De pé! - Vociferou Vespasiano, quando se aproximou das carroças. - Centurião, forma os homens! Quero os vagões no centro do dispositivo.
E vejam se o rei fica bem protegido. Ficas responsável pela sua segurança.
- Sim, senhor.
Cato levantou-se e lambeu os lábios, secos - como a garganta, aliás
- devido ao esforço. Com uma combinação de ordens e ameaças fez com que os homens agrupassem densamente as carroças, e depois colocaram cuidadosamente os calços
nas rodas. O forte cheiro dos bois era ainda pior devido ao calor sufocante, mas o centurião só autorizou os homens a beberem um gole de água quando o trabalho foi
dado por terminado. À sua volta curvavam as linhas das coortes, formando um círculo apertado ao redor do cume da colina. Lá em baixo, no vale, os bretões não se
tinham mexido, e continuavam a observar os romanos, imóveis e em silêncio como antes.

Ao longe, na estrada para Caleba, uma coluna de infantaria aproximava-se da colina, lançando no ar uma fina cortina de poeira que não permitia avaliar a força dos
seus números. Ainda mais longe, uma mancha no horizonte podia ser uma nuvem, ou uma força militar em movimento.
Vespasiano emitiu ordens para que os homens descansassem e se alimentassem. O combate que se aproximava podia ser o último para muitos deles, mas os homens lutavam
melhor quando tinham a barriga cheia, e o legado estava determinado a aproveitar todo e qualquer factor que lhe desse vantagem naquela situação. Tinham uma posição
elevada, visibilidade em todas as direcções, e o melhor treino e equipamento de qualquer exército do mundo conhecido. Quanto a isso, Vespasiano estava satisfeito.
Mas três mil e quinhentos homens, por muita qualidade que tivessem, não triunfariam sobre várias vezes esse número, e a cada momento as forças inimigas se revelavam
mais poderosas, à medida que a coluna ultrapassava uma crista distante e prosseguia inexoravelmente na direcção do anel de legionários que defendia o topo da colina.
À medida que preenchiam a paisagem pareciam não ter fim, e os romanos apreciavam a vista com calma resignação, enquanto mastigavam fatias de porco salgado, retiradas
das sacolas que transportavam.
Macro veio ver como estava Cato, e trepou para o banco de um dos vagões, ao lado do amigo.
Acenou com a cabeça na direcção da carroça em que Vérica viajava.
- Como vai o rei?
- Mais ou menos. Fui vê-lo há pouco. Está sentado, e protesta por causa das sacudidelas.
- Achas que recupera?
- Acha que isso interessa? - Cato apontou a coluna inimiga que se aproximava.
- Não. - Macro concordou. - Agora não interessa de todo.
- Depois de toda aquela confusão em Caleba, acabamos nisto. - Resmungou Cato.
- É assim o exército. - Retorquiu Macro, esforçando a vista cansada, enquanto olhava na mesma direcção que Cato. - Tens alguma ideia sobre a identidade daquela segunda
coluna?
- Não. Ainda estão muito longe. Mas avançam depressa. Daqui a umas horas já cá estão.
- Com a nossa sorte, só podem ser mais daqueles cabrões. - Macro apontou para a força inimiga que se aproximava da colina. - Não faço ideia de onde é que eles saem.
Pensava que lhes tínhamos destruído o exército no Verão passado. O Carátaco deve ter encontrado novos aliados.
- Bem, com tipos como o tribuno Quintílio a tratar das questões

diplomáticas, o que me espanta é que não esteja a ilha toda contra nós.
- É bem verdade.
Os dois centuriões viraram as cabeças para olhar na direcção da área em que Vespasiano conversava com os seus oficiais superiores, ligeiramente mais abaixo na colina.
O tribuno falava de forma animada, e apontava na direcção de Caleba.
- Suponho que deve estar a tentar convencer o legado a ensaiar a
fuga.
Cato abanou a cabeça.
- Não vai acontecer. O suicídio prematuro não é o estilo do legado. O tribuno está a gastar o latim.
- O tipo realmente deu-nos um jeito do caraças. - Disse Macro.
- Assim que ele chegou, começou a merda.
- Foi... foi mesmo.
- Até parece que aquele cabrão queria arranjar confusão em Caleba.
- Bem, porque não? - respondeu Cato, pensativo. - Ele tinha muito a ganhar. Se o Vérica aguentasse a situação, tudo o que lhe restava era voltar para o general e
apresentar um relatório. Provavelmente ele tem-se mexido nos bastidores para agitar as águas. Qualquer perturbação, qualquer coisa que lhe desse uma desculpa para
usar os poderes de procurador que lhe foram atribuídos. Mas não teve muito sucesso. Deve ter pensado que os aristocratas Celtas jogavam com as mesmas regras sujas
que os de Roma. Não contou com o sentido de honra deles.
- Honra? - Macro arqueou as sobrancelhas. - Não me parece que o Tincómio soubesse muito disso.
- Oh, sabia, lá à maneira dele. Queria que a sua tribo se mantivesse livre, quase tanto como queria tornar-se rei. E enquanto esteve exilado deve ter estudado cuidadosamente
as técnicas políticas de Roma.
- Tens que reconhecer - Macro sorriu -, não há muito que não possamos ensinar a estes bárbaros.
- É verdade. Bem verdade... E assim, os Atrébates estão acabados. Pláucio vai-se ver obrigado a anexar o reino e tratá-lo como uma província sob administração militar.
Macro encarou-o.
- Achas que sim?
- Não tem escolha. Partindo do princípio de que o general consegue recuperar deste desastre. Perder uma legião é coisa para atrasar a campanha um bom bocado. E não
vai cair bem em Roma.
- Não...
- Mas vamos ver o lado bom - Cato fez um sorriso amarelo -,
328

pelo menos o Quintílio vai ter de viver, ou de morrer, com as consequências das suas acções.
Acenou com as mãos na direcção do inimigo.
- Suponho que sim.
Enquanto observavam, a coluna bretã começou a dividir-se, à medida que as forças de Carátaco cercavam a colina. Os carros e a cavalaria mantiveram-se no vale, fechando
o cerco; com um último olhar para a neblina que rodeava a ainda distante coluna não identificada que se aproximava vinda do noroeste de Caleba, Macro saltou para
o chão.
- Vejo-te depois. - Disse, à laia de despedida.
- Sim, senhor. Até lá.

XL
Enquanto Macro se dirigia ao local onde se encontrava a sua centúria, os trombeteiros do comando fizeram soar o sinal que chamava os homens à atenção. Por toda a
crista os legionários, cansados, ergueram-se e começaram a construir a cerrada formação defensiva que Vespasiano esperava que fosse eficaz contra o assalto dos bretões,
quando ele acontecesse. As fileiras aproximaram-se, e os legionários apoiaram dardos e escudos contra o solo, formando um anel contínuo com quatro homens de espessura.
Os centuriões andavam por entre os soldados, berrando insultos e ameaças contra qualquer um que tivesse cometido a mais pequena infracção às regras. Um capacete
ou bota por apertar, uma espada ou adaga mal colocada
- qualquer desculpa era boa para um dos centuriões avançar e pregar um assustador sermão ao incumpridor. E era esse o objectivo. Com o ataque inimigo iminente, todo
e qualquer pensamento que afastasse a mente dos legionários da batalha que se avizinhava era bom.
Pouco passava do meio-dia quando o inimigo avançou. Grupos numerosos de guerreiros nativos espalharam-se em redor da colina, motivando-se com exibições cada vez
mais exaltadas enquanto esperavam, sob os seus berrantes estandartes serpenteantes, pela ordem para atacar os odiados romanos. Os ensurdecedores gritos de guerra
e os bramidos das longas trompas de guerra chegavam ao topo da colina, e irritavam os ouvidos dos legionários que esperavam em silêncio. Então, sem que se notasse
que uma ordem tinha sido dada, os bretões avançaram desordenadamente, primeiro marchando rapidamente, depois passando a uma corrida vagarosa quando começaram a subir
a encosta. Vespasiano avaliou cuidadosamente a distância entre o inimigo e os seus homens, procurando dar a sua primeira ordem no melhor momento. À medida que o
declive se tornava maior, os bretões avançavam mais devagar, ficando cada vez mais amontoados enquanto lutavam por subir a encosta e alcançar os inimigos. Quando
estavam a não mais de cem passos, e já alguns dos homens olhavam ansiosamente para o

legado, Vespasiano encheu os pulmões de ar e pôs as mãos em concha em volta da boca.
- Escudos para cima! - berrou, e a toda a volta da colina os escudos vermelhos ornamentados com pinturas subiram, o bronze polido das bossas a brilhar ao sol. Por
instantes, a linha de escudos flutuou enquanto os homens se alinhavam pelos vizinhos; depois a muralha defensiva ficou completa, e os romanos olharam por cima dela
com expressões determinadas.
- Preparar dardos!
Os homens na primeira fila deram um passo à frente e prepararam-se, os braços direitos recuados e alinhados com as hastes dos dardos.
- Prontos!... - Vespasiano ergueu o braço, para o caso da ordem não ser ouvida por cima do barulho infernal que o inimigo produzia.
- Prontos! - Os centuriões repetiram a ordem aos seus homens, e viraram-se para tomar conhecimento da ordem seguinte do legado. Mais abaixo, os bretões lançavam
os seus gritos de guerra e forçavam os músculos para garantir que o embate com os romanos se daria com o máximo de ímpeto; avançavam numa massa fervilhante de capacetes,
cabelo em crista, corpos tatuados e lâminas que reluziam e brilhavam.
- Lançar! - Bradou Vespasiano, baixando o braço. Os centuriões transmitiram imediatamente a ordem e os homens lançaram os braços direitos para a frente; o seu esforço
encheu o ar com grunhidos de tensão libertada. As hastes escuras dos dardos subiram e espalharam-se como uma cortina de água provocada por um pedregulho atirado
a um lago. Já os centuriões davam ordens para que a segunda fila passasse as armas para a frente, para uma nova descarga. As pontas metálicas da primeira rajada
passaram pelos pontos mais elevados das suas trajectórias e começaram a mergulhar na direcção dos bretões. As fileiras mais adiantadas do inimigo interromperam a
carga quando repararam no perigo. Alguns aceleraram, tentando passar sob os dardos, outros cobriram-se com os escudos e prepararam-se para o impacto. Os outros -
homens sem armadura, equipados de espadas ou lanças - ou se lançaram ao solo ou olharam para os projécteis, tentando desviar-se daqueles que caíam na sua direcção.
A rajada desceu com um ruído de choques e impactos que se transformou em gemidos e gritos quando os dardos encontraram alvos. No momento seguinte, como se uma mão
gigante tivesse varrido as fileiras dos durotriges, dezenas deles dobraram-se e tombaram pelo solo. Outros tropeçaram nos camaradas caídos, e espalharam-se ao comprido
no meio da confusão de corpos, escudos e das longas hastes dos dardos, cravados por todo o lado. Mas depois os homens que os seguiam forçaram a passagem e prosseguiram
a carga pela encosta acima.
331

- Dardos!.... Preparar!... Lançar!
Uma nova vaga de bretões foi detida, aumentando a confusão com os seus corpos espalhados pelo declive. Depois uma terceira e quarta rajada abateram-se por sua vez
sobre a massa inimiga que se aproximava do cimo da colina, transformando o primeiro ataque dos bretões num desastre. Já não lançavam gritos de guerra. Em seu lugar
ouvia-se um murmúrio de choque que se espalhava pela colina, e o legado resolveu aproveitar a vantagem momentânea.
- Espadas prontas!
- Espadas prontas! - Repetiram os centuriões, e o som das espadas a serem desembainhadas ecoou por toda a crista.
- Avançar! - Ordenou Vespasiano, de forma audível no silêncio expectante que se tinha instalado. À medida que os centuriões passaram a ordem, as coortes desceram
a colina, escudos erguidos e espadas à altura da cintura, prontas a golpear. Antes que os bretões conseguissem recuperar os legionários estavam em cima deles, liquidando
os feridos e depois atacando a massa indecisa que se aglomerava por trás da carnificina provocada pelos dardos. Alguns dos bretões ainda tentaram resistir, mas estavam
demasiado desorganizados para conseguirem opor-se ao avanço romano. E assim que foram derrubados ou recuaram, a vontade de prosseguir o ataque à colina desapareceu
por completo. A iniciativa estava do lado dos defensores, e era a sua vez de atacar. O legado ordenou ao seu trombeteiro que desse o sinal para carregar. Encorajados
pelos gritos e pragas dos centuriões, os legionários lançaram-se sobre o inimigo, utilizando os escudos para derrubar os bretões, e dando estocadas sucessivas nas
fileiras densas que se lhes opunham.
O inimigo cedeu, virando-se e fugindo em desalinho pela encosta abaixo, desesperado para se afastar dos romanos, de volta às suas próprias linhas, aumentando a confusão
e o pânico, até que toda a força bretã estava em debandada. Do seu ponto de vista privilegiado, Vespasiano avistou no vale, na base da colina, um pequeno grupo de
nobres ricamente adornados. Enquanto o ataque se desintegrava, o maior deles, um homem alto de cabelo louro, reagiu enviando os companheiros para a frente, para
controlar as tropas. Aquele devia ser o próprio Carátaco, decidiu o legado, e espantou-se que o rei dos Catuvelaunos tivesse arriscado um assalto frontal. Não correspondia
ao seu habitual estilo cuidadoso de travar a guerra. Mas não havia tempo para ponderar os erros do inimigo, a não ser que quisesse começar a cometer ele também erros.
O contra-ataque romano tinha atingido os seus objectivos, e agora havia o perigo dos legionários se entusiasmarem demais.
- Dá o sinal para recuar! - Ordenou Vespasiano, e as notas

estridentes soaram pela encosta. Ficou demonstrada a importância dos treinos regulares, já que os homens imediatamente interromperam o avanço, recuaram para as suas
unidades e começaram a subir o declive para ocupar as posições iniciais. O legado passou os olhos pelos corpos que juncavam a relva esmagada da encosta e ficou aliviado
ao notar que entre eles havia muito poucas túnicas vermelhas. Enquanto faziam o caminho de volta por entre a destruição provocada pelos dardos, os legionários aproveitavam
para recuperar quaisquer armas que pudessem ser reutilizadas quando o inimigo voltasse a atacar. A maior parte das pontas dos dardos estavam dobradas pelos impactos,
ou as peças que as ligavam às hastes tinham saltado. Mas alguns estavam ainda intactos, e era necessário recolhê-los, até para que não fosse o inimigo a aproveitá-los.
Assim que as seis coortes voltaram às posições iniciais, os centuriões apressaram-se a fazê-las dar meia-volta e a reconstituírem o anel contínuo em torno das carroças
que ocupavam o topo da colina.
Cato tinha observado a carga com entusiasmo e, num momento de loucura, tinha até imaginado que os bretões estavam acabados. Agora sentia-se um tolo, um recruta verde
que tinha permitido que a excitação levasse a melhor sobre a razão. Procurou ansiosamente algum sinal de Macro, e ficou aliviado por ver o amigo emergir das fileiras
da sua unidade temporária e dar uma ordem para que os legionários cerrassem as fileiras. Macro olhou em redor e fez-lhe um sinal com os polegares, antes de lançar
uma torrente de insultos sobre um infeliz legionário que não tinha ouvido a ordem anterior. À frente da mesma unidade, Fígulo avaliava a linha de escudos e assegurava-se
de que os dardos disponíveis eram passados aos homens da frente.
Na base da colina, os bretões já formavam de novo em torno dos seus estandartes coloridos e serpenteantes. Como não havia vento que levantasse as pontas, os portadores
tinham que os agitar em longos arcos pelo ar, para que se tornassem visíveis. O calor fazia o ar ondular, e dava aos estandartes bretões a aparência de criaturas
vivas que se agitavam.
- Muito bem, homens! - Gritou Vespasiano. - Demos-lhes uma boa lição. Mas quase esgotámos os dardos. Agora só nos restam as espadas. A partir de agora, o combate
será corpo-a-corpo. E enquanto mantivermos a formação, sobreviveremos. É uma promessa!
- E se ela for quebrada? - Perguntou uma voz, e os homens riram. Por momentos, notou Cato, Vespasiano franziu o sobrolho. Mas depois o legado apercebeu-se do efeito
que aquela pergunta insubordinada tivera sobre o moral das tropas, e resolveu aproveitar.
- Se quebrar a minha promessa, haverá uma dose extra de vinho para cada homem!

Até a mais esforçada piada funciona como uma bem-vinda distracção em circunstâncias desesperadas, e os homens soltaram sonoras gargalhadas. Vespasiano forçou-se
a soltar um sorriso, mesmo quando viu que o inimigo se lançava de novo pela encosta acima. À distância, a coluna desconhecida aproximava-se, e agora já não estava
a mais de cinco ou seis quilómetros de distância - mas ainda longe demais para que o legado conseguisse identificar as pequenas figuras negras que a lideravam. Um
pequeno destacamento de cavalaria avançava à frente da coluna. Lá em baixo, Carátaco também observava a coluna que chegava, e apontava-a aos outros nobres, mas se
com júbilo ou desespero, era impossível ao legado determinar. Voltou a virar-se para os seus homens, e deu uma ordem.
- Escudos para cima!
Os últimos sorrisos e conversas bem-dispostas morreram quando os legionários se prepararam para o segundo assalto. Desta vez o inimigo aproximou-se de forma mais
determinada. Não ocorreu nenhuma carga selvagem, antes um avanço em colunas densas. Quando os bretões chegaram a meio da subida, as trombetas de guerra começaram
a soar, e então os guerreiros começaram a animar, gritando e lançando brados enquanto se aproximavam dos romanos. Ao passarem o ponto em que o seu primeiro ataque
tinha sido detido foram lançados os últimos dardos das fileiras dos legionários, mas desta vez foram absorvidos pela massa de bretões e não causaram impacto visível
nas suas fileiras. Depois de avançarem mais algum tempo as trombetas soaram de novo, dando o sinal para a carga, e um grito de excitação e raiva atingiu os ouvidos
dos romanos à medida que os guerreiros inimigos se precipitaram pelos últimos metros que os separavam.
Em redor de Cato ouviu-se o estrondo e os estalidos dos impactos das armas bretãs contra os escudos romanos, e dos choques entre lâminas. A cerrada formação das
coortes e a vantagem de se encontrarem em posição mais elevada permitiu aos romanos não ceder terreno. Nas zonas em que os dois exércitos estavam mais comprimidos
não havia praticamente espaço para lutar, e bretões e romanos fincavam as botas no terreno e limitavam-se a empurrar com toda a força por trás dos respectivos escudos.
Noutras áreas havia espaço suficiente para se darem intensos duelos entre legionários e guerreiros inimigos, fintando e esquivando até que a oportunidade para um
golpe fatal se proporcionasse.
Durante meia-hora as duas forças enfrentaram-se, com os bretões sempre à procura de uma brecha que lhes permitisse destroçar as linhas romanas e transformar a batalha
numa série de escaramuças em que os números pudessem sobrepor-se à disciplina e ao treino. Por fim, perante a pressão contínua, a linha romana começou a dar sinais
de fraqueza,
334

dobrando-se aqui e ali, e o anel defensivo transformou-se numa elipse, e por fim perdeu qualquer forma reconhecível, lembrando um cinto largado pelo chão.
Quando o inimigo conseguiu romper, foi súbito e chocante.
- Centurião! - Gritou Mandrax, e Cato virou-se para o porta-estandarte. Este apontava com a espada uma secção da linha por trás das carroças. Enquanto Cato observava,
os homens mais recuados foram empurrados para o lado, e os bretões irromperam pelas linhas romanas. Eram guerreiros pesadamente equipados, com escudos e capacetes,
e muitos com cotas de malha. Quando se viram em frente aos vagões soltaram um grito selvagem de triunfo e lançaram-se em frente.
- Lobos! - Gritou Cato, enquanto pegava no escudo. Empunhou a espada e correu para junto de Mandrax, que defendia a carroça do rei ao lado de Cadmínio. - A mim!
Os homens mal tiveram tempo de se preparar antes de receberem o choque da força inimiga. Cato foi atirado contra o lado do vagão, o fôlego cortado com o encontrão.
Um guerreiro musculado, com um elmo gaulês, rosnou-lhe, salpicando-lhe a face com saliva. O braço subiu, e depois desceu na direcção da cabeça de Cato. Este encolheu-se,
esperando um impacto que lhe esmagasse o crânio, mas tudo o que se ouviu foi um baque profundo, quando a lâmina se enterrou profundamente na parte lateral do vagão,
acima da cabeça de Cato. O guerreiro olhou para a espada, depois encarou Cato, e ambos desataram a rir histericamente. O centurião recuperou antes, e aplicou um
pontapé nas virilhas do outro. O riso enlouquecido deu lugar a um gemido, e o guerreiro dobrou-se e vomitou na relva. Cato aproveitou para lhe dar com o punho da
espada na parte de trás do pescoço, o que o fez ficar como morto. De ambos os lados do centurião, os Lobos encontravam-se envolvidos num combate desesperado com
o inimigo; um relance na direcção do legado mostrou a Cato que Vespasiano se tinha apercebido da situação e que estava a reunir apressadamente um pequeno grupo de
oficiais e homens requisitados à retaguarda de uma das coortes, para colmatar a brecha. Cato compreendeu que ele e os seus homens teriam que aguentar o inimigo ainda
mais algum tempo, se queriam vencer a batalha.
Passando por cima do corpo do homem que tinha derrubado, apercebeu-se de um sovaco desprotegido e, por instinto, enterrou a sua curta espada no peito do homem, puxou-a
de volta, e procurou um novo alvo. Mandrax tinha ficado sem espada, e usava o estandarte dos Lobos como um bastão, aplicando golpes com as pontas e derrubando inimigos
ao fazê-lo girar. Cato manteve-se à distância, e virou-se mesmo a tempo de avistar um homem a correr na sua direcção, com uma lança. O centurião ergueu o escudo,
e a lâmina do outro embateu na superfície curva da bossa e foi

desviada. Sem aviso, o guerreiro largou a lança e agarrou a bainha do escudo, arrancando-o das mãos de Cato. Antes que este pudesse reagir, as mãos do outro estavam
em volta do seu pescoço, e o ímpeto do ataque fez com que Cato caísse por terra. Sentia as rudes mãos a apertarem, e os polegares a esmagarem-lhe a traqueia. O seu
braço direito estava preso debaixo do corpo, o esquerdo não tinha força suficiente para afastar o inimigo, e tudo o que Cato podia fazer era bater-lhe nas costas,
agarrar-lhe o cabelo e tentar puxar-lhe a cabeça para trás.
De repente o homem atirou-se para a frente, os dentes à mostra, como se estivesse a tentar morder o nariz de Cato. Este virou a cabeça para o lado, e atingiu o adversário
com a parte aguçada do capacete que lhe protegia a face. Por um instante o aperto na sua garganta diminuiu, e Cato aproveitou para lançar o capacete para cima, atingindo
o outro no nariz com o sólido metal. O bretão uivou de dor, e instintivamente levou uma das mãos à face. Assim que se viu livre do estrangulamento, Cato agarrou
o punho da adaga e arrancou-a da bainha. Usou a curta e larga lâmina para aplicar um golpe na base do crânio do inimigo.
O homem estacou, os músculos rígidos, e depois começou a tremer. Cato largou a adaga e empurrou o corpo para o lado, enquanto se punha de pé.
Recuperou a espada, e viu que vários soldados inimigos atacavam uma das extremidades da carroça de Vérica. A guarda real tinha sido exterminada na defesa do seu
rei, e apenas restava Cadmínio, o pequeno escudo erguido à sua frente enquanto desafiava os outros a atacarem-no, a espada de lado, pronta para investir contra o
primeiro que se atrevesse a enfrentá-lo. Enquanto Cato observava, um dos atacantes urrou e lançou-se para a frente. Mas o comandante da guarda real tinha conseguido
a posição por ser o mais poderoso guerreiro da nação Atrébate, e a lâmina da sua longa espada faiscou quando foi usada para deter o adversário, mais depressa do
que Cato julgava possível. A ponta atingiu o estômago do atacante, e saiu pelas costas. Cadmínio puxou-a imediatamente, e com evidente desprezo lançou um novo desafio
aos homens que o rodeavam.
Mas as suas hipóteses eram muito pequenas e, quando um homem simulou um ataque, Cadmínio virou-se para enfrentar o que julgou ser uma ameaça, antes de perceber o
truque. A lâmina de uma lança atingiu-o num ombro, provocando a queda do escudo quando os seus dedos se contraíram. Então todos se lançaram sobre ele. Com um urro
de fúria, Cadmínio varreu o ar com a espada, e a lâmina atingiu um homem, decepando-o e lançando a cabeça pelo ar. Mas depois Cadmínio foi forçado a recuar contra
a carroça de Vérica, espadas e lanças a espetarem-no pelo peito e estômago. Fez um último esforço para se libertar, mas foi empurrado para trás
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de novo, cravado nas tábuas, e gritou de frustração, o sangue e a saliva a saltarem-lhe da boca.
Tentou virar a cabeça e gritar:
- Sire! Fuja! - Depois escorregou para o solo, a cabeça descaída sobre o peito maciço.
Cato assistira a tudo, e agarrou no escudo e precipitou-se para a carroça de Vérica. Uma massa de cabelo branco espreitou do vagão, e Vérica olhou alarmado para
os atacantes. Mas depois recuperou do choque, e a sua expressão mostrou o desprezo que sentia pelos inimigos. O primeiro deles começou a trepar na direcção do rei
dos atrébates.
- Lobos! - Gritou Cato enquanto corria. - Comigo! Comigo!
Os quatro inimigos que restavam enfrentaram Cato, mas para o primeiro já era tarde demais. A lâmina do romano apanhou-o pelas costas e rompeu por éntre músculos
e costelas até lhe atingir o coração. Cato atingiu o homem seguinte com o escudo, enquanto tentava libertar a espada, mas estava presa, e quando o corpo caiu o punho
foi arrancado das mãos de Cato. Passou por cima do corpo de Cadmínio, ficando de costas contra o vagão, desarmado, apenas com o escudo para se proteger.
- Lobos! - Voltou a gritar. - Foda-se! A mim!
Os dois guerreiros ainda de pé levaram algum tempo a perceber que o centurião estava desarmado, mas depois lançaram-se sobre ele com um brilho de triunfo no olhar.
Um deles agarrou a borda do escudo e atirou-o para longe, enquanto o companheiro puxava atrás a lança e se preparava para a usar contra o romano. Não havia como
escapar, e Cato observou horrorizado a aproximação da ponta da lança, o tempo passando mais devagar enquanto contemplava a sua própria morte. De repente foi atirado
para o lado, quando um vulto se lançou por cima dele e derrubou o inimigo.
Mandrax e os outros sobreviventes da coorte Atrébate acorriam, e o último dos atacantes foi empalado na ponta do estandarte dos Lobos. Enquanto os homens formavam
uma cortina defensiva em volta do vagão, Cato arrastou-se até junto de Vérica. O rei estava deitado sobre o corpo do inimigo que tinha derrubado, a mão ossuda agarrada
ao ornado punho da adaga cuja lâmina estava enterrada no globo ocular do outro homem.
- Sire! - Cato ergueu suavemente o corpo do rei, afastando-o do morto. Os olhos de Vérica entreabriram-se, e ele pareceu lutar para conseguir focar a visão, enquanto
fixava Cato.
Sorriu fracamente.
- Estás bem?
- Sim, sire... Salvou-me a vida.
Os lábios de Vérica desenharam a custo um sorriso, que mais pareceu um esgar de dor.
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- Salvei, não foi?... Onde está o Cadmínio?
Cato olhou em redor e viu o capitão da guarda real a debater-se para se sentar. O homem tossiu, espalhando sangue pelo peito.
- Mandrax! - Chamou Cato. - Toma conta do rei.
Quando o porta-estandarte tinha o rei apoiado no peito, Cato agachou-se junto a Cadmínio, amparando-lhe os ombros, de forma a mantê-lo direito. Respirava em golfadas
ligeiras que faziam um estranho ruído na garganta, e olhou para Cato.
- O rei?
- Está salvo. - Respondeu Cato.
Cadmínio sorriu ao de leve, feliz por ter cumprido o seu dever até ao
fim.
- Estou acabado...
Por momentos Cato pensou que devia dizer qualquer coisa reconfortante, uma mentira que amparasse o moribundo, mas depois limitou-se a assentir de cabeça.
- Sim.
- Cadmínio! - Vérica estendeu a mão ao melhor dos seus guerreiros, depois irritou-se com Mandrax. - Ajuda-me a chegar ao pé dele!
A vida de Cadmínio esgotava-se rapidamente, e a boca descaía-lhe enquanto ele lutava para inspirar mais uma vez.
- Sire!
No último momento, os dedos do guerreiro procuraram a mão de Cato, encontraram-na e fecharam-se com força, gastando as últimas reservas de poder. Então a expressão
de dor em redor dos seus olhos amainou e os dedos ficaram estáticos na palma da mão do romano. Cato observou-o por um instante, para se certificar de que nada mais
podia ser feito pelo guerreiro Atrébate, de que não existia mais nenhum resquício de vida que fosse preciso confortar, e então levantou-se e olhou em redor.
Os sobreviventes da Coorte dos Lobos rodeavam o corpo, em silêncio e com pesar. Então Vérica ajoelhou-se lentamente junto a Cadmínio. A mão afagou-lhe a face e gentilmente
afastou uma madeixa de cabelo. Cato retirou-se sem fazer ruído; era um momento que pertencia aos Atrébates. Por mais forte que fosse o laço que o unia àqueles homens,
havia um outro, de raça e sangue, que nunca poderia partilhar com eles.
Deixando-os a lamentar, Cato voltou à batalha, mas o inimigo desaparecera. A reserva que Vespasiano apressadamente reunira tinha-os rechaçado e fechado a brecha.
E, à frente dos romanos, os inimigos recuavam, como uma onda que se afasta da costa, deixando corpos e armas abandonadas sobre a erva tinta de sangue. Cato olhou
para eles, surpreso.
338

Porquê retirar naquele momento, quando era claro que um último esforço lhes daria o triunfo?
- Cato! Cato!
Voltou-se e viu Macro que corria na sua direcção, a face enrugada por um riso de felicidade. O amigo deu-lhe uma palmada no ombro, e quando Cato o encarou com uma
expressão ausente, Macro observou-o rapidamente.
- Estás ferido, miúdo?
- Não.
- Vérica?
Cato apontou para o local onde os Atrébates se encontravam, junto ao vagão do seu rei.
- Ainda está vivo. O Cadmínio morreu. Ele, e o resto da guarda
real.
Macro coçou o queixo.
- Isso é mau... uma pena. Mas olha para ali.
Agarrou no braço de Cato e fê-lo dar uma volta, virando-o na direcção de Caleba. A coluna que se aproximava era agora bem visível, e o estandarte da águia que se
erguia sobre as fileiras da vanguarda era inconfundível.
- Estás a ver? - Macro sorria de novo. - Ali, vês? É o sacana do general em pessoa!
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XLI
O trabalho nas novas instalações para o procurador, que ficariam situadas no depósito fortificado, começou de imediato. Os engenheiros das quatro legiões trabalharam
arduamente para limpar rapidamente o terreno juncado de ruínas do hospital e do edifício do comando; depois, foram escavadas as fundações no solo enegrecido pelo
fogo. Para lá dos edifícios administrativos, já tinham sido construídos vários blocos de camaratas, para albergar a guarnição permanente, composta por duas coortes
de auxiliares batavianos. Estes constituíam um grupo arrogante; gigantes louros das fronteiras da Germânia, que olhavam com desprezo para as gentes de Caleba enquanto
passeavam pelas estreitas ruas da cidade e se metiam com as mulheres nativas. Além disso, bebiam muito, e andavam sempre à procura de pancadaria.
Quanto pior o comportamento deles, mais a consciência de Cato o atormentava por causa do destino dos Atrébates. Era uma fraca recompensa para aqueles que tanto tinham
perdido por combater ao lado de Roma, e que agora não eram autorizados a empunhar armas. Os Atrébates não mais seriam guerreiros. Pláucio tinha ficado horrorizado
quando descobrira quão próxima a tribo estivera de uma aliança com Carátaco, e agira rapidamente de forma a garantir que nunca mais seriam uma ameaça às suas linhas
de abastecimento. Vérica era ainda rei, mas só de nome; o verdadeiro poder sobre as vidas dos seus súbditos residia nas mãos do procurador romano e dos seus oficiais.
Desde o seu regresso, Vérica mal tinha deixado o leito, ainda a recuperar da ferida que sofrera na cabeça. Do lado de fora dos seus aposentos, no grande salão, o
conselho dos Atrébates debatia amargamente, pela terceira vez em menos de um mês, quem deveria ser escolhido como sucessor.
Carátaco tinha retirado para a outra margem do Tamisa, e de novo as legiões e as coortes auxiliares enfrentavam o inimigo, forçando-o a recuar para as terras selvagens
e montanhosas dos Siluros. Ainda assim, a segurança
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das linhas de abastecimento romanas não podia ser deixada sob a responsabilidade de um chefe nativo, por muito que este apregoasse a sua lealdade a Roma. Portanto,
o reino dos Atrébates tinha sido anexado assim que Vespasiano e a sua legião haviam estabelecido um acampamento no exterior de Caleba.
Poucos dias depois do regresso à cidade, o centurião Cato recebeu ordens para se apresentar no quartel-general da legião. Estava um dia quente e húmido, e Cato atravessou
a cidade, do campo da Segunda Legião até ao depósito, envergando apenas a túnica. Ao atravessar o portão, ficou surpreso ao ver que a estrutura de madeira da casa
do procurador, que também seria o edifício do comando, já estava terminada, e ocupava quase toda a parada e ainda o terreno anteriormente ocupado pelos antigos edifícios
do depósito. Evidentemente, Quintílio...
Cato sorriu. Quintílio já não fazia parte do exército. Agora era um procurador imperial, parte da elite administrativa, no primeiro patamar de uma carreira que o
levaria aos mais altos postos no estado. Teria mesmo um pequeno exército às suas ordens, na forma das duas coortes batavianas que ficariam aquarteladas em Caleba.
A um dos lados da parada via-se um conjunto de tendas nas quais o legado tinha instalado um quartel-general temporário, para si e para o novo procurador. A área
era fortemente vigiada pela unidade de pretorianos que acompanhava Vespasiano e, apesar da sua patente, foi ordenado a Cato que aguardasse para lá das cordas que
delimitavam a zona reservada. Enquanto cinco dos guardas se deixavam ficar a vigiar o centurião, o sexto homem foi em busca de instruções. Embora estivessem pelo
menos uns cem homens armados na área ocupada pelos oficiais superiores e pelo seu pessoal, a Segunda Legião estava acampada no exterior de Caleba, num imenso campo
fortificado, quase tão grande como a capital dos atrébates. Era uma forma salutar de recordar àqueles que ainda albergassem o mais pequeno impulso para a revolta
o poderio monolítico da força que teriam que enfrentar.
Um escrivão aproximou-se, vindo da longa e baixa tenda que estava montada à entrada da área do quartel-general. Chamou um dos guardas.
- Deixem passar o centurião.
Os pretorianos afastaram-se para deixar Cato entrar, mas este endireitou as costas e enfrentou-os.
- É costume saudar um superior - disse, numa voz calma e fria -, e isso vale até para os membros da guarda pessoal de um legado.
O optio veterano que comandava os pretorianos não conseguiu esconder a surpresa. Não tanto por o oficial que se apresentava à sua frente ser quase suficientemente
novo para ser seu filho, mas porque não ostentava
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nenhuma indicação da sua patente, e só um fanático pela etiqueta militar insistiria na saudação adequada quando apenas envergava uma túnica. Mas Cato recusou-se
a mover-se. Estava mal disposto por causa do tratamento que tinha sido dado aos seus homens desde que tinham regressado a Caleba.
Os Lobos tinham visto ser-lhes negado o acesso às instalações militares. Ao invés, tinham-lhes sido distribuídas as tendas menos danificadas do depósito, e tinha-lhes
sido dito que as montassem no recinto real. Cato passara a primeira noite com eles, mas quando Vespasiano soubera, tinha ordenado o imediato regresso do centurião
à legião, e que se mantivesse nos limites do campo até receber novas instruções. Tinha-lhe sido dito, a ele e a Macro, que o legado lhes daria novas colocações assim
que as circunstâncias o permitissem. Sem nada para fazer, Macro aproveitava todos os momentos para dormir, enquanto Cato percorria as fileiras de tendas de couro
hora após hora, tentando cansar-se o suficiente para conseguir dormir. Mas quando o sol de Verão finalmente se escondia e ele se enrolava no leito, a mente de Cato
examinava uma e outra vez os acontecimentos recentes, e a preocupação com os seus homens impedia-o de descansar como o seu corpo exausto exigia.
Portanto, ao enfrentar o optio dos pretorianos, agradava-lhe a ideia de forçar a mão do outro; e este estava disso consciente. Com um olhar de desdém, o optio ergueu
a mão, fazendo a saudação regulamentar, e dando um passo ao lado. Cato acenou enquanto avançava. Seguiu o escrivão pela entrada larga da tenda mais próxima. Lá dentro
o ar estava quente e pegajoso, e os escrivães ao serviço do legado circulavam de tanga, enquanto tratavam das ordens e registos necessários ao estabelecimento da
nova província.
- Por aqui, senhor, por favor.
O escrivão afastou a cortina na retaguarda da tenda. Do outro lado havia um espaço vazio para o qual davam seis grandes tendas. No interior destas viam-se tribunos
a trabalhar com os seus ajudantes, em longas mesas. Ordenanças esperavam sentados na relva, preparados para levarem mensagens, e passando o tempo com jogos de dados.
O escrivão levou Cato através do espaço vazio, que parecia tão quente como o interior das tendas, uma vez que não se fazia sentir a menor brisa. O suor escorria
pelas costas de Cato enquanto seguia o escrivão na direcção da maior das tendas, no outro lado da praça. As cortinas estavam abertas, e ele avistou um soalho de
madeira e um círculo de bancos de ferro. Para lá dos bancos, via-se uma grande mesa, à qual se encontravam sentados dois homens, partilhando um jarro de vinho. O
escrivão passou sob a cortina e, com um discreto floreado da mão, indicou a Cato que o devia seguir.
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- Senhor, o centurião Cato.
Vespasiano e Quintílio, que mostrava uma novíssima corrente de ouro com um pendente, viraram-se. O legado fez sinal com a mão.
- Centurião, por favor, junta-te a nós... É tudo, Parveno.
- Sim, senhor. - O escrivão inclinou a cabeça e recuou para fora da tenda, enquanto Cato se aproximava da mesa e se colocava em sentido. Vespasiano sorriu-lhe, e
ele não conseguiu evitar a nítida sensação de que o seu comandante se preparava para lhe dar notícias desagradáveis.
- Centurião, tenho boas notícias. Encontrei uma posição para ti. A Sexta Centúria da terceira coorte. O centurião Macro também será nomeado para a mesma coorte.
Vocês trabalham bem juntos, portanto podem muito bem continuar a servir na mesma unidade. O general e eu temos muito que lhes agradecer. Se o inimigo tivesse conseguido
tomar Caleba e liquidar Vérica, não tenho dúvidas de que por esta altura estaríamos em retirada. Tu e o Macro portaram-se à altura das mais elevadas tradições das
legiões, e recomendei que fossem ambos condecorados. É o mínimo que posso fazer à laia de recompensa.
- Senhor, limitámo-nos a cumprir o nosso dever. - Replicou Cato em tom neutro.
- De facto. E como sempre, fizeram-no de forma excelente. Foi um bom trabalho, centurião, e ofereço-te a minha gratidão particular. - O legado sorriu de forma calorosa.
- Mal posso esperar para te ver à frente do teu próprio grupo de legionários, e atrevo-me a dizer que o centurião Macro deve estar ansioso por regressar à campanha.
As nomeações são efectivas a partir deste momento. A coorte foi fortemente afectada nesta última acção
- perdeu alguns homens de valor.
Era pôr as coisas de forma ligeira, reflectiu Cato. Perder dois ou mais centuriões numa única e rápida escaramuça demonstrava bem quão desesperada tinha sido a refrega.
O coração pulou-lhe no peito ao pensar que lhe tinha sido atribuída uma centúria. Melhor ainda, Macro estaria na mesma coorte. Depois passou-lhe pela cabeça que
este era o tipo de informação que Vespasiano teria preferido com certeza dar pessoalmente aos dois homens. Nesse caso, porque estava ele ali sozinho?
- Então, Centurião? - Quintílio arqueou as sobrancelhas. - Não agradeces?
- Não precisa de o fazer. - Interrompeu Vespasiano, calmamente.
- Merece-o. Ambos merecem. E várias vezes. Portanto, Quintílio, por favor, acalma-te, e deixa-me tratar deste assunto.
Quando o legado olhou para ele com uma expressão de compreensão, Cato percebeu que ia receber más notícias.
- É óptimo poder voltar a ter alguém com o teu potencial a servir

nas minhas forças. Mas isso quer dizer, naturalmente, que terás de abandonar o comando da tua unidade nativa. Compreendes?
- Sim, senhor.
- Além disso - adiantou Quintílio -, eu e o legado decidimos que, à luz dos acontecimentos recentes, os Atrébates têm que ser desarmados.
- Desarmados, senhor? Os meus homens?
- Todos. - Confirmou Quintílio. - Sobretudo os teus homens. Não podemos ter um bando de nativos descontentes a passear por aí com as suas espadas, pois não?
- Não, senhor. - Cato respondeu com frieza. Chamar bando aos Lobos era quase mais do que ele podia aguentar. - Suponho que não. Não depois de tudo o que eles fizeram
para nos salvar a pele.
Quintílio riu.
- Cuidado, Centurião. Não te deixes tomar de afectos por estes bárbaros. E gostaria que, de futuro, mostrasses o devido respeito ao posto que passarei a ocupar.
- O seu posto. Sim, senhor. - Cato virou-se para o legado. - Senhor, peço licença para falar.
Vespasiano anuiu.
- Porque não manter os Lobos como unidade auxiliar? Já demonstraram o seu valor em combate. Sei que já não são muitos, mas podiam enquadrar novos recrutas.
- Não. - Vespasiano foi firme na resposta. - Lamento, Centurião. São ordens do general. Não podemos admitir quaisquer dúvidas acerca da lealdade dos homens que servem
ao lado das legiões. Está demasiado em jogo. Acabou. A unidade será desmantelada e desarmada, e já.
O ênfase nas duas últimas palavras atingiu Cato como um choque.
- Senhor, o que quer dizer com essas palavras?
- Eles estão lá fora, do outro lado das tendas. Mandei que os chamassem antes de te convocar. Quero que sejas tu a dar-lhes as notícias.
- Porquê, senhor? - Perguntou Cato, com o amargo travo da traição a subir-lhe na garganta. - Porquê eu?
- Falas a língua deles. És o seu comandante. Será melhor que o oiçam da tua boca.
Cato sacudiu a cabeça.
- Senhor, não o posso fazer...
Rapidamente, Quintílio lançou-se para a frente, enfrentando o jovem centurião.
- Fá-lo-ás! É uma ordem, e esta foi a última vez que tolerei a tua insubordinação!
Vespasiano colocou a mão sobre o ombro do procurador.

- Não tens que te meter nisto, Quintílio. O centurião obedecerá às ordens que lhe dei. Sabe o que sucederá se for outro oficial a dar a ordem de desarmar aos seus
homens. Não queremos que nos dêem trabalho. Isso custar-lhes-ia caro.
Era portanto assim, compreendeu Cato. Os Lobos estavam acabados, e se protestassem seriam sumariamente castigados, de uma forma ou de outra. E seria ele a fazer
o trabalho sujo do novo governador. Pior ainda, não havia escolha. Pelo bem dos seus homens, teria que ser Cato a dizer-lhes o fraco valor que Roma atribuía ao sangue
derramado pelos Atrébates em defesa do império.
- Muito bem, senhor. Fá-lo-ei.
- Fico agradecido, é claro. - Disse Quintílio.
- Obrigado, centurião. - Vespasiano assentiu. - Sabia que havias de compreender. Bom, então é melhor despachares este assunto.
Cato saudou o legado, virou-se e, antes que o procurador pudesse reagir à ofensa, marchou para fora da tenda, de volta ao brilho do sol. O calor fechou-se à sua
volta como um imenso cobertor, mas o desconforto que a túnica lhe provocava já não o afectava; deixou a tenda da administração e rodeou lentamente a área do quartel-general.
Sentia-se enojado. Pela traição que fora cometida contra os seus homens, a sangue-frio. Pelo facto de que os Lobos passariam a olhá-lo com ódio e desprezo. O laço
de camaradagem que tinham partilhado seria como uma faca a torcer-se nas entranhas dos homens, e a mão por trás da lâmina seria a sua. Todo o prazer e ilusão que
poderia ter por causa do seu novo comando se lhe varreram da mente, enquanto virava a esquina do complexo de tendas e se dirigia rigidamente para a fileira dupla
em que estavam formados os sobreviventes da Coorte dos Lobos. Ali perto, algumas secções de legionários treinavam, com armaduras completas. Para qualquer eventualidade,
pensou Cato para si mesmo, com um sorriso amargo.
Assim que avistou o centurião, Mandrax mandou os homens colocarem-se em sentido. Pararam de conversar e endireitaram-se, a lança e o escudo empunhados com garbo
por todos. Ombros para dentro, peitos para fora e queixos erguidos, como Macro lhes tinha ensinado no primeiro dia da recruta. Os capacetes de bronze brilhavam ao
sol enquanto Cato avançava e se colocava à frente dos homens.
- À vontade! - Ordenou em céltico, e os homens descansaram. Por momentos olhou por cima das cabeças, para longe, lutando contra a vontade de baixar os olhos e admitir
a sua vergonha. Alguém tossiu, e Cato decidiu que era melhor despachar o assunto o mais depressa possível.
- Camaradas - começou desajeitadamente, uma vez que nunca
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tinha usado o termo antes, embora se tivessem realmente transformado nisso ao longo dos dias de desespero do último combate que tinham travado -, fui transferido
para outra unidade.
Alguns dos homens franziram os rostos, mas a maior parte continuou a olhar em frente, sem qualquer expressão nas faces.
- O procurador pediu-me que vos transmitisse os seus agradecimentos pela forma como se comportaram nos últimos meses. Poucos homens alguma vez combateram com maior
bravura, e contra tão grandes obstáculos. Agora, é chegado o momento de regressarem ao seio das vossas famílias. É altura de aproveitar a paz que tanto merecem.
É altura de abandonarem o peso das vossas armas, e... - Cato não conseguiu continuar com a charada. Engoliu em seco e deixou que o olhar se dirigisse ao solo, enquanto
lutava ferozmente para evitar que as lágrimas surgissem. Sabia bem que, se deixasse os seus verdadeiros sentimentos virem ao de cima, nada poderia fazer para as
evitar. Sabia também que preferiria morrer a deixar que os seus homens o vissem a chorar, por mais que a situação fosse injusta, amarga e vergonhosa. Engoliu de
novo, cerrou as mandíbulas e voltou a levantar os olhos.
- Foram dadas ordens para a desactivação dos Lobos. Devem deixar as vossas armas e todo o equipamento aqui mesmo, e deixar o depósito... Lamento.
Confusos e descrentes, os homens encararam-no em silêncio durante alguns momentos. O primeiro a falar foi Mandrax.
- Senhor, deve haver algum erro. Há com certeza...
- Não há nenhum erro. - Cato respondeu de forma ríspida, já que não confiava no que poderia suceder se oferecesse a sua simpatia, ou se tentasse explicar a situação.
- Deponham as armas e o equipamento, já. É uma ordem.
- Senhor...
- Obedeçam à minha ordem! - Gritou Cato, ao reparar que os legionários tinham abandonado a pretensão de estarem a treinar, e que formavam a curta distância dos Lobos.
- Desarmem! Agora!
Mandrax abriu a boca para esboçar um protesto, mas calou-o, e limitou-se a abanar a cabeça. Cato aproximou-se dele e falou num murmúrio.
- Mandrax, não temos escolha. Temos que o fazer antes que eles nos obriguem. - Cato indicou os legionários. - Tens que ser o primeiro.
- Tenho mesmo? - Respondeu Mandrax calmamente.
- Sim! - Insistiu Cato. - Não quero o teu sangue nas minhas mãos. Nem o deles. Pelos céus, homem, fá-lo!
- Não.
- Se tu não o fizeres, nenhum deles o fará.
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Os olhos de Mandrax mostravam bem a profunda mágoa que sentia quando encarou o centurião; depois olhou de relance para os legionários, que os observavam atentamente.
Por um momento, considerou a situação, e finalmente assentiu. Cato respirou fundo. Mandrax desembainhou então a espada, e lançou-a por terra, aos pés do romano.
Depois de uma curta pausa, outro homem tomou a iniciativa de depor a lança e o escudo, e de desapertar o capacete. Então todos os outros repetiram esses gestos,
até que ficaram à frente de Cato só com as suas túnicas, com o terreno juncado de equipamento. Cato endireitou-se, e deu uma ordem final aos seus homens.
- Coorte... destroçar!
Os homens encaminharam-se para o portão que levava a Caleba. Alguns lançaram olhares a Cato, antes de se virarem e acompanharem silenciosamente os seus camaradas.
Mandrax deixou-se estar, ainda empunhando o estandarte dos Lobos. Como uma estátua, o olhar permanecia fixo em Cato; nenhum dos dois homens sabia o que dizer. O
que poderiam ainda dizer? Havia um laço entre homens que tinham combatido lado a lado, mas esse laço tinha sido cortado, e não voltaria a ser reatado no futuro.
Por fim Cato ergueu lentamente o braço e estendeu a mão a Mandrax. O porta-estandarte apercebeu-se do gesto, e moveu a cabeça devagar, em concordância. Avançou e
apertou o antebraço de Cato.
- Foram bons tempos, Romano. Foi bom ter sido um guerreiro uma última vez.
- Sim, foi bom. - Cato fez um ligeiro movimento de cabeça. - Não esquecerei a Coorte dos Lobos.
- Não, nunca a esqueças.- Mandrax afrouxou a pressão no braço do romano, e deixou cair o braço junto ao corpo. Então olhou para a cabeça de lobo dourada, no cimo
do estandarte. - Posso ficar com isto?
O pedido apanhou Cato de surpresa.
- Sim, claro.
Mandrax sorriu.
- Adeus então, Centurião.
- Adeus, Mandrax.
O bretão virou-se, apoiou o cabo do estandarte no ombro e, lentamente, dirigiu-se ao portão distante.
Cato ficou a vê-lo afastar-se, sentindo-se vazio e envergonhado, e desprezível. Ao mesmo tempo que Mandrax atravessava o portão e desaparecia da sua vista, Cato
apercebeu-se do som de passos que se aproximavam pelas suas costas.
- Cato! Cato, miúdo... - Macro estava ofegante, e parou junto ao amigo. - Soube agora mesmo... O legado disse-me... Disse que estavas para

estas bandas... Vamos voltar à acção! Imagina. Com os dois na mesma coorte, os Bretões nem vão saber o que lhes vai cair em cima!
- Não... - Respondeu Cato sem grande entusiasmo. - Nem sonham.
- Vá lá, miúdo! - Macro deu-lhe uma palmada no ombro. - Grandes notícias! Há dois meses aquele charlatão do hospital dizia que podias nunca mais voltar ao serviço
nas Águias. E olha para ti agora!
Finalmente Cato virou-se para encarar Macro, e forçou um sorriso.
- Sim. São boas notícias.
- Melhor ainda - os olhos de Macro brilhavam de excitação, enquanto ele se abeirava mais de Cato -, estive a falar com um escrivão do quartel-general, e parece que
vamos avançar. Já daqui a poucos dias.
- Marchar?
- Sim. O legado tem que reunir-se às outras legiões, e destruir de vez o sacana do Carátaco. E depois acaba-se a questão. Só será preciso dividir o saque. Portanto,
miúdo, anima-te! Somos centuriões na melhor legião do melhor exército da porra deste mundo, e não podemos pedir melhor do que isso! - Macro puxou-lhe pelo braço.
- Vamos, vamos ver se encontramos umas bebidas para celebrar.
- Não; beber, não. - Disse Cato, o que fez Macro franzir o sobrolho. Mas então, Cato sorriu devagar e continuou. - Vamos mas é apanhar uma bebedeira. Um grande, enorme pifo...

 


NOTA HISTÓRICA

É talvez irónico que as dificuldades com que o General Pláucio teve que se defrontar no segundo Verão da campanha para a conquista da Britânia tenham tido origem
no sucesso alcançado no ano anterior. Os Bretões e o seu comandante, Carátaco, tinham sofrido uma série de derrotas dolorosas em sangrentas batalhas em linha que
tinham culminado na queda de Camaloduno - capital da mais poderosa das tribos da ilha - e na capitulação de várias outras tribos. É provável que, confrontado com
a redução de números das suas forças e a impossibilidade de atrair mais homens, Carátaco tenha adoptado tácticas diferentes em 44 d. C. Os Romanos tinham demonstrado
o seu poder no campo de batalha, e o comandante britânico não deveria sentir-se inclinado a lançar os seus homens contra a devastadora força das legiões romanas.
A retirada era a melhor opção que se lhe oferecia, e não apenas porque lhe permitia manter o exército nativo em existência. O General Pláucio seria atraído à perseguição,
lançando as legiões numa tentativa de destruir a resistência nativa numa grandiosa batalha final. E quanto mais avançassem, mais extensas seriam as suas linhas de
abastecimento, e mais forças teriam que ser dispensadas para a sua vigilância e defesa. Por outro lado, as legiões não poderiam dispersar-se e avançar numa frente
larga; eram demasiado poucas, e seriam facilmente destruídas se combatessem isoladamente. Tudo isto faz com que seja surpreendente ver Vespasiano ser destacado,
com uma pequena força, para prosseguir a campanha no sudoeste da ilha.
Esta divisão das forças romanas em face de um inimigo que continuava a ser-lhes superior em número parece uma decisão discutível do comando. Nunca saberemos quais
as razões que o General Pláucio encontrou para acreditar que o risco era reduzido. Com a perspectiva do tempo, os historiadores assinalam que Vespasiano alinhou
uma série de triunfos, mas podemos especular sobre o que teria acontecido se os Bretões tivessem conseguido concentrar uma força suficientemente grande para enfrentar a
Segunda Legião. Se Carátaco tivesse conseguido surpreender esta unidade e derrotá-la, então teria campo aberto na retaguarda do exército romano, atacando onde quisesse
e destruindo as linhas de abastecimento. Isso teria constituído um desastre para as legiões, e poderia mesmo ter conduzido a uma derrota da escala da que sucedeu
ao General Varo nas florestas da Germânia, quando três legiões foram massacradas.
Esta hipótese relembra-nos o delicado equilíbrio em que balançam todas as campanhas militares - uma faceta da história que se perde geralmente nas narrativas bem
estruturadas que os historiadores de épocas posteriores tecem ao redor dos eventos. Mas, para os homens no terreno
- os Macros e Catos que existem em todos os exércitos -, a realidade é sempre feita de confusão, dúvida, e de uma sangrenta luta pela sobrevivência. Um mundo muito
distante dos límpidos planos e mapas de generais e políticos.
Carátaco escapou mais uma vez. Desafiador, mas cada vez mais desesperado, procura uma derradeira oportunidade para rectificar o infeliz fado dos Bretões. Nos meses
que se seguirão às acções relatadas neste livro, os Centuriões Macro e Cato, bem como todos os seus camaradas das quatro legiões que constituem o exército Romano,
não poderão cometer qualquer erro na sua tentativa de pôr termo ao duelo mortal que travam com um inimigo fanatizado e desesperado.

 

 

                                                    Simon Scarrow         

 

 

 

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