Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A ALQUIMIA DO AMOR
Alice se orgulhava de sua inteligência e de ter recebido uma boa educação lógica. Era uma dama que nunca tinha dado muito crédito às lendas. Mas era porque jamais tinha precisado que uma lenda a ajudasse até pouco tempo atrás.
Essa noite, desejava acreditar e, de fato, havia uma lenda vivente sentada à cabeceira da mesa, no salão do Lingwood Manor, a propriedade familiar.
O sombrio cavalheiro ao que chamavam Hugh o Implacável, jantava sopa de legumes e salsicha de porco, como se fosse um homem comum. Alice deduziu que até uma lenda tinha que comer.
Essa ideia prática lhe deu ânimos enquanto descia as escadas da torre. Colocou o seu melhor vestido para tão importante ocasião, feito de veludo verde escuro, e debruado com cinta de seda. Tinha o cabelo preso com uma fina rede de contas de ouro que tinha sido de sua mãe, e fixado com uma delicado presilha de metal dourado. E calçava sandálias de couro verde. Alice não podia estar mais disposta para sair ao encontro de uma lenda.
Entretanto, a cena com que se deparou ao final das escadas, a fez vacilar.
Talvez Hugh o Implacável comesse como um homem qualquer, mas aí terminava a semelhança. Percorreu-a um pequeno estremecimento, em parte de temor, em parte de expectativa. Todas as lendas eram perigosas, e sir Hugh não era a exceção.
Deteve-se no último degrau, as saias presas com as mãos, e contemplou inquieta o salão lotado. Sentiu uma sensação de irrealidade e, por um momento, imaginou que tinha entrado na oficina de um feiticeiro.
Embora estivesse cheio de gente, no recinto reinava uma estranha quietude. O ar era pesado, como carregado de sombrias maravilhas e lúgubres advertências. Ninguém se movia, nem os criados.
O harpa do trovador silenciou. Os cães se escondiam sob as mesas largas, sem fazer caso dos ossos que estavam no chão. Os cavalheiros e soldados sentados nos bancos pareciam feitos de pedra.
As chamas do salão principal se agitavam inutilmente para as sombras que pareciam mexer e turvar o ambiente.
Era como se tivessem lançado um feitiço sobre o salão, antes familiar, convertendo-o em um lugar estranho e antinatural. "Não teria que me surpreender –pensou Alice-. Hugh o Implacável tem uma reputação mais aterradora que a de qualquer mago."
No final das contas, este era o homem em cuja espada estava gravada, conforme diziam, a expressão Provocadora de Tormentas.
Alice contemplou as feições obscurecidas de Hugh através de todo o salão, e se convenceu de três coisas com total certeza. A primeira, que as tempestades mais perigosas eram as que se agitavam dentro do indivíduo, e não as que lhe atribuíam à espada. A segunda, que continha os ventos sinistros que uivavam dentro dele com vontade inflexível e decisão férrea. A terceira, que soube em um único olhar, foi que Hugh sabia como usar essa reputação em seu próprio benefício. Embora na aparência fosse um convidado, dominava a todos os presentes no salão.
-É lady Alice?
Hugh falou do fundo dessas sombras opressivas, e sua voz soou como se viesse do fundo de um profundo lago, no interior de uma cova muito profunda.
Os rumores que o precediam não exageravam. O sombrio cavalheiro estava vestido totalmente de negro, sem adornos, nem bordados. Túnica, cinturão, botas... toda da cor de uma noite sem estrelas.
-Eu sou Alice, meu senhor. -Fez uma profunda reverência, pois as boas maneiras nunca fariam mal à própria causa. Quando ergueu a cabeça, viu Hugh olhando-a, fascinado - Ordenou que me buscassem, senhor.
-Sim, senhora. Por favor, aproxime-se para que possamos falar. -Não era uma petição-. Tenho entendido que você tem em seu poder algo que me pertence.
Era o momento que Alice tinha estado esperando. Levantou-se lentamente depois do gracioso gesto de submissão. Avançou entre as filas de largas mesas, esforçando-se por recordar tudo o que tinha averiguado sobre o Hugh nos últimos três dias.
No melhor dos casos, a informação era escassa e se apoiava, mais que nada, em intrigas e mitos. Não lhe bastava esse conhecimento. Tinha querido saber mais porque muitas coisas dependiam de como tratasse esse homem nos próximos minutos.
Mas o tempo tinha terminado. Teria que aproveitar ao máximo os dados fragmentados que conseguiu reunir entre os falatórios que percorriam a aldeia e o salão do tio.
O suave murmúrio de suas saias sobre as tábuas do chão e o ranger do fogo foi o único som que se ouviu no grande recinto. Sobre o lugar pendia uma atmosfera de terror e excitação.
Alice lançou um olhar a seu tio, sir Ralf, que estava sentado junto ao perigoso hóspede. A cabeça calva do tio tinha um filete de suor. A figura roliça, embelezada com uma túnica de cor escura que enfatizava o corpo gordo, estava perdida nas sombras que pareciam emanar do Hugh. Uma das mãos gordinhas de Ralf, carregada de anéis, rodeava uma jarra de cerveja, mas não bebia.
Pelas atitudes altissonantes e fanfarronas do tio, Alice sabia que estava ansioso ao ponto de sentir um puro terror. Os joviais primos da Alice, Gervase e William, também estavam assustados. Sentados rígidos a uma das mesas mais baixas, tinham os olhos fixos em Alice. A moça percebia o desespero, e entendia o motivo. Frente a eles, com semblante sério, estavam sentados os homens do Hugh, endurecidos nas batalhas, enquanto que o fogo fazia brilhar os punhos de suas espadas.
Alice tinha a missão de aplacar Hugh. Dependia dela que essa noite não corresse sangue.
Todos sabiam por que Hugh o Implacável tinha ido ao Lingwood Hall. Só os habitantes sabiam que o que procurava não estava ali, e o que fazia tremer os joelhos de todos era a possível reação do sujeito quando se inteirasse da novidade.
Decidiu-se que Alice teria que lhe explicar a situação. Nos últimos três dias, desde que se soube que o aterrador cavalheiro se aproximava, Ralf se queixava em voz alta perante todos, de que o desastre iminente seria culpa apenas de Alice.
O tio insistia em que a sobrinha tinha que se encarregar do peso de tratar de convencer Hugh de não destruir o feudo em retaliação. Alice sabia que seu tio estava furioso com ela. Também sabia que estava muito assustado... e tinha razão.
Lingwood Manor contava com um pequeno e matizado contingente de homens armados, mas que em seu interior eram mais granjeiros que guerreiros. Faltava-lhes experiência e instrução apropriadas. Não era nenhum segredo que a propriedade seria incapaz de resistir a um possível assalto do legendário Hugh o Implacável. Em menos tempo que tem contado, ele e seus homens converteriam o lugar em ruínas.
Ninguém achou estranho que Ralf esperasse que a sobrinha assumisse a responsabilidade de acalmar Hugh. Mais até: quase todos ficariam supresos se tal não tivesse ocorrido. No feudo, todos sabiam que Alice não era fácil de intimidar, nem por uma lenda.
Aos vinte e três anos, era uma mulher com idéias próprias, e poucas vezes vacilava em mostrá-las. Sabia que seu tio se queixava de que fosse tão decidida e que, a suas costas, chamava-a de bruxa, salvo quando necessitava de algumas das poções que preparava a moça para aliviar as articulações doloridas.
Alice se considerava resolvida mas não tola: tinha consciência dos perigos desse momento. Mas também sabia que a chegada do Hugh significava uma oportunidade que não podia perder. Se não, ela e seu irmão ficariam presos para sempre em Lingwood Manor.
Deteve-se frente à cabeceira da mesa e olhou ao homem carrancudo, sentado na melhor cadeira de carvalho esculpida do salão.
Dizia-se que, até sob a melhor luz, Hugh o Implacável não tinha aparência agradável, mas essa noite, a combinação de chamas e sombras conferia a suas feições o aspecto ameaçador do diabo.
Tinha o cabelo mais negro que o corvo, penteado, caíam em ondas sobre a fronte. Os olhos, de um estranho matiz dourado ambarino, brilhavam de inteligência e impiedade. Era evidente como tinha conquistado o apelido de Implacável. Alice soube imediatamente que esse homem não se deteria diante de nada para obter seus fins.
Embora sentisse um calafrio, a decisão da Alice não vacilou.
-Lady Alice, decepcionou-me que preferisse não comer conosco -disse Hugh lentamente-. Disseram-me que você fiscalizou a preparação.
-Sim, milorde. -Dedicou-lhe seu sorriso mais luminoso. Um dos dados que conseguiu descobrir foi que ao Hugh gostava dos pratos bem preparados. Estava segura de que a comida tinha estado além de toda crítica-. Gostou?
-Interessante pergunta. -Pensou um momento, como se fosse um problema de filosofia ou de lógica-. Não encontrei problemas no sabor nem na variedade de pratos. Confesso que comi até me fartar.
O sorriso de Alice se evaporou. Irritaram-na a mesura das palavras e a óbvia falta de entusiasmo. Esse dia, tinha passado horas nas cozinhas controlando os preparativos do banquete.
-Alegra-me saber que não encontrou nenhum problema nos pratos, milorde.
Pela extremidade do olho percebeu que seu tio se encolhia diante do tom cortante da sobrinha.
-Não, não havia nada de mau na comida --concedeu o cavalheiro--. Mas devo admitir que quando uma pessoa se inteira de que a pessoa que fiscalizou os preparativos decide não comê-la, não pode descartar a possibilidade de que haja veneno.
-Veneno! - indignou-se. -A mera idéia de acrescentar condimento à comida, não é assim?
Ralf se encolheu como se Hugh acabasse de tirar a espada. De onde estavam os criados emergiu uma exclamação de horror. Os soldados se mexeram, inquietos. Alguns dos cavalheiros colocaram as mãos nos punhos das espadas. Gervase e William pareciam a ponto de adoecer.
-Não, milorde -apressou-se a balbuciar Ralf-, asseguro-lhe que não há o menor motivo para suspeitar que minha sobrinha possa ter envenenado a sua comida, eu juro, senhor, por minha honra, ela não seria capaz de fazer algo assim.
-Como ainda estou aqui, e muito bem depois de ter jantado soberbamente, inclino-me a estar de acordo com você --disse Hugh-. Mas não pode deixar de entender minha cautela, diante dessas circunstâncias.
-E que circunstâncias seriam essas, milorde? -perguntou Alice.
Quando o tom de Alice passou de cortante a grosseiro, viu que Ralf fechava com força os olhos, desesperado. Ela não tinha a culpa de que a conversação não tivesse começado com um tom amigavél. Quem lhe infundiu antagonismo foi Hugh, não ela.
Veneno, caramba! Como se pudesse ocorrer-lhe semelhante coisa!
Teria podido usar uma das receitas mais insalubres de sua mãe só como último recurso, se um de seus informantes a tivesse convencido de que Hugh era estúpido, cruel, um tipo brutal, carente de inteligência. "E até nessas condições -pensou, cada vez mais indignada-, não me ocorreria matá-lo."
Limitaria-se a usar uma das preparações inofensivas cujo único efeito seria deixar a ele e a seus homens tão sonolentos ou nauseados que fossem incapazes de matar aos habitantes da casa a sangue frio.
Hugh observou a Alice. E então, como se lhe lesse os pensamentos, sua boca desenhou um sorriso perverso que não tinha nem um pingo de bondade, só uma grande ironia.
-Senhora, culpa-me por ser cauteloso? Recentemente soube que você estuda textos antigos. É bem sabido que os antigos tinham grande inclinação para os venenos. Além disso, inteirei-me de que sua própria mãe era uma perita nas ervas estranhas e pouco comuns.
-Senhor, como se atreve? -Já estava furiosa, e esqueceu qualquer idéia de tratar a esse homem com cuidado e circunspeção-. Sou estudiosa, não envenenadora. Estudo matérias de filosofia natural, não de magia negra. Em efeito, minha mãe era uma perita herbanária e grande curadora. Mas jamais teria usado suas habilidades para machucar a ninguém.
-Certamente, alivia-me sabê-lo.
-Eu tampouco tenho intenções de matar pessoas -continuou Alice-. Nem sequer a hóspedes grosseiros, ingratos como você, milorde.
A Jarra de cerveja tremeu na mão de Ralf.
-Alice, pelo amor de Deus, cale-se.
A sobrinha não lhe fez caso e olhou ao Hugh com olhos entreabertos.
-Pode estar seguro de que nunca em minha vida matei ninguém, senhor. Mas, não é uma afirmação que se possa fazer com respeito a você.
O silêncio mortal se quebrou pelas exclamações cheias de horror de vários dos presentes. Ralf gemeu e colocou a cabeça entre as mãos. Gervase e William estavam chocados.
Hugh era o único no salão que permanecia imperturbável. Contemplou Alice com expressão pensativa:
-Temo que esteja certa, senhora –disse em tom suave-. Não posso afirmar isso.
A simplicidade da admissão teve para Alice o efeito de ter se chocado contra uma parede de tijolos. Interrompeu-se de repente.
Piscou e recuperou o equilíbrio.
-Sim, bom, aí está.
Os olhos ambarinos brilharam de curiosidade.
–Senhora, onde estamos, exatamente?
Enchendo-se de atitude, Ralf tratou de deter a espiral descendente da conversação. Levantou a cabeça, secou a fronte na manga da túnica, e olhou ao Hugh com expressão de súplica:
-Senhor, rogo-lhe, entenda que minha sobrinha não quis ofendê-lo.
O aludido compôs uma expressão dúbia.
-Não?
-Claro que não -exclamou Ralf-. Não há motivos para suspeitar dela só porque preferiu não jantar conosco. Para falar a verdade, Alice nunca janta aqui no salão principal, com o resto dos habitantes da casa.
-Que estranho -murmurou Hugh.
Alice tamborilou com a ponta da sandália.
-Senhores, estamos perdendo tempo.
Hugh lançou um olhar para Ralf.
-Afirma que... bem, prefere a solidão de seu próprio quarto - apressou-se a explicar Ralf.
-E, por que?
Hugh se concentrou outra vez em Alice.
Ralf resmungou:
-Diz que, para ela, aqui no salão principal o nível... bem... do discurso intelectual, como o chama, é muito pobre.
-Entendo.
Ralf lançou a sua sobrinha um olhar hostil, acalorando-se com uma antiga queixa.
-Ao que parece, a conversação que sustentam na mesa os cavaleiros honestos, de corações rebeldes não é elevada o bastante para as exigências de milady.
Hugh ergueu as sobrancelhas.
-Como? A lady Alice não gosta de ouvir detalhes da prática matinal de tiro dos homens nem dos êxitos na caça?
Ralf suspirou:
-Não, milord, lamento dizer que não manifesta interesse em tais assuntos. Em minha opinião, minha sobrinha é o exemplo perfeito para mostrar a estupidez de educar às mulheres. As deixam obstinadas. Faze-as acreditar que deveriam vestir calças. O pior é que gera ingratidão e falta de respeito pelos pobres, desventurados homens encarregados de protegê-las, que têm a triste responsabilidade de alimentá-las e vesti-las.
Zangada, Alice lhe lançou um olhar fulminante.
-Tio, isso é mentira. Sabe bem que estou muito agradecida pelo amparo que brindou a meu irmão e a mim. Onde estaríamos se não fosse por você?
Ralf se indignou.
-Vamos, Alice, já é suficiente.
-Direi onde estaríamos Benedict e eu se não tivesse sido por seu generoso amparo. Estaríamos sentados em nosso próprio salão, jantando em nossa mesa.
-Pelo sangue dos Santos, Alice, ficou louca? -Olhou-a com crescente horror-Não é momento de discutir esse assunto.
-Certo. -Esboçou um sorriso amargo - Mudaremos de assunto. Prefere que falemos de como calculou tudo para gastar o pouco que restava de minha herança que eu consegui preservar, depois que deu a propriedade de meu pai a seu filho?
- Maldição, não é uma mulher de hábitos baratos. - Por um momento, a inquietação do Ralf pela presença do Hugh cedeu passo à larga lista de queixas que tinha contra Alice - Esse último livro que quis comprar custou mais que um bom cão de caça.
-Era um importante escrito do bispo Marbode do Rennes -replicou Alice-. Estabelece as propriedades de todas as gemas e pedras, e foi uma compra excelente.
-Ah, sim? -resmungou Ralf-. Bom, me deixe dizer no que outra coisa se poderia ter gasto melhor essa soma.
-Basta.
Hugh tomou sua taça com uma mão grande e bem formada.
Embora o gesto fosse mínimo, ao vir das profundidades do vasto poço de quietude que o rodeava, sobressaltou a Alice, que retrocedeu um passo sem querer.
Ralf se apressou a esconder qualquer outra acusação que queria lhe fazer.
Alice se ruborizou, zangada e envergonhada da estúpida discussão. "Como se não tivéssemos questões mais importantes que tratar -pensou-. Este caráter feroz é minha ruína."
Por um instante, perguntou-se com certa inveja como teria obtido Hugh um domínio tão grande de seu próprio temperamento. Pois não havia dúvida de que o continha com mão de ferro. Era uma das características que o faziam tão perigoso
Quando a olhou, os olhos do Hugh refletiam as chamas da lareira.
-Vamos interromper esta disputa familiar que, sem dúvida, é de longa data. Não tenho tempo nem paciência para resolvê-la. Lady Alice, sabe para que vim aqui esta noite?
-Sim, milorde. -Decidiu que não tinha sentido lhe dar voltas à questão-. Buscar a pedra verde.
-Estive atrás da pista desse maldito cristal há mais de uma semana, senhora. No Clydemere me inteirei de que a tinha comprado um jovem cavalheiro de Lingwood Hall.
-De fato, assim foi, milord - disse Alice com vivacidade.
Estava tão impaciente por resolver o assunto como ele.
-Para você?
-Correto. Meu primo Gervase descobriu que um vendedor a tinha na Feira do Verão do Clydemere. -Viu que, ao ouvi-la mencioná-lo, Gervase se sobressaltava-. Meu primo sabia que eu acharia a pedra muito interessante, e teve a gentileza de me trazê-la.
-Disseram-lhe que, depois, encontraram o vendedor com a garganta cortada? -perguntou Hugh, com tom indiferente.
A boca de Alice secou.
-Não, senhor. É evidente que Gervase não estava informado da tragédia.
-Assim parece.
O cavalheiro lançou ao Gervase um olhar de caçador. Gervase abriu e fechou a boca duas vezes, até que conseguiu dizer:
-Juro que não sabia quão perigoso era o cristal, senhor. Não era muito caro, e acreditei que seria divertido para Alice. É muito aficionada às pedras pouco comuns e coisas assim.
-O cristal verde não tem nada de divertido. -Hugh veio um pouco para frente, modificando o desenho de luzes e sombras sobre suas feições rudes, que se tornaram mais demoníacas-. Para falar a verdade, quanto mais o persigo, menos divertido me parece.
Alice franziu o cenho quando algo lhe ocorreu.
-Está seguro de que a morte do vendedor estava relacionada com o cristal, milorde?
Hugh a olhou como se lhe tivesse perguntado se saía o sol pela manhã.
-Duvida de minha palavra?
-Não, claro que não. -Abafou um pequeno gemido. Os homens eram tão suscetíveis no que se referia a suas capacidades lógicas É que não vejo a relação entre a pedra verde e o assassinato de um vendedor.
-Sério?
-Sim. Até onde sei, a pedra verde não é especialmente atrativa nem valiosa. De verdade, em comparação, é um cristal bem feio.
-Certamente, aprecio sua opinião de perita.
Alice não fez caso da ironia, pois sua mente avançava seguindo a lógica do problema.
- Admito que um ladrão cruel poderia ter assassinado para obter a pedra se tivesse a impressão equivocada de que tinha valor. Mas, na realidade, era bastante enganosa, pois do contrário Gervase jamais a teria comprado. Além disso, por que teriam que assassinar o pobre comerciante quando já tinha vendido a pedra? Não tem sentido.
-Em semelhante situação, o assassinato é muito lógico tratando de cobrir os rastros -disse Hugo com muita suavidade-. Asseguro-lhe que homens mataram e foram assassinados por motivos muito menores.
-Sim, pode ser. -Apoiou o cotovelo na mão e tamborilou com os dedos no queixo-. Por todos os Santos, juro que os homens são muito hábeis para fazer uso de violência desnecessária.
-Costuma acontecer -admitiu Hugh.
-De todos os modos, salvo que tenha evidência concreta que assinale uma relação clara entre o assassinato do comerciante e o cristal verde, não sei como pode chegar à conclusão certa de que há uma relação, senhor. -Assentiu uma vez, satisfeita de seu próprio raciocínio-. É possível que o vendedor fosse assassinado por outros motivos, sem conexão com isto.
Hugh não disse nada, observou-a com curiosidade arrepiante, como se uma criatura desconhecida se materializasse diante dele. Pela primeira vez, lhe viu um tanto desconcertado, como se não soubesse o que fazer com ela.
Ralf gemeu, triste:
-Alice, em nome de Deus, por favor não discuta com o senhor Hugh. Não é momento de praticar suas habilidades retóricas.
Diante da injusta acusação, Alice se ofendeu:
-Não me comporto com falta de cortesia, tio. Só tento assinalar ao senhor Hugh que não pode deduzir algo tão sério como um motivo para assassinar sem ter provas concretas.
-Lady Alice, deve aceitar minha palavra a respeito -disse o convidado-. O vendedor está morto por culpa do maldito cristal. Acredito que estaremos de acordo em que seria melhor que não morra mais ninguém por causa dele, não?
-Sim, milorde. Espero que não seja falta de boas maneiras, é que me pergunto...
-Ao que parecer, tudo - terminou a frase.
Alice o olhou, carrancuda:
-Senhor?
-Acredito que já perguntou tudo, lady Alice. Talvez em outro momento esse costume me pareça interessante, mas esta noite não estou com ânimo para semelhante entretenimento. Só estou aqui com um propósito: quero o cristal verde.
Alice ficou tensa.
-Não queria ofendê-lo, milorde, mas queria assinalar que meu primo me comprou a pedra. De fato, é de minha propriedade.
-Maldição, Alice - gemeu Ralf.
-Alice, pelo amor de Deus, tem que brigar com ele? -sussurrou Gervase.
-Estamos perdidos - murmurou William.
Hugh não lhes deu atenção, e seguiu concentrado em Alice.
-O cristal verde é a última das Pedras do Scarcliffe, senhora. Eu sou o novo amo de Scarcliffe. O cristal me pertence.
A moça clareou a voz e disse, escolhendo com cuidado as palavras:
-Compreendo que, talvez, em outra época a pedra lhe pertenceu, milorde. Mas conforme acredito, agora se poderia dizer, em termos restritos, que já não lhe pertence.
-Ah não? Então, além de estar preparada em filosofia natural, também sabe de leis.
A jovem lhe lançou um olhar furioso.
- Gervase me conseguiu a pedra em um transação perfeitamente legal. Logo, passou para mim como presente. Não sei como poderia reclamá-la agora.
Só uma inspiração coletiva cortou o silêncio sobrenatural que dominou o salão. Em alguma parte, uma jarra de cerveja caiu no chão. O choque do metal contra a pedra ressoou em todo o recinto. Uivou um cão.
Ralf soltou uma exclamação surda e a olhou com olhos exagerados:
-Alice, o que está fazendo?
-Só reafirmo meu direito ao cristal verde, tio.
-Olhou ao Hugh aos olhos-. ouvi dizer que Hugo o Implacável é um homem duro mas honrado. Não é assim, milorde?
-Hugh o Implacável - disse o cavaleiro em tom detestável-, é um homem que sabe como manter o que lhe pertence. Senhora, asseguro-lhe que considero a pedra minha.
-Senhor, esse cristal é muito importante para minhas investigações. Na atualidade, estudo várias pedras e suas respectivas propriedades, e esta me parece muito interessante
-Acredito lhe haver ouvido dizer que é feia.
-Sim, milorde. Mas segundo minha experiência, a falta de encanto e atrativo aparentes freqüentemente ocultam segredos de grande interesse intelectual.
-Essa teoria, também se aplica às pessoas?
Pareceu confusa.
-Milorde?
-Poucas pessoas me achariam encantador ou atrativo, senhora. Perguntava-me se você me acha interessante.
-Ah.
-Em sentido intelectual, quero dizer.
Alice tocou os lábios com a ponta da língua.
-Ah, bom, quanto a isso, milorde, sem dúvida poderia descrevê-lo como interessante.
Certamente. "Uma descrição mais precisa seria fascinante", pensou.
–Fico encantado. E certamente estará ainda mais interessada em saber que não recebi meu apelido por acaso. Chamam-me Implacável porque tenho o costume de insistir em meu encargo até ter êxito.
-Não duvido nem por um momento, senhor, mas não posso lhe conceder direito sobre minha pedra verde. -Dedicou-lhe um sorriso luminoso-. Possivelmente, no futuro, possa lhe emprestar.
-Vá procurar a pedra -disse Hugh, em um tom de calma aterradora-. Já!.
-Milorde, você não compreende.
-Não, senhora, é você que não compreende. Já me cansei desse jogo que a você tanto agrada. Me traga a pedra agora, ou aguente as conseqüências.
-Alice! -chiou Ralf-. Faça algo.
-Sim -confirmou Hugh-. Faça algo, lady Alice. me traga já a pedra verde.
Alice se ergueu e se preparou para lhe dar a má notícia.
-Temo-me que não possa, milorde.
-Não pode ou não quer? -perguntou com suavidade. Alice encolheu os ombros.
-Não posso. Recentemente, sofri o mesmo destino que você, sabe?
-Em nome de Deus, de que fala?
-Faz uns dias, roubaram-me o cristal verde, milorde.
-Por Deus -murmurou Hugh-. Se quer provocar minha ira com um montão de falsidades e palavras enganosas, está a ponto de obter, senhora. Mas lhe advirto que não lhe agradarão as conseqüências.
-Não, milorde -apressou-se a dizer Alice-. Digo-lhe a verdade. A pedra desapareceu de meu quarto de trabalho há menos de uma semana.
Hugh dirigiu um olhar frio e interrogante a Ralf, que assentiu com lentidão. Hugh voltou seu perturbador olhar outra vez para a Alice, e a cravou sem piedade.
-Se isso for verdade -disse com voz fria-, por que não me informou assim que cheguei?
Alice voltou a esclarecê-lo.
-Na opinião de meu tio, como a pedra era de minha propriedade, eu teria que ser quem lhe informaria de sua perda.
-E, ao mesmo tempo, apresentar sua reclamação?
O sorriso do Hugh tinha uma aparência cortante. Não tinha sentido negar o óbvio:
-Sim, milorde.
-Imagino então que decidiu-se a atrasar a informação da perda até que eu tivesse jantado bem.
-Sim, milorde. Minha mãe sempre dizia que os homens eram mais sensatos depois de uma boa comida e bem, alegre-se em saber que tenho um plano para recuperar a pedra.
Hugh não pareceu escutar, mas perdeu-se em seus próprios pensamentos.
-Acredito que jamais conheci uma mulher como você, lady Alice.
Por um momento, ela se distraiu. Sentia que um prazer inesperado a enfraquecia por dentro.
-Acha-me interessante, milorde? –se atreveu a adicionar - Em sentido intelectual.
-Sim, senhora. Muito interessante.
Alice se ruborizou. Nunca tinha recebido semelhante elogio de um homem. Nunca lhe tinham feito nenhum elogio. Provocou-lhe uma intensa excitação. Era quase assustador que Hugh a achasse tão interessante como ele a ela. Esforçou-se por deixar de lado a insólita sensação para voltar aos assuntos práticos.
-Obrigada, milorde -disse, imaginando que conservava uma elogiável compostura dadas as circunstâncias-. Como lhe dizia, quando soube que você nos visitaria, me ocorreu um plano pelo que poderíamos recuperar o cristal, juntos.
Ralf a olhou fixo:
-Alice, do que está falando?
-Logo explicarei tudo, tio. -Olhou ao Hugh, radiante-. Estou certa de que lhe interessará escutar os detalhes, milorde.
-Até agora, foram poucos, muito poucos os homens que tentaram me enganar.
Alice ficou carrancuda.
-Enganá-lo, milorde? Aqui ninguém tenta enganá-lo.
-Agora, esses homens estão mortos.
-Senhor, acredito que temos que voltar para o tema que nos ocupa - disse Alice com vivacidade -. Como os dois temos interesse na pedra verde, o mais lógico é que unamos forças.
-Lamento dizer que também houve uma ou duas mulheres que jogaram perigosamente comigo. -Fez uma pausa-. Mas não acredito que lhe agrade inteirar-se de quais foram seus destinos.
-Milorde, estamos nos afastando do tema.
Hugh passou os dedos pela borda de sua taça.
-Mas agora que penso outra vez naquelas mulheres que puseram a prova minha paciência com jogos estúpidos, acredito que poderia dizer com alguma certeza que não se pareciam com você absolutamente.
-É obvio que não. -Estava zangada outra vez-. Não estou jogando com você, senhor. Ao contrário. Unir minha inteligência com suas habilidades de cavalheiro para encontrar juntos a pedra poderia ser proveitoso para os dois.
-Lady Alice, isso seria difícil de obter, pois não tenho provas de sua inteligência. -Fez girar a taça entre os dedos-. Pelo menos, em nenhum sentido que não seja vão.
Alice se indignou.
-Milorde, você está me insultando do pior modo.
-Alice, será a morte de todos nós -sussurrou Ralf, desesperado.
Hugh não lhe deu atenção e continuou observando Alice.
-Não a insulto, senhora, limito-me a assinalar um fato indiscutível. Deve ter perdido o juízo se acredita que pode livrar-se assim de mim. Uma mulher realmente inteligente teria compreendido faz momentos que está pisando em gelo muito fino.
-Milorde, já estou farta deste absurdo.
-Eu também.
-Quer ser sensato e escutar meu plano, ou não?
-Onde está a pedra verde?
Alice esgotou sua paciência:
-Havia lhe dito que me roubaram -disse, em voz muito alta-. Acredito que sei quem é o ladrão, e estou disposta a ajudá-lo a descobrir seu paradeiro. Em compensação, queria fazer um trato com você.
-Um trato? Comigo? -No olhar do homem brilhava um perigo infinito-. Deve estar brincando, senhora.
-Não, falo a sério.
-Não acredito que lhe agradem os termos de um trato comigo.
Alice o olhou, inquieta.
-Por que não? O que implicaria?
-Provavelmente, sua alma -respondeu Hugh.
-Parece um alquimista observando um crisol, milorde. -Dunstan deu rédea solta ao velho hábito de cuspir pela borda do obstáculo mais próximo. Neste caso, era o velho muro que rodeava Lingwood Manor-. Não me agrada. Por minha experiência, essa expressão conduz problemas para meus velhos ossos.
-Seus ossos sobreviveram a coisas piores que um cenho franzido.
Hugh apoiou os antebraços na borda da parede e olhou a paisagem iluminada pela luz do amanhecer.
Levantara-se meia hora antes, o sonho perturbado por uma inquietação familiar. Conhecia bem esse estado de ânimo. As tormentas que trancava no mais profundo de si estavam agitando-se. Moviam-se e giravam seguindo novos rumos. Cada vez que sua vida ia dar um giro, sempre acontecia.
A primeira vez que Hugh viveu essa sensação foi quando tinha oito anos. Foi o dia em que seu avô o convocou junto ao leito de morte e lhe disse que o mandaria viver na fortaleza de Erasmus do Thornewood.
-Sir Erasmus é meu suserano. -Os olhos claros de Thomas ardiam no rosto magro, devastado. -Aceitou tomá-lo a seu serviço. Ocupar-se-á de que lhe eduquem e instruam como cavalheiro. Entende?
-Sim, avô.
Submisso e angustiado, Hugh estava de pé a um lado da cama. Contemplava ao avô em silencioso pavor, sem poder acreditar que esse homem velho e frágil que jazia às portas da morte fosse o mesmo cavalheiro feroz e amargo que o tinha criado desde a morte de seus pais.
-Erasmus é jovem, mas forte. Um guerreiro excelente e destro. Faz dois anos foi às Cruzadas, e retornou com muita glória e riquezas. - Thomas fazia uma pausa, interrompido por uma tosse dilaceradora-. Ensinará o que precise saber para poder se vingar contra a casa de Rivenhall. Compreende-me, moço?
-Sim, avô.
-Estuda bem. Aprende tudo o que possa enquanto esteja aos cuidados de Erasmus. Quando for um homem saberá o que fazer e como fazê-lo. Recorda tudo o que havia dito sobre o passado.
-Recordarei, avô.
-Aconteça o que acontecer, tem um dever para a memória de sua mãe. É o único que resta, rapaz. O último em sua linha de descendência, mesmo nascido bastardo.
-Entendo.
-Não deverá descansar até ter encontrado um modo de se vingar dessa casa, da qual saiu a víbora que seduziu a minha inocente Margaret.
Ao pequeno Hugh não tinha parecido justo procurar vingança contra a casa de seu próprio pai, face ao que lhe ensinaram com respeito à natureza malvada do clã Rivenhall. A final de de contas, o pai estava morto, igual à mãe. Era claro que se havia feito justiça.
Mas essa justiça não satisfazia ao avô de Hugh.
Nada poderia satisfazer a sir Thomas.
O pequeno Hugh de oito anos afastou o momento de dúvida. Estava em jogo a honra, e nada era mais importante que sua própria honra e a do avô. Isso o assimilou por completo.
Desde que nasceu, ensinaram-lhe a importância da honra, pois era o que restava a um bastardo, como estava acostumado a dizer sir Thomas.
-Não descansarei, avô -tinha prometido Hugh com o ardor que só podia manifestar um menino de oito anos.
-Te assegure de que assim seja. Nunca esqueça que a honra e a vingança são o principal.
A Hugh não surpreendeu que seu avô morresse sem palavras de carinho, nenhuma bênção póstuma ao único neto. Nunca houve muito afeto nem carinho da parte do Thomas. A cólera que lhe provocou a vil sedução, a traição e a morte de sua filha bem amada tingiu todos os sentimentos do ancião.
Não era que Thomas não se importasse seu neto. Hugh sempre soube que era de vital importância para seu avô, mas porque era o único meio de vingança. Thomas morreu com o nome da filha nos lábios ressecados.
-Margaret. Minha bela Margaret. Seu bastardo a vingará.
Para sorte do filho bastardo de Margaret, Erasmus do Thornewood compensou em grande medida o que Thomas não foi capaz de dar o Hugh. Perspicaz, inteligente, e dono de uma áspera bondade, Erasmus tinha menos de vinte e cinco anos quando Hugh foi viver com ele. Acabava de retornar triunfante da Terra Santa, e cumpriu para o menino o papel de pai. Esse menino lhe entregou todo seu respeito e sua infantil admiração.
Já homem, Hugh dava ao suserano sua absoluta e firme lealdade. No mundo em que Erasmus se movia, era uma espécie estranha e apreciada.
Dunstan envolveu melhor na capa cinza de lã seu corpo robusto, e observou Hugh pela extremidade do olho. O senhor sabia o que estava pensando: Dunstan não aprovava que fosse em perseguição a pedra verde. Considerava a ação uma perda de tempo.
Tentou lhe explicar que o valioso não era o cristal em si mesmo e sim o que representava: a maneira mais segura de apropriar-se de Scarcliffe. Mas Dunstan se impacientava com essas idéias. Pensava que um bom aço e um sólido bando de homens armados eram as chaves para manter Scarcliffe.
Era quinze anos mais velho que Hugh, veterano cheio de cicatrizes, obtidas na mesma Cruzada em que tinha triunfado Erasmus.
As feições rudes, gastas, refletiam a dureza daquele tempo. Diferente de Erasmus, Dunstan voltou da prova sem glória nem ouro que compensasse seus esforços.
Embora as habilidades de caçador deDunstan fossem úteis para o Erasmus, todos, em especial este último, sabiam que a ímpar habilidade do Hugh para urdir estratagemas constituía a base do sereno poder de Erasmus. Este premiou a seu leal partidário com Scarcliffe, uma posse que em outro tempo pertenceu à família de Hugh. Dunstan decidiu ir com o Hugh à nova propriedade.
-Não se ofenda, Hugh, mas seu cenho não é como o de outros. -Lançou uma risada breve, exibindo os buracos entre os dentes manchados-. Provoca um clima de ameaça. Às vezes, até me impressiona. Talvez tenha aperfeiçoado muito bem sua lenda de cavalheiro sinistro e perigoso.
-Engana-se. -Hugh esboçou um sorriso desinteressado-. A julgar pela reação de ontem à noite de lady Alice, não aperfeiçoei o suficiente.
-Sim. -Dunstan adotou uma expressão sombria-. É evidente que não se encolheu nem se acovardou como deveria. Talvez não tenha muito boa visão.
-Estava muito concentrada em fazer um trato comigo para perceber que minha paciência estava esgotando-se.
A boca de Dunstan se curvou em um sorriso amargo: -Estou seguro de que esta senhora não retrocederia nem diante do demônio.
-Uma mulher muito singular.
-De acordo com minha experiência, as mulheres ruivas sempre trazem problemas. Uma vez, em uma taverna de Londres, conheci uma ruiva. Encheu-me de cerveja até que caí em sua cama. Quando despertei, já não estavam nem ela nem meu dinheiro.
-Tratarei de me lembrar de vigiar meu dinheiro.
-Será melhor que o faça.
Hugh sorriu e não disse nada. Ambos sabiam que não lhe daria trabalho vigiar o dinheiro e as contas.
Tinha talento para os negócios. Poucos de seus conhecidos se ocupavam de assuntos tão mundanos. Esbanjavam, e para voltar a encher suas arcas dependiam das fontes usuais: resgate, justas, e os afortunados que possuíam terra, o ingresso de propriedades mau dirigidas. Hugh preferia algo mais direto para assegurar um ingresso.
Dunstan moveu a cabeça com ar triste:
-É uma pena que a pista do cristal verde nos tenha levado até alguém como lady Alice. Não sairá nada bom disso.
-Admito que tudo seria mais fácil se me deixasse intimidar, mas não estou convencido de que esta mudança dos fatos seja desafortunado -disse, marcando as palavras-. estive pensando-o quase toda a noite. Dunstan, aqui há possibilidades. Interessantes possibilidades.
-Então, estamos condenados -repôs Dunstan, filosófico-. Cada vez que pensa muito em algo, topamo-nos com problemas.
-Terá notado que tem olhos verdes.
-Ah, sim? -disse Dunstan, carrancudo-. Não posso afirmar que tenha notado a cor de seus olhos. O cabelo vermelho já me parece bastante mau presságio.
-Um matiz de verde muito especial.
-Como os de um gato, diz?
-Ou os de uma desgraçada princesa duende.
-Vamos de mal a pior. Os duendes praticam um tipo de magia muito fugidio. -Dunstan fez uma careta-. Não lhe invejo por ter que tratar com uma pequena bruxa de cabelo vermelho e olhos verdes.
-Para falar a verdade, ultimamente tenho descoberto que eu gosto do cabelo vermelho e os olhos verdes.
-Ora. Sempre preferiu as mulheres de cabelos e olhos escuros. Em minha opinião, lady Alice não é especialmente bela. Acontecesse é que está apanhado por sua estranha audácia. Diverte-lhe a coragem que demonstrou ao lhe desafiar.
Hugh encolheu os ombros.
-Não é mais que uma novidade passageira, milorde -assegurou-lhe Dunstan-. Passará logo, como a ressaca depois de beber muito vinho.
-Sabe dirigir uma casa -prosseguiu Hugh, pensativo-. O banquete que ofereceu ontem à noite não desmereceria à esposa de um grande barão. Poderia servir-se em qualquer salão da nobreza. Necessito de alguém que possa organizar um lar com semelhante destreza.
Dunstan começou a alarmar-se.
-Que diabos está dizendo? Pense em sua língua, milorde. Foi tão aguda como minha adaga.
-Quando decidiu mostrar, suas maneiras foram os de uma grande dama. Poucas vezes vi uma reverência tão graciosa. Poderíamos ficar orgulhosos da recepção que daria aos convidados.
-Pelo que vi ontem à noite e por todos os rumores que escutei desde que chegamos aqui, tenho a impressão de que não decide mostrar essas deliciosas maneiras com muita freqüência -precipitou-se a dizer Dunstan.
-Tem idade suficiente para saber o que faz. Não a vejo com uma inocente de olhos úmidos a que terá que proteger e cuidar.
Dunstan girou a cabeça com os olhos muito abertos. -Pelos pregos de Cristo, não falará a sério.
-Por que não? Depois de que recuperar o cristal verde, estarei muito ocupado. Há muito que fazer em Scarcliffe. Não só tenho que atender os problemas de minhas novas terras mas também arrumar o velho castelo.
-Não, milorde. -Parecia que Dunstan estava sufocando-. Se for dizer o que eu acredito, rogo-lhe que o pense melhor
-É evidente que está bem preparada na arte de dirigir um lar. Sabe que sempre me guiei pelo princípio de que é mais proveitoso empregar bons peritos, Dunstan.
-Talvez esse princípio lhe tenha servido para escolher serviçais, ferreiros, e tecedores, milorde, mas agora está falando de uma esposa.
-E? Pelo sangue do demônio, Dunstan, sou cavalheiro de ofício. Não tenho idéia de como organizar uma casa, nem você tampouco. Nunca pus um pé, sequer, na cozinha. Não sei muito bem o que acontece lá.
-E isso o que tem isso a ver?
-Muito, pois eu quero comer bem. E eu gosto da boa comida.
-Sim, isso se percebe-se. Não se ofenda, mas no que diz respeita à comida é muito exigente, senhor. Não sei por que não lhe satisfaz um bom assado de cordeiro e cerveja.
-Porque uma dieta de cordeiro assado e cerveja depois de um tempo me aborrece -disse Hugh, impaciente-. Além da comida, em uma casa há outras coisas importantes. Milhares. Terá que limpar salões e dormitórios. Lavar a roupa. Ventilar as camas. Terá que fiscalizar os criados. O que fazer para que a roupa tenha aroma fresco e limpo?
-Para esse problema não tenho solução.
Não lhe deu atenção.
-Em síntese, quero que o castelo Scarcliffe esteja bem dirigido, e isso significa que preciso de uma perita, do mesmo modo que para meus outros assuntos. Necessito a uma dama que tenha sido bem educada para administrar uma grande casa.
Diante dos olhos de Hugh dançou uma visão do futuro. Queria ter um salão próprio, que fosse cômodo. Queria poder sentar-se à cabeceira da mesa, sob o baldaquino e jantar pratos bem preparados. Queria dormir entre lençóis limpos e banhar-se em água perfumada. Sobre tudo, queria receber seu senhor, Erasmus do Thornewood, de maneira adequada a sua categoria.
Esse último pensamento diminuiu o resplendor da visão. Seis semanas atrás, quando Hugh foi convocado à sala de audiências para receber o feudo do Scarcliffe, Erasmus não tinha bom aspecto, e era óbvio que tinha perdido peso. Tinha o semblante tenso, crispado, e expressão melancólica nos olhos. sobressaltava-se ao menor ruído.
Hugh se alarmou. Perguntou-lhe se estava doente, mas Erasmus se negou a falar do tema.
Ao partir do castelo de Erasmus, ouviu rumores. Soube que tinham chamado médicos e que saíram murmurando que havia uma enfermidade do pulso e do coração. Hugh não confiava nos médicos, mas naquela ocasião estava preocupado.
-Milorde, estou seguro de que pode encontrar uma outra dama muito mais adequada que esta para que seja sua esposa -disse Dunstan, desesperado.
-Talvez, mas não tenho tempo para procurá-la. Não tenho oportunidade de encontrar outra esposa até a próxima primavera. Não quero acampar no castelo de Scarcliffe em seu estado atual durante todo o inverno. Quero um salão em bom estado.
-Sim, mas...
-Será muito eficaz e conveniente, Dunstan. Pense. Já expliquei que a recuperação do cristal será muito útil para confirmar ao povo do Scarcliffe que eu sou seu verdadeiro senhor. Por favor, imagine como os impressionaria se fosse a minhas novas terras com uma esposa.
-Pensa no que está dizendo, milorde. Hugh sorriu, satisfeito.
-Sem dúvida, conquistará-os para mim. Verão imediatamente que penso me estabelecer ali de forma permanente. Dará-lhes confiança em seu próprio futuro. Se quero que Scarcliffe seja rica e próspera, tenho que ganhar seus corações e sua confiança, Dunstan
-Não o discuto, mas seria melhor conseguir outra mulher. Eu não gosto da aparência desta, e essa é a pura verdade.
-Admito que, a primeira vista, lady Alice não parece a mulher mais dócil e amigável.
-Alegra-me que notasse isso.
-De todos os modos -continuou Hugh-, é inteligente e já passou dessa etapa de frivolidade que ataca a todas as moças.
-Sim, e sem dúvida também deve ter passado por muitas outras coisas.
Hugh fechou os olhos.
-Sugere que já não é virgem?
-Só lhe recordo que lady Alice é de caráter decididamente audaz -balbuciou Dunstan-. Mas bem, não se trata de um tímido e enrubescido casulo sem abrir, milorde.
-Sim.
Hugh franziu o cenho.
-O cabelo avermelhado e os olhos verdes indicam paixão, senhor. Ontem à noite teve uma amostra de seu temperamento. Não cabe dúvida de que, de vez em quando, permite-se outras emoções intensas. depois de tudo, tem vinte e três anos.
Hugh pensou no que Dunstan dizia. -Evidentemente, é de natureza intelectual. Sem dúvida, deve sentir curiosidade por esses temas. Mas acredito que terá sido discreta.
-É de esperar.
Hugh se livrou de todas as reservas que Dunstantentava trazer a tona.
-Estou seguro de que ela e eu nos daremos muito bem.
Dunstan gemeu.
-Em nome de Deus, de onde tira essa idéia? -Já disse, é uma mulher inteligente. -Uma cota a mais de inteligência e conhecimentos só serve para fazer mais difíceis às mulheres, se me perguntar isso.
-Acredito que ela e eu entraremos em um acordo -disse Hugh-. Como é inteligente, aprenderá rápido.
-E o que é o que aprenderá?
-Que eu também sou inteligente. -Esboçou um sorriso fugaz-. E que tenho mais vontade e decisão que a que ela possa possuir
-Se pensa em tratar com lady Alice, o aconselho que demonstre que é muito mais perigoso do que o consideram.
-Usarei qualquer estratagema que me pareça apropriado.
-Não gosto disso, milorde.
-Sei.
Dunstan voltou a cuspir por cima do muro.
-Já vejo que é inútil tentá-lo fazer raciocinar. Esta questão de assegurar as novas terras está sendo muito mais difícil do que tinha imaginado, não?
-Sim -concordou Hugh-. Mas este deve ser meu destino na vida. Estou acostumado
-Certo. Ao parecer, nada é fácil, não? Alguns gostariam que os Santos tivessem piedade de vez em quando.
-Farei tudo o que deve para reter Scarcliffe, Dunstan.
-Não duvido. Só lhe peço que seja cauteloso ao tratar com lady Alice. Algo me diz que até o mais vigoroso dos cavalheiros poderia chegar a um mau fim com ela.
Hugh assentiu, indicando que tomava nota da advertência mas, para seus pensamentos, relegou-o ao esquecimento.
Essa manhã chegaria a um acordo com a misteriosa e imprevisível lady Alice. Tinha toda a intenção de que aquela dama, com sua inteligência e suas maneiras altivas descobrisse que tinha obtido mais do que esperava.
Na noite anterior, ao perceber que talvez estivesse em presença de uma adversária mais formidável do que antecipava, Hugh anunciou aos presentes no salão que não faria acordos em público. Disse a Alice que discutiriam a sós naquele dia.
Na verdade, havia prosposto a negociação porque queria ter tempo para pensar no novo nó que tinha aparecido nesta meada muito enredada.
Pensou que no curso de sua vida tinha recebido muitas advertências diretas, mas ninguém o advertiu contra Alice.
Recebeu o primeiro exemplo de seu caráter nas primeiras horas da noite, quando o tio exalou um longo suspiro antes de chamá-la. Ao que parecia, a dama era uma dura prova para o tio.
Pelo pouco que averiguou, Hugh esperava encontrar-se com uma solteirona amarga e petulante, com uma língua capaz de esfolar vivo um homem.
A única parte da descrição que foi precisa foi referida à língua. Ficava claro que Alice não vacilava em expressar sua opinião.
Deixando de lado esse rasgo de audácia, a mulher que o enfrentou no salão na noite anterior era muito diferente da que Ralf havia descrito.
Em seguida soube que Alice não era amargurada a e sim segura. Imediatamente reconheceu a diferença. Não era petulante a e sim obstinada, e evidentemente muito mais inteligente que os que a rodeavam. Possivelmente fosse uma mulher difícil, mas sem dúvida interessante.
Segundo a descrição que Ralf fez de sua sobrinha, Hugh esperava conhecer uma criatura imponente, feita para os mesmos fins que seu cavalo de guerra.
Mas teve uma surpresa.
Lady Alice era esbelta, elegante e graciosa. Não havia nela nada que recordasse um cavalo de guerra. O longo vestido verde delineava as curvas do corpo flexível, esboçando os seios do tamanho de pêssegos maduros, a cintura fina, e os quadris de curvas generosas.
Hugh reconheceu que Dunstan tinha razão em um aspecto. Em Alice havia fogo suficiente para queimar a qualquer homem, e começava pelo cabelo. As mechas da cor das chamas estavam metidos em uma rede dourada que refletia o resplendor do fogo.
Tinha ossos finos, um nariz firme, queixo decidido e boca expressiva. Os olhos eram enormes, e se inclinavam ligeramente, às têmporas. Sobre eles, arqueavam-se delicadas sobrancelhas acobreadas. Na linha dos ombros e no ângulo do queixo se evidenciavam orgulho e ânimo. Era um tipo de mulher que atraía o olhar masculino não por sua beleza mas sim porque, sem ser feia, chamava a atenção.
Alice não era mulher para ser ignorada. Se sentia amargura por estar solteira aos vinte e três anos, como Ralf sugeriu, Hugh não percebeu nenhum sinal disso.
Na realidade, tinha a forte suspeita de que desfrutava não ter que responder diante de um marido, coisa que poderia representar certo problema para ele. Mas se considerava capaz de resolvê-lo.
-Lady Alice quer fazer um trato com você –disse Dunstan-. O que pensa que pretende em troca de ajudá-lo a recuperar a pedra verde?
-Talvez livros -respondeu, distraído-. Segundo seu tio, gosta de ler.
Dunstan resmungou.
-Dará-lhe algum dos seus?
Hugh sorriu:
-Talvez lhe empreste alguns de vez em quando.
Seguiu contemplando a paisagem. O ar era vivo.
As granjas e os campos de Lingwood Manor se estendiam serenos sob o céu de chumbo.
Era o começo do outono. A colheita estava pela metade, e boa parte da terra estava nua, esperando o iminente frio do inverno. Queria chegar ao Scarcliffe o antes possível. Havia muito que fazer.
A chave era lady Alice, sentia-o nos ossos.
Com ela poderia encontrar a maldita pedra verde e assegurar o futuro. Tinha chegado muito longe, esperado muito e desejado muito para deter-se nesse momento.
Tinha trinta anos, mas nas manhãs frias como a presente se sentia com quarenta. As tormentas interiores sopravam com ferocidade, enchendo o de inquietação, de uma necessidade incipiente que não compreendia bem.
Sempre era consciente dessas tempestades que lhe rasgavam a alma, mas só nas horas mais escuras da noite, ou na névoa cinza do amanhecer podia perceber em realidade os ventos tenebrosos que o impulsionavam. Sempre que podia evitava essas ocasiões. Não queria indagar muito a fundo no coração dessas tormentas.
Concentrou-se na tarefa que lhe esperava. Tinha suas próprias terras. Só precisava as reter, e isso era a dificuldade.
Nas últimas semanas, Hugh começou a descobrir por que as terras do Scarcliffe tinham passado por tantas mãos nos últimos anos.
Era um fato não se recordar de nenhum homem que tivesse tido êxito em reter Scarcliffe mais que por um breve tempo para logo perdê-la pela morte ou a má sorte. Diziam alguns que Scarcliffe estava enfeitiçada por maus presságios, má sorte e uma antiga maldição.
"Que descubra as Pedras e retenha estas terras
O cristal se revelará pelas mãos de um guerreiro".
Hugh não acreditava no poder das antigas maldições. Confiava em poucas coisas além de sua própria destreza como cavalheiro e a vontade decidida que o tinha levado até este ponto. Mas tinha um saudável respeito pelo poder que às vezes exerciam semelhantes tolices sobre a mente de outras pessoas.
Sem ter em conta sua própria opinião sobre a irritante profecia, sabia que o desanimado povo do Scarcliffe acreditava na velha lenda. Seu novo senhor teria que demonstrar que possuia o cristal verde.
Desde que foi tomar posse do feudo, menos de um mês atrás, Hugh descobriu que os habitantes que o chamavam senhor estavam aborrecidos. A boa gente do Scarcliffe o obedecia por temor, mas não via nele esperança para o futuro. Seu desânimo se manifestava em tudo o que fazia, da maneira desinteressada em que moía o trigo até o modo em que trabalhava os campos.
Hugh estava acostumado a mandar; tinha sido treinado para isso.
Tinha sido chefe natural de homens durante a maior parte de sua vida adulta. Sabia que podia obter um nível mínimo de cooperação dos governados, mas também sabia que isso não bastava.
Necessitava lealdade voluntária de parte do povo para fazer prosperar Scarcliffe pelo bem de todos. O problema radicava em que os habitantes do feudo não acreditavam que Hugh durasse muito tempo em sua posição de lorde. Nenhum dos anteriores tinha sobrevivido mais de um ou dois anos.
A horas, apenas, de sua chegada, ouviu murmúrios que vaticinavam iminentes desastres. Uma banda de cavalheiros renegados pisoteava as colheitas. Uma tormenta de raios danificava boa parte da igreja. Um monge errante que pregava a condenação e a destruição aparecia na vizinhança.
Para a gente de Scarcliffe, o roubo da pedra verde da cripta do convento local foi um acontecimento de proporções catastróficas. Também foi a gota que transbordou o copo. Hugh compreendeu que, a olhos do povo, ele não era seu verdadeiro senhor.
Compreendeu imediatamente que o modo mais rápido para ganhar a confiança do povo era recuperar a pedra verde. E isso era o que pretendia fazer.
-Tome cuidado, milorde -advertiu-lhe Dunstan-. Lady Alice não é uma donzela temerosa que vá assustar-se com a sua reputação. Sem dúvida, tratará de pechinchar como se fosse um lojista londrino.
-Será uma experiência interessante.
-Não esqueça que ontem à noite estava mais que disposta a negociar com sua alma pelo que espera de você.
-Sim. -Hugh quase sorriu-. Talvez seja precisamente a alma o que lhe peça.
-Trate de não perder a tua na troca.
-Supondo que tenho uma alma que perder.
A perna manca impediu de Benedict entrar como um furacão no laboratório de Alice mas, de todos os modos, arranjou um modo para demonstrar seu aborrecimento e irritação com o rosto avermelhado e os olhos verdes faiscantes de fúria.
-Alice, isto é uma loucura. -deteve-se frente a mesa de sua irmã e guardou a bengala sob o braço-. Não pensa seriamente em fazer um trato com o Hugh o Implacável.
-Agora se chama Hugh de Scarcliffe -corrigiu-o Alice.
-Segundo o que ouvi, a palavra Implacável lhe cai muito bem. O que pensa que que está fazendo? De todo o ponto de vista, é um homem muito perigoso.
-Mas, ao que parece, honesto. diz-se que, se chegar a um acordo, respeitará-o.
-Estou seguro de que qualquer acordo feito com sir Hugh será em seus próprios termos -replicou--.Alice, se diz que é muito inteligente e hábil para urdir estratagemas.
-E? Eu também sou bastante inteligente.
-Sei que está convencida de que pode manipulá-lo como ao tio. Mas homens como Hugh não são fáceis de manipular, e menos por uma mulher.
Alice deixou a pluma com que estava escrevendo e contemplou a seu irmão. Benedict tinha dezesseis anos, e ela era a única responsável por ele desde que seus pais morreram. Tinha consciência aguda de que tinha falhado, e estava decidida a fazer o que pudesse para compensar o fato de ter deixado que a herança do irmão passasse para as mãos do tio Ralf.
A mãe, Helen, tinha morrido há três anos. O pai, sir Bernard, foi assassinado por um ladrão de ruas frente a um bordel de Londres dois anos atrás. Em seguida depois de inteirar-se da morte do Bernard, apareceu Ralf. Alice logo se viu envolta em uma desesperada batalha legal para reter a pequena propriedade que constituía a herança do Benedict. Fez tudo o que pôde para conservar o controle do pequeno feudo mas, apesar de seu cérebro de mosquito, nesse terreno Ralf a superou.
Depois de quase dois anos de discussões e persuasão, convenceu Fulbert de Middleton, o suserano de Alice e também de Ralf, de que teria que haver um cavalheiro devidamente preparado para estar à frente da propriedade. Ralf afirmou que Alice, por ser mulher, era incapaz de fazê-lo bem e que Benedict, com sua perna doente, não podia ser instruído como cavalheiro armado. Depois de muita insistência da parte de Ralf, Fulbert chegou à conclusão de que fazia falta um homem armado para fazer-se cargo da pequena propriedade que tinha pertencido a lorde Bernard.
Para fúria e desgosto de Alice, Fulbert lhe entregou a propriedade de seu pai a Ralf. Este, a sua vez, deu-lhe a terra a seu filho mais velho, Lloyd.
Pouco depois, Alice e Benedict se viram obrigados a mudar-se para Lingwood. Uma vez que se assegurou a posse do feudo, Lloyd se casou com a filha de um suserano vizinho. Há seis meses tiveram um filho. Alice tinha uma mente bastante prática para compreender que por muito que insistisse reclamando nos tribunais o direito de seu irmão, era quase improvável que recuperasse a herança de Benedict. Saber que não tinha cumprido com a responsabilidade para o Benedict lhe provocava uma profunda dor. Poucas vezes deixava de cumprir, sobretudo em se tratando de algo tão importante.
Decidida a reparar esse desastre do único modo possível, Alice se propôs dar a Benedict a melhor possibilidade de progresso no mundo: mandaria-o aos grandes centros de ensino que eram Paris e Bolonha, para que aprendesse leis.
E embora nada possa compensá-lo pelas terras perdidas, Alice quis fazer o melhor que podia. Quando ficasse tranqüila com respeito às possibilidades de Benedict na vida, cumpriria seus próprios sonhos, entrando em um convento que tivesse uma boa biblioteca. Uma vez ali, dedicaria-se ao estudo da filosofia natural.
Uns dias atrás ambos os objetivos pareciam fora de seu alcance, mas a chegada de Hugh o Implacável lhe abriu uma nova perspectiva. Estava decidida a aproveitar a oportunidade.
-Não te alarme, Benedict --disse com vivacidade-. Estou convencida de que sir Hugh será um homem razoável.
-Razoável? -Benedict fez um gesto frenético-. Alice, é uma lenda. As lendas nunca o são.
-Vamos, não sabe. Ontem à noite, pareceu-me perfeitamente de acordo com um discurso racional.
-Ontem à noite brincou com você. Alice, me escute, Erasmus de Thornewood é o suserano de sir Hugh. Sabe o que isso significa?
Alice tomou a pluma e tamborilou, pensativa, com a ponta nos lábios.
-Ouvi falar de Erasmus. diz-se que é muito poderoso.
-Sim, e isso faz que Hugh, seu homem, também o seja. Deve ser cuidadosa. Não crê que poderá regatear com sir Hugh como se fosse um vendedor. Isso seria uma loucura.
-Tolices. -Alice lhe dirigiu um sorriso tranqüilizador-. se preocupa muito, Benedict. É um defeito que percebo ultimamente.
-Tenho motivos para me preocupar.
-Não, não tem motivo. Lembre-se do que digo: sir Hugh e eu nos entenderemos muito bem.
Uma figura volumosa apareceu na entrada, projetando uma sombra larga e escura sobre o tapete.
-Você reflete minhas próprias idéias, lady Alice -disse-. Alegra-me saber que pensamos igual a respeito.
Quando a voz profunda e ressonante encheu o estudio, Alice sentiu que lhe arrepiava a pele, e embora o homem falasse muito baixo, seu som pareceu sobrepor a todos os outros. O pássaro que cantava no batente da janela calou. apagaram-se os ecos dos cascos dos cavalos no pátio.
Alice sentiu que lhe contraíam as vísceras e não pôde deixar de olhá-lo. Era a primeira vez que o via depois do enfrentamento da noite anterior, no salão. Ansiava descobrir se a presença do homem lhe provocava o mesmo efeito estranho que nessa primeira ocasião.
Assim foi contra toda razão e a evidência de seus próprios olhos, Hugh o Implacável lhe pareceu o homem mais atraente que tinha conhecido. Não era mais bonito à luz do dia que a noite anterior, mas algo a impulsionava para ele.
"É como se tivesse desenvolvido outro sentido adicional -pensou-, e o empregasse mais à frente da audição, da visão, do tato, do paladar e do olfato. Em síntese, é um interessante problema de filosofia natural", concluiu.
Benedict deu bruscamente a volta ao recém-chegado, e golpeou a mesa de Alice.
-Milorde. - a mandíbula se enrijeceu-. Minha irmã e eu sustentávamos uma conversação privada. Não o vimos.
-Dizem que é difícil me passar por alto –disse Hugh-. Você é Benedict?
-Sim, milorde. -Endireitou os ombros-. Sou o irmão da Alice e não acredito que deva ficar a sós com ela. Não é correto.
Alice revirou os olhos.
-Benedict, por favor, isto é ridículo. Não sou uma donzela que deva cuidar da reputação. Sir Hugo e eu só queremos conversar de negócios.
-Não é certo -insistiu Benedict.
Hugh apoiou um ombro no marco da porta e cruzou os braços sobre o peito. -O que acredita que eu poderia lhe fazer?
-Não sei -murmurou-. Mas não o permitirei.
A irmã perdeu a paciência.
-Já basta, Benedict. Deixe-nos sozinhos agora. Sir Hugh e eu devemos falar de negócios.
-Mas, Alice...
-Mais tarde falarei com você, Benedict.
O moço ruborizou-se intensamente. Olhou carrancudo para Hugh, que se limitou a encolher os ombros, e se afastou da porta para deixá-lo passar.
-Não tema -disse Hugh em tom contido-. Dou-lhe minha palavra de que não violarei sua irmã durante este acordo que ela quer fazer comigo.
Benedict ruborizou-se mais ainda. Lançou um último olhar zangado a Alice, passou junto a Hugh com rudeza, e desapareceu pelo corredor.
Hugh esperou até que estivesse o bastante longe para não ouvi-los e logo olhou a Alice nos olhos.
-O orgulho de um jovem é algo difícil e que convém tratar com delicadeza.
-Não se preocupe com meu irmão, senhor. É minha responsabilidade. -Indicou um tamborete de madeira com um gesto-. Sente-se, por favor. Temos muito de que falar.
-Sim. -Olhou o banco mas não se sentou. Foi até o braseiro e pôs as mãos em cima para receber o calor das brasas-. É certo. Do que se trata esse acordo que quer fazer comigo?
Alice o olhou com uma ansiedade que não podia dissimular. "Parece bastante sensato", pensou. Não havia sinais de que fosse apresentar dificuldades. Era um homem sensato, razoável, como tinha deduzido. -Milorde, serei clara.
-Por favor. Prefiro que seja direta. Assim se economiza muito tempo, não?
-Sim. -Alice uniu as mãos sobre a mesa--. Estou disposta a dizer onde acredito que o ladrão levou meu cristal verde.
-O cristal é meu, lady Alice. Acredito que tem o hábito de esquecerr.
-Em outro momento poderemos discutir os detalhes, milorde.
Hugh pareceu divertido. -Não haverá discussões.
-Excelente. Alegra-me saber que é você um homem razoável, senhor.
-Faço o que posso.
A moça sorriu, aprovadora.
-Bem, como havia dito, contarei-lhe onde acredito que está o cristal neste momento. Além disso, até o acompanharei a esse lugar e lhe apontarei o ladrão.
Hugh pensou:
-Muito útil.
-Alegra-me que o aprove, milorde. Mas há mais em minha parte do acordo.
-Estou impaciente por ouvir o resto.
-Não só o ajudarei a encontrar o cristal, mas também farei algo mais. -inclinou-se para frente para enfatizar o que ia dizer-. Aceitarei renunciar a meu direito a ele.
-Um direito que não aceito.
Alice começou a franzir o cenho.
-Senhor...
-E o que pensa me pedir em troca de tão magnânimo oferecimento, lady Alice? -interrompeu-a, sereno.
A moça se armou de coragem.
-Milorde, em troca lhe pedirei duas coisas. A primeira é que, dentro de dois anos, quando meu irmão tenha idade suficiente, cuide que vá a Paris, e talvez a Bolonha, estudar. Quero que se prepare nas artes políticas e, em especial, em leis, para que possa obter uma posição de alta fila na corte, ou no serviço de um príncipe ou um nobre rico.
-O seu irmão quer seguir uma carreira como secretário ou empregado?
-Não acredito que tenha muitas alternativas nesse sentido, milorde. -Apertou os dedos-. Não fui capaz de proteger a herança de meu irmão de nosso tio. portanto, tenho que fazer o melhor para o Benedict, fora disso.
Hugh a olhou, pensativo.
-Muito bem, suponho que isso é assunto dele. Estou disposto a financiar os estudos em troca de recuperar o cristal.
Alice se tranqüilizou. O pior tinha passado.
-Obrigado, milorde. Alegra-me sabê-lo.
-Qual é a outra coisa que quer de mim?
-Um pedido muito insignificante, milorde, sem muito peso para alguém de sua posição -disse, com suavidade-. Em realidade, atrevo-me a dizer que quase não o notará.
-Do que se trata, senhora?
-Peço-lhe que me dê um dote.
Hugh contemplou as brasas como se visse ali algo muito Interessante.
-Uma dote? Quer casar-se?
Alice riu.
-Por todos os Santos, de onde tirou essa idéia, milorde? Claro que não quero me casar. Para que quereria um marido? Meu propósito é entrar em um convento.
Hugh se voltou com lentidão para ela. Seus olhos ambarinos a olhavam intensamente: -Posso perguntar por que?
-Para poder continuar meus estudos de filosofia natural, é obvio. Para isso, necessitarei uma grande biblioteca, que só existe nos conventos ricos. –esclareceu-se voz com delicadeza-. E para entrar em uma boa casa religiosa, necessitarei de um dote respeitável.
-Entendo. -A expressão do Hugh foi do falcão que divisa a sua presa-. Que lástima!
O coração da Alice se oprimiu. Por um momento, olhou-o com franca decepção, pois estava muito segura de que chegariam a um acordo.
Desesperada, começou a acumular argumentos.
-Milorde, rogo-lhe que o pense bem. É óbvio que o cristal verde é muito importante para você. Eu posso fazer que o obtenha. Sem dúvida, compensará o custo de meu dote.
-Entendeu-me mau, senhorita. Estou disposto a pagar o preço de uma noiva por você.
O rosto da jovem se iluminou.
-Sim. Mas quero que venha acompanhado de uma noiva.
-O que?
-Ou, pelo menos, a promessa de uma noiva.
Alice ficou tão estupefata que não podia pensar com claridade.
-Não compreendo, milorde.
-Não? É bem simples. Você obterá deste acordo uma parte do que me pede, lady Alice. Mas, em troca, eu lhe peço que você e eu nos comprometamos antes de ir procurar o cristal verde.
Hugh não ficaria surpreso se inteirar-se de que era a primeira vez na vida que Alice ficava sem fala.
Contemplou divertido e não sem certa satisfação os grandes olhos verdes, os lábios entreabertos e a expressão atônita. Estava convencido de que não haveria muitos homens capazes de provocar semelhante efeito na dama.
Enquanto esperava que Alice recuperasse a fala, passeou pela sala. O que viu não o assombrou. A diferença do resto de Lingwood Hall, esse quarto estava limpo e arrumado. O ar cheirava a ervas frescas. Tinha-o imaginado
A noite anterior, enquanto comiam acompanhamentos tais como assado com molho verde frio muito picante, e bolo de legumes, impressionou-o muito a destreza de Alice no manejo doméstico. Essa manhã, não demorou para averiguar que apesar da magia que empregara no banquete, a mesma não se aplicava ao resto da casa de sir Ralf, a não ser nos aposentos daquela ala. Era evidente que Alice as tinha reclamado para ela mesma e para seu irmão.
Aqui estava tudo imaculado. Por todos lados se via eficiência e ordem, das tapeçarias cuidadosamentes penduradas nas janelas para barrar as correntes de ar, até os chãos resplandecentes.
A luz do dia revelava uma cena diferente no resto da casa de sir Ralf. Chãos sem varrer, tapetes esfarrapados e aroma de umidade em quase todos os quartos evidenciavam que Alice não se incomodava em estender sua habilidade fora dos limites de seu pequeno mundo.
Ali, no estudio, Hugh não só descobriu a limpeza que esperava mas também uma quantidade de coisas interessantes. O quarto estava cheio de coisas estranhas.
No lugar de honra de uma prateleira próxima havia um par de cadernos muito usados e dois volumes encadernados em couro.
Em uma caixa de madeira se exibia uma coleção de insetos mortos. Sobre uma mesa estavam expostos o que pareciam partes e pedaços de espinhos de pescado e uma variedade de moluscos. Em uma esquina havia uma terrina de metal fixo sob um abajur sem acender. Na vasilha havia vestígios de um experimento com aspecto de giz.
Hugh estava intrigado, pois a coleção revelava uma mente inquieta e um temperamento inquisitivo.
-Milorde -disse ao fim Alice-, em nome do Céu, do que está falando?
Hugh compreendeu que não reagia bem ante a idéia de casar-se, e decidiu seguir um caminho menos óbvio para seu objetivo. Tinha habilidade para os estratagemas e não via por que não podia os empregar para conseguir uma esposa.
-Já me ouviu. Necessito uma dama a que possa considerar minha.
-Mas...
-Por um tempo.
-Bom, senhor, não pode me solicitar. Encontre outra dama. Estou segura de que no campo haverá muitas.
"Ah, mas nenhuma como você -pensou Hugh-. Não acredito que haja outra como você em toda a cristandade." -Mas você me convém, lady Alice.
A moça se indignou:
-Eu não sou conveniente para nenhum homem, senhor. Rogo que pergunte a meu tio quão conveniente sou. Estou segura de que o tirará de seu engano. Considera-me uma dura prova.
-Isso será sem dúvida o que ele tem conseguido de você. Eu espero que possamos fazer negócios como amigos mais que como adversários.
-Amigos -repetiu, cautelosa.
-Sócios -acrescentou.
-Sócios.
-Sim, sócios, tal como você mesma sugeriu ontem à noite, quando declarou que queria chegar a um acordo comigo.
-Isto não é o que eu tinha em mente. Talvez conviria que me explicasse melhor o que deseja, milorde.
-Talvez devesse fazê-lo. -Hugh se deteve junto a um complicado instrumento feito com um conjunto de pratos de bronze e uma regra-. De onde tirou este formoso astrolábio? Não vi nenhum parecido desde que estive na Itália.
Alice franziu o cenho:
- Meu pai enviou-me, o encontrou em uma loja de Londres há alguns anos. Conhece este instrumento?
Hugh se inclinou sobre o aparelho.
-Senhora, embora ganhe a vida com a espada, seria um engano deduzir que sou um ignorante. -Provou a mover a regra que formava ângulo com os pratos, trocando a posição das estrelas em relação com a Terra-. Geralmente, os que cometeram esse engano, pagam.
Alice se levantou de um salto e deu a volta a mesa.
-Não é que o ache um ignorante, senhor. Ao contrário. -deteve-se junto ao astrolábio, carrancuda-. Acontece é que não posso entender como funciona este aparelho, e não conheço ninguém que saiba um pouco de astronomia. Você poderia me ensinar a usá-lo?
Hugh se ergueu e olhou a expressão intensa que luzia em seu rosto:
-Sim. Se hoje chegarmos a um acordo, encarregarei-me de ensinar o uso correto do astrolábio.
Os olhos de Alice se ilumianaram com um entusiasmo que, em outra o casião, poderia haver-se confundido com paixão. ruborizou-se:
-É muito amável de sua parte, milorde. Na pequena biblioteca do convento local encontrei um livro que descreve o instrumento, mas não tem instruções para usá-lo. Asseguro-lhe que é muito frustante.
-Pode considerá-lo como um presente de casamento.
Imediatamente o brilho se apagou dos grandes olhos, e foi rapidamente substituído pela cautela:
-Senhor, com respeito a esse compromisso, repito que deveria explicar-se.
-Está bem. -Hugh caminhou até uma mesa sobre a que havia uma variedade de pedras e cristais. Levantou uma parte de pedra vermelha e o observou-. Lamento dizer que sou vítima de uma fastidiosa maldição.
-Milorde, sem dúvida isso será por sua culpa -respondeu, zangada.
- O homem levantou a vista, surpreso pela aspereza do tom:
-Minha culpa?
-Sim. Minha mãe sempre dizia que as enfermidades dessa classe provinham de freqüentar os bordéis, senhor. Por certo, terá que tomar uma dose de teríaca e fazer-se sangrar. Possivelmente teria que suportar também uma boa purgação, de passagem. Opino que é o que se merece por frequentar esses tipos de lugares.
Hugh clareou a voz.
-Você é perita nessas questões?
-Minha mãe era muito perita em ervas. Ensinou-me muitas coisas relacionadas com seu uso para equilibrar os humores do corpo. - olhou, indignada- Por outro lado, sempre dizia que era muitíssimo mais prudente evitar certas enfermidades em lugar de tratar de curá-las depois que o dano parecia.
-Estou de acordo com esse princípio. –Olhou-a-. O que aconteceu com sua mãe?
Pelo semblante da jovem passou uma sombra. -Morreu há alguns anos.
-Ofereço-lhe minhas condolências.
Alice exalou um leve suspiro.
-Acabava de receber um carregamento de ervas estranhas e insólitas. Estava ansiosa de experimentar.
-Experimentar?
-Sim. Estava sempre preparando poções. Em cada oportunidade, mesclava algumas das ervas novas segundo uma receita que tinha descoberto há pouco tempo. Acreditava que era boa para tratar as dores intensas de estômago e intestino. Bebeu muito do preparado por acidente, e morreu.
Hugh sentiu um frio nas vísceras. -Sua mãe bebeu veneno?
-Foi um acidente -respondeu Alice precipitadamente, sem dúvida alarmada pela conclusão do homem-. Já lhe disse que nesse momento estava desenvolvendo um experimento.
-Experimentava com ela mesma? -perguntou, sem poder acreditar.
-Freqüentemente provava os remédios em si mesma antes de dar a um doente.
-Minha mãe morreu de um modo bastante similar -disse Hugh, sem poder deter-se ao pensar na prudência de semelhante confidência-. Bebeu veneno.
Os adoráveis olhos da Alice se encheram de compaixão.
-Sinto-o muito, milorde. Era sua mãe uma estudiosa das ervas estranhas e coisas desse estilo?
-Não. -Deixou a pedra vermelha, zangado por sua própria falta de discrição. Nunca comentava o suicídio de sua mãe, nem que tinha administrado o veneno letal a seu pai antes de bebê-lo ela-. É uma longa história que não me agrada contar.
-Sim, senhor. Essas questões são sempre muito dolorosas.
A simpatia da mulher o irritou, pois não estava acostumado a esse sentimento e não queria estimulá-lo. A simpatia implicava debilidade.
-Interpretou-me mau, senhora. Quando disse que era vítima de uma maldição, não referia a uma enfermidade do corpo.
Olhou-o intrigada:
-Refere-se acaso a uma maldição mágica?
-Sim.
-Mas essa é uma tolice absoluta -burlou-se Alice-. Por todos os Santos, não tenho paciência com os que acreditam em magia e maldições.
-Eu tampouco.
Deu a impressão de que Alice não o tinha escutado, pois já se lançava a outra admoestação:
-Asseguro-lhe que estou a par de que homens ilustrados acostumam viajar ao Toledo nestes tempos, em busca de antigos segredos mágicos, mas estou convencida de que perdem o tempo. Não existe a magia.
- Estou de acordo com você em relação à tolice da magia -disse Hugh-. Mas sou um homem prático.
-E então?
-E então, nesta circunstância, cheguei à conclusão de que a maneira mais rápida de obter meus próprios fins é cumprir com as exigências de uma antiga lenda que é, em parte, uma maldição.
-Uma lenda?
-Sim. -Levantou uma parte de pedra rosada e a elevou para a luz-. A boa gente do Scarcliffe suportou a vários amos nos últimos anos. Nenhum deles conquistou o afeto do povo. E nenhum deles durou muito.
- E suponho que você pretende ser a exceção.
- Sim, senhora. -Deixou a pedra, inclinou-se sobre a mesa e apoiou a mão no punho da espada-. Scarcliffe é minha e a reterei enquanto tenha fôlego.
A jovem lhe contemplou a expressão.
-Não duvido de suas intenções, milorde, mas, o que é o que diz exatamente a lenda?
-Diz-se que o autêntico senhor do Scarcliffe deve cumprir duas condições: primeiro, custodiar a última pedra que resta de um antigo tesouro. Segundo, descobrir a localização do resto das Pedras de Scarcliffe. Alice piscou:
-Isso significa que o cristal verde é valioso?
Hugh encolheu os ombros.
-Aos olhos do povo, sim. Acreditam que forma parte do que foi, em outra época, uma coleção valiosa de gemas preciosas. Faz muito tempo que desapareceu tudo, exceto o cristal verde. Nos últimos anos, o convento da região manteve o cristal. Mas faz duas semanas, desapareceu.
-Acredita que foi roubado?
-Sim. E no momento mais imprópio.
Olhou-o com expressão perspicaz:
-Pouco depois que você foi tomar posse do Scarcliffe?
-Sim. -"É rápida", pensou Hugh-. Quero recuperá-la, pois será muito útil para acalmar os temores e dúvidas de minha gente.
-Entendo.
-Se voltar com a pedra e com uma noiva apta, meu povo compreenderá que estou em condições de ser seu verdadeiro senhor.
Foi evidente que a moça se inquietou:
-Quer casar-se comigo?
-Quero me comprometer com você. -"Passo a passo", recordou-se. Não queria assustá-la nesta etapa, pois agora que tinha um plano estava convencido de que sairia vitorioso. Mas necessitava a cooperação de Alice porque não tinha tempo de procurar outra noiva-. Por um breve período.
-Mas um voto de compromisso é quase tão sério como um noivado -protestou Alice-. Mais ainda, alguns estudiosos da religião afirmam que liga às duas pessoas do mesmo modo, que não há diferença real entre os dois.
-Você sabe tão bem como eu que esses estudiosos são minoria.
Para falar a verdade, rompem-se compromissos com bastante freqüência, em particular se ambas as partes estiverem de acordo. Não vejo problemas.
Alice compôs expressão de dúvida. Guardou um longo silêncio no momento, com as sobrancelhas juntas, refletindo com seriedade. Hugh compreendeu que pensava em sua proposta uma e outra vez, procurando possíveis armadilhas, e a contemplava, fascinado.
Com um estranho sobressalto de consciência, viu que recordava a si mesmo quando planejava algum estratagema. Sabia exatamente o que estava pensando.
Observá-la em semelhante situação era uma experiência estranha, como se pudesse dar uma olhada fugaz ao interior da mente da Alice. Por um instante, apanhou-o uma sensação de estranha familiaridade. Teve a impressão de que conhecia Alice muito melhor do que pensava.
Saber que a inteligência da jovem era tão aguda quanto a própria e que possivelmente funcionasse do mesmo modo, desorientou-o. Não estava acostumado à idéia de que poderia ter em comum com outra pessoa algo tão importante; menos ainda com uma mulher.
De repente, soube que sempre se considerou diferente dos outros, afastado de suas vidas, afastado deles embora estivesse misturado. Tinha passado a vida com a sensação de que vivia em uma ilha, e todas as demais pessoas moravam no lado oposto.
Mas por um instante fugaz lhe pareceu que Alice compartilhava a ilha com ele.
Alice lhe dirigiu um olhar perspicaz:
-Pensava ingressar em um convento assim que meu irmão estivesse encaminhado na vida. -
Hugh afastou a estranha sensação e voltou com esforço ao assunto pendente.
-Não é incomum que uma dama que rompa um compromisso e entre em um convento.
-Sim.
Não adicionou nada mais. Sem dúvida, estava concentrada na reflexão.
De súbito, Hugh se perguntou se teria essa expressão tão apaixonada quando estivesse deitada na cama, debaixo de um homem.
Isso o levou a pensar se teria deitado com algum homem ou não. Afinal, tinha vinte e três anos, e Dunstan tinha razão. Não a podia qualificar como um casulo tímido, sem abrir. "Por outra parte, não é nenhuma coquete", pensou Hugh. A julgar pela coleção de pedras, escaravelhos dissecados, e vários aparelhos que lotavam o estudio, parecia que o entusiasmo de Alice era ligado a questões de filosofia natural que por idéias de paixão e pecado.
Alice cruzou os braços debaixo dos seios e tamborilou com os dedos sobre os braços.
-Quanto tempo duraria esse compromisso para ser útil a seus propósitos, milorde?
-Não poderia precisar isso, mas acredito que bastaria uns meses.
-Uns meses?
-Não é muito tempo --disse em tom agradável-. Na primavera, deverei ter tudo sob controle em Scarcliffe. -Na primavera, estará casada e a terei deitado ao meu lado-. Não tem outro lugar aonde ir, não é assim?
-Não, mas...
-Poderia passar o inverno em Scarcliffe. É obvio, seu irmão também poderá ir.
-E se você se comprometesse com uma mulher com a qual realmente deseje casar-se enquanto eu estiver vivendo sob seu teto
-Confrontarei esse problema quando surgir.
-Não estou segura. É muito diferente do que tinha planejado.
Percebendo sua vantagem, Hugh pressionou:
-Antes de que o perceba, a primavera terá chegado. Se não ficar contente em Scarcliffe, poderemos pensar em outras soluções para a situação.
Alice deu um giro. Colocou as mãos às costas e começou a passear pela habitação.
-Necessitará permissão de meu tio para comprometer-se comigo.
-Não acredito que apresente a menor dificuldade.
-Claro. -Fez uma careta-. Está impaciente para se livrar de mim.
-Reforçarei sua impaciência com uma oferta adequada em especiarias.
Alice lhe lançou outro olhar perspicaz quando se voltou para cruzar outra vez a sala.
-Tem armazém de especiarias?
-Sim.
-Refere-se a especiarias valiosas, senhor, ou só a sal de má qualidade?
O homem disfarçou o sorriso.
-Só as melhores.
-Canela? Açafrão? Pimenta? Sal fino branco?
-E mais também.
Hugh hesitou, pensando quanto lhe convinha dizer sobre o estado de suas próprias finanças. A maioria dos cavalheiros de êxito que não herdaram nada da família, fizeram fortuna por meio de resgates. Obtiveram riqueza, fosse competindo em torneios ou vendendo suas espadas a senhores generosos que os recompensavam por esses serviços. Não muitos aceitavam rebaixar-se a trabalhar no comércio.
Hugh tinha participado de seqüestros, ganhara armaduras valiosas e magníficos cavalos de guerra em vários torneios e, certamente, foi afortunado na escolha de senhores. Mas a origem verdadeira de sua riqueza, que se acrescentava com rapidez, era o comércio de especiarias.
Até esse momento, não lhe tinha importado a opinião de ninguém sobre semelhante assunto. Mas de repente compreendeu que não desejava que Alice reprovasse essa ocupação.
Por outro lado, era uma mulher prática e possivelmente não se importasse. Talvez a certeza de que ele tinha uma fonte de ganhos sólida e segura a tranqüilizaria com respeito a suas Intenções.
Fez uma rápida especulação e decidiu-se pela verdade.
-Geralmente, não o mostro -disse com calma-, mas não vivo só de minha espada.
Olhou-o surpreendida:
-Senhor, comercializa com especiarias?
-Sim. Recentemente comecei com o comércio em grande escala com vários mercados do Oriente. Se decidir entrar para um convento, quando o fizer estarei em condições de sustentá-la com uma dúzia de dotes respeitáveis para você, senhora.
-Entendo. -Pareceu preocupada-. Necessitarei de um dote substancioso para ingressar em um bom convento.
-Claro. Os conventos são tão exigentes como os maridos de famílias latifundiárias, não é certo?
-Sobre tudo quanso se espera que passem por cima de uma reputação turva -murmurou Alice-. E se conviver com você como sua prometida e, por último, não nos casamos, a minha ficará arruínada.
Hugh assentiu.
-Darão por certo que convivemos como marido e mulher. Mas, como você diz, um dote apropriad persuadirá a qualquer bom convento para que ignore esses detalhes insignificantes.
Alice seguiu tamborilando com os dedos nos braços.
- O aconselharia que cuide de que sir Ralf não se inteire de que está disposto a pagar uma grande dote por mim, senhor, pois do contrário tentará enganá-lo.
Um sorriso nasceu das lábios de Hugh, mas se controlou com um esforço.
-Senhora, não tenho o menor interesse em ser enganado. Não tenha medo, tenho bastante experiência na arte do regateio. Tem minha palavra de que insistirei em não pagar muito por você.
Não muito convencida, franziu o cenho.
-Sir Ralf não tem escrúpulos em questões de negócios. Roubou a herança de meu irmão.
-Então, eu poderia igualar a situação roubando você por uma miséria.
Alice calou e seguiu passeando.
-Faria tudo isto em troca de que o ajude a recuperar a pedra verde e por nosso compromisso temporário?
-Sim. É o caminho mais curto e conveniente para meu objetivo.
-E por isso, é natural que o escolha –murmurou Alice.
-Não me agrada perder tempo.
-É você um homem corajoso, senhor.
-Acredito que nisso estamos de acordo-disse Hugo em tom suave.
Alice se deteve, e seu rosto expressivo se iluminou de entusiasmo renovado.
-Muito bem, senhor, aceitarei seus termos. Passarei o inverno no Scarcliffe com você, como sua prometida. Na primavera, reconsideraremos a situação.
Hugh se surpreendeu com a euforia que o invadiu, e teve que recordar-se que era só um acordo, nada mais. Tratou de controlar sua crescente satisfação.
-Excelente -disse-. O pacto está selado. -Entretanto, prevejo um grande problema.
-Do que se trata?
Alice se deteve junto ao astrolábio.
-Penso que, embora meu tio fique muito contente de livrar-se de minha presença nesta casa, custará-lhe acreditar em sua boa sorte.
-Não se aflija, lady Alice. -Hugh estava impaciente por continuar com os acertos, toda vez que já tinham chegado a um acordo-. Repito-lhe, eu tratarei com seu tio.
-Mas suspeitará de seu súbito desejo de casar-se comigo -insistiu.
-Por que?
Hugh franziu o sobrecenho.
-Se por acaso não notou -disse com aspereza-, tenho mais idade que a habitual em uma noiva.
Hugh esboçou um sorriso.
-Uma das razões pelas quais você é muito apropriada as minhas necessidades é, precisamente, que já não seja uma moça frívola e inocente.
A jovem franziu o nariz.
-Sim, isso é certo. É fácil acreditar que você não celebraria um acordo com uma mulher que ainda fosse uma menina, ou que não tivesse experiência na vida.
-Assim é. -Hugh se perguntou quanta experiência de vida teria Alice-. Necessito de uma sócia nos negócios, não uma noiva exigente que se zangue e faça caretas quando não tenho tempo de acompanhada. Preciso de uma mulher amadurecida e com prática. Alice adotou uma expressão ardilosa.
-Uma mulher amadurecida e com prática. Sim, é uma boa descrição de minha pessoa, senhor.
-Isso significa que não existem motivos para não confirmarmos nosso acordo.
Alice vacilou.
-Volto para o problema de convencer a meu tio do verdadeiro desejo que tem você de casar-se comigo.
-Já lhe disse que pode ficar tranqüila e deixar esse problema em minhas mãos.
-Temo-me que não será tão fácil como você imagina. Pouco depois de haver despejado meu irmão e a mim de nosso lar, e de trazernos aqui, ao Lingwood Manor, fez várias tentativas de me casar.
- Pelo que vejo, não teve êxito.
-Sim. Meu tio se desesperou a tal ponto que ofereceu um pequeno dote, mas nem assim conseguiu convencer nenhum vizinho de me afastar de suas mãos.
-Não houve nenhuma só oferta?
Estava surpreso. Ao final das contas, um dote é um dote, e sempre havia homens pobres que o necessitavam com desespero.
-Um ou dois cavalheiros com pequenas propriedades próximas chegaram ao ponto de me visitar para me conhecer pessoalmente. Mas quando me conheciam, perdiam rapidamente o interesse.
-Ou os persuadia de que perdessem o interesse? -perguntou com secura.
Alice se ruborizou um pouco.
-Bom, não pude tolerar a nenhum deles mais que uns minutos. Só idéia de me casar com algum deles era suficiente para provocar histeria.
-Histeria? Você não me parece o tipo de mulher propensa à histeria.
Os olhos da Alice brilharam.
-Asseguro-lhe que tive os ataques mais severos diante dos meus pretendentes. Depois, já não houve mais nenhum.
-Parecia-lhe preferível ficar no lar de seu tio que casar-se?
Encolheu-se os ombros:
-Até agora, é o menor de meus males. Enquanto permaneçer solteira, ao menos tenho uma probabilidade de obter meus propósitos. Uma vez que me case, estarei perdida.
-Tão terrível seria o matrimônio?
-Com qualquer dos caipiras que escolheu meu tio teria sido intolerável--disse convencida-. Não só porque eu teria sido infeliz, mas sim porque nenhum deles teria paciência com meu irmão.
-Os homens preparados para a guerra tendem a ser cruéis e desumanos com jovens que não podem instruir-se como soldados.
-Admito que tem razão -respondeu, amável. Compreendeu que a preocupação pelo irmão dominava a maioria das decisões da jovem.
Alice apertou os lábios.
-Meu pai considerou que já não poderia ocupar-se de Benedict desde que caiu do poney e machucou uma perna. Disse que nunca poderia se preparar como cavalheiro e, portanto, era um inútil. Após isso, ignorou-o.
-É compreensível que não queira expor Benedict ao mesmo mau trato por parte de outro senhor.
-Sim. Meu irmão já sofreu bastante ao ser ignorado por nosso pai. Fiz o que pude para compensá-lo por esse mau trato, mas não foi suficiente. Como se faz para ocupar o lugar de um pai na vida de um rapaz?
Hugh recordou Erasmus.
-Não é fácil, mas se pode fazer.
Alice se sacudiu, como se quizesse desfazer-se de más lembranças.
-OH, bom, mas não é problema seu. Eu me ocuparei de Benedict.
-De acordo. Falarei imediatamente com sir Ralf. Hugh se voltou para sair do estudio.
Estava muito alegre com os resultados do acordo. Embora só tivesse convencido a Alice de comprometer-se, era o mais próximo possível a um casamento. Quando estivessem sob o teto do castelo do Scarcliffe, preocuparia-se com os detalhes do acordo.
Alice fez um gesto imperioso para chamá-lo: -Um momento, sir Hugh.
Ele se deteve e voltou-se cortês: -O que?
-Advirto-lhe que não deve despertar as suspeitas de sir Ralf para que não peça um dote principesco por minha mão. Temos que pensar em uma explicação razoável para que você deseje casar-se comigo. Ao final de contas, acaba de me conhecer e não tenho nenhum dote há lhe oferecer.
-Logo me ocorrerá algo.
Olhou-o intrigada. -Mas, o que?
Hugh a contemplou um momento, e pensou que à luz matinal, o cabelo tinha um tom encantador. No olhar da Alice havia uma expressão clara e direta que o atraía. E as curvas dos seios sob o vestido azul eram muito tentadores. Deu um passo para ela e, de repente, sentiu a boca seca e uma tensão entre as pernas.
-Salvo essas circunstâncias, há uma só explicação razoável para que eu peça a sua mão.
-Qual, senhor?
-Paixão.
Olhou-o como se lhe tivesse falado em um idioma desconhecido para ela.
-Paixão?
-Sim.
Deu dois passos para ela, diminuindo a distância entre os dois.
Alice abriu a boca e a fechou.
-Impossível. Jamais convencerá meu tio que um cavalheiro legendário como você seria tão... tão imbecil para comprometer-se por uma razão tão corriqueira, meu senhor.
Hugh se deteve e rodeou com as mãos os ombros frágeis, assombrado de como era agradável tocá-la. Era de ossos finos mas vigorosa.
Tinha uma flexibilidade e uma força feminina que o excitavam. Sentia-a muito viva sob as mãos. Estava tão perto que podia cheirar o perfume de ervas de seu cabelo.
-Equivoca-se, senhora. -Sentiu a língua torpe dentro da boca-. A paixão desatada é a única força o bastante forte para que um homem renuncie o sentido comum e à razão.
Antes que Alice pudesse adivinhar a intenção, Hugh a apertou contra o peito e cobriu sua boca com a dele.
Então, pela primeira vez, Hugh admitiu que o desejo de beijá-la estava nele desde o primeiro momento em que a viu no salão, à luz das chamas. "É uma criatura mágica e resplandecente", pensou. Nunca havia conhecido uma mulher como aquela. Era uma loucura. Não podia permitir que o afetasse daquele modo.
Sabia que a maneira mais fácil de livrar-se da perigosa curiosidade sensual que o assolava era render-se ao impulso. Mas ao sentir o pequeno estremecimento que percorria Alice, perguntou-se se não teria atraído uma força que seria muito mais difícil de conter do que imaginava.
Permaneceu muito quieta entre suas mãos, como se não soubesse o que fazer. Hugh aproveitou a confusão da jovem para permitir-se saborea-la. Tinha a boca morna e úmida como figos macerados em mel e gengibre fresco. Não se cansava de prová-la.
Beijar a Alice era mais embriagador que entrar em um armazém repleto de especiarias exóticas. Era tudo o que as imagens da noite lhe tinham prometido: doce, suave e perfumada. Era cálida, tinha esse fogo capaz de inflamar todos os sentidos de um homem.
Aprofundou o beijo, procurando resposta.
Alice emitiu um pequeno ruído abafado que não era nem protesto nem grito de temor. Hugh pareceu que sufocava uma exclamação de puro assombro.
Apertou-a mais contra o corpo até que sentiu os seios suaves sob o vestido. Os quadris de Alice se apertavam contra suas coxas. O membro viril se ergueu, faminto.
Alice gemeu com suavidade. Depois, como se de repente despertasse de um feitiço que a mantinha imóvel, agarrou-lhe pelas mangas da túnica. Ficou nas pontas dos pés e se apertou contra ele. O homem sentiu que seu pulso se acelerava.
Então, para sua satisfação, Alice separou os lábios, e Hugh aproveitou a oportunidade que lhe brindava no momento. De repente, enlouqueceu-se com o desejo de possui-la, como se fosse uma especiaria sem nome, exótica, impossível de descrever.
Hugh conhecia bem os efeitos que as fragrâncias particulares das mulheres tinham sobre os sentidos masculinos, e fazia muito tempo que tinha aprendido a controlar e moderar seu apetite por elas. Sabia que um homem que não dominava seus próprios apetites, estava condenado a ser dominado por eles.
Mas, de repente, foi muito difícil cumprir suas próprias regras. Alice era uma mescla embriagadora. O sabor e o aroma da moça o atraíam como nada desde muito tempo.
Possivelmente, toda a vida. Queria mais. Muito mais.
-Sir Hugh! -exclamou por fim, Alice.
Liberou a boca e o olhou com os olhos muito abertos.
Por um momento, Hugh não pôde pensar em outra coisa que em beijá-la outra vez. Começou a inclinar outra vez a cabeça.
Mas Alice pôs os dedos sobre seus lábios, e ergueu as sobrancelhas com expressão interrogante.
-Um momento, por favor, senhor.
Hugh fez um esforço, e inspirou profundamente para serenar-se. Surpreendeu-lhe tremendamente compreender o perto que tinha estado de sacrificar sua própria regra de ferrocom que tão bem convivera até aquele momento.
Desprezou a perturbadora suspeita de que Alice poderia exercer seu poder feminino sobre ele: isso era impossível. Desde os primeiros dias de sua juventude, não era vulnerável a sensualidade feminina e não tinha a menor intenção de permitir que esta mulher quebrasse a armadura de seu controle.
Recordou-se que cada movimento era calculado.
Beijar Alice não foi mais que uma manobra e, a julgar pelo rubor de suas bochechas, o plano funcionou. A dama não era imune à paixão.
-Como havia lhe dito -murmurou Hugh-, acredito poder convencer seu tio de que me vi assaltado pela paixão.
-Bom, deixarei a questão em suas mãos, senhor. -Tinha as bochechas muito coradas, e se voltou, sem cuidado-. Tenho a impressão de que sabe o que faz.
-Asseguro-lhe que assim é. -Hugh inspirou fundo e se dirigiu à porta-. Ocupe-se dos preparativos para a viagem, você e seu irmão. Quero estar a caminho ao meio dia.
-Sim, senhor.
A luz em seus olhos brilharam de prazer feminino e satisfação.
-Há só um pequeno detalhe a mais que teremos que nos ocuparmos antes de partir -disse Hugh. Alice lhe dedicou uma expressão cortês e interrogante: -Do que se trata, senhor?
-Esqueceu de me dizer em que direção iremos.É hora de que cumpra sua parte do trato, Alice. Onde está a pedra verde?
-Ah, a pedra. -Soltou uma risada trêmula-. Caramba, com tantas coisas, quase esquecia minha parte do acordo.
-A pedra verde é o principal -replicou o homem com frieza.
O brilho não demorou para desaparecer dos olhos de Alice.
-É obvio, senhor. Guiarei-o até a pedra.
Sir Ralph se engasgou com a cerveja do café da manhã.
-Você quer comprometer-se com minha sobrinha? -Suas feições pesadas se contorciam em uma careta, ao mesmo tempo que tossia e cuspia-. Desculpe, senhor -disse com voz entrecortada-. Mas, escutei bem? Quer casar-se com a Alice?
-A sua sobrinha cumpre os requisitos que procuro em uma esposa.
Hugh se serve de uma fatia de pão velho. O pouco tentador café da manhã que chegou essa manhã das cozinhas demonstrava que Alice tinha perdido interesse em assuntos culinários depois do banquete da noite anterior. Uma vez obtido o objetivo, a dama deixou de exercer sua magia.
Hugh se perguntou com amargura o que teria comido a jovem em seus aposentos privados, e suspeitou que devia ser algo mais interessante que cerveja rançosa e pão velho.
Ralf o olhou com a boca aberta, sobressaltado. -Cumpre os requisitos? De verdade acredita que Alice seria uma boa esposa para você?
-Sim.
Não culpava a Ralf por sua incredulidade, pois sabia que não se beneficiou da mestria doméstica de Alice.
Essa manhã, os únicos presentes no grande salão eram Hugh e Ralf, que estava sentado a uma mesa pequena, junto ao fogo, e um grupo de sombrios criados que rondavam sem um propósito claro. Os serventes fizeram um esforço não muito entusiamado por limpar depois da festa da noite anterior, mas era evidente que não tinham muito interesse na tarefa. Um dava passadas ocasionais com um pano de limpar e o outro fazia tentativas de esfregar as pranchas de madeira. Não se via muita água nem sabão participando do processo.
Ainda estavam as gotas de cerveja que cobriam o chão de pedra da noite anterior, junto com restos de comida. Por mais que pulverizassem ervas aromáticas, nenhuma quantidade poderia dissimular o aroma de carne podre. De qualquer maneira, ninguém se incomodava em atirar ervas fragrantes sobre essas sobras em decomposição.
-O casamento deverá ser celebrado em algum momento da primavera. -Hugh contemplou o pão rançoso. Tinha fome, mas não tanta para comer outra fatia-. Neste momento, não tenho tempo para uma apropriada celebração.
-Entendo.
-E terá que considerar o lado prático da questão.
Ralf clareou a garganta.
-Ah, claro. O lado prático.
-Penso que seria melhor que Alice e seu irmão me acompanhem a Scarcliffe, e assim não terei que me incomodar mais adiante em fazer outra viagem para buscar a minha prometida.
-Levará-a hoje com você?
Os olhos de Ralf refletiam um assombro difícil de ocultar.
-Sim. Indiquei que tanto ela como o jovem Benedict estivessem preparados para partir ao meio dia.
Ralf piscou várias vezes.
-Não o compreendo, senhor. me perdoe, não queria me misturar em seus assuntos pessoais, mas não posso menos que me assombrar ante esta reviravolta dos acontecimentos. Embora Alice pareça mais jovem do que é, entende que tem vinte e três anos?
-Não é grande coisa.
-Mas se bem sabe que uma noiva jovem é mais fácil de treinar que uma de idade mais avançada. As jovens são mais dóceis. Fáceis de dirigir. Minha própria esposa tinha quinze anos quando nos casamos, e jamais tive problemas com ela.
Hugh o olhou.
-Não acredito que vou ter dificuldades em dirigir lady Alice.
Ralf se encolheu.
-Não, não, claro que não. Ela não se atreveria a contradizê-lo, milorde. -Suspirou com ar lúgubre-. De todos os modos, não é assim como se comporta comigo. Alice foi uma carga terrível, sabe?
-Não me diga?
-Sim. E com tudo o que tenho feito por ela e por seu irmão estropiado...! -A papada do homem tremeu de indignação-. Dava-lhes teto e alimento depois de que seu pai morreu. E que agradecimento recebo por cumprir com meu dever de cristão para os filhos de meu irmão? Nada mais que rixas constantes e exigências Irritantes.
Hugh assentiu, sério.
-Muito difícil.
-Por Deus, é enfurecedor. -Ralf compôs um cenho furioso-. Asseguro-lhe senhor, que não é possível persuadir Alice de que se encarregue de meu salão, exceto como ontem à noite, quando convém a seus próprios propósitos. Mas terá visto que mantém limpos e perfumados seus próprios aposentos.
-Sim. -Sorriu para si-. Vi-o.
-É como se vivesse em um lar diferente, ali, naquela torre. Jamais adivinharia que está vinculada ao resto do Lingwood Hall.
-Isso era evidente -disse Hugh num murmúrio.
-Não só come com o jovem Benedict na intimidade de seus aposentos, mas também dá instruções na cozinha com respeito à comida que depois lhe servirão. E lhe posso assegurar que é muito diferente da que comemos.
-Não me surpreende.
Ralf não ouviu o comentário. Estava imerso em justa indignação.
-A noite passada foi a primeira comida decente que desfrutei em meu próprio salão desde que minha esposa morreu, há sete anos. Quando trouxe Alice aqui, pensei que seria diferente. Acreditei que se faria cargo de suas responsabilidades femininas naturais. Que fiscalizaria as coisas como o fez quando se encarregava da propriedade de seu pai.
-Mas não foi assim, presumo.
Hugh suspeitou que Alice exercia sua própria forma de vingança sobre o tio.
Ralf suspirou, pesaroso.
-Culpa-me por tirar ela e a seu irmão de seu lar, mas eu lhe pergunto, que alternativa eu tinha? Nesse momento, Benedict não tinha mais que quinze anos. E você o viu; é aleijado. Não há instrução capaz de convertê-lo em um combatente apropriado. Não está em condições de defender suas próprias terras. Meu suserano, Fulbert do Middleton, esperava que eu defendesse as terras de meu irmão.
-E decidiu fazê-lo instalando ao seu filho como senhor -comentou Hugh, com suavidade.
-Era a única solução, mas essa bruxa de minha sobrinha não o admitiu. -Bebeu cerveja e colocou a jarra sobre a mesa-. Fiz todo o possível para assegurar-lhe o futuro. Tentei lhe achar um marido.
-Quando compreendeu que não pensava encarregar-se do manejo da casa? -perguntou Hugh, com morna curiosidade.
-Acaso era culpa minha que nenhum de meus vizinhos a quisesse por esposa?
Hugh recordou a descrição da Alice sobre seus oportunos ataques de histeria.
-Não, sem dúvida não foi sua culpa.
-Nem uma vez me agradeceu os esforços que fiz. O juro, fez tudo o possível por atrapalhar cada uma das minhas tentativas de cumprir meus deveres para com ela. Admito que não tenho provas, mas até hoje estou convencido de que urdiu estratagemas para afastar os pretendentes.
Indeciso, Hugh decidiu arriscar-se com outra fatia de pão velho.
-Seus problemas terminaram, sir Ralf. Já não tem por que preocupar-se mais por sua sobrinha.
-Ora, diz isso agora, mas não tem suficiente experiência com Alice. -Entreabriu os olhos-. Não, nada de experiência. Não sabe como pode ser.
-Arriscarei-me.
-Sério? E se se arrepende do compromisso? É muito provável que queira devolvê-la depois de umas semanas experimentando sua língua afiada e suas maneiras exigentes. E eu o que faria, então?
-Não me arrependerei. Juro.
Ralf adotou uma expressão cética.
-Posso lhe perguntar por que está tão seguro de que a moça é apropriada?
-É inteligente, sã e conveniente. E embora não queira praticar suas habilidades domésticas nesta casa, é evidente que está bem preparada. Por outra parte, tem as maneiras de uma dama elegante. Que mais necessita um homem? Desde meu ponto de vista, parece-me muito eficiente e prática.
Apesar do que havia dito a Alice, Hugh não pensava usar a paixão como explicação para celebrar esta união tão apressada. Tanto ele como Ralf eram homens do mundo e ambos sabiam que a luxúria era um motivo absurdo para contrair uma obrigação tão importante quanto um matrimônio.
Evocando o incidente no estudio da Alice, não sabia bem por que abordou, sequer, a possibilidade de usar a paixão como desculpa. Franziu o cenho, perguntando-se como lhe colocou a idéia na cabeça. Nunca se deixava levar pela paixão.
Ralf o olhou com expressão inquieta.
-Milorde, acredita que casar-se com Alice será uma atitude certa?
Hugh assentiu com rudeza.
-Necessito de uma esposa que se ocupe de meu novo lar. Mas não quero perder muito tempo nem esforço na tarefa de encontrá-la. Você sabe quão complicado pode ser. As negociações podem continuar durante meses, inclusive anos.
-É certo, e entretanto, Alice é um tanto peculiar, e não só pela idade.
-Não importa. Estou seguro de que o fará muito bem. E tenho muitas tarefas que requerem minha atenção imediata para perder tempo procurando outra noiva.
-Entendo, senhor, de verdade. Um homem de sua posição não quererá muito escândalo para conseguir uma noiva.
-Sim.
-Não se pode negar que um homem necessita de uma esposa. E suponho que quanto antes, melhor. Alguém tem que ocupar-se dos herdeiros e das terras.
-Sim -disse Hugh-. Herdeiros e terras.
-Bem. De modo que Alice lhe parece conveniente.
-Muito.
Ralf manuseou um pedaço de pão. Lançou um olhar ao rosto impassível do outro, e o afastou rapidamente.
-Ah, rogo-lhe que me perdoe, senhor, mas devo lhe perguntar se falou disto com a mesma Alice.
Hugh elevou uma sobrancelha.
-Preocupam-no os sentimentos de sua sobrinha?
-Não, não se trata disso -apressou-se a afirmar-. É que, segundo minha experiência, para começar, é muito difícil persuadir Alice de participar de um plano se não lhe agrada, entende o que lhe digo? Ao que parece, esta mulher sempre tem seus próprios planos.
-Não tenha temores nesse sentido. A sua sobrinha e eu já chegamos a um acordo.
-Sério?
Isso deixou atônito o tio.
-Sim.
-E está seguro de que aceita este plano?
-Sim.
-Surpreendente. Muito surpreendente.
Pela primeira vez nos olhos do Ralf apareceu uma cautelosa chama de esperança.
Hugh desistiu de mastigar a dura casca e atirou o pão.
-Vamos, nos concentremos nos negócios que temos por diante.
Velozmente, a expressão do Ralf se voltou ardilosa.
-Está bem. Qual é seu preço? Advirto-lhe que não posso dar um dote muito grande por Alice. Este ano, a colheita foi bastante pobre.
-De verdade?
-Sim, muito pobre. Por outra parte, terá que ter em conta os gastos derivados da manutenção de Alice e de seu irmão. Reconheço que Benedict não é um grande problema, mas lamento dizer que Alice é bastante custosa de manter. .
-Estou disposto a lhe oferecer um cofre de pimenta e um de bom gengibre como presente de compromisso.
-Sempre está pedindo dinheiro para seus livros, sua coleção de pedras e outros elementos inúteis... -Quando compreendeu o que o outro dizia, interrompeu-se, atônito-. Um cofre de pimenta e um de gengibre?
-Sim.
-Senhor, não sei o que dizer.
-Que aceita o presente nupcial, de modo que eu possa dar por terminada esta questão. Já estou atrasado.
-Deseja me dar uma dote por Alice?
-É o que se acostuma fazer, não?
-Não quando a noiva é entregue a seu senhor sem outra coisa que a roupa que leva no corpo -replicou Ralf-. Entende você que não lhe contribuirá com terras, verdade, senhor?
-Tenho as minhas.
-Bom, se compreende a situação, está bem. -A expressão do Ralf era de absoluta confusão-. Senhor, para ser sincero, esperava que me pedisse um grande dote para me livrar dela.
-Estou disposto a tomar a Alice tal como está. -permitiu-se acentuar as palavras com um sotaque de impaciência-. Estamos de acordo?
-Sim -apressou-se a responder o tio-. Sem dúvida. Alice é sua em troca da pimenta e do gengibre.
-Chame o sacerdote da aldeia para que seja testemunha dos votos de compromisso. Quero seguir viagem o mais cedo possível.
-Ocuparei-me disso imediatamente. –Ralf começou a levantar da cadeira seu grande corpo, mas vacilou na metade do movimento-. Ah, desculpe, sir Hugh, há outro ponto que eu gostaria de esclarecer antes de seguir adiante com este compromisso.
-Do que se trata?
Ralf passou a língua pelos lábios. Olhou ao redor para certificar-se de que nenhum dos criados podia ouví-lo e logo disse, baixando a voz:
-Se decidisse não seguir adiante com as bodas, quererá você que lhe devolva os baús de pimenta e de gengibre?
-Não. Seja qual for o resultado deste acordo, as especiarias são suas.
-Também tenho sua palavra a respeito?
-Sim. Tem a palavra de Hugh o Implacável.
Ralf riu aliviado e esfregou as mãos roliças. -Bom, então, prossigamos. Não há por que demorar, não é certo? Em seguida mandarei um criado procurar o sacerdote.
Voltou-se e foi mais alegre do que estava desde que Hugh chegou.
Um movimento na porta atraiu a atenção de Hugh. Dunstan, com o rosto marcado por linhas de preocupação, entrou no salão. Deteve-se diante da mesa a qual estava assentado Hugh. Tinha uma expressão sombria de desagrado.
-Temos um problema, milorde.
Hugh o olhou pensativo.
-Por sua expressão, deduzo que estamos a beira do abismo. O que acontece, Dunstan? Estamos sitiados?
Dunstan não fez caso do comentário.
-Há alguns minutos, lady Alice fez dois dos homens irem aos seus aposentos para que carreguem seus pertences nas carroças.
-Magnífico. Agrada-me que não tenha demorado para preparar a bagagem.
-Acredito que não estará tão feliz com ela quando vir com o que pensa contribuir à carga.
-E bem? Não me deixe em suspense, Dunstan. O que é que leva que te irrita tanto?
-Pedras, senhor. -A mandíbula de Dunstan ficou tensa-. Dois baús cheios. E não só teremos que carregar pedras suficientes para construir o muro de um jardim, mas nos deu a entender com clareza que também deveremos levar outro baú cheio de livros, pergaminhos, plumas e tinta.
-Entendo.
-E um quarto cheio de estranhos aparelhos de alquimia. –O rosto do homem se encheu de manchas de indignação-. Além disso, estão as roupas, sapatos e artigos pessoais.
- Lady Alice têm muita quantidade de túnicas e vestidos? -perguntou Hugh, um pouco surpreso.
-Não, mas o que tem basta para encher outro baú. Milorde, você afirmou que temos por diante uma missão de extrema importância. Disse que a velocidade era fundamental. Que não há tempo a perder.
-É verdade.
-Pelos dentes do diabo, senhor, somos uma companhia de soldados, não um grupo de vagabundos. -Dunstan elevou as mãos-. Pergunto-lhe, o que faremos para irmos com pressa com nosso assunto se vamos carregados com uma série de carroças de bagagem cheias de coleções de pedras e elementos de alquimia de uma mulher?
-Essa mulher é minha futura esposa -disse Hugh, sem alterar-se-. Obedecerá suas ordens como se fossem as minhas.
Dunstan o olhou, confuso.
-Mas eu acreditei...
- Se cupe dos preparativos para a viagem, Dunstan.
Ouviu-se chocar os dentes de Dunstan.
--Sim, milorde. Posso perguntar qual é nosso destino?
-Ainda não sei. Saberei depois de tomar os votos de compromisso.
-Não se ofenda, mas tenho a desagradável suspeita de que, seja qual for a direção que tomemos, estaremos condenados a um só destino.
-Que destino? -perguntou o senhor, cortês.
-Problemas -murmurou Dunstan.
-Sempre é bom estar em território conhecido, verdade?
Dunstan não se dignou responder. Murmurando ameaçador, girou sobre os pés e encaminhou-se para a porta.
Hugh deu uma olhada ao redor. Não havia um só relógio de água nem de areia para marcar a hora. Ao parecer, Ralf não tinha interesse em artefatos tão convenientes e eficientes.
Hugh iniciou o movimento para levantar-se da cadeira com a intenção de sair para ver a posição do sol, mas o ruído de passos e o arrastar de uma varinha de madeira pelas escadas da torre o fizeram deter-se.
Apareceu Benedict. Era evidente que o jovem estava ansioso mas decidido. Aproximou-se de Hugh com os ombros rígidos.
Pensativo, Hugh o contemplou. Salvo pela perna aleijada, o irmão de Alice era alto e bem formado. A falta de desenvolvimento muscular nos ombros e o peito indicava que nunca tinha sido instruído nas armas.
O cabelo do rapaz era um pouco mais escuro que o glorioso tom da irmã, quase castanho escuro. Os olhos eram quase da mesma cor verde pouco comum que os de Alice, e também os iluminava a mesma intensa inteligência.
-Milorde, devo falar com você imediatamente.
Hugh se inclinou para frente, apoiando os cotovelos na mesa e entrelaçando os dedos.
-Do que se trata, Benedict?
O rapaz lançou um olhar rápido ao redor, e logo se aproximou mais, como para não ser ouvido.
-Acabo de falar com minha irmã -sussurrou-. Falou-me deste acordo absurdo que os dois acabam de fazer. Diz que estará prometida a você até a primavera, e que esse compromisso se romperá quando convier a seus propósitos.
-Ela usou essas palavras? Conveniente a meus propósitos?
Zangado, Benedict encolheu os ombros.
-Disse algo parecido, sim. Disse que você é uma pessoa que aprecia a eficiência e a conveniência.
-Sua irmã é de natureza prática. Esclareçamos já mesmo uma coisa, Benedict. Quem fala de romper o compromisso na primavera é lady Alice.
Benedict franziu o cenho. -O que importa quem o disse? É evidente que não é um compromisso verdadeiro se irá romper-se dentro de uns meses.
-Devo supor que tem objeções a este acordo.
-É obvio que sim. -A expressão do moço se tornou feroz-. Acredito que pretende você aproveitar-se de minha irmã, senhor. É evidente que pensa usá-la para seus próprios fins.
-Ah.
-Pensa seduzi-la e ter as vantagens que oferece uma esposa até a primavera, não é assim? Depois, abandoná-la.
-Tendo em conta o preço que paguei por ela, não acredito -murmurou - Eu não gosto de desperdiçar dinheiro.
-Não zombe disto -enfureceu-se Benedict-. Sou seja aleijado, mas não tolo. E sou irmão de Alice. Tenho a obrigação de protegê-la.
Hugh o observou por um momento. -Se não aprovar nosso acordo, há uma alternativa.
-Qual?
-Convencer a sua irmã de que me dê a informação que procuro sem lhe pôr um preço.
Benedict bateu com o punho na mesa. -Não acha que não tentei convencê-la de que seja sensata.
-Você sabe onde está a pedra?
-Não, Alice diz que ela o deduziu faz uns dias. Não me disse isso porque nesse momento soubemos que você estava procurando-a. -O semblante do Benedict ficou sombrio--. Imediatamente, começou a fazer planos.
-Certamente.
-É muito hábil fazendo planos, sabe? Quando soube que você procurava a pedra, começou a urdir um ardil para que nós dois pudéssemos sair de Lingwood Manor.
-Isso não é a única coisa que me pediu -disse Hugh-. Me fez prometer que ofereceria um dote substancial para o convento que escolhesse e que enviaria você a Paris e a Bolonha para estudar leis.
-Não quero estudar leis -respondeu Benedict-. É idéia de minha irmã.
-Mas deseja se liberar de seu tio, não?
-Sim, mas sem arriscar a reputação de Alice.
Hugh suspirou. -Comigo, sua irmã está a salva.
-Não se ofenda-replicou o moço entre os dentes-, mas não o chamam de Hugh, o Implacável por nada. -diz-se que é muito perspicaz em urdir estratagemas. Temo-me que tem intenções secretas para com a minha irmã. Não posso permitir que lhe faça mal.
Hugh estava impressionado.
-Não há muitos indivíduos capazes de me desafiar como o você.
Benedict se ruborizou.
-Admito que não tenho habilidade com as armas e que não sou desafio para você, sir Hugh. Mas não posso ficar de braços cruzados e ver como se aproveita de minha irmã.
-Dissiparia seus escrúpulos de irmão saber que não tenho intenções de machucar lady Alice?
-E isso o que significa?
-Que cumprirei meus votos de compromisso. Do momento que Alice fique sob minha custódia, cumprirei com todas minhas obrigações para com ela.
-Mas isso significaria casar-se com ela –protestou Benedict-. E ela não quer casar-se com você.
-Esse é um problema de sua irmã, não é verdade?
Benedict adotou um ar abatido.
-Não o compreendo, senhor. Não quererá dizer que realmente deseja casar-se com ela.
-Sua irmã está satisfeita com o acordo. Temo que, por agora, você terá que se conformar. A única coisa que possolhe oferecer é meu juramento de que a cuidarei como é devido.
-Mas, milorde...
-Digo que pode contar com meu juramento -repetiu Hugh, em tom suave-. Geralmente, considera-se uma segurança muito apropriada.
O rosto do Benedict se tingiu de um vermelho intenso. -Sim, senhor.
-Não deverá comunicar suas suspeitas a seu tio, compreende-me? Seria inútil. Sir Ralf não o escutará, e Alice ficará muito perturbada. -Hugh sorriu-. Para não falar de minha própria reação.
Benedict vacilou. Mas logo apertou os lábios, em muda rendição.
-Sim, sir Hugh. Compreendo-o muito bem.
-Benedict, trate de não ficar ansioso. Sou muito bom idealizando estratagemas. Este funcionará. .
-Eu só gostaria de saber no que consiste -resmungou.
Três horas depois, Alice sentiu uma estranha inquietação quando Hugh a ajudou a acomodar-se na montaria. Seu plano tinha resultado: ela e Benedict por fim se veriam livres de sir Ralf.
De repente, pela primeira vez em meses, o futuro parecia carregado de promessas. Uma brisa vivaz agitava as dobras da capa de viagem. O potro cinza sacudia a desgrenhada cabeça, como se estivesse impaciente por empreender a viagem.
Pela extremidade do olho, Alice viu seu irmão montar . Embora a perna má o estorvava e também a bengala, Benedict tinha inventado um método muito eficiente, embora fosse estranho, de montar sem ajuda. Os que o conheciam desde muito tempo já sabiam que não deviam oferecer-lhe ajuda.
Alice viu que Hugh o observava com dissimulado interesse, enquanto o moço subia no cavalo. Dedicou-lhe um sorriso de agradecimento. O homem assentiu e se moveu ligeiramente em sua própria montaria.
Hugh entendia. O breve intercâmbio silencioso provocou em Alice uma curiosa onda de calor.
Tinha consciência aguda de que Benedict não estava muito satisfeito com a súbita mudança no destino de ambos. Embora estivesse tão ansioso quanto ela para escapar de Lingwood Manor, estava seguro de que tinham saltado da frigideira ao fogo.
Alice tinha uma visão muito mais otimista. "Tudo está muito bem", disse-se.
Todas as suas posses neste mundo, junto com as do Benedict, foram seguindo em uma das carroças para bagagem de Hugh. Houve uns instantes de preocupação quando sir Dunstan se queixou dos baús com pedras e equipamentos, mas isso se solucionou. Alice não sabia bem por que o obstinado Dunstan tinha deixado de se queixar da bagagem, mas estava contente com os resultados.
Os votos não levaram mais que uns minutos, repetidos diante do sacerdote da aldeia. Um pequeno estremecimento a percorreu quando Ralf colocou sua mão na de Hugh, mas o atribuiu à excitação e ao fato de não estar acostumada ao contato com um homem.
"Como tampouco estou acostumada ao beijo de um homem", recordou-se. face à frescura do dia, o corpo se aqueceu com a lembrança do beijo de Hugh.
-Está bem, senhora? -Hugh a olhou enquanto lhe entregava as rédeas. Tinha a frente da capa entreaberta, deixando ver o punho da espada. O sol resplandecia no anel de ônix negro-. chegou o momento de que comece a cumprir sua parte do acordo. Qual será nosso destino?
Alice inspirou profundamente.
-A Ipstoke, milorde, onde se celebrarão justas e uma festa dentro de um dia.
-Ipstoke? -Hugh franziu o cenho-. É a menos de dois dias de caminhada daqui.
-Sim, senhor. Um trovador chamado Gilbert me roubou o cristal verde. Acredito que assistirá à feira.
-Um trovador roubou a pedra? Está segura?
-Sim, senhor. Gilbert permaneceu um tempo no salão de meu tio. -Apertou os lábios-. Era um canalha e um tolo. Enquanto esteve aqui, tratou de seduzir várias criadas. Cantava mal, e não podia jogar uma boa partida de xadrez.
-Autenticamente, um pobre trovador. Hugh a observou com um olhar tão intenso que a perturbou.
-Sim. Também resultou ser ladrão. Inventou um pretexto para visitar meu estudio e viu a pedra verde. Perguntou-me por ela. Pouco depois, partiu de Lingwood Manor, e então senti a falta da pedra.
-Por que acredita que a levará a feira do Ipstoke? Alice sorriu, satisfeita com a lógica de sua dedução.
-Uma noite, enquanto estava ébrio, murmurou algo a respeito de ir ao Ipstoke a tocar essas estúpidas canções para os cavalheiros que se reuniriam para as justas.
-Entendo.
-Não há motivo para dúvidas. É muito razoável que um trovador faça algo assim. Haverá muitos cavalheiros procurando jogos no Ipstoke, não é certo?
-Sim -admitiu Hugh-. Se haverá uma justa, reunirão-se muitos cavalheiros e lutadores.
-Precisamente -dedicou-lhe um sorriso doce-. E onde há cavalheiros procurando jogos e a possibilidade de fazer dinheiro por meio de resgates no campo, há trovadores procurando entretê-los. Não é certo?
-Sim.
-Além da possibilidade de ganhar uma moeda cantando, suspeito que Gilbert pensa vender meu cristal na feira.
Hugh guardou silêncio por um momento, e logo assentiu. -Sua lógica é sólida, senhora. Muito bem, então, iremos ao Ipstoke.
-É provável que Gilbert ignore que você procura minha pedra -disse Alice_. Mas se descobrisse que está seguindo a pista, não ficaria muito tempo no Ipstoke.
-Nesse caso, cuidaremos de que não saiba que estou procurando-a até que seja muito tarde para que fuja. Há outra coisa, senhora.
-O que?
-Parece-me que adquiriu o costume de esquecer que eu sou o autêntico dono da pedra verde. A jovem se ruborizou.
-Isso é questão de opinião, milorde.
-Não, senhora. É um fato. A pedra é minha. Nosso trato está selado.
Hugh elevou a mão fazendo um sinal a seus homens. Alice olhou por cima do ombro enquanto a companhia passava pelos portões de Lingwood Hall. Viu Ralf e seus primos de pé nas muralhas. Saudou a Gervase, o único pelo que sentia certo carinho. Lhe devolveu a saudação.
Ao começar a girar a cabeça, viu que Ralf sorria. Seu tio estava muito satisfeito consigo mesmo, e uma suspeita inquietante a assaltou.
-Espero que o rumor que ouvi a respeito de meu dote seja uma simples intriga -disse ao Hugh, que guiava seu enorme potro negro junto ao dela.
-Eu não dou ouvido a intrigas.
Olhou-o de soslaio, avaliando-o.
-Talvez não o acredite, senhor, mas se dizia no salão que você prometeu a meu tio dois baús de especiarias.
-Dois?
-Sim, um de pimenta e um de gengibre. -Alice riu por esse comentário absurdo--. Sou consciente de que esse comentário desmesurado é evidentemente falso, milorde. Entretanto, preocupa-me pensar que o tenham enganado. O que é o que deu a sir Ralf como dote?
-Não se preocupe com esses detalhes, minha senhora. Não têm muita importância.
-Não me agradaria saber que o extorquiram, milorde.
A boca do Hugh se curvou em um sorriso.
-Não tema, sou um homem de negócios. Faz muito tempo que aprendi a obter o que ofereço em um transação.
Ipstoke se apresentava como uma cena extraordinaria e colorida. Até o ânimo sombrio de Benedict se aliviou ao ver as bandeiras de brilhantes cores e as tendas, as raias que salpicavam os campos que rodeavam as velhas muralhas. Mercadores e vendedores de bolos de todas as descrições imagináveis se mesclavam com acrobatas, trovadores, cavalheiros, soldados e granjeiros. Os meninos corriam daqui para lá, gritando de júbilo.
Sólidos cavalos de guerra se erguiam ultrapassando os asnos de largas orelhas e os robustos poneis de transporte. As carroças de bagagem, carregadas de armaduras, avançavam dando trombadas junto a carros cheios de verduras e lã. Os trovadores e acrobatas rondavam entre a multidão.
-Juro que nunca em minha vida vi tanta gente em um só lugar. -Benedict olhou ao redor, maravilhando-. Poderia imaginar que toda a população da Inglaterra está aqui.
-Nem tanto--disse Alice. Estava de pé junto a Benedict, sobre uma suave elevação do terreno onde Hugh ordenou que ficassem embaixo da tenda negra. Por cima de sua cabeça, balançavam bandeirolas negras. A cor de Hugh formava um nítido contraste com os chamativos vermelhos, amarelos e verdes das lojas e as bandeiras vizinhas.
Espero que quando viajar a Paris e a Bolonha encontre com espetáculos mais maravilhosos que este.
Parte da excitação se dissipou da expressão do moço.
-Alice, preferiria que não falasse de minha ida a Paris e a Bolonha como se fosse algo concreto.
-Nada disso. -Alice sorriu-. Agora, é bastante concreto: sir Hugh se ocupará disso. É parte de nosso acordo, e todo mundo afirma que cumpre com seus acordos.
-Não me agrada esse acordo que fez com ele. É certo que não gosto muito do tio, mas prefiro tratar com conhecido não amigável que com um indivíduo de reputação como a de Hugh o Implacável.
Alice franziu o cenho.
-Agora, seu nome é Hugh do Scarcliffe. Não o chame o Implacável.
-Por que não? Assim o chamam seus homens. estive falando com sir Dunstan. Disse-me que é um nome bem posto. Dizem que nunca abandona uma causa.
-Também dizem que sua palavra é tão sólida quanto uma cadeia feita de aço espanhol, e para mim isso é o mais importante. -Desprezou o tema com um gesto-. Basta de tanto falatório. Tenho que cumprir com a minha parte do trato.
Benedict a olhou, atônito.
-O que quer dizer? trouxeste sir Hugh a Ipstoke e lhe deste o nome do trovador que roubou o cristal verde. Não tem que fazer nada mais.
-Não será tão simples. Se esquece que você e eu somos os únicos que podemos identificar Gilbert. Ninguém da companhia de Hugh o conhece.
Benedict encolheu os ombros.
-Sir Hugh fará averiguações. Logo encontrarão Gilbert.
-E se estiver usando outro nome?
-Por que faria algo semelhante? -perguntou-. Não tem forma de saber que sir Hugh veio aqui para buscá-lo.
-Não podemos estar seguros. -Pensou um momento-. Não, o modo mais rápido de encontrá-lo será que eu me coloque entre a multidão e o busque. Tem que estar aqui, em algum lugar. Só espero que ainda não tenha vendido minha pedra verde. Isso poderia complicar as coisas.
Benedict a olhou de cima a baixo. -Procurará Gilbert por sua conta?
-Se quiser, pode me acompanhar.
-Esse não é o problema. Comentou-lhe este plano a sir Hugh?
-Não, mas não vejo por que é tão importante.
Alice se interrompeu ao ver Dunstan cruzar um terreno gramado e aproximar-se -Sir Dunstan -murmurou-. Parece que irão a guerra.
Pôde constatar que Dunstan parecia muito mais alegre nesse momento do que o viu até então. O rosto, geralmente turvo, estava reavivado por uma expressão de entusiasmo e expectativa. Andava com galhardia. Usava a cota e levava um elmo recém limpo sob um braço.
-Milady -saudou-a, com brusca formalidade. Cada vez era mais evidente que Alice não lhe agradava muito.
-Sir Dunstan -murmurou-. Parece que vai à guerra.
-Nada tão aborrecido. A uma justa.
Alice se surpreendeu.
-Participará de uma justa? Mas estamos aqui por um assunto específico.
-Houve mudança de planos.
-Mudança! -Olhou-o, perplexa-. Sabe sir Hugo sabe desta mudança?
-Quem acredita que fez a mudança? -perguntou Dunstan, secamente. voltou-se para Benedict-. Necessitamos algo de ajuda com as armaduras e os cavalos. Sir Hugh sugeriu que nos desse uma mão.
-Eu? -sobressaltou-se Benedict.
Alice ficou carrancuda.
-Meu irmão não recebeu instrução para dirigir armaduras, armas e cavalos de guerra.
Dunstan deu uma palmada no ombro do moço.
- Sir Hugh disse que já é hora de que treine nessas questões.
Benedict cambaleou e recuperou o equilíbrio ajudando-se com a bengala.
-Não tenho muito interesse em aprender essas coisas.
Dunstan riu.
-Pois inteira-se de uma coisa, jovem Benedict. Agora, é homem de sir Hugh, já seu novo senhor não lhe parece conveniente ter entre seus pessoal, homens que não estejam devidamente instruídos e com os que não se possa contar em caso de invasão.
-Uma invasão! -horrorizou-se Alice-. Espere um momento. Não quero que meu irmão se exponha a sofrer ferimentos.
Benedict a olhou furioso.
-Não necessito de babá, Alice.
-É obvio que não, moço. –Dunstan olhou a Alice, sorridente, e por sua expressão, soube que tinha ganho essa pequena batalha-. Logo, o seu irmão será um homem. Já é hora de que aprenda como atuam os homens.
-Mas tem que estudar leis --exclamou, indignada.
-E? Acredito que um homem que estudará leis terá particular necessidade de cuidar-se. Terá muitos inimigos.
-Olhe -começou furiosa-. Não aceitarei...
Dunstan a ignorou.
-Vamos, Benedict. Levarte-ei às lojas e o apresentarei aos escudeiros.
Não de todo convencido, o moço respondeu: -Está bem.
-Benedict, não se mova daqui, ouve-me? -ordenou Alice.
Dunstan riu com malícia.
-Quem sabe, Benedict? Sir Hugh pensa sair ao campo em pessoa. Possivelmente permita ajudá-lo com sua própria armadura pessoal.
-Você acha? -perguntou o jovem.
-Por todos os Santos. -Alice não podia acreditar no que ouvia-. Não me diga que sir Hugh pensa perder o tempo em uma estúpida justa.
Dunstan lhe dirigiu um sorriso luminoso.
-Lady Alice, você tem tanto que aprender como seu irmão. É obvio que sir Hugh sairá em combate. Vincent do Rivenhall está aqui.
-Quem é Vincent do Rivenhall? –Perguntou Alice--O que ele tem a ver com isto?
Dunstan levantou as sobrancelhas grossas.
-Sem dúvida, seu senhor prometido explicará muito em breve, milady. Não me corresponde fazê-lo. E agora, rogo-lhe que me desculpe. Benedict e eu temos coisas a fazer.
Alice transbordava de ira. -Não gosto do rumo que tomaram os acontecimentos.
-Deverá levar a insatisfação e as queixa a sir Hugh -murmurou Dunstan-. Vamos, Benedict.
-Espere -ordenou Alice-. Necessito da ajuda de meu irmão.
-Mas, Alice... --disse o moço, decepcionado.
-Esta tarde, não o necessitará para nada -assegurou-lhe Dunstan.
Olhou-o, carrancuda.
-Rogaria-lhe que me diga como sabe, sir Dunstan.
-Bom, é óbvio -dirigiu-lhe um sorriso inocente-. Estará ocupada com assuntos muito mais importantes.
-Que assuntos? -perguntou, em tom gelado.
-É muito claro. Como acontece com todas as damas recém comprometidas, sem dúvida quererá ver seu futuro senhor luzir suas habilidades no campo de combate.
-Não tenho a menor intenção de fazer semelhante coisa.
-Impossível. Às senhoras adoram ver os Jogos.
Antes de que Alice pudesse dar vazão ao resto da cólera, Dunstan se apressou a arrastar a Benedict para uma das tendas. Já se tinham erguidos esses refúgios nos extremos opostos do enorme campo. Os cavalheiros, escudeiros e soldados se reuniam embaixo deles, preparando-se para as justas do dia.
Alice estava furiosa. Não podia acreditar que Hugh tivesse trocado os planos para encontrar a pedra verde só por um torneio. Não tinha sentido.
Quando Dunstan e Benedict desapareceram entre a multidão, deu a volta e se encaminhou para a tenda negra. Procuraria a Hugh e lhe diria exatamente o que pensava da situação. Era absurdo que participasse de um torneio quando tinham coisas muito mais importantes de que ocupar-se.
Deteve-se com brutalidade quando encontrou o caminho bloqueado por um enorme cavalo de guerra. Reconheceu-o imediatamente. Não havia modo de confundir os grandes cascos, a cabeça larga, os ombros musculosos, e a vigorosa silhueta do potro preferido de Hugh. Assaltou ao nariz o aroma de aço bem engordurado e do couro.
Alice piscou à vista das botas de Hugh nos arreios. Pareciam muito grandes. Levantou lentamente os olhos. Era a primeira vez que o via com a cota de malha. Os finos elos brilhavam ao quente sol da tarde. Tinha o elmo metido sob o braço.
Em geral, a figura de Hugh intimidava, mas assim preparado para a guerra, o Implacável era, na verdade, uma aparição aterradora. Alice se protegeu os olhos com a mão enquanto o olhava.
-Inteirei-me que há um novo costume entre as damas elegantes, que consiste em dar a seus cavalheiros favoritos algo que goste muito para usar no torneio -disse o cavalheiro, com calma.
Alice conteve o fôlego e se apressou a juntar energias. recordou-se que estava furiosa.
-Milorde, não me diga que participará das justas.
-Chamaria muito a atenção que não o fizesse. Não quero despertar suspeitas quanto a minha verdadeira razão para estar aqui, no Ipstoke. Recorde que o plano consistia em misturar-se com a multidão.
-Não vejo a necessidade de que se perca tanto tempo entregando-se a estúpidos jogos a cavalo esta tarde, quando poderia estar rastreando ao trovador Gilbert.
-Jogos estúpidos?
-Para mim o são.
-Entendo. Há muitas damas que gostam de ver os torneios. -Fez uma pausa significativa-. Sobre tudo se participarem seus próprios senhores.
-Bom, nunca me interessaram muito.
-Dará-me um objeto?
Alice o olhou, suspicaz.
-Que classe de objeto?
-Será suficiente um lenço.
-Certamente, não há aqui onde conseguir elementos de vestimenta, verdade? -Assombrada, meneou a cabeça-. Dar a um homem um pedaço de tecido limpo em perfeitas condições, ou uma fina fita de seda enquanto brinca de correr pelo barro...! O objeto, como você a chama, ficará imprestável.
-Pode ser. -Olhou-a com expressão inescrutável-. De todos os modos, acredito que seria prudente que me desse esse objeto, Alice.
Alice o olhou confusa.
-Para que, senhor?
-É o que se espera -disse, com calma-. Ao final das contas, estamos comprometidos.
-Quer então que eu participe desse ritual para convencer a todos de que, na verdade, estamos prometidos?
-Sim.
-E o que me diz da pedra verde?
-Tudo a seu tempo -disse Hugh com suavidade.
-Achava que a pedra era muito importante para você.
-Ainda é, e a recuperarei antes de que termine o dia. Mas ocorreu outra coisa. Algo de igual importância.
-Do que se trata?, diga-me por favor.
- Vincent do Rivenhall está presente e pensa participar da justa.
A voz do homem estava vazia de toda emoção, e essa mesma qualidade atemorizava.
-E qual é o problema? -perguntou Alice, inquieta-. Por todos os Santos, senhor, acreditei que estaria disposto a esquecer um pouco os jogos para recuperar a pedra.
-Asseguro-lhe que a oportunidade de sair ao campo contra Vincent do Rivenhall é quase tão importante quanto recuperar a pedra.
-Não imaginava que você julgaria necessário provar-se contra outro cavalheiro, meu senhor -resmungou Alice-. Mas bem acreditava que estava por cima dessas coisas.
-Alice, acredito que seria prudente de sua parte não imaginar muitas coisas a meu respeito.
À moça ficou com a boca seca, mas se conformou com um olhar furioso.
-Está bem, milorde, daqui em diante, não imaginarei mais nada.
-Fique tranqüila, que mais adiante lhe explicarei esta questão de sir Vincent. -Estendeu-lhe a mão--, Neste momento, tenho pressa. Por favor, o objeto.
-Na realidade, isto é muito. -olhou-se as roupas-. Poderia tomar a fita que borda minha manga, se acreditar que é imprescindível,
-É.
-Trate de não sujá-la, certo? As boas fitas são caras.
-Se estragar, comprarei-lhe outra. Posso me permitir isso
Alice sentiu que corava sob o olhar zombador. Ambos sabiam que uma fita nova não significaria nada para ele.
-De acordo.
-Obrigado. -Se abaixou para tomar a fita de seda verde-. Pode ver o torneio da tenda amarela e branca, no outro extremo do campo. Ali é onde se sentam as damas.
- Não tenho intenções de ver as justas, senhor -replicou, acalorada-. Por minha parte, tenho melhores coisas para fazer.
-Melhores coisas?
-Sim, senhor. irei procurar ao Gilbert. Não tem sentido que os dois percamos a tarde.
Hugh apertou a fita verde no punho coberto de malha.
-Não se incomode com o trovador, Alice. Logo o encontraremos. Enquanto isso, presenciará as justas com outros espectadores.
Sem esperar resposta, Hugh fez um gesto invisível ao enorme cavalo. O animal girou com assombrosa agilidade e partiu ansioso em direção ao campo de combate.
Os grandes cascos faziam estremecer a terra.
-Mas, sir Hugh, acabo de dizer que não tenho interesse pelo torneio...
Interrompeu-se desgostosa ao dar-se conta de que estava falando com os quartos traseiros do cavalo que se afastava.
Pela primeira vez, sentiu certos escrúpulos com respeito ao acordo que tinha feito com Hugh. Era evidente que seu novo sócio não compreendia o significado verdadeiro da igualdade.
A confeiteira de bochechas rosadas entregou a Alice uma torta de frango
-Sim, há muitos trovadores por aqui. Mas não recordo ter visto um que levasse uma túnica amarela e alaranjada. -A mulher recebeu a moeda que lhe dava Alice e a meteu na bolsa que tinha no cinturão-. E agora, minha senhora, deseja algo mais?
-Não.
A vendedora sacudiu os farelos das mãos e virou parar atender ao próximo cliente.
-Aqui, meu bom moço, o que vai levar? Tenho excelentes bolos de fruta, e também cordeiro muito saboroso. Escolha.
Alice olhou desgostosa a torta enquanto se afastava da barraca. Era a quarta que comprava em uma hora. Não se sentia capaz de comê-la.
Tinha pensado em empreender a busca do Gilbert de maneira sistemática, mas estava sendo muito difícil. Até esse momento, só tinha percorrido um terço da feira. Demorava muito tempo encontrar a um trovador em particular nesse lugar lotado.
Tentou travar várias conversações casuais em diferentes barracas e tendas, mas logo descobriu que ninguém tinha vontade de perder o tempo em bate-papos ocasionais. Ao verificar que os vendedores e mercadores toleravam melhor suas perguntas cuidadosamente expressas se acreditassem que lhes compraria algo, Alice começou a fazê-lo, embora não muito convencida. Para seu desassossego, já tinha gasto quase todo o conteúdo da bolsa e não encontrou nada. No transcurso, viu-se obrigada a consumir três bolos e duas jarras de cidra.
Ao final de uma fileira de tendas raiadas de cores vivas, vacilou, perguntando-se o que fazer com esse último bolo. Detestava atirá-lo. Qualquer classe de desperdício a ofendia.
- Senhora. Aqui.
Alice levantou a vista do bolo e viu um moço de uns dezesseis anos, que parecia flutuar à sombra de um toldo próximo. Na cara suja apareceu um sorriso.
-Excelentes preços, milady. Deve ver.
O jovem lançou um olhar rápido por cima do ombro e mostrou uma pequena adaga por debaixo da túnica manchada.
Alice abafou uma exclamação e retrocedeu. Nas feiras, a ameaça de ladrões e ladrões de carteira era constante. Recolheu-se as saias e fez gesto de correr.
-Não, não, não tema, boa senhora. -Os olhos escuros transbordavam de alarme-. Não penso lhe fazer mal. Chamam-me Fulk. Ofereço-lhe em venda esta formosa adaga. Vê? É feita com o melhor aço espanhol.
Alice se relaxou.
-Sim, é formosa, mas preciso dela.
-Não a quer dar de presente-lhe a seu senhor? –Sugeriu Fulk, com um brilho decidido no olhar-. Um homem sempre gosta de uma boa adaga.
-Sir Hugh já tem armas suficientes–respondeu Alice.
Ainda ressentia-se pelo fato de que Hugh tivesse preferido perder a tarde no campo decombate.
-Ninguém tem aço suficiente. Aproxime-se mais senhora, e observe o trabalho.
Observou-a sem muito interesse.
-Onde a conseguiu?
-Meu pai vende adagas e facas em um posto do outro lado da feira -disse Fulk-. Eu o ajudo me colocando entre a multidão para procurar clientes.
-Moço, conte outra estória.
-Está bem -resmungou-. Se insistir em saber a verdade, encontrei-a caída a um lado do caminho. Não é uma pena? Acredito que deve pertencer a algum viajante de passagem. Deixou cair por acidente.
-O mais provável é que tenha sido roubada da barraca de um vendedor de facas.
-Não, não, milady. Juro-lhe que obtive esta faca de maneira honesta. -Girou a arma para mostrar a qualidade-. Veja o belo que é. Decorada com pedras estranhas e preciosas.
Alice sorriu, cética.
-É inútil que pratique seus planos comigo, rapaz. Só ficam umas poucas moedas e penso em usá-las para comprar algo muito mais proveitoso que essa adaga.
Fulk lhe dirigiu um sorriso de anjo.
-O que é o que quer comprar, boa senhora? Diga-me e o buscarei. Então, me pagará. Assim, evitarei-lhe caminhar inutilmente entre a multidão.
Alice o olhou pensativa. -Muito gentil de sua parte.
O moço fez uma reverência quase cortês. -É um prazer servi-la, senhora.
A Alice ocorreu que poderia ajudá-la. -O que preciso é certa informação.
-Informação? -Colocou de novo a faca dentro da manga com um hábil giro da mão-. Isso não será nenhum problema. Vendo informação freqüentemente. Surpreenderia saber quantas pessoas querem comprá-la. Bem, que classe de informação necessita?
Alice recitou o conto que tinha arranjado para vendedores de bolos e camelôs.
-Procuro um trovador de cabelo castanho, comprido, uma pequena barba e olhos azul claro. Está acostumado a usar uma túnica amarela e alaranjada. Já o ouvi cantar antes, e queria ouvir mais de suas canções, mas não posso encontrá-lo entre tanta gente. Viu-o?
Fulk inclinou a cabeça e a olhou com astúcia. -Está apaixonada por este trovador?
Alice ia protestar indignada, mas se conteve. Em troca, soltou o que supunha um suspiro trêmulo.
-É muito galante.
Fulk assobiou surpreso.
-Não é você a única dama que acha isso. Pelos dentes de são Anselmo, não sei o que vêem nos trovadores. Todos têm às mulheres desmaiadas a seus pés.
Alice se imobilizou.
-Viu-o?
-Sim. Vi a seu maravilhoso poeta. –Ergueu um ombro em gesto indiferente-. A túnica é muito bonita, tal como você a descreve. Também gosto dessas cores.
-Onde o viu? -perguntou, ansiosa.
-Ontem à noite cantou para um grupo de cavalheiros que se reuniram ao redor de uma fogueira do acampamento. Eu, eeeh, estava perto por acaso, e o ouvi.
-Foi nesse momento que topou com a adaga perdida? -perguntou com cortesia.
-De fato, assim foi. -Fulk não se afligiu pela dedução da mulher-. Os cavalheiros são pessoas descuidadas, sobre tudo depois de beber muito vinho. Sempre perdem as adagas, as bolsas, e coisas assim. E agora, quanto me pagaria por achar ao galante trovador?
Alice apalpou a bolsa quase vazia.
-Só ficaram umas poucas moedas. Suponho que esta informação vale uma delas. Talvez duas, se o fizer rápido.
-Feito. -Fulk sorriu outra vez-. Venha comigo, senhora. Sei onde encontrar ao trovador.
-Como é que está tão seguro disso?
-Havia dito que você não era a única mulher apaixonada por ele. Ontem à noite, ouvi-o combinar com uma certa dama loira que se encontrariam hoje enquanto o senhor da dama se batia no campo.
-Por todos os Santos -murmurou Alice-. De verdade, é uma fonte de informação, Fulk.
-Já o havia dito, a informação se vende tão bem como qualquer outra coisa, e não traz consigo muito risco.
Deu-se a volta e avançou entre o labirinto de barracas com passo ágil.
Alice atirou o bolo sem comer e correu atrás dele.
Quinze minutos mais tarde, estava nos subúrbios da feira. Olhou atrás inquieta enquanto Fulk a precedia, junto ao antigo muro de pedra que rodeava o feudo do Ipstoke. Tinham deixado atrás a multidão. Estava sozinha com Fulk.
Subiram uma suave costa. Quando chegaram ao topo, Alice olhou outra vez atrás. Descobriu que podia ver por cima das tendas e os galhardetes, até o campo de batalha ao longe.
Juntou-se uma turma de espectadores para ver a briga. A brisa levava até a Alice os ruídos do torneio. Havia dois grupos rivais de cavalheiros que lutavam um contra outro, dos extremos opostos do campo.
Quando chocaram, Alice se encolheu. Vários cavalos e homens caíram em uma tremenda confusão. As armaduras brilhavam ao sol e os cavalos se debatiam. Sem querer, surpreendeu-se procurando o familiar galhardete negro, mas foi impossível identificar a Hugh nem a seus homens dessa distância.
-Por aqui, senhora _murmurou Fulk. Rodeou uma das ruínas-. Depressa.
Alice se disse que Hugh era muito inteligente e habilidoso para ficar ferido. Os cavalheiros de sua categoria triunfavam nos combates de exibição. estremeceu-se; era um caso similar ao de seu próprio pai.
Sir Bernard tinha passado boa parte de sua vida no norte da França na procura de glória e riqueza, através da interminável ronda de torneios. "Mas também procurava algo muito diferente -pensou Alice com amargura-. Escapar as suas responsabilidades de marido e pai."
Não tinha mais que lembranças dispersas de seu pai. Essas lembranças, pulverizavam-se através dos anos como pérolas de um colar quebrado.
Bernard foi um homem galante, de risada contagiosa, barba vermelha e frisada, e vivazes olhos verdes. Era vivido, fanfarrão e transbordava entusiasmo pela caça, as justas, e segundo Helen, a mãe da Alice, os bordéis londrinos.
Bernard permanecia ausente a maior parte do tempo, mas suas visitas à propriedade eram acontecimentos memoráveis na infância da Alice. Assaltava a casa com presentes e relatos. Elevava a Alice em seus braços e a levava pelo imenso salão. Enquanto estava no lar, a menina parecia que tudo, incluindo a sua mãe, resplandeciam e brilhavam de felicidade.
Mas muito em breve, voltava a partir para um torneio em algum lugar longínquo, ou a uma longa viajem a Londres. Em muitas lembranças da infância aparecia sua mãe chorando depois de uma das freqüentes partidas de seu pai.
Por um tempo, quando nasceu o filho e herdeiro de Bernard, a família o viu com mais freqüência.
Nessa época, Helen estava radiante. Mas quando Benedict ficou ferido para sempre ao cair do cavalo, Bernard voltou para os antigos costumes. As viagens a Londres e ao norte da França se fizeram outra vez prolongadas e freqüentes.
À medida que passavam os anos, Helen reagia às ausências de seu marido passando cada vez mais tempo com o livro de apontamentos ou misturando ervas e poções. Afastou-se dos filhos, aparentemente obcecada com os estudos.
Nos últimos anos, Helen já não recebia as breves visitas de Bernard com os olhos brilhantes de felicidade. O positivo da situação, pensava Alice, era que já não chorava durante horas ao vê-lo partir.
Ao mesmo tempo que a mãe se fechava no estudio por períodos cada vez mais longos, Alice foi ocupando-se das múltiplas responsabilidades que implica o manejo de uma casa e um feudo. Também assumiu a tarefa de criar a Benedict, embora temeu não ter muito êxito em ser para o irmão o pai e a mãe ao mesmo tempo. Não pôde compensá-lo pela dor que lhe causou o negligente desprezo de Bernard. Ainda a fazia chorar o silencioso ressentimento que aparecia no olhar do Benedict cada vez que se mencionava o pai.
Mas não tomou consciência da medida em que tinha fracassado até que provocou a perda da herança de Benedict.
-Senhora?
Afastou as tristes lembranças.
-Aonde vamos, Fulk?
-Silêncio. -Fez-lhe um gesto frenético-. Quer que a ouçam?
-Quero saber aonde me leva.
Rodeou um velho abrigo para armazenar madeiras, e o viu abaixar-se ao lado de um arbusto de espessa folhagem.
-Ontem à noite, ouvi que o trovador dizia à dama loira que se encontrariam aqui, entre os arbustos que há junto ao abrigo.
-Está certo?
-Se não estiver aqui, não terá que me pagar –disse o moço, magnânimo.
-Está bem. Leve-me.
Fulk se enfiou entre as folhas que ocultavam o abrigo da vista. Alice suspendeu as saias e o seguiu com cautela. "”Estragaram-se minhas botas de couromacio”, pensou.
Um momento depois, a deteve um grito alto e agudo. Agarrou o braço do Fulk.
-O que é isso? -sussurrou, espantada.
-Certamente, a loira -murmurou o moço, sem dar amostras de confusão.
-Alguém está atacando-a. Temos que ir em sua ajuda.
Fulk piscou e a olhou como se estivesse louca. -Não acredito que deseje nenhuma ajuda de estranhos como nós.
-Por que não?
-Por isso ouça, seu formoso trovador está dedilhando muito bem as cordas da harpa.
Ao longe soou outro grito feminino.
-Dedilhando a harpa? Não entendo. Alguém está machucando a essa mulher. Devemos fazer algo.
Fulk revirou os olhos. -O trovador está girando entre as ervas altas, milady.
-Girando? Como se fosse uma bola, quer dizer? Por que faz algo semelhante?
O moço se queixou em surdina
-Não compreende, milady? Estão fazendo amor.
-Aqui, entre os arbustos?
Alice estava tão impressionada, que tropeçou com um ramo e esteve a ponto de cair.
-E onde, se não? -Fulk a sustentou-. Não podem usar a tenda do senhor, verdade? E o trovador não tem sua própria tenda.
Alice sentiu um calor que a assolava. Era inquietante saber que este moço, não maior que Benedict, sabia muito mais destas questões que ela mesma.
-Entendo. Tratou de falar em tom indiferente.
O evidente desconforto da mulher comoveu ao Fulk.
-Quer esperar aqui até que terminem?
-Bom, seria melhor. Certamente, eu não gostaria de interrompê-los.
-Como quizer. -Estendeu-lhe a mão-. Cumpri minha parte do trato. Se fosse tão amável de pagar-me, partirei-me.
Alice franziu o sobrecenho.
-Está seguro de que é Gilbert, o trovador, que está com essa dama?
-Veja.
Indicou para um monte de roupa amarela e alaranjada que estava jogada no chão, sob os ramos caidos de uma árvore.
Alice seguiu o olhar do moço.
-Parece ser a túnica de Gilbert. E acredito que vejo seu alaúde.
No mesmo instante em que Alice entregava ao Fulk sua última moeda, ressonou um áspero grito masculino entre a folhagem.
-Pelo que ouço, acredito que agora o trovador está tocando seu próprio instrumento,. -Fulk apertou a moeda-. Mas não se aflija, senhora. Ouvi que dizia a loira era hábil para mais de uma canção.
Alice franziu outra vez o cenho.
-Não sei se compreendo...
Mas Fulk já tinha desaparecido entre a mata.
Alice duvidou, sem saber como proceder. Tinha pensado em dirigir-se a Gilbert e lhe exigir que lhe entregasse a pedra verde. Mas nesse momento, perguntou-se pela primeira vez se admitiria tê-la. O que faria se negasse possuir a pedra?
E, por outra parte, estava o delicado assunto da dama loira. O que dizia a um homem que acabava de lhe fazer amor a uma mulher? Sobre tudo, em se tratando de um adultério, como era evidente.
Viu-se obrigada a chegar à conclusão de que Gilbert era muito mais audaz do que ela acreditava. Ao atrever-se a seduzir uma mulher casada, expor-se à castração, ou inclusive à morte as mãos do marido. Um homem que se atrevia a tanto por paixão, riria de Alice quando lhe pedisse que devolvesse a pedra verde.
Lhe ocorreu que, nessa circunstância, as coisas seriam muito mais simples se Hugh a tivesse acompanhado. Ele não teria tido escrúpulos em desafiar ao Gilbert.
"Para confiar em um homem que lutava em um de campo de batalha, enquanto havia assuntos muito mais importantes que resolver!", pensou, irritada.
Outro gemido rouco a sobressaltou.
Este era mais forte que o anterior, como se estivesse aproximando-se de certo clímax ou obstáculo. Compreendeu que não tinha idéia de quanto tempo se demorava para fazer amor. Podia acontecer que Gilbert e sua dama saíssem de entre os arbustos em qualquer momento. E a veriam ali, com aspecto de tola.
Se pensava atuar, teria que fazê-lo em seguida. Aspirou uma profunda baforada de ar para serenar-se, e partiu decidida para o monte de roupa jogada. Quando chegou, viu que Gilbert não só tinha deixado o alaúde mas também também um pequeno saco de lona perto da túnica. Era do tamanho adequado para levar uma pedra grande.
Alice hesitou outra vez, até que recordou que Gilbert lhe tinha roubado o cristal. Tinha direito a recuperá-lo.
Abriu depressa a boca do saco. Dentro havia um objeto do tamanho aproximado do da pedra envolto em um trapo velho.
Com dedos trementes, tirou-o da bolsa e apartou um pouco o trapo. O conhecido brilho mate do estranho cristal verde nublado pareceu lhe piscar os olhos. As facetas planas e largas captaram a luz, mas não a refletiram com muita força.
Sem lugar a dúvidas, era a pedra verde. Percorreu-a uma onda de satisfação. Não era uma pedra atrativa, mas a fascinava. Nunca tinha visto uma pedra nem um cristal assim. Sentia que continha segredos, embora no breve tempo que a teve em suas mãos não pôde deduzir quais fossem.
Fez-a sobressaltar um grito rouco nas imediações. Deu um salto, com a pedra na mão. Então, ouviu a voz do Gilbert.
-Querida minha, esta noite, quando cantar junto à fogueira do acampamento para os homens de seu senhor, saberá que a dama da canção é você. Ruborizará-te?
-Claro, mas na escuridão, quem me verá? -A mulher riu-. Não cabe dúvida de que é um descarado, senhor trovador.
-Obrigado, senhora. -Gilbert soltou umas risadas-. Cantarei seus seios de alabastro e suas coxas leitosas e o mel que achei hoje entre essas coxas adoráveis. Seu senhor não saberá nada.
-Faria melhor em rogar que meu senhor não me reconheça em seu poema -replicou com secura-, pois do contrário se verá privado de seu belo alaúde.
Gilbert riu a gargalhadas.
-Não haveria prazer se não houvesse risco. Alguns homens preferem lutar nas justas. Eu, prefiro fazê-lo entre as coxas suaves de suas mulheres.
Alice já não duvidou. Apertou a pedra envolta no trapo e fugiu, rogando que Gilbert não ouvisse seus passos na terra branda.
Não estava muito longe quando ouviu seu grito irado, e soube que tinha descoberto a perda.
Correu mais rápido. Não acreditava que Gilbert a tivesse visto.
Quando chegou ao muro de pedra do velho feudo, respirava agitadamente. ocultou-se depois de um pequeno abrigo de madeira enquanto se detinha recuperar o fôlego. Em uns minutos, estaria a salvo entre a multidão da feira; tranqüilizou-se. Gilbert jamais poderia ser encontrada.
Deu um profundo suspiro. Com o pulso acelerado, saiu do incerto amparo do abrigo e correu a campo aberto, por volta da primeira fileira de tendas.
Dois homens armados com adagas se interpuseram em seu caminho. Alguém lhe sorria com sua boca desdentada. O outro, levava uma venda no olho direito.
Deteve-se horrorizada.
-O que temos aqui: uma fina senhora com uma interessante objeto nas mãos. Ao parecer, o moço nos vendeu a informação correta, Hubert.
O homem da venda no olho sorriu sem humor. -É certo. Talvez deveríamos tê-lo pago por seus serviços.
-Sempre o digo. Nunca pague o que pode obter de graça. -O sem dentes avançou, e esticou a mão livre-. nos dê a pedra, senhora, e não haverá problemas.
Alice se ergueu muito rígida e lhe cravou um olhar furioso.
-Esta pedra me pertence.
.Venda olho gracejou:
-Fala como uma dama fina e correta, não? Sempre quis uma.
-Pode tome-a -balbuciou o sem dentes-. Assim que tenhamos acabado nosso negócio.
Alice apertou a pedra e abriu a boca para gritar pedindo ajuda. Sabia, com uma sensação de desespero, que não havia ninguém perto que pudesse auxiliá-la.
-Voltou Benedict?
Hugh contemplou o extremo oposto do campo. Via as bandeiras de Vincent ondulando na brisa. O encheu de expectativa.
Não o esquecerei, avô.
-Não, milord -Dunstan seguiu o olhar do Hugh. Em seus olhos apareceu uma expressão perspicaz-. Bom, bom, bom. Vejo que, por fim, Vincent do Rivenhall se prepara para sair ao campo.
-Sim, já era hora. -Hugh lançou um olhar para as tendas, procurando ao Benedict: não havia rastro dele-. Pelo sangue do demônio, onde está esse moço? Teria que ter voltado já com notícias de sua irmã.
Quando se fez evidente que não estava entre os espectadores, Hugh ordenou a Benedict procurar Alice. Por uma razão desconhecida, primeiro se decepcionou e depois se enfureceu ao verificar que não estava entre o público. Tratou de convencer-se de que tinha direito de zangar-se. Ao final de contas, deu-lhe instruções muito claras, e a mulher as ignorou. Mas tinha a inquietante sensação de que a questão era mais profunda.
Sem dúvida, pareceu-lhe conveniente não lhe fazer caso, pois não o considerava seu verdadeiro senhor.
-Pode ser que não lhe interessem os jogos. -Dunstan cuspiu no chão. Contemplou a colorida multidão de mulheres que se sentavam sob o toldo de amarelo brilhante em um lateral do campo-. Depois de tudo, é um jogo de homens.
-Sim.
Hugh voltou a observar a multidão no refúgio tratando de ver ao Benedict.
-Lembrasse a época em que não se podia incomodar às damas para que viessem aos jogos -disse Dunstan-. Mas agora, converteram-no em uma moda. Basta para fazer chorar a um cavalheiro vigoroso.
-Não posso esperar mais -disse Hugh-. Vincent já está quase preparado. Traga-me o cavalo.
-Sim, milorde.
Dunstan fez um sinal ao escudeiro que sustentava as rédeas do cavalo negro.
Hugh lançou um olhar aos espectadores. Seguia sem haver rastro da Alice.
-Por Deus. Esta senhora tem muito que aprender.
Um homem de largos ombros e barba comprida, de olhos pequenos e resplandecentes, saiu do refúgio.
-Sir Hugh. Inteirei-me que estava aqui. Não pôde resistir em atirar Vincent de Rivenhall do cavalo, não?
Hugh olhou ao recém-chegado sem muito entusiasmo.
-Dizem que hojefoi bem, Eduard.
-Ganhei-lhe um bom cavalo de guerra e partes da armadura de Alden de Granthorpe. -Eduard rompeu em gargalhadas-. Deixei sir Alden debatendo-se no barro com uma perna torta. Foi divertido. Parecia uma tartaruga ao reverso.
Hugh não disse nada. Eduard não lhe agradava.
Contava com vários anos mais que ele, e era um mercenário duro que vendia a espada a qualquer um que pagasse bem. Isso em si não era nenhum crime. Hugh sabia bem que se o destino não o tivesse feito cair na casa de Erasmus de Thornewood, ele mesmo teria escolhido essa carreira.
Em seu desagrado intervinham outros fatores. Embora o mercenário fosse um guerreiro habilidoso, era grosseiro e de maus modos. Hugh conhecia desagradáveis falatórios a respeito da tendência desse homem a ser violento com as mulheres jovens, como o caso de uns meses atrás, em que uma empregada de taverna de doze anos morreu por causa da rude luxúria de Eduard. Não sabia se o rumor era certo, mas não lhe custava acreditá-lo.
-Preparado, senhor.
O escudeiro tranqüilizou ao cavalo impaciente.
-Muito bem.
Hugh se voltou para Eduard.
-Meu senhor Hugh.
Benedict dobrava coxeando a esquina da tenda ao mesmo tempo em que Hugh apoiava uma bota no estribo. Ofegava.
-Milorde, não consigo encontrá-la.
Hugh se deteve.
-Não está na tenda?
-Não, milorde. -Benedict deteve-se e se apoiou na bengala-. Possivelmente esteja percorrendo os postos dos vendedores. Não gosta muito dos torneios e essas coisas.
-Indiquei-lhe que visse o jogo junto com as outras damas.
-Sei, senhor. -O moço parecia ansioso-. Deverá ser paciente com minha irmã, senhor. Não está acostumada a aceitar ordens. Prefere fazer as coisas a seu modo.
-Assim parece.
Hugh se acomodou nos arreios e inclinou-se para tomar a lança que lhe estendia um de seus homens. Olhou o frágil pedaço de fita verde que ondulava perto da ponta da lança.
-Milorde, rogo-lhe que seja tolerante com ela -suplicou Benedict-. Nunca aceitou bem as ordens. Menos, as dos homens.
-Então, é hora de aprender.
Hugh lançou um olhar para a extensão do campo. Vincent do Rivenhall montava sob sua bandeira vermelha.
Apesar de irritado com Alice, Hugh começava a inquietar-se cada vez mais. O comichão que sentia na nuca não se devia à impaciência pelo iminente choque com Vincent.
Algo mau acontecia.
Imaginou que Alice não estava entre o público por puro rancor. Compreendia que não lhe agradava que fosse obrigada a assistir às justas. Tranqüilizou-se pensando que estaria zangada, e decidida a discutir a questão em outro momento. Depois que ele tivesse lutado com Vincent de RivenhalI.
A Hugh e a Vincent estava proibido gozar a satisfação da agressão mútua, pela aliança de ambos com Erasmus de Thornewood. Erasmus não pensava permitir que seus melhores cavalheiros desperdiçassem a energia e esbanjassem seus ganhos lutando entre si. Os dois estavam obrigados a limitar a competência às estranhas ocasiões em que coincidiam em um torneio. Nessas circunstâncias, podia-se desafogar o antigo rancor sob a aparência de um jogo.
A última vez que se travaram em combate de exibição, Hugh derrubou Vincent com um só golpe da lança. Como a justa era um acontecimento importante promovido por dois grandes barões, não havia limite à lança. Os cavalheiros triunfantes eram livres para reclamar algo que pudessem obter de suas vítimas.
Todos esperavam que Hugh pusesse um preço elevado à derrota de Vincent de RivenhalI. Pelo menos, poderia ter reclamado o custoso cavalo de guerra e a armadura do rival.
Mas não tomou nada disso. Em troca, foi do campo deixando Vincent no chão como se não tivesse importância. O insulto foi escandaloso e inconfundível. Cantaram-se baladas relatando-o, e a lenda de Hugh o Implacável enriqueceu-se com outra anedota.
Ninguém mais que Hugh e seu único confidente, Dunstan, sabiam a verdade. Não era necessário despojar Vincent da armadura e do cavalo. Hugh tinha pensado uma estrategia muito mais sutil e eficaz contra ele que se desenvolveria com o tempo. Em uns seis meses, no máximo a um ano.
O triunfo final seria completo. Hugh estava convencido de que isso acalmaria os ventos tormentosos que agitavam sua alma. E ao fim, teria paz.
Enquanto isso, esses encontros ocasionais em torneios serviam para saciar o apetite da Provocadora de Tormentas.
Hugh colocou o elmo sob o braço e olhou Benedict.
-Pegue dois rapazes e procure sua irmã entre as tendas dos mercadores.
-Sim, senhor. -Benedict começava a partir, mas vacilou-. Senhor, devo lhe perguntar o que pensa fazer com Alice quando a encontrarmos.
-Esse é problema da Alice, não seu.
-Mas, milorde...
-Digo que isso é entre eu e Alice. Vá, Benedict. Tem uma tarefa por diante.
-Sim, senhor.
Com inapetência, Benedict se voltou para abrir-se passo entre a multidão de homens perto dos abrigos.
Hugh se preparou para se dirigir à pequena companhia que cavalgava sob sua bandeira negra. Olhavam-no impacientes. Quando saíam ao campo com Hugh o Implacável, sempre havia dinheiro a ganhar.
Fazia muito tempo que Hugh tinha descoberto que havia um segredo para ganhar tanto torneios como batalhas. Era a disciplina e uma boa estrategia. Nunca deixava de assombrá-lo que tão poucos homens praticassem essas artes.
Por natureza, os cavalheiros eram pessoas precipitadas e entusiastas, que se lançavam ao campo ou a um combate real sem pensar em nada que não fosse a glória individual e a lança. Os cavaleiros eram incentivados a comportar-se assim, buscando a honra e os lucros, pelos trovadores que cantavam suas façanhas. E além disso, é obvio, pelas damas, que preferiam outorgar seus favores aos heróis das baladas.
Na opinião de Hugh, essa conduta indisciplinada servia de inspiração a poemas cômicos, e além disso convertiam a vitória em uma brincadeira, ou o combate verdadeiro em um fato infeliz.
Hugh preferia que fossem previsíveis.
A disciplina e a adesão a uma estrategia, determinada antes do conflito, eram o que dava previsibilidade. Tinha-as convertido na base em que se apoiavam as técnicas com que instruía a seus homens.
Os soldados e cavalheiros que antepunham sua avidez de glória e riquezas ao desejo de seguir as ordens do Hugh, não duravam a seu comando.
-Manterão filas ordenadas, e seguirão o plano que fizemos -disse aos homens-. Está claro?
Dunstan riu, enquanto colocava o elmo.
-Sim, senhor. Não tema, estamos preparados para seguir o plano.
Os outros sorriram, afirmando.
-Recordem -advertiu-lhes Hugh-. Vincent de Rivenhall é meu. Ocupem-se de outros homens.
Assentiram com seriedade. Todos os homens conheciam o ressentimento que existia entre seu senhor e Vincent de Rivenhall. O conflito não era secreto.
Satisfeito de que tudo estivesse preparado, Hugh começou a montar o cavalo. Depois, ocuparia-se de Alice.
-Espere, senhor -gritou Benedict. Hugh olhou para trás, impaciente e viu o temor refletido no rosto do moço.
-O que acontece?
-Esse moço, Fulk, diz que sabe onde está Alice. -Apontou um jovem poeirento, de idade similar à sua-. Diz que dois homens com adagas estavam perseguindo-a. Diz que nos dirá onde encontrá-la. Se lhe pagarmos.
Tardiamente, Hugh pensou que o motivo pelo que Alice não estava entre o público era que tinha ido procurar Gilbert, o trovador.
"É impossível que seja tão audaz."
Mas embora tratasse de se tranqüilizar, sentia um frio que lhe gelava as vísceras. Por um momento, nublou-lhe a visão a imagem do desventurado vendedor de Clydemere, que jazia em um atoleiro de sangue; com a garganta cortada.
Hugh olhou o sorridente Fulk.
-É verdade?
-Sim, meu bom senhor. -O sorriso do Fulk se alargou-. Sou comerciante, entende? Vendo informação, ou qualquer outra coisa que encontre. Terei muito gosto em dizer onde está a dama de cabelos vermelhos. Mas será melhor que se apresse se quer resgatá-la antes de que esses dois salteadores de estrada a alcancem.
Hugh conteve sem piedade a fúria e o medo que ameaçavam invadi-lo, e afastou de sua mente e de sua voz todo indício de emoção:
-Fale.
-Bom, senhor, quanto a mim, primeiro costumo fixar um preço.
-O preço -disse Hugh em voz baixa-, é sua vida. Diga a verdade ou se prepare para pagar.
Fulk deixou de sorrir.
Alice correu para o abrigo. Sua única esperança era chegar antes de que os dois ladrões a alcançassem. Se podia chegar à porta, poderia esconder-se dentro.
-Pegue-a -gritou o homem do tapa olho ao companheiro-. Se perdermos a maldita pedra desta vez, nunca nos pagarão.
-A dama corre como uma lebre -ofegou o outro-. Mas não escapará.
O tamborilar surdo dos pés dos perseguidores, calçados com botas, era o ruído mais aterrador que jamais tinha ouvido . O abrigo parecia muito longe. Atrapalhava-se com o peso da pedra e suas próprias saias.
Os dois ladrões aproximaram-se. Alice estava a três passos da pequena construção quando ouviu o trovão, que sacudiu até o chão que pisava.
Com parte de sua consciência, Alice advertiu que o sol seguia brilhando. Nem rastros de tormenta. O trovão era um detestável tambor a suas costas. E então ouviu o grito de um dos perseguidores. O espantoso alarido a fez deter-se, cambaleante. Girou sobre si mesmo e viu que o ladrão desdentado caía sob os cascos de um cavalo negro de guerra. O animal não pareceu notar esse obstáculo insignificante e seguiu avançando em busca de novas presas.
Alice tensa observou a grande besta de guerra e ao cavalheiro sem elmo que ia montado. As mechas negras do cavalo e cavaleiro ondulavam do mesmo modo no vento. O aço faiscava ao sol.
A jovem agarrou a pedra e contemplou o espetáculo incrível que tinha adiante. Ao longo de sua vida havia visto muitos cavalheiros e cavalos de guerra, mas nunca um tão aterrador como este.
Hugh o Implacável, e o monstro destruidor avançaram como uma só coisa, uma enorme máquina bélica que nada podia deter.
O caolho gritou, e desistiu rapidamente da perseguição, procurando refúgio entre os arbustos que rodeavam o abrigo. Não tinha possibilidades de escapar do cavalo e, ao compreendê-lo, voltou-se, impotente, para enfrentar-se a seu destino.
Alice começou a fechar os olhos para não ver a cena inevitável de morte e destruição. Mas no último instante, o animal bem treinado, obediente à ordem invisível do cavaleiro, mudou o rumo. A enorme besta passou junto ao ladrão sem tocá-lo.
O cavalo se deteve, estremecido, girou sobre os quartos traseiros e retrocedeu até onde estava o caolho, encolhido. O potro sacudiu a cabeça, soprou com força e chutou com um de seus grandes cascos, como protestando pelo final da caça.
O homem de um só olho caiu de joelhos, apavorado.
Hugh olhou a Alice:
-Está bem?
Alice não pôde falar. Tinha a boca seca. Assentiu.
Satisfeito com a resposta, Hugh concentrou a atenção no ladrão. Quando falou, o fez com voz de aterradora suavidade:
-Então perseguia à dama como um gavião a uma lebre.
-Não me mate, milorde -suplicou o caolho-. Não queríamos lhe machucar. Só brincavamos com a garota. Só queríamos assustá-la. O que tem que mau nisso?
-A garota -disse Hugh com deliciosa delicadeza-, é minha prometida.
O olho do ladrão se arregalou, como se visse que o chão se abria sob seus pés. Era evidente que o aguardava o inferno. Fez um intento mais de defender-se.
-Mas, como podia sabê-lo, milorde? Tem a mesma aparência de qualquer outra dama. A vimos vindo dos arbustos, sim. Como é natural, pensamos que procurava um pouco de ação.
-Silêncio -ordenou o cavalheiro-. Ainda está vivo porque preciso lhe fazer perguntas. Se não controlar a língua, poderia decidir que não necessito de respostas.
O ladrão estremeceu.
-Sim, senhor.
Apareceu Dunstan dando a volta à esquina do muro de pedra. Benedict, movendo-se em surpreendente velocidade ajudado pela bengala, seguia-o de perto. Os dois estavam sem fôlego e com o rosto avermelhado.
-Alice -vociferou o moço-. Não está ferida?
-Não.
Alice percebeu que estava tremendo. Não olhou para o homem caído sob os cascos do cavalo.
Hugh lançou um olhar a Dunstan.
-Se ocupe do que está no chão. Caiu sob a carga de Storm, e deve estar morto.
-Sim, senhor. -aproximou-se do caído. Empurrou o corpo inerte com a ponta da bota e cuspiu sobre a grama_. Acredito que tenha razão, senhor. -inclinou-se para olhar melhor o objeto que havia sob o homem-. Levava uma linda adaga.
-É tua, se a quiser -disse, desmontando-. Com isso, todo o resto que encontre.
-Isso não será muito.
De longe, chegou um grito coletivo. O vento trazia os ruídos do último choque no campo de combate. Dunstan e Benedict olharam para trás, para o campo onde se desenvolvia o torneio.
Alice percebeu uma aguda tensão.
-Penso que Vincent de Rivenhall terá saído ao campo - disse Hugh depois de uma pausa.
-Sim, senhor -disse Dunstan, com um suspiro de pesar-. Assim é. Ao que parecer, enfrentou Harold de Ardmore. Esse não será um grande combate. Vincent cavalgará em cima do jovem Harold.
A mandíbula de Hugh se tensionou, mas a voz permaneceu serena como se tivesse estado falando das últimas técnicas de cultivo.
-Lamento que hoje tenha que se conformar com o que encontre com os dois ladrões, Dunstan. É óbvio que, como resultado de certos feitos recentes, não teremos a oportunidade de gozar de vitórias mais lucrativas nas justas.
Dunstan lançou um olhar rancoroso a Alice. -Sim, milorde.
Hugh atirou as rédeas do cavalo para Benedict. -Procura o oficial, e lhe diga que depois quero interrogar este homem.
-Sim, senhor.
Benedict tomou as rédeas de Storm. O potro lhe dirigiu um olhar inexpressivo.
Hugh olhou Alice com expressão inescrutável. -Está segura de que não está machucada?
-Sim -murmurou. Por algum motivo absurdo, sentia-se a ponto de chorar. Tinha o desejo ridículo de jogar-se nos braços do Hugh-. Salvou-me a vida, milorde.
-Isso não teria sido necessário se tivesse obedecido minhas indicações de assistir às justas.
A voz do homem carecia de inflexões. Alice sentiu frio. "Possivelmente seja certo o que dizem dele-pensou-. Talvez Hugh o Implacável não tenha sentimentos." A pedra envolta em um trapo lhe pesava nas mãos. Então, recordou que a tinha.
-Encontrei a pedra verde, milorde -disse, esperando que a novidade quebrasse a malha invisível de aço com que o homem embainhava suas emoções.
-Ah, sim? -Lançou um olhar fugaz ao objeto-. Não me agrada o preço que esteve a ponto de pagar por ela.
-Mas...
-Já fiz averiguações sobre o paradeiro do trovador Gilbert. Esta noite, estava contratado para divertir uns cavalheiros e suas damas. Pela manhã, a pedra estaria em minhas mãos, sem riscos. Não havia necessidade de que ficasse em perigo.
O precário equilíbrio do ânimo da jovem sofreu um abalo.
-Teria que me haver comunicado o plano antes de ir às justas, milorde. Somos sócios, recorda-o? Fizemos um trato.
-Nosso trato, como você o chama, não tem nada que ver com o fato de que espero obediência quando dou ordens.
-Por todos os Santos, senhor, isso é muito injusto.
-Injusto? -Avançou para ela-. Acredita que não tenho sentido de justiça que me oponho a que corra riscos inúteis?
Olhou-o, aturdida.
-Está zangado.
-Sim, senhora.
-Quero dizer, muito zangado -murmurou-. Simplesmente porque eu me arrisquei?
-Não me parece um assunto simples, senhora. Embora a expressão ameaçadora de Hugh tivesse que havê-la assustado, não foi assim. Dentro da Alice, nasceu uma diminuta chama de esperança.
-Acredito que, na realidade, está mais preocupado por mim que pela pedra verde, senhor.
-É minha prometida -respondeu, com calma-. Como tal, é minha responsabilidade.
Alice esboçou um sorriso trêmulo. -Milorde, acredito que você é, em certo modo, um impostor. Não é tão frio como a gente afirma. Hoje me salvou a vida, e eu não o esquecerei enquanto viva.
Deixou a pedra no chão, ergueu-se e correu para os braços de Hugh. Para seu assombro, fecharam-se so seu redor. Sentiu a malha de aço da cota de Hugh dura e fria, mas a força do homem lhe brindou um estranho consolo. agarrou-se a ele.
-Depois seguiremos falando -disse-lhe Hugh com a boca contra o cabelo.
Hugh esperou que preparassem o jantar, e que o comessem junto ao fogo, e então foi à tenda de Alice.
"É uma tenda muito elegante", pensou, irônico. Grande, espaçosa, cômoda. Até tinha uma divisão no meio. Era a única que tinham transportado na viagem.
Era a de Hugh.
Destinou-a a Alice sem lhe perguntar sequer se seria tão amável de compartilhar seu interior com ele. Sabia de antemão qual seria a resposta a semelhante pergunta.
A noite anterior, dormiu junto ao fogo, com seus homens. Esta noite, tinha toda a intenção de voltar a fazê-lo enquanto Alice desfrutava do luxo e da intimidade relativas da tenda.
Até então, Alice não só tinha dormido sozinha na tenda, mas também comido dentro. Como comentou amargamente o tio, ao parecer, não tinha nenhum interesse na conversação de cavalheiros e soldados.
Hugh imaginou deitada sob as mantas, e teve que abafar um gemido. Na parte baixa do corpo, se aninhou um desejo profundo e inquietante. Fazia muito que não ficava com uma mulher. Como homem disciplinado que era, negava-se a deixar-se dominar pela luxúria, mas pagava um preço por isso.
Conhecia muito bem a mordente dor do desejo sexual insatisfeito. Durante anos, tinha-o experimentado com bastante freqüência. alegrava-se pensando que seria diferente quando tivesse uma esposa.
Naturalmente, esse pensamento derivou à óbvia observação de que já quase a tinha. Para a maioria dos casais, o compromisso era um voto tão próximo ao matrimônio que muitos não objetariam a consumação da união. De fato, a consumação assegurava que as bodas se celebrariam.
Era desafortunado que Hugh estivesse prometido a uma dama que se considerava a si mesmo sócia nos negócios mais que futura esposa. perguntou-se o que faltaria para convencê-la de que o matrimônio era uma alternativa preferível ao convento.
O problema o afligia. Ao princípio, pareceu muito simples, mas agora começava a duvidar.
"Tenho muitas habilidades -pensou-. Não me falta inteligência." Erasmus de Thornewood se ocupou de minha educação, e Hugh sabia que era muito mais instruído que a maioria dos homens. Mas no que se referia a entender às mulheres, sobre tudo às que eram como Alice, sentia que lhe faltava capacidade.
-Milorde? -Benedict, que estava sentado junto ao fogo, levantou-se e se aproximou depressa de Hugh-. Posso falar um minuto com você?
-Se se tratar de sua irmã, não.
-Mas, milorde, queria que a entenda melhor antes de reunir-se com ela. Esta tarde, não queria perjudicá-lo.
Hugh se deteve.
-Hoje, quase lhe cortam o pescoço. Acaso quer que a deixe cometer semelhantes loucuras?
-Não, senhor, mas estou seguro de que não voltará a fazer nada precipitado. Tenho que lhe assinalar que obteve o que queria. Está outra vez na posse da pedra verde. Não poderia esquecer o resto?
-Não. -Observou o semblante preocupado do moço, onde brincavam as sombras vacilantes da fogueira-. se acalme, moço. Não maltrato mulheres. Não machucarei sua irmã.
Benedict não se convenceu. -Sir Dunstan comentou que você estava zangado por não ter podido competir com Vincent de Rivenhall nas justas desta tarde.
-E teme que desconte minha irritação sobre Alice?
-Sim, isso é o que temo. Alice está acostumada a irritar os homens que tentam lhe dar ordens, milorde. Meu tio sempre perdia a paciência com ela.
Hugh se imobilizou.
-Sir Ralf lhe bateu alguma vez?
-Não. -Esboçou uma meio sorriso-. Não acredito que se atrevesse, pois sabia que minha irmã se vingaria de algum jeito imprevisível.
-Claro. -relaxou-. Tive a impressão de que Alice intimidava um pouco a seu tio.
-Em certas ocasiões, eu acreditava que, na realidade, tinha medo dela-disse Benedict em voz baixa-. Segundo Alice, isso se devia à reputação de nossa mãe.
-Sua mãe?
-Sim. Era uma grande estudiosa das ervas, sabe? Uma verdadeira senhora no reino das ervas. -Vacilou-. Conhecia as propriedades de muitas espécies estranhas e pouco comuns, as que curavam tanto como as que matavam. E ensinou Alice a usá-las desde muito pouca idade.
Hugh sentiu uma sensação gelada na pele dos braços.
-Em outras palavras, sir Ralf temia que Alice tivesse aprendido com sua mãe o suficiente para envenená-lo, é assim?
-Minha irmã seria incapaz de fazer algo tão terrível. -Era evidente que a idéia horrorizava Benedict-. Minha mãe lhe ensinou a curar, não a fazer mal.
Hugh estendeu a mão e apertou o ombro do jovem. –Olhe-me, rapaz.
Os olhos ansiosos de Benedict encararam Hugh. -Sim, senhor?
-Há coisas que devem ficar muito claras entre Alice e eu. Entre elas, o fato de que, como minha futura esposa, deve obedecer minhas ordens. Não as dou por capricho, mas sim pela segurança daqueles que estão ao meus cuidados.
-Sim, senhor.
-É provável que Alice e eu discutamos sobre isto, mas lhe dou minha palavra de que jamais maltratarei sua irmã. Deverá se conformar com isso.
Benedict examinou por um momento o rosto de Hugh, tentando vê-lo com clareza. Então, parte da tensão abandonou seus ombros jovens.
-Sim, senhor.
Hugh o soltou.
-Terminará por entender que, enquanto estiver sob meus cuidados, deverá me obedecer tal como o faz qualquer dos que estão a meu comando.
Por desgraça, haverá ocasiões, como hoje, em que a vida dependerá de sua obediência.
Benedict, resmungou;
-Desejo-lhe sorte para convencê-la a disso, milorde.
Hugh sorriu, ligeiramente.
-Obrigado. Suspeito de que precisarei.
Deu a volta e seguiu andando para a tenda negra. "É uma bela noite ", pensou. Fresca, mas não fria. As fogueiras clareavam a escura paisagem que rodeava Ipstoke. No ar do anoitecer flutuavam os ruídos da farra dos bêbados, risadas estrepitosas e fragmentos de canções.
Era o anoitecer característico de um dia de justas. Os senhores e cavalheiros triunfantes celebravam as vitórias com músicas e contos. Os perdedores negociavam os resgates que pediriam, que costumavam ser amistosos mas caros.
Os sucessos desse dia empobreceriam a mais de um. Vários estariam curando os machucados e outros os ossos quebrados.
Mas quando terminasse a feira no Ipstoke, a maioria tanto de ganhadores como perdedores, correriam às próximas justas, em qualquer lugar que se celebrassem. Para muitos, esses encontros constituíam um modo de vida. E o fato de que na Inglaterra fossem tecnicamente ilegais, não apagava o entusiasmo por esse jogo.
Hugh estava entre os poucos que não desfrutava muito dos torneios. Em grande medida, permitia-se participar só quando desejava dar a seus homens o treinamento a que davam lugar esses torneios.
Ou nas escassas oportunidades em que estava seguro de que Vincent de Rivenhall seria seu rival.
A luz que saia da tenda negra lhe disse que Alice tinha um pequeno braseiro aceso para aquecer o ambiente, e uma vela para iluminar-se. Abriu a lona e se deteve na entrada, quieto. Alice não o ouviu entrar. Estava sentada sobre um pequeno tamborete dobrável, o único que tinham transportado.
Alice estava de costas ao recém-chegado. A linha da coluna era reta e profundamente feminina. A cabeça estava inclinada sobre um objeto que tinha no colo.
O cabelo acobreado estava recolhido em uma rede para cabelo. Resplandecia com tons mais ricos que as brasas do braseiro. As saias caíam em dobras elegantes em torno das pernas do tamborete.
Minha prometida. Hugh aspirou uma suspiro profunda, enquanto uma onda de intenso desejo o assaltava. Os dedos que sustentavam a abertura da tenda se tensionaram. A desejo.
Por um momento, não pôde pensar em outra coisa que em sua própria reação dessa tarde, quando Alice se lançou nos seus braços. As emoções desse momento oscilavam sobre um abismo imprevisto. Sentiu-se esmigalhado entre a cólera pelo risco que tinha corrido e a compreensão de que esteve a ponto de morrer. Quase a perdeu.
A sensação de posse foi tão intensa que sua mão tremeu.
Como se tivesse percebido sua presença, de súbito Alice virou a cabeça para olhá-lo. Piscou, e Hugh quase pôde ver o que pensava, com o movimento da cabeça de um objeto a outro. Então, sorriu-lhe, e Hugh teve que apertar os punhos para não tocá-la.
-Milorde. Não o ouvi entrar.
-É evidente que estava concentrada em certas questões.
Hugh fez uso até da última partícula de autodomínio que pôde reunir. Deixou cair a lona da porta com gesto vagaroso.
-Sim, milorde.
O homem cruzou o tapete da tenda e observou o objeto que Alice tinha no colo.
-Vejo que ainda examina o meu cristal.
-Ainda examino meu cristal, senhor. –Acariciou a pedra verde lavrada com a gema de um dedo-. Tentava compreender por que era tão valioso para Gilbert o trovador e para esses dois ladrões.
-Não averiguaremos muito pelo trovador. Gilbert desapareceu.
Essa novidade, foi uma nova fonte de irritação nesse dia. "Ao que parece -pensou-, nada sai bem."
-Não me surpreende --disse Alice-. Era um sujeito escorregadio. Nunca gostei nem dele nem de suas canções.
Hugh contemplou o rosto da moça à luz das velas.
-Disseram-me que às mulheres parece atraente.
Alice lançou um bufo feminino.
-Pois, a mim não. Uma noite, enquanto estava na casa de meu tio, tentou me roubar um beijo.
-Sério? -perguntou com suavidade.
-Sim. Foi muito atrevido. Derrubei-lhe uma jarra de cerveja sobre a cabeça. Depois disso, não falou comigo.
-Imagino.
Alice levantou o olhar.
-Soube um pouco sobre o outro ladrão?
-Muito pouco. -Era inútil procurar outro tamborete, e Hugh se sentou em um dos pesados baús de madeira que continham a coleção de pedras-. Falou pelos cotovelos, mas o único que sabia era que o companheiro tinha feito um trato com alguém para recuperar o cristal. Acredito que o caolho e seu cúmplice mataram ao vendedor de CIydemere.
-OH! -exclamou, com voz trêmula.
-Por desgraça, o sujeito que caiu sob os cascos do Storm foi o que, em realidade, fez o trato. Está morto e, portanto, não pode contar nada.
-Entendo.
Hugh entreabriu os olhos.
-Esses dois sujeitos a teriam assassinado sem pensar duas vezes.
A jovem lhe dedicou um sorriso luminoso. -Mas me salvou, senhor.
-Isso não é o que quero destacar.
Alice fez uma careta.
-Já sei o que quer destacar, milorde. Mas olhe o aspecto positivo. Um dos assassinos está morto, e o outro está sob custódia do oficial. Nós dois estamos a salvo e recuperamos a pedra.
-Esquece uma coisa.
-O que?
-Quem é que contratou os dois sujeitos para encontrar o cristal está ainda solto em algum lugar, e não temos nenhuma pista de sua identidade.
Os dedos de Alice se apertaram em volta do cristal.
-Mas seja quem for, deve saber que seus intentos de roubar a pedra fracassaram. Agora, está outra vez nas suas mãos, milorde. Ninguém se atreveria a tirar-lhe -Alice...
-Aprecio sua confiança -murmurou Hugh-, mas não acredito que devamos dar por certo que todos os ladrões potenciais terão a mesma fé em minhas habilidades.
-Não duvide. Meu tio afirmava que você é quase uma lenda, senhor.
-Alice, lamento lhe informar que essa lenda em lugares pequenos, como Lingwood Manor ou Ipstoke, não significa mais que uma reputação moderada em qualquer outro lugar.
-Não acredito nisso nem por um momento, senhor -replicou, em uma inesperada mostra de lealdade-. Vi como tratou hoje a esses ladrões. Quando chegar a notícia à pessoa que os contratou, sem dúvida o pensará duas vezes antes de tratar de roubar novamente a pedra. Estou convencida de que presenciamos o último intento.
-Alice...
A jovem tamborilou sobre o cristal com o dedo indicador. As sobrancelhas se uniram lhe dando uma expressão reflexiva.
-Sabe, senhor?, para começar, eu gostaria muito descobrir por que alguém roubou esta pedra.
Por um instante, a atenção do homem se concentrou no feio cristal.
-É possível que alguém, equivocadamente, considere-a uma gema valiosa. depois de tudo, diz-se que é a última peça de um grande tesouro.
A moça olhou a pedra com evidente ceticismo.
-A julgar pelo preço que lhe outorgou, o vendedor que a vendeu a meu primo Gervase não a acreditava valiosa. Só a considerava um objeto fora do comum. Uma quinquilharia que podia interessar unicamente a um naturalista.
-Suspeito que a motivação do ladrão radicava em que a pedra tem um tipo de valor muito diferente.
Alice levantou o olhar de repente.
-Que tipo de valor, senhor?
-Já lhe disse que a posse do cristal está vinculada a uma lenda e a uma maldição sobre o senhorio do Scarcliffe.
-Sim. E então?
Hugh encolheu os ombros. .
-Possivelmente há alguém que não quer que me converta no novo Senhor de Scarcliffe.
-Quem poderia ser?
O homem tamborilou distraído com os dedos sobre a coxa.
-Talvez já seja hora de que lhe fale de Vincent de Rivenhall.
-O indivíduo que procurava para competir nas justas de hoje? Meu irmão me disse que você se zangou muito ao ver-se obrigado a perder essa luta. Sei bem que foi por minha culpa que tivesse que deixar de lado as justas.
-Ésta certs.
Alice lhe dirigiu um sorriso de feiticeira. -Mas deve admitir que, ao fim, o importante era recuperar a pedra, milorde. E o temos feito, não é verdade? Tudo está bem, de modo que podemos esquecer os penosos incidentes do passado imediato.
Não muito convencido, Hugh decidiu que tinha chegado o momento de lhe dar uma pequena lição de obediência.
-Senhora, não é meu estilo esquecer incidentes penosos do passado imediato, como você os chama. Em realidade, estou convencido de que alguém deve aproveitá-los como importantes lições.
-Fique tranqüilo, senhor, que aprendi –lhe assegurou, em tom alegre.
-Eu gostaria de poder acreditá-lo. Mas algo me diz...
-Silêncio. -Levantou a mão para fazê-lo calar-. O que é isso?
Hugh ficou carrancudo.
-O que?
-Um trovador canta uma balada. Escute. Acredito que se refere a você, milorde.
As estrofes da canção cantada com vigorosa voz masculina entraram flutuando na tenda negra.
Diz-se que o cavalheiro Implacável valoroso se mostrou.
Mas eu lhes digo que hoje, de sir Vincent escapou.
-Sim, refere-se para mim -resmungou Hugh. "Vincent encontrou uma forma de vingar-se",
Pensou, Esse era o preço que se pagava por estar prometido a uma mulher como Alice.
Alice deixou a pedra e se levantou de um salto.
-Milorde, algum trovador bêbado está caluniando-o.
-Isso não faz mais que demonstrar o que havia dito antes. O que em alguns lugares representa uma pequena e agradável lenda, em outras não é outra coisa que uma triste brincadeira.
Uma vez sir Hugh fez que tremessem e se acovardassem audazes cavalheiros.
Mas após, deixou que o dominasse sua natureza covarde.
-Isso é revoltante. -Alice foi até a porta da tenda-. Não o suportarei. Hoje você perdeu essa estúpida justa porque estava ocupado atuando como um autêntico herói.
Hugh compreendeu tarde que Alice tinha intenções de enfrentar o trovador.
-Não, Alice, espere. Volte aqui.
-Retornarei em seguida, milorde. Primeiro, tenho que corrigir esses tolos versos. Deslizou para fora da tenda, deixando cair a lona.
-Pelos pregos de Cristo.
Hugh se levantou do baú de madeira e cruzou o chão da tenda com grande rapidez. Chegou à porta e a abriu com brutalidade.
Viu a mulher à luz da fogueira. segurava as saias com as mãos enquanto avançava a passo vivo para o acampamento vizinho. O queixo tinha uma inclinação decidida. Os homens de Hugh a olhavam, consternados.
O trovador, sem adivinhar o iminente embrulho, continuou com os seguintes versos:
Possivelmente sua bela dama procurará outro cavalheiro forte que a agrade.
Pois o Provocador de Tormentas se abrandou, agora é lasso como brisa estival.
-Não, senhor trovador! -vociferou Alice-. Deixe de cantar essa canção tola imediatamente, ouça-me!
O trovador, que tinha estado vagando pelo acampamento, detendo-se para cantar a canção em qualquer lugar que o convidassem a fazê-lo, interrompeu-se de repente.
A Hugh pareceu que, de repente, a noite ficava inusitadamente calada. Seus próprios homens não era os únicos que olhavam atônitos a jovem. Contava com a atenção de todos os que se reuniam nas fogueiras próximas.
O trovador fez uma profunda reverência quando Alice se deteve diante ele.
-Me perdoe, milady -murmurou com zombadora cortesia-, lamento que minha canção não lhe agrade. Foi composta esta tarde, a pedido do mais nobre e valente cavalheiro.
- Vincent de Rivenhall, suponho.
-Sim. -O homem riu-. Claro, foi sir Vincent de Rivenhall o que me pediu uma canção para celebrar sua grande vitória no campo de batalha. Negará-lhe o direito a ter uma balada de herói?
-Sim, isso farei. Porque ele não foi o campeão do dia. Foi sir Hugh o verdadeiro herói galante.
-Quando se negou a sair ao campo Contra sir Vincent? -O trovador riu-. Me perdoe, mas é um estranho conceito de herói, senhora.
-É evidente que nem você nem sir Vincent estão inteirados dos fatos verdadeiros que ocorreram esta tarde. -Fez uma pausa para olhar, carrancuda, ao público que tinha incitado-. Me escutem, todos, e escutem bem, porque lhes direi o que, em realidade, aconteceu hoje. Sir Hugh se viu obrigado a perder o torneio de hoje, porque teve que ocupar-se de uma tarefa de herói.
Um homem alto, de túnica vermelha, entrou no círculo da luz do fogo. As chamas revelaram suas feições aquilinas. Ao reconhecer o recém-chegado, Hugh gemeu.
-Que tarefa heróica afartou a sir Hugh do campo de honra, milady? -perguntou com cortesia o homem alto.
Alice girou e se dirigiu a ele.
-Devo lhe fazer saber que esta tarde sir Hugh me salvou de dois cruéis ladrões, enquanto sir Vincent lutava. Os ladrões teriam me matado a sangue frio, senhor.
-E quem é você?
-Sou Alice, a noiva de sir Hugh.
Uma onda de murmúrios interessados recebeu o anúncio, mas Alice não fez conta.
-Sério? -O indivíduo a observou à luz do fogo-. Que interessante.
Alice lhe cravou um olhar contido.
-Sem dúvida, estará de acordo em que salvar minha vida foi muito mais heróico que participar de uns jogos sem sentido.
O olhar do homem passou de Alice a Hugh, que estava a pouca distancia atrás dela. Este sorriu fracamente ao topar-se com uns olhos quase da mesma cor que os seus, como bem sabia.
O homem alto voltou-se para Alice, e lhe dedicou uma reverência zombadora.
-Minhas desculpas, senhora. Lamento que a canção do trovador a tenha ofendido. E me alegra saber que sobreviveu ao encontro com os ladrões.
-Obrigado -disse Alice com gelada cortesia.
-É evidente que você é uma inocente, senhora. O homem retrocedeu, saindo da luz.
-Será divertido comprovar quanto tempo verá Hugh o Implacável como um herói.
Alice lhe lançou um olhar furioso, e se dirigiu outra vez ao trovador.
-Cante outra coisa.
-Sim, senhora.
Os olhos do sujeito brilharam divertidos quando fez uma nova reverência a Alice.
Esta girou sobre os pés e encaminhou-se outra vez ao acampamento de Hugh. Deteve-se ao vê-lo lhe obstruindo o passo.
-Ah, está aqui, milorde. Agrada-me lhe dizer que já não teremos que nos preocupar outra vez por essa ridícula balada que fala de Vincent de Rivenhall, conforme acredito.
-Obrigado, senhora. -Agarrou-a pelo braço para levá-la de volta a tenda-. Agradeço-lhe que se preocupe comigo.
-Não seja ridículo. Eu não podia permitir que esse idiota seguisse cantando mentiras sobre você, senhor. Não tem por que transformar em herói a sir Vincent de Rivenhall, quando o verdadeiro herói é você.
-Os trovadores têm que viver do modo que podem. Certamente, sir Vincent pagou bem pela balada.
-Claro. -O rosto se iluminou de súbito entusiasmo-. Acaba de ocorrer-me algo, senhor. Poderíamos pagar ao trovador para que invente uma canção sobre você, milorde.
-Prefiro que não -disse Hugh, com muita clareza-. Tenho coisas melhores em que gastar o dinheiro que em uma balada que me elogie.
-Está bem, se insistir... -Suspirou-. Suponho que deve ser muito custoso.
-Sim.
-De qualquer maneira, seria uma canção encantadora, estou segura. Valeria o que custasse.
-Esqueça, Alice.
Fez uma careta.
-Sabe quem é o homem alto que se aproximou da fogueira?
-Sim. Era Vincent de Rivenhall.
-Sir Vincent? -Alice se deteve de repente e o olhou, atônita-. Havia algo nele que me recordava um pouco você, sabe, senhor?
-É meu primo. Meu pai era seu tio Matthew.
-Seu primo.
Parecia perplexa.
-Meu pai era herdeiro de Rivenhall. -Hugh sorriu com a irônica diversão que tinha aprendido a aplicar a esse tema-. Se sir Matthew não se negasse a casar com minha mãe depois que a deixou grávida, seria eu e não sir Vincent o herdeiro das terras de Rivenhall.
Alice teve consciência aguda dos olhares divertidos dos homens de Hugh. Voltou para a tenda a passo vivo, sabendo que vários dos reunidos em volta do fogo escondiam amplos sorrisos. Até Benedict a olhava com expressão estranha, como se tivesse dificuldades para conter a gargalhada.
-Se os ouvidos não me enganarem -comentou Dunstan, em voz o bastante alta para ser ouvido do outro lado da fogueira-, parece que o trovador descobriu uma nova canção.
Hugh o Implacável pode abandonar a espada,
Pois está prometido a uma dama que defende a seu senhor.
-Sim -disse alguém, satisfeito-. É muito mais divertida que a outra.
As gargalhadas ressoram no ar.
Alice fez uma careta e olhou por cima do ombro. O trovador que Vincent pagou para que cantasse a maliciosa balada a respeito d Hugh, tocava uma nova melodia com o alaúde. Percorria o acampamento, obsequiando a canção a todos.
Lhe deu um dote mais valioso que as terras,
Pois, ao parecer, a honra de sir Hugh está a salvo em suas mãos.
Elevaram-se exclamações de aprovação. Alice ruborizou-se intensamente ao ver quem era o novo personagem dos versos. Olhou inquieta para Hugh, para ver se estava envergonhado.
- Wilfred tem razão -disse o homem com calma-. A nova canção é muito mais divertida que a anterior.
Benedict, Dunstan e outros uivaram de risada.
-Pode ser que sir Vincent tenha triunfado nas justas desta tarde -declarou um-, mas esta noite foi completamente derrotado.
Alice agradeceu imensamente a escuridão da noite por ocultar as manchas vermelhas em que se converteram suas bochechas. Cravou um firme olhar em um dos escudeiros.
-Por favor, pode trazer um pouco de vinho a minha tenda?
-Sim, milady.
O homem abafou uma risada e se levantou de um salto.
Começou a caminhar para a carroçaa de armazenagem, que estava perto, na escuridão.
-Já que está ai, pode trazer uma taça para mim, Thomas -exclamou Hugh-. Leva-a a minha tenda.
-Sim, milorde.
O sorriso de Hugh relampejou fugaz enquanto levantava a porta da tenda.
-Não é freqüente que tenha a oportunidade de brindar pelas derrotas de sir Vincent.
-Na verdade, senhor, você vai muito longe. -Alice passou pela abertura à relativa intimidade da tenda-. Eu não derrotei sir Vincent. Limitei-me a corrigir os enganos com respeito aos fatos de hoje.
-Não, senhora. -Hugh soltou a porta-. Não se equivoque. É uma derrota, e muito decisiva. E com a nova canção do trovador, certamente muitas pessoas se inteirarão. Digo-lhe que é tão satisfatória como se o tivesse derrotado no campo de de batalha.
A moça girou e o olhou de frente. -É uma brincadeira bastante má.
Hugh encolheu os ombros.
-Talvez tenha exagerado um pouco. Atirar do cavalo a meu primo teria sido algo mais prazeiroso, admito-o. Mas não muito. -O sorriso gelado apareceu e se foi-. Não muito.
-Milorde? -Apareceu Thomas, levantando a porta da tenda-. Trago o vinho para o senhor e para a senhora.
Apresentou-lhe uma bandeja com duas taças e uma jarra.
-Muito bem. -Tomou a bandeja das mãos do homem-. Isso bastará, por agora. Deixe-a, assim poderei homenagear a minha nobre defensora como é devido.
-Sim, senhor.
Lançando um último olhar a Alice, Thomas se foi fazendo reverências.
Enquanto Hugh enchia as taças de vinho, Alice ficou carrancuda.
-Milorde, eu gostaria que deixasse de divertir-se com este desagradável incidente.
-Ah, mas você não sabe quão divertido é.
Entregou-lhe uma taça e logo levantou a sua.
-Tão importante é para você ver sir Vincent humilhado ?
-Tudo o que me permite meu suserano é saborear de vez em quando a humilhação de Vincent.
-Não compreendo o que quer dizer, senhor.
-Erasmus de Thornewood proibiu Vincent e a mim tomar as armas um contra o outro, salvo em uma justa. Afirma que seria um desperdício que não pode permitir-se.
-Erasmus de Thornewood é um homem muito inteligente.
-É-o -admitiu-. Mas a idéia dele da economia de recursos me deixa faminto. Esta noite, senhora, você foi como um prato bem preparado para mim. Terá que me deixar desfrutá-lo por inteiro.
Mesmo assim, não é essa excelente preparação o que me parece tão divertido.
Alice começava a impacientar-se com essas respostas irônicas.
-O que é o que tanto o diverte, milord?
Hugh lhe sorriu por cima da taça, e os olhos ambarinos resplandeceram como os de uma águia que acaba de comer a uma pomba.
-Sou consciente de que esta noite é a primeira vez em minha vida que alguém sai em minha defesa. O agradeço, senhora.
O vinho tremeu na taça da Alice.
-Era o mnímo que podia fazer. Esta tarde, você me salvou a vida.
-Eu diria que nossa sociedade funciona muito bem, não vê? -perguntou com suspeita brandura.
A expressão de seus olhos ameaçou destruir a postura da Alice. "Isto é absurdo -pensou-. “O que acontece é que hoje me aconteceram muitas coisas."
Desesperada, procurou em sua mente um modo de trocar de tema, e disse o que lhe ocorreu primeiro:
-Ouvi dizer que é você bastardo.
Uma quietude letal se apoderou do homem, e a diversão morreu em seus olhos.
-Sim, é verdade. Incomoda-lhe saber que seu prometido é um bastardo, senhora?
Alice desejou ter mantido a boca fechada. Que estupidez! No que estava pensando? Para não falar de suas maneiras.
-Não, senhor. Só era para lhe fazer notar que conheço muito pouco de sua história familiar. É você um mistério para mim. -Fez uma pausa-. Por opção, suponho.
-Descobri que quanto menos conhecemos a verdade, mais tendemos a acreditar em lendas. O que é mais, pelo geral, preferem a lenda à verdade. -Hugh bebeu o vinho com ar pensativo-. Em ocasiões, é conveniente. Às vezes, como no caso desta maldita pedra verde, é um estorvo.
Alice apertou com força a taça.
-Sou estudiosa da filosofia natural. Como tal, procuro respostas sinceras. Prefiro saber a verdade que à lenda.
-Sim?
Fortaleceu-se com um gole pequeno de vinho. -Esta noite, aprendi algumas coisas a mais sobre você, mas ainda sinto que há muito mais que não conheço.
-Você é muito curiosa, e isso pode ser perigoso.
-Em uma mulher? -perguntou, cortante.
-Tanto em um homem como em uma mulher. O mundo é mais simples e, sem dúvida, mais seguro para aqueles que não fazem muitas perguntas.
-Poderia ser verdade. -Alice fez uma careta-. Mas, por desgraça, a curiosidade é meu principal defeito.
-Sim, assim parece. -Contemplou-a por um momento com o ar de quem debate consigo mesmo. Continuando, foi até o baú de madeira e sentou-se nele. Embalou a taça nas mãos e observou o conteúdo, como se fosse a mistura de um alquimista-. O que quer saber?
Alice se assustou, pois não esperava que lhe oferecesse informação. Sentou-se lentamente no tamborete dobrável.
-Responderá as minhas perguntas?
-A algumas. Não todas. Pergunte, e eu decidirei a quais responderei e a quais não.
Alice tomou fôlego.
-Nem você nem sir Vincent são responsáveis pelas circunstâncias de seus respectivos nascimentos. Por má sorte você nasceu bastardo e, em conseqüência, não herdou as terras de Rivenhall.
Hugh encolheu os ombros.
-Sim.
-Mas não vejo por que culpa a seu primo desses fatos.
E não me parece o tipo de homem que mantivesse vivo o rancor contra um inocente. Então, como é que você e sir Vincent se converteram em inimigos jurados?
Hugh guardou silêncio um momento. Quando falou, sua voz carecia de qualquer inflexão reveladora de sentimentos ou emoções. Era como se estivesse relatando a história de outra pessoa, não a própria.
-É bastante simples. A família de Vincent odiou à minha com paixão constante. A minha, devolveu-lhe o favor. Tanto nossos pais como o resto dessa geração estão mortos, e portanto, só ficamos meu primo e eu para continuar com o conflito.
-Mas, por que?
Hugh fez girar a taça entre as grandes mãos.
-É uma longa história.
-Eu gostaria muito de escutá-la, milorde.
-Está bem. Contarei-lhe a maior parte. Dadas as circunstâncias, o devo.
Fez outra pausa, como reunindo as idéias guardadas em algum lugar profundo e oculto.
Alice não se moveu. Sentia como se um estranho feitiço se instalasse dentro da tenda. A vela estava baixa, e as brasas do braseiro, amortecidas. Fora, as risadas e as cançõesforam diminuindo, como se viessem de muito longe. As sombras pareciam congelar dentro da tenda, girando ao redor de Hugh.
-Meu pai se chamava sir Matthew de Rivenhall -disse-. Dizem que era um cavalheiro respeitado. Seu suserano lhe deu de presente várias propriedades excelentes.
-Por favor, continue -respirou a jovem com suavidade.
-A família arrumou um matrimônio para ele. A dama era uma herdeira. considerava-se uma união conveniente e sir Matthew estava agradado em todo sentido. Mas isso não impediu que deitasse com a jovem filha de um de seus vizinhos. O pai possuía o feudo de Scarcliffe. Meu avô quis proteger a sua única filha, mas sir Matthew a convenceu de que se encontrasse com ele em segredo.
-Essa mulher era a sua mãe?
-Sim. chamava-se Margaret. -Fez girar a taça entre as mãos-. Matthew de Rivenhall a seduziu e a deixou grávida. E depois, foi servir a seu suserano. Eu nasci enquanto ele estava na Normandía.
-O que aconteceu?
-O de sempre. -Fez um gesto negligente-. Meu avô estava furioso. Foi a Rivenhall e exigiu que obrigassem a Matthew a casar-se com minha mãe quando voltasse da Normandía.
-Queria que rompessem o compromisso de sir Matthew?
-Sim. A família de sir Matthew deixou bem claro que não pensava permitir que o herdeiro se desperdiçasse com uma jovem que não podia lhe oferecer mais que uma propriedade pequena, mas bem pobre, como dote.
-E como se sentia a prometida de sir Matthew?
-A família dela desejava tanto esse matrimônio como o próprio sir Matthew. Como havia dito, considerava-se uma união muito conveniente.
Alice assentiu, indicando que compreendia.
-Isso significa que ninguém queria romper esse compromisso, certo?
-Sim. -Hugh lhe lançou um olhar, e depois o fixou nas brasas -. Matthew de Rivenhall, menos que ninguém. Não tinha intenções de abandonar à rica herdeira por minha mãe.
Mas foi vê-la uma vez quando retornou da Normandía.
-Para dizer-lhe que a amava, e que sempre a amaria embora tivesse que casar-se com outra? -apressou-se a perguntar.
A boca do homem se curvou em um sorriso carente de humor.
-Pretende dar um final feliz a esta história?
Alice se ruborizou.
-Acredito que sim. Foi assim?
-Não.
-Bom, e então? O que foi o que Matthew de Rivenhall disse a sua mãe quando foi vê-la e se inteirou de que tinha um filho?
-Ninguém sabe. -Bebeu outro gole de vinho -. Mas fosse o que fosse, ao que parece, minha mãe não gostou. Assassinou-o, e depois se suicidou. À manhã seguinte, acharamos os dois mortos.
Alice ficou com a boca aberta. Teve que fazer vários tentativas para poder falar. Quando o fez, saiu-lhe algo assim como um chiado.
-Sua mãe matou a seu pai?
-Isso dizem.
-Mas, como? Se ele era um grande cavalheiro, como pôde fazê-lo? Não há dúvida de que não foi capaz de defender-se de uma mulher.
Hugh a olhou com expressão turva.
-Usou uma arma feminina.
-Veneno?
-O pôs no vinho que lhe serviu nessa noite. -Por Deus. -Contemplou o vinho vermelho que tinha na taça e, por algum motivo, já não sentiu mais vontade de beber-. E depois, ela também bebeu o vinho?
-Sim. O pai de Vincent, irmão mais novo de Matthew, converteu-se em herdeiro das propriedades de Rivenhall. Mataram-no três anos depois. Agora, Vincent é senhor de Rivenhall.
-E odeia a você porque acredita que sua mãe matou ao tio dele?
-Ensinaram-lhe a me odiar desde que nasceu, embora por causa da ação de minha mãe se converteu em senhor de Rivenhall. Para ser sincero, me ensinaram a lhe retribuir.
-Quem criou você?
-Os primeiros oito anos de minha vida, meu avô. Quando morreu, enviaram-me a viver na casa de Erasmus de Thornewood. Tive sorte de não me converter em renegado.
-Mas lhe negaram seus direitos de nascimento -murmurou Alice.
-É certo que perdi Rivenhall, mas a mim isso já não importa. -A boca de Hugh desenhou uma fria careta de satisfação-. Agora tenho minhas próprias terras. Graças a sir Erasmus, o imóvel de meu avô é meu.
Alice recordou como tinha perdido a herança de Benedict, e abafou um pequeno suspiro.
-Me alegro por você, senhor. Hugh não pareceu ouvi-la.
-Scarcliffe sofreu muito com a morte de meu avô, faz vinte e dois anos. Para falar a verdade, começou a declinar antes de que morresse. Mas tenho intenções de que volte a ser rica e próspera.
-É um objetivo que vale a pena.
-Sobre tudo, manterei-a para meus herdeiros.
-A mão que sustentava a taça se apertou-. Pelo sangue do diabo, juro que Vincent não poderá fazer o mesmo com o Rivenhall.
O tom gelado da voz pôs tensa a Alice.
-Por que?
-No presente, o imóvel de Rivenhall está em condições lamentáveis. Já não é a terra rica e próspera que foi uma vez. Por que você acha que Vincent entra em todas as justas e todos os torneios que pode? Trata de ganhar suficiente dinheiro para salvar as suas terras.
-O que lhes passou?
-O pai de Vincent não tinha o menor sentido de responsabilidade. Esbanjou os ganhos das terras de Rivenhall para financiar uma viagem a Terra Santa.
-Foi às Cruzadas?
-Sim. Como tantos outros, morreu em algum deserto longínquo, mas não por uma espada, e, sim por uma infecção intestinal grave.
Alice franziu o cenho.
-Acredito que minha mãe escreveu algo a respeito das enfermidades sofridas pelos que foram às Cruzadas.
Hugh deixou a taça vazia, apoiou os cotovelos nos joelhos e entrelaçou as mãos.
-Dizem que o pai de Vincent foi alvoroçado e temerário desde que nasceu. Não tinha sentido dos negócios, nem apego ao dever para sua própria família.
Havia um motivo para que as pessoas do povoado se sentissem tão desolados pela perda de meu pai, dá-se conta? Todos sabiam que o irmão arruinaria as terras e quase o fez. Por desgraça, morreu antes de poder terminar a tarefa.
-E agora, sir Vincent se desespera para salvá-las.
-Sim.
-Que triste.
-Adverti-lhe que não tinha um final romântico.
-É certo.
Hugh a olhou de soslaio.
-Em certo sentido, não é mais triste que a sua história.
-O que aconteceu conosco, foi por minha culpa --disse Alice, pesarosa.
A expressão de Hugh se escureceu.
-Por que diz que foi sua culpa? Foi sir Ralf que privou Benedict da sua herança.
-Pôde fazê-lo porque eu não soube defender o imóvel de meu pai. -levantou-se, desassossegada, e se aproximou mais do braseiro-. Fiz tudo o que pude, mas não foi suficiente.
-É muito dura consigo mesma.
-Sempre me perguntarei se não poderia ter feito algo mais. Possivelmente poderia lhe haver expresso meus argumentos a lorde Fulbert com mais astúcia. Ou achar o modo de convencê-lo de que poderia defender as terras de meu irmão até que Benedict tivesse idade suficiente.
-Acalme-se, Alice. Quem tomou as terras de seu irmão foi seu tio, assim que se inteirou da morte de seu pai. E, sem dúvida, Fulbert se alegrou muito de que o fizesse. Você não poderia ter feito nada.
-Não entende. Minha mãe confiou em que eu protegeria a herança de Benedict. Disse que, contra o que acreditava meu pai, algum dia Benedict demonstraria que é um digno herdeiro. -Entrelaçou os dedos diante de si-. Mas fracassei em dar a meu irmão uma oportunidade. Fracassei!
Hugh se levantou, atravessou o tapete e se deteve detrás da mulher. Alice tremeu quando as mãos fortes lhe tocaram nos ombros. Sentiu um desejo quase incontrolável de jogar-se outra vez nos braços dele como tinha feito essa tarde. Teve que esforçar-se para não fazê-lo.
-Alice, tem você um espírito valente e audaz, mas até os mais valentes e audazes perdem algumas batalhas.
-Fiz tudo o que pude, mas não bastou. Senti-me tão sozinha...
Com uma pequena exclamação, girou e afundou a cara no amplo peito de Hugh. Em silêncio, caíram as lágrimas molhando a túnica negra. Os ombros se sacudiam.
Era a primeira vez que chorava da morte de sua mãe.
Hugh calou. limitou-se a abraçá-la. dentro da tenda, a vela se consumia e as sombras se espessavam.
Em certo momento, as lágrimas cessaram, e Alice ficou esgotada. Mas, para sua própria surpresa, sentiu-se mais serena e em paz consigo mesma do que há muito tempo.
-Perdoe-me, milorde -murmurou contra a túnica-. Não estou acostumada a me permitir o pranto, mas temo que foi um dia longo e difícil.
-Sim, assim é. -Levantou-lhe o queixo com o canto da mão. Contemplou o rosto como se Alice fosse um livro misterioso que estava decidido a decifrar-. E muito instrutivo.
Alice fixou a vista nos olhos escurecidos, e viu tanto a dor como a férrea decisão que essa dor lhe tinha ensinado. Nesses olhos ambarinos se via uma versão mais lúgubre, feroz e imensamente mais perigosa que a dor e a decisão impressos na alma de Alice. Ventos de tormenta.
Ansiou meter-se dentro dele e aquietar essas tempestades selvagens, mas não soube como fazê-lo e então, de súbito, Alice compreendeu que queria que Hugh a beijasse. Desejava-o mais que nenhuma outra coisa em toda sua vida. Nesse momento, suspeitou que seria capaz de vender a alma sem remorsos por esse beijo.
Como se lhe lesse os pensamentos, Hugh inclinou a cabeça e cobriu a boca da jovem com a sua.
Alice esteve a ponto de desmaiar. Se Hugh não a tivesse segurado com tanta firmeza, teria caído no tapete.
A inquietante energia masculina a penetrou como uma força que era mais pavorosa pelo controle que o homem exercia sobre ela. Reanimou o ânimo de Alice como uma chuva faz renascer a erva ressecada.
A excitação que sentiu a primeira vez que o beijou, voltou para ela com cálida precipitação. A sensação parecia mais forte, mais vibrante, como se o primeiro beijo a tivesse sintonizado para este. O desejo que sentiu irradiar do homem acendeu uma tocha nos sentidos da mulher.
Gemeu brandamente, e algo cedeu em seu interior. No momento, ficaram para trás a dor e a derrota do passado. O perigo dessa tarde foi uma lembrança longínqua. e o futuro, era uma bruma desconhecida que não importava muito.
Nada importava, salvo este homem que a abraçava com uma força que afligia Alice e, ao mesmo tempo, a fazia sentir-se incrivelmente poderosa.
Rodeou o pescoço de Hugh com os braços e se estreitou contra ele.
-Escolhi bem -murmurou Hugh.
Alice quis lhe perguntar o que queria dizer, mas não pôde falar. O mundo girava ao redor. Fechou os olhos com força, enquanto Hugh a levantava do chão.
Um momento depois, sentiu a maciez das mantas de pele debaixo de si. Abafou uma exclamação quando Hugh se colocou por cima, e seu peso a esmagou contra o leito. Sentiu que a perna do homem deslizava entre as suas, e compreendeu, aturdida, que lhe erguia as saias por cima dos joelhos.
Sabia que devia estar horrorizada, mas por alguma razão, se regozijou.
A curiosidade dominou sobre a sensatez e o decoro. A necessidade de saber aonde a levaria essa sensação dolorosa, crescente de plenitude, era muito intensa para ignorá-la. Certamente, tinha direito a sondar essas exultantes sensações.
-Jamais sonhei que pudesse acontecer isto entre um homem e uma mulher -disse, contra o pescoço d Hugh.
-E ainda não experimentou nem a metade -assegurou-lhe.
A boca do homem moveu-se sobre a da mulher, ensinando, exigindo. E Alice não pôde fazer outra coisa que não responder. Sentiu as mãos sobre as tiras do vestido, mas não lhes deu atenção. Estava concentrada em saborear o calor e o aroma do homem. Depois, Hugh lhe tocou o seio nu com uma mão grossa, por anos de segurar o punho da espada.
Por um instante, Alice não pôde respirar. Abriu a boca e lançou um grito de surpresa. Nenhum homem a havia tocado de um modo tão íntimo.
Era emocionante.
Era indecoroso.
Era a coisa mais excitante que lhe tinha acontecido.
-Calma. -apressou-se a colar sua boca com a dele, abafando a exclamação-. Estamos rodeados por meus homens e os outros acampamentos. Os doces gritos de uma amante voariam pelo ar da noite como se tivessem asas.
Os doces gritos de uma amante?
Alice abriu os olhos de repente.
-Pela capa de são Bonifacio, milorde, se é verdade o que diz. Devemos nos deter.
-Não. -Hugh elevou um pouco a cabeça para olhá-la. Passou o dedo áspero pelalateral da face, como se acariciasse uma seda estrangeira-. Não é necessário que nos detenhamos. Só devemos ser cuidadosos.
-Mas, milorde...
-E silenciosos. Feche os olhos, Alice. Eu me ocuparei de tudo.
Alice suspirou e fechou os olhos, entregando o controle daquele momento de um modo como nunca tinha sido capazem toda sua vida.
De súbito, sentiu-se como o aprendiz de um alquimista que conhecia o segredo de como transformar o metal em ouro. Estava a beira de fabulosas descobertas.
Estudaria reinos inteiros de filosofia natural que, até então, estiveram fechados para ela. Aprenderia verdades que, até o momento, tinham estado tão ocultas que não adivinhou sequer sua existência.
Hugh tomou com delicadeza um mamilo entre polegar e o indicador, e Alice estremeceu de prazer. Deslizou a palma para baixo, até encontrar a perna nua. Alice se encolheu e, por instinto, dobrou o joelho.
Hugh percorreu com a mão o interior da coxa e Alice se arqueou para ele com tanta força que acreditou que o deixaria marcado. E Hugh não afastou a boca da de Alice, tragando cada exclamação abafada como se fosse um exótico e doce licor.
Quando tocou o centro quente e úmido entre as pernas, Alice acreditou que enlouqueceria. Quase não podia respirar. Ardia-lhe todo o corpo como se tivesse febre. Dentro de si, sentia uma estranha tensão que clamava por soltar-se.
-Silêncio -disse Hugh com um sussurro aveludado que a excitou e a atormentou tanto como as carícias-. Nenhuma palavra, nem um ruído, meu amor.
Saber que não podia expressar essas assombrosas sensações não fez mais que intensificá-las. Alice estremeceu uma e outra vez enquanto Hugh a tocava.
Abriu-a cuidadosamente com os dedos, e a mulher conteve o fôlego.
Lhe escapou um gemido imperioso.
-Tome cuidado -murmurou o homem sobre sua boca-. Recorda que, esta noite, o silêncio é fundamental.
Colocou um dedo dentro de Alice e logo o retirou.
Alice quis gritar. Segurou-lhe a cabeça e se colou contra a boca de Hugh com muita força. Pareceu-lhe ouvir que ria em surdina, mas não lhe prestou atenção.
Hugh moveu uma vez mais a mão contra a suavidade de Alice, acariciando-a, e esta sentiu que a noite explodisse ao seu redor. Nada importava, nem saber que os homens de Hugh poderiam ouví-la, ou que houvesse acampamentos rodeando-os por toda parte.
Estava perdida por completo na sensação que a dominava. Nesse instante, a única pessoa do mundo que lhe importava era Hugh.
Acreditou que gritava, mas não ouviu nada. Entendeu de maneira difusa que o homem devia ter absorvido o grito, como tinha feito com os outros.
-Pelo sangue dos anjos...
O braço de Hugh lhe segurou enquanto se convulsionava.
Alice quase não o ouviu. Lançou um profundo suspiro e flutuou com suavidade para a terra. Uma deliciosa sensação de prazer enchia todo o seu interior.
Abriu os olhos com ar sonhador, e olhou para Hugh. Tinha o rosto marcado por linhas duras, e os olhos brilhavam.
-Milorde, foi... -Faltaram-lhe as palavras-. Isto foi...
-O que? -Seguiu o contorno da boca da moça com o dedo áspero-. Como foi?
-Muito educativo -ofegou Alice.
Hugh piscou.
-Educativo?
-Sim, senhor. -mexeu-se, preguiçosa-. Uma experiência muito diferente de todo aquilo com o que me deparei em minhas investigações de filosofia natural.
-Alegra-me que o ache educativo -murmurou-. Teve alguma outra experiência educativa similar?
-Não, milorde, esta foi a única.
-Educativa e única -repetiu, cauteloso-. Bem. Tendo em conta suas características tão especiais, suponho que deverei me conformar com isto.
A moça compreendeu que o homem não parecia de todo satisfeito. Entrelaçou os dedos nos cabelos negros:
-Milorde, acaso o ofendi?
-Não. -Sorriu, apenas, e trocou de posição-. É que também me pareceu educativo e único fazer amor. Estou seguro de que nos dois temos muito o que aprender.
-Fazer amor? -Alice se paralisou, e esticou os dedos entre os cabelos de Hugh-. Por todos os Santos. Isso foi o que fizemos, não é?
-Sim. -Fez uma careta e retirou com suavidade os dedos de Alice do seu cabelo-. E não precisa me arrancar os cabelo por isso.
-OH, me perdoe, milord. -Lutou para se tranquilizar-. Não quis machucá-lo.
-Menos mal.
-Mas temos que parar isto imediatamente. Empurrou-o pelos ombros largos.
Hugh não se moveu.
-Porquê?
-Por que? -Abriu os olhos, atônita-. Você me pergunta isso?
-Nas atuais circunstâncias, parece-me uma pergunta razoável.
-Senhor, talvez eu não tenha muita experiência pessoal com esta classe de coisas, mas sou uma mulher instruída. Sei muito bem o que aconteceria se continuássemos como até agora.
-O que aconteceria?
-Ficaria furioso consigo mesmo e comigo se o deixasse terminar o que começamos.
-Sério?
-É obvio. -Tratou de sair debaixo do pesado corpo, retorcendo-se-. E sabendo a classe de homem que é, se me seduzisse em semelhantes circunstâncias, a honra o obrigaria a seguir adiante com o casamento.
-Alice...
-Não posso permitit, senhor. De verdade, não o permitirei.
-Não?
-Senhor, fizemos um acordo. Devo-lhe impedir que o rompa.
Hugh se apoiou nos cotovelos.
-Asseguro-a que controlo por completo minha paixão.
-Talvez ache que isso é certo, senhor, mas é evidente que não está completamente controlado. Olhe-se. Se estivesse exercendo seu habitual domínio de si, se teria detido faz vários minutos.
-Por que? -perguntou, em tom neutro.
-Porque não quereria cair em uma armadilha -espetou-lhe, irritada.
-Alice --disse com mal dissimulada impaciência-, o que lhe pareceria se eu lhe dissesse que desejo seguir adiante com o matrimônio?
-Isso é impossível.
-Dê-me uma boa razão para que seja impossível -resmungou.
Alice lhe dirigiu um olhar irado. -Me ocorrem centenas, e a mais óbvia é que seria uma esposa terrível.
Hugh ficou imóvel. Depois, sentou-se ao Iado d Alice, com grande lentidão.
-Em nome do diabo, por que diz algo assim?
-Não tenho nada do que você necessita em uma esposa, milorde. -arrumou a roupa- Ambos sabemos.
-Ah, sim? Eu não estou de acordo. Não acredito que ambos pensemos isso. -Colocou-se sobre a mulher-. Para falar a verdade, acredito que um de nós está confuso.
-Sei, milorde, mas não se aflija muito por isso. Logo recuperará a sensatez.
-Eu não sou o confuso, Alice.
Olhou-o com cautela.
-Não?
-Não. -Hugh a observou com frieza-. por que pensa que não seria uma boa esposa para mim?
A insólita pergunta a abateu.
-É evidente, milorde.
-Para mim, não.
Sentiu que o desespero se apropriava dela.
-Não posso lhe dar nada. Como dono de um imóvel, tem a possibilidade de casar-se com uma herdeira.
Hugh deu de ombros.
-Não precido de uma herdeira.
-Senhor, acaso está me fazendo certo tipo de brincadeira sem graça?
-Não brinco. Acredito que será uma boa esposa para mim, e estou desejoso de converter nosso acordo em um compromisso verdadeiro. Qual é o problema?
Compreendeu de repente, e fechou os olhos:
-Senhor, adota essa decisão só porque sou conveniente?
-Essa é só uma de várias razões -assegurou-lhe.
Alice teve um forte impulso de lhe dar um tapa, mas se conteve com esforço pois, tendo em conta as posições respectivas, não seria muito prático.
-Poderia me dizer, por favor, quais são as outras razões? -perguntou entre dentes.
O tom da Alice não chamou a atenção de Hugh, e tomou a pergunta em sentido literal.
-Por isso observei os últimos três dias, é evidente que tem uma profunda compreensão do que é a lealdade, o dever e a honra.
-O que é que lhe deu essa idéia?
-O modo como lutou pelo futuro de seu irmão.
-Ah. Algo mais?
-É inteligente, e de natureza prática. Admiro essas qualidades em uma mulher. Ou em qualquer pessoa.
-Por favor, senhor, continue.
-Tenho a impressão de que é muito versada nas artes domésticas. -Era claro que estava animando-se com o tema-. Valorizo muito a habilidade profissional de qualquer classe. Estou convencido de que o melhor é empregar só aos mais talentosos artesãos e serviçais, por exemplo.
-Siga, senhor. -Custava-lhe falar-. Isto é fascinante.
-Sem dúvida, é sã e forte e isso, certamente, é Importante.
-Sim. -"Estrangularei-o", decidiu-. Que mais?
Hugh encolheu os ombros.
-Acredito que isso é tudo. Se descontarmos que está livre para se casar, como eu. E já estamos prometidos. Isso faz que tudo seja mais simples e direto.
-Eficiência e conveniência.
-Sim.
Hugh se mostrou satisfeito com a rápida compreensão da mulher.
-Milorde, quero que saiba que não me parece grande coisa me casar só porque sei dirigir uma casa, e porque estou disponível.
Hugh ficou carrancudo. -Por que não?
"Porque se me caso, quero que seja por amor", disse o coração de Alice, mas ela reprimiu uma resposta tão carente de lógica, pois Hugh jamais a compreenderia.
-Parece-me muito frio.
-Frio? -Pareceu perplexo-. Não. É um enfoque muito sensato.
-Sensato?
-Sim. Parece-me que você e eu estamos na situação pouco comum de poder decidir por nós mesmos nesta questão. Será uma decisão apoiada no conhecimento prático do temperamento e as habilidades do outro. Pensa-o como uma continuação de nosso acordo, Alice.
Alice sentiu que era hora de falar.
-Mas tinha pensado ingressar em um convento. Pensava me dedicar à investigação da filosofia natural.
-Sendo minha esposa, poderá estudar filosofia natural -disse Hugh em tom baixo e sedutor-. Terá o tempo e os recursos com que financiar suas investigações Se casando comigo.
-Você acha?
-Pense, Alice -disse-lhe, como se lhe oferecesse um cofre cheio de jóias-. Terá possibilidades sem limites para comprar livros, astrolábios e aparelhos de alquimia. Poderá colecionar todas as pedras estranhas que lhe chamem a atenção. Obter qualquer quantidade de insetos dissecados. Empilhá-los até o teto em seu estudio, se quiser.
-Milorde, não sei o que dizer. Tudo me dá voltas na cabeça. Acredito que ainda não me recuperei de seus beijos. Acredito que será melhor que parta.
Tenso, Hugh vacilou um instante. Alice conteve o fôlego, percebendo a luta que se travava dentro dele. "É um homem apaixonado", pensou. Mas controlava por inteiro a paixão.
-Como quizer. -levantou-se da pele com a graça de um predador-. Pensa no que falei, Alice. Você e eu combinamos muito bem. Posso te oferecer até mesmo o convento, e muito mais.
-Milorde, rogo-lhe que me dê tempo suficiente para pensar nesta proposta. -Brincou com o vestido enquanto se arrumava. Sentia-se desalinhada, despenteada e bastante exasperada-. Isto me pegou de surpresa.
Hugh entreabriu os olhos e adotou um ar beligerante. Mas roçou apenas a boca da moça com a sua. No instante desse contato fugaz, Alice percebeu o potente esforço que fazia para controlar-se, e tremeu.
-Muito bem. -Hugh elevou a cabeça-. Não é necessário que me dê sua resposta esta mesma noite. Pode pensar.
-Obrigado, senhor.
Perguntou-se se advertiria o sarcasmo e a irritação de seu tom.
-Mas não demore muito -aconselhou-lhe Hugh-. Não tenho muito tempo a perder em uma questão tão simples. Há muito que fazer em Scarcliffe. Necessito de uma esposa que também seja uma sócia em que possa confiar.
Partiu antes de que Alice pudesse lhe jogar na cabeça o que ficava no frasco de vinho. Consolou-se ao pensar em que, sem dúvida, haveria outras oportunidades.
Até que, três dias depois, Hugh entrou cavalgando na aldeia de Scarcliffe com Alice ao lado, não tinha idéia de quão melancólica era. Era o lugar onde nasceu. E onde agora queria lavrar um futuro para ele e seus descendentes. Não lhe pareceu tão triste quando saiu em busca do cristal verde, pouco tempo atrás.
A imagem de Scarcliffe que tinha ardido em sua mente durante semanas, era a que teria no futuro. Tinha planos para o imóvel. Grandes planos. Ao término de um ano ou dois, Scarcliffe começaria a brilhar como uma jóia fina. Os campos estalariam pela abundância das colheitas. A lã das ovelhas seria grosa e suave. As cabanas, todas e em boas condições. Os aldeãos, contentes, prósperos e bem alimentados.
Mas no presente momento se viu obrigado a vê-lo através dos olhos de Alice. Teve que admitir que a aldeia, mas bem parecia um pedaço de carvão que uma gema resplandecente. A Hugh, que pelo geral não dava muita atenção a inconvenientes menores, como o clima, irritava-o ver que a pouco tinha chovido. O céu plúmbeo, ameaçador, não contribuía aos discutíveis encantos de Scarcliffe.
O castelo mesmo, que se localizava além da aldeia, estava escondido entre retalhos de névoa cinza.
Hugh lançou a Alice um olhar inquieto para ver como reagia ante as novas terras, mas ela não o demonstrou.
Via-a esbelta e graciosa sobre a arreios. O cabelo vermelho ardia; era como uma chama alegre que afastava a névoa cinza. Atenta ao que a rodeava, as feições inteligentes, sérias e estudiosas, observavam a aldeia.
Como sempre, manifestava curiosidade, embora Hugh não soubesse o que estaria pensando a respeito do que via. Perguntou-se se sentiria preocupada, desgostosa ou desdenhosa.
Tendo em conta o aspecto lúgubre de Scarcliffe, o mais provável era que sentisse as três coisas.
Afinal, era uma dama muito melindrosa para comer no salão principal, com os homens. Ordenava que lhe preparassem a comida especialmente e a roupa que usava parecia sempre limpa e perfumada.
Não cabia dúvida de que a pequena aldeia e os campos ermos deviam lhe parecer desagradáveis.
Hugh teve que admitir que o descuidado punhado de cabanas desmanteladas, quase todas necessitadas de um bom reparo, não apresentava uma visão alentadora com seu acompanhamento de currais de cabras e chiqueiros. A atmosfera da tarde era pesada, e estava carregada com o inconfundível aroma rançoso da sarjeta da aldeia onde se apodreciam o lixo de anos.
O muro em ruínas que rodeava ao pequeno convento e a igreja dava mostras de abandono prolongado. E a chuva recente não fez nada para limpar Scarcliffe a não ser, mas bem, aumentou o barro na única rua.
Hugh apertou os dentes. Se Alice não tivera uma boa impressão do que via da aldeia e os campos circundantes, ao ver o castelo de Scarcliffe ficaria abatida.
Pensou que seria melhor preocupar-se com isso depois. Enquanto isso, tinha que fazer um anúncio, e pretendia que fosse espalhado através de suas próprias terras e chegasse aos salões dos vizinhos. Todos saberiam que Hugh o Implacável tinha retornado com a prova de que era o autêntico senhor de Scarcliffe.
Tinha apressado a companhia, para chegar a Scarcliffe em dia de mercado. Tal como o previu, quase todos os que habitavam o feudo e as granjas vizinhas estavam reunidos na estreita rua para presenciar a volta triunfal do novo senhor.
"Este devia ser um momento de enorme satisfação", pensou Hugh. Tinha-o tudo. Recuperou a pedra verde, e tinha como prometida uma dama. Estava preparado para se instalar como senhor de Scarcliffe.
Mas as coisas não saíam tão bem como as tinha planejado, e isso o inquietava. O conhecia como um indivíduo habilidoso para urdir estratégias. Alguns afirmavam que tinha o talento de um mago para essas coisas. Mas algo saiu muito errado a noite passada, quando tentou convencer a Alice de que se comprometessem de verdade.
Ainda lhe ardia o golpe que lhe tinha dado sem sabê-lo. Atuou como se preferisse o convento a compartilhar com ele o leito conjugal.
Não aceitou bem essa noção, sobre tudo sabendo que ele mesmo se sentia capaz de descer aos infernos se isso lhe desse a oportunidade de terminar o que começou entre essas coxas suaves.
Cada vez que recordava como Alice estremecera entre seus braços, o corpo se punha tenso e duro. Como passou boa parte da viagem ruminando essas lembranças, sentiu-se quase todo o tempo incômodo.
Deixar a Alice sozinha na tenda as três últimas noites foi um esforço mais heróico que doze ataques em um campo de combate. O que mais o irritava era compreender que, em sua inocência, Alice não valorizava o grau de domínio que Hugh se viu obrigado a aplicar.
Para falar a verdade, a força explosiva de seu próprio desejo o inquietava profundamente, mas não fazia nada por atenuá-lo.
Uma das Coisas mais difíceis que teve que fazer foi reconhecer sua própria voracidade pelo corpo doce, morno de Alice.
Passou três noites contemplando as estrelas enquanto inventava desculpas para o feroz desejo de fazê-la sua. Existiam razões para que o sangue o inflamasse e o desejo o atormentasse, e as enumerou, como se somasse com instrumentos.
Fazia muito tempo que não estava com uma mulher.
Sempre o atraía o insólito, e Alice era uma mulher única.
A promessa de paixão que ofereciam esses olhos verdes era suficiente para atrair a qualquer homem com capacidade de percebê-la.
E tocá-la foi algo muito parecido a tocar o centro de uma tormenta.
Sim, existiam razões para explicar por que terminou uma longa jornada a cavalo em um estado próximo à ereção.
Mas a diferença dos intrumentos, que sempre lhe dava uma resposta satisfatória, nenhuma das razões expostas fez muito por aliviar o ânimo turvo de Hugh. Mas bem, deixaram-no mais pesaroso.
Embora considerasse a situação de maneiras muito diferentes, sempre se via obrigado a chegar à mesma conclusão. Queria a Alice com um desejo que beirava o perigoso. E adiante, teria que ter mais cuidado.
Também teria que achar a maneira de convencê-la a de que o compromisso fosse real.
-Uma dama. Traz para uma dama elegante consigo.
-Possivelmente seja uma esposa.
-Não acreditava que voltássemos a vê-lo. Pensei que o tinham matado, como passou com todos os outros.
O murmúrio excitado da multidão interrompeu o sonho de Hugh. Muitas pessoas olhavam entre si, e lançavam exclamações sobressaltadas, como se estivessem presenciando uma grande maravilha mais que a simples volta de seu senhor.
A madre e um grupo de freiras saíram à entrada do convento, e seus olhares posaram diretamente em Alice. Uma das mulheres se inclinou para diante e murmurou algo no ouvido à freira alta que estava junto à madre Joan. A mulher alta assentiu. Era a única que não parecia alegre com a volta da companhia.
Hugh lhe lançou um olhar fugaz e reconheceu à curandeira, uma mulher chamada Katherine. Era uma pessoa de semblante sombrio e melancólico que, por sua aparência, devia ter pouco menos de cinqüenta anos. Tinha-a conhecido a noite que a madre Joan a ordenou procurá-lo para lhe informar da perda da pedra verde.
Hugh rogava não ter que empregar nunca seus serviços profissionais. Não era muito alentadora a perspectiva de ser atendido por uma curandeira que, por sua expressão, parecia não confiar muito no resultado.
Ergueu uma mão para fazer deter os homens.
Quando se aquietaram o repico de cascos e os chiados das rodas das carroças, fez avançar lentamente o cavalo para a madre, Joan o aguardava com um sorriso que expressava ao mesmo tempo alivio e boas-vindas.
Hugh estava a uns passos da entrada do convento quando uma silhueta ossuda e corpulenta, embainhada em uma roupa castanha de monge se separou da multidão.
Embora o capuz lhe ocultasse o rosto, Hugh abafou uma maldição ao reconhecer ao Calvert do Oxwick.
Esperava que o monge vagabundo estivesse em outra aldeia quando retornasse com sua companhia.
-Milorde, dou as boas-vindas a Scarcliffe -pronunciou Calvert com uma voz tão áspera que arrepiava os nervos-. Dou graças a Deus por lhe haver permitido retornar vivo.
-Não pensava em voltar de nenhuma outra maneira, monge. -Hugh freou ao cavalo e esperou até contar com a atenção de todos-. Sir Dunstan, exiba a pedra para que todos possam ver que voltou para o Scarcliffe.
-A pedra -murmurou alguém-. encontrou a pedra.
Um silêncio de expectativa se apropriou da multidão.
-Sim, milorde.
Dunstan adiantou-se. Sobre o alto dos arreios balançava um pequeno cofre de madeira. Entre os curiosos se estendeu uma exclamação de impaciência. Todas os olhares estavam cravadas no cofre. Com a pompa correspondente, Dunstan o abriu, levantou a tampa e mostrou o conteúdo.
O feio cristal verde mostrou seu brilho apagado sob a luz cinzenta.
Uma grande exclamação quebrou o intenso silêncio, e chapéus voaram pelo ar.
-Eu sabia que era nosso verdadeiro senhor.
O ferreiro balançou a bigorna contra a forja, e o estrépito se mesclou com o tangido dos sinos da igreja.
-Sim, é o cristal-lhe disse sorridente John, o moleiro, a sua esposa-. Lorde Hugh a traz de novo, como diz a lenda.
O filho menor, um menino de quatro anos chamado Jovem John, deu saltos, aplaudiu e disse:
-Encontrou-a. Lorde Hugh a encontrou.
-Lorde Hugh recuperou a pedra -comentou-lhe, alegre, outro menino a um amigo-. Agora, tudo sairá bem, como disse meu pai.
No meio da euforia, a irmã Joan saiu da sombra da porta. Era uma mulher de média idade, de feições fortes e bem definidas, e olhos azuis de expressão cálida e alegre.
-Milorde, alegra-me muito saber que obteve seu propósito de recuperar a pedra.
-Ouçam-me, meu bom povo de Scarcliffe –exclamou Hugh em voz alta o bastante para que o ouvissem na cabana do cervejeiro, no outro extremo da rua-. A lenda se cumpriu. Recuperei o cristal verde, e prometo cuidá-lo. Do mesmo modo, cuidarei para que o castelo de Scarcliffe e seu povo estejam seguros.
Elevaram-se gritos de júbilo.
-A pedra não é a única coisa que trago -continuou-, mas também a lady Alice, minha prometida. Peço-lhes que lhe dêem as boas-vindas. Agora, meu futuro e o de vocês estão ligados ao dela.
Alice se crispou, lançou a Hugh um olhar suspicaz, mas não disse nada. Qualquer palavra que houvesse dito se perderia entre os rugidos de aprovação da multidão.
À sombra do capuz, brilharam os olhos ardentes de Calvert, mas Hugh não fez conta. Estava mais preocupado com a reação de Alice ante este recebimento clamoroso.
A jovem não demorou para recuperar-se e dedicou à multidão um sorriso de genuína graça.
-Agradeço sua amabilidade -disse, com grande formalidade.
Calvert jogou o capuz para trás deixando descoberto sua tez cadavérica e os febris olhos escuros. Ergueu a bengala reclamando atenção.
-Ouça-me, filha de Eva. -Cravou em Alice um olhar cheio de fogo-. Orarei para que seja uma esposa completa e correta para lorde Hugh. Como não há sacerdote na aldeia, eu mesmo assumirei a tarefa de instrui-la e guia-la em seus deveres de noiva.
-Não será necessário -respondeu Alice com frieza.
Calvert não fez conta, e a apontou com um dedo esquelético.
-Sob minha direção, se converterá na mais apreciada das esposas, que nunca seria briguenta nem difícil. Uma esposa recatada no vestir e humilde no falar. Que ocupe seu lugar aos pés do marido. Que se sinta honrada humilhando-se ante seu amo e senhor.
Hugh ia fazer calar ao irritante monge, mas lhe ocorreu uma estratégia muito mais interessante: deixaria que Alice enfrentasse ao Calvert.
Uma mulher do caráter de Alice precisava poder exercitar seus variados talentos e habilidades pois, do contrário, sentiria-se insatisfeita e desventurada. Hugh tinha a forte suspeita de que um dos motivos pelos quais Alice causou tantas dificuldades ao tio no Lingwood foi que Ralf nunca compreendeu a verdadeira amplitude da inteligência e as capacidades da sobrinha, nem lhe deu oportunidade de exerce-las. Em lugar de respeitá-la, tentou tratá-la como se fosse uma criada, Hugh não pensava cometer o mesmo engano. Tinha o costume de empregar os indivíduos mais aptos e depois lhes dava a autoridade para cumprir com suas tarefas. A estratégia sempre tinha funcionado bem para ele até o momento, e não via motivo para não aplicá-lo a uma esposa.
Preparou-se com entusiasmo para a resposta de Alice. -Agradeço-lhe a generosidade de sua oferta, monge -disse Alice, em tom gelado, mas cortês-, embora tema que já sou muito velha e tenho costumes fixos para aprender essas coisas. Lorde Hugh deverá me aceitar como sou.
-As mulheres de cabelo vermelho e olhos verdes sempre têm línguas afiadas -espetou-lhe Calvert-. É preciso lhes ensinar a controlá-las.
-Só um covarde teme à língua de uma mulher -replicou a moça, com excessiva suavidade-. Monge, asseguro-lhe que lorde Hugh não é covarde. Atreve-se a dizer o contrário?
A suave provocação foi recebida com uma exclamação abafada mas audível, e os curiosos se aproximaram mais.
Calvert empalideceu. Lançou a Hugh um olhar assustado, e voltou para o discurso.
-Não distorça minhas palavras, milady. Está comprovado que as mulheres de cabelo vermelho têm temperamentos de bruxas.
-Ouvi dizer que, embora fosse difícil excitar a fúria de Hugh, uma vez que se irrita é como a mais terrível das tormentas -murmurou Alice-. Sem dúvida, um homem com semelhante caráter não precisa evitar o mau humor de uma dama.
Calvert cuspiu, furioso. Parecia ter grande dificuldade em achar as palavras.
Hugh decidiu que a briga já tinha durado muito: o monge não tinha possibilidades de ganhar de Alice.
-Tem o direito, senhora -disse com simplicidade-. Mais até, quero que saiba que há outras partes de minha pessoa que podem excitar-se e exasperar-se com muito menos esforço que minha fúria. Confio que descobrirá que são muito mais interessantes.
Entre a multidão se estenderam as gargalhadas.
Confusa, Alice franziu o cenho. Sem dúvida, não compreendeu imediatamente o que dizia.
Logo, seu rosto se pintou com um formoso rubor.
-Vamos, milorde -murmurou, Contendo-se.
Calvert, enquanto isso, adquiriu um interessante tom púrpura. Por um momento, Hugh acreditou que fossem saltar seus olhos das órbitas.
O monge olhou furioso para Alice, e logo girou para Hugh.
-Tome cuidado com uma mulher que não se submete ao guia dos homens, milorde. Uma mulher assim não trará mais que problemas a sua casa.
Hugh riu.
-Não se aflija, monge. Não temo à língua de minha prometida. Mas bem, sua maneira de falar me parece... interessante.
Entre os aldeãos se escutaram mais risadas.
Mas Calvert não se divertia. Brandiu o cajado diante de Hugh.
-Milorde, me preste atenção. Falo como conselheiro religioso. Se pensa casar-se com esta mulher, primeiro terá que aprender a controlá-la. A sua vida se converterá em um inferno se não ensinar a esta senhora a comportar-se como é devido; o asseguro.
Alice revirou os olhos.
Hugh a olhou e elevou a voz para que todos pudessem ouvi-lo.
-Estejam seguros de que estou disposto a aceitar a minha prometida tal como é. Mais ainda, estou impaciente por fazê-lo na primeira oportunidade.
Houve mais risadas, desta vez, principalmente masculinas. Hugh acreditou ver a madre superiora conter um sorriso. Quase todas as freiras reunidas detrás dela sorriam sem disfarces. Katherine era a exceção, e ele duvidava de que algo fosse capaz de mudar a expressão solene da mulher.
Foi Joan que atraiu a atenção geral. Ergueu uma mão e os aldeãos calaram-se.
-Bem-vinda, milady -disse a Alice em voz clara e serena-. Sou a madre do convento. O bem-estar da casa religiosa está ligado a do feudo. Alegra-me saber que o novo senhor de Scarcliffe adotou medidas para garantir o futuro destas terras.
Alice desceu do cavalo sem advertência. Antes que Hugh compreendesse sua intenção, caminhava para Joan. O homem desmontou lentamente, perguntando-se o que faria. "Alice nunca será previsível", pensou.
Alice passou diante de Calvert como se este fosse invisível. Depois, para surpresa de Hugh e de todos outros, ajoelhou-se com graça no barro diante de Joan.
-Obrigado por suas amáveis boas-vindas, milady -disse-. Peço-lhe a bênção para sir Hugh e para mim, e para todos os habitantes destas terras.
Hugh ouviu um murmúrio de aprovação dos que o rodeavam.
Joan fez o sinal da cruz.
-Dou-lhe minha bênção e minha promessa de ajudá-la em suas novas responsabilidades, aqui no feudo, lady Alice.
-Obrigado, senhora.
Levantou-se, sem fazer o menor caso do barro que manchava a capa de viagem.
Quando se adiantou para tomar o braço de Alice, Hugh viu que o rosto de Calvert se convertia em uma máscara de fúria. Era indubitável que a nova senhora do feudo o tinha desprezado diante de todos.
O triunfo de Alice foi completo. Pôs em evidência que, no que a ela se referia, a pessoa com verdadeira autoridade religiosa em Scarcliffe era Joan.
A nenhum dos pressente lhe escapou esse fato.
Joan olhou a Hugh com certa preocupação refletida em seus olhos de suave expressão.
-Milorde, voltará a deixar a pedra verde no tesouro do convento?
-Não. Eu sou quem tem o dever de protegê-la.
Levarei-a ao castelo de Scarcliffe, onde me sentirei tranqüilo de que estará a salvo.
-Uma idéia excelente, milorde. -Joan não tentou dissimular o alívio-. Regozija-me comprovar que o cristal verde está aos cuidados de seu próprio guardião.
Hugh agarrou com firmeza o braço de Alice.
-Tivemos uma longa viajem. Devo levar a minha senhora a seu novo lar.
-Sim, meu senhor.
Joan se refugiou outra vez na entrada.
Hugh ajudou a Alice a montar outra vez e depois o fez ele mesmo. Levantou uma mão, indicando à companhia que continuassem em direção ao castelo.
-Foi muito bem -disse, para que só o ouvisse Alice-. A madre é a única habitante destas terras em que os habitantes depositam certa confiança. Ela e as demais freiras se ocuparam das necessidades básicas do povo, enquanto os senhores anteriores a mim vinham e partiam.
-Acredito que gostarei dela -disse a moça-. Mas não diria o mesmo do monge. É possível que seja um homem de Deus, mas o acho extremamente desagradável.
-Não é a única. Acredito que tampouco gosta muito à madre Joan, embora por sua posição, tem que tolerá-lo. Calvert tem certa obsessão por lecionar às mulheres a respeito de seus deveres e debilidades, não te parece?
-Ora, já conheci a outros similares! Não é a salvação das almas femininas o que lhe interessa. O que acontece é que teme às mulheres, e procura debilitadas esmagando seus espíritos com recriminações e discursos amargos.
Hugh sorriu.
-Sem dúvida.
Alice franziu o cenho, pensativa.
-Penso que contentou ao povo com o modo em que cumpriu as predições da lenda, senhor.
-Sim, foi uma chatice, mas se acabou -alegrou-se--. Agora, posso continuar com assuntos mais importantes.
-Uma chatice, senhor? -Elevou as sobrancelhas-. Preocupa-me sabê-lo. Recordo-lhe que se não tivesse estado obrigado a procurar a pedra verde, não me teria conhecido. E eu tinha a impressão de que estava bastante satisfeito de ter achado uma prometida eficaz e conveniente.
Hugh fez uma careta.
-Não quis dizê-lo desse modo. Referia a esse maldito cristal, não a você.
-Isso significa que, ao final das contas, sou eficaz e conveniente? -Os olhos lhe brilharam de malícia-. Alivia-me muito sabê-lo. Eu não gostaria de pensar que fracassei em cumprir minha parte do acordo. .
-Alice, acredito que está tratando de me apanhar, do mesmo modo que um pequeno sabujo provocaria a um urso. Advirto-a que é um jogo perigoso.
Alice pigarreou.
-Sim, bem,há outro detalhe da lenda que eu gostaria de lhe perguntar.
-Do que se trata?
-Você disse que, além de proteger a pedra verde, o verdadeiro senhor de Scarcliffe deverá descobrir o resto do tesouro.
-Sim, e então?
-Não há dúvida de que o povo está satisfeito de que você seja capaz de cuidar da pedra verde. Mas, como fará para localizar as Pedras de Scarcliffe que faltam? Tem alguma idéia de onde possam estar?
-Duvido de que existam, sequer.
Alice o olhou compenetrada.
-E como as encontrará?
-Essa parte da lenda não me interessa –disse indiferente-. O mais importante era a recuperação da pedra verde. Agora que a trouxe de novo a Scarcliffe, os aldeãos suporão que, em seu momento, cumprirei o resto da profecia. Não há muita pressa.
-Em algum momento, alguém advertirá que não teve êxito em encontrar as pedras, senhor.
-Quando o senhorio for próspero e rico, ninguém se importará com essas malditas pedras. Se chegar o instante em que me exigem que mostre um cofre com gemas valiosas, farei-o.
-Mas, como?
Hugh ergueu as sobrancelhas ante tanta ingenuidade.
-Bastará-me comprá-las, é obvio. Se fizer falta, posso me permitir isso. Não custará mais que uns barris de especiarias.
-Sim, pode ser, mas não serão as verdadeiras pedras de Scarcliffe.
-Pense, Alice -replicou, paciente-. Nenhuma pessoa que esteja viva atualmente viu jamais as assim chamadas Pedras do Scarcliffe, com exceção do cristal verde. Quem reconhecerá a diferença entre um punhado de gemas compradas a um comerciante londrino e as da lenda?
Alice o olhou com uma expressão estranha, mescla de horror e admiração. Para sua surpresa, Hugh descobriu que isso o agradava, por um instante, desfrutou-o.
-Milorde, só um homem que é, em si mesmo, uma lenda, pode ser tão arrogante com respeito ao cumprimento dos termos de um mito.
Hugh riu.
-Considera-me arrogante? Só uma mulher que não teme ao poder de uma lenda se atreveria a fechar um trato com um homem que ache como tal.
-Já lhe disse que eu não acredito muito em lendas, senhor. Mas, de todos os modos, estou impressionada por um homem com inteligência para inventar o que for preciso para completar os pedaços que faltam de sua própria lenda.
-Obrigado. Sempre é agradável que o admirem a um por sua inteligência.
-Não há nada que eu admire mais, senhor. -interrompeu-se para olhar adiante, entre a névoa, e lhe aumentaram os olhos-. Pelos pregos de Cristo, esse é o castelo de Scarcliffe?
Hugh se preparou. Olhou o enorme edifício de pedra que emergia da penumbra.
-Sim. É Scarcliffe. -Fez uma pausa para dar mais peso a suas palavras-. Seu novo lar, senhora.
-Por um tempo -respondeu distraída.
-Logo se acostuma -assegurou-lhe.
-É?
Contemplou o castelo com olhar curioso. Hugh tentou ver de maneira objetiva. Tinha nascido ali, mas não guardava lembranças do lugar. Depois que sua filha bem amada bebeu veneno, o avô do Hugh levou o neto pequeno a viver com uma tia viúva no norte. O velho tinha perdido o ânimo para dirigir Scarcliffe. Quão único o obcecava era a vingança. Quando morreu, Scarcliffe tinha ido parar em outras mãos. Várias mãos.
Scarcliffe seguiu declinando sob uma sucessão de senhores ambiciosos e negligentes. O castelo mesmo era uma fortaleza de pedra escura que se projetava para fora desde quão escarpados o rodeavam e que se abatiam em cima dele. Dizia-se que o dono original teve a intenção de que a estrutura perdurasse até o fim dos tempos, e tinha toda a aparência de ser assim.
O castelo amuralhado tinha sido construído com pedras negras pouco comuns. Nenhuma das pessoas às que Hugh interrogou sabia de que pedreira se extraíram as pedras. Alguns diziam que os enormes blocos de cor ônix foram escavadas no labirinto de cavernas perfuradas nos escarpados. Outros, que haviam as trazido de terras longínquas.
-Quem construiu o castelo? -perguntou Alice em voz fraca, maravilhada.
-Disseram-me que era um indivíduo chamado Le Ronde.
-Um antepassado seu?
-Sim. O avô de minha mãe. Ele foi, conforme contam, quem perdeu as Pedras de Scarcliffe. A lenda afirma que as escondeu nas cavernas, e que depois não pôde encontrá-las.
-O que lhe aconteceu?
-Segundo a história, entrou muitas vezes nas cavernas em busca do tesouro. –ergueu os ombros-. A última vez, não saiu mais.
-É um castelo incomum -disse Alice, cortês.
Hugh o contemplou orgulhoso.
-Uma fortaleza bela e sólida, capaz de suportar uma invasão.
-Me faz lembrar aos castelos mágicos que se mencionam nos poemas dos trovadores. O tipo de lugar que sempre aludiam os cavalheiros da grande Távola Redonda em meio de bosques encantados. Certamente, tem o aspecto de um castelo que esteve sob o feitiço de um feiticeiro.
"Odeia-o", pensou Hugh. E essa idéia o afligiu.
Na manhã seguinte, Alice tirou o pó da nova mesa e sentou-se atrás dela. Passeou o olhar ao redor com satisfação.
A câmara que escolheu como estúdio estava no piso mais alto do castelo. Era espaçosa e cheia de luz, de proporções agradáveis à vista. emprestava-se bem às investigações em filosofia natural.
Os livros e baús com pedras, as bandejas com insetos mortos e os aparelhos de alquimia tinham sido desempacotados e acomodados com esmero em prateleiras e mesas de trabalho. O astrolábio estava no batente. A pedra verde, em um local seguro do escritório.
Por estranho que parecesse, sentia-se em seu lar. Em todos os meses vividos no Lingwood Manor, nem uma vez experimentou esta sensação, e soube que neste lugar poderia ser feliz. Bastava-lhe aceitar o oferecimento de Hugh para que o compromisso fosse verdadeiro.
Bastava-lhe casar-se com o homem ao que chamavam o Implacável.
Bastava-lhe casar-se com esse homem que, sem dúvida, valorizava a eficácia e a conveniência muito mais que o amor.
Não estava segura de que Hugh acreditasse, sequer, na existência do amor.
Apareceram na mente de Alice imagens de sua mãe em silenciosa advertência. Triste, Alice recordou que, em um tempo, sua mãe acreditou que poderia ensinar ao homem a amá-la. Equivocou-se.
Sabia que sua mãe tinha sido, em outra época, uma mulher cálida e vibrante, apaixonada por seu marido. Mas com o mau trato e negando-se a voltar Bernard acabou por matar esse amor.
Casou-se com um homem que jamais aprendeu a amá-la, e pagou por isso um preço elevado. E também os filhos.
Alice lançou uma olhada ao livro de notas que tinha escrito sua mãe. Às vezes, quase o odiava. Continha abundantes conhecimentos, e os resultados de estudos árduos e correspondência com pessoas sábias de toda a Europa. Mas Alice e Benedict sofreram muito por ele.
Na última etapa da vida de Helen, o livro de notas absorveu cada vez mais sua dedicação e atenção, lhe deixando muito pouco para a Alice e para seu irmão.
Alice se levantou e foi até a janela. Os escarpados de Scarcliffe se abatiam sobre o castelo de uma maneira que podia ver-se como protetora ou ameaçador.
No dia anterior, a primeira visão da imponente fortaleza negra a impressionou. Emanava uma força escura que prometia amparo, mas o sombrio edifício não dava sinais de calidez nem suavidade. "parece-se muito ao novo amo", pensou. Hugh e o castelo tinham muito em comum.
Mas, o que acontecia ao coração de Hugh? Era tão duro e frio como os muros de pedra da imensa fortaleza? Ou existia certa esperança de que pudesse encontrar doçura nele?
Pensamentos tão insidiosos faziam perigar a serenidade do espírito da Alice.
Separou-se da janela, consciente de que seu próprio coração estava em grave risco. Deveria alarmar-se por ter pensado sequer na idéia de fazer efetivo o compromisso.
"Sim, aqui poderia ser feliz", disse-se. Mas a sorte estava contra.
Seria melhor manter certa distância. Apartar-se. Guardar as emoções cuidadosamente dentro de si. Não devia cometer o mesmo engano que sua mãe.
Três dias depois, Hugh levantou o olhar da mesa e viu o novo mordomo que aparecia pela porta.
-Sim?
-Lamento incomodá-lo, milorde.
Elbert, um jovem magro e desajeitado, com um temperamento que Hugh considerava nervoso, tragou várias vezes, tratando de reunir coragem. E animar-se a falar. Elbert tinha a desventurada tendência a gaguejar sempre que estava na presença do amo.
-O que acontece, mordomo?
Hugh afastou o instrumento e esperou, impaciente.
Para si, admitia que não sabia muito das qualidades que devia ter um mordomo apropriado. Mas fossem quais fossem, estava convencido de que Elbert carecia delas. Era evidente que o novo amo o amendrotava, e estava acostumado a tropeçar cada vez que o tinha perto.
Além desses defeitos, a habilidade de Elbert para dirigir uma casa não era muito impressionante. Embora se ocupasse de que os quartos estivessem limpos, os almoços resultavam experiências arrasadoras.
A comida chegava fria e mau temperada das cozinhas. Não havia quantidade suficiente de bandejas de pão para servir a todos. O estrépito de jarras de cerveja que caíam e dos pratos sobrecarregados criava um barulho desagradável.
Hugh não esperava impaciente a próxima refeição.
Notou que Alice evitava o mau momento, pois junto com seu irmão lhes serviam as comidas nos quartos que tinha escolhido para seu uso pessoal.
Tinha dado indicações especiais às cozinheiras. Hugh tinha a forte suspeita de que comiam muito melhor que ele.
O único motivo que Hugh não despediu Elbert do novo posto uma hora depois de ter sido empregado, é porque a mesma Alice o tinha selecionado. Esteve de acordo em fazê-lo depois que Hugh lhe pediu que se ocupasse do tema.
Pensou que se faria cargo de todo o manejo da casa. Mas limitou-se a escolher Elbert, como lhe pediu, e logo voltou para seus próprios aposentos.
As coisas não aconteciam segundo o plano que Hugh urdiu com tanto cuidado. Estava desejoso de dar a Alice a responsabilidade e a autoridade que desejava, mas ela não estava preocupada em recebe-las. O fracasso do plano o desanimava e o irritava.
-E bem? -insistiu-o, ao ver que Elbert não fazia outra coisa que olhá-lo com a boca aberta.
Elbert se apressou a fechá-la.
-Um mensageiro, milorde.
-Um mensageiro?
-Sim, milorde. -Endireitou a boina vermelha com gesto desajeitado-. chegou faz uns minutos com uma carta para o senhor. Diz que deverá ficar esta noite.
-Traga-me ele mordomo.
-Sim, senhor.
Elbert retrocedeu depressa para o corredor, e tropeçou. Recuperou o equilíbrio, girou e correu pelo corredor.
Hugh suspirou e reatou o trabalho com o instrumento. Minutos depois, Elbert fez entrar no quarto um homem magro e alto, que arrumava-se para parecer elegante com uma capa de viagem e umas botas manchadas de barro.
-Saúdo-te, Julián -disse Hugh-. Terá tido boa viagem, espero.
-Sim, senhor. -Fez-lhe uma elegante reverencia e lhe entregou a carta-. Tinha um bom cavalo, e não choveu.
Certos problemas com um bando de ladrões no caminho de Windlesea, mas lhes mostrei o selo do senhor e esse foi o final dos problemas.
-Fico contente em saber.
Hugh deu uma olhada à carta.
Julián pigarreou.
-Desculpe, senhor, mas me sinto obrigado a assinalar que não teria havido nenhum problema se tivesse tido uma roupa apropriada. Talvez seria bom um traje azul e dourado, Com um pouco de galão dourado.
-Depois, Julián.
-Em meu posto, faz falta algo que resplandeça a vista. Desse modo, os ladrões a veriam imediatamente. Reconheceriam a um homem de sua casa e não se atreveriam a incomodá-lo.
Hugh levantou a vista.
-Já discutimos isto antes, mensageiro. Cada ano recebe um traje em boas condições, capa, botas, e um novo moedeiro de couro.
-Sim, milorde, e é um gesto generoso de sua parte-murmurou-. Mas tudo o que me proporciona é da mesma cor.
-E?
-O negro não é uma cor elegante, milorde -disse Julián, exasperado-. Pareço um monge vagabundo pelos caminhos.
-Oxalá viajasse com a mesma frugalidade que se fosse. Seus gastos quinzenais foram escandalosos. Pensava em lhe falar a respeito.
-Posso justificá-los todos -respondeu Julián.
-Espero que sim.
-Senhor, a nova roupa.
-Que nova roupa? -protestou-. Acabo de te dizer que não haverá tal coisa.
Julián ficou aborrecido.
-Está bem, suponhamos que seguimos com o negro como base.
-Excelente hipótese.
-Seria muito mais atraente se me permitisse, ao menos, um pouco de galão dourado.
-Galão dourado? Para um mensageiro que deve atravessar o barro e a neve? Que loucura. É provável que lhe assassinem no caminho pelo galão dourado da roupa.
-Faz menos de três meses, John de Larkenby deu ao seu mensageiro pessoal um elegante traje novo de cor verde esmeralda -tratou de persuadi-lo-. Debruado de laranja. E uma boina fazendo jogo. Muito elegante.
-Basta de tolices. Alguma novidade sobre a saúde de meu suserano?
O rosto de Julián se escureceu. -Transmiti-lhe as suas saudações, como me pediu. -Viu sir Erasmus?
-Sim. Recebeu-me só porque pertenço a seu pessoal. Disseram-me que recebe a muito poucos visitantes, ultimamente. Agora, é a esposa a que se ocupa de quase todos os assuntos.
-Que aspecto tinha? -perguntou Hugh.
-Nota-se que está muito doente, milorde. Não fala disso, mas a esposa tem os olhos avermelhados de chorar. Os médicos acreditam que o coração está falhando. Está muito magro. sobressalta-se diante do menor ruído. Parece esgotado e, entretanto, assegura que não pode dormir.
-Esperava que houvesse melhores notícias.
Julián moveu a cabeça.
-Lamento, senhor. Mandou-lhe seus melhores desejos.
-Bom, o que tem que ser, será. -Rompeu o selo-. Vá às cozinhas e peça que lhe dêem de comer.
-Sim, senhor. -Julián vacilou-. A roupa. Sei o que opina dos gastos. Mas me parece que agora que possui terras, e um castelo, quererá que os membros de seu pessoal se vistam de maneira apropriada. Depois de tudo, senhor, a gente julga a um homem pela roupa que vestem seus criados.
-Quando descobrir que me preocupo a opinião do povo, comunicarei-lhe isso. Vá, mensageiro.
-Sim, senhor.
Fazia tempo suficiente que Julián servia a Hugh para saber que o tinha pressionado bastante. Saiu da habitação fazendo reverências com suas maneiras elegantes e um tanto altivas, e percorreu o corredor assobiando.
Hugh olhou sem ver a carta que tinha na mão. Erasmus de Thornewood estava morrendo. Já não haviam dúvidas. Hugh sabia que logo perderia ao homem que tinha sido como um pai para ele em mais de um sentido.
Engoliu em seco para aliviar uma súbita obstrução na garganta, piscou um par de vezes para clarear os olhos, e concentrou-se na carta.
Provinha do mordomo londrino. Informava-lhe da chegada sem novidades de um navio carregado com especiarias. Em seu acostumado estilo eficiente, o criado dava conta de cada baú, do conteúdo e do valor estimado, adicionando comentários relacionados com os gastos. Hugh pegou o intrumento.
-Desculpe-me, senhor -disse Benedict da entrada.
Hugh levantou a vista:
-Sim?
-Sir Dunstan me envia para dizer-lhe que os estábulos já estão limpos e preparados. Quer saber se você deseja falar com o ferreiro. -Viu o instrumento e se interrompeu-. O que é isso, milorde?
-Chamam-lhe ábaco. usa-se para fazer cálculos.
-Ouvi falar dele. -aproximou-se com expressão curiosa, tamborilando o chão com a bengala-. Como funciona?
Hugh esboçou um sorriso lento.
-Se quiser, ensinarei-te. pode-se somar, multiplicar ou dividir. É mais útil que um contável.
-Eu gostaria de aprender a usá-lo. -Benedict ergueu a vista, com acanhamento-. Sempre me interessaram estes temas.
-Sério?
-Sim. Alice me ensinou tudo o que sabe de cálculos mas, para falar a verdade, não é um campo que lhe interessou muito. Prefere a filosofia natural.
-Sei. -Observou a expressão do rapaz-. Benedict, acredito que já é hora de que jante no salão principal, com seu senhor e os outros homens do castelo. Hoje, no almoço, apresentará-se aqui em baixo.
Benedict ergueu o olhar com presteza.
-Comer com você, senhor? Mas a Alice acha melhor que comamos em nossas quartos.
-Alice pode fazer o que gostar. Mas você é um de meus homens, e comerá com todos nós.
-Um de seus homens? A idéia o assombrou.
-Sua irmã é minha prometida, e vive aqui, em Scarcliffe -repôs Hugh, sem muito ênfase-. Isso o converte em membro de minha casa, não é assim?
-Não tinha considerado desse modo. –Os olhos do moço expressaram uma tímida ansiedade-. Tem razão. Farei o que me ordenou, senhor.
-Magnífico. E falando de Alice, onde está sua irmã?
-Foi à aldeia a falar com a madre Joan. Benedict levantou o ábaco com gesto reverente.
-Foi sozinha?
-Sim.
-Disse quando voltaria?
-Disse que demoraria. -Moveu com cuidado uma das contas vermelhas sobre uma magra varinha de madeira.- Parece-me que disse algo de procurar mais pedras para a coleção.
Hugh ficou carrancudo.
-Pedras?
-Sim. Pensa que encontrará algumas interessantes nas cavernas do escarpado.
-Por todos os diabos. -levantou-se de um salto e rodeou o escritório-. Sua irmã vai me deixar louco.
-O tio Ralf também estava acostumado a dizer isso.
Hugh não lhe deu atenção, pois já estava na metadedo corredor, dirigindo-se à escada.
-Como verá, lady Alice, há muito que fazer aqui. -Com um gesto, Joan abrangeu não só o jardim do convento onde estavam mas também toda a aldeia-
Durante os três anos que fui madre fiz o que pude, mas sem um bom amo para governar estas terras, foi difícil.
-Entendo-o, senhora.
Alice contemplou os jardins. Várias freiras regavam e preparavam a terra para o inverno.
A caminhada pela aldeia foi uma experiência notável. Uma ampla variedade de pessoas a tinham saudado. Granjeiros que interrompiam o trabalho para fazer respeitosas reverências. Meninos pequenos que jogavam e lhe sorriam com acanhamento ao passar. A cervejeira saiu à porta da cabana a lhe oferecer uma jarra de cerveja. O ferreiro a olhou, radiante, do outro lado da forja incandescente. A esposa do moleiro lhe deu um pão, que lhe entregou orgulhoso Jovem John, seu filho.
Alice percebeu que esse dia, sobre o Scarcliffe, abatia-se uma atmosfera de expectativa. Os habitantes acreditavam que a lenda se tornou realidade ou, ao menos, estava em caminho de cumprir-se. O verdadeiro senhor estava com eles. A maldição estava a caminho do fim e tudo iria terminar bem.
Sentiu uma ponta de remorso quando, inclusive a sincera e bondosa Joan se dirigia a ela como se, na verdade, fosse a futura senhora do feudo.
A freira tinha razão: havia muito que fazer ali. E Hugh se ocuparia de que se fizesse. Cuidaria dessas terras, pois seu próprio futuro estava ligado a elas.
Mas não estava do todo segura de poder arriscar-se a unir seu próprio futuro ao de Hugh e a Scarcliffe. "Não se considerava covarde -pensou-. Ah, mas até agora nunca tinha estado em jogo meu coração."
Em um convento grande e fechado, a vida seria muito mais simples e serena. Muito mais propícia para o estudo da filosofia natural.
-Essa absurda lenda não ajudou em nada. -Joan abriu caminho por um dos atalhos do jardim-. Foi um grande problema tê-la pendente sobre nossas cabeças todos estes anos. Eu gostaria de dizer um par de coisas ao idiota que a inventou.
Alice lhe lançou um olhar, surpreendida.
-Você não acredita na lenda...
-Não, mas sim o povo de Scarcliffe. Admito que, quanto mais tempo passava sem que houvesse um senhor enérgico, mais evidencia tinha a realidade da maldição.
-Dá-me a impressão de que as lendas têm sua própria vida.
-Sim. -Joan fez uma careta ao deter-se perto da parte dahorta onde trabalhava sozinha a freira alta-. Ao final, começamos a sofrer os ataques de bandidos e ladrões, pois não havia um senhor que contasse com um grupo de cavalheiros fortes para protegernos
-Agora que lorde Hugh é o amo de Scarcliffe, os bandidos já não causarão problemas -assegurou-lhe Alice, com grande confiança.
A freira alta interrompeu o trabalho e se apoiou na enxada. Sob a touca, os olhos eram escuros e lúgubres.
-Há outras calamidades tão ruins como a praga dos ladrões. A maldição é real, lady Alice. Lorde Hugh logo saberá.
Joan pôs os olhos em branco.
-Não lhe faça caso à irmã Katherine, milady. Embora seja uma curadora perita, está acostumada a não ver outra coisa que maus presságios.
Alice sorriu para Katherine.
-Se você crê na maldição, sem dúvida estará contente de que tudo esteja bem outra vez. A lenda se cumpriu.
-Ora. Não me importa nada a lenda do cristal verde ou a das Pedras de Scarcliffe –murmurou Katherine-. Esse é um conto para meninos.
-E o que é o que a preocupa? -perguntou Alice.
-A verdadeira maldição sobre estas terras é a inimizade entre Rivenhall e Scarcliffe. A traição e o crime resiste como uma infecção que não pode curar-se.
-Suponho que se refere à antiga inimizade entre os dois feudos -disse Alice.
Katherine vacilou, evidentemente surpreendida. -Você sabe?
-Sim, lorde Hugh me contou essa triste história. Mas se teme que haja uma guerra entre Rivenhall e Scarcliffe por causa dessa inimizade, pode ficar tranqüila. Não haverá violência entre ambos os feudos.
Katherine sacudiu a cabeça com ar sombrio.
-As sementes da vingança se plantaram no passado, e deram origem a uma erva daninha que envenena estas terras.
-Não. -Alice começava a irritar-se com a visão pessimista da -. Acalme-se, irmã. Lorde Hugh me assegurou que não haveria violência. Disse-me que tanto ele como sir Vincent emprestaram juramento ao mesmo suserano, Erasmus de Thornewood. Este lhes proibiu que se lançassem em qualquer briga mais sangrenta que uma justa ocasional.
-Dizem que Erasmus de Thomewood está morrendo. -A mão de Katherine se apertou ao redor ddo cabo da enxada-. Quando tiver desaparecido, quem conterá a sir Vincent e a sir Hugh? Tanto Scarcliffe como Rivenhall estão muito longe de seus respectivos centros de poder. Os senhores destas terras ficarão livres, como cachoros quando lhes soltaram das correias. Avançarão diretamente um ao pescoço do outro.
-Esse é um bom argumento da irmã Katherine. -Joan franziu o cenho-. Sempre pensei que o fato de estar tão afastados era uma das poucas coisas boas destas terras. É mais seguro viver longe de homens que dirigem exércitos e que se preocupam com quem está no trono. Mas isso significa que dependemos de lorde Hugh para manter a paz.
-Ele o fará -insistiu Alice.
Não sabia por que se sentia impulsionada a defender as boas intenções de Hugh. Talvez fosse porque o conhecia melhor que estas mulheres, e queria que lhe tivessem confiança.
-Nunca haverá paz entre Scarcliffe e Rivenhall -murmurou Katherine.
Alice pensou que era hora de trocar de tema.
-Irmã, é este sua plantação de ervas?
-Sim.
-Faz muitos anos que a irmã Katherine está conosco -disse Joan-. É perita em ervas. Todos, em algum momento, tivemos motivos para lhe dar obrigado por seus tônicos e poções.
-Minha mãe era curandeira -comentou Alice-. Era uma grande estudiosa do saber relativo às ervas. Tinha muitas ervas estranhas no jardim.
Katherine não fez conta, mas a olhou de frente.
-Quanto faz que está prometida a Hugh o Implacável?
-Não muito. E já não se chama Hugh o Implacável. Agora é Hugh de Scarcliffe.
-Quando se casarão?
-Na primavera -respondeu.
-Por que esperar tanto?
Joan a olhou com recriminação.
-Os planos de bodas de lady Alice não são assunto nosso, irmã.
Katherine apertou a fina boca.
-Um compromisso é fácil de romper.
-Não é verdade. -Joan estava francamente zangada-. O compromisso é um voto solene e sério.
-Mas não é um voto conjugal-replicou Katherine.
-Basta, irmã -disse Joan com severidade. Katherine calou-se, mas seguiu olhando com fixação a Alice.
Alice se ruborizou ante esse olhar.
-Lorde Hugh queria esperar até a primavera para casamos porque tem muitos assuntos importantes que deve atender imediatamente.
-Muito compreensível -disse Joan, com ardor-. Por favor, volte para suas tarefas, irmã. Lady Alice e eu seguiremos percorrendo os terrenos do convento. -Começou a caminhar por outro atalho, levando consigo a Alice-. Venha, mostrarei-lhe as oficinas onde fabricam vinho. Depois, gostaria de ver a biblioteca?
O rosto da Alice se iluminou. -OH, sim, eu adoraria!
-Espero que a aproveite. -Quando estavam fora do alcance dos ouvidos de Katherine, acrescentou em voz baixa-: Perdoe à curadora. É muito boa no seu, mas a melancolia a faz sofrer muito.
-Entendo. É uma pena que não possa curar-se a si mesmo.
-Toma um tônico feito de papoulas quando está de muito mau humor, mas além disso diz que não pode fazer-se muito mais por essa doença.
Alice franziu o sobrecenho.
-É preciso usar com cuidado as poções que se fazem com papoula.
-Sim. -A freira a olhou de soslaio, com interesse-. Dá-me a impressão de que conhece bem o tema. Seguiu você os passos de sua mãe, milady?
-Estudei a respeito de ervas, e conservei o livro de notas de minha mãe, mas quando ela morreu, voltei-me para outras coisas.
-Entendo.
-Considero-me uma estudiosa da filosofia natural. -deteve-se e contemplou os imponentes escarpados que se elevavam detrás da aldeia.
Csualmente nas últimas horas desta manhã, decidi seguir adiante com minhas investigações nesse tema.
Joan lhe seguiu o olhar.
-Pensa em explorar as cavernas?
-Sim. Nunca vi nenhuma. Deve ser muito interessante.
-Desculpe-me, senhora, mas não acredito que seja uma idéia sensata. Lorde Hugh sabe?
-Não. -Compôs um sorriso radiante-. Estava ocupado com negócios esta manhã. Preferi não incomodá-lo.
-Entendo. -A freira vacilou como se visse obrigada a dizer mais sobre o tema, mas logo desistiu-. Disse à irmã Katherine que estava convencida de que não haveria guerra entre os feudos do Rivenhall e Scarcliffe.
-Sim, o que acontece?
-Está segura? Estas terras sofreram muito, milady. Não sei se poderiam sobreviver a semelhante desastre. Alice riu.
-Não tema, lorde Hugh protegerá a Scarcliffe.
-Confio que tenha razão.
Interrompeu-se de repente, e olhou a um ponto por atrás de Alice.
Nesse instante, Alice ficou alerta. Sem voltar-se, soube que Hugh estava no jardim.
-Alegra-me muito saber que tem tanta fé em minhas habilidades, senhora -disse, com tom impassível-. E eu gostaria de poder ter a mesma fé em seu bom sentido. O que é isso que ouvi de que pensa explorar as cavernas de Scarcliffe?
Alice girou e o encontrou no atalho, detrás dela, grande e sólido como o mesmo castelo de Scarcliffe. O cabelo negro estava revolto pelo vento. Os últimos três dias, tinha-o visto muito pouco, mas cada vez que o encontrava tinha a mesma reação.
Cada vez que se topava com ele, até por um instante, sofria um forte impacto em seus sentidos. Seu pulso se acelerava e algo se enroscava no estômago. A lembrança da noite no Ipstoke, quando a acariciou de maneira tão íntima, fazia arder cada parte de seu corpo.
Pensando nesse apaixonado momento, não podia dormir bem. A noite anterior preparou uma beberagem quente de camomila para aquietar os sentidos. Pôde dormir, mas sonhou. Como sonhou...!
-Assustou-me, milorde. -Para dissimular a reação, olhou-o com ferocidade-. Não o ouvi entrar no jardim. Acreditava que esta manhã estava ocupado com as contas.
-Estava muito ocupado, até que soube que pensava se nefiar nas cavernas. -Saudou com um gesto a Joan-. Bom dia, senhora.
-Bom dia, senhor. -Joan passou o olhar do rosto severo de Hugh ao carrancudo de Alice, e outra vez a Hugh. Clareou a voz-. Possivelmente seja melhor que tenha vindo, senhor. Eu também estava um pouco preocupada com os planos de lady Alice. É nova aqui, e ainda não conhece os perigos do lugar.
-Claro -disse Hugh-. E no momento, o perigo maior ao que se enfrenta sou eu. –Pôs os braços na cintura-. Por todos os diabos, o que acha que está fazendo?
Alice não se deixou intimidar. -Só queria procurar pedras interessantes.
-Não tem que entrar sozinha nas cavernas. Nunca. Entende?
Alice segurou-lhe o braço, Como para acalmá-lo.
-Acalme-se, milorde. Sou bastante treinada no estudo da filosofia natural. Faz anos que coleciono espécimes interessantes. Não sofrerei nenhum dano.
Hugh enganchou os polegares no cinturão de couro. –Escute-me, Alice. Não pode sair sozinha dos limites da aldeia.A proíbo.
-Incomodaria-lhe me acompanhar? Seria bom um homem robusto para me ajudar a transportar os objetos interessantes que possa descobrir.
Por um par de segundos, o convite o deixou perplexo. Mas recuperou-se imediatamente e lançou ao céu plúmbeo um olhar desalentador.
-Logo choverá.
-Não acredito. -Alice também olhou-. Só está um pouco nublado.
Nos olhos do Hugh apareceu um brilho especulativo.
-Está bem, senhora, como é você a perita em filosofia natural, inclinarei-me ante seu julgamento. Acompanharei-a na expedição.
Dentro de Alice se agitou o regozijo, mas tratou de parecer indiferente, como se a decisão de Hugh não lhe importasse muito.
Joan pareceu aliviada.
-Tome cuidado de não esbarrar com o monge vagabundo enquanto percorre os arredores dos escarpados. Disseram-me que acampa em uma das cavernas.
Enquanto pegava Alice pelo braço, Hugh franziu o cenho.
-Por que Calvert do Oxwick dorme nas cavernas?
Embora mantivesse o rosto sereno, os olhos de Joan chisparam, divertidos.
-Porque eu me neguei a lhe dar uma cela no convento, sem dúvida. Na realidade, não há um lugar onde ele possa estender uma pele, exceto no castelo de Scarcliffe.
Parece que não se atreve a lhe impor hospitalidade, milorde.
-Melhor -protestou Alice-. Eu não gostaria que o castelo de Scarcliffe desse albergue a esse homem odioso.
Hugh ergueu as sobrancelhas mas não fez nenhum comentário. Então, Alice pensou que as decisões relacionadas com a hospitalidade do castelo correspondiam, por direito, a Hugh. Ela não era nem a verdadeira prometida. E tinha prometido a si mesmo que não se meteria nos assuntos domésticos.
-Bom -disse com vivacidade-. Será melhor que saiamos, milorde. O dia avança, não?
As primeiras gotas de chuva caíram quando começavam a ascender a costa rochosa por debaixo das cavernas.
-Por todos os Santos. -Alice colocou o capuz do manto-. Se não procurarmos refúgio nas cavernas, encharcaremos-nos.
-Disse que choveria. Agarrou-a pela mão e a arrastou rapidamente por volta da primeira abertura praticada nos escarpados.
-Você tem o costume de apontar quão infalível é em cada ocasião em que acerta em sua apreciação de uma situação?
Teve que correr ao mesmo tempo.
-Não. -A expressão de Hugh tornou-se suave e ria enquanto pocisionava Alice para que ficasse sob o teto de uma grande caverna-. Como quase sempre acerto, seria muito pouco agradável que o mencionasse cada vez que fica comprovado.
Olhou-o carrancuda um momento, até que prendeu sua atenção no cabelo de Hugh molhado pela chuva. Por algum motivo, ao vê-lo revolto, emoldurado contra o crânio bem formado, pareceu-lhe que sua aparência era muito diferente. Mais jovem, até um pouco vulnerável.
Ao sentir uma louca e súbita esperança, Alice conteve o fôlego. Se, de verdade, havia no Hugh certa ternura, certo grau de suavidade e vulnerabilidade, talvez pudesse aprender a amá-la.
A chuva começou a cair com toda sua força. ao longe, soou um trovão. Como se quizesse esmagar qualquer falsa ilusão de gentileza oculta, Hugh passou os dedos pelo cabelo molhado. Acomodou-o com descuido atrás das orelhas, deixando ao descoberto a testa alta, e as linhas severas das maçãs do rosto. Em uma piscada, voltou-se outra vez o homem capaz de suportar o peso de uma lenda.
Alice sorriu pensativa.
-Você é impossível, senhor.
Na boca de Hugh apareceu um ar de diversão. Olhou com curiosidade ao redor.
-Está aqui sua caverna, senhora.
Alice seguiu o olhar do homem e tremeu um pouco.
-Está um pouco escuro, não?
-As cavernas costumam ser lugares escuros -disse com secura.
A caverna era grande. As profundidades se perdiam na escuridão que cobria o extremo mais afastado. A luz cinzenta do dia chuvoso não chegava muito longe no interior da caverna. O lugar tinha uma atmosfera sempre úmida. Em algum lado, gotejava água sobre uma pedra.
-A próxima vez, tenho que me lembrar de trazer uma tocha -disse Alice.
-Sim. Não podemos ver muito sem uma, não?
-Não. -negou-se a admitir que a alegrava ter uma boa desculpa para não internar-se mais-. É uma pena que hoje não possamos prosseguir as investigações, mas não podemos evitá-la.
Hugh apoiou uma mão contra a parede rochosa, e dirigiu o olhar para a aldeia e os campos de Scarcliffe.
-Há um belo panorama daqui, até quando chove.
Alice viu o orgulho da posse nos olhos de matizes dourados.
-Nos dias claros, deve ver-se até muito longe.
-Até Rivenhall.
A enganosa suavidade do tom inquietou Alice, e recordou as palavras da curadora: "As sementes da vingança foram plantadas no passado, e deram origem a uma erva daninha que envenena esta terra".
Tentou se convencer de que não acreditava em lendas.
Contemplou a chuva e se perguntou por que essas palavras da curandeira soavam verdadeiras.
-E bem, Alice? -disse Hugh depois de uma pausa.
Não deu a volta para olhar, concentrado na paisagem que se estendia ante ele.
-E bem, o que, milorde?
Alice se inclinou para observar uma parte da pedra escura.
-Parece-me que já teve tempo suficiente tempo para a observação. Qual é sua conclusão?
Quando compreendeu o significado do que lhe dizia, imobilizou-se sobre a pedra escura. Abafou uma exclamação de desalento e se refugiou em um fingido mal-entendido.
-É uma pedra interessante, mas não acredito que seja pouco comum. Eu gostaria de encontrar uma amostra da que se usou para construir o castelo. Essa sim que é interessante. Nunca vi nenhuma.
-Não referia a essa maldita pedra, e sabe bem. -Dedicou-lhe um olhar breve e impaciente-Decidiu casar comigo?
-Por todos dos Santos, milorde, faz só três dias que me perguntou isso. E devo assinalar que nós dois estivemos muito ocupados nestes dias.
-Ocupados? Não tem feito grande coisa, salvo escolher aquele mordomo desajeitado.
-Elbert se converterá em um excelente mordomo -respondeu-. E como se atreve a me acusar de preguiça? Quase não tive tempo de pensar, para não mencionar um assunto tão importante como o matrimônio.
Por um momento, Hugh não disse nada. Depois, sentou-se em uma pedra, e apoiou os cotovelos nos joelhos. Manteve a vista fixa nas longínquas terras de Rivenhall, veladas pela chuva.
-Você odeia estas terras, Alice?
A pergunta a alarmou.
-Scarcliffe? Não, milorde, não as odeio.
-Parecem-lhe feias.
-Não, não é assim. Admito que não é uma paisagem suave, mas sim interessante e variada.
-Logo, Scarcliffe florescerá, eu me ocuparei de que assim seja.
-Não duvido, milorde.
-E o que me diz do castelo? Desagrada-te?
-Não. Como terá visto, tem aparência de força. É fácil de defender. -Fez uma pausa, pensando aonde quereria chegar-. E, para ser sincera, é mais cômodo por dentro do que parece.
-De modo que não tem objeções a faze-lo seu lar?
-Bom como já disse, não há nada que objetar no castelo.
-Alegra-me sabê-lo. -Levantou uma pedra e a jogou com descuido pela costa. Era um surpreendente gesto brincalhão, que não combinava com o aspecto severo do homem-. E depois, se descobrir que há algum problema com o castelo, me dirá e eu procurarei que resolva imediatamente.
-Sim, milorde, obrigada.
Viu que jogou outra pedra pela ladeira molhada. Perguntou-se que tipo de infância teria vivido Hugh. Sem dúvida, foi breve, como a sua própria. Um bastardo costumava assumir muito cedo a dignidade.
-De modo que o terreno não a desagrada, e o castelo a conforma -concluiu. .
-Sim, milorde -admitiu cautelosa-. Estou conformada.
-Então, não há motivos para romper o matrimônio, não é?
Exasperada, Alice levantou as mãos.
-Senhor, começo a entender por que o chamam Hugh o Implacável.
-Eu não gosto de perder tempo inutilmente.
-Asseguro-lhe que não estou perdendo o tempo, pois preciso aproveitar cada minuto. -sentou-se em um penhasco grande, perto da entrada da caverna, e abriu a bolsa que lhe tinha dado o filho do moleiro-. Quer um pouco de pão fresco?
Hugh olhou carrancudo o pão que Alice tirava do saco. -Está tentando mudar de assunto.
-Muito observador.
-Alice, não sou um homem muito dado a demoras nem hesitações.
-Estou verificando essa verdade, senhor. -Cortou uma parte do pão e o deu-. Mas nesta questão, temo-me que terá que ter paciência.
Hugh lhe cravou um olhar de caçador enquanto recebia o pão.
-Quanto tempo levará para decidir?
-Não tenho idéia.
Mordiscou, decidida, sua porção de pão.
Hugh arrancou um grande pedaço e o mastigou irritado.
Fez-se silêncio. E a chuva seguiu caindo pesada.
Depois de um momento, Alice relaxou. Ao que parecia, Hugh estava disposto a deixar de lado o tema do matrimônio, ao menos no momento.
Alice comeu outro bocado do pão e se permitiu desfrutar da companhia de Hugh. Era bom estar ali, só com ele, fingir que eram amigos e sócios, e que compartilhariam o futuro. Não havia nada de mau nessa fantasia.
-Elbert está fazendo um desastre no castelo -disse Hugh depois de um longo intervalo-. Talvez pudesse escolher a outro para fazer esse trabalho?
Alice afastou o sonho.
-Elbert aprenderá rápido. Eu entrevistei a vários candidatos para o posto e ele foi, com muito, o mais inteligente e disposto. Dê-lhe tempo, milorde.
-É fácil para você dizê-lo. Como janta sozinha em seu quarto, ainda não experimentou a aventura de comer no salão principal com todos nós. Asseguro-o que a supervisão de Elbert o converte em um sucesso inesquecível.
Alice o olhou.
-Se lhe desagrada jantar no salão principal, por que não faz como eu? Faça que lhe levem a comida a seu próprio dormitório. -Vacilou, mas logo adicionou-: Ou poderia fazê-lo comigo, milorde.
-Isso não é possível.
Alice sentiu que corava.
-Perdoe-me por sugeri-lo. Não quis intrometer-me.
Lançou-lhe um olhar irritado.
-Não compreende que um senhor deve fazer suas refeições em companhia de seus homens?
Alice estremeceu.
-Não vejo por que. A conversação vulgar e as brincadeiras grosseiras são suficientes para acabar com qualquer comida. Não tenho interesse no bate-papo odioso sobre armas e justas, nem sobre as glórias de batalhas passadas ou de caça.
-Não compreende. Um dos modos em que um senhor reafirma os vínculos entre ele e os que o servem é comer junto com eles. -Mastigou o pão-. Um senhor forte, está tão ligado aos que dependem dele como eles do lorde. Tem que lhes demonstrar que os respeita e que valoriza sua lealdade.
-E isso faz comendo com eles?
-Sim. É uma das maneiras de obtê-lo.
-Ah, entendo. -Sorriu, porque tinha compreendido de repente-. Perguntava-me como um homem inteligente como você podia tolerar as maneiras rudes tão habituais nos grandes salões.
-Acabamos nos acostumando.
-Acredito que eu nunca me acostumaria a comer qualquer comida com semelhantes conversações e atividades. Deve ser muito difícil para você confrontar o futuro sabendo que terá que fazer o mesmo sacrifício todos os dias de sua vida.
Por um instante, a raiva chispou nos olhos do Hugh.
-Não considero um grande sacrifício. Nem todos tem a sua fina sensibilidade. Para um cavalheiro, o bate-papo sobre armas e armaduras não é aborrecido. É trabalho.
-E as brincadeiras grosseiras, as gargalhadas e as maneiras lamentáveis de seus companheiros? Também desfruta com isso?
-Quando os homens se reúnen em volto da comida e da bebida, são bastante normais.
-É certo.
Mordeu outro bocado.
-Como já disse, comer no salão grande é uma questão de respeito e lealdade. -Hugh fez uma pausa-. Em quase todos os lares, a senhora come na mesa.
-Isso eu sei, mas não acredito que agrade a nenhuma dama.
-Faz-o por motivos similares aos que obrigam o senhor a jantar com sua gente.
Hugh falava entre dentes.
Alice deixou de mastigar.
-Por respeito e lealdade?
-Sim. senta-se junto ao senhor em presença do povo, para que todos vejam que ela o respeita e lhe é leal.
Alice inspirou e tratou de comer o bocado ao mesmo tempo, mas terminou cuspindo, ofegando e tossindo.
Hugh adotou uma expressão preocupada, e lhe deu umas enérgicas palmadas nas costas.
-Está bem?
-Sim -conseguiu dizer. Recuperou o fôlego e tragou várias vezes para livrar do bocado desviado-. Estou bem.
-Me alegro.
Outra vez se fez silêncio. Mas nesta ocasião, Alice não sentiu alívio, a não ser um estranho desassossego.
Talvez Hugh acreditasse que se negava-se a comer no grande salão por falta de respeito a ele. Perguntou-se se os homens de Hugh e outros habitantes do castelo a considerariam desleal.
-Alice, preciso que me diga com exatidão por que não se decide casar comigo. É o mais razoável, prático e lógico.
Alice fechou os olhos.
-Acreditava que, por hoje, tínhamos terminado com esse tema.
-Se me disser quais são suas dúvidas, poderei fazer algo para modificá-las.
Era muito, e perdeu a paciência:
-Está bem, milorde, serei concisa. Se me casar, prefiro que seja por verdadeiro afeto, não por eficácia e conveniência.
Hugh ficou imóvel, e seus olhos se cravaram nos da jovem.
-Afeto?
-Sim. Afeto. Minha mãe se casou com um homem que não queria dela mais que um herdeiro e alguém que dirigisse os assuntos domésticos. Esteve condenada a uma grande solidão, e não teve outra coisa que os estudos para consolar-se.
-Tinha seu irmão e a você.
-Não lhe bastávamos -disse com amargura-. Dizem que morreu pelo veneno mas, na realidade, acredito que morreu porque tinha o coração partido. Não cometerei o mesmo engano que ela.
-Alice...
-Prefiro a paz e a tranqüilidade do convento a um matrimônio vazio de carinho. Agora entende minhas dúvidas, milorde?
Olhou-a, preocupado.
-Quer que eu a corteje? Está bem, senhora, tentarei cortejá-la como é devido, mas advirto que não tenho muita experiência nessas questões.
Alice ficou de pé, totalmente exasperada.
-Milorde, está equivocado. Não quero um cortejo fingido. Pode guardar as flores e os poemas. Refiro-me ao amor. Isso é o que quero. Amor.
A compreensão iluminou os olhos do homem. Levantou-se e aproximou-se dela.
-Então, ao final das contas, o que quer é paixão. Fique tranqüila: isso não te faltará.
Cobriu a boca de Alice com a sua antes de que pudesse começar a exortá-lo com respeito a este grave equívoco.
Por uns segundos, Alice ficou em silêncio, até que de repente entendeu que a paixão bem poderia ser o que Hugh estava em condições de lhe dar nesse momento.
Também podia ser a emoção que o levasse ao amor. Colocou os braços em seu pescoço e respondeu ao beijo com todo o amor que tinha florescido em seu coração na primeira noite em que o conheceu.
Ao perceber que Alice se acalmava, Hugh sentiu que o regozijo o golpeava como uma enorme onda marinha. "Minha visão da situação era correta: a paixão é a chave para render a doce fortaleza", pensou. Alice o desejava. O desejo feminino era a especiaria mais rica e embriagadora.
Ajustou as mãos às curvas das nádegas firmes e redondas, e a ergueu alto, Contra seu peito. Sentiu que os braços da mulher lhe rodeavam o pescoço e a ouviu suspirar. Apertou-a com força contra si, para que sentisse sua masculinidade ereta.
-Milorde, tem um efeito surpreendente sobre meus sentidos. -Alice lhe beijou o pescoço-. Juro que não o entendo.
-Isso é o que os poetas chamam amor. –Retirou a rede tecida que lhe prendia o cabelo, deixando que as mechas acobreadas caissem pelos ombros.
Quanto a mim, sempre pensei que paixão é um termo mais honesto para expressar essa sensação.
Alice levantou a cabeça do ombro dele, e os olhos de ambos se encontraram um instante. Hugh acreditou que se afogaria nas profundidades esmeralda.
-Está equivocado. A experiência de minha mãe me ensinou que a paixão somente, não é amor. Mas começo a acreditar que podem estar vinculados.
Hugh esboçou um sorriso desdenhoso. -Confesso que não me interessa me enredar em uma discussão sobre o tema neste momento, Alice.
-Mas é uma distinção muito importante, milorde.
-Não, não tem a menor importância.
Silenciou-a com sua própria boca.
Não a soltou até que os lábios se abriram sob os seus, e Alice se pressionou a ele tão intensamente que acreditou que não poderia separar-se por sua vontade. Só então se afastou o suficiente para soltar a correia da espada e a túnica negra.
Enquanto deixava a túnica perto, Alice o observava com olhos brilhantes. Hugh se afligiu ao ver que lhe tremiam um pouco as mãos. Respirou profundamente para serenar-se, e estendeu a túnica no chão de pedra.
Essa simples tarefa lhe requereu uma enorme concentração e, quando terminou, ergueu-se e olhou a Alice do outro lado da cama improvisada. Viu as sombras nos olhos da moça, e um medo terrível retorceu as vísceras.
Mas logo, Alice lhe estendeu a mão com um sorriso trêmulo.
Hugh lançou um suspiro cheio de satisfação e alívio. Deitou-se sobre a túnica negra e puxou com suavidade Alice para ele. As saias se estenderam como espuma pelas coxas quando Alice se acomodou, morna e excitante sobre o peito do homem.
Enquanto o fazia, tinha os olhos cheios de preocupação.
-Milorde, ficará esmagado contra a pedra dura.
O homem riu.
-Nunca tive um colchão tão macio.
Alice lhe tocou a face com as pontas dos dedos, e ficou mais cômoda. Hugh gemeu quando as coxas redondas se apertaram mais contra seu membro rígido.
De repente, o desejo que havia nele se transformou em uma chama ardente. Sentiu que essa chama devorava os últimos vestígios de domínio que lhe restavam.
Alice o queria, e era sua prometida. Nada se interpunha. Nada importava mais que isso.
Hugh se submeteu à tormenta de fogo que ele mesmo tinha aceso. Apanhou o rosto dae Alice entre as mãos e a beijou com um ansia que já não podia dissimular. Para seu deleite, ela respondeu com entusiasmo embora desajeitada ao beijo abrasador. Ouviu uma exclamação abafada e quase riu quando os dentes de Alice se chocaram com os seus.
-Tranqüila, meu amor --disse dentro de sua boca-. Não faz falta que me trague inteiro. Terá tudo o que desejas de mim antes de que tenhamos terminado.
Alice gemeu e afundou os dedos no cabelo do homem.
Hugh acomodou a cabeça feminina em uma das mãos e com a outra lhe ergueu a saia. Deslizou a palma por toda a coxa nua até as curvas suaves mais acima.
Encontrou o vale que dividia as duas coxas e seguiu seu curso até a cascata quente que o aguardava.
-Hugh!
Acariciou-a com esmero, preparando-a para a penetração. Queria que delirasse de desejo para que não sentisse dor quando a possuísse, se acaso a machucasse. Queria que tudo fosse perfeito.
Um trovão estremeceu os céus. A chuva era uma cortina cinza frente à boca da caverna.
Quando Hugh desajeitadamente tirava a túnica de baixo e afrouxava os calções, Alice levantou um instante a cabeça para contemplá-lo com olhos nublados de paixão.
Por um momento, Hugh acreditou que ia lhe pedir que parasse, e seu coração quase parou. Com estranho desespero, perguntou-se se ao fazê-lo não o mataria imediatamente.
-Hugh.
Ouvir seu nome na voz doce fez seu sangue pulsar. A excitação o imundou. "A paixão mútua a seduziu por completo", pensou.
Seria uma boa estrategia fazer Alice acreditar que estava apaixonada.
Gemendo, esmagou-lhe a boca com a sua própria e moveu a mão entre as coxas da mulher. Os murmúrios extasiados de Alice eram mais doces que as tâmaras embebidas em mel; mais potentes que o elixir de um alquimista. quanto mais a saboreava, mais a desejava. Estava imerso em um desejo insaciável.
Levantou as saias de Alice até a cintura e lhe separou as pernas de modo que ficasse encaixada sobre ele. A fragrância desse corpo o encheu de uma ansiedade aterradora.
Livrou-se por completo dos calções e empurrou, até encontrar as pétalas úmidas e turgentes que ocultavam a entrada da cidadela secreta. Penetrou-a com um cuidado que levou ao limite o domínio de si. Sentiu-a iincrivelmente apertada ao redor de si. Foi como se abrisse passagem pela entrada estreita passo a passo de uma caverna.
Tal como supunha, Alice era virgem.
"Tenho que ser cuidadoso -disse-se-. Não devo me apressar para invadir este castelo."
O esforço para se controlar o fez apertar a mandíbula.
Atravessou lentamente mas com firmeza as frágeis barreiras, até que os dois corpos ficaram úmidos de transpiração. As unhas de Alice cravaram-se na túnica.
-Está bem?-disse, em um murmúrio rouco-. Lhe causo dor?
-Sim, um pouco.
Hugh fechou os olhos reunindo forças, reprimindo-se.
-Não quero que seja assim. Quer que me detenha?
-Não.
Exalou um breve suspiro de alívio. Para ser franco, não estava seguro de ter vontade suficiente para interromper o que tinha começado.
-Avançarei devagar -prometeu.
Alice afastou a abertura do pescoço da túnica de Hugh e lhe mordeu brandamente o ombro.
-Não quero que vá devagar. Quero terminar rápido com isto.
Hugh gemeu.
-Supõe-se que tem que ser algo prazeiroso, não algo que exija coragem.
-Interromperá-o quando lhe ordenar isso?
Hugh flexionou as mãos sobre os quadris da mulher.
-Possivelmente tenha razão. Será menos doloroso se o fizermos rápido.
-Então, faça-o.
Sem aviso, Alice afundou os dentes em seu ombro.
"Por todos os diabos!" Sobressaltado pela dor breve, aguda, e totalmente inesperada, Hugo a apertou sem avisá-la e, contendo o fôlego, empurrou para baixo.
Alice lançou um grito, mas o homem não podia retroceder embora tivesse querido. Os últimos restos de domínio sobre si foram feitos em pedaços igualmente à frágil barreira que guardava a castidade de Alice.
Soltas as amarras com que controlava boa parte de sua vida, Hugh penetrou profundamente , e esta se apertou com ferocidade ao seu redor, estreita e quente.
Lá fora, a tormenta chegou ao clímax. Ao longe, piscou um relâmpago. A chuva rugia sobre os escarpados de pedra. O mundo se reduziu à caverna onde esse homem e essa mulher jaziam juntos. "Não há nada mais que importasse-pensou Hugh-. Nada."
Ouviu que Alice gemia baixinho. Colocou a mão entre os dois corpos, encontrou o diminuto casulo tenso de carne feminina, e o tocou.
A moça ficou tensa e gritou. Delicados tremores a estremeceram.
Hugh se elevou uma e outra vez, afundando-se na estreita passagem, até que sentiu que o mundo girava ao redor. Um trovão sacudiu os escarpados, um alívio percorreu o interior do homem. Era uma liberação muito diferente de todas as que tinha experimentado. Pela primeira vez em seus trinta anos, soube o que era consumir-se de paixão. Entendeu por que os poetas queriam dar outro nome mais glorioso a essa intensa sensação.
Por um breve instante, acreditou compreender por que o chamavam amor.
Muito depois, Alice se moveu. Percebeu um definido ardor entre as pernas, mas sentiu um estranho contentamento. Uma parte dela contemplava o futuro com nova esperança.
Esse dia, com o Hugh, viajou a uma terra nova, fascinante. Estava segura de que a experiência que acabavam de compartilhar os ligaria. Abriu os olhos e o achou contemplando-a com olhar fixo. Parte do regozijo se esfumou, e compreendeu imediatamente que os sinais de ternura e vulnerabilidade que acreditou ter descoberto nele se evaporaram. O sombrio cavalheiro voltava a cobrir-se com o manto de sua própria lenda.
Os sonhos flamejantes do futuro se apagaram dolorosamente. "Devo ter paciência -disse-se-. Hugh não é o tipo de homens capaz de mudar da noite para o dia."
Tentou pensar em algo brilhante e fascinante que dizer, o que poderia dizer uma mulher em sua situação, uma mulher que acabasse de compartilhar um momento apaixonado com um cavalheiro legendário. Algo que lhe tocasse o coração, algo mágico.
Clareou a voz.
-Acredito que parou de chover, milorde.
-Está bem?
-Claro que sim. Por que não ia estar? Que pergunta mais tola.
A boca dura se curvou um pouco em um sorriso.
-Pareceu-me que, nestas circunstâncias, era correto perguntar.
A moça pensou que não devia ser muito mais perito que ela neste tipo de conversações, e isto a alegrou.
-Como meu comentário a respeito da chuva?
A expressão do homem se suavizou.
-Sim. -Fez-a sentar-se junto a ele, e franziu o cenho ao ver que fazia uma careta-. Alice!
-Não é nada, milorde. Tratou, com estupidez, de arrumar o vestido, mas antes de que pudesse acomodar as saias, Hugh lhe tocou a parte interna da coxa. ruborizou-se, envergonhada, quando retirou os dedos manchados de uma substância avermelhada.
Hugh olhou a mão.
-Alice, temos que conversar.
-Da chuva ou de minha saúde?
-Do matrimônio.
Alice interrompeu a tarefa de acomodar o vestido.
-Isto é muito, senhor. Uma coisa é que o chamem o Implacável, e outra muito diferente sentir-se obrigado a merecer o apelido a todo momento.
-Alice...
-Como te ocorre estragar um momento tão agradável voltando para nossa velha discussão, antes de que possa arrumar as saias?
-Um momento tão agradável? Isso foi para você?
Ruborizou-se.
-Não, milorde, mas imaginei que para você não representava outra coisa. Não me dirá que é a primeira vez que faz o amor com uma mulher. -interrompeu-se. A possibilidade de que fosse a primeira vez para os dois a alagou de uma felicidade radiante-. Ou sim?
Hugh entreabriu os olhos.
-É a primeira vez que faço amor com uma mulher a que estou prometido.
-Ah. -"É obvio que não é virgem -pensou-. Tem trinta anos, e é homem. E não está obrigado à castidade pela honra" -. Bom, não vejo por que tem que ser tão diferente.
Hugh lhe agarrou o queixo com o punho.
-Em momentos como este, a maioria das mulheres se alegrariam de falar de matrimônio.
-Eu preferiria falar do tempo.
-É uma pena, porque vamos falar de matrimônio.
"Até que aprenda a me amar, não", prometeu-se para si.
-Senhor, recordo-o que temos feito um trato.
-O que acaba de passar aqui o modificou, Alice. Está em jogo a honra.
Alice conteve o fôlego ao ver que a decisão resplandecia nos ambarinos olhos. Não manifestava emoções tenras, não falava de amor, nem mesmo de paixão. como sempre, Hugh escolhia o caminho mais direto para um objetivo. Não permitiria que nada se interpor, e menos até o coração de uma mulher. Seu esatômago se contraiu.
-Senhor, se pensou em fazer o amor comigo, como armadilha para me obrigar casar, cometeu um grave engano.
O homem pareceu alarmar-se, mas logo relampejou a cólera em seus olhos.
-Era virgem!
-Sim, mas isso não muda nada. Como nunca pensei em me casar, não tinha a obrigação de guardar minha virgindade para meu marido. Sou tão livre como você, senhor, e hoje decidi exercer essa liberdade.
-Maldição, é a mulher mais obstinada que conheci -explorou-. Talvez você seja livre, mas eu não. Nesta questão, estou obrigado por minha honra.
-O que tem que ver com isto a honra?
-É minha prometida. -Fez um gesto de indignação masculina-. E acabamos de consumar este matrimônio.
-Em minha opinião, não. A lei canônica não é muito clara neste aspecto.
-Pelos ossos do diabo, mulher! -vociferou-. Não me fale como se tivesse estudado os detalhes mínimos da lei em Paris e Bolonha. Pelo que falamos aqui é de minha honra. Neste sentido, tenho que aplicar meu próprio julgamento.
Alice piscou.
-De verdade, senhor, comporta-te como se estivesse muito alterado. Estou segura de que quando tiver podido acalmar os nervos...
-Meus nervos estão bem, obrigado. O que tem que preocupar-se, é minha cólera. me escute bem, Alice. Cruzamos o rio que separa o compromisso do matrimônio. Já não há margem que distinguir entre ambas as situações.
-Bom -replicou com recato-, quanto à legalidade, acabo de dizer que a lei é um tanto vaga neste sentido.
-Não, senhora, não é vaga absolutamente. Mais ainda, se pensa levar este assunto ante as Cortes da Igreja, asseguro-a que é isso que acontecerá.
-Meu senhor, é evidente que está muito excitado.
-E mais - acrescentou, com ameaçadora suavidade-, o diabo terá sua parte muito antes de que a Igreja comece a tratar seu caso. Explico-me com clareza?
Ante a franca ameaça, a decisão da Alice fraquejou. Tragou saliva e tentou reunir coragem.
-Senhor, advirto-lhe, não aceitarei que me intimide ou me obrigue a casar.
-É tarde para retroceder, Alice. Temos que seguir adiante com esta mudança de situação.
-Não, o trato se mantém. Ainda não me decidi. Mais ainda...
Algo se moveu na penumbra, ao outro extremo da caverna. Alice olhou por cima do ombro do Hugh, e o protesto morreu em sua garganta. Por um instante, o puro terror a deixou muda.
-Hugh!
Em uma piscada, estava de pé. O aço vaiou contra o couro quando tirou a espada da bainha e voltou-se para enfrentar-se à ameaça que se materializou atrás dele. Cobriu-o uma capa invisível de tensão própria do homem disposto para a luta.
Alice ficou de joelhos e espiou além de Hugh. Da escuridão de um túnel dissimulado emergiu uma silhueta encapuzada. Levava na mão uma tocha quase apagada.
-Saúdo-o, lorde Hugh -disse Calvert do Oxwick com essa voz rouca.
Hugh guardou de repente a espada na bainha. -Monge, que diabos está fazendo aqui?
-Estava ocupado com minhas preces. -Os olhos do sujeito ardiam nas sombras--. Ouvi vozes e vim ver quem tinha invadido as cavernas. Temia que fossem ladrões.
-Estava orando?
-Enfiou a túnica pela cabeça e ajeitou a correia da espada com movimentos práticos e velozes
- Em uma caverna?
Calvert deu a impressão de meter-se mais dentro do capuz.
-Encontrei um lugar no fundo destas cavernas, onde se pode orar sem as distrações do mundo exterior. Uma humilde câmara de pedra que se adapta bem às modificações da carne.
-Parece um lugar muito agradável -replicou Hugh, com secura-. Por minha parte, prefiro um jardim, mas cada um é livre. Não tema, monge. Minha prometida e eu não interromperemos mais suas preces.
Agarrou o braço de Alice e a tirou da caverna com a mesma graça arrogante que podia ter usado para acompanhá-la ao sair da câmara de audiências real.
Calvert não disse nada enquanto os via sair. ficou onde estava, na penumbra. De todo o corpo esquelético emanava a recriminação como um vapor quase evidente. Alice sentia seu olhar, ardendo de indignação, como se lhe queimasse as costas.
-Terá-nos visto fazendo amor, milorde? -perguntou, ansiosa.
-Não importa.- Claramente, a atenção de Hugh estava concentrada em escolher um caminho seguro para descer a ladeira. Dava a impressão de não conceder a menor importância a Calvert.
-Mas seria muito desagradável que difundisse falatórios.
-Se esse monge tiver um pingo de prudência, deixará a língua quieta. -Guiou a Alice ao redor de um grupo de matas-. E até se falasse do que nos aconteceu, quem se importaria? Estamos prometidos. apresentariam-se dificuldades só se negasse a cumprir a promessa definitiva de matrimônio.
-Não desperdiça nenhuma oportunidade de perseguir sua meta, não é assim?
-Faz muito compreendi que a decisão e a vontade são os únicos meios de chegar a meus objetivos. -Sustentou-a com firmeza quando as botas brandas escorregaram sobre umas pedras-. A propósito, tenho que viajar a Londres por questões de negócios. Estarei fora uns dias, no máximo, uma semana.
-A Londres? -deteve-se de repente-. Quando parte?
-Amanhã pela manhã.
-Ah. Alice sentiu uma inesperada pontada de desilusão. Ante ela se estendia, aborrecida, uma semana inteira sem o Hugh. Não haveria ferozes briga, nem momentos arrebatados de paixão, nem excitação.
-Como minha prometida, ficará encarregada dos assuntos aqui, em Scarcliffe, enquanto eu permaneça ausente.
-Eu?
Olhou-o atônita.
-Sim. -A expressão de Alice o fez sorrir -. Deixarei tudo em suas mãos. Estará segura. ficarão aqui Dunstan e todos meus homens menos dois para cuidar do castelo e as terras. Julián, meu mensageiro, também ficará. Se precisar me fazer chegar alguma mensagem, pode enviá-lo a Londres.
-Sim, milorde.
De repente, com o peso inesperado de novas responsabilidades, sentiu que a cabeça lhe dava voltas. Hugh lhe confiava o cuidado de seu prezado Scarcliff.
-Como nos casaremos quando eu voltar -adicionou Hugh, como quem não quer nada-, também poderia aproveitar o tempo e preparar para celebrar as bodas.
-Por todos os Santos, senhor, quantas vezes devo te dizer que não me casarei só porque este matrimônio lhe pareça eficaz e conveniente?
-Senhora, acredite em mim, a eficácia e a conveniência não são seus pontos mais fortes. Ah, outra coisa.
-O que, milorde?
Hugh se deteve. tirou-se do dedo o anel de ônix negro.
-Levará isto. É o emblema de minha autoridade. Ao lhe dar isso quero que compreenda que confio em você e a apóio como uma verdadeira esposa...
-Mas, Hugh...
-Ou uma sócia comercial sólida -terminou, com uma careta-. Tome, Alice. -O pôs na mão e lhe dobrou os dedos sobre a jóia. Por um instante, agarrou-lhe o pequeno punho-. Quero que lembre-se de algo que é de igualmente importante.
O coração da Alice deu um salto.
-O que
-Jamais deve entrar sozinha nestas cavernas. Entendeu?
Alice franziu o nariz.
-Sim, senhor. Deixe-me te dizer que fez bem em escolher a carreira de cavalheiro. Não teria êxito como poeta nem como trovador, pois não tem talento para as belas palavras.
Hugh ergueu os ombros. -Se necessitasse delas, recorreria a um poeta ou a um trovador talentosos.
-Sempre recorre ao mais perito, né, milord? Não é essa sua regra preferida?
-Alice, queria te perguntar uma coisa. Olhou-o.
-O que?
-Recentemente me disse que, como não pensava em se casar nunca, não se sentia obrigada a conservar a virgindade para um marido.
Alice contemplou a paisagem de Scarcliffe.
-E então?
O rosto duro do Hugh estava crispado.
-Se não achava motivo para evitar a intimidade física, por que a evitou até agora?
-Por uma razão óbvia, claro -respondeu, a contra gosto.
A expressão do Hugh era desconcertada.
-Qual é a razão óbvia?
-Até agora não encontrei a um homem que me atraísse. Afastou-se colina abaixo, deixando que Hugh a seguisse.
Alice dava voltas ao cristal verde entre as mãos. Pela centésima vez, observou como a luz que entrava pela janela do estudio se movia pela superfície lavrada. Como sempre, teve a sensação de que havia algo nessa pedra que não compreendia.
Era como se albergasse um segredo que esperasse ser descoberto por ela.
A mesma sensação tinha com respeito a Hugh.
"Teria que me alegrar de me liberar de sua presença por uns dias -disse-se-. Poderei pensar em paz e com tranqüilidade, e talvez possa chegar a uma sábia decisão."
Tirou-a dos pensamentos um golpe brusco na porta do estudio.
-Entre.
-Alice? -Apareceu a cabeça de Benedict pela porta. Tinha o semblante radiante de excitação-. Não imagina o que passou.
-O que?
-Vou viajar a Londres com sir Hugh. –A bengala tamborilou o chão com impaciência à medida que Benedict entrava na habitação. Levava o ábaco de Hugh metido em um saco, no cinturão-. Londres, Alice!
-Invejo-o. -Alice compreendeu que fazia meses que não via resplandecer desse modo o rosto de seu irmão. e também que essa mudança súbita se devia ao Hugh-. É muito afortunado. Será uma experiência maravilhosa.
-Sim. -Balançou o fortificação e se esfregou as mãos contente--. Devo ajudar a lorde Hugh nos negócios.
Alice estava atônita.
-De que maneira? Não sabe nada de negócios.
-Disse que me ensinará tudo o que se refere ao comércio de especiarias. Serei seu assistente. -Assinalou o ábaco-. Já começou a me ensinar a usar este instrumento assombroso. Pode-se somar, subtrair e até multiplicar e dividir com ele.
-Quando disse lorde Hugh que o levaria com ele a Londres? -perguntou-lhe, marcando as palavras.
-Recentemente, quando estávamos jantando no salão.
-Entendo. -recordou algo-. Benedict, queria te perguntar algo, e tem que me responder com franqueza.
-Sim.
-No salão principal, comentou-se algo a respeito de que eu não janto ali?
Benedict ia falar, mas mudou de idéia. -Não.
-Está seguro? Ninguém disse que era uma falta de respeito para lorde Hugh que eu não comesse com outros?
Benedict se removeu, incômodo.
-Sir Dunstan me disse que ontem um homem fez um comentário a respeito. Lorde Hugh o ouviu e o tirou do salão.
Sir Dunstan diz que ninguém mais se atreverá a falar mais disso.
Alice apertou os lábios.
-Mas, sem dúvida, pensarão-o. Hugh tinha razão.
-No que
-Não importa. -levantou-se-. Onde está?
-Quem, lorde Hugh? Acredito que está em seus aposaentos. Disse algo a respeito de se despedir do Elbert, o novo mordomo.
-Disse isso? -Alice esqueceu a intenção de desculpar-se ante o Hugh por qualquer humilhação que pudesse lhe haver infligido-. Não pode fazê-lo. Não o permitirei. Elbert chegará a ser um mordomo perfeito.
Benedict fez uma careta.
-Hoje, ao servir a lorde Hugh, conseguiu derrubar uma jarra de cerveja em seu colo.
-Sem dúvida foi um acidente. -Deu a volta a mesa e foi para a porta-. Tenho que solucionar isto.
-Alice, possivelmente faria bem em deixá-lo tranqüilo. Ao final de contas, o amo aqui é lorde Hugh.
Alice não fez caso da advertência de seu irmão. recolheu as saias e correu pelo corredor para a escada. Quando chegou ao piso inferior, girou rapidamente e foi diretamente pelo corredor ao quarto onde Hugh atendia os assuntos comerciais.
Alice se deteve na entrada e olhou no interior do aposento. Elbert estava ante a mesa de Hugh, tremendo. Tinha a cabeça encurvada; um gesto que refletia a reprimenda sofrida.
-O p-peço perdão, milorde -murmurou Elbert-. Esforcei-me muito por cumprir minhas tarefas como me ensinou lady Alice. Mas não sei o que me passa cada vez que estou em sua presença.
-Elbert, eu não quero lhe tirar de seu posto –disse Hugh com firmeza-. Sei que lady Alice o escolheu. Mas já não suporto mais sua estupidez.
-Milorde, se me desse outra oportunidade... -começou a dizer.
-Acredito que seria uma perda de tempo.
-Mas, senhor, desejo muito ser mordomo. Estou sozinho no mundo, e preciso ter uma carreira.
-Entendo. Mas de todos os modos...
-Este castelo é meu único lar. Minha mãe viveu aqui, em Scarcliffe, quando meu pai morreu. Queria entrar em um convento, sabe? Encontrei lugar nesta casa com o último amo, sir Charles. Mas o mataram, e veio você, e...
Hugh interrompeu a explicação.
-Sua mãe está no convento da região?
-Estava. Morreu no inverno passado. Não tenho onde ir.
-Não será obrigado a partir de Scarcliffe -tranqüilizou-o-. Encontrarei outro posto. Possivelmente, nos estábulos.
-Os est-estábulos? -Elbert se mostrou abatido-. Mas tenho medo dos cavalos, milorde.
-Será melhor que domine logo essa ansiedade -respondeu, sem a menor simpatia-. Pois os cavalos percebem o medo.
-Sim, milorde. -Os ombros de Elbert estavam cansados-. Tentarei-o.
-Não, não fará tal coisa, mordomo. –agarrando as saias, Alice entrou em pernadas na habitação-. Cobre todos os requisitos para o posto atual, e isso é o que fará. Só necessita um pouco de prática e experiência.
Elbert virou-se para ela, com expressão de medo nos olhos.
-Lady Alice.
Hugh a olhou.
-Eu me ocuparei disto, senhora.
A moça foi até a mesa e se inclinou tanto que o vestido se penseu sobre o chão de pedra.
Fez uma graciosa reverência de súplica.
-Milorde, rogo que dê tempo a Elbert para adaptar-se a suas tarefas antes de despedi-lo.
Hugh levantou uma pluma e tamborilou distraído com ela sobre a mesa.
-Senhora, não sei por que, mas cada vez que a vejo desdobrar suas melhores maneiras, ponho-me em guarda.
A última vez que o fez, terminei chegando a um acordo que não me trouxe mais que problemas.
Alice sentiu que lhe ardiam as faces, mas não se intimidou.
-Elbert só necessita tempo, milorde.
-Já teve vários dias para adaptar-se ao trabalho, e não houve muitas melhoras. Assim como vão as coisas, terei que fazer várias túnicas até que termine o inverno
-Se fizer falta, eu me encarregarei das novas túnicas, senhor -repôs Alice-. O que atrapalha Elbert é o desejo de lhe agradar. -incorporou-se-. Estou segura de que necessita um pouco de instrução e mais prática.
-Alice-disse Hugh --. Não tenho tempo para isto. Há muito que fazer aqui. Não posso me permitir um mordomo mau preparado.
-Senhor, peço-te que lhe permita familiarizar-se com suas responsabilidades enquanto esteja em Londres. Eu mesma lhe ensinarei a realizar as tarefas. Quando voltar, poderá avaliá-lo outra vez. Se ainda o achar deficiente, poderá despedi-lo.
Hugh se reclinou com lentidão na cadeira e a contemplou por debaixo das pestanas.
-Outro trato, senhora?
Ruborizou-se:
-Sim, se estiver de acordo.
-Desta vez, o que tem que oferecer?
Ao ver o brilho nos olhos do homem, Alice conteve o fôlego. A indignação arrasou com as boas maneiras.
-Ofereço formar um bom criado, senhor. Penso que isso é suficiente.
-Ah. -Esboçou um debil sorriso-. Essa atitude se parece mais à dama que conheço. Está bem. Tem os próximos dias para converter ao Elbert em um professor em seu ofício. Quando voltar, espero que esta casa esteja dirigida por um perito. Entendido?
-Sim, milorde.
Sorriu confiante.
-Elbert?-perguntou Hugh.
-S-im, milord. -Fez várias reverências-. Praticarei com empenho, senhor.
-Esperemos que sim.
Elbert se ajoelhou ante a Alice, agarrou-lhe a prega da saia e a beijou com ardor.
-Obrigado, milady. Não posso dizer quão agradecido estou a senhora por sua confiança em mim. Esforçarei-me ao máximo e terei êxito em meu encargo de me converter em um grande mordomo.
-Será-o -assegurou-lhe Alice.
-Basta -disse Hugh-. Saia, mordomo. Quero estar a sós com minha prometida.
-Sim, milorde.
Elbert se levantou de um salto e foi para a porta fazendo reverências.
Quando tropeçou com a parede, Alice fez uma careta. Viu que Hugh erguia os olhos ao céu, mas não dizia nada.
Elbert se endireitou de repente e fugiu.
Alice se voltou para o Hugh.
-Obrigado, milorde
-Trata de impedir que destrua todo o castelo enquanto estou ausente.
-Estou segura de que o castelo do Scarcliffe estará em pé quando voltar. -Alice vacilou-. Inteirei-me que pensa em levar meu irmão.
-Sim. Acredito que Benedict tem talento para os números. Vem-me bem um assistente com essa destreza.
-Tinha pensado que estudasse leis -disse Alice lentamente.
-Opõe-te ao interesse de seu irmão pela contabilidade e o comércio?
-Não. Para ser sincera, fazia muito tempo que não o via tão feliz como esta tarde. -Sorriu-. É teu mérito, milorde.
-Não tem muita importância. Repito-te: convém-me incentivar suas destrezas. Serão-me úteis. –Passou a pluma entre os dedos, alisando-a-. Alice, sentirá minha falta enquanto eu estiver em Londres?
Adivinhando uma armadilha, Alice retrocedeu rapidamente e lhe dirigiu um radiante sorriso.
-Isso me recorda a que devo avisar à madre Joan. Quero que na missa de amanhã pela manhã se digam preces especiais.
-Preces especiais?
-Sim, milorde. Por uma boa viagem.
Deu a volta e saiu do escritório.
-Parece-me que não presta atenção ao jogo, senhor. Comerei seu bispo.
Hugh olhou o tabuleiro de cristal negro com expressão pensativa.
-Isso parece. Foi um movimento ardiloso, senhora.
-Foi um jogo de meninos.
Alice o observou com crescente preocupação,
Pareceu-lhe que atuava de maneira estranha. Tinha-a convidado para jogar com ele uma partida de xadrez frente à chaminé e Alice aceitou entusiasmada. Mas, desde a primeira jogada, era evidente que tinha a cabeça em outra lugar.
-Vejamos se posso me recuperar.
Apoiou o queixo na mão e observou o tabuleiro. -Os preparativos para a viagem estão em ordem. Amanhã, poderá partir logo depois da missa. O que o preocupa, senhor?
Hugh lhe lançou um olhar fugaz e ergueu um pouco de ombros.
-Estou pensando em meu suserano.
-Sir Erasmus?
-Tenho intenções de visitá-lo quando estiver em Londres. Julian me contou que foi ali a consultar a mais médicos.
-Sinto muito -murmurou Alice.
Hugh apertou a mão em um punho.
-Não se pode fazer nada mas, por Deus, faz uns meses parecia tão forte e são...
Alice fez um gesto de simpatia.
-Sei quanto o sentirá falta de.
Hugh se reclinou e ergueu a taça de vinho especial. Fixou a vista nas chamas.
-Tudo o que tenho hoje o devo a ele. Meu título de cavalheiro, minha instrução, minhas terras. Como se devolve semelhante favor?
Essa noite, Alice interrompeu o movimento de uma peça de xadrez, de pesada calcedonia negra, e olhou, carrancuda, ao Hugh.
-Com lealdade. e todo mundo sabe que a guardas a sir Erasmus, senhor.
-É pouco.
Bebeu um gole. À luz das chamas, a cara parecia sombria.
Alice disse em tom dúbio:
-Quais são os sintomas, senhor?
-O que?
-Os sintomas da grave enfermidade. Quais são, exatamente?
Hugh franziu o cenho.
-Não estou muito seguro. Alguns são imprecisos. sobressalta-se com facilidade, como se fosse uma lebre medrosa em lugar de um guerreiro experiente. É o que mais me chamou a atenção a última vez que o vi. Agora, está sempre ansioso. Não pode dormir. Emagreceu. Contou-me que, às vezes, o coração lhe pulsa como se estivesse correndo.
Alice ficou pensativa.
-Um homem da fama de sir Erasmus deve ter participado de muitas batalhas.
-Assim é, começando pelas Cruzadas, nas que participou quando tinha dezoito anos. Uma vez me contou que sua viagem a Terra Santa foi o pior de toda sua vida, embora lhe brindou glória e riqueza. Disse que viu coisas terríveis ali, coisas que nenhum homem decente deveria ver.
Alice recordou até muito tarde as palavras do Hugh. Como não podia dormir, levantou-se da cama e colocou o robe.
Acendeu uma vela e saiu da habitação sem fazer ruído. Caminhou brandamente pelo corredor frio até seu próprio estudio e entrou. Apoiou a vela na mesa, perto do cristal verde, e estirando-se, tomou o livro de notas de sua mãe, que estava na prateleira.
Leu-o uma hora, até que encontrou o que procurava.
-É a debilidade natural da mulher a que a leva a tentação -vociferou Calvert do púlpito da pequena igreja da aldeia à manhã seguinte-. Em sua estúpida arrogância, procura elevar-se por cima do homem em toda ocasião, e assim põe sua alma em perdição.
A multidão que enchia a igreja se removeu, incômoda. e Alice, em meio desse movimento ondulante, sentiu-se furiosa. Não tinha estado tão zangada desde o dia em que sir Ralf instalou seu filho mais velho no imóvel de sua família.
Esse estúpido sermão de Calvert não era o que ela tinha pedido para o serviço matinal. No dia anterior, mandou uma mensagem à madre Joan lhe dizendo que queria preces especiais dedicadas à viagem de Hugh a Londres.
Difundiu-se rapidamente a notícia de que o novo lorde e sua prometida assistiriam à missa matinal na igreja da aldeia em lugar da capela privada do castelo. Quase toda a população da diminuta aldeia do Scarcliffe e as freiras do convento pretendiam desfrutar do sucedido. Não era todos os dias que podiam rezar em companhia do senhor do feudo.
Alice, sentada junto a Hugh na primeira fila, estava satisfeita com a mudança até que veio o desastre, na forma de Calvert do Oxwick.
Joan acabava de terminar as primeiras orações e começava uma formosa narrativa sobre os perigos do caminho quando o monge irrompeu na igreja.
Calvert bateu com a bengala no chão de pedra enquanto se abria passo até a frente da multidão. A vestimenta castanha ondulou ao redor dos pés calçados com sandálias. Quando chegou ao púlpito, ordenou a Joan que se sentasse junto com as freiras. A madre vacilou, mas depois obedeceu com os lábios apertados. A Igreja insistia em que, se havia um homem, fosse ele quem se instalasse depois do púlpito.
Calvert se acomodou depois do suporte de livro de madeira e se lançou a um sermão contra os demônios das mulheres.
Era um tema bastante trilhado, que era familiar a todos os pressente. Os sacerdotes visitantes e os monges originais eram muito adeptos aos sermões que reprovavam às mulheres e advertiam aos homens da tentação que representavam.
-Vocês, frágeis pecadoras, filhas de Eva, saibam que sua única esperança de salvação consiste em lhes submeter a seus maridos. Devem aceitar o poder deles sobre vocês, pois isto é o que ordena o Divino Criador.
Alice se encolerizou, e olhou ao Hugh de lado. Parecia aborrecido. A moça cruzou os braços e começou a golpear com o pé no chão.
-Os fogos do inferno queimam mais às mulheres fracas que se atrevem a elevar-se acima dos homens.
As mulheres suportavam o sermão do monge com desgosto mau encoberto. Já o tinham ouvido antes, muitas vezes.
Joan se moveu um pouco no assento e se inclinou para lhe sussurrar a Alice:
-Peço-lhe desculpas, senhora. Sei que não é esta a classe de prece que queria esta manhã.
-Atrevem-se a falar em voz alta na igreja -trovejou Calvert-, sem preocupar-se de que os homens virtuosos não querem ouvir o barulho de suas línguas. Regem as casas religiosas assumindo a autoridade, como se tivessem os direitos e privilégios dos homens.
Alice o olhou com os olhos entreabertos. O sujeito continuou, como se não visse a fúria que provocava ou como se não lhe importasse. Seu olhar penetrante se cravou nela.
-Algumas, entregam-se a práticas luxuriosas com os cavalheiros mais nobres e fortes. Pobre do homem que escuta os sussurros de semelhante mulher. Descobrirá que se enfrequece. Descobrirá que está a mercê dessa fêmea, e que isto é trabalho do demônio.
Alice paralisou ao compreender que o monge fazia alusões pessoais.
-Empregará as partes sujas de seu corpo pecaminoso para atrair à vítima a lugares ocultos. Ali, cairá sobre ele como um morcego na noite.
-Por todos os Santos -murmurou Alice.
Já havia resposta para uma pergunta: Calvert a tinha visto em cima de Hugh na caverna. A vergonha se perdeu em uma corrente de ira.
-Tomem cuidado. -Calvert olhou para Hugh-. Todos os homens estão em perigo. Para que conserve seu autêntico lugar na ordem natural do mundo, terá que estar sempre alerta. Deverá usar armadura contra as mulheres, do mesmo modo que se veste de aço para ir à guerra.
-Basta! -Alice se levantou de um salto-. Não quero ouvir mais esta estúpida mensagem, monge. Pedi preces para a viagem de meu futuro esposo e não este absurdo.
Entre os presentes correu um murmúrio escandalizado. Todas as cabeças se voltaram para Alice. Pela extremidade do olho, viu que Hugh sorria.
-A mulher a que o homem não manda como é devido é uma afronta a todos os homens honestos em qualquer lugar. -Calvert lançou um olhar ao Hugh, como esperando ajuda de sua parte-. É dever do marido controlar a língua da esposa.
Hugh não se moveu. Observava a Alice com enorme interesse e com um olhar de fria diversão.
-Saia do púlpito, Calvert do Oxwick -ordenou Alice-. Não gostamos de escutar aqui seus sermões. Difama e critica todas as boas mulheres desta aldeia e do convento com o veneno de suas palavras. Calvert a apontou com um dedo acusador:
-Me escute -exclamou, com voz trêmula de ira-. O veneno que menciona é um antídoto contra a maldade de sua natureza feminina. Faria bem em tomar como remédio eficaz, e salvar assim sua alma imortal.
-Confiarei minha alma a aqueles que compreendam o verdadeiro sentido da compaixão divina, monge, não a você. Quero que se vá hoje mesmo desta igreja e desta aldeia. Não tolerarei estes insultos.
O rosto do Calvert se contraiu de fúria. -O cabelo vermelho e os olhos verdes testemunham sua natureza indômita, senhora. Só posso rogar que seu futuro amo e senhor esmague esse caprichoso temperamento antes de que provoque graves danos a sua casa e a sua alma.
-Lorde Hugh pode se cuidar sozinho -replicou_. Vá-se, monge.
-Eu não aceito ordens de uma simples mulher.
Hugh se moveu. Foi um movimento muito leve, apenas uma mudança de posição dos ombros poderosos, acompanhado de um aumento da frieza nos olhos, mas foi suficiente para atrair a atenção de todos os presentes.
-Aceitará as ordens desta mulher -disse com muita calma-. É minha prometida. O anel que leva no dedo é sinal de autoridade. Uma ordem dela é igual a minha.
Um aaah de satisfação se estendeu pela pequena igreja. O povo de Scarcliffe captou imediatamente o que o senhor queria dizer: o poder de Alice ficou firmemente estabelecido.
-Mas... mas... milorde -resmungou Calvert-, não pensará entregar este púlpito a uma mulher.
-Já ouviu minha noiva -disse Hugh-. Saia daqui, monge. Minha senhora prefere ouvir outras preces que não sejam as suas.
Por um momento, Alice temeu que sofresse um ataque. Movia a boca, tinha os olhos esbugalhados e tremia todo o corpo como se se contraísse cada músculo.
Do público se elevou uma onda de expectativa.
E então, sem dizer uma palavra, Calvert agarrou o bengala e saiu precipitadamente da igreja.
Fez-se silêncio. O povo reunido olhava maravilhado, para Alice, que estava de pé. Hugh a observava como se tivesse curiosidade por ver o que faria a seguir.
Alice estava aturdida, não pelo que tinha feito mas sim porque Hugh a tinha apoiado com todo o peso de sua autoridade.
Compreendeu que essa atitude não constituía uma pequena indulgência mas sim ia muito mais à frente. Deixou claro a todos que, nesse território, Alice tinha poder. Era a segunda vez que demonstrava respeito para as decisões da jovem. A primeira ocasião foi a tarde do dia anterior, quando permitiu que Elbert seguisse sendo o mordomo. E agora, tinha desafiado a um representante da Igreja mesmo para respaldar a escolha de Alice quanto a quem pronunciaria as preces.
"Demonstrou-me um grande respeito", pensou, eufórica. Por certo, merecer tal grau de respeito de parte de Hugh o Implacável era um prêmio duramente conquistado. Só o brindava a aqueles nos que, de verdade, confiava.
-Obrigado, milorde-conseguiu murmurar.
Hugh fez uma leve inclinação de cabeça. A luz da manhã que entrava em correntes pelas janelas deu calidez aos olhos ambarinos.
-Possivelmente deveríamos prosseguir com as preces, senhora. Eu gostaria de partir antes do entardecer.
Alice se cobriu de um intenso rubor.
-Claro, milorde. -Olhou a Joan-. Por favor, continue, madre. Meu senhor e à companhia os espera uma longa jornada.
-Sim, milady. -Joan se levantou com uma graça que revelava sua origem nobre-. Terei supremo prazer em rezar para que sir Hugh tenha uma viagem segura. E que retorne logo. Estou segura de que todos os presentes sentem o mesmo.
Várias freiras dirigiram amplos sorrisos a Alice enquanto se deixava cair no banco. Quão única permaneceu séria foi Katherine. Alice pensou por um instante se estaria sofrendo um de seus ataques de melancolia.
Com ar aprazível, Joan voltou para frente da igreja. Concluiu o breve e alegre sermão aconselhando precaução nos caminhos e terminou com preces para que os viajantes chegassem sem contratempos.
Estas últimas foram pronunciadas em bom latim. Era muito duvidoso que alguém, além da Alice, Hugh, Benedict e as freiras entendessem o verdadeiro significado, mas mesmo assim, os aldeãos as desfrutaram.
Alice fechou os olhos e ofereceu sua própria prece.
Senhor Bem amado, cuida destas duas pessoas que amo tanto, e guarde bem aos que viajam com eles.
Uns minutos depois, deslizou a mão pelo banco de madeira, até tocar a mão de Hugh. Ele não olhou, mas seus dedos se apertaram com força em volto dos dela.
Instantes depois, os fiéis saíram pela porta da igreja para ver a partida. Alice ficou na escadaria e viu como montavam Hugh, Benedict e os dois soldados que os acompanhavam.
Distraída pela comoção que provocou Calvert, Alice quase esqueceu o presente de despedida de Hugh. No último momento se lembrou do molho de ervas e das indicações que tinha anotado.
-Um momento, milorde. -Colocou a mão em um saquinho que se dependurava do cinturão e correu para ocavalo de Hugh-. Quase o esquecia. Tenho algo para que dê a seu suserano.
Olhou-a de cima.
-O que é?
-Quando me descreveu os sintomas de sir Erasmus a outra noite, resultaram-me familiares. –Alcançou-lhe as ervas e a carta com instruções-. Minha mãe anotou esses sintomas em seu livro.
-Sério? Recebeu o pacote e o meteu na pequena bolsa que ele levava em seu cinturão.
-Sim. Uma vez atendeu a um homem com sintomas parecidos. Tinha sofrido grandes penúrias em batalha. Não posso assegurar que sir Erasmus padeça a mesma enfermidade que esse homem, mas talvez estas ervas o aliviem.
-Obrigado, Alice.
-Diga que tem que ordenar à curadora que siga as indicações da carta com grande precisão. Ah, e não tem que permitir que os médicos o sangrem. Compreende?
-Sim, senhora.
Alice retrocedeu, e deu um sorriso trêmulo. -Desejo-te boa viagem, milorde.
-Retornarei dentro de uma semana -prometeu--. Com um sacerdote para celebrar nosso casamento.
-Milorde, asseguro-lhe que não sei quem estava mais perplexo, se Alice ou o monge. -Montado em um robusto potro, Benedict sorriu-. Não é fácil surpreender Alice, sabe?
Hugh sorriu apenas. Pela insistência de Alice nas complicadas preces, partiram tarde, mas não o lamentava. Valeu a pena saber que lhe importava o suficiente para convocar toda a aldeia a pedir o amparo divino para os viajantes. Sabia que, sem dúvida, a principal preocupação era para Benedict, mas resolveu não permitir que o incomodasse.
Foi o tipo de despedida que faz desejar a volta o mais breve possível a seu lar. Hugh desfrutou ao saber que tinha seu próprio salão. E quase tinha uma esposa para completar o quadro. "Logo -disse- Muito em breve. Já quase parece."
Os dois soldados que acompanhavam a Hugh e Benedict cavalgavam para curta distância detrás deles com os arcos preparados se por acaso topassem com delinqüentes. Era uma possibilidade remota. Até os ladrões mais audazes vacilariam em atacar a quatro homens armados e com bons cavalos, um dos quais era, sem dúvida, um cavalheiro instruído. Se não os desalentava ver as armas, fariam-no as túnicas negras distintivas d Hugh.
Os foragidos não só eram covardes por si, além disso tinham a precaução de escolher a presa mais fácil.
Muito em breve Hugh deixou estabelecido que perseguiria a qualquer que se atrevesse a roubar aos que cavalgavam sob o amparo de sua bandeira ou da de Erasmus de Thornewood. Bastaram dois ataques para demonstrar que se podia acreditar nos juramentos do cavalheiro.
-Perguntava-me quanto tempo poderia tolerar sua irmã os desvarios de Calvert sem fazer nada –disse Hugh a Benedict-. Em realidade, surpreendeu-me que não falasse antes.
Benedict o olhou sentido saudades.
-Em outra época, não teria suportado essa situação nem um momento. Acredito que Calvert durou tanto esta manhã porque Alice estava insegura, senhor.
-Insegura?
-De suas prerrogativas. -Dava a impressão de que o moço escolhia as palavras com supremo cuidado-. Do grau de poder que tinha por ser sua noiva.
-Sua irmã está acostumada a exercer a autoridade.
-Isso é verdade. -Fez uma careta que só podia fazer um irmão menor-. Para ser justo, não teve muitas alternativas. Sabe você que teve que ocupar-se dos assuntos de meu pai durante anos.
-Sei que seu pai não passava muito tempo em suas propriedades. E sua mãe?
-Nossa mãe se conformava prosseguindo seus estudos. Com os anos, os trabalhos com as ervas se converteram no único que lhe importava. Fechava-se em suas habitações e deixava tudo nas mãos de Alice. -e Alice demonstrou ser excelente para desempenhar as tarefas.
-Sim, embora acredite que, em ocasiões, sentia-se sozinha. -Benedict ficou carrancudo-. Acredito que era muito jovem quando sentiu o peso da responsabilidade pela primeira vez.
-E depois ficou com a carga de reter o feudo de seu pai. .
-Foi a primeira vez que fracassou em cumprir o que considerava seu dever. -A mão do moço se esticou nas rédeas-. Não foi culpa dela. Carecia de poder para lhe fazer frente a nosso tio. Mas mesmo assim, sentiu-se culpada.
-Ela é assim.
Corrigiu-se para si: "Nós somos assim. Se eu tivesse tido um fracasso similar, também me sentiria arrasado, como me passa com o fracasso em vingar a morte de minha mãe".
-Não está em seu temperamento render-se ao destino. -Não, sua irmã é muito valente -disse Hugh, satisfeito.
-Sim, mas às vezes me preocupo muito por ela. -Lançou a Hugh um olhar inquieto-. Em ocasiões, a encontro de pé diante da janela de seu quarto, olhando para o nada. Se lhe perguntar o que lhe passa, só diz que nada, ou que teve um pesadelo durante a noite.
-Não deveria envergonhar-se pela perda do imóvel de seu pai. Sir Ralf me disse que liberou uma batalha muito valente para retê-la.
-Sim. -Recordando-o, Benedict sorriu-. Escreveu muitas cartas de reclamação. Quando teve que aceitar o fracasso, disse que era um ultraje. Mas imediatamente ficou a trabalhar para pôr em marcha o plano de me mandar a estudar leis e entrar ela mesma em um convento. Como vê, Alice sempre tem algum plano.
-Ela é assim.
-Parece-me que a compreende bem, senhor.
-Quem manda a outros deve entender o caráter daqueles a quem pretende mandar.
Benedict lhe lançou um olhar de aprovação.
-Acredito que Alice estaria de acordo com essa afirmação.
Parece-me que não esperava que você respaldasse sua autoridade como o fez hoje, senhor.
-Sua irmã é essa classe de pessoas que não está satisfeita se não tem responsabilidades e a autoridade que as acompanha. Necessita-o tanto como o ar que respira.
Benedict assentiu.
-Temos muito mais em comum do que ela supõe. Possivelmente quando retornarmos tenha começado a entendê-lo.
Aos olhos de Benedict apareceu a compreensão.
-Este viajem a Londres é um de seus ardilosos planos, não é assim, senhor?
Hugh sorriu, mas não disse nada.
-Agora fica claro. -Na voz do moço havia um matiz de admiração-. Quer demonstrar a Alice que confia nela, não só para fiscalizar o castelo de Scarcliffe mas também o imóvel. Quer lhe demonstrar que respeita seu talento.
-Sim. -Foi toda a resposta.
-Tem a esperança de atrai-la ao matrimônio lhe dando uma amostra da autoridade e a responsabilidade que assumirá ao ser sua esposa.
Hugh riu.
-Benedict, tenho a impressão de que será um assistente muito inteligente. Tem razão. Quero que Alice chegue à conclusão de que encontrará tanta satisfação e prazer em seus deveres de esposa como no convento.
"E muito mais em minha cama."
-Um plano muito ardiloso, senhor. -Os olhos de Benedict se acenderam de admiração-. Mas conviria que reze para que Alice não adivinhe por si mesma os seus motivos. Ficaria furiosa se soubesse que você a apanhou com outra estrátegia.
Hugh não se alterou.
-Confio em que estará muito ocupada encarregando-se dos assuntos do imóvel para pensar muito em por que, de repente, decidi viajar a Londres.
-Claro -admitiu Benedict, pensativo-. Desfrutará da oportunidade para mandar outra vez. Possivelmente, até a faça esquecer que fracassou em reter minha herança.
-Os desafios fazem florescer a sua irmã, Benedict. Penso que a tarefa de me ajudar para que Scarcliffe volte a ser um imóvel próspero a convencerá de casar-se com mais eficácia que um cofre transbordante de jóias.
Três manhãs depois, de pé junto a Joan, Alice observava como um servente subia a outro telhado para começar a repará-lo.
-Faltam só três cabanas, e estarão todas terminadas -comentou, satisfeita-. Se tivermos sorte, estarão prontas para quando retornar lorde Hugh de Londres. Ficará contente.
Joan riu.
-Por não mencionar às pessoas que vive nelas.
Logo chegará o inverno. Se lorde Hugh não tivesse feito previsões para os acertos, temo-me que muitas destas boas pessoas teriam que enfrentar-se às nevadas com os tetos furados.
-Meu senhor não permitiria que acontecesse algo assim. Cuida do que é dele.
Alice pôs-se a andar pela rua para inspecionar o progresso na nova fossa para águas residuais. À medida que foram enterrando o conteúdo da antiga sob uma grossa capa de terra, a pestilência diminuía dia a dia. Joan a olhou.
-Você tem muita fé com respeito às intenções de lorde Hugh para estas terras, não é certo?
-Sim. É muito importante para ele. É um homem incapaz de abandonar seus propósitos ou suas responsabilidades. Contemplou a diminuta aldeia. Já tinha uma aparência menos triste. A esperança lhe conferia um resplendor saudável.
Para Alice, os últimos três dias passaram em um torvelinho de atividades. Assim que Hugh e sua companhia se desvaneceram em uma nuvem de pó, lançou-se à tarefa de fiscalizar os assuntos do Scarcliffe. Foi revigorante assumir uma vez mais uma grande responsabilidade. Tinha talento para isso.
Pensou que não sentia tal grau de.entusiasmo e regozijo por nada desde que Ralf a tinha arrancado de seu próprio lar.
"Hugh me deu este presente -pensou. Terá idéia de quanto o valorizo?"
Duas noites depois, um forte golpe na porta do dormitório despertou a Alice.
-Lady Alice -chamou-a uma voz em surdina-. Lady Alice.
Incorporou-se lentamente. tratou de recuperar a lucidez que um estranho sonho com corredores escuros e uma ameaça invisível tinham apagado.
-Lady Alice.
-Um momento -respondeu.
Afastou as pesadas cortinas que rodeavam a cama e se estirou para agarrar um roupão. Desceu da alta cama e foi abrir a porta descalça, passando pelo tapete.
Entreabriu, e viu uma jovem donzela que esperava no corredor com uma vela na mão.
-O que acontece, Lara?
-Rogo-lhe que me perdoe por despertá-la a estas horas, milady, mas há duas freiras do convento da aldeia no vestíbulo. Dizem que as enviou a superiora Joan.
Alice se alarmou. Devia ter acontecido algo terrível. -Vestirei-me e baixarei em seguida.
-Sim, senhora. -Lara franziu o cenho-. Será melhor que traga uma capa. Acredito que querem que vá com elas à aldeia.
Abriu mais a porta.
-Acende uma vela para mim com a sua. -Sim, senhora.
Lara entrou rapidamente no dormitório.
Alice se vestiu a toda velocidade. Quando esteva preparada, agarrou a pesada capa de lã e correu escada abaixo.
As duas freiras esperavam perto do salão apagado. Dunstan e seus homens, aos que tinham arrancado dos leitos ao chegar, esperavam tranqüilos nas sombras.
As mulheres levantaram a vista para Alice com expressões aflitas.
-A superiora nos enviou para lhe pedir que venha à casa do moleiro, milady -disse uma das mulheres-. O menino pequeno está muito doente. A curadeira esgotou os remédios e não sabe mais o que tentar. A madre espera que você possa aconselhar algo.
Alice recordou ao pequeno sorridente de cabelos escuros que tinha visto jogando do lado de fora do moinho.
-É obvio que irei, mas não sei o que poderei fazer. Se a irmã Katherine não tiver a solução, duvido de que eu a tenha.
-A superiora Joan acredita que talvez você tenha aprendido a preparar algum remédio especial pelas notas de sua mãe.
Alice ficou imóvel.
-Minha mãe era uma mulher muito sábia, mas algumas de suas receitas são perigosas. Capazes de matar.
-A superiora e a irmã acreditam que o Jovem John está morrendo, milady -disse em voz baixa a outra mulher-. Dizem que não tem nada que perder.
-Entendo. -recolheu-se as saias e deu a volta para subir a escada da torre-. irei procurar o receituário de minha mãe para levá-lo comigo.
Quando voltou, minutos depois, Dunstan emergiu da escuridão.
-Acompanharei-a à cabana do moleiro –disse em tom brusco.
-Não precisa.
-Precisa -murmurou Dunstan-. Sir Hugh me penduraria das muralhas do castelo se permitisse a senhora sair sozinha de noite.
Pouco depois, Alice entrou correndo na pequena cabana do moleiro, no mesmo momento em que Katherine colocava um pano frio na fronte febril do Jovem John.
Horrorizou-a a mudança que a enfermidade deixou no corpo do pequeno que tinha visto pular por ai naquela mesma manhã. Estava deitado no leito, pálido e fraco, e de longe se sentia o calor que dele emanava. A respiração era trabalhosa e lhe angustiou. Gemeu, inquieto, uma ou duas vezes, mas não reconhecia aos que se inclinavam, ansiosos, sobre ele.
-Eu já não posso fazer nada mais. -Katherine se levantou-. Agora, fica nas mãos de Deus.
O semblante estava mais sombrio que de costume mas, fora disso, não havia mais sinais de emoção em suas feições. "Parece distante, desapegada -pensou Alice-. Como se fosse uma curandeira que conhece os limites dos remédios que aplica. Que diferença de minha mãe." Helen não se rendia até que a morte lhe arrebatava à vítima.
Joan se fez o sinal da cruz.
A esposa do moleiro chorava com toda a angústia maternal, e seu pranto se renovou. O marido, um indivíduo com torso de barril e rosto bondoso, aproximou-a dele com estupidez e lhe deu umas palmadas no ombro.
-Vamos, vamos -murmurou repetidamente, olhando impotente a Alice por cima do ombro de sua esposa. O também tinha os olhos úmidos-. Obrigado por vir, milady.
-Está bem -respondeu Alice, distraída.
Estava concentrada no pequeno paciente. aproximou-se do leito. Enquanto observava ao Jovem John, recordou as palavras de sua mãe: "antes de aplicar um remédio, observa todos os sintomas."
Joan falou em voz baixa do outro lado da pele que servia de leito.
-Sei que não há muito que fazer, mas não podia abandonar toda esperança até havê-la consultado.
-Conheço todos os remédios correntes para as febres pulmonares -disse Alice em voz baixa-. Igual à irmã Katherine. Suponho que lhe deu os apropriados.
-Sim -respondeu Katherine, com ar rígido-. Todos os que conheço. Mas esta febre não responde aos medicamentos.
A mãe do menino soluçou mais forte, e o moleiro fechou os olhos, angustiado.
O olhar do Joan se encontrou com o de Alice.
-Você me contou que sua mãe era uma boa curandeira, e que preparou muitas poções e tônicos exclusivos. Conhece algum que possamos provar?
Alice apertou com mais força o livro forrado de couro.
-Há um par de infusões que minha mãe criou para as febres estranhas que acompanham às infecções pulmonares. Mas aconselhou as usar com grande precaução. Podem ser muito perigosas.
-Acaso haverá algo mais letal que o que se abate sobre este menino? -perguntou Joan com simplicidade.
-Não. -Alice observou ao pequeno e soube que, nesse mesmo instante, a morte se aproximava com suas mãos geladas para arrebatá-lo--. Essa erupção no peito...
-O que tem? -apressou-se a perguntar Katherine--Viu-a antes?
-Eu não, mas possivelmente minha mãe sim. -ajoelhou-se junto à pele e tomou o pulso ao Jovem John. Era débil e muito rápido. Olhou ao moleiro-. Me conte tudo o que recorda da enfermidade. Quando o atacou, John?
-Esta tarde, milady -murmurou o moleiro-. Um minuto corria por aí, perseguindo os frangos, e ao seguinte não queria sequer um bocado do pudim que tinha feito a mãe.
Alice abriu o livro de notas e voltou as páginas até encontrar a seção referida às febres pulmonares estranhas. Leu durante um momento. "Enrejecimento do peito. Respiração agitada. Muita febre."
-Minha mãe registrou aqui que uma vez atendeu a um menino pequeno com sintomas similares. Voltou a página com expressão concentrada.
A esposa do moleiro se afastou um pouco do abraço do marido e enxugou as lágrimas.
-Esse menino viveu?
Alice a olhou. "Deve dar tanto esperanças como remédios -havia dito uma vez sua mãe-. A esperança é tão fundamental para a cura como as corretas ervas."
-Sim -respondeu com doçura-. Viveu.
-Nesse caso, temos que provar esse remédio -suplicou a mulher-. Por favor, senhora.
-Faremo-lo -tranqüilizou-a Alice. voltou-se para Katherine-. Darei-lhe uma lista das ervas que necessito. Por favor, as traga o mais cedo possível.
À curandeira tensionou oslábios. -Sim, milady.
Alice se perguntou se teria ofendido Katherine ao fazer-se cargo da situação. Se assim era, não podia remediá-lo. Olhou a Joan.
-Necessitarei de um recipiente e água fresca.
-Irei buscá-los -disse Joan, em seguida.
-Ponha-os ao fogo.
A febre do pequeno John começou a ceder antes do amanhecer. A respiração começou a normalizar-se rapidamente. Antes de que aparecesse a luz do novo dia, fez-se evidente que o menino viveria para continuar perseguindo frangos.
O moleiro e a esposa, sem pudor, choraram de alívio. Alice, esgotada pela longa vigília, se abaixou uma vez mais junto ao leito para controlar o pulso do menino. Sentiu-o forte e firme.
-Penso que logo quererá um pouco de pudim -disse em voz baixa.
-Obrigado, lady Alice -disse Joan com suavidade.
-Não me agradeça isso. -Olhou o Jovem John.
O menino tinha boa cor e o sono parecia normal-. É mérito de minha mãe
Katherine a contemplou por um momento.
-Sua mãe devia ser uma mulher muito instruída.
-Sim. Mantinha correspondência com os maiores especialistas em ervas de toda a Europa. Reuniu toda a sabedoria deles e lhe adicionou seus próprios descobrimentos e anotou tudo o que sabia neste livro.
Ao olhar a Alice, os olhos do Joan adquiriram uma expressão cálida.
-Esse livro não teria nenhum valor se não o usasse alguém com talento para identificar enfermidades por meio da análise dos sintomas. Tenho descoberto que é um talento pouco comum.
Alice não soube o que dizer.
-Sua mãe estaria orgulhosa de você, milady -prosseguiu Joan com suavidade-. Aprendeu como aproveitar o conhecimento que ela registrou nesse receituário. E esta noite, você utilizou esse saber para salvar a este menino. O que recebeu de sua mãe, é um grande dom. Alice contemplou o livro que Helen tinha escrito durante esses longos e solitários anos de matrimônio.
Recordou que, às vezes, a paixão de sua mãe por seu trabalho lhe causava ressentimento. Houve muitas ocasiões em que proporcionou mais distração à melancólica Helen que o que podiam lhe brindar os filhos.
Mas essa noite, o conteúdo do livro de notas tinha salvado a vida de um menino.
Um presente tão valioso exigia um preço. Alice sabia que, a seu modo, tinha pago parte desse preço. E também Benedict. O mais alto, foi o que pagou Helen.
Entretanto, graças a isso, um pequeno vivia. "E não é o primeiro que se salva graças ao trabalho de minha mãe", pensou Alice. E não seria o último.
Em algum lugar, dentro dela, floresceu uma suave certeza onde antes só havia ressentimento e tristeza.
-Sim. Tem razão. Por algum motivo, até agora não tinha compreendido quão grande é a herança que me deixou minha mãe.
O pequeno John se moveu, abriu os olhos e olhou a sua mãe.
-Mamãe? Por que há tanta gente aqui?
Os pais responderam com gargalhadas, e se ajoelharam junto ao leito.
Alice apertou o livro, e sentiu que estava a ponto de chorar. "Obrigado", disse para si.
De pé no centro do salão, Alice se concentrou.
Embora o fogo ardia no lar, fazia frio.
-Julian, algo falta neste lugar.
-Quer dizer que roubaram? -Julian deixou o harpa que tinha estado tocando sem muito interesse-. Não acredito. Ninguém se atreveria a roubar nada de Hugh o Implacável. Sabe o diabo que o pobre ladrão não teria paz.
-Não refiro a algo roubado. Algo... que falta. -Com um gesto, assinalou as paredes vazias, e o chão coberto de juncos-. É aqui onde lorde Hugh janta todos os dias com seus homens. Onde julga os conflitos legais no Scarcliffe. Onde quer receber os convidados. e falta algo. Necessita algo.
-Ah, agora a compreendo, milady. -Julian riu--. A palavra que procura você é elegância.
-Elegância?
-Sim. A este salão falta elegância, graça, encanto e moda.
-Tudo isso?
Enquanto observava o salão, Alice mordia o lábio. .
-Tudo isso e mais. Milady, lorde Hugh é muito hábil para muitas coisas, mas não lhe interessam os detalhes de moda e elegância, e isso se nota, não pretendo ofender.
-Acredito que está certo.
-Conforme entendo -continuou Julian-, o problema consiste em que lorde Hugh manda fazer tudo, das botas até as túnicas e as capas de viagem dos mensageiros de uma só cor: negro.
-Compreendo. Acredito que gosta muito. Entretanto, não acredito que se alegre muito se voltar e encontrar tudo da cor azul céu ou laranja.
-Não me atreveria a lhe sugerir que despreze tudo o que está de negro. -Julian começou a passear-se pelo salão, observando-o em detalhe-. De algum jeito, o negro fica bem a lorde Hugh. Mas, que tal se o avivamos com outra cor?
-Que cor sugere?
-Poderia ser verde ou vermelho. Acredito que o contraste seria muito chamativo. Também ficaria bem o branco. Alice se inspirou:
-Ambar.
-Como, senhora?
Alice sorriu satisfeita.
-Os olhos de lorde Hugh são de cor âmbar. É um tom adorável. Quase dourado. Usaremos âmbar para fazer contraste com o negro.
Julian assentiu, pensativo.
-Um tom âmbar intenso iria muito bem nesta habitação.
-Farei uma toalha dessas cores para colocar em cima da mesa principal. -Alice se entusiasmava cada vez mais com as imagens que iam a sua mente-. E lhe farei fazer uma túnica nova, âmbar e negro.
-Já é hora de que sir Hugh faça trajes novos para seus homens -disse Julian em tom adulador-. Faz-o todos os anos. Também seria uma excelente oportunidade para trocar de cor.
-Certamente. -Alice não era muito versada nesta classe de coisas, mas era evidente que Julian sim-. Te encarregue disso, por favor, Julian.
Julian fez uma profunda reverência.
-Com muito prazer, milady. Quer que façam também um vestido para a senhora?
Alice se imaginou recebendo a Hugh vestida com um traje que tivesse as novas cores.
-Sim. Será o mais correto.
Em Londres, Hugh procurou fortalecer-se para suportar a atmosfera de melancolia e desespero que parecia emanar dos muros das habitações de Erasmus.
-Ah, Hugh. -Erasmus, sentado perto do fogo, ergueu a vista. O sorriso de boas-vindas foi fraco, mas expressava grande prazer-. Que alegria verte. Quem é que está com você?
-É Benedict, milorde. -Indicou-lhe ao jovem que se adiantasse-. É o irmão de minha prometida. -Bem-vindo, jovem Benedict.
-Obrigado, milorde.
Fez uma impecável reverência.
-Venha aqui, assim posso te conhecer --disse Erasmus--. Me diga o que têm feito você e Hugh esta manhã.
Enquanto Benedict, obediente, ia para o lugar, Hugh trocou um olhar com a esposa de Erasmus.
Eleanor era uma mulher bela, não muito maior que Hugh. Dirigiu-lhe um sorriso valente enquanto Erasmus conversava tranqüilamente com o moço, mas nada dissimulava as sombras nos olhos da mulher. Hugh sabia que amava muito a seu marido. Tinham dois filhos, um menino e uma menina.
-Não houve melhora? -perguntou-lhe, em voz baixa.
-Os ataques pioraram. Despedi os médicos.
-É uma atitude sensata.
-Sim. Estou convencida de que, com seus cruéis instrumentos, fazem-lhe mais mal que bem. Juro-te que iriam deixá-lo seco de tanto sangrá-lo. E essas purgações terríveis...! -Eleanor moveu a cabeça, desgostosa-. Não lhe faziam nada bem. chegou a um ponto em que, a única coisa que desejava era morrer em paz.
Hugh olhou Erasmus. Seu suserano tinha envelhecido dez anos nos últimos meses. A figura forte e atraente que constituiu o centro da vida para ele durante sua juventude, e o homem ao que, de adulto, entregou-lhe a lealdade e a espada, estava agora tão pálido e magro que custava acreditá-lo.
-Não posso acreditar que estejamos perdendo-o --disse em voz baixa-. Não tem mais que quarenta e dois anos, e sempre gozou de boa saúde.
-Quase não dorme de noite -murmurou Eleanor-. E quando consegue dormir, se acorda com terríveis sobressaltos. Levanta-se tremendo, e se anda até o amanhecer. Seu maior temor não é morrer e sim enlouquecer.
-Minha prometida enviou estas ervas e uma carta com indicações. -Hugh tirou o que guardava no saco de couro negro-. Não sei se serão eficazes, mas não se perderá nada provando. Tem certa habilidade com os remédios.
Eleanor franziu um pouco o cenho.
-Não quero que sofra mais por remédios cruéis.
-Meu senhor é um guerreiro de coração –disse Hugh-. Seja qual for a enfermidade, isso não mudará. Deixa-o lutar a última batalha antes de perder toda esperança.
-Sim, tem razão, sir Hugh.
Eleanor apertou com muita força o molho de ervas e a carta.
Erasmus levantou uma mão.
-Hugh, vêem aqui. Quero falar uns minutos com você.
Hugh se aproximou do fogo, Com o coração pesado de pesar.
Alice examinou com olhar crítico a cozinha calorosa e alvoroçada. Dois caldeirões maciços de ferro, carregado com diversos guisados, frangos cheios e saborosos pudins, buliam sobre o enorme fogo. As frontes das moças da cozinha que faziam girar as manivelas das torneiras estavam cheias de suor. Sobre Umas fontes quentes, ao bordo das chamas, douravam-se uns bolos de carne.
-Elbert, Controle que os caldeirões sejam esvaziados, limpos e bem esfregados todas as semanas -disse Alice com vivacidade-. Não estou de acordo com o costume de uso contínuo durante meses sem lavá-los bem.
-Sim, senhora.
O rosto do Elbert estava carrancudo de concentração e ardor.
Nos cinco dias que durava a ausência de Hugh, o castelo de Scarcliffe tinha sido limpo de cima abaixo. Esvaziaram-se todos os baús com roupa branca e os guarda-roupas, sacudiu-se o pó e colocaram dentro bolsas com ervas aromáticas. Cada habitação, do quarto que Hugh usava para dormir até a mais pequena despensa, abriram e revisaram. Elbert a acompanhou durante todo o processo. Tomou notas em um tablete de cera enquanto Alice disparava uma interminável lista de indicações.
Deixou a cozinha para o final.
-Cuida que às moças troquem de tarefas de maneira regular. Não quero que passem muito tempo perto do fogo. É uma tarefa pesada.
-Outras tarefas -anotou Elbert-. Sim, senhora.
As moços empapadas de suor, sorriram.
Alice percorreu a cozinha detendo-se em vários lugares para observar algumas coisas, mais de perto. Sorriu às cozinheiras, evidentemente maravilhadas e excitadas com sua presença. Alice sabia. Era a primeira vez que as visitava. Até então, o único contato com elas foi através de Elbert, que lhes levava instruções precisas e os menus que Alice confeccionava para suas próprias comidas.
Alice observou a mesa sobre a qual a cozinheira cortava cebolas.
-Quero que sirvam todos os dias a lorde Hugh e a todos outros habitantes do castelo a mesma sopa verde que fazem para mim.
-Sopa verde especial -repetiu Elbert-. Que se sirva a todos. Sim, milady.
-É muito saudável -explicou Alice-. Também, quero que se sirvam ao menos três pratos de verduras no almoço.
-Três pratos de verduras. Sim, milady.
-Que as cabaças não fervam muito tempo.
Elbert tomou nota.
-Sim, senhora.
Alice observou a mescla de trigo e leite que se cozia em um recipiente de barro.
-Que adocem a nata com mel. Sem ela, é insossa.
-Mel na nata.
O estilete de Elbert deslizou pelo tablete.
-Darei-te uma lista de ingredientes para um molho que se faz com tomate e cardamomo, e outra com gengibre e açafrão. Muito saborosa. Usarão-se para pratos de pescado cozido ou carnes assadas.
-Sim, milady. -Elbert a olhou com repentina ansiedade-. Quanto às especiarias, senhora, o que faremos para consegui-las?
Alice o olhou surpreendida.
-O que diz? Aqui, no castelo, sir Hugh tem uma grande quantidade de especiarias excelentes armazenadas.
Elbert clareou voz.
-Sua senhoria guarda as chaves dos armazéns.
Deu estritas instruções de que tenho que ir a ele cada vez que se necessitem especiarias na cozinha. Mas as duas vezes que recorri a ele para pedir as especiarias que necessitava a cozinheira, estava muito zangado.
-Por que?
-Bem, queixou-se da quantidade que pedia -respondeu, abatido-. Disse que eu não tinha idéia de economia, e que estimulava à cozinheira a esbanjar.
-Já vou ver isso. -Alice riu-. lorde Hugh gosta de comer bem, mas nunca teve que preparar seu próprios mantimentos, por não mencionar o que significa planejar comidas para uma casa destas dimensões. Aqui, as cozinheiras devem alimentar a quarenta pessoas todos os dias. E em ocasiões especiais, mais.
-Sim -respondeu Elbert.
-Talvez sir Hugh seja muito bom para fazer cálculos, mas não tem idéia da quantidade de ingredientes que se utilizam para preparar pratos.
-Não, milady, não tem idéia -apoiou Elbert com ardor.
-Não se preocupe, Elbert. Sir Hugh me deu as chaves dos armazéns antes de partir. Quando retornar, eu seguirei as tendo em meu poder. a partir de agora, procura que me enviem todas as manhãs uma lista das especiarias que se necessitam. Eu as pesarei para as cozinheiras.
A esperança iluminou os olhos do Elbert.
-Não terei que recorrer a lorde Hugh para conseguir as especiarias?
-Não. Eu me ocuparei.
Foi visível o alívio do Elbert.
-- Agradeço, milady.
-Bom, agora, os menus. Eu prepararei vários.
Pode alterná-los a seu parecer. -Alice sorriu às duas mulheres que mexiam um pudim-. Não esqueça de me levar qualquer sugestão que façam as cozinheiras. Estou segura de que serão úteis para variar a lista de pratos.
As duas mulheres ficaram radiantes.
Alice se aproximou de uma mesa carregada de ovos.
-Os pratos com ovos fortalecem. Quero que sirvam pelo menos um em cada almoço.
-Sim, milady. -Elbert contemplou o grande montão de ovos-. Como quer que os preparem?
-São muito saudáveis se se cozinharem com...
-Milady -chamou um criado da porta-. Rogo-lhe me perdoe, .senhora.
Alice se voltou.
-O que acontece, Egan?
-Lamento incomodá-la, mas há um moço aqui -respondeu-,. Diz que tem que falar com você. Afirma que é assunto de vida ou morte.
-Um menino? -Uma das cozinheiras franziu o sobrecenho-. Dispense-o. Lady Alice está ocupada com coisas mais importantes.
Alice contemplou a pequena figura que aparecia detrás do Egan. Viu um menino de cabelo escuro e olhos castanho claro, parado na entrada da cozinha.
Ao parecer, tinha ao redor de oito anos. Não o reconheceu como um dos meninos da aldeia. e embora a roupa estivesse manchada e suja, era de excelente qualidade.
-Devo falar com a senhora. -O ouvia sem fôlego-. É muito importante. Não irei até ter falado com ela.
-Isso é o que você acha. -Uma das moças de cozinha brandiu uma fogaça larga de pão com gesto algo ameaçador-. Vá, menino. Cheira como um privada.
A brisa que entrava pela porta confirmou o que dizia. Não se podia negar a pestilência de descuido que emanava do menino.
- Deixe -disse Alice com firmeza, ao tempo que lhe sorria ao recém-chegado-. Eu sou lady Alice.
-Quem é você?
O menino endireitou os ombros e levantou o queixo. O simples gesto lhe outorgou um orgulho tão inato que fazia esquecer o traje sujo e o aroma ruim.
-Sou Reginald, milady. Meu pai é sir Vincent de Rivenhall.
Elbert conteve o fôlego.
-Rivenhall!
De repente, na cozinha se fez um grande silêncio. A mandíbula pequena de Reginald se esticou, mas o menino se manteve firme. Não apartou o olhar do rosto da Alice.
-É de Rivenhall? -perguntou-lhe, cautelosa, avançando para ele-. O filho de sir Vincent?
-Sim. -O menino lhe dedicou uma reverência algo rígida e logo levantou o olhar, com uma expressão que continha partes iguais de desespero e resolução- Vim para rogar que me ajude a salvar o imóvel de meu pai e a honra de minha mãe.
-Por todos os Santos. De que fala?
-Minha mãe disse que não tinha sentido apelar a Scarcliffe, mas não tenho a quem recorrer. Você é a única está o bastante perto para ajudar. Ouvi dizer meu pai que ele e Hugh o Implacável são primos. Por isso, estou hoje aqui.
-Se acalme, Reginald -disse-lhe, em tom tranqüilizador.
-Disseram-me que sir Hugh está em Londres, mas você está aqui, e também muitos de seus soldados. Vocês poderiam ajudar-nos. Por favor, senhora.
-Tem que me contar tudo desde o começo -disse-lhe Alice, com firmeza.
Mas deu a impressão de que algo se quebrava dentro de Reginald. Foi como se houvesse se sustentado muito tempo por pura força de vontade, e já não podia mais. Os olhos se encheram de lágrimas.
-Se não nos ajudarmos, estamos perdidos.
-As palavras lhe brotavam como uma corrente-. Meu pai está longe, em uma justa no sul. Diz que necessitamos do dinheiro. E quase todos os soldados e cavalheiros estão com ele.
- Reginald...
-Ontem chegou sir Eduard e irrompeu à força em nosso salão. Minha mãe está aterrada. Não sei como fazer chegar uma mensagem a meu pai com tempo para salvá-la.
-Calma. Eu me ocuparei disto. -Pô-lhe uma mão no ombro e o guiou a uma bacia de água apoiada junto ao lar.
Primeiro, temos que liberarmos desse aroma espantoso. -Jogou um olhar ao mordomo-. Elbert, envia a alguém a procurar uma muda de roupa.
-Sim, senhora.
Elbert fez gestos a uma das moças da cozinha.
Só levou uns minutos para lavar e trocar a Reginald com roupa limpa. Quando estava limpo, Alice o fez sentar junto a uma das mesas da cozinha.
-Por favor, algum de vós poderia trazer para nosso convidado uma terrina de minha sopa verde especial?
Uma das cozinheiras serviu um concha de sopa do fino caldo de verduras em uma terrina, e o levou a mesa. Elevou-se a fragrância reconfortante da raiz de salsinha com a que se fez a sopa.
-Tome um pouco -indicou-lhe Alice, sentando-se em frente-. Le dará forças.
Reginald tragou a sopa como se estivesse morto de fome. Mas parou bruscamente depois e fez uma careta enquanto deixava a terrina.
-Obrigado, milady -disse com forçada cortesia-. Tinha muita fome.
Começou a limpar a boca com o dorso da manga, mas se interrompeu, envergonhado pelas maus maneiras. ruborizou-se e aspirou uma baforada de ar.
-Agora, me conte quem é sir Eduard e como entrou a força no salão de seu pai.
-Eduard de Lockton é um cavalheiro sem terras -disse Reginald-. É um mercenário, que vende sua espada onde pode. Minha mãe diz que não é melhor que um salteador.
-Por que foi sir Eduard a Rivenhall?
-Segundo minha mãe, porque sabia que meu pai estava ausente e que levou com ele a quase todos os homens. Diz que sir Eduard está seguro de que Hugh o Implacável não irá em ajuda a Rivenhall pela rivalidade que existe entre ambos os feudos.
-Eduard de Lockton entrou no salão e se apropriou de tudo?
-Sim. Ontem, quando chegou, afirmou que vinha em missão de amizade. Exigiu albergue para a noite para si mesmo e seus homens. Minha mãe não se atreveu a negar-se.
Não existia maneira de defender-se com os poucos homens que deixou meu pai.
-E o deixou entrar, com a esperança de que partisse pela manhã?
-Sim. Mas ficou. -Reginald adotou um ar desventurado-. Pôs seus próprios homens nos muros. Atua como se fosse o senhor de Rivenhall. Apropriou-se do castelo sem sitiá-lo, sequer.
-Sem dúvida, o suserano de seu pai, Erasmus de Thornewood, adotará medidas contra sir Eduard quando se inteirar.
-Minha mãe diz que sir Erasmus está morrendo. É muito provável que esteja morto quando pudermos lhe avisar
- Um fato consumado -murmurou Alice.
-Isso diz minha mãe.
Alice recordou como o tio tinha instalado a seu próprio filho no salão de seu pai. Estava muito bem que os clérigos discutissem sobre os detalhes pontuais da lei real e a lei de costumes, mas a verdade estava na posse. Uma pessoa que não pudesse defender o que tinha, logo o perdia à mãos de alguém mais poderoso. Assim era a vida.
-Sei como se sente, Reginald.
O menino a olhou com expressão afligida.
-Ontem à noite, depois de comer, sir Eduard tentou obrigar a minha mãe a ir ao quarto com ele. Estava espantada. Acredito que tentou machucá-la.
Alice sentiu um calafrio.
-Deus meu! Sua mãe? Esta bem? Que aconteceu?
-Soltou-se dele, agarrou-me pela mão e me disse que tínhamos que correr para o quarto da torre.
Conseguimos entrar nele e fechar a porta.
-Graças aos céus! -suspirou Alice.
-Eduard estava furioso. Golpeava a porta e lançava toda classe de ameaças. Por fim, foi, mas antes jurou que nos deixaria morrer de fome nesse quarto. Minha mãe ainda está ali. Não tem nada de comer nem de beber desde ontem à noite. -Olhou a terrina vazia-. Isto é tudo o que eu tomei desde ontem.
Alice jogou um olhar à cozinheira.
-Traga para nosso convidado um bolo de carne, por favor.
-Sim, milady.
A cozinheira, fascinada, tomou um bolo de uma forma quente e o pôs diante de Reginald.
Alice o observou.
-Como fugiu?
-No quarto da torre há um velho buraco. -equilibrou-se sobre o bolo com muito mais entusiasmo que o demonstrado diante da sopa-. O conduto é um pouco mais largo que a maioria.
-Como para um menino de seu tamanho? Reginald assentiu.
-Em alguns lugares, foi difícil. O aroma era horrível.
-Imagino. Como desceu?
-Minha mãe e eu fizemos uma corda com a cortina velha da cama. Usei-a para descer pelo conduto.
Assim se explicava a pestilência que se desprendia das roupas do menino. O pobre tinha saído do castelo pelo buraco do esgoto. Além do aroma, deve ter sido uma experiência aterradora.
-É muito valente, Reginald.
O menino ignorou o elogio.
-Ajudará-nos, lady Alice? Se não fizermos algo, tenho medo de que sir Eduard machuque a minha mãe.
Nesse momento, Dunstan irrompeu na cozinha.
-Que diabos acontece aqui? --quis saber-. O que um menino de Rivenhall está fazendo aqui?
-Este é Reginald, o filho de sir Vincent. -Alice se levantou-. O castelo de Rivenhall foi tomado por um cavalheiro mercenário de nome Eduard de Lockton. Temos que salvar o castelo e à mãe de Reginald, que está ali, cativa.
Dunstan deixou cair a mandíbula, atônito.
-Salvar Rivenhall? Senhora, está louca? Se for verdade que o castelo ficará em mãos de um estranho, sir Hugh ordenará um grande banquete para celebrá-lo.
-Não seja ridículo, Dunstan. Uma coisa é manter um conflito dentro da família, e outra muito distinta permitir que um forasteiro se aproprie das posses de um primo.
-Mas, milady...
-Por favor, ordene aos homens que preparem as armas e montem a cavalo. Faça selar um potro para mim. Partiremos para Rivenhall dentro de uma hora.
Os olhos do Dunstan lançaram faíscas. -Não posso permiti-lo. Sir Hugh me penduraria como traidor se fôssemos em ajuda do Rivenhall.
-Se lhe temer tanto, fique aqui, em Scarcliffe. Iremos sem você -respondeu Alice, com calma.
-Por Deus, senhora, se Hugh me pendurar, eu serei o mais afortunado dos dois. Não quero pensar o que fará com você, que é a prometida. Nunca a perdoaria por trai-lo assim.
-Não penso em traí-lo. -ficou firme, sem fazer caso do frio desassossego que lhe atendia o estômago-. Irei em ajuda de seu parente sangüíneo.
-O senhor despreza a seu parente sangüíneo.
-Certamente, não despreza nem ao pequeno Reginald, nem a sua mãe.
-Está referindo-se ao herdeiro e à esposa de Vincent. -Dunstan a olhava incrédulo-. Sir Hugh não pode ser mais caridoso com eles que com o Vincent.
-Sir Hugh me deixou ao comando deste feudo, não é assim?
-Sim, mas...
-Tenho que fazer o que me parece correto. Já lhe dei suas instruções, sir Dunstan
As feições de Dunstan se converteram em uma máscara de ira e frustração. Elevou um pote de barro e o jogou contra a parede da cozinha, onde se rompeu em mil pedaços.
-Disse-lhe que você lhe traria problemas. Nada mais que problemas.
Girou sobre os pés e saiu a passos largos da cozinha.
Duas horas depois, Alice, vestida com um vestido de cor verde intensa, o cabelo preso em uma rede prateada, presa com um anel de prata, entrou a cavalo pelas portas do castelo de Rivenhall. O pequeno Reginald ia a seu lado, montado em um pequeno e manso ponei cinza. Ninguém tentou detê-los o entrar no pátio. Alice soube que Eduard não se atrevia a desafiar a Hugh o Implacável.
Sentiu que a percorria uma descarga de tensão. Podia sentir as olhadas cautelosas dos homens que custodiavam o muro. Sem dúvida, calculavam a força que tinha levado consigo.
Consolou-se pensando que a companhia tinha um aspecto que intimidava, impressionante. Sir Dunstan e o contingente de cavalheiros e soldados que Hugh tinha deixado em Scarcliffe cavalgava atrás dela. Até o Julian os acompanhava. Explicou-lhe que todo homem empregado por sir Hugh tinha a obrigação de saber usar uma espada ou um arco, sem importar se cuidava ou não a elegância de seu traje.
A luz cinza do nebuloso dia resplandecia sobre os elmos reluzentes e faiscava nas pontas e as folhas das armas. As bandeiras negras ondulavam no vento.
-Saudação, milady. -Um homem grande e corpulento, de cabelo castanho descuidado, barba hirsuta e olhos brilhantes, deteve-a na escada de entrada ao castelo-. Agrada-me conhecer qualquer um que cavalgue sob a insígnia de Hugh o Implacável.
-Esse é sir Eduard -disse-lhe Reginald a Alice-. Olhe-o,comporta-se como se fosse o amo, aqui.
Alice observou as feições de sir Eduard enquanto freava ao cavalo. O mercenário recordava a um javali.
Tinha pescoço grosso, mandíbulas largas, e olhos pequenos e apagados. Certamente, teria um cérebro similar a seu aspecto.
Olhou-o de cima abaixo, enquanto Dunstan e os homens se desdobravam atrás dela.
-Por favor, relate à senhora do castelo que a nova vizinha veio visitá-la.
Eduard riu, mostrando vários buracos entre os dentes amarelados.
-E de quem se trata?
-Sou Alice, a prometida de Hugh o Implacável.
-A futura esposa, né? -Eduard deu uma olhada para os homens que a respaldavam-. Por sua causa faltou à justa contra sir Vincent, na feira do Ipstoke. Não estava muito contente com você esse dia.
-Asseguro-lhe que sir Hugh está muito contente com a noiva que escolheu. Tanto que, em rigor, não vacilou em me deixar ao comando de suas terras e de seus homens.
-Isso parece. E onde está sir Hugh?
-De volta a Scarcliffe de Londres -respondeu com frieza-. Logo retornará. Penso visitar lady Emma até que ele chegue.
Eduard lhe lançou um olhar matreiro. - sir Hugh sabe que você está aqui?
-Não se preocupe: logo saberá. Eu, em seu lugar, não estaria em Rivenhall quando ele chegar.
-Acaso me ameaça você, senhora?
-Considere-o uma advertência.
-É você a que deveria tomar cuidado, senhora -disse Eduard arrastando as palavras em tom desagradável-. É evidente que não compreende como estão as coisas entre o Rivenhall e Scarcliffe. Possivelmente seu futuro amo não explicou a você seus assuntos pessoais.
-Lorde Hugh me explicou isso tudo, senhor. Gozo de toda sua confiança.
O rosto do Eduard se contraiu de ira.
-Isso mudará logo. Sir Hugh me agradecerá por ocupar este castelo. Sei que o suserano lhe proibiu vingar-se de Rivenhall. Mas lhe asseguro que não se incomodará quando souber que outro o faz em seu lugar.
-É você o que não compreende a situação -disse Alice com suavidade-. Você se misturou nos assuntos familiares. Sir Hugh não lhe agradecerá por isso.
-Já o veremos -replicou Eduard.
-Assim será. -Sorriu com frieza-. Enquanto isso, acompanharei lady Emma. Ainda está na habitação da torre?
Eduard entreabriu os olhos.
-Foi isso o que o menino lhe contou, né? A mulher se fechou ali e não quer sair.
Alice se voltou para o Reginald.
-Vá procurar a sua mãe na torre. Diga-lhe que estou impaciente por conhecê-la. Diga-lhe que os soldados de sir Hugh estão aqui para garantir a segurança de vocês.
-Sim, senhora.
Reginald desceu do cavalo cinza.
Lançou a Eduard um olhar colérico ao mesmo tempo que corria escada acima e desaparecia no interior.
Eduard plantou uns punhos enormes nos quadris e se dirigiu a Alice.
-Está arriscando-se mais do que imagina ao meter-se nisto, lady Alice. Sim, muito mais.
-Esse é meu problema, não o seu.
-Quando sir Hugh voltar, estará furioso com você por esta traição. Não é um segredo que a lealdade é o principal para ele.
-O mínimo que fará será romper o compromisso. e então, onde estará você, pequena tola?
-O tolo é você, Eduard. -Alice olhou para Dunstan-. Ajuda-me a desmontar, senhor, por favor?
-Sim, senhora -resmungou Dunstan.
Enquanto se apeava, não tirava a vista de cima de Eduard. Aproximou-se do palafrén de Alice e a ajudou a desmontar.
A jovem viu a tensão nas linhas da boca e lhe sorriu, tranqüilizadora.
-Tudo sairá bem, sir Dunstan. Confie em mim.
-Pelo que estou fazendo hoje, sir Hugh quererá minha cabeça -murmurou, em voz baixa para que só o ouvisse Alice-. Mas antes, direi-lhe que sua prometida tem tanta coragem quanto ele.
-Bom, obrigado, senhor. -O elogio surpreendeu e encantou a Alice-. Trate de não ficar nervoso. Não permitirei que lorde Hugh o culpe disto.
-Sir Hugh atribuirá a culpa a quem quer. A expressão de Dunstan era de turvo fatalismo.
-Lady Alice, lady Alice -chamou-a Reginald da entrada-. Queria lhe apresentar a minha mãe, Emma.
Alice se deu a volta e viu junto ao Reginald a uma encantadora mulher loira, de olhos tenros e expressão gentil. Tinha aspecto de esgotamento pela preocupação e, sem dúvida, por uma noite acordada, mas a atitude conservava muito de orgulho, e o olhar, um fio de esperança.
-Saudação, lady Alice -disse, ao mesmo tempo que lançava um olhar fugaz de desgosto a Eduard-.
-Lamento a triste bem-vinda que recebe. Como vê, estamos obrigados a suportar a presença de um hóspede indesejado.
-Esse é um problema passageiro. -Segura pelo amparo dos soldados de Scarcliffe, Alice subiu os degraus-. Fique tranqüila, que meu futuro esposo logo a liberará deste verme.
Hugh pensou que Elbert estava louco. Desde o começo, teve dúvidas sobre o moço.
-O que lady Alice fez?
Elbert tremeu, mas não retrocedeu.
-Levou sir Dunstan e a todos os soldados, e foi resgatar o castelo de Rivenhall das garras de um indivíduo chamado Eduard de Lockton. Isso é tudo o que sei, milorde.
-Não posso acreditar.
Depois dele, os cavalos fatigados chutavam e sopravam ruidosamente, ansiosos por chegar aos estábulos.
Também Benedict e os dois soldados estavam cansados.
Já tinham desmontado e esperavam inteirar-se do que tinha passado.
Esse dia, Hugh apressou à pequena companhia para chegar a Scarcliffe um dia antes do previsto. Imaginava um quadro agradável: Alice esperando-o na escadaria de entrada ao tempo que ele se aproximava do lar.
Teria que ter sabido que algo estava mau.
Quando se tratava de Alice as as coisas nunca eram conforme o planejado. Mesmo assim, não podia convencer-se de que tinha ido a Rivenhall.
-É verdade, senhor-confirmou Elbert-. Pergunte a qualquer um. Esta manhã chegou aqui o pequeno Reginald e lhe suplicou ajuda para ele e sua mãe.
-Reginald?
-O filho e herdeiro de sir Vincent, senhor. Estava desesperado por proteger a sua mãe, e também a propriedade de seu pai. Lady Alice lhe disse que sabia que se você teria querido que cavalgasse para Rivenhall para ajudá-los.
-Não se atreveria a ir a Rivenhall-disse Hugh baixo-. Nem sequer Alice se animaria a me desafiar assim.
Elbert engoliu saliva.
-Acreditou necessário, milorde.
-Pelos fogos do inferno. -Olhou o moço que tinha vindo a levar o cavalo--. Me traga outro cavalo. -Sim, milorde.
A moço correu para os estábulos.
-Senhor. -Benedict lhe deu as rédeas a outro moço-. O que acontece? Acontece- algo a Alice?
-Ainda não -respondeu Hugh-. Mas logo lhe acontecerá. Ocuparei-me disso em pessoa.
Alice percebeu a tensão que se abatia sobre o salão principal do castelo de Rivenhall, mas fingiu não notá-la. sentou-se com Emma perto do fogo e conversaram tranqüilamente. Reginald estava encarapitado em um tamborete, perto da chaminé.
De vez em quando, via o olhar zangado de Emma posar-se em Eduard, que vagabundeava com ar insolente na cadeira de sir Vincent. O intruso mastigava groselhas ao gengibre que havia em uma terrina como se tivesse direito a fazê-lo. Três de seus detestáveis homens estavam sentados em um banco próximo, e não tiravam a vista de cima de Dunstan e aos dois cavalheiros que este colocou no salão, perto de Alice. O resto dos homens armados de Scarcliffe tinham substituído aos de Eduard no pátio amuralhado.
-Não se ofenda, Alice -murmurou Emma-, mas tenho a sensação como se este castelo tivesse sido tomado duas vezes nos dois últimos dias. Uma vez, pelos homens de Eduard e, agora, pelos de sir Hugh.
-Você recuperará o castelo assim que Hugh retorne de Londres. -Tomou um punhado de nozes de uma tigela-. Meu senhor enfrentará Eduard.
-Quem dera tivesse razão. -Emma suspirou-. Mas se me atenho à história da família que me contou meu marido, não estou segura de que seja tão simples. E se sir Hugh decide apoiar a ocupação do castelo por Eduard?
-Não o fará.
-E também estou preocupada com você, Alice. O que dirá sir Hugh quando souber o que você tem feito hoje, aqui? É muito provável que o considere uma traição.
-Não, quando explicar o entenderá. -meteu três nozes na boca e mastigou-. Sir Hugh é homem de grande inteligência. Escutará.
Ansioso, Reginald mordeu o lábio.
-E se sir Hugh está muito furioso para escutar suas explicações, senhora?
-Só o domínio de si que possui meu senhor ultrapassa a sua inteligência -afirmou Alice, orgulhosa-. Não adotará nenhuma medida até ter avaliado a situação.
Do pátio chegou um grito surdo. Cascos de aço ressoaram contra as pedras. Dunstan se moveu, ergueu-se e olhou a seus homens.
-Ah, já era hora. -Eduard ficou pesadamente em pé e lançou a Alice um olhar triunfante-. Ao que parece, sir Hugh ao fim chegou. Logo veremos o que opina da presença da futura esposa no castelo de seu inimigo.
Alice não fez conta.
Fora estalou um trovão, anunciando a chegada da tormenta que esteve ameaçando toda a tarde. Um momento depois, a porta do salão se abriu de repente.
Dunstan olhou a Alice.
-Milady, diz-se que é mais fácil provocar ao diabo que fazê-la desaparecer. Está claro que você tem habilidade para o primeiro. Roguemos que a tenha também para o outro.
Hugh entrou no grande salão de seu inimigo jurado com graça letal e decisão. Trouxe consigo a fúria da tormenta e a sombria promessa da noite que se morava. A capa negra parecia um torvelinho que se formava redemoinhos em volto das botas de couro da mesma cor. O cabelo da cor do ônix estava despenteado pelo vento. Os olhos, eram âmbar fundido.
Não levava armadura, mas as dobras da capa entreaberta deixavam ver o cinturão de couro negro de que pendia a bainha da espada, na parte baixa dos quadris. Uma das mãos grandes se apoiava no punho.
Ninguém se moveu. Todos os presentes contemplaram essa aparição que parecia ter desatado a tempestade. Hugh percorreu a habitação com um olhar abrasador. Alice soube que tinha avaliado a situação nesse instante. E que à velocidade do raio, calculou o que faria e decidiu o destino de cada um dos presentes.
O modo em que dominou imediatamente esse salão foi algo que tirava o fôlego. Hugh incitou o temeroso respeito de todos os que estavam na habitação da mesma maneira que uma grande tormenta domina os céus.
De repente, Eduard de Lockton pareceu bem menor e menos terrível que antes. Por desgraça, seguia tendo a mesma aparência malvada e cruel.
Os olhos de Hugh posaram nos de Alice.
-Devo buscar a minha noiva. A voz foi um sussurro, mas chegou até o último rincão do silencioso salão.
-Meu Deus!
Emma levou a mão à garganta. Reginald contemplou Hugh, encantado. -É muito grande, não?
Eduard se levantou de um salto como se livrasse de um feitiço invisível que o tivesse prisioneiro por um momento.
-Sir Hugh. Bem-vindo a este salão. A dama Alice é minha hóspede de honra.
Hugh não fez conta.
-Alice, venha aqui.
-Hugh! -levantou-se de um salto e correu cruzando o salão para dar-lhe as boas-vindas como era devido-. Milorde, me alegro muito de ve-lo. Acreditei que estaria um dia a mais no caminho. Agora, poderá endireitar esta situação.
-O que é o que faz aqui, Alice?
Os olhos do homem refletiam as chamas da chaminé.
-Milorde, rogo que me escute um momento, e tudo ficará esclarecido. -deteve-se bruscamente diante dele, e fez uma profunda reverência, baixando a cabeça-. Posso explicar tudo.
-Sim, não o duvido. e o fará depois. -Hugh não estendeu a mão para ajudá-la a incorporar-se, coisa que fez com lentidão-. Vem. Vamos.
Girou sobre os pés.
Detrás da Alice, Emma lançou uma exclamação se desesperada.
-Tudo sairá bem, mãe -murmurou Reginald-. Já verá.
-Um momento, milorde-disse Alice-. Senhor, temo-me que ainda não podemos partir.
Hugh parou, deu a volta com lentidão, e a olhou de frente.
-Por que não?
Alice reuniu coragem. Não era fácil. Compreendeu que teria que proceder com cautela para conjurar o diabo que havia nele. Nesse momento, como único aliado tinha sua própria inteligência.
-Antes, terá que dizer a Eduard de Lockton que saia deste castelo junto com seus homens.
-É certo isso?
Eduard lançou uma gargalhada áspera e se adiantou.
-A sua prometida é uma criatura encantadora, milorde, mas sem dúvida, obstinada e voluntariosa. -Olhou com desprezo para Alice-. Admito que o invejo pelo prazer de domesticá-la. Tarefa que será interessante.
Alice girou de repente para o intruso:
-Basta, pedaço de homem odioso. Quem acredita que é? Aqui, neste salão, não tem direito algum. Sir Hugh logo se livrará de você.
Os dentes amarelados do sujeito apareceram entre a barba, e olhou de soslaio a Hugh com expressão confiante.
-Milorde, se quiser minha opinião, você é muito indulgente com a senhora. Ao que parece, acredita que pode lhe dar ordens como se fosse um criado. Certamente, uma carícia com o cinto lhe ensinará a conter a língua.
-Um só insulto mais a minha noiva -disse Hugh com muita suavidade-, e o cortarei aí onde está. Compreende-me, Eduard?
Alice ficou radiante de satisfação. Eduard se encolheu, mas não demorou para recuperar-se.
-Não quis ofender, senhor. Foi só uma observação. Eu também, às vezes, gosto das mulheres insolentes.
Alice lançou um olhar de desagrado e se voltou para Hugh.
-Diga-lhe que se vá imediatamente, senhor. Não tem nada que fazer aqui.
-Ora, mulheres. -Eduard moveu a cabeça-. Não entendem nada da vida, não é certo, senhor?
Hugh o examinou com a vaga curiosidade com que um falcão satisfeito mostraria para a comida.
-Por que você está aqui?
Nos olhos maliciosos de Eduard apareceu um resplendor matreiro.
-Bom, isso é óbvio, não senhor? Ninguém ignora que o senhor de Rivenhall já não conta com dinheiro nem homens para defender suas terras.
-Por isso lhe ocorreu apropriar-se enquanto ele está ausente? -o tom de Hugh era de fria curiosidade.
-Sabe-se que você jurou não tomá-las diante de Erasmus de Thomewood. -Eduard abriu as mãos-. É legendária a sua reputação de não quebrar um juramento, senhor. Mas o juramento a seu suserano não se aplica ao resto de nós, os pobres cavalheiros que temos que abrimos caminho na vida, não é certo?
-Certo.
Eduard riu.
-De qualquer maneira, Erasmus de Thomewood está morrendo. e não virá em defesa de Rivenhall.
Emma abafou uma exclamação.
-Não se apropriará da herança de meu filho, sir Eduard.
Os olhos do sujeito brilharam.
-E quem me impedirá isso, lady Emma, me diga?
-Sir Hugh o fará -exclamou Reginald-. Lady Alice prometeu.
Eduard soprou com desprezo.
-Não te faça de tolo, moço. Lady Alice não manda em seu senhor, por mais que ela o ache. É ao contrario, e logo descobrirá por si mesmo.
Reginald apertou os punhos e se dirigiu a Hugh.
-Sir Eduard tentou machucar a minha mãe. Lady Alice disse que você não lhe permitiria ficar em Rivenhall.
-Claro que não permitirá -confirmou Alice.
Emma deu um passo adiante e elevou as mãos em pose de súplica.
-Milorde, sei que você não sente carinho por esta casa, mas lhe rogo que honre o juramento de sua prometida de defendê-la.
-Fará-o -assegurou-lhe Alice-. Lorde Hugh me deixou ao comando. Concedeu-me autoridade para atuar em lugar dele e, portanto, apoiará-me.
-Ela prometeu que você me ajudaria a salvar a propriedade de meu pai.
Reginald cravou em Hugh um olhar espectador.
Eduard deu uma palmada na coxa como se estivesse ouvindo uma boa brincadeira.
-O moço tem muito que aprender, né? Dois de seus homens, riram, inquietos.
-Basta. –Com uma só palavra, Hugh conseguiu silenciar outra vez o salão. Olhou ao Eduard-. Reúna a seus homens e vá-se.
Eduard piscou várias vezes. -O que significa isto?
-Já me ouviu -disse Hugh sem alterar-se-. Saia imediatamente deste salão ou darei ordem a meus homens de que recuperem o castelo. -Percorreu outra vez a habitação com o olhar, sem dúvida para verificar as posições de Dunstan e dos homens armados de Scarcliffe-. Não levará mais de uns minutos fazê-lo.
Eduard estava indignado.
-Perdeu o juízo, homem? Salvará este salão por ordem de uma mulher?
-Lady Alice diz a verdade. Deixei-a no comando durante minha ausência. Apoiarei a decisão dela nesta questão.
-Isto é uma loucura -resmungou Eduard-. Não pode ser verdade que queira me tirar daqui à força.
Hugh deu os ombros.
-Quando entrava, não pude deixar de notar que, junto ao muro, meus homens são mais que os seus.
Tenho a impressão de que sir Dunstan tem o controle nesta estadia. Quer comprová-lo?
Eduard ficou vermelho de fúria, mas logo, em seus olhos apareceu uma expressão sagaz.
-Por todos os diabos, agora compreendo. Quer apropriar-se você mesmo deste lugar, não é certo? Pense ao juramento que fez a Erasmus, pensa em se aproveitar da situação para tomar estas terras e vingar-se de Rivenhall. Isso é respeitável, senhor, mas, que lhe pareceria aliar-se comigo?
-Milorde Hugh --exclamou Emma, desesperando-se-. Rogo-lhe que tenha piedade.
-Por todos os Santos -Alice pôs os braços na cintura e dirigiu a Eduard um olhar furioso-. Não seja mais estúpido que o necessário. Lorde Hugh não quebraria o juramento. -Olhou carrancuda para Hugh-. .Não é certo, senhor?
Hugh olhou a Eduard.
-A honra de um homem é tão sólida como seu juramento. Lady Alice atuou em meu lugar quando lhe ordenou que se fosse deste salão. A autoridade que exerce emana de mim. Compreende?
-Não pode falar a sério, milorde –protestou Eduard-. Deixará que uma simples mulher dê ordens em seu nome?
-É minha noiva -respondeu Hugh com frieza.
-Sim, mas...
-Por isso, sou a sócia -informou- Alice a Eduard.
-Parta imediatamente -disse Hugh-. Ou prepare-se para lutar.
-Pelos dentes do demônio -vociferou Eduard-. Não posso acreditar
Hugh apertou o punho da espada. Eduard retrocedeu depressa.
-Não quero brigar com você, sir Hugh.
-Então, vá.
-Ora. Quem acreditaria que Hugh, o Implacável, tem cansado sob o enfeitiço de uma ruiva de língua afiada que...?
-Basta -disse Hugh.
Eduard cuspiu no chão. -Lamentará o dia em que se submeteu aos caprichos de uma mulher, lembre-se disso.
-Pode ser, mas esse é um problema meu, não seu. -Já me cansei destas tolices.
Eduard deu a volta e se encaminhou a passos largos para a porta, indicando a seus homens que o seguissem.
Hugh olhou para Dunstan.
-Acompanha-o até a porta.
Dunstan relaxou um pouco.
-Sim, milorde.
Fez um sinal aos homens de Scarcliffe.
Alice observou, satisfeita, enquanto Eduard e seus homens partiam.
-Viu, Reginald? Disse que tudo sairia bem.
-Sim, senhora.
Reginald contemplou Hugh encantado.
Emma juntou as mãos, e seu olhar ansioso passou de Alice a Hugh.
-Milorde, rogo-lhe... quero dizer, devo lhe perguntar se pensa... se...interrompeu-se vacilante.
Alice soube o que preocupava a Emma. Para Hugh seria muito fácil apropriar-se do que acabava de deixar Eduard de Lochon.
-Tranqüilize-se, Emma. Rivenhal está a salvo de lorde Hugh.
-Não ficarei com o castelo, milady -confirmou Hugh sem sinal de emoção-. Jurei-o diante de Erasmus de Thornewood, apesar dos que alguns acreditam, ainda está vivo. Enquanto viva, conta com minha lealdade.
Emma lhe dirigiu um sorriso trêmulo.
-Obrigado, ,.milorde. Sei que o juramento não o obrigava a defender Rivenhall. Para você teria sido mais conveniente deixá-lo nas mãos de Eduard de Lockton.
-Sim. -Hugh lançou a Alice um olhar inescrutável-. Mais conveniente.
Reginald se adiantou e fez uma breve reverência a Hugh.
-Senhor, em nome de meu pai, dou-lhe obrigado por sua ajuda.
-Não me agradeça. Foi mérito de minha noiva.
-Esteve magnífica -suspirou Emma-. Estaremos eternamente agradecidos. Sem ela teríamos estado perdidos.
Alice sorriu, ditosa.
-Não foi para tanto. Só invoquei o poder da legendária reputação de lorde Hugh.
-Certo. -Os olhos do Hugh ardiam-. E logo aprenderá que todo poder tem um preço.
-Teve boas intenções, milorde. -Dunstan contemplava com admirada fascinação como Hugh fazia girar a taça de vinho entre as mãos-. Afinal de contas, é uma mulher. É de coração generoso. Quando o pequeno Reginald lhe rogou que salvasse sua mãe, não teve coragem para negar. Rivenhall estava a beira do desastre. Vincent havía despojado as suas próprias terras do pouco que seu pai lhe deixou, para poder pagar essas justas intermináveis. Não deixou nem homens suficientes para guardar o castelo. Estava destinado a cair nas mãos de um sujeito como Eduard de Lockton.
Hugh fixou a vista nas chamas. Assim que retornaram de Rivenhall com a Alice e os soldados, tinha ido diretamente para seu próprio estudio. Não houve oportunidade de falar com Alice enquanto durou a louca volta sob a tormenta.
Fora, a fúria desatada do vento e a chuva castigavam os muros negros de Scarcliffe. O ânimo do senhor refletia a tempestade. Tinha estado tão perto. Por um instante, crispou a mão ao redor da taça de vinho. Tão perto. A vingança esteve ao alcance da mão.
-Me lembro bem o que opinava a princípio.. de minha noiva... fico assombrado com o modo que a defende, Dunstan.
Dustan ruborizou.
-Não podia estar inteirada de seus planos, senhor.
-Tinha que ser tão oportuno... -Fixou a vista no centro das chamas-. Rivenhall estava a bordo do desastre. Vincent tinha despojado a suas próprias terras do pouco que seu pai lhe deixou, para poder pagar essas justas intermináveis. Não deixou nem mesmo homens suficientes para custodiar o castelo. Estava pronto para cair em mãos de um sujeito como Eduard de Lockton.
Dunstan exalou um pesado suspiro.
-Eu sei que você esperava que Rivenhall caísse por seu próprio peso.
-Era um plano muito simples, Dunstan.
-Sim.
-Mas ela se meteu onde não era chamada. Estragou tudo.
Dunstan clareou a voz.
-Você a deixou ao comando de Scarcliffe, senhor.
-De Scarcliffe, não de Rivenhall.
-Não lhe esclareceu quais eram os limites de sua autoridade, senhor -insistiu Dustan.
-É um engano que daqui em diante não repetirei.-Hugh bebeu da taça-. Sempre aprendo com meus enganos, Dunstan.
-Senhor, devo dizer que a senhora atuou com grande coragem. Nunca vi outra como ela. Entrou a cavalo pelas portas de Rivenhall, com os soldados atrás como se fosse uma rainha ao mando de um exército.
-Ah, sim?
-Deveria ter visto a expressão de Eduard de Lockton quando viu que quem cavalgava sob suas bandeiras era uma mulher. Ficou muito nervoso. Não sabia o que pensar. Abrigou a esperança de que você não a apoiaria quando se inteirasse do que tinha feito.
-Não tive mais alternativa que apoiá-la. Não me deixou outra opção. Atuou em meu nome. -Fez uma careta-. Não, foi mais à frente, sabe? Considera-se minha sócia. Uma sócia nos negócios.
-Diga o que for, tem que saber que possui uma coragem similar ao de qualquer homem. –Fez uma pausa significativa-. Na realidade, uma coragem como sua, milorde.
-Acha que não sei? -perguntou com muita suavidade-. É um dos motivos pelos que decidi me casar com ela, se por acaso não se lembra. Queria passar essa coragem a meus herdeiros.
-Senhor, ouvi-lhe dizer que o poder exige um preço. Possivelmente, a coragem também.
-Sim, assim parece. Está claro que se ocupou de que eu pagasse um alto preço por isso, não é assim? E pensar que eu me considerava hábil para negociar e regatear...
Dunstan suspirou outra vez.
-Milorde, peço-lhe que tenha em conta que lady Alice não podia saber até que ponto chegam os seus sentimentos para o Rivenhall.
Hugh afastou a vista das chamas e a fixou nos olhos de seu antigo amigo:
-Ah, nisso está equivocado, Dunstan. Alice sabia o que eu sinto com respeito a Rivenhall. Sabia muito bem.
-Asseguro-o que era um espetáculo impressionante, Alice --disse Benedict, golpeando com a bengala o chão manifesto entusiasmo. Estava junto à janela, e deu a volta com o semblante iluminado de excitação-. Havia caixas com especiarias empilhadas até o teto. Canela, gengibre, pimenta e açafrão. Cada vez, lorde Hugo tinha que contratar guardas para guardar os armazéns.
-Não me surpreende.
Alice uniu as mãos sobre a mesa, tentou prestar atenção a Benedict, que relatava a viagem a Londres. Não era fácil. Tinha a mente fixada nos sucessos do dia anterior.
A tormenta se desvaneceu com o sol da manhã. Uma luz cálida que se derramava pelas Janelas banhava a coleção de cristais, conferindo-lhes um resplendor interior inclusive à feia pedra verde.
Alice desejava que o clima estranhamente agradável se refletisse no ânimo de Hugh, mas não confiava muito nessa possibilidade. Não o tinha visto nem falado com ele desde que chegaram ao castelo na noite anterior. e não estava totalmente segura de querer fazê-lo.
Sabia que tinha atiçado o fogo do passado dentro dele. Só faltava ver quanto tempo arderia antes de apagar-se outra vez. Enquanto isso, pareceu-lhe prudente evitar a fonte de conflito.
-Tem muitos empregados, Alice. Escrivãos, empregados e mordomos. Negocia com membros da Associação das Especiarias e fazem contratos com os capitães dos navios. Trafegam com garbosos comerciantes. Uma tarde, fomos aos porto e vimos como descarregavam um navio. Traziam do Oriente as mercadorias mais exóticas.
-Deve ser fascinante.
-Sim. Mas o mais interessante foi a biblioteca onde se guardam os registros das viagens e das cargas. O administrador dessa sala me mostrou como se anota cada item da carga em um registro. Emprega um ábaco, igual a lorde Hugh, mas trabalha muito mais rápido. Faz somas enormes em um momento. Sir Hugh diz que é perito no negócio.
O entusiasmo de Benedict conseguiu atrair a atenção de Alice, e o olhou, pensativa.
-Parece-me que gosta desse trabalho.
-Se pudesse trabalhar com lorde Hugh, sem dúvida que o adoraria -admitiu-. Ele afirma que emprega às pessoas mais capazes, e logo lhes dá autoridade para levar a cabo suas tarefas como lhes parece melhor. Diz que é o melhor.
Alice fez uma careta.
-O que faz se alguma pessoa empregada por ele excede a autoridade?
-Suponho que a despede -respondeu o moço, indiferente.
-Despedirá-se de uma futura esposa com a mesma facilidade? -perguntou-se.
Atraiu sua atenção um leve ruído no corredor. Olhou, ansiosa, para a porta, esperando que os passos abafados que ouvia anunciassem a chegada de Elbert ou outro dos criados. Uma hora antes, tinha mandado o mordomo falar com Hugh que queria falar a sós com ele. Até então, não tinha tido resposta.
Os passos seguiram até a porta do estudio de Alice sem deter-se, e se perderam pelo corredor. Exalou um breve suspiro.
Benedict a olhou:
-O que disse?
-Nada. Me fale mais de sua viagem a Londres. Onde lhe alojaram?
-Em uma estalagem que sir Hugh gosta. A comida era simples, mas a cozinheira não tentava dissimular a carne velha nos guisados, e a roupa de cama era limpa. Sir Hugh diz que isso é o que alguém tem que pedir a uma estalagem.
-Havia alguma mulher nesse lugar? -perguntou, com cautela.
-Sim, algumas que trabalhavam no botequim. Por que o pergunta?
Alice levantou a pedra verde e fingiu examiná-la. -O senhor Hugh falava com elas?
-Claro, quando pedia que trouxessem comida ou cerveja a nossa mesa.
-Foi com uma delas?
-Não. -Benedict adotou um ar confuso-. Aonde iria com uma empregada de botequim?
Dentro de Alice, algo se distendeu. Deixou a pedra e falou a seu irmão.
-Não tenho idéia. Era pura curiosidade. Conte-me mais a respeito de Londres.
-É um lugar assombroso, Alice. Há tanta gente, e negócios. Muitos edifícios.
-Deve ser fascinante.
-Sim. Mas sir Hugh diz que prefere a comodidade de seu próprio salão. -deteve-se junto a uma mesa de trabalho e brincou com o astrolábio-. Alice, estive pensando em meu futuro. Acredito que já sei o que quero fazer.
Alice ficou carrancuda.
-Já escolheu sua carreira?
-Queria me converter em um dos homens de sir Hugh.
Olhou-o atônita:
-Fazendo o quê?
-Quero entrar no comércio de especiarias -afirmou, entusiasmado-. Quero aprender a trabalhar com a contabilidade e a fazer contratos com os capitães dos navios. Quero fiscalizar a descarga dos navios e a venda de especiarias. É fantástico, Alice, não imagina.
-De verdade acha que gostará desse tipo de atividade?
-Seria muitíssimo mais interessante que a de leis. Alice sorriu um pouco triste.
-Vejo que sir Hugh obteve o que eu não pude.
Benedict a olhou:
-O que?
-Deu-lhe uma amostra do que é o mundo, e vontade de construir seu próprio futuro. É um magnífico presente.
"E enquanto Hugh teve a bondade de brindar com semelhante presente a meu irmão -pensou Alice, triste-, eu o privei de sua desejada vingança."
Naquela tarde, quando Alice desceu pela escada da torre para o almoço, fez-se um assombrosso silêncio no salão principal.
O tinido de jarras e facas cessou por um instante. Criadas atarefadas se detiveram para olhar. Os homens sentados nos bancos das longas mesas de cavalete calaram. Gargalhadas se cortaram de repente.
Todos a contemplaram atônitos. Alice sabia que estavam emocionados, não só por sua presença mas também por sua aparência com o novo vestido negro e âmbar.
A ninguém escapou o significado desse traje. A noiva de Hugh levava as cores do futuro esposo.
Um murmúrio em surdina de curiosidade e assombro percorreu o salão.
Alice sorriu com certa ironia: sua entrada suscitava uma sensação só superada pelo tipo de impacto que Hugh gostava de provocar.
Percorreu o salão com os olhos até onde estava sentado sob o novo dossel negro e âmbar.
Apesar da tensão no salão, Alice não pôde evitar a satisfação pelo efeito que Julian tinha criado. Havia toalhas nas mesas, tapeçarias nas paredes, ervas aromáticas frescas sobre os tapetes limpos. Muitos dos criados já vestiam as novas cores.
Hugh estava muito arrumado, sentado à mesa principal, na enorme cadeira negra.
Também parecia muito frio e distante. A sensação fugaz de prazer que percorreu Alice se dissipou: não a tinha perdoado por ir em auxílio de Rivenhall.
-Milady. -Elbert apareceu junto à Alice com expressão nervosa-. Comerá hoje conosco?
-Sim.
O semblante de Elbert irradiou um inconfundível orgulho.
-Permita-me acompanhá-la à mesa principal.
-Agradeço-lhe isso.
"É evidente que Hugh não vai conceder-me a cortesia", pensou.
Hugh a contemplava com arrepiante intensidade enquanto caminhava para a mesa principal. Não se levantou da cadeira de ébano até que Alice esteve quase junto a ele. No último minuto, ficou de pé, inclinou a cabeça com gesto gelado, e tomou a mão para fazê-la sentar. Sentiu os dedos como argolas de ferro ao redor da palma suave de sua mão.
-Que amável é aos honrarnos com sua presença, lady Alice -murmurou.
O tom a fez estremecer-se, e soube que ele percebeu a reação. Tratou de aquietar o pulso acelerado enquanto se sentava.
-Espero que goste da comida, senhor.
Alice se apressou a soltar a mão.
-É claro que sua presença dará certo realce ao sabor dos pratos.
Embora entendesse que o lacônico comentário não pretendia ser uma adulação, decidiu fingir que o era:
-É muito gentil, senhor.
Hugh voltou a sentar-se. reclinou-se contra o respaldo esculpido da cadeira, apoiou um cotovelo em um dos braços maciços, e observou a Alice com expressão perigosa.
-Poderia perguntar por que, uma mulher de tão refinada sensibilidade decidiu comer em tão grosseira companhia?
Alice sentiu que se ruborizava de vergonha. -Não considero que a companhia seja grosseira. -Fez um gesto para Elbert, que ficou precipitadamente em ação-. Estava impaciente por comer na presença com milorde.
-Sério?
Não pareceu notar o vestido novo.
Alice compreendeu que não seria fácil. Mas, assim eram as coisas com Hugh. Olhou ao redor em busca de algo que a ajudasse a mudar de tema e sua vista se posou em um homem desconhecido sentado no outro extremo da mesa. Estava vestido com vestimentas religiosas.
-Quem é o nosso hóspede? -perguntou, cortês.
-O sacerdote que trouxe comigo.
Hugh lançou um olhar de moderada curiosidade a uma elegante travessa de pescado em molho que punham diante de si. O pescado estava banhado com uma nata de cor açafrão.
-Amanhã celebrará o casamento.
Alice engoliu em seco.
-O casamento?
-Nosso matrimônio, senhora. -A boca de Hugh esboçou um sorriso frio-. Ou o tinha esquecido?
-Não, claro que não.
Alice ergueu a colher e a apertou com tanta força que as nós dos dedos impalideceram. "Por todos os Santos, está furioso -pensou-. Muito mais do que esperava." Alice não sabia o que fazer.
Não tinha idéia de como dirigir a Hugh quando estava daquele jeito. Sentiu que a abatia o desespero, e o combateu com toda sua vontade.
-Não respondeu minha pergunta.
Hugh se serviu de uma fatia de bolo de queijo e que uma criada levou a mesa.
-O que pergunta, milorde?
-Por que decidiu a comer com seu futuro senhor e seus homens?
-Não é uma atitude condescendente. Só queria desfrutar da comida em sua presença. É isso tão estranho, acaso?
Hugh o pensou um momento, enquanto provava um pedaço do bolo.
-Sim, muito estranho.
"Está brincando comigo -pensou Alice-. Me provocando. "
-Bom, é verdade, senhor. -concentrou-se em uma travessa de verduras com molho de amêndoas--. Queria dar-lhe as boas-vindas por sua volta de Londres.
-Dar-me as boas-vindas ou me aplacar?
A fúria de Alice seagitou e deixou cair a colher com um golpe:
-Não estou aqui para aplacá-lo, senhor.
-Está certo disso? -Nas comissuras da boca de Hugh brincou um sorriso sem humor-. observei que, freqüentemente, quando procura um benefício, suas maneiras melhoram muito. Poderíamos ver seus atos de hoje como os de uma mulher que sabe que passou dos limites. É possível que queira compensar o que fez ontem?
Alice compreendeu que não poderia comer mais nenhuma porção. Levantou-se bruscamente e o enfrentou.
-Fiz o que acreditei necessário.
-Sente-se.
-Não, não me sentarei, senhor. Vim hoje comer com você porque queria ver se você gostava das melhorias que fizemos no castelo. -Indicou com uma mão o dossel negro e âmbar que tinham sobre a cabeça-. Não há dito uma palavra dos adornos.
-Sente-se, Alice.
-Nem tampouco se dignou a prestar atenção na excelente comida. -Olhou-o colérica-. Passei horas organizando esta casa enquanto esteve ausente, e não se dignou a pronunciar uma simples palavra amável. Diga-me, você gosta do bolo, milorde? Percebe que está quente, não frio?
Hugh entreabriu os olhos.
-Neste momento, interessam-me mais outros assuntos.
-Provou a cerveja? Está recém feita.
-Ainda não a provei.
-Gosta do perfume agradável das toalhas? O que me diz dos tapetes novos que cobrem o chão? Notou que as roupas foram lavados com muita água e agora exalam uma agradável fragrância?
-Alice...
-O que acha das novas cores que Julian e eu escolhemos com tanto esmero? Adicionei o âmbar para combinar com seus olhos.
-Senhora, asseguro-a que se não se sentar imediatamente vá...
Sem lhe fazer caso, agitou as dobras da saia.
-E meu vestido novo? As donzelas trabalharam até a noite para terminar o bordado. Você gosta?
Hugh abrangeu com um olhar o vestido negro e âmbar.
-Acaso acha que vê-la usando minhas cores me suavizaria? -Apertou a mão com ferocidade no braço da cadeira-. Demônios, acha que me imporo mais com as roupas limpas do que com a vingança?
Alice estava indignada.
-Não fiz outra coisa além do que você faria se estivesse aqui, quando o pequeno Reginald veio em busca de ajuda.
Os olhos do Hugh brilharam de fúria.
-Espera desculpar seus atos com uma lógica tão pobre?
-Sim, milord, assim é. Nunca me convencerá de que teria deixado a lady Emma, ao filho pequeno e toda a propriedade cair nas garras desse espantoso Eduard de Lockton. Deixando de lado o que sente por Rivenhall, é muito nobre para permitir que os inocentes sofram por causa de uma vingança.
-Não me conhece.
-Está enganado. Conheço-o o bastante, senhor. E, em minha opinião, é desafortunado que sua nobreza só seja superada por sua monumental obstinação.
Alice recolheu as saias, girou e se afastou correndo da alta mesa. Quando chegou à porta, as lágrimas ardiam em seus olhos. Desceu correndo as escadas e saiu ao sol.
Não se deteve nem olhou atrás, ao sair pelas portas do castelo.
Não soube por que foi à caverna. Certo motivo oculto fez que Alice encontrasse consolo nas sombras da grande caverna onde ela e Hugh tinham feito amor. Foi uma longa carreira enlouquecida. O que acreditava conseguir fugindo do castelo de maneira tão vergonhosa?
Sentou-se em um penhasco que aparecia perto da entrada, e inspirou profundas vezes para recuperar-se da louca carreira. Estava desarrumada e exausta.
O adorno que prendia os cabelos deslizou para o lado. Sobre as faces se agitavam mechas frisadas de cabelo acobreado. Os sapatos de macio couro negro estavam arruinado. As saias do vestido novo, manchadas de terra.
Estava certa de que quando Hugh se acalmasse compreenderia por que Alice foi ao resgate de Rivenhall. Segura de que a perdoaria. depois de tudo, era um homem inteligente, não um bruto como Eduard de Lockton.
"Por outro lado, não eraa toa que lhe chamavam, Hugh o Implacável", recordou-se. Os que o conheciam, asseguravam que nada podia lhe fazer mudar de atitude uma vez que se decidia. E havia, decidido vingar-se desde o dia do nascimento.
Alice sentia o coração pesado. Seu habitual otimismo se converteu em profunda melancolia, sentimento que não lhe resultava familiar. Estava tão acostumada a fazer planos para o futuro que pensar que podia estar sem planos a impressionou.
Contemplou a paisagem de Scarcliffe e se perguntou, pesarosa, como podia casar-se com um homem sem coração. Possivelmente tinha chegado o momento de voltar a pensar em uma vida tranqüila, encerrada entre os muros de um convento.
Possivelmente era hora de esquecer-se dos ingênuos sonhos de amor.
Compreendeu com estranheza que até conhecer Hugh nunca a tentaram tais sonhos. Alice tentou pensar com calma e lógica na situação: ainda não estava casada, ainda havia tempo para escapar do compromisso.
Podia obrigar a Hugh a cumprir sua parte do acordo. Podia dizer e fazer muitas coisas, mas era um homem em quem era possível confiar em relação a palavra empenhada. Na noite anterior, em Rivenhall, teve prova suficiente. Cumpriu a promessa que lhe tinha feito, embora tenha lhe custado a vingança.
Claro que existia a possibilidade de que se alegrasse de romper o compromisso. Alice demonstrou ser para Hugo muito menos conveniente do que tinha pensado.
Ao pensar nisso seus olhos encheram-se de lágrimas. Começou a limpá-las com a manga, hesitou, e ao fim sucumbiu a vontade de chorar. Apoiou a cabeça sobre os braços flexionados e se entregou à tormenta emocional que a arrasava.
Nunca na vida se havia sentido tão sozinha.
Passou um tempo até que a maré de sentimentos se esgotasse por si mesmo. Por fim, deixou de soluçar e permaneceu sentada, a cabeça apoiada nos braços, até que recuperou a calma.
Então, dedicou-se a si mesma uma série de repreensões silenciosos. "Nada resolve com lágrimas” -disse-se-. “Não se pode perder tempo lamentando o passado. “
Para falar a verdade, se tivesse que fazer tudo outra vez, não mudaria nada do que fizera ontem. Não podia dar as costas ao pequeno Reginald e a Ema.
Tinha estado segura de que Hugh compreenderia, de que ele tivesse feito o mesmo que ela.
Mas, sem dúvida, enganara-se ao julgar aquela escura lenda que era Hugh.
Aspessoas tinham que deixar os enganos para trás. Era hora de seguir adiante. Se algo aprendera na vida, era que uma mulher tinha que ser forte se queria controlar seu próprio destino.
A dificuldade com que se deparava nesse momento residia no fato de que se tratava de um homem que tinha aprendido a mesma dura lição.
Enxugou os olhos com as dobras da saia, exalou um profundo suspiro para acalmar-se, e ergueu lentamente a cabeça.
A primeira coisa que viu foi Hugh. Estava apoiado, como descuido, na parede da caverna; os polegares enganchados no cinturão, a expressão inescrutável.
-Conseguiu impressionar o sacerdote -disse sem ênfase-. Não acredito que tenha presenciado antes um espetáculo semelhante em um almoço.
Alice sentiu seu estômago contrair-se.
-A quanto tempo está ai, me espiando? Não o ouvi chegar.
-Eu sei. Estava muito ocupada chorando.
Alice afastou a vista daquele rosto duro, implacável. -Veio para continuar me provocando? Se for assim, advirto-o que não estou com humor para continuar brigando.
-Que estranho. Nunca a vi cansada de combater.
Alice lhe lançou um olhar furioso.
-Por todos os Santos, Hugh, já foi suficiente.
-Se devo dizer a verdade, para mim também.
O tom irônico a desconcertou, e sufocou imediatamente a faísca de esperança que tinha surgido.
-Veio pedir desculpas, milorde?
Hugh apenas sorriu.
-Não abuse muito da sorte, Alice.
-Não, é obvio que não veio por algo tão sensato e lógico. Bom, milorde, então, se não foi para pedir desculpas, para que me seguiu?
-Disse para não vim sozinha às cavernas.
"Está evitando o assunto -pensou, surpreendida-. Isso não é próprio de Hugh."
-É verdade, disse-o. No dia em que me deu o anel. -olhou-se a larga pedra negra que parecia lhe pesar no polegar. Uma nova sensação de tristeza a arrasou-. Mas, sem dúvida, esta transgressão empalidece em comparação com meu terrível pecado de ontem -murmurou.
-Sim, assim é.
Teria gostado de adivinhar o que era o que Hugh estava pensando. Seu humor era indecifrável, mas não parecia muito furioso. De repente, lhe ocorreu que talvez o próprio Hugh não soubesse bem o que sentia. A faísca de esperança renasceu.
-Veio me dizer que deseja desfazer o compromisso? -perguntou com frieza.
-Se o fizer, me perseguirá nos tribunais?
Alice se irritou:
-Não seja ridículo. Fizemos um acordo, recorda?
-Sim. -ergueu-se e se separou da parede. inclinou-se, agarrou-a pelos ombros e a fez levantar-se com delicadeza-. Não me submeterei a julgamento por romper a promessa, verdade?
-Não, milorde.
-Mas bem, ficará muito contente de escapar e se encerrar em um convento. Não é assim?
A jovem ficou rígida.
-Milorde, sei que está muito zangado pelo que fiz, mas quero que saiba...
-Silêncio. -Os olhos do homem reluziram-. Não falaremos mais do que passou ontem.
Alice piscou:
-Não?
-Depois de muito pensar, tive que chegar à conclusão de que o ocorrido ontem em Rivenhall não foi por sua culpa.
-Não?
-Não. -Retirou as mãos dos ombros da Alice-. Foi minha culpa, e só minha.
-Sério?
Sentiu-se como se tivesse passado por uma janela mágica e estivesse em um país estranho, onde a lógica corrente estivesse um pouco desviada.
-Sim. -Cruzou os braços sobre o amplo tórax-. Não fixei com claridade os limites da autoridade que concedi a você. Não levei em conta seu tenro coração.
-Não poderia havê-lo feito, senhor. -Alice começou a sentir-se um pouco irascível- Terá que ter em conta que não parece saber o que é possuir um coração. E poderia adicionar que embora me tivesse proibido estritamente de ir a Rivenhal, eu o teria desobedecido.
Hugh esboçou uma leve sorriso.
-Não sabe quando se calar, não é, Alice? E pensar que me chamam o Implacável! Você poderia me dar lições nesse sentido.
-Insisto, milorde, em que se tivesse estado aqui e visto o pequeno Reginald suplicar ajuda, até a pedra que tem no lugar do coração teria se abrandado.
-Não acredito. Não teria perdido de vista minha meta final.
-Senhor, esse menino é de seu sangue, você goste ou não. Mais ainda, nem ele nem a mãe têm nada que ver com o que aconteceu no passado. Nenhum dos que vivem hoje tem nada que ver. Deixa descansar os pecados antigos.
-Basta. -Hugh cortou o fluxo de palavras lhe pondo um dedo sobre os lábios-. Surpreenderia-te saber que não vim aqui brigar com você.
-Não?
Olhou-o com assombro zombador.
-Não. -A mandíbula de Hugh se tensionou-. Nenhuma palavra mais sobre o que passou ontem em Rivenhall, Alice. O fato, está feito.
Alice o olhou, emudecida, percebendo com plena intensidade a excitante aspereza do dedo contra sua boca suave. Por um momento, Hugh se limitou a contemplá-la, como se procurasse nesses grandes olhos alguma sinal.
-Alice, a última vez que estivemos nestas cavernas, disse-me que até então nunca tinha feito amor porque não conheceu um homem que a atraísse.
-Era a verdade. -"Não toda a verdade. O certo nunca conheci um homem que pudesse amar", adicionou para si-. E então?
Não lhe respondeu, mas sim a atraiu para si, segurou-lhe a cabeça desalinhada com uma mão enorme, e a beijou.
A sombria paixão do abraço aflorava muito perto da superfície, e Alice tremeu sob seu ataque.
Sempre tinha tido consciência do limites a que chegava o controle de Hugh quando a tinha nos braços. Mas esse dia sentiu que lutava contra os laços de aço que impôs a si mesmo. Perguntou-se que força terrível o teria levado tão perto dos limites de seu controle.
No beijo, percebeu o resto do aborrecimento e a irritação. A boca se moveu sobre a dela, sem retroceder em sua exigência. Acreditou ouvir, quase, a tormenta que soprava uivando na alma de Hugh.
Mas de súbito, Alice compreendeu que não a machucaria, que não queria nem podia fazê-lo. Rodeou-lhe o pescoço com os braços.
Hugh ergueu a cabeça no mesmo instante em que Alice gemia e abria os lábios. Contemplou essa boca entreaberta com desejo:
-É hora de que voltemos para o castelo. Temos muito que fazer antes do casamento de amanhã.
Alice abafou um gemido. Exalou um profundo suspiro e tratou de serenar-se.
-Milorde, possivelmente teríamos que esperar um pouco mais antes de fazer nossos votos.
-Não, senhora. -O tom se endureceu-. É muito tarde.
-Se para você não é mais que uma questão de honra cavalheiresca, fique tranqüilo. Eu não...
-Só uma questão de honra? -de repente, os olhos ambarinos se tornaram ferozes-. Minha honra é tudo para mim, senhora. Tudo. Entende? Tudo o que sou provém dela.
-Não quis dizer que não lhe dou importância a sua honra. Ao contrário, sempre me impressionou muito...
Interrompeu-se, pois com a extremidade do olho captou um objeto. Girou a cabeça para esquadrinhar na escuridão da caverna.
Hugh ficou carrancudo.
-O que houve?
-Por todos os Santos -exalou-. Isso não é uma sandália?
Hugh olhou para a entrada e entreabriu os olhos. -Sim, é. -Soltou Alice e foi a passos largos para o escuro passadiço-. Se esse maldito monge ainda está rondando por aqui, juro que o expulsarei de Scarcliffe com minhas próprias mãos.
-Mas, por que quereria ficar aqui se já não pode pregar? -perguntou, enquanto ia atrás de Hugh.
-Excelente pergunta.
-O que é? -Alice correu atrás dele e olhou por cima do largo ombro. Transbordou-a um profundo desassossego. De súbito, o ar que saía do passadiço pareceu muito frio-. Por todos os Santos!
A sandália estava ainda no pé de Calvert. O monge estava imóvel, sobre o chão de pedra da caverna. A túnica castanha estava amontoada sobre o corpo ossudo como se fosse roupa suja.
Nessa penumbra se podia ver que o corpo de Calvert estava extranhamente contraído. Parecia que tinha sofrido intensa dor durante um tempo, mas era evidente que já estava além de qualquer sofrimento. -Está morto -disse Hugh com voz baixa.
-Sim, pobre homem. -Alice se fez o sinal da cruz-. Embora não me agradasse, lamento que tenha morrido aqui, sozinho. O que acha que lhe aconteceu?
-Não sei. Possivelmente caiu e golpeou a cabeça contra o penhasco.
Agarrou com uma mão o tornozelo do monge.
-O que faz?
-Quero olhá-lo mais de perto. Há algo estranho em tudo isto.
Arrastou o corpo fora da caverna. Alice se apressou em retroceder. Então, viu o estranho tom azul ao redor da boca de Calvert, e um estremecimento de temor a sacudiu.
Recordou algo que tinha escrito sua mãe a respeito das poções feitas com o suco de uma erva estranha. Olhou as unhas do Calvert. As mãos estavam rígidas, em forma de garras, mas mesmo assim pôde distinguir a cor azul debaixo das unhas.
-Milorde.
-O que? -perguntou-lhe, distraído.
Estava concentrado em estirar o corpo do monge para vê-lo a luz na entrada da caverna.
Quando terminou, incorporou-se e observou ao Calvert com expressão especulativa.
-Não acredito que tenha morrido por causa de uma queda -murmurou Alice.
Hugh lhe dirigiu um olhar perspicaz.
-A que se refere?
-Acredito que isto é obra de veneno.
Hugh a olhou por momento.
-Está certa?
Alice assentiu.
-No livro de minha mãe há várias páginas com notas sobre o tema.
-Nesse caso -disse em tom imparcial-, não dirá nada relacionado com o modo em que morreu. Compreende-me, Alice?
-Sim. -A intensidade da voz a enfeitiçou-. Mas não entendo. Por que é tão importante que não diga nada?
-Porque toda a aldeia foi testemunha de seu aborrecimento em relação a ele na igreja. -apoiou um joelho junto ao cadáver-. E porque todos sabem que é perita em poções de ervas.
Alice ficou gelada. Sentiu náuseas. Respirou rápido, tentando controlar as reviravoltas no estômago.
-Meu deus. As pessoas poderiam acreditar que eu tive um motivo para assassinar o pobre Calvert e que sei o suficiente de venenos para fazê-lo.
-Não quero que minha esposa seja manchada por esses rumores, se posso evitar. -Desatou e tirou o saco de couro que Calvert levava no cinturão-. Esta região já teve muitas lendas e maldições. Não quero que se somem outras novas.
Alice estava aturdida. Quase não registrou o que Hugh fazia. Suas pernas tremiam, e se apoiou com uma mão na parede da caverna.
-E se não pudermos evitar esses rumores?
Hugh encolheu os ombros ao mesmo tempo que levantava com a bolsa do Calvert em uma mão. -Nesse caso, eu os enfrentarei. -É obvio. - Abraçou Alice para aliviar o frio que a envolvia-. Parece que estou condenada a lhe causar dificuldades sem fim, milorde.
-Sim, mas estou seguro de que haverá compensações. -Abriu a bolsa de couro e examinou o conteúdo-. Interessante.
Por fim, a expressão de Hugh penetrou na mente confusa de Alice, e a dominou sua natural curiosidade.
-O que é?
Hugh tirou uma lâmina de pergaminho enrolado e o desdobrou com cuidado:
-Um mapa.
Alice se aproximou.
-Do que?
Hugh observou um momento o desenho. Quando, ao fim, ergueu a vista, brilhavam-lhe os olhos como se fossem de ouro.
-Acredito que deve ser um desenho das cavernas de Scarcliffe. Ou, ao menos, as que Calvert teve tempo de explorar.
Alice correu aonde estava Hugh. Olhou as linhas do mapa.
-Olhe, milorde, marcou vários túneis. Vê?: Aqui indica que estas duas passagens estão vazias. -Olhou-o- Do que acha que estão vazios?
-Eu não acredito que nosso monge tenha passado todo o tempo orando nas cavernas. Ao que parece, esteve procurando algo. Existe apenas um tesouro que poderia atrair a um homem a estas cavernas.
-As pedras de Scarcliffe - murmurou Alice, maravilhada.
-Claro. Possivelmente por elas o tenham assassinado.
-Você me chamou, senhor?
Julian se deteve na entrada do estudio de Hugh.
-Sim. -Deixou a um lado o jornal de contas-. Entra, Julian. Quero falar com você.
-Espero que não me envie a Londres com uma mensagem antes do banquete de bodas desta tarde. –Julian entrou no aposento e parou diante da mesa. Estive esperando ansioso esse banquete. Aqui, a comida melhorou muito ultimamente. Notou-o?
Hugh entreabriu os olhos.
-Notei-o. Mas não te chamo para falar dos pratos bem preparados que agora alegram minha mesa.
-Claro que não. -Julian sorriu lisonjeador-. Confio em que saiba a quem agradecer as excelentes comidas que desfrutamos.
-Tampouco precido de mais observações a respeito de como está bem organizada minha casa ultimamente. Tenho uma boa provisão de tais comentários. Sou muito consciente de que essas melhorias são resultado da habilidade de minha noiva no manejo do lar.
-Certamente -murmurou Julian-. Então, no que posso lhe servir, milorde?
Hugh tamborilou com os dedos sobre a mesa:
-Tem certa facilidade para os elogios gentis e palavras floridas, não é assim, Julian?
O jovem adotou um ar modesto.
-Sim, rabisco um pouco de poesia e tenho escrito várias canções, senhor.
-Magnífico. Necessito uma lista de elogios.
Julian pareceu confuso.
-Uma lista?
-Com três ou quatro estará bem.
Julian clareou a voz.
-Bem, que tipo de elogios prefere, milorde? Gostaria que se limitasse a sua habilidade com a espada ou a seus triunfos em batalha? Posso escrever um algumas linhas sobre sua lealdade e sua honra.
Hugh o olhou fixo.
-De que demônios está falando?
-Diz que quer elogios, milorde.
-Para mim não -retorquiu Hugh-. Para minha noiva.
Aos olhos do jovem apareceu uma expressão risonha. -Ah, entendo.
Hugh uniu as mãos em cima da mesa e franziu o cenho, em um gesto de concentração.
-Tenho talento para muitas coisas, mensageiro, mas não para inventar a classe de adulações que agradam às damas. Quero que me faça uma lista de frases bonitas que eu possa memorizar e dizer a minha noiva. Compreende-me?
-Sim, milorde. -Julian sorriu, estava deliciado.- E poderia adicionar, milorde, que falou com o mais talentoso artesão para esta tarefa, como sempre. Prometo-lhe que não se decepcionará.
Na noite seguinte, Alice caminhava pelo tapete do imenso dormitório de Hugh, tratando de acalmar o formigamento que sentia no ventre. Nunca na vida havia se sentido tão inquieta como nesse momento. Ela e Hugh já não eram sócios segundo um acordo, e sim marido e mulher.
Passou junto ao fogo e se deteve uma vez mais diante da porta, prestando atenção ao ruído de passos no corredor. Já fazia quase uma hora que tinha se despedido das criadas. Hugh já teria que estar ali.
Perguntou-se se a fazia esperar de propósito para elevar sua paixão até um ponto máximo. "Se esse for seu propósito -pensou-, terá uma surpresa."
Não se sentia mais apaixonada, e sim irritada. "Já me fartei dos ardilosos planos de Hugh -pensou, ressentida-. Este foi um dia muito longo."
Começou com o enterro de Calvert de Oxwick.
Foi sepultado em um pequeno cemitério, detrás da igreja da aldeia. Os únicos presentes foram Alice, Benedict, Hugh e Joan. Geoffrey, o sacerdote que acompanhou a Hugh e a Benedict a Scarcliffe, disse as preces pelo defunto sobre a tumba. Ninguém derramou uma lágrima
Umas horas depois, pouco antes do meio-dia, Geoffrey tinha concluído o serviço de bodas frente à porta da igreja.
Depois, seguiram intermináveis celebrações e um complicado banquete. Alice estava tão cansada de sorrir e de ser amável com todos que acreditou que cairia desmaiada assim que se aproximasse de uma cama.
Mas no momento em que ficou sozinha no dormitório para esperar Hugh, uma profunda inquietação tomou lugar da fadiga. Deixou de andar de uma lado a outro e foi sentar se a um tamborete frente ao fogo. Com a vista cravada nas chamas, tentou imaginar o futuro.
Parecia envolto em uma névoa, não muito diferente da que velava Scarcliffe esse dia. Só havia uma certeza.
Era a esposa de Hugh.
Sacudiu-a um pequeno calafrio. Envolveu-se melhor na bata de noite. Todos os planos para o futuro ficavam para trás. Não havia possibilidade de arrependimento nem de mudar de opinião. Estava comprometida.
Sem aviso prévio, abriu-se a porta atrás de Alice.
Girou a cabeça de repente quando Hugh entrou no quarto.
-Bem-vindo, milorde.
Aliviou-a comprovar que estava sozinho. Ao que parecia, tinha decidido evitar o costume de chegar com uma comitiva buliçosa ao leito nupcial.
-Boa noite... esposa.
Demorou na última palavra, como se fosse algo muito interessante.
As botas de couro negro não faziam ruído sobre o tapete enquanto caminhava para ela. Sem dúvida nenhuma, era uma criatura noturna, um feiticeiro negro que absorvia a luz do fogo e emanava sombras.
Vestia uma das novas túnicas negras, bordada com fio âmbar, que Alice lhe tinha feito. O cabelo negro estava escovado para trás, deixando limpa a fronte alta. O olhar se fixou no fogo.
Alice se levantou em um salto. Deu uma olhada para a mesa onde havia duas taças de vinho e um frasco.
-Você gostaria de beber um pouco de vinho?
-Sim, obrigado.
Hugh se deteve de frente ao fogo, estendeu as mãos para o calor e contemplou Alice, que servia vinho. Clareou a voz.
-Havia dito alguma vez que seu cabelo é da cor de um entardecer brilhante, no momento em que o envolve a noite? -perguntou parecendo compenetrado.
O frasco tremeu nas mãos de Alice, e sentiu que a cor subia às bochechas.
-Não, milorde. Nunca me disso isso.
-É verdade.
-Obrigada, milorde.
Ao ver enchia precipitadamente a taça de vinho, Hugh levantou as sobrancelhas.
-Está nervosa.
-Nestas circunstâncias, parece estranho, meu senhor?
Hugh encolheu os ombros.
-Possivelmente não o seria para quase todas as mulheres, mas você não é como a maioria, Alice.
-E você não é como a maioria dos homens, senhor.
Girou para ele com a taça na mão.
Os dedos roçaram os dela ao tomar a taça.
-No que me diferencio de outros homens?
"Esta não é a conversação que pensava ter na noite de nupcias", pensou Alice. perguntou-se se esperaria uma resposta séria ou se estaria desenvolvendo um novo plano para desconcertá-la.
-É mais inteligente que outros homens que conheci -respondeu, cautelosa-. Mais profundo. Mais difícil de entender, às vezes, e outras, muito mais claro.
-Por isso se casou comigo? -Olhou-a por cima da borda da taça-. Porque sou mais inteligente que outros homens? Mais interessante? Excito sua curiosidade? Seu temperamento inquisitivo? Vê-me como a um objeto estranho, digno de adicionar a sua coleção, talvez?
Alice sentiu um espasmo de inquietação e, de repente, sentiu-se muito desassossegada.
-Não, não é isso.
Com a taça na mão, Hugh começou a percorrer o aposento.
-Casou-se comigo porque demonstrei ser útil?
Alice franziu o sobrecenho.
-Não.
-Resgatei, você e seu irmão, do domínio de seu tio.
-Sim, mas não me casei com você por isso.
-É para ficar com a posse permanente da pedra verde, possivelmente?
-Claro que não. -Alice se irritou-. Que idéia absurda, milorde. Como ia me casar para possuir essa estranha peça de cristal...
-Está segura?
-Muito segura -insistiu, entre dentes.
Hugh se deteve perto de um das colunas da enorme cama negra e esboçou sua perigosa pergunta.
-Então, é por paixão?
O aborrecimento da Alice explodiu:
-Está me provocando outra vez, senhor.
-Só procuro informação.
-Acaso acha que me casaria com você pelo simples prazer de uns beijos?
-Pelos beijos apenas, não, mas sim pelo que segue a eles. Tem uma natureza muito apaixonada, senhora.
-Senhor, isto foi muito longe.
-E também terá que considerar sua grande curiosidade. -A voz ficou áspera-. despertou seu apetite sensual, e quer experimentar mais. O único modo prático de fazê-lo é no leito matrimonial, não é verdade?
Alice ficou atônita.
-Fez de propósito, não é assim? Foi tudo um plano. Já estava suspeitando-o.
-O que foi o que suspeitou?
-Que me beijou, acariciou-me e me fez amor até me deixar sem fôlego porque quis me apanhar por meio da paixão.
-Se o que sentiu até agora lhe pareceu interessante, espere até descobrir quanto mais poderia aprender nesta matéria. Talvez queira ter pluma e pergaminho junto à cama para registrar suas observações.
-Oh, é um demônio, milorde. -Deixou a taça com um golpe sobre a mesa e apertou os punhos-. Mas se equivoca se acha que seria capaz de me casar com você para estar segura de que me fará amor.
-Está segura?
-Não sei o que pretende com esta desagradável conversação. E não penso em continuar participando dela.
Decidida, encaminhou-se para a porta.
-Aonde acha que vai?
-Ao meu próprio quarto. -Apoiou a mão no trinco de ferro-. Quando tiver passado este estranho comportamento, pode me avisar.
-O que tem de estranho que um homem queira saber por que sua esposa se casou com ele?
Alice girou, indignada.
-É muito inteligente para fazer-se de estúpido. Sabe muito bem por que me casei. Fiz porque o amo.
Hugh ficou imóvel. Em seus olhos passou algo sombrio e desesperado.
-Sério? -murmurou, ao fim.
Alice viu a vontade faminta em Hugh, e esqueceu todo propósito de escapar de seu dormitório. Conheceu as ondas das emoções do homem, porque ela mesma as tinha experimentado.
-Milorde, não está tão sozinho no mundo como acha -disse com suavidade.
Soltou o trinco e correu para ele.
-Alice!
Tomou- a nos braços, apertando-a com tanta força que não a deixava respirar.
Depois, sem uma palavra, abriu a camisola de noite e a deixou cair ao chão. Alice tremia quando a deitou sobre os lençóis brancos de linho.
Hugh se arrancou a puxões sua própria roupa e a rancou formado um descuidado montão.
Quando parou diante dela, Alice conteve o fôlego ao ver a enorme ereção, e a invadiu uma corrente de emoções. sentia-se perturbada, excitada e apreensiva ao mesmo tempo. Esteudeu-se lhe para segurar as mãos.
-Minha esposa.
Jogou-se sobre ela, esmagando-a contra a cama.
Alice percebeu um fio da abrasadora necessidade e a crua paixão nos olhos ambarinos quando inclinava a cabeça para apoderar-se de sua boca. Nesse instante soube que, ao fim, os turbulentos vendavais que uivavam no centro de seu ser, liberaram-se.
Perdeu-se na tormenta de seu abraço. Não se parecia com nada que tivesse conhecido até o momento com ele. Daquela vez, não foi sedução calculada e lenta. Foi uma cavalgada furiosa dos ventos de uma tempestade selvagem. Sentiu-se sacudida até um ponto em que quase não podia respirar.
Percebeu a dura mão em um seio. Assim que o mamilo se ergueu, Hugh o apanhou na boca. Os dentes roçaram com delicadeza o casulo sensível, e Alice estremeceu.
Um gemido rouco ressoou no peito de Hugh.
Sua mão desceu, passando pelo ventre, procurando a suave mata enredada. Alice exalou uma exclamação e fechou com força os olhos ao sentir que o homem molhava os dedos na umidade que apareceu entre suas pernas.
E então, antes de que pudesse recuperar o fôlego, estava lhe separando as pernas, e acomodando-se entre elas. Era tão grande. E quente. E duro. Alice sentiu como se estivessem tragando-a viva. Evocou as palavras do belo elogio: um entardecer brilhante, antes de que o envolva a noite.
Hugh se apoiou nos cotovelos para contemplá-la.
Tinha as feições duras, os olhos brilhantes à luz das chamas. Tomou o rosto de Alice entre as mãos.
-Repete que me ama.
-Amo-te.
Sorriu, trêmula, sem temor. Nesse momento, pôde ver os segredos da alma desse homem. "Precisa de mim -pensou-, tanto como eu a ele. Algum dia, compreenderá a verdade."
Penetrou-a com força arrebatadora.
Alice o amava.
Muito tempo depois, Hugh, deitado de costas sobre os macios travesseiros, contemplava as brasas da lareira. Era consciente de uma estranha paz. Era como se os sombrios ventos de tormenta que sopravam em sua alma desde fazia tanto tempo, ao fim se aquietaram.
Ela o amava.
Hugh gozou da lembrança da apaixonada declaração de Alice. "E não é o tipo de mulher que diria semelhantes palavras se não fossem verdade", disse-se. Não as diria, a menos que fossem certas.
Moveu-se, e se estirou com cuidado na enorme cama, pois não queria despertá-la. Estava deitada perto dele, com os quadris acomodados na curva de seu corpo.
"Tem a pele suave", pensou. Tocou-lhe a curva da coxa, maravilhado. Tão morna. E o perfume é mais embriagador que a mais exótica das especiarias.
Alice se moveu um pouco, reagindo ao contato até em sonhos. Apertou o braço com que a rodeava quando ela se aproximou mais. "Escolhi bem", pensou. Alice era tudo o que aparentava ser aquela noite em que o enfrentou com valentia, no salão de seu tio, e se atreveu a regatear por seu próprio futuro e o do irmão.
Tudo isso e mais. Era o mais afortunado dos homens. Tinha esperado encontrar uma esposa que tivesse essas qualidades: coragem, honra e inteligência, tão importantes para ele. Além disso, topou-se com uma que o amava com uma paixão tão doce e ardente que lhe tirava o fôlego.
-Parece contente consigo mesmo, milorde -murmurou Alice com voz sonolenta-. No que está pensando?
Olhou-a.
-Que, ao contrário do que temia ao princípio, não corri perigo de ser enganado quando paguei o preço de seu dote. Sem dúvida, valia esses dois cofres cheios de especiarias.
Alice abafou uma risada.
-É um descarado e um vadio pouco cavalheiresco.
Ajoelhou-se, agarrou um travesseiro e começou a golpeá-lo sem piedade.
Hugh caiu na gargalhada enquanto fingia defender-se.
-Rendo-me.
-Quero mais que uma rendição. -Golpeou-o outra vez com o brando projétil-. Quero uma desculpa.
Arrebatou-lhe o travesseiro e a jogou em um lado. -E o que parece um elogio em troca?
Alice apertou os lábios, pensando na proposta. -Primeiro, tenho que ouvi-la para saber se me satisfará tanto como uma desculpa.
-Seus seios são redondos, frescos e doces como os pêssegos do verão.
Colocou a mão sobre um deles.
-É um verso muito formoso -admitiu.
-Tenho mais -prometeu.
-Mnnn.
Atraiu-a para ele, e Alice se tombou sobre seu peito, morna, suave, tentadora e feminina. Acariciou-lhe o contorno da face de ossos finos. Evocou o dia em que a tinha salvado dos ladrões, no Ipstoke. Recordou como tinha deslocado para ele. Como se já então soubesse que seu lugar era está em seus braços.
-Muito mais -murmurou.
Alice dobrou os braços sobre o peito dele. -Bom, milorde, sem dúvida os versos são muito bonitos, e eu adorarei ouvir mais, mas acredito que neste caso não servirão.
-Segue preferindo uma desculpa?
-Não. -riu-. O que quero é um benefício.
-Um benefício?
-Sim.
-De que tipo? -perguntou, alerta.
Passou os dedos por entre o cabelo revolto. Era adorável, deitada na cama. estremeceu-se ao pensar que, se não tivesse sido por uma antiga lenda e pelo capricho do destino, jamais a teria conhecido.
"Mas talvez estivesse destinado a encontrá-la desde o dia em que nasci."
-Ainda não sei. Queria mantê-lo em reserva, por assim dizer, até que chegue um dia em que tenha que cobrá-lo.
-Sem dúvida vou lamentar, mas não estou de humor para regatear com você esta noite. Pode contar com minha promessa de um benefício futuro, senhora.
Alice ofendida agitou as pestanas.
-É muito gentil, milorde.
-Sei. É por certo, um de meus grandes defeitos.
Na manhã seguinte, Dunstan cuspiu sobre a terra com seu acostumado entusiasmo, e contemplou a porta que pendurava do armazém.
- Belo dia, milorde.
-Sim. -Hugh olhou a porta quebrada com sensação de profunda satisfação-. Não há sinais de chuva. Isso significa que poderemos terminar o trabalho aqui, no pátio, sem demora.
Estava contente com o progresso que se realizou nas terras de Scarcliffe em tão pouco tempo.
Já estavam prontas todas as cabanas dos aldeãos. A nova sarjeta de águas residuais já estava terminada, e a ponte que cruzava o arroio estava firme outra vez. Completaram-se os primeiros pontos de sua lista de prioridades.
Era hora de atender assuntos menos urgentes no castelo. Coisas como a porta do armazém, que pendia rota. Em todo o pátio ressoavam os golpes das ferramentas.
-Temos abundância de pessoal -comentou Dunstan.
No princípio, a Hugh surpreendeu com a quantidade de aldeãos que chegavam a cada manhã para ajudar nos reparos, pois ele não lhes tinha ordenado que fossem. Só mandou dizer que havia trabalho para aqueles que tivessem tempo de sobra depois de trabalhar em suas respectivas terras.
Quase todos os varões fisicamente aptos de Scarcliffe se apresentaram, ferramentas em mão, no término de uma hora. Imediatamente começaram a trabalhar com expressão alegre.
-Temos que agradecer minha esposa pela quantidade de trabalhadores que temos hoje aqui -disse com secura-. Ao que parece, causou uma impressão favorável nos aldeãos enquanto eu estive em Londres.
-Lady Alice está convertendo-se com rapidez em uma lenda, como você, milorde. Não passou desapercebido que salvou o Jovem John, o filho do moleiro, quando a curandeira já tinha desistido.
-Já me inteirei.
-E tampouco esqueceram a cena na igreja, quando tirou a Calvert do Oxwick do púlpito.
-Certamente, foi memorável.
-Dedicou-se com esforço no controle para que as reparações que tinham mandado fossem feitas enquanto esteve ausente.
Hugh sorriu com expressão irônica.
-Alice é muito eficaz para conseguir que se façam as coisas.
-Sim. Mas me parece mais concreto pensar que o que a transformou em uma lenda foi o resgate de Rivenhall.
Hugh, sentindo que o humor plácido se dissipava em um instante, resmungou:
-Quer dizer que os aldeãos ficaram maravilhados com sua valentia?
-Sim, milorde. Maravilhados, é o térmo justo.
-Admito que à minha esposa não falta coragem, mas não resgatou a Rivenhall sozinha. Acompanharam-na você e a maioria de meus homens. Eduard de Lockton sabia que não poderia brigar contra essa força, nem me teria desafiado empunhando as armas contra minha prometida.
-Não foi a audaz ida a Rivenhall o que lhe conquistou a admiração de todos. -Dunstan riu entre dentes-. É o fato de ter sobrevivido à sua fúria o que assombrou a todos.
-Por todos os diabos -resmungou Hugh. Dunstan lhe lançou um olhar perspicaz.
-Há quem diga que exerce um poder místico sobre você.
-Sério? -Na mente de Hugh se acenderam ardentes lembranças da noite passada e sorriu. Possivelmente os que falam de seus poderes mágicos, tenham razão.
Dunstan ergueu uma sobrancelha.
-Tenho a impressão de que o casamentpo provocou um interessante efeito sobre seu ânimo, milorde.
Hugh se salvou de replicar por um grito que chegou de uma das torres de vigilância.
-Aproximam-se visitantes, milorde -gritou um dos homens de um posto elevado.
- Visitantes? -Hugh ficou carrancudo-. Quem poderia visitar Scarcliffe?
-Você não carece por completo de amigos -respondeu Dunstan, marcando as palavras.
-Ninguém viria sem mandar antes uma mensagem. -Olhou o guarda que estava na torre-. Homens armados?
-Não, milorde. -O guarda observou o caminho que chegava a Scarcliffe-. Um homem com uma espada, nada mais. Vem acompanhado por uma mulher e um menino.
-Maldição! -Hugh se sentiu invadido por um fundo presságio, e virou para a porta aberta-. Não será tão estúpido para fazer uma visita de bom vizinho.
-Quem? -perguntou Dunstan.
Instantes depois, a pergunta foi respondida quando Vincent de Rivenhall entrou cavalgando no pátio.
Junto a ele, estavam lady Emma e o pequeno Reginald.
Hugh grunhiu aborrecido.
-Acaso um homem não pode desfrutar em paz a manhã seguinte a sua noite de nupcias?
-Parece que as coisas mudaram na história de Scarcliffe -murmurou Dunstan.
Todos os que estavam perto deram a volta para olhar os recém chegados, e o trabalho se interrompeu. Os rapazes correram a fazer cargo dos cavalos das visitas.
Hugh observou Vincent enquanto desmontava e dava a volta para ajudar Emma a desembarcar da égua. O pequeno Reginald saltou dos arreios e sorriu para Hugh.
Vincent, com o semblante marcado por uma expressão de sombria determinação, enlaçou o braço da esposa e se adiantou como se fosse a caminho da forca.
-Sir Hugh.
Deteve-se frente ao relutante anfitrião, e executou uma rígida reverência.
-Vejo que, por fim, deixou as justas pelo tempo suficiente para visitar suas terras -disse Hugh, lacônico-. Que pena que não o fez antes: teria economizado muito tempo a minha esposa.
Vincent se ruborizou intensamente e apertou a mandíbula.
-Sei que estou em dívida com você, sir Hugh.
-Com quem estaria em dívida, seria com minha esposa. Não quero que atue convencido de que tem uma maldita dívida comigo.
-Eu não tenho o menor desejo de ficar em dívida com você, milorde -disse entre dentes-. De todos os modos, devo lhe agradecer pelo que fez por minha esposa e meu filho.
-Economize seus agradecimentos. Não as quero.
-Nesse caso, as darei a sua senhora –resmungou Vincent.
-Isso não será necessário. Esta manhã, lady Alice está trabalhando em seu estudio. -lhe ocorreu que era preferível livrar-se dos do Rivenhall antes de que Alice soubesse que tinham visitas-. Não gosta que a interrompam.
Emma se apressou a falar.
-Sabemos que se casou ontem, milorde. viemos a felicitá-lo.
Dirigiu-lhe um sorriso trêmulo mas gentil.
Hugh fez uma leve inclinação de cabeça, aceitando a felicitação.
-Desculparão-me se não organizar um banquete para celebrar a inesperada presença de vocês em meu recinto, senhora. Para falar a verdade, neste momento não podemos recebe-los. Estamos ocupados com questões mais urgentes.
O semblante da Emma se escureceu.
Vincent compôs uma expressão furiosa. -Maldito seja, primo, liberarei-me desta dívida, embora seja a última coisa que faça.
-Pode continuar se ocupando da segurança de seu próprio castelo, de modo que nunca mais Scarcliffe tenha que ir em defesa das terras de Rivenhall. -Dirigiu-lhe um sorriso tenso-. Estou seguro de que compreende meus sentimentos nesse aspecto. Resgatar Rivenhall vai contra a corrente deles.
-O mesmo que, para mim, receber a assistência de Scarcliffe -replicou Vincent.
-Lady Emma, lady Emma! -A voz alegre de Alice chamou a atenção de todos os que estavam dentro do recinto amuralhado-. Bem-vinda. Que alegria que tenha vindo.
-Maldição! -balbuciou Hugh.
Agora sim que não poderia desfazer-se de Vincent e sua família antes de que Alice se inteirasse de sua presença.
Todos ergueram a vista para a janela da torre.
Alice apareceu pela estreita abertura e agitou entusiasta um lenço, a modo de saudação. Inclusive mesmo detão longe, Hugh viu que tinha o rosto iluminado de regozijo.
-Chegam bem a tempo para almoçar conosco - Emma gritou-lhe de cima.
-Obrigado, milady -respondeu Emma-. nós adoraremos poder almoçar com vocês.
Desapareceu da janela.
-Pelo sangue de Satã -exclamou Vincent, amargurado-. Temia isso.
-Sim -murmurou Hugh.
Era óbvio que Alice e Emma tinham travado uma rápida amizade.
-É de homens sábios saber quando retroceder -insinuou Dunstan, tratando de ajudar.
Hugh e Vincent o olharam furiosos.
Dunstan abriu as mãos em gesto apaziguador.
-Irei ocupar-me dos cavalos.
Duas horas depois, Alice estava com a Emma diante da janela do estudio, e observavam nervosas como Hugh e Vincent cruzavam o pátio juntos. Os dois se encaminhavam para os estábulos.
-Bom, ao menos, durante o almoço, não se atacaram com as facas -comentou Alice.
Tinham comido em um clima de tensão que não foi saudável para a digestão, mas não se produziram explosões de violência, para alívio de Alice. Ela e Emma fizeram o esforço de sustentar a conversação animada, enquanto Hugh e Vincent engoliam em turvo silêncio. Alguns comentários que intercambiaram foi de cunho irônico e corrosivo.
-Sim. -Emma franziu as sobrancelhas, compondo uma expressão de inquietação, enquanto os olhava entrar nos estábulos-. Ambos são vítimas inocentes de um antigo conflito de família. Nenhum dos dois teve nada que ver com o que aconteceu há tantos anos, mas sim os antecessores, que os carregaram com seu próprio ódio e seu desejo de vingança.
Alice a olhou.
-O que sabe sobre a história do conflito?
-Nada mais que o que sabem todos. Matthew de Rivenhall estava prometido a outra quando seduziu a lady Margaret, a mãe de seu marido. Foi a França durante quase um ano, e nesse lapso nasceu Hugh. Parece que quando sir Matthew retornou, foi ver a Margaret.
-E morreu?
-Os homens de Rivenhall estão convencidos de que lhe deu veneno para beber e depois bebeu ela mesma.
Alice suspirou.
-Então, é muito improvável que tivesse ido vê-la para dizer que pensava em se casar com ela.
Emma sorriu com tristeza.
-Lorde Vincent me assegura que seria impossível que o tio rompesse seu compromisso com a herdeira. Era uma união conveniente, e ambas as famílias o desejavam, mas talvez sir Matthew pensasse conservar lady Margaret como amante.
-E ela foi muito orgulhosa para ser a amante enquanto ele se casava com outra. -Alice moveu a cabeça-. Posso compreendê-la.
-Sim. -olharam-se aos olhos-. Mas não acredito que uma mulher de sua gentileza tivesse recorrido ao veneno para obter vingança. E tampouco acredito que você mesma tivesse bebido o veneno, deixando assim seu filho sem mãe.
-Não, eu não teria feito isso, por mais zangada que estivesse.
Tocou-se o abdômen com os dedos. Era provável que já levasse em suas vísceras o filho de Hugh e, ao pensá-lo, sentiu-se ferozmente protetora.
-Nenhuma de nós teria feito algo semelhante -murmurou Emma.
Alice pensou em Calvert do Oxwick, morto por veneno, e estremeceu como se a tivesse acariciado uma brisa gelada.
-E se lady Margaret tampouco o tivesse feito?
Emma a olhou perplexa.
O que quer dizer? Não há outra explicação do se que passou naquela noite.
-Engana-se, Emma -respondeu lentamente.-Há outra possibilidade. E se foi outra pessoa a que administrou o veneno a sir Matthew e a Margaret?
-Com que motivo? Não tem sentido. Ninguém tinha um motivo.
-Suponho que esteja certa e, de qualquer maneira, a estas alturas já não podemos saber a verdade.
"A menos que, depois de tantos anos, o envenenador tenha voltado para o Scarcliffe -pensou-. Mas, por que escolheu o monge como vítima?"
O cérebro de Alice bulia com esses pensamentos inquietando-a. Afastou-se da janela, cruzou o aposento até a mesa e levantou o cristal verde.
-Você gostaria de ver minha coleção de pedras, Emma?
-Pedras? Nunca conheci ninguém que colecione pedras.
-Penso escrever um livro descrevendo várias classesdelas.
-Sério? -Emma olhou para o pátio amuralhado e se paralisou-. Deus do céu, o que estão fazendo?
-Quem?
-Nossos maridos. -Abriu bem os olhos, e levou as mãos à boca, horrorizada-. Tiraram as espadas e estão lutando.
-Não seriam capazes.
Alice correu para a janela e se inclinou para ver melhor.
Imediatamente, verificou que Emma estava certa. No centro do pátio, Hugh e Vincent enfrentavam-se. As espadas reluziam ao sol. Nenhum dos dois levava elmo nem cota, mas sim um pequeno escudo.
Os aldeãos que tinham estado fazendo reparos e vários homens armados deixaram as ferramentas.
Logo, juntou-se uma multidão para olhar.
-Terminem logo com essa tolice –gritou Alice, da janela-. Não tolerarei, ouvem-me? A multidão reunida no pátio a olhou. Vários homens dissimularam sorrisos. Alice viu que muitos deles se olhavam entre si, e murmuravam, tampando a boca com as mãos. Soube que estavam fazendo apostas.
Hugh olhou interrogante para a janela.
-Volte para suas pedras e a seus escaravelhos, senhora. Isto é jogo de homens.
-Não quero nenhum jogo de espadas entre você e nosso convidado, milorde. -Apertou com força as mãos no batente-. Encontre outra coisa para entreter sir Vincent.
Vincent ergueu a vista. Inclusive dessa distância, notava-se o ar selvagem de seu sorriso.
-Milady, asseguro-lhe que estou muito satisfeito com este entretenimento. Para falar a verdade, não me ocorre nada que pudesse desfrutar mais que de um pouco de prática com a espada com seu senhor.
Emma olhou furiosa para seu marido.
-Meu senhor, somos hóspedes nesta casa. Ordeno-o que respeite o desejo de lady Alice.
-Mas foi seu esposo que sugeriu este jogo-exclamou-. Como posso me negar?
Alice apareceu mais pela janela.
-Sir Hugh, tenha a amabilidade de informar a nosso convidado que deseja praticar outr tipo de esporte com ele.
-O que outro esporte sugeriria, senhora? -perguntou com inocência-. O que acha de praticarmos com as lanças?
Alice se enfureceu.
-Mostre a sir Vincent a nova sarjeta se não lhe ocorrer nada mais divertido. Não me importa o que faça, mas não permitirei que os dois enredeis em uma justa neste castelo. Fui clara, senhor?
Do recinto ascendeu um silêncio espectador. Todas os olhares estavam presas à janela da torre.
Por um momento, Hugh a contemplou com grande concentração.
-Não permitirá? -repetiu, ao fim.
Alice inspirou fundo, e cravou os dedos no batente.
-Já me ouviu. Não é uma maneira apropriada de entreter um convidado.
-Senhora, talvez não o tenha advertido, mas o senhor deste castelo sou eu. Entreterei meu convidado como me parecer melhor.
-Lembra o benefício que me prometeu ontem à noite?
-Alice!
-Reclamo-o agora, milorde.
A expressão de Hugh foi mais turva que durante o almoço. Permaneceu imóvel durante uns segundos tensos, e logo, com um ruído sibilante e letal, colocou a espada outra vez na bainha.
-Está bem, senhora -disse, sem entonação alguma-. Reclamou o benefício, e o concedo. -Sorriu com frieza-. Mostrarei a sir Vincent a sarjeta da aldeia.
Vincent caiu em gargalhadas, embainhou a espada e estapeou o ombro de seu primo. -Não se preocupe, senhor -disse, não sem certa simpatia-. Tenho total confiança em que logo se adaptará à vida de casado.
Pouco depois, Hugh passava a cavalo diante do convento, acompanhado pelo homem que tinha aprendido a odiar desde que nasceu. Nem ele nem Vincent falaram desde que saíram do castelo de Scarcliffe.
-Vai mesmo me mostrar a sargeta da aldeia? -perguntou Vincent, com secura.
Hugh fez uma careta.
-Não. Para falar a verdade, há um assunto que, sem dúvida teremos que comentar.
Esteve pensando como dizer a Vincent sobre o assassinato de Calvert, e por fim chegou a uma conclusão.
-Se pensa em me exortar outra vez a respeito de meus deveres para com o Rivenhall, pode economizar o fôlego. Por fim, reuni dinheiro suficiente nas justas para me ocupar de minhas terras. Não tenho intenções de abandoná-las outra vez.
Hugh encolheu os ombros.
-Esse é seu assunto. Mas como vizinhos que somos, gostemos ou não, tem que saber que, recentemente, cometeu-se um assassinato nesta região.
-Assassinato? -Jogou um olhar de alarme-. A quem mataram?
-Encontrei o cadáver de um monge peregrino chamado Calvert do Oxwick em uma das covas dos escarpados. Acredito que uns ladrões o mataram.
-Por que mataria um monge?
Hugh hesitou um instante.
-Porque estava procurando as Pedras de Scarcliffe. Vincent lançou uma exclamação incrédula. -Esse não é mais que um conto antigo. Se existiram alguma vez as pedras de Scarcliffe, faz tempo que desapareceram.
-Sim, mas sempre existe os que acreditam nessas lendas. O monge deve ter sido um deles.
-E o assassino?
-Também deve acreditar -disse Hugh, em voz baixa. Vincent franziu o cenho.
-Se um ladrão assassinou um monge por um tesouro inexistente, não cabe dúvida de que agora já sabe seu engano. É muito provável que se partiu desta região.
-Sim. Mas tendo em conta que decidiu voltar para seu imóvel e assumir suas responsabilidades, acreditei conveniente que estivesse informado deste incidente. Ninguém gosta de ter um assassino próximo ao lar.
-Dirige o sarcasmo tão bem como a espada, sir Hugh.
-É a única arma que minha esposa julgou conveniente me deixar usar hoje.
Vincent guardou silêncio um momento. Os cascos dos cavalos não faziam ruído sobre a terra. Várias freiras que trabalhavam nos jardins do convento observaram ao casal. O filho do moleiro saudou entusiasta com a mão da cabana dos pais.
-Sir Hugh, sir Hugh -gritou, alegre.
Hugh ergueu a mão em sinal de saudação, e o Jovem John riu, encantado.
Vincent viu como desaparecia o menino no interior da cabana e depois olhou para Hugh.
-Dizem que Erasmus de Thornewood está próximo da morte.
-Sim.
- Sentirei sua falta-disse com sinceridade-. Deixando de lado a exigência de que você e eu não lutassemos entre nós, foi um bom suserano.
-Muito bom.
Vincent observou as cabanas.
-Obteve muito nos últimos meses aqui, Hugh.
-Claro, com a ajuda de minha esposa.
Hugh sentiu uma flamejante sensação de orgulho e satisfação. Em Scarcliffe reinavam a ordem e a estabilidade. Na primavera, também começariam a conhecer a prosperidade.
-Diga-me -disse Vincent-, ainda cobiça Rivenhall, ou está satisfeito com estas terras?
Hugh ergueu as sobrancelhas.
-Pergunta a mim se darei procuração a Rivenhall quando a morte de Erasmus quebra meu juramento?
-Pergunto se o tentará -corrigiu-o cortante.
-Tentar?
Dentro de Hugh, transbordaram as gargalhadas, que vinham do mais profundo de seu ser. Ressoaram na rua, atraindo a atenção das freiras do outro lado do muro do convento.
-Alegra-me que a pergunta o divirta. – Vincent o olhou com expressão cautelosa-. Mas ainda aguardo sua resposta. .
Hugh conseguiu controlar a risada. -Suspeito que Rivenhall está a salvo enquanto minha esposa se considere amiga da sua. Não gostaria de contemplar uma eterna expressão de ira, que seria o que teria que suportar se fosse sitiar Rivenhall.
Vincent piscou e logo começou a sorrir.
-Algo me diz que já se acostumou as maravilhas da vida de casado.
-Existem destinos piores.
-Sim, é verdade.
A manhã seguinte amanheceu carregada de nuvens ameaçadoras. Hugh teve que acender uma vela sobre a mesa para que ele e Benedict pudessem trabalhar. Estava na metade da tarefa de examinar uma lista de especiarias quando percebeu que a chama da vela piscava de uma maneira estranha. Deixou a pluma e esfregou os olhos com o polegar indicador. Quando os abriu outra vez, viu que a chama se alargara muito.
-Passa mau, senhor?
Benedict se inclinou sobre a mesa com expressão preocupada.
-Não.
Hugh sacudiu a cabeça para limpar as teias que parecia ter na mente. As feições de Benedict começaram a deformar-se. Os olhos se uniram com o nariz e a boca.
-Lorde Hugh?
Hugh fez esforços por concentrar-se. O rosto de Benedict voltou para a normalidade.
-Terminou essas somas?
-Sim. -Benedict afastou as taças de caldo verde que lhes tinham levado ao estudio pouco antes-. Terei as quantidades preparadas para que Julian possa levar amanhã a Londres. Senhor, está seguro que está bem?
-Por que diabos a chama dança assim? Aqui não há nenhuma corrente.
Benedict olhou a vela.
-A chama está firme, senhor.
Hugh a olhou. A chama saltava loucamente. Também estava tomando uma estranha cor rosada. Chamas rosadas?
Afastou a vista da chama e a fixou na tapeçaria que pendurava na parede. O unicórnio bordado no centro ganhou vida enquanto o observava. Voltou a cabeça graciosa e o olhou com expressão de curiosidade.
-A sopa -murmurou Hugh.
-Como diz, milorde?
Hugh olhou a tigela meio vazia que tinha na frente e uma terrível premonição rasgou o véu que lhe turvava o cérebro.
-Você bebeu algo?
A voz era um murmúrio rouco.
-Da sopa verde? -As feições de Benedict resplandeceram igual à chama-. Não. Eu não gosto. Sei que Alice está convencida de que é muito boa para os humores, mas me desagrada. Geralmente, jogo-a pelo deságüe mais próximo.
-Alice! -Hugh se agarrou a borda da mesa, ao mesmo tempo que o aposento começava a girar lentamente ao redor-. A sopa.
-O que aconteceu, milorde?
- Traga-a. Fale para a Alice. Lhe diga... lhe diga... veneno.
Benedict se levantou de um salto.
-Senhor, é impossível. Como se atreve a acusá-la de envenená-lo?
-Alice não -conseguiu a dizer-. Este é trabalho de Rivenhall. Minha culpa. Nunca devia deixá-lo entrar no castelo.
Enquanto caía pesadamente no chão, Hugh teve turva consciência dos passos de Benedict que foram para a porta e percorriam o corredor. E então, o unicórnio desceu da tapeçaria, cruzou a habitação e o olhou com ar solene.
-Assim foi com seu pai e sua mãe -disse-lhe o unicórnio com gentileza.
-Milorde, vou colocar os dedos na sua garganta. Rogo que não me morda.
Abaixada junto a Hugh, Alice lhe fez girar a cabeça e lhe abriu a boca.
Um instante depois, Hugh gemeu e vomitou o conteúdo do estômago no urinol que sustentava Benedict.
Alice esperou até que começassem a aliviá-los os primeiros espasmos, e voltou a meter-lhe os dedos na garganta.
Hugh se convulsionou com violência, e expeliu o pouco que ficava.
Benedict olhou a sua irmã com expressão temerosa. -Morrerá?
-Não -prometeu-lhe Alice em tom feroz-. Não morrerá, se eu puder evitar Traga-me água, Benedict. Uma jarra grande. E leite. Rápido.
-Sim.
Benedict agarrou a bengala, ficou de pé e correu fora do quarto.
-Benedict!
O moço se deteve com uma mão no marco da porta.
-O que?
-Não conte isto a ninguém, compreende? Diga que eu lhe pedi a água e o leite para lavar o rosto.
-Mas, e se a sopa está envenenada? Todos terão bebido sua taça matinal.
-A sopa não estava envenenada -disse Alice em voz baixa-. Eu bebi uma taça cheia recentemente. E minha serviçal também.
-Mas...
-Depressa, Benedict.
Saiu correndo do quarto.
Hugh abriu um instante os olhos de cor âmbar, que ardiam.
-Alice.
-É um grande homem, e não bebeu toda a sopa, milorde. O fiz devolver quase toda a que consumiu. Viverá.
-Matarei-o -jurou, e fechou outra vez os olhos-. Depois disto, meu juramento a Erasmus não o protegerá.
-A quem se refere?
-A Vincent. Tentou me envenenar.
-Hugh, disso não pode estar certo disso.
-Quem outro? -Um novo espasmo o dominou.
O corpo poderoso estremeceu, mas já não restava nada dentro-. Tem que ter sido ele.
Benedict entrou pela porta, sem fôlego por ter descido correndo até as cozinhas. Trazia dois frascos em uma mão.
-Aqui estão o leite e a água.
-Magnífico. -Alice recebeu o primeiro frasco-. Ajude-me a fazê-lo beber isto.
Hugh entreabriu os olhos.
-Não se ofenda, senhora, mas neste momento não tenho muito apetite.
-Minha mãe escreveu que convém administrar grande quantidade de líquido a uma vítima de envenenamento. Devolve o equilíbrio aos humores corporais. -Acomodou a cabeça de Hugh em seu colo-. Por favor, milorde, rogo que o beba.
A testa de Hugh estava coberta de um filete de suor, mas em seus olhos brilhou fugazmente o humor ao divisar a curva dos seios de sua mulher.
-Sabe que quando usa suas maneiras elegantes, estou perdido. Muito bem, senhora, beberei qualquer coisa que deseje, a menos que seja verde.
Alice olhou para Benedict.
-Acredito que já se sente muito melhor. Procura sir Dunstan. Necessitaremos de ajuda para levar a meu senhor a seu dormitório.
-Sim.
Benedict voltou a sair pela porta.
-Por todos os diabos -murmurou Hugh-. Não me levará como se fosse um menino.
Ao final, conseguiu percorrer o corredor por seus próprios meios, mas Alice, Benedict e Dunstan tiveram que sustentá-lo.
Quando por fim se derrubou sobre a maciça cama de ébano, caiu dormido imediatamente.
-Veneno? -Aos pés da cama, Dunstan fechou os punhos nas laterais do corpo-. Deram veneno a sir Hugh? Está certa?
-Sim. -Alice o olhou carrancuda-. Mas, por agora, não tem que dizer nada, sir Dunstan. Até o momento, os únicos que sabemos a verdade somos nós quatro. Por um tempo quero que siga assim.
-Que não diga nada? -Dunstan a olhou como se estivesse louca-. Porei este maldito castelo abaixo. Pendurarei todos os criados da cozinha um por um, até que descubra à pessoa que pôs a beberagem na taça de sir Hugh.
-Sir Dunstan...
-Sem dúvida, proveio de Rivenhall. –Enquanto ruminava o problema a sua satisfação, Dunstan contraiu a frente-. Sim, isso o explicaria. Ontem, antes de partir, sem dúvida sir Vincent subornou um criado de Scarcliffe para que lhe pusessem as ervas venenosas na sopa.
-Sir Dunstan, já é suficiente. -Alice se levantou do tamborete junto à cama-. Eu me ocuparei disto.
-Não, senhora. Sir Hugh não permitiria que você se ocupasse de um assunto tão sangrento.
-Já estou metida nele-disse entre dentes, para não elevar a voz-. E sei mais sobre venenos que você, senhor. Descobrirei como se cometeu este fato. Só então saberemos a quem culpar.
-É a sir Vincent de Rivenhall que terá que culpar -afirmou Dunstan.
-Não podemos estar seguros. -Alice começou a caminhar pelo quarto-. Bem, só sabemos que a sopa de sir Hugh foi envenenada. Isso significa que puseram as ervas em sua tigela quando o levavam a estudio, ou que...
-Descobrirei esse criado traidor -a interrompeu furioso-. E o farei confessar antes do meio-dia.
Alice se apressou a continuar:
-Ou o veneno já estava na taça quando verteram nela a sopa.
No semblante de Dunstan se refletiu a perplexidade.
-Como assim já estava na taça?
-Sim, senhor. A cozinha é um lugar concorrido. Certamente, um par de gotas de um veneno muito forte no fundo de uma taça passariam inadvertidas quando servissem a sopa nela.
-E um par de gotas bastariam para matar a um homem?
-Existem beberagens de certas ervas que conservam suas propriedades letais embora estejam destiladas. E a sopa quente pode ter reativado uma beberagem assim.
"Alguns, não todos", adicionou Alice para si. E segundo o tratado de sua mãe, as ervas usadas em tais preparados não eram comuns.
Benedict olhou para Alice por cima da forma adormecida de Hugh.
-Não é um segredo qual é o recipiente usado por sir Hugh. Seria bastante fácil para um envenenador distinguir sua taça das outras.
-Sim. -Alice continuava caminhando com as mãos unidas à costas-. Sir Dunstan, eu levarei adiante esta investigação, compreende-me? Muitas coisas dependem do resultado. A guerra contra Rivenhall custaria muitas vidas. Se essa for a alternativa, não as queria ter sobre minha consciência.
-Senhora, esteja segura de que, quando sir Hugh despertar, não haverá outra alternativa -afirmou Dunstan com expressão selvagem-. Assim que puder montar a cavalo, cobrará vingança.
Alice lançou um olhar para Hugh. Até no sonho, tinha aspecto de implacável. Ninguém sabia melhor que ela que, uma vez decidido, nada poderia detê-lo.
Deu a volta, para encarar Dunstan e Benedict. -Então, devo atuar com rapidez.
Alice fechou o livro de sua mãe, cruzou as mãos sobre a mesa e olhou para a jovem ajudante de cozinha que estava frente a ela.
-Luke, esta manhã, você levou a sopa a sir Hugh?
-Sim, milady --respondeu, sorrindo orgulhoso--. Atribuíram-me a tarefa de lhe levar a sopa todas as manhãs.
-Quem te atribuiu essa tarefa?
Luke a olhou, intrigado.
-Elbert, é obvio.
-Diga-me, Luke, hoje, quando foi levar a sopa para sir Hugh, no trajeto, deteve-se para conversar com alguém?
-Não, milady. -Nos olhos de Luke apareceu uma expressão alarmada-. Não me detive para nada, juro. Fui diretamente para o quarto, como me ordenaram. Se a sopa ainda estava quente quando cheguei! Se estava fria quando sua senhoria a bebeu, não é por minha culpa, milady.
-Tranqüilize-se, Luke. A sopa estava bem quente -assegurou-lhe Alice com doçura.
Luke se reanimou.
-Lorde Hugh está de acordo com meu serviço?
-Eu diria que ficou atônito com o desta manhã.
-Então, pode ser que Elbert logo me deixe servir no salão principal -disse Luke, contente-. É minha maior ambição. Minha mãe ficará orgulhosa.
-Estou segura de que, um dia destes, cumprirá seu objetivo, Luke. Parece um moço decidido.
-Sou-o, milady -afirmou com ardor-. Lorde Hugh me disse que o segredo da verdadeira força de um homem, sem ter em conta sua posição na vida, é a decisão e a força de vontade. Se forem intensos, pode obter o que se propõe.
Apesar da angústia que sentia, Alice sorriu ao imaginar a Hugh dando conselhos a uma moço da cozinha.
-Sem dúvida, isso parece algo próprio de sir Hugh. Quando te deu de presente essa partícula de sabedoria?
-Ontem pela manhã, quando lhe perguntei como podia suportar a sopa verde todos os dias. Eu não o tocaria jamais.
Alice suspirou.
-Já pode voltar para suas tarefas, Luke.
-Sim, milady.
Esperou a que Luke tivesse saído do escritório antes de abrir outra vez o livro de notas. Chegou à conclusão de que uma das perguntas tinha ficado respondida. Luke era um rapaz honesto. Acreditou-lhe quando assegurou que não se cruzou com ninguém quando foi ao escritório de Hugh.
Isso significava que o veneno não foi vertido na taça depois de ter sido servida a sopa.
O que, por sua vez, significava que estava procurando um veneno que pôde ter sido vertido inadvertidamente no fundo da taça limpa. Requereria uma preparação tão forte que umas gotas bastassem para provocar enfermidade ou morte.
Fechou com força os olhos ao pensar que esteve a ponto de perder a Hugh, e a sacudiu um terrível calafrio de temor.
Tinha que descobrir o assassino antes de que pudesse voltar a atacar. Tinha que encontrar o envenenador antes que Hugh sitiasse seu parente consangüíneo e destruisse para sempre toda esperança de paz entre Rivenhall e Scarcliffe.
Alice fez um esforço para concentrar-se nas notas feitas por sua mãe com respeito à erva beladona.
Se prepara de acordo com esta receita, uma pequena quantidade alivia a dor intestinal. Mas em grande quantidade, mata...
Um discreto golpe na porta anunciou outra visita.
-Adiante -disse Alice, sem apartar a vista da página.
Elbert apareceu a cabeça por detrás da porta.
-Mandou me buscar, senhora?
-Sim, Elbert. -Levantou a vista-. Quero que se ocupe de que hoje se limpem todas as taças e pratos que há na casa antes de servir outra comida.
-Mas se lavam todos os pratos e taças depois de cada comida, como você indicou -balbuciou Elbert, muito confuso pela ordem.
-Sei, Elbert, mas quero que hoje, antes do almoço, lavem-se outra vez. Está claro?
-Sim, milady. antes da comida. Darei a ordem em seguida. Algo mais?
Alice hesitou.
-Hoje, lorde Hugh não comerá com outros. Está no dormitório, e não quer ser incomodado.
Elbert se alarmou:
-Passa mau, milady?
-Não. Tem um leve resfriado. Dei-lhe um tônico e amanhã estará bem.
O semblante de Elbert se abriu.
-Quer que leve mais da sopa verde à habitação?
-Não acredito que seja necessário, obrigado, Elbert. Pode ir. Não se esqueça de que lavem imediatamente pratos, jarras e taças.
-Sim, senhora. Fará-se em seguida.
Fez uma reverência e saiu a cumprir as ordens. Alice tentou espantar oa mórbidos temores que ameaçavam sufocá-la. Deu a volta a outra página do livro de notas e se concentrou na letra pulcra de sua mãe.
O relógio de água que havia sobre a mesa de trabalho gotejou lentamente. Passou outra hora.
Muito tempo depois, Alice fechou o jornal e permaneceu imóvel um longo momento. Refletiu no que tinha lido.
Como suspeitava, os segredos para preparar um veneno o bastante forte para ser administrado como tinha sido este, estavam envoltos no mistério.
Embora o medo do veneno fosse generalizado, na realidade não era tão perigoso. Na verdade, a maioria dos venenos não funcionavam bem.
Ao contrário do que muitas pessoas acreditavam, a preparação de venenos letais não era fácil. Só um jardineiro experiente conhecia as ervas apropriadas. Era preciso muito estudo e experiências para preparar uma poção. Só um herbanário pouco comum, que tivesse estudado os venenos e seus antídotos para descobrir, as freiras, por exemplo, ou um alquimista que perseguisse conhecimentos sobre as artes do mal, dedicaria tanto tempo a procurar poções capazes de matar.
Havia uma quantidade de problemas práticos que resolver para preparar poções venenosas. Era muito difícil determinar a dose exata. Também era muito difícil refinar o veneno até chegar ao ponto em que bastasse uma pequena quantidade para conseguir resultados. E era mais difícil ainda chegar a certo grau de confiança. A maioria dos venenos tinham efeitos altamente imprevisíveis.
Como tinha escrito sua mãe no livro, era muito mais provável que uma pessoa adoecesse e morresse por causa de mantimentos rançosos que de um autêntico veneno.
Tirou conclusões mentais. Não havia muitas pessoas nas cercanias de Scarcliffe capazes de preparar um veneno mortal e depois achar o modo de fazer o administrar à vítima escolhida.
Não, às vítimas.
"Porque foram dois: Calvert do Oxwick também tinha sido envenenado", pensou.
Mas, quem quereria matar a um monge fastidioso e a um cavalheiro legendário, de uma vez? Qual era o vínculo entre os dois?
Alice o pensou por um momento.
Quão único conectava às vítimas, até onde podia discernir, era o interesse pelas Pedras de Scarcliffe. Mas assim que Hugh teve em seu poder o cristal verde, deixou de procurar o resto do tesouro. Nem mesmo acreditava na existência das demais gemas.
Calvert, por sua parte, sim acreditava na velha história.
Até tal ponto acreditava, que se arriscou a meter-se nas traiçoeiras cavernas de Scardiffe para procurar o tesouro. Não existia nenhum vínculo que Alice pudesse discernir entre os dois homens.
Perguntou-se se a verdade estaria no passado. De fato, nessa região, em outra época, houve outro caso de envenenamento.
Mais avançada essa mesma tarde, uma noviça alegre e de curta estatura deu passagem a Alice para o escritório de Madre Joan.
Joan se levantou sorrindo ao outro lado da mesa. -Lady Alice, rogo-lhe que se sente. O que a traz aqui a esta hora?
-Lamento incomodá-la, senhora.
Alice esperou a que a noviça tivesse fechado a porta e logo se deixou cair sobre um tamborete de madeira.
-Veio sozinha?
Joan voltou a sentar-se.
-Sim. Os criados acreditam que saí para dar um passeio de última hora. Devo retornar ao castelo o antes possível. -Queria voltar antes de que Hugh despertasse-. Não lhe farei perder muito tempo.
-Sempre me agrada vê-la, Alice, você sabe. -Uniu as mãos e a observou com tenra preocupação-. Há algo que a aflige?
-Assim é, senhora. -Alice reuniu forças-. Preciso fazer-lhe algumas pergunta.
-Com respeito a que?
-À irmã Katherine, sua curandeira.
Joan franziu o cenho.
-Fará as perguntas a ela, diretamente. Mandarei procurá-la imediatamente.
-Isso é impossível. -Enquanto caminhavam rapidamente pelo corredor, o hábito de Joan sussurrava.- A irmã Katherine é uma curandeira perita. Não envenenaria ninguém.
-Não é suspeito que tenha desaparecido? -perguntou Alice.
-Deve estar em alguma parte, nos campos que rodeiam o convento.
-Já olhamos na capela, o jardim e a sala de oração. Em que outro lugar poderia estar?
-Possivelmente está meditando em seu quarto e não ouviu bater na porta a noviça que mandei. Ou talvez esteja em meio de um de seus ataques de melancolia. Às vezes, o remédio que ingere, a faz cair em um profundo sonho.
-Isto é muito inquietante.
-As suas suspeitas também -repôs Joan com brutalidade-. Faz quase trinta anos que irmã Katherine está neste convento.
-Sim, esse é um dos fatos que me impulsionou a pensar se, de algum modo, não estaria envolvida nisso.
Alice contemplou a fileira de portas de madeira que havia no corredor. Em cada uma delas havia uma janela e se abria a uma cela pequena e austera.
O corredor estava muito tranqüilo e silencioso. A maioria das celas estavam desocupadas a essa hora.
As freiras estavam ocupadas em diversas tarefas nos jardins, nas cozinhas, no escritório e na sala de música.
Joan olhou por cima do ombro.
-Disse-me que os pais de lorde Hugh foram envenenados faz quase trinta anos.
-Sim. Todos supuseram que a mãe tinha sido a envenenadora. A considerava uma mulher despeitada. Mas agora comecei a questionar essas hipóteses.
-Por que acredita que a irmã Katherine poderia saber mais do incidente que os rumores que corriam naquela época?
-Recorda o dia que a conheci, no convento do jardim?
-Certamente.
-Naquela ocasião, disse como era fácil para um homem romper um voto de compromisso. Chamou-me a atenção sua amargura.
-Já lhe disse que Katherine padece de melancolia. Freqüentemente a vemos triste ou amargurada.
-Sim, mas acredito que nessa ocasião houve algo pessoal em sua reação. Me advertiu que não adiasse meu casamento pois, do contrário, seria abandonada.
-E o que? -Joan se deteve diante da última porta gradeada-. Não era mais que um conselho prático.
-Falava como alguém que passou pela humilhação de um compromisso rompido -insistiu-. comecei a pensar que ela mesma se converteu por causa de um compromisso desfeito.
-Isso é bastante freqüente. -Joan golpeou com vivacidade na pesada porta de carvalho-. Muitas mulheres entraram em um convento pela mesma razão. -Eu sei, mas queria lhe perguntar à irmã se esse foi seu motivo.
Joan a olhou aos olhos.
-E se foi?
-Nesse caso, queria saber se o homem que desfez o compromisso foi sir Matthew de Scarcliffe, o pai do Hugh.
Joan ficou carrancuda.
-Mas, segundo o que contam, sir Matthew jamais rompeu a promessa. Segundo o que sei, tinha toda a intenção de casar-se com a dama que a família tinha escolhido. Todos pensam que queria manter a pobre mãe de Hugh como amante. Dizem que por isso a moça se encolerizou e lhe deu ao amante uma taça envenenada.
-Isso diz a história -admitiu Alice-. Mas, e se não foi isso o que ocorreu? E se Matthew, ao retornar da França, descobriu que tinha um filho e decidiu casar-se com a mulher a que tinha seduzido?
-Quer dizer que a dama a que estava prometido pôde ter procurado vingança?
-É possível, não?
-É um pouco extremo -disse Joan, tensa. -Você mesma disse que a irmã Katherine padece de estados de ânimo alterados -recordou-lhe. Joan ficou nas pontas dos pés e espiou pela grade. -A cela está vazia. Não está aqui. Em tudo isto há algo estranho.
-Parece que se foi do convento.
-Mas, onde pôde ter ido? Alguém a teria visto se tivesse levado algum dos cavalos do estábulo do convento.
Alice olhou pela grade.
-Há um pergaminho sobre a cama.
-A irmã Katherine é muito ordenada. Não deixa objetos pessoais esparramados.
Alice a olhou.
-Salvo que tivesse intenções de que alguém os encontre.
A expressão do Joan se tornou mais inquieta ainda. Sem falar, levantou o pesado anel que levava preso ao cinturão. Selecionou uma das chaves de ferro e a meteu na fechadura da porta de Katherine.Em um momento, Alice entrou na diminuta cela. Não havia muito, além de uma cama estreita, um pequeno baú de madeira e a lâmina de pergaminho enrolada sobre o colchão de palha.
Alice foi tomar o pergaminho, mas se deteve e olhou a Joan, que lhe fez um gesto mudo de autorização.
Levantou o pergaminho e o desenrolou com cuidado. Sobre a cama caiu um anel de ouro com uma pedra verde incrustada, que Alice examinou de perto.
-Acaso pertence à irmã Katherine? -Se for assim, manteve-a oculta todos estes anos. Nunca a tinha visto.
-Me é conhecida. -Alice levantou a vista-. Acredito que lady Emma usa uma muito parecida. Disse que sir Vincent a deu de presente quando se comprometeram.
-Cada vez pior -murmurou Joan-. O que diz a carta?
-É uma breve nota.
-Leia-a.
Alice franziu o cenho, concentrada na escritura muito precisa:
O filho bastardo pagou pelos pecados do pai e da mãe. Está acabado.
-Céus, o que quer dizer? -murmurou Joan. -Sem dúvida, Katherine acredita que conseguiu vingar-se. -Voltou a enrolar o pergaminho-. Não pode saber ainda que fracassou.
Quando Joan se voltou para a porta, as chaves que havia no aro de ferro tilintaram.
-Pedirei a uma das freiras que fale com os aldeãos. Talvez alguém tenha visto Katherine.
Alice olhou pela janela estreita da cela.
Fora, a névoa cinza estava mais escura.
-Já é tarde. Tenho que voltar para castelo antes de que alguém se impaciente por minha ausência. Ou seja, Hugh, que talvez já esteja acordado e tenha começado a planejar a vingança contra Rivenhall.
Joan saiu da cela de Katherine. -Se localizar à curandeira, o farei saber.
-Obrigado -disse Alice em voz baixa-. Acredito conveniente não mencionar o veneno, madre. Sabe quanto essa gente o teme.
-Sim, não o mencionarei -prometeu Joan-. Deus sabe que não precisamos difundir rumores a respeito de envenenamento na região.
-Estou de acordo. Amanhã falarei com a senhora. Agora, tenho que me apressar em voltar para minha casa para resolver esta situação antes de que se desate uma tormenta nestas terras.
Benedict estava esperando Alice no salão principal. Saudou-a com significativa urgência.
-Graças a Deus que retornaste -disse-. Lorde Hugh despertou faz menos de uma hora, e imediatamente perguntou por você. Quando lhe disse que tinha saído, não gostoude saber.
Alice desatou a capa.
-Onde está?
-Em seu escritório. Disse que tinha que ir vê-lo em seguida.
-Isso é o que penso fazer.
Encaminhou-se às escadas.
-Alice.
Deteve-se, com um pé no primeiro degrau.
–O que ocorreu?
-Queria te dizer algo. -Benedict olhou ao redor para assegurar-se de que nenhum dos criados poderia ouvi-lo. Deu um passo para a irmã e baixou a voz-. Eu estava com sir Hugh quando ele passou mal.
-Sei. E?
-A primeira coisa que disse quando compreendeu que tinha bebido uma taça envenenada foi seu nome.
Alice se encolheu como se a tivessem golpeado, e sentiu que um grande peso a esmagava.
-Pensou que tinha tentado matá-lo?
-Não. -Benedict sorriu sem alegria-. A princípio, eu acreditei que isso era o que queria dizer. Disse-lhe que isso era impossível. Então, esclareceu-me que perguntava por você, porque sabia que era a única capaz de comer a sopa. Desde do início, jogou a culpa em Vincent de Rivenhall. Em nenhum momento suspeitou de você.
O espírito da Alice se livrou da pesada carga, e dedicou a seu irmão um sorriso trêmulo.
-Obrigado por me dizer isso irmão. Alivia-me o coração mais do que imagina.
Benedict ruborizou-se.
-Sei quanto o ama. Sir Dunstan afirma que um homem do caráter de lorde Hugh não deveria permitir-se emoções tenras. Disse-me que lorde Hugh se burla do amor e que jamais entregaria o coração a uma mulher. Mas me pareceu que, ao menos deveria saber que confia em você. Sir Dunstan diz que é muito pouco comum que milorde confie em alguém.
-Já é algo para começar, não?
Alice girou e correu escada acima.
Espremia com força a nota de Katherine e o anel enquanto corria pelo corredor que estava no final da escada. Deteve-se frente a porta de Hugh e golpeou.
-Entre.
A voz do Hugh tinha um matiz que gelava os ossos.
Alice deu um suspiro e abriu.
Hugh estava sentado diante o da mesa, com um mapa estendido diante de si. Levantou a vista quando Alice entrou. Ao vê-la, ficou de pé e apoiou as mãos na mesa. Tinha uma expressão selvagem.
-Senhora, em nome do diabo, onde estava?
-No convento. -Alice o observou com atenção-. Dá a impressão de que se recuperou. Como se sente?
-Recuperei o apetite -respondeu-. E parece que adquiri gosto pela vingança.
-Não é o único que anseia saborear esse prato, milorde -disse Alice, atirando o pergaminho e o anel sobre a mesa-. Hoje parece que foi vítima de uma mulher cuja sede de vingança é maior ainda que a sua.
-A curandeira era a envenenadora?
Hugh levantou a vista da breve nota deixada por Katherine sobre a cama. O que Alice acabava de dizer o deixou atônito. Mas não podia negar a evidência que lhe trouxe a esposa do convento.
-A julgar pelo anel e o que diz a nota, suspeito que foi a mulher a que seu pai estava prometido. -Alice se sentou em um tamborete-. Arriscaria-me a dizer que quando sir Matthew voltou da França, mandou-lhe dizer que romperia o compromisso.
-Para poder casar-se com minha mãe, você acha? Hugh se esforçou para manter a voz serena e fria. Mas uma emoção desconhecida lhe percorria as veias. Possivelmente, seu pai tinha tido intenções de reconhecê-lo
-Sim. -O olhar de Alice era cálido e tenro-. Estou convencida de que é muito provável que assim fosse, milorde.
Hugh a olhou e soube que ela entendia tudo. Não tinha que tentar explicar o que essas notícias significavam para ele.
Como sempre, Alice compreendia o que pensava sem que ele tivesse que achar as palavras para dizê-lo.
-E Katherine vingou-se, envenenando meus pais. -Hugh soltou as bordas do pergaminho e observou como voltava a enrolar-se-. Assassinou-os.
-Isso parece.
-É como se a história de minha vida voltasse a ser escrita -murmurou.
-Foi uma grande pena que a verdade ficasse oculta todos esses anos.
-E pensar que me ensinaram a odiar a Rivenhall, por cima de todas as coisas, do berço...
Interrompeu-se, incapaz de terminar a frase. “Não esquecerei, avô.”
Hugh sentiu como se os trêmulos pilares de pedra nos quais apoiava toda sua existência, de repente tivessem sido removidos por debaixo dele.
O pai havia retornado da França com a intenção de casar-se com a mãe de seu filho. Não tinha seduzido e abandonado a jovem Margaret de Scarcliffe.
-Igualmente à sir Vincent ensinaram a odiá-lo-disse Alice em tom suave, irrompendo no sonho do Hugh.
-Sim. Acredito que as duas famílias e também estas terras pagaram um alto preço pelo crime dessa mulher. -O olhar de Hugh se topou com o de Alice, fez um esforço para considerar a situação presente à luz de certa lógica-. Mas, por que Katherine esperou até hoje para tentar me envenenar? Por que não empregou essa maldita beberagem quando eu cheguei a me fazer cargo de Scarcliffe?
Com gesto de intensa concentração, Alice respondeu:
-Não estou do todo certa. Neste assunto, há muitas coisas que falta responder.
-Teria sido muito mais fácil me assassinar há algumas semanas. -Tamborilou com o cilindro do pergaminho sobre a mesa-. A casa estava muito desorganizada.
Devia haver muitas oportunidades para que atuasse um envenenador, e não havia ninguém com capacidade de me salvar. Por que esperou?
Alice apertou os lábios.
-Possivelmente a agradasse a confusão que tinha feito. Enquanto durasse, poderia saborear a taça da discórdia e a rivalidade que tinha provocado.
-Sim.
-É provável que a encolerizasse a visita de ontem de sir Vincent e sua família. Todos viram você e Vincent cavalgando pela aldeia.
-Claro. -perguntou-se por que isso nãolhe ocorrera: parecia que não pensava com clareza. As novidades sobre o passado desequilibravam sua capacidade de raciocínio-. Pode ser que o visse como o primeiro passo para o fim da rivalidade entre Scarcliffe e Rivenhall.
-Sim.
Alice tamborilou com os dedos sobre o joelho. -O que o preocupa?
-Ainda não compreendo por que envenenou o monge. Não tem sentido.
-Possivelmente nunca saberemos se não a encontrarmos. -Com repentina decisão, Hugh se levantou-. E tenho intenções de fazer precisamente isso.
Começou a rodear a mesa.
-Aonde vai, milorde?
-Falar com Dunstan. Quero que se reviste Scarcliffe de um canto ao outro. A pé, a envenenadora não pode ter ido muito longe. Se nos movermos com rapidez, a acharemos antes de que se desate a tormenta.
O estalo de um trovão e a breve luz de um relâmpago acabou com esse plano antes de que tivesse terminado de falar.
-Muito tarde, milorde. -Maldição!
Hugh foi até a janela.
O vento e a chuva açoitavam com força os muros negros do castelo de Scarcliffe e quão escarpados o rodeavam com cega intensidade. Em meio dessa tormenta, as tochas seriam inúteis. Hugh fervia de irritação enquanto fechava os janelas.
-Não tema -disse Alice-. A encontrará pela manhã.
-Sim -afirmou-. Encontrarei-a.
Ao voltar-se, viu que Alice o observava com atenção; tinha o olhar obscurecido por uma séria aflição. Preocupação por ele. "Assim olha quando está angustiada por alguém que é importante para ela -pensou-. A alguém que ama."
A esposa.
Por um instante, extasiou-o o simples fato de que estivesse alí sentada, em seu escritório. As saias caíam com graça ao redor de seus pés. O resplendor do braseiro intensificava o fogo escuro do cabelo. Cabelo da cor do entardecer, antes de que o envolva a noite.
A esposa.
Esse dia, tinha-lhe salvado a vida e lhe brindou com o dom da verdade sobre seu próprio passado.
Era muito o que lhe dava.
Outra onda de emoção o encheu. E a força dessa onda era mais forte que os ventos enlouquecidos que açoitavam Scarcliffe essa noite.
Não podia pôr nome no sentimento que o inundava, que o enchia de um fundo desejo. De repente, desejou com toda a alma contar com outra lista de elegantes versos. Necessitava do dom da palavra como possuia Julian. Queria dizer algo memorável, digno de um poeta. Um pouco tão belo como a própria Alice.
-Obrigado -disse-lhe.
Horas depois, na maciez da enorme cama, Hugh se movia sobre Alice e penetrava em sua brandura mais uma vez. Sentiu primeiro os tenros estremecimentos. A suave maciez que se apertava ao redor dele. Depois, ouviu a exclamação de alívio.
Por um instante, percebeu uma sensação de prazer e gratidão: não estava sozinho na tormenta. Alice estava com ele. Podia tocá-la, senti-la e abraçá-la.
Era parte dele.
A intensa sensação passou tão rápido como chegou.
Outra vez, perdeu-se no doce resplendor da paixão de Alice. Arrasava-o e o elevava. Rendeu-se a esses ventos selvagens com um rouco grito abafado de satisfação e êxtase.
Alí, na escuridão, com Alice, não controlava a tormenta. Mas bem, cavalgava nela com a liberdade de um grande falcão, a um lugar onde o passado não projetava sombras.
Quando acabou, permaneceu quieto por um momento, gozando do prazer que lhe brindava a proximidade de Alice.
-Hugh.
-O que?
-Não dormiu.
Sorriu na escuridão.
-Parece-me que você tampouco.
-Que profundos pensamentos lhe mantêm acordado a esta hora?
-Não pensava. Escutava.
-O que?
-A noite.
Alice guardou silêncio uns segundos.
-Eu não ouço nada.
-Escute. O vento cessou e a chuva também. Já não há tormenta.
-É um dia estranho. -Joan se deteve na entrada do convento. Colocou as mãos nas mangas do hábito e olhou pensativa a espessa névoa que se abatia sobre o Scarcliffe-. Alegrarei-me quando terminar.
-Não é a única que se alegrará quando isto termine. -Alice colocou o livro da mãe sob o braço e se acomodou o capuz do manto-. Confesso que, uma parte de mim, prefere que lorde Hugh não encontre a curandeira.
Hugh tinha partido pelo amanhecer em busca de Katherine. levou do castelo a Benedict e a quase todos os varões em bom estado físico. E desde que saiu, não havia notícias dele.
Inquieta, ansiosa e cheia de angústia, Alice passeou pelos corredores do castelo até que já não pôde suportar sua própria companhia. Pensando em manter-se atarefada com algo útil, recorreu ao livro de notas de sua mãe e foi à aldeia.
Havia trabalho o suficiente na enfermaria do convento. Quando terminou de dar remédios para a tosse e tônicos contra as dores das articulações, compartilhou com as freiras as preces e a comida do meio-dia.
-Entendo-a -murmurou Joan-. Seria mais fácil que Katherine desaparecesse, mas não é muito provável.
-É o mais acertado. Meu senhor a perseguirá até as portas do inferno, se for necessário. -Contemplou a névoa-. Só espero que, quando a encontrar, também encontre a paz.
Joan lhe dirigiu um olhar tenro e sábio. -Nenhum de nós pode encontrar a verdadeira paz no passado, Alice. Temos que procurá-la no presente.
Alice apertou com mais força o livro de notas de sua mãe.
-É você muito sábia, senhora.
Joan esboçou um sorriso melancólico.
-É uma dura lição que aprendi, como deve ocorrer a todos.
Pela primeira vez, Alice pensou nos motivos que teria tido Joan para abraçar a vida de religiosa. "Algum dia o perguntarei -pensou-. Hoje não, é obvio." Era muito prematura a ocasião para um assunto tão íntimo.
Mas no futuro teria várias oportunidades para conversações desse estilo. Algo lhe dizia que essa amizade crescente com a madre seria importante para as duas.
E apesar do lúgubre dia, Alice sentiu que uma genuína calidez se aninhava nela. Seu futuro estava em Scarcliffe. Seria bom.
-Bom dia senhora.
Encaminhou-se para a entrada.
-Bom dia, milady.
Alice ergueu uma mão em despedida, e saiu pela entrada de pedra.
A névoa era agora tão densa que quase não via os rastros da carreta na rua. Soube que devia ter dificultado muito a busca de Hugh. Também soube que não abandonaria de qualquer jeito seu propósito. Pentearia Scarcliffe e as terras vizinhas com a implacável determinação que o caracterizava.
"Entendo-o -pensou-. Terá que ter em mente que está perseguindo à pessoa que, quase com absoluta certeza, assassinou a seus pais." Alice sabia que, no que se referia a Hugh, o fato de que Katherine tivesse tentado envenená-lo, era insignificante em comparação com os crimes cometidos trinta anos antes.
Katherine tinha lhe tirado o direito a ter sua mãe e seu pai. Privou-o das terras que deveriam ser de Hugh por direito de herança. Fez que ficasse aos cuidados de um velho ressentido que o via como um instrumento de vingança, e não muito mais.
Alice tremeu ao pensar no que poderia ter acontecido se o destino não tivesse levado Hugh ao lar de Erasmus de Thornewood. Algum dia, gostaria de poder agradecer a essa figura nebulosa que, com somente sua força, impediu que as ferozes tormentas que formavam sua natureza consumissem por completo a Hugh.
Alice não o culpava pela decisão com que procurava encontrar a sua presa, mas agora que estava sozinha outra vez, a inquietação voltou. Nessa situação havia algo que não estava bem. Havia muitos pontos escuros. Muitas perguntas sem responder.
Por que assassinou o monge? Refletiu sobre isso pela enésima vez naquele dia enquanto passava diante da última cabana da aldeia. A névoa silenciava tudo. Os homens não estavam trabalhando nos campos nem as mulheres nos jardins. Os meninos se esquentavam junto às chaminés. Alice tinha o caminho ao castelo do Scarcliffe para ela sozinha.
O monge. Tinha que haver algum laço entre Calvert e o envenenamento dos pais de Hugh. Uma figura escura, encapuzada, emergiu da névoa diante da Alice. paralisou-se. O temor a assaltou como uma onda retumbante.
-Já era hora de que aparecesse. -O homem se aproximou-. Perguntávamo-nos se pensaria vagabundear no convento até amanhã.
Alice abriu a boca para gritar, mas já era tarde.
Imediatamente, uma mão rude tampou sua boca.
Soltou o livro e esperneou, desesperada-se. As pernas lhe enredaram nas dobras do vestido, mas as agitou para golpear o atacante com a ponta da bota branda.
-Maldita seja -murmurou o homem-. Sabia que isto não seria tão fácil. Não diga uma palavra.
Baixou-lhe o capuz da capa, cegando-a.
Alice se debateu ferozmente. agitou-se ás cega, procurando um branco qualquer, enquanto o atacante a levantava.
Depois, ouviu passos abafados no caminho e soube que o homem que a tinha aprisionado não estava sozinho.
-Não a deixe gritar, Fulton, não -resmungou o outro homem-. Não estamos longe da aldeia. Senão alguém a ouvirá.
Alice redobrou os esforços para gritar pedindo ajuda. Conseguiu cravar os dentes na palma do Fulton.
-Maldição! -protestou Fulton-. A mulher me mordeu.
-Tampe-lhe a boca com um trapo.
Alice lutou, enlouquecida de pânico, enquanto lhe colocavam um trapo sujo, sobre a boca e o atavam na parte de atrás da cabeça.
-Apresse-se com isso, Fulton. Temos que sair do caminho. Se sir Hugh e seus homens tropeçam conosco em meio desta névoa, estaremos mortos antes de saber o que aconteceu.
-Sir Hugh não se atreverá a tocarnos enquanto tenhamos prisioneira a sua esposa -protestou Fulton.
Mas em sua voz ressoava um matiz de ansiedade.
-Em seu lugar, eu não esperaria sobreviver a um encontro semelhante -murmurou o outro.
-Mas sir Eduard diz que Hugh o Implacável está muito afeiçoado com sua flamejante mulher.
Sir Eduard. Alice ficou tão perplexa que, por um momento, ficou imóvel. Esses dois sujeitos, refeririam-se ao Eduard de Lockton? Impossível. Eduard não se arriscaria a provocar deste modo a ira de Hugh. O mesmo Hugh estava seguro de seu próprio domínio sobre o desagradável Eduard.
-Pode ser que sir Hugh queira à empregada -respondeu o outro homem-, mas não foi sem motivos que Erasmus de Thornewood fez gravar Provocadora de Tormentas na espada do escuro cavalheiro. Apresse-se. Temos que movermos rápido, se não quisermos que tudo esteja perdido.
Alice compreendeu que se colocou em uma armadilha.
Alice piscou várias vezes quando, ao fim, tiraram-lhe o capuz. Imediatamente soube que estava nas cavernas de Scarcliffe. A luz de uma tocha projetava sombras incertas nas úmidas paredes de pedra. Em algum lugar, longe, gotejava água.
Fulton lhe tirou a mordaça. Alice fez uma careta e limpou os lábios com a manga da capa.
Katherine saiu caminhando lentamente da escuridão e parou diante dela. O rosto da curandeira estava marcado por uma melancolia sem tempo. Os olhos revelavam os farrapos sombrios de sua alma.
-Embora ache que não, lamento tudo o que aconteceu, lady Alice. Acredito que era inevitável. Uma vez lhe adverti que os pecados do passado produzem ervas amargas.
-Não é o passado o que produziu o veneno, Katherine. Foi você. Mas seu último esforço fracassou, sabe? Não terá outra oportunidade. Neste mesmo momento, sir Hugh está verificando a região. Cedo ou tarde, a encontrará.
Eduard de Lockton apareceu no passadiço. À luz da tocha, suas feições eram como as de um gnomo demoníaco. Os pequenos olhos resplandeciam de malevolência.
-Já examinou o exterior da caverna. Não vai lhe servi de muito. Pois, não sabia onde procurar, não é, Katherine?
Katherine não virou-se para olhá-lo. Continuou com os olhos cravada em Alice, como se quizesse fazê-la entender.
-Eduard é meu primo, lady Alice.
-Seu primo? -Alice olhou perplexa ao Eduard-. Não entendo isto.
-É bastante óbvio. -Os dentes amarelados de Eduard apareceram entre a barba.
Mas o entenderá. Fique tranqüila, logo entenderá tudo. E também esse marido bastardo que tem, antes de que o divida em dois com minha espada.
O estômago Alice revolveu ao perceber o amargo ressentimento que emanava de Eduard.
-Por que odeia tanto o meu marido?
-Porque ao nascer arruinou tudo. Tudo! -Irritado, aproximou-se de Fulton e do outro homem, e os dois retrocederam nas sombras do tenebroso passadiço. Eduard se aproximou de Alice-. Katherine ia casar- se com Matthew de Rivenhall, entende? Eu mesmo acertei o compromisso.
-Meus pais morreram quando eu não tinha mais que treze anos -murmurou Katherine-. Eduard era meu único parente masculino. Meu destino estava em suas mãos.
-Tinha um grande dote que os parentes de sua mãe tinham lhe deixado, e eu tinha planos com respeito a ela -resmungou Eduard-. Matthew de Rivenhall era herdeiro de vários imóveis. A família queria o dote do Katherine. Estavam dispostos a vender uma das propriedades por ela. Era um excelente casamento.
-Esperava se aproveitar do matrimônio de sua prima -acusou-o Alice.
-É obvio. -Eduard levantou um ombro em gesto zombador-. O matrimônio é um negócio. As mulheres só servem para duas coisas: deitar-se com elas e casar-se. Qualquer empregada de botequim serve para a primeira. Mas unicamente uma herdeira satisfaz a segunda. .
-De modo que se propôs ter suas próprias terras -afirmou Alice, zangada.
A boca de Katherine desenhou uma careta amarga. -Ambicionava ter seu próprio imóvel.
Eduard franziu o cenho.
-Meu plano era me livrar de sir Matthew depois das bodas. Viúva, Katherine seria uma presa ainda mais cobiçável. Poderia ter pedido mais terras e uma magnífica fortuna em troca de sua mão.
-O que pretendia fazer? --quis saber Alice-.Pensava seguir envenenando os futuros maridos para poder continuar oferecendo-a em matrimônio uma e outra vez?
-Juro-lhe que eu não sabia o que ele pretendia-disse Katherine, triste-. Não era mais que uma menina inocente. Não sabia nada dos acertos dos homens.
-Ora. -Eduard lhe lançou um olhar depreciativo-. Tudo terminou em nada. Matthew voltou da França resolvido a casar-se com Margaret, essa rameira. Ele sabia que a família não estaria de acordo, e por isso pensava fazê-lo em segredo. Mas eu me inteirei de seus planos na noite do casamento.
-Por isso assassinou Matthew e a Margaret?
-Sir Matthew não devia morrer --estalou Eduard- Tinha que casar-se com Katherine, como eu tinha planejado. Mas o tolo bebeu da mesma taça que Margaret. É provável que brindasse com a amante. Isso o matou.
Alice o olhou fixamente.
-Onde aprendeu tanto sobre venenos?
O rosto de Eduard se contraiu por um instante em uma careta de satisfação feroz.
-Aprendi a preparar a beberagem há muitos anos, quando vivi um tempo em Toledo. Ao longo dos anos o usei mais de uma vez. É uma arma excelente, pois todos supõem que o assassino é uma mulher.
-Como ocorreu há trinta anos -concluiu Alice. O sorriso de Eduard era quase insuportável.
-Claro. Todos pensaram que Margaret tinha assassinado seu amante e depois havia se suicidado.
Ninguém pensou em procurar o verdadeiro assassino.
-Os homens sempre estão convencidos de que o veneno é uma arma feminina -murmurou Katherine.
Alice se abrigou melhor com a capa para resguardar do frio espantoso que reinava na caverna.
-Por que me seqüestra? A que se propõe?
-É simples, senhora --disse Eduard em voz baixa-. Penso em pedir um resgate.
Alice enrugou o sobrecenho.
-Que espera que faça sir Hugh? Que lhe dê um cofre com especiarias em troca?
-Não, senhora. Quero algo muito mais satisfatório que um cofre de gengibre ou de açafrão.
Alice o olhou aterrada. -E então, o que?
-Vingança-murmurou Eduard.
-Mas, por que?
-Hugh o Implacável ficou com o que devia ser para mim, embora tenha nascido bastardo -respondeu, afogando-se de fúria-. Tem terras. Terras onde está enterrado um tesouro.
-Mas ninguém sabe onde estão as Pedras de Scarcliffe -disse Alice, desesperada-se-. Para falar a verdade, lorde Hugh as considera uma simples lenda.
-São muito mais que uma lenda -assegurou-lhe-. Calvert do Oxwick sabia. Contou-lhe o segredo um cavalheiro ancião que tomou os votos sagrados quando estava muito velho para empunhar a espada. Tempo atrás, tinha servido a um senhor de Scarcliffe. Esse senhor, descobriu uma antiga carta onde se dizia parte da verdade.
Alice retrocedeu um passo.
-No que consiste essa grande verdade?
-Que a chave está no cristal verde. –Os olhos do sujeito reluziram-. por que acredita que já matei duas vezes por ele, senhora?
-O camelô e o pobre monge?
-Claro. E quase tive necessidade de matar ao estúpido do trovador, Gilbert. Mas então, você ajudou sir Hugh a recuperar a pedra, e tudo mudou. Asseguro-lhe que todo este assunto é como uma partida de jogo de dados.
-Assassino!
-Assassinar é um esporte muito gratificante -admitiu-. E desta vez, constituirá um prazer muito particular. Hugh o Implacável, ao nascer, arrebatou-me tudo.
-Ele não teve a culpa de que seu pai resolvesse romper o compromisso com Katherine.
-OH, sim teve, sabe? -A boca de Eduard se esticou-. Estou convencido de que o que fez com que sir Matthew quisesse casar com sua lady Margaret foi que a garota tinha concebido um filho. Queria um herdeiro robusto. Não me ocorre nenhum outro motivo para querer casar-se com uma mulher com a que já se deitou.
-Talvez, de verdade a amasse -retorquiu Alice.
-Ora, o amor é para poetas e para damas, não para cavalheiros da reputação de sir Matthew. –Fechou a mão em punho-. Há trinta anos, eu perdi muito, mas agora terei a minha parte. Por fim, obterei uma grande riqueza e me vingarei ao mesmo tempo.
Alice deu um profundo suspiro para serenar-se. -O que é que fará?
É muito simples. Mandarei uma mensagem a sir Hugh, lhe dizendo que se quiser que você volte sã e salva tem que me dar a pedra verde.
Alice tratou de manter a voz firme.
-É bem sabido que lorde Hugh não confia em mitas pessoas, sir Eduard. Mas está muito afeiçoado comigo.
-Isso sei muito bem, senhora. De fato, é a base de meu plano.
-Se o convencer de pagar o resgate, primeiro terá que convencê-lo de que ainda estou viva. Se acreditar que estou morta, não pagará nada. É muito bom negociante para deixar-se enganar deste modo.
Eduard a olhou enfurecido.
-Por que duvidaria de minha mensagem? Logo se inteirará de que você desapareceu.
Alice encolheu os ombros.
-Talvez ache que, simplesmente, perdi-me na névoa e que algum malfeitor, informado de meu desaparecimento, aproveitou-a para fazer acreditar que estou cativa.
Eduard o pensou um momento, e logo, adotou uma expressão matreira.
-Mandarei-lhe algo seu para provar que a tenho.
-Uma excelente idéia, sir Eduard.
-Quando isto terminar, o mandareiembora para sempre deste salão, Elbert -assegurou-lhe Hugh.
-Sim, milorde. -Elbert baixou a cabeça-. Só posso dizer que lamento profundamente. Mas é verdade que lady Alice vai caminhando à aldeia todos os dias. Não vi motivo para mandar hoje um guarda com ela.
-Maldição!
Elbert tinha razão, e Hugh sabia. Deixou andar para um lado e outro e se deteve frente à lareira do grande salão.
Não tinha sentido desabafar no mordomo. Ninguém sabia melhor que Hugh que o acontecido não era culpa do rapaz. "Se alguém tem a culpa, sou eu -pensou-. Fracassei em proteger a minha esposa."
-Pelo sangue do diabo.
Contemplou o livro que tinha nas mão. Era o livro de conhecimentos sobre ervas que Alice tinha deixado cair no caminho. Encontrou-o quando voltava de sua inútil busca.
-Talvez só esteja perdida na névoa –sugeriu Benedict, preocupado.
Hugh esticou o queixo.
-Difícil. A névoa é densa, mas não tanto como para ocultar as marcas a alguém que conhece o caminho. Não, a levaram pela força.
Benedict abriu bem os olhos.
-Acredita que a seqüestraram?
-Sim.
Soube nesse terrível instante em que viu o livro caido no caminho.
Hugh fechou um momento os olhos e se esforçou por conservar a calma. Tinha que pensar com clareza e lógica. Tinha que dominar a tormenta de raiva e medo que ameaçava varrer o seu controle, pois do contrário tudo estaria perdido.
-Mas, quem seqüestraria a lady Alice? –Elbert parecia desassossego-. Todos a amam.
Os olhos de Benedict se encheram de alarme. -Devemos sair imediatamente. Temos que encontrá-la.
-Não -disse Hugh-. Não podemos nem encontrar à assassina nesta névoa. Não temos possibilidades de descobrir Alice até que o seqüestrador mande uma mensagem.
-Mas, e se não o faz? -perguntou Benedict, zangado-. O que fará se não recebermos notícias?
-Chegará uma mensagem. -Hugh levou a mão ao cabo da espada e rodeou com os dedos o punho forrado de couro negro-. O único interesse de um seqüestrador é um resgate.
A mensagem foi levado até a entrada no mesmo momento em que a capa da noite se posava sobre as terras nebulosas de Scarcliffe. Um guarda de expressão aflita levou as exigências diretamente a Hugh.
-Milorde, chegou um homem à entrada. Pediu-me que lhe dissesse que se queria ter de volta a Lady Alice, tinha que levar o cristal verde ao extremo norte do velho canal da aldeia. Deve deixá-lo alí e voltar para o castelo e esperar. Pela manhã, a pedra terá desaparecido e lady Alice será enviada de volta.
-A pedra verde? -Hugh se inclinou para frente na cadeira de ébano em que estava sentado, apoiou o cotovelo em na coxa e olhou ao guarda-. Esse é o resgate?
-Sim, milorde. -Inquieto, o guarda tragou saliva-. Rogo-lhe que recorde que eu não fiz mais que trazer a mensagem, senhor.
-Quem o enviou?
-O homem diz que seu amo é Eduard de Lockton.
-Eduard. -Hugh olhou as chamas em seu lareira -. Então, ao final de contas me desafiou.
O mensageiro, disse algo mais? Algo? Pense, Caran.
Caran assentiu com presteza.
-Disse que seu amo lhe ordenou dar a você uma mensagem especial de lady Alice para lhe demonstrar que é verdade que a tem cativa.
-O que é?
Caran retrocedeu, embora Hugh não se levantasse. Estendeu a mão, abriu os dedos e mostrou o conhecido anel com a pedra de ônix.
-Lady Alice lhe envia o anel de compromisso e lhe roga que recorde bem o que lhe disse no dia em que o deu de presente.
Hugh contemplou o anel. Não era poeta. Esse dia não lhe havia dito palavras de amor. Esforçou-se por recordar cada palavra que lhe houvesse dito.
Não tente ir sozinha às cavernas.
-Claro -murmurou.
Benedict piscou.
-O que é, senhor?
-Eduard tem a Alice em alguma parte das Cavernas de Scarcliffe.
Quando se inteirou da estratégia, Benedict ficou furioso.
-Como é isso de que não pagará o resgate? Pelo amor de Deus, milorde, não pode deixar a minha irmã a mercê de Eduard de Lockton! Já ouviu a mensagem: a matará.
Dunstan lhe apoiou uma mão no ombro sem muita delicadeza.
-Tranqüilize-se, Benedict. Sir Hugh já lutou com homens como Eduard muitas vezes. Sabe o que está fazendo.
Benedict golpeou a bengala contra o chão.
-Mas diz que não lhe dará o cristal a sir Eduard.
-Certo.
Benedict se voltou para Hugh.
-Você mesmo disse que a pedra verde é de pouco valor. Que é só um símbolo, parte de uma velha lenda. Sem dúvida, a vida de minha irmã vale bastante mais que essa pedra endemoniada.
Hugh não ergueu a vista do plano das cavernas que tirou de Calvert.
-Acalme-se, Benedict.
-Acreditei que abrigava sentimentos tenros para a Alice. Você disse que a cuidaria, que a protegeria.
"Sentimentos tenros", pensou Hugh. Essas palavras, nem roçavam, sequer, as emoções que estava tentando controlar. Ergueu lentamente a vista para o rosto ansioso e tenso do rapaz.
-Como disse, a pedra não tem valor _disse com calma-. Essa não é a questão.
-Senhor, tem que pagar o resgate –suplicou Benedict-. Se não o fizer, esse sujeito a matará.
Hugh observou Benedict em silencio , sem saber o quanto lhe dizer. Olhou para Dunstan, e este encolheu os ombros. O gesto significava que nada ganharia mentindo ao rapaz.
-Não compreende a situação --disse, sem alterar-se.
Como explicaria ao irmão de uma mulher que a vida de sua irmã pendia por um fio? E além disso, como confrontava um homem ao fato de que sua esposa estava a mercê de um assassino?
Hugh desprezou seus temores com esforço. Não poderia fazer nada por Alice se se entretinha com imagens horríveis e visões tenebrosas do futuro sem ela.
-Não é verdade -gritou-. Entendo muito bem o que está passando. A minha irmã foi sequestrada por Eduard de Lochon, que exige um resgate para devolvê-la. Os cavalheiros pedem resgates um por outro com freqüência. Pague, milorde. Tem que fazê-lo.
Não servirá para nada Hugh_. Se deixa-se a pedra verde no canal velho da aldeia, como me indicaram, sem dúvida Eduard assassinará Alice.
Dunstan assentiu sério.
-Sir Hugh tem razão, Benedict.
Benedict os olhou, desesperado, primeiro a Dunstan, logo a Hugh.
-Mas... mas pediu um resgate. Diz que a liberará se pagar esse preço.
-Isto não é uma justa ou um torneio amistoso, em que os resgate formam parte do jogo. -Hugh voltou a estudar o mapa da caverna-. Não cometa o engano de acreditar que Eduard de Lockton jogará de acordo com as regras da honra.
-Mas é um cavalheiro -protestou Benedict-. Participou das justas no Ipstoke, eu o vi.
-Com este ato, Eduard demonstra que não é um verdadeiro cavalheiro -murmurou Dunstan.
-Até agora se comportou como uma raposa ardilosa que se oculta no matagal, até que vislumbra a oportunidade de apanhar o que deseja. -Hugh percorreu uma passagem com a ponta do dedo. No campo de batalha, mostra-se bastante civilizado, pois há ali muitos há cavalheiros que se indignariam se fizesse armadilhas ou atuasse em forma desonesta. Mas isto é diferente.
-A que se refere? -perguntou Benedict. -foi muito longe. -Hugh apoiou o cotovelo na mesa e a mandíbula no punho-. Invadir Rivenhall foi uma coisa. Sabia que não me importaria o que acontecesse com essa propriedade. Se as circunstâncias tivessem sido diferentes...
Deixou a frase sem terminar, prendendo no ar. A expressão de Benedict começou a limpar-se. -Quer dizer que se Alice não tivesse cavalgado até Rivenhall para defendê-lo, você não o teria feito?
-Claro. Se ela não fizesse cargo de salvar essa propriedade, Eduard poderia ficar com ela, com meus melhores desejos. Ele sabia. Mas isto... isto é algo muito diferente.
Neste assunto intervinha um elemento novo. Hugh especulou com as possibilidades.
O que saberia Eduard a respeito da pedra verde que o impulsionava a provocar a ira de um homem ao que, até então, tinha tratado com a maior precaução?
O que sabia do cristal que o impulsionava a arriscar-se a morrer por ele?
Porque no instante em que apanhou Alice, Eduard tinha assinado sua própria sentença de morte. Certamente, devia ser consciente desse fato.
-Está claro que é um assunto muito diferente -disse Benedict, golpeando com o punho sobre a mesa-. por que está tão seguro de que Eduard matará Alice embora pague o resgate?
-Ao raptar a Alice, desafiou-me diretamente. -Franziu o cenho enquanto estudava outra passagem-. Isso significa que, por alguma razão, já não me teme o bastante para ser precavido. Se for assim, já não é uma raposa e sim um javali. E não há criatura tão perigosa e imprevisível quanto um javali.
Benedict paralisou-se. sabia-se que o javali era a besta mais selvagem, que só os caçadores mais destros se atreviam a perseguir. Dotado de um corpo maciço, de músculos pesados, grandes presas e uma ferocidade cega, era capaz de matar um cavalo e o desafortunado homem que estivesse sobre os arreios. Os sabujos mais valorosos não podiam derrubá-lo sem a ajuda de uma matilha completa de cães fortes e as flechas dos caçadores.
-O você vai fazer? -perguntou por fim o moço, com voz abafada pela impressão.
Hugh enrolou a pequena folha de pergaminho em que Calvert tinha esboçado o mapa.
-Farei o único que pode fazer-se com um porco selvagem: caçarei-o e o matarei.
O olhar sombrio de Katherine posou em da Alice.
-Depois da morte de sir Matthew, meu primo gastou quase toda a minha herança e não pôde negociar outro matrimônio proveitoso para mim. Deixou-me entrar no convento de Scarcliffe. Durante anos, vi-o pouco, para minha alegria.
-Estava contente no convento?
-Tanto como pode estar uma mulher de meu temperamento.
Apesar do duro da situação, Alice sentiu certa simpatia.
-A madre Joan me contou que você padece de ataque de melancolia.
-É certo. Embora trabalhar com jardinagem seja bom para os doentes desses humores. E gosto de mesclar ervas. No geral, estive contente.
Incômoda no duro chão de pedra, Alice trocou de posição. Pareceu-lhe que fazia um século que estava sentada com Katherine em um rincão da vasta gruta. A tranqüila conversação com a curadora era a único que lhe impedia de sucumbir ao medo que ameaçava dominá-la.
Naquela noite, estava muito mais nervosa que o dia em que enfrentou Eduard no castelo de Rivenhall.
A diferença não residia no fato óbvio de que, naquela ocasião, tinha a Dunstan e ao contingente de homens armados respaldando-a, e sim em outra coisa. Tinha que ver com uma mudança no mesmo Eduard. Uma mudança aterradora.
Essa noite, Eduard tinha um ar frenético, de violento desespero; Alice sentiu que era muito mais perigoso desta vez do que estava quando tentou apropriar-se de Rivenhal. Na ocasião temia Hugh.
Na situação presente, a ansiedade por obter a pedra verde parecia ter varrido todo sentido de precaução.
Para alívio da Alice, Eduard tinha saído da caverna um momento antes. Levou uma tocha e avançou por um passadiço escuro com a confiança do homem que conhece o caminho entre um labirinto de túneis.
Era a terceira vez que Eduard saía das cavernas para esquadrinhar no velho canal da aldeia.
Alice teve a sensação de que as paredes da caverna se fechavam. Uma tocha fixa a uma das paredes ardia com chama baixa. A fuligem das chamas obscurecia a pedra por cima dela. As sombras vacilantes foram tornando-se mais escuras e densas.
Uns tinidos contra o chão de pedra atraíram o olhar de Alice ao outro lado dessa câmara. Fulton e o outro sujeito, de nome Royce, conforme soube, estavam sentados com as pernas cruzadas, jogando aos jogo de dados. Tinham as armas ao alcance da mão.
-Meu -resmungou Fulton, e não pela primeira vez. Tinha ganho várias vezes.
-Ora, me dê o jogo de dados. -Royce arrebatou os pequenos cubos de osso e os jogou no chão, enfurecendo-se com o resultado-. Por todos os Santos. Como é que tem tanta sorte?
-Dê-me, mostrarei-te como se joga.
Fulton se apoderou dos jogo de dados.
-Sir Eduard já teria que ter retornado. Porque será que demora?
-Quem sabe? -Fulton atirou os dados-. Esta noite está de um humor estranho.
-Sim. Não pode pensar em outra coisa que nessa maldita pedra verde. Para mim, isso não é natural. Qualquer um sabe que esse cristal carece de valor.
-Sir Eduard está convencido de que vale.
Alice se rodeou com os braços e olhou a Katherine. -Está tarde.
Ali, nas vísceras das cavernas, era impossível conhecer a posição do sol, mas se podia notar o passar do tempo de outra maneira.
-Sim. -Katherine juntou as mãos-. Sem dúvida, terminará logo. Ambas estaremos mortas e Eduard terá o cristal verde.
-Meu marido nos resgatará -prometeu Alice, em voz baixa.
Recordou que, em uma ocasião, fez- a mesma promessa a Emma. "Pobre Hugh -pensou, com ironia e fugaz bom humor-, sempre tem que cumprir minhas promessas."
Katherine moveu a cabeça, pesarosa.
-Ninguém pode resgatarnos, lady Alice. As raízes da erva que envenenou o passado deram flores malvadas.
-Não se ofenda, Katherine, mas às vezes você consegue me desanimar.
A expressão de Katherine se fez mais lúgubre ainda.
-Prefiro enfrentar a verdade e os fatos. Se você quer consolar-se com falsas esperanças, dane-se você.
-Minha mãe acreditava muito no poder da esperança. Considerava-a tão importante como uma medicina. E eu tenho esperanças fundadas de que meu senhor enfrentará Eduard com êxito . Já verá.
-Certamente, tem muita fé no poder de seu marido -murmurou Katherine.
-Tem que admitir que ainda não me falhou. -Alice endireitou os ombros-. E se acreditar que Eduard é rival digno de sir Hugh, equivoca-se.
-No que a mim respeita, nunca tive o menor motivo para depositar minha confiança nos homens.
Era evidente que Katherine estava resignada a um triste final.
Alice chegou à conclusão de que não conseguiria trocar a sombria atitude de Katherine e, portanto, resolveu trocar de tema
-Sabe quem roubou o cristal verde do convento, faz umas semanas?
Katherine se retorceu as mãos sobre o regaço. -Fui eu.
-Você?
A freira suspirou.
-Quando Eduard soube que o cristal era a chave para encontrar as Pedras de Scarcliffe, mandou-me uma mensagem de que eu devia tirá-lo da abóbada. Me... me fez certas ameaças.
-Que tipo de ameaças?
-Assegurou-me que, se não lhe obedecesse, envenenaria algum aldeão ou uma das freiras.
-Meu deus!
-Não quis me arriscar. Fiz o que me ordenou. Uma noite, tarde, apropriei-me da pedra e a dei ao homem que Eduard mandou à entrada do convento para pegá-la.
-Por que Eduard esperou tantos anos para roubar a pedra?
Katherine levantou os ombro em um gesto de indiferença.
-Faz apenas alguns meses que conheceu seu verdadeiro valor.
-Quando descobriu que Calvert de Oxwick sabia que as Pedras de Scarcliffe realmente existiam?
–Claro.
Alice franziu o cenho.
-Esse incidente ocorreu mais ou menos ao mesmo tempo que sir Hugh recebeu o feudo de Scarcliffe.
- Eduard alegrou saber que perder a pedra verde causaria muitas dificuldades a Hugh, mas não foi por isso que me ordenou que a roubasse. A verdade é que, quando soube que as Pedras eram algo mais que uma simples lendaficou obcecado em descobrir esse tesouro.
-O que aconteceu quando você entregou a pedra verde ao homem de Eduard?
-O imbecil traiu Eduard. -Katherine apertou os lábios-. Foi com ela, decidido a descobrir por si mesmo qual era seu valor. Mas como não pôde averiguá-lo, a vendeu a um camelô. Daí foi parar em suas mãos e, por último, restituída a seu legítimo dono.
-Enquanto isso, Calvert estava aqui, disfarçado de monge para explorar as grutas a seu desejo.
-Sim. Eduard compreendeu que o monge tinha aprendido muito sobre as cavernas e era útil. Fez um trato com ele, transformou-o em seu sócio. Eduard prometeu encontrar a pedra verde enquanto Calvert explorava as cavernas.
-Mas Eduard assassinou Calvert.
Katherine assentiu.
-Sim. Estou segura de que pensava em fazê-lo desde o começo, assim que tivesse o que queria. Mas quando sir Hugh recuperou a pedra verde e a encerrou no castelo de Scarcliffe, Eduard e Calvert discutiram.
-Porquê?
-Calvert acusou Eduard de fracassar em sua parte no trato. Eduard se enfureceu e chegou à conclusão de que o monge já não lhe servia. Quando Calvert morreu, Eduard compreendeu que teria que executar um plano diferente.
-E me seqüestrou -murmurou.
-Claro.
-É um tolo.
-Não, é um sujeito cruel e perigoso -sussurrou Katherine-. Para falar a verdade, sempre foi malvado. Mas esta noite, percebo algo mais nele. Algo que me aterra.
-Um fio de loucura?
Jogou um olhar ipquieta ao Fulton e Royce. -Sim. -Katherine se olhou as mãos-. Odeio-o, sabe?
-Seu primo?
Katherine olhou sem ver a parede da caverna. -Quando meus pais morreram, levou-me para viver com ele. Queria controlar minha herança.
Alice fez uma careta.
-É uma história bastante freqüente. Há poucos homens que conseguem resistir, à ocasião, de controlar a fortuna de uma herdeira, e a lei os estimula a fazê-la.
-É certo, mas o tratamento de meu primo era pouco freqüente... e pouco natural. -Katherine olhou outra vez as mãos crispadas-. Me... forçou.
Alice a olhou, atônita.
-OH, Katherine! -Com grave delicadeza, tocou o braço da mulher-. Sinto-o tanto...
-E depois, tratou de me casar com sir Matthew para obter terras próprias. -O rosto da mulher estava rígida de dor-. Que Deus me perdoe, odeio a Eduard com a paixão que outras mulheres reservam ao amor.
O roçar de uma bota sobre a pedra fez que Alice ficasse tensa. Girou a cabeça para esquadrinhar na escuridão da passagem. Na entrada, cintilou a luz de uma tocha e, pouco depois, Eduard apareceu à vista. O semblante era uma máscara de fúria.
Fulton ficou de pé desajeitadamente e fixou a vista na mão vazia de Eduard.
-Sir Hugh ainda não pagou o resgate?
-O canalha está me provocando. -Colocou a tocha na mão de Fulton-. Já amanheceu, e não deixou a pedra verde no extremo norte desse canal pestilento. E a maldita névoa piora a cada minuto.
-Talvez não ache que a dama vale esse preço. -Fulton lançou a Alice um olhar preocupado-. Não é difícil imaginar que prefira livrar-se dela.
-Esfregou-se a palma da mão, onde Alice lhe tinha mordido-. A garota é fastidiosa.
Eduard girou para ele, furioso.
- Idiota. Não sabe nada desta questão.
-Possivelmente -murmurou Fulton-. Mas sei que eu não gosto muito.
-Sir Hugh valoriza sua esposa. -Eduard coçou a barba com os dedos-. A agrada ao ponto de parecer idiota. O viram aquela noite no castelo de Rivenhall. Como lhe deu sua palavra com respeito a um capricho, permitiu-lhe que a dama o privasse de uma vingança que ele desejava.
-Sim, mas...
-Só um homem enfeitiçado permitiria que uma mulher o manipulasse assim. Sim, o tolo a aprecia muito. Trará-me a pedra, acreditando que a trocará pela vida de sua mulher.
Royce franziu o cenho.
-Eu opino como Fulton. Eu não gosto desta situação. Sem dúvida, a pedra não vale o risco de ser abandonados como ratos pelo Hugh o Implacável.
-Deixem de se queixar. -Eduard começou a andar pela câmara-. Estamos seguros nessas grutas. Agora que Calvert está morto, o único que conhece o caminho sou eu. Nem sir Hugh se atreveria a meter-se neste labirinto.
-Sim. Isso é o que você diz. -Royce guardou os jogo de dados em uma pequena bolsa que levava no cinturão.- Mas isso não muda nada. Esta caverna será um bom lugar para ocultar-se no momento, mas também poderia transformar-se em uma armadilha.
Eduard deixou de passear-se e girou com os olhos entreabertos como ranhuras.
-Está pensando em me desafiar, Royce?
Royce não se acovardou. Ao contrário, olhou-o com expressão especulativo um momento. Então pareceu chegar a uma decisão.
-Acredito que já me cansei deste plano inútil.
-O que? Você está a meu comando -vociferou Eduard, e se levou a mão ao punho da espada-. Se pensar em me abandonar, matarei-te imediatamente.
-Tente-o.
Royce jogou mão a sua própria espada.
Fulton retrocedeu.
-Pelo sangue do demônio, isto é uma verdadeira loucura!
-Traidor!
Eduard tirou a espada da bainha e se lançou adiante.
-Volte atrás -advertiu-lhe Royce, levantando sua pesada folha.
-Deixem este absurdo -gritou Fulton-, ou estará tudo perdido.
Alice agarrou a mão de Katherine.
-Venha -sussurrou-lhe-. Talvez esta seja nossa única possibilidade.
Katherine ficou imóvel sobre a rocha, com os olhos iluminados de horror.
-Não podemos fugir pelas grutas, perderíamo-nos.
Impaciente, Alice lhe puxou.
-Não, seguiremos o rastro de Eduard. -Que rastro?
-Como já aconteceu muitas vezes, deixou os passadiços bem marcados com a fuligem da tocha.
Alice rogou que fosse verdade. Mas uma coisa era certa: a briga que estalou entre Eduard e Royce era uma oportunidade que ela e Katherine não podiam desperdiçar.
-De verdade acredita que poderemos escapar?
Katherine parecia confusa. Evidentemente, estava resignada a morrer. No melhor dos casos, a esperança era um conceito difícil de captar para ela.
Nesse momento, estava perturbada e confusa. -Venha.
Alice não afastou a vista de Eduard e Royce, que gritavam e caminhavam em círculos, um ao redor do outro. Fulton não prestava atenção às mulheres, pois se esforçava em vão para acalmar aos outros dois.
Alice não soltou a mão de Katherine enquanto andavam, cautelosas, a parede, até a seguinte tocha. Lhe arrepiou o cabelo da nuca quando a tocha esteve a seu alcance, e a percorreu um estremecimento.
Nenhum som anunciou a chegada de Hugh, mas Alice soube que estava perto. Deu a volta para olhar para o passadiço pelo que entrou Eduard instantes antes.
Um vento gelado, fantasmagorico, soprou do corredor escuro, levando consigo uma promessa de fatalidade. As tochas da enorme caverna cintilaram e chisparam.
-Hugh -sussurrou.
No túnel negro apareceu um pálido resplendor ambarino. Segundos depois, recortou-se a silhueta de um homem.
Os que brigavam detrás de Alice não a ouviram nomear ao inimigo, mas a voz era inconfundível. Cortou tenso o ambiente com o impacto de um raio que atravessa o céu noturno.
-Basta! -A palavra retumbou nas paredes da caverna-. Soltem as armas ou morrerão aí mesmo.
Na ampla câmara, tudo se imobilizou um instante. Todos olharam fixamente a Hugh, cuja silhueta se perfilava na entrada de pedra do corredor.
Alice estava igualmente estupefata, embora ela esperasse que aparecesse. Sem que ninguém o dissesse, sabia que nesse momento Hugh era mil vezes mais perigoso que nunca, desde que o havia conhecido.
Katherine fez o sinal da cruz.
-A Provocadora de Tormentas!
Hugh era a vingança encarnada, um vento escuro que varreria tudo o que lhe interpor. Os olhos eram gelados e careciam de piedade. A capa negra o envolvia dos ombros até a borda das botas negras de couro. Não levava elmo, mas a luz faiscava no aço da espada.
Dunstan e Aleyn, um dos guardas, apareceram rapidamente atrás dele, e o flanquearam com as reluzentes espadas. Detrás, apareceu Benedict com uma tocha no alto. O olhar do rapaz esquadrinhou, ansioso, a caverna até que viu a Alice. Quando a viu, o semblante lhe iluminou de alívio.
Eduard foi o primeiro em recuperar-se da paralisia que afetou a todos os que estavam na câmara.
-Bastardo! -gritou-. Arruinou tudo. Desde o dia em que nasceu tratou de me arrebatar o que por direito me pertence. Pagará-o.
Equilibrou-se, mas não para Hugh. Girou e se jogou sobre Alice. Com apavorado assombro, a moça compreendeu que tentava matá-la. Por um instante, paralisou-se de medo.
-Alice, mova-se.
Hugh se lançou adiante, mas estava a vários passos de Eduard.
A ordem rompeu o feitiço de terror que apanhava Alice. Saltou para o lado no mesmo momento em que a pesada espada de Eduard se abatia sobre ela, golpeando o chão onde tinha estado um segundo antes. O mortífero golpe do metal sobre a pedra ressoou na caverna.
O estômago de Alice se contraiu. Teve uma sensação fria e viscosa na pele. Se não se movesse, a força do golpe a teria cortado em dois
No mesmo instante, virou-se para ela outra vez, erguendo a espada com ambas as mãos.
Alice cambaleou para trás, o pé enganchou na prega da saia.
-Pelo sangue dos Mártires!
Lutou, desesperada, para livrar-se das dobras do novo vestido, negro e âmbar.
-Rameira do demônio! Isto é culpa dela.
Quando cercou Alice contra a parede da caverna, os olhos de Eduard eram os de um animal selvagem.
A fúria arrasou o medo de Alice.
-Afaste-se de mim. Não se aproxime.
-Morre, rameira!
Pela extremidade do olho, Alice viu que Hugh tinha percorrido a metade da caverna, mas ainda estava muito longe para atacar Eduard.
Fortaleceu-se, e se preparou para evitar o golpe seguinte.
Mas, no último momento, o raciocínio moderou a ira de Eduard.
-Fique onde está, ou a mato -advertiu a Hugh.
Hugh colocou a mão entre as dobras da capa e tirou um objeto: em sua mão brilhou a pedra verde.
-Isto é o que queria, não, Eduard?
-A pedra. -passou-se a língua pelos lábios-. Dêem-me isso e deixarei viva a sua esposa.
-Agarre-a, se puder.
Jogou-a em um ponto da parede da caverna, à direita de onde estava Eduard.
Os olhos deste se dilataram e gritou:
-Não! .
Lançou-se sobre a pedra, mas não pôde alcançá-la. O cristal verde se chocou contra a parede e se transformou imediatamente em migalhas. Um resplandecente arco íris caiu em cascata ao chão. Rubis, berilos dourados, pérolas, esmeraldas, safiras e diamantes reluziram e chisparam entre os fragmentos do estojo verde que os ocultava.
-As Pedras de Scarcliffe! -murmurou Alice.
De súbito, compreendeu que a pedra era feita de cristal grosso, e disse-se que devia tê-lo suspeitado muito tempo atrás. E, entretanto, acreditou que era um objeto natural, igual a todo mundo. Então entendeu que foi criado por um artesão muito habilidoso, que tinha encontrado um modo de simular o aspecto e a textura de um grande cristal verde.
Eduard chiou: -As Pedras!
Por um segundo, permaneceu olhando, fascinado, o reluzente montículo, e recordou muito tarde a presença de Hugh.
Girou para confrontar a gelada tormenta que era a espada de Hugh, mas a obsessão pelas pedras lhe custou muito cara.
Os aços chocaram.
Eduard caiu de joelhos pela força dos golpes de Hugh. Este ergueu uma e outra vez a espada, golpeando a de Eduard.
Quando Hugh ergueu a espada para dar o golpe fatal, a chama-a que ardia em seus olhos era da mesma cor que as das tochas. .
Alice se apressou a virar, incapaz de presenciar o que sabia que ocorreria. Viu que Katherine olhava mais à frente, fascinada pela fatídica cena. Do outro lado da caverna, Dunstan e Aleyn mantinham imobilizados os dois homens a ponta da espada. Benedict observava tudo da passagem em sombras.
Alice reteve o fôlego, mas não se ouviu nenhum grito mortal a suas costas.
Passaram os segundos, dois, três, quatro, cinco. Ergueu o olhar, e viu que todos cravavam a vista no lugar onde Hugh mantinha Eduard de joelhos
Girou lentamente, para ver o que tinha acontecido.
Eduard estava estendido de costas, bem vivo, e contemplava fixamente a llâmina que se apoiava em sua garganta.
-Por que vacila? -perguntou Dunstan-. Termine de uma vez com isto. A noite foi muito longa para todos.
-Quero que responda a algumas pergunta -disse Hugh-. Amarre-o e leve-o ao castelo, Aleyn. Ponha-o no calabouço. Falarei com ele amanhã.
-Sim, milorde.
Aleyn se precipitou em encarregar-se do prisioneiro. Por fim, Hugh prestou atenção em Alice. Os olhos ainda reluziam, mas além disso, parecia tão sereno como se acabasse de sair do banho.
-Bom, senhora, não cabe dúvida de que você fortalece minhas lendas.
-E você, milorde, confirma as lendas.
-Lançou um olhar às pedras brilhantes esparramadas pelo chão de pedra-. Está claro que, nunca perde quando se trata de seu patrimônio.
-Alice.
-OH, Hugh! -Sentiu que os olhos se enchiam de lágrimas de alívio e a garganta se apertava-. Eu sabia que me salvaria. Na realidade, sempre o faz, milorde.
Correu para ele. Hugh a esmagou contra seu peito. A capa negra a envolveu.
Muito tempo depois, Alice estava sentada com Hugh diante do fogo do salão, e tratava de se esquentar. Tinha a sensação de que não podia se livrar do frio. Cada vez que evocava as horas passadas na caverna, percorria-a um calafrio. Possivelmente teria que tomar uma dose do remédio que tinha enviado a Erasmus d Thornewood.
Assolou Hugh com outra pergunta, uma das muitas que se formulou desde que tinham voltado para castelo, duas horas antes.
-Quando descobriu que as Pedras de Scarcliffe estavam dentro do cristal verde?
-Quando se fez migalhas contra a parede da cova. Estirou as pernas e fixou nas chamas um olhar pensativo
Alarmada, Alice contemplou o perfil austero.
-Quer dizer, que não suspeitava antes que o cristal era um simples cofre para guardar as gemas?
-Não. Nunca tive muito interesse pelas Pedras de Scarcliffe, e por isso nunca observei bem o cristal verde. Enquanto estivesse em meu poder, bastava-me.
-Entendo. -Guardou silêncio um momento-. Acredito que me sinto mau, Hugh.
O marido a olhou aflito.
-O que é? Está doente?
-Não, ao menos não tenho febre. Mas não posso me acalmar. Tenho os nervos alterados.
-Ah, entendo. É a conseqüência natural de um acontecimento violento, meu amor. Passará com o tempo.
Rodeou-lhe os ombros com o braço e a atraiu para si.
-Não parece lhe afetar -murmurou, aconchegando-se a seu calor.
-Asseguro que meus nervos se alteraram bastante quando soube que lhe tinham seqüestrado. Estive a ponto dedesmaiar.
-Estranho. Custa-me acreditar que alguma vez tenha padecido de uma alteração nervosa.
-Alice, todos os homens vêem seus nervos alterados alguma vez -disse, com grande seriedade.
Como não soube o que dizer, Alice mudou de tema.
-Obrigado por não matar Eduard diante de Katherine. Embora não goste dele, ao final de contas é seu primo.
-Não é decoroso executar a um homem diante de mulheres, sobre tudo curandeiras, se pode evitar-se.
Por outro lado, quero que responda a algumas pergunta.
-Katherine respondeu a uma enquanto passavamos as horas esperando que fizesse sua grandiosa aparição.
-Qual foi?
-Perguntava-me quem foi o que pôs veneno em sua taça. Katherine me disse que Eduard lhe contou como o fez. Mandou a um de seus homens ao recinto, disfarçado de granjeiro, o dia em que os aldeãos deveriam fazer as reparações no castelo.
Hugh contemplou as chamas. -Foi no mesmo dia em que veio Vincent de Rivenhall. Essa tarde, havia muita confusão na casa. Era fácil que alguém entrasse disimuladamente na cozinha.
-E também foi simples identificar sua taça depois do almoço. É a maior de todas.
-Sim.
-Hugh.
-O que?
-O que pensa perguntar a Eduard?
Hugh fixou a vista nas chamas.
-Ainda não estou certo. Pensarei em algo.
Mas Alice entendeu: queria saber o que foi o que se passou naquela noite, trinta anos atrás, quando Eduard envenenou outra taça de vinho.
Hugh queria que Eduard lhe dissesse com suas próprias palavras que sir Matthew tinha a intenção de casar-se com Margaret e reconhecer seu filho.
Embora as botas macias de couro de Hugh não fizessem nenhum ruído quando percorreu a passos largos o corredor escuro, a capa de cor ébano cortava o ar. Estava furioso.
-Maldito calabouço. Está seguro de que está morto?
-Sim, milorde. -Dunstan inclinou a tocha quando giraram na esquina do corredor-. Um dos guardas o encontrou recentemente.
-Por que não revistaram?
Hugh seguiu a Dunstan pela curva do corredor.
Os passadiços do castelo de Scarcliffe não eram muito diferentes dos túneis e cavernas das covas naturais. Eram escuros, estreitos e sinistros.
A luz natural não chegava a essa parte do castelo, onde se armazenavam especiarias, grãos, mercadorias e, de vez em quando, um prisioneiro.
-Foi revistado -respondeu Dunstan-. Mas os guardas procuraram facas, e armas neste estilo.
Deteve-se diante da câmara fechada por uma grade de ferro.
Hugh olhou o corpo contorcido de Eduard de Lockton, que jazia no chão da câmara, e lhe subiu a irritação como bílis. Tinha tantas perguntas que lhe fazer, tantas coisas que queria dizer ao homem que tinha assassinado a seus pais...
Sobre tudo, tinha o propósito de saborear tanto a justiça como a vingança. Tinha esperado tanto tempo para gozar dessas ricas especiarias, que levou tempo em aceitar que lhe tinham escapado da mão.
-Ninguém achou o veneno que ingeriu, conforme vejo -murmurou Hugh.
-Não, milorde. Possivelmente seja o melhor. –Dunstan olhou a Hugh-. Agora, de verdade terminou tudo.
Hugh subiu os degraus de pedra que levavam ao interior do castelo. Não se deteve pensar aonde ia. Cruzou o salão principal, onde estavam em marcha os preparativos para o almoço. Quando chegou à escada da torre, subiu dois lances mais de degraus pétreos.
Chegou ao nível superior da torre, girou e percorreu o corredor até o escritório de Alice. Abriu a porta sem incomodar-se em chamar.
Surpreendida, Alice levantou o olhar quando seu marido entrou, e ao vêr-lhe a expressão, franziu o cenho.
-Milorde. -Fechou o livro que tinha aberto sobre a mesa-. O que aconteceu?
-Eduard de Lockton bebeu veneno em algum momento da noite. Está morto.
Alice se levantou do tamborete e saiu de atrás da mesa. Sem dizer uma palavra, aproximou-se de Hugh e o abraçou. Apoiou a cabeça no ombro dele, mas não disse nada.
"Alice sempre me compreende bem -pensou-. Não tenho que traduzir as coisas em palavras."
Abraçou-a apertadamente por um momento. Depois desse tempo, a sombria frustração que o arrasou ao saber que Eduard tinha escapado para a morte, começou a ceder.
Passaram uns minutos mais em silêncio. Sentia a Alice muito suave e morna nos braços.
Em um momento determinado, Hugh sentiu que o banhava uma sensação de paz e serenidade. A porta aberta do passado, pela que sopravam os ventos gelados de tormenta, por fim se fechou.
Um mês depois, uma manhã clara de outono, o guarda da torre gritou o que via para o recinto buliçoso.
-Milorde, chegam cavaleiros. Um cavalheiro e cinco homens armados. Também criados, e uma carreta com bagagem.
Hugh fez sossegar o estrépito das armas de prática com um rápido sinal e ergueu a vista para o guarda.
-Quais são as cores do cavalheiro?
-Verde e amarelo, senhor.
Hugh olhou ao Dunstan.
-São as cores de Erasmus de Thomewood. -Sim. -Dunstan ficou carrancudo-. Certamente, será um de seus homens que vem a informarmos da morte do senhor.
Hugh se sentiu invadido pela tristeza. Embora esperasse essa notícia, era de todo os modos, uma surpresa não desejada. Nesse momento, compreendeu que tinha albergado a esperança de que a receita de Alice tivesse aliviado Erasmus.
Protegeu os olhos do sol matinal, e olhou outra vez para o posto de guarda.
-Está seguro das cores do cavalheiro? -Sim, milorde. -O guarda observou o caminho- Um senhor muito rico, a julgar pela aparência do contingente que o acompanha. E bem armado. Uma dama vem com eles.
-Uma dama? -Pensou que seria Eleanor, a viúva de Erasmus, que tinha vindo trazer em pessoa a notícia da morte do senhor. Dirigiu-se a Benedict-.Procure Alice. Rápido. lhe diga que teremos vários convidados para almoçar, e entre eles, uma senhora.
-Sim, milorde.
Benedict entregou a Dunstan o arco com o que estava praticando, pegou a bengala e correu para os degraus de entrada.
Minutos depois, a comitiva de cavaleiros deteve-se frente à entrada do castelo de Scarcliffe, e pediu, cortesmente, permissão para entrar. O guarda os fez passar ao recinto.
Alice apareceu na porta do castelo e olhou interrogante para Hugh.
-Quem vem, milorde?
-Sem dúvida, alguém que traz a notícia da morte de meu suserano -respondeu, em voz baixa.
-Por que acha que morreu? -perguntou-lhe com expressão de recriminação-. Acaso esqueceu lhe dar a receita da poção sedativa que te mandei para ele quando foi a Londres?
-Não.
-Disse a sua esposa que se assegurasse de que os médicos não continuassem sangrando-o, não?
-Sim, Alice, dei-lhe suas instruções, mas todos, inclusive Erasmus, sentiam que se aproximava o fim. Freqüentemente, um homem sente a morte iminente.
-Isso é ridiculo. Segundo o que me disse, só padecia de uma intensa excitação nervosa.
Os visitantes passaram a cavalo pela porta antes que Alice pudesse continuar repreendedo-o. Hugh olhou o cavalheiro que encabeçava a companhia. Primeiro, contemplou incrédulo o rosto tão familiar, e logo com crescente regozijo.
-Milorde -murmurou.
-E bem? -perguntou Alice, impaciente-. Quem é?
-Erasmus de Thomewood.
-Por todos os Santos! -murmurou Alice-. Temia isso. Julian acaba de chegar esta mesma manhã. por que não nos informou que sir Erasmus pensava em visitar-nos? Do que serve um mensageiro se não trazer as mensagens importantes?
Hugh começou a rir.
-Não seja muito dura com o Julian. Ele tem suas vantagens.
Adiantou-se a receber a seu suserano.
Erasmus freou ao musculoso potro no centro do recinto. O sol brilhava sobre as ricas vestimentas e os polidos aços.
-Bem-vindo, milorde. -Hugh se aproximou de tomar as bridas-. Por seu aspecto, apostaria a que já não o diverte fazer acertos para seu próprio funeral.
-Descobri que os funerais não são tão divertidos como os batismos. -Erasmus sorriu para Eleanor, que tinha detido o palafrém junto a ele-. E me agrada te dizer que pensamos ter um ou dois no futuro.
O semblante de Eleanor resplandecia de felicidade ao olhar para Hugh.
-Venho a lhe dar graças a sua esposa por fazê-la possível.
- Alice adorará saber que sua poção deu tão bom resultado. -Hugh não podia deixar de sorrir-. E a mim também. Sempre disse que meu senhor tem talento para criar filhos. Permita-me lhe apresentar a minha senhora esposa.
Atice baixou os degraus com um sorriso de boas-vindas.
-Alegra-me verificar que alguém seguiu minhas instruções.
Essa noite, quando Erasmus levantou a vista do tabuleiro de xadrez, os perspicazes olhos cinzas se iluminaram admirados:
-Acredito no que falam de você, senhora.
-Sim.
-Hugh estava certo: é uma rival muito inteligente.
-Obrigado, milorde. -Alice levantou um pesado bispo de ônix. Com o cenho franzido de concentração, moveu a peça pelo enorme tabuleiro-. Eu gosto deste jogo.
-É evidente. Acredito que até pense no risco de perder esta escaramuça. .
-Não leve a mal, senhor. Meu senhor esposo é a única pessoa capaz de ,me ganhar. Tem um grande talento para as estratégias.
-Sei muito bem.
A risada de Eleanor fez girar a cabeça de Erasmus. Sorriu ao ver sua esposa sentada perto de Hugh. Dividiam uma terrina com figos adoçados com mel enquanto conversavam frente a lareira. Perto, Julian tocava uma melodia com o harpa.
-Mova você, milorde -recordou-lhe Alice.
-Sim. -Erasmus se concentrou outra vez no tabuleiro. Tocou uma torre, mas vacilou-. Felicito-a, senhora. Não existem muitas mulheres capazes de acalmar as tormentas que se moviam dentro de meu amigo Hugh
-Eu?
Alice levantou a vista, estupefata, e olhou para Hugh. Os olhares de ambos se encontraram e seu marido sorriu, para logo voltar para a conversação com a Eleanor.
-Você lhe deu paz -disse Erasmus-. Não deve ter sido fácil nem simples.
-Sir Hugh desfruta sendo senhor de suas próprias terras -disse Alice-. Freqüentemente observo que as pessoas estão contentes quando o trabalho que fazem lhes brinda prazer. Meu marido é muito hábil para dirigir estas propriedades. Mas você conhece bem sua habilidade em questões de negócios.
-Para mim, a inteligência de Hugh foi evidente no primeiro dia que foi viver no meu lar.
-Foi bondoso de sua parte lhe dar uma boa educação e lhe permitir, assim, a oportunidade de desenvolver o comércio em especiarias. -Lançou-lhe um olhar direto-. Muitos senhores em sua posição se teriam aproveitado do talento natural de meu marido para o combate e não teriam feito caso de sua aguda inteligência.
-Para mim foi conveniente não ignorar essa inteligência -respondeu com secura-. Ao longo dos anos, muitas vezes necessitei das ardilosas estratégias de Hugh como sua habilidade com a espada.
-Recompensou-o bem.
-Não lhe entreguei Scarcliffe nem por sua inteligência nem por sua destreza como cavaleiro -disse Erasmus-. O dava porque ele me deu algo imensamente mais valioso, algo que não tivesse podido comprar a nenhum preço.
-Do que se trata, senhor?
-Seu inegável lealdade.
Alice sorriu.
-Entendo.
-Houve muitas ocasiões em que gostaria de poder lhe dar um presente tão esplêndido como o que me deu .
-Pode ficar tranqüilo: está muito satisfeito com sua propriedade.
-Não acredito que sejam só as terras as que lhe deram satisfação, senhora. -Olhou-a com acuidade-. É você a verdadeira razão nesta questão.
Alice sentiu-se sobremaneira incômoda.
-Duvido, senhor.
-Falou-me muito de você quando foi ver-me em Londres. Disse-me que tinha grande coragem e audácia. Assegurou que o abordou com uma proposta atrevida.
-É certo. -Considerou o seguinte movimento com as sobrancelhas unidas-. formamos uma excelente sociedade.
-Sem dúvida, é algo mais que um acordo de negócios.
Alice se ruborizou.
-Bom, ao final de contas estamos casados, milorde.
-E você o ama com todo o coração, não é certo?
Alice apertou muito forte uma das peças de xadrez. -Como sabe destas coisas, senhor?
-Eu tampouco careço de perspicácia. Quando a gente passa tantas semanas como eu acreditando que está a beira da morte; compreende certas coisas. Fiacamos mais perceptivo, diríamos.
-Só um homem muito inteligente se volta mais consciente e perceptivo em semelhantes circunstâncias. -Suspirou-. Na realidade, tem razão. Quero muito meu marido. Mesmo que, às vezes, seja muito obstinado.
-Bom, é um homem. Há coisas que são imutáveis. E falando de meu recente contato com a morte, queria lhe agradecer a poção, senhora.
-Não é necessário. Era uma receita de minha mãe. Ela me deixou um livro no que deixou anotadas as descrições de muitas enfermidades. Eu me limitei a aplicar o remédio que ela prescreveu para os seus sintomas. Alegra-me que o tenha provado e lhe resultado eficaz.
-Muito eficaz. -Erasmus sorriu-. Conta com minha mais profunda gratidão. Devo-lhe mais do que nunca poderei lhe pagar, senhora.
-Tolices, milorde. Asseguro-lhe que as contas estão saldadas.
-Como é isso?
-Você salvou a vida de meu marido quando não era mais que um pequeno de oito anos.
Erasmus ficou carrancudo.
-Não recordo que Hugh tenha estado em perigo de morrer aos oito anos. Embora teve uma ou duas quedas sérias enquanto praticava com a armação de madeira, e também houve um desafortunado incidente com uma ponte e um arroio bastante profundo, pelo resto foi bastante saudável.
-Nisso se equivoca, senhor. -Sorriu-lhe com doçura-. Talvez tenha tido uma excelente saúde no relacionado com os humores corporais, mas há coisas que morrem dentro de um menino embora continue vivendo.
-Ah, já entendo a que. refere-se. -Erasmus a olhou com expressão pormenorizada-. É você perigosamente perceptiva, senhora.
-Não, milorde, só faço uma observação -respondeu, sem lhe dar importância-. Embora não o seja para você, é claro para mim que as tormentas que assolavam seu coração e sua alma o teriam esmigalhado.
-Pode ser que eu tenha lhe ensinado a conter e controlar esses ventos sombrios, lady Alice. Mas você obteve muito mais: sossegou-os com a alquimia de um coração amante.
Uma manhã, semanas depois da partida de Erasmus e Eleanor, Hugh entrou no escritório de Alice.
Tinha pedido a Julian outra lista de versos e estava impaciente por prová-los.
Mas ao ver a Alice de pé diante da janela, deteve-se, encantado. As elegantes palavras que tanto o custou memorizar um momento antes, fugiram-se por um momento. Perguntou-se se alguma vez se acostumaria ao fato de que Alice era sua esposa.
As feições vivazes esboçavam uma expressão de concentração intensa, enquanto examinava um pedaço de cristal de rocha que tinha na mão. O sol da manhã fazia o cabelo brilhar. As linhas suaves do corpo lhe provocaram uma familiar excitação.
Não se voltou para saudá-lo, e soube que não o tinha escutado entrar no aposento.
Hugh pigarreou e procurou na mente, recordando o primeiro verso da lista.
-Senhora, o fogo glorioso de seu cabelo brilha tanto que não precisa mais que essas mechas sedosas para me enfraquecer as mãos, até na manhã mais fria.
-Obrigado, milorde. -Alice não o olhou.
Levantou a pedra que tinha na mão para que recebesse mais luz.
Hugh franziu o cenho, pensando que talvez elogiava muito o cabelo de sua esposa. Possivelmente a aborrecesse. Tomou nota mental para indicar a Julian que fosse mais criativo.
-Seu pescoço tem a graça do de um cisne.
-Obrigado, senhor.
Alice apertou os lábios e examinou o cristal com mais atenção.
Hugh golpeou a coxa com o pergaminho enrolado que tinha. Os versos de Julian não surtiam o efeito desejado.
-Sua pele é suave como as plumas de uma ave inundadas em nata.
-É muito amável em dizê-lo.
Deixou o cristal de rocha sobre a mesa, levantou uma grande pedra cinza e a olhou atentamente.
Hugh desenrolou com dissimulação o pergaminho que tinha na mão e leu depressa a lista de elogios:
-Impressiona-me que seus pés sejam tão pequenos e delicados como as folhagens das pequenas corujas.
Alice titubeou:
-Corujas, senhor?
Hugh se irritou diante do som da palavra. Maldito esse Julian e sua confusa escritura.
-Ah, samambaias. Pequenos e delicados como as folhagens das samambaias recém-nascidas.
Apressou-se a enrolar outra vez o pergaminho. Este último não foi fácil de pronunciar.
-Claro, samambaias. Continua, milorde, por favor.
-Bem, bom, isso é tudo o que me ocorre no momento.
O que acontecia a Alice naquele dia? Não reagia como sempre. O talento de Julian estaria deteriorando?
-E o que me diz de meus olhos, senhor? Parecem que são verdes como esmeraldas ou, como a malaquita?
Hugh mudou a posição de seu apoio, incômodo. E se não fosse o talento de Julian o que fracassava, a não sim ele próprio? E se não dizia os versos como era devido?
-Como esmeraldas" acredito. Embora a malaquita também tenha um belo tom verde.
-Obrigado. O que acha de meus seios?
Hugh engoliu a saliva que acumulou em sua boca.
-Seus seios?
Geralmente, deixava esse tipo de versos para o dormitório.
-Diria que ainda têm a curva delicada dos pêssegos amadurecidos?
-Sem dúvida.
-E minha cintura?
Hugh entreabriu os olhos.
-Sua cintura?
-Sim. -Alice deixou a pedra cinza e levantou uma mais escura, ainda com o rosto voltado-. Diria que minha cintura é esbelta como a haste de uma flor?
Na última lista de Julian houve algo relacionado com caules de flores e cinturas estreitas. Hugh estava a ponto de repetir o velho elogio, quando se deu conta de que Alice estava um pouco mais redonda em algumas parte do que estava semanas anteriores.
Chegou à conclusão de que gostava muito mais assim, mas não estava certo selhe agradaria ouvir que estava um pouco mais roliça.
-Bem, eu não pensei muito em sua cintura -disse, precavido-. Mas, agora que o menciona...
Interrompeu-se para olhar com maior atenção.
Não era sua imaginação, concluiu. Recortada a contraluz, a silhueta da Alice não era tão esbelta como antes, quando a levou do salão do tio. Recordou a forma sob suas mãos, na noite anterior, e suspirou.
-E bem, milorde?
-Para ser justo, senhora, não diria que sua cintura é esbelta como o caule de uma flor, mas esta nova forma me parece muito atraente. Na realidade, vejo-a muito saudável e em bom estado, com um pouco mais de carne sobre os ossos. -interrompeu-se preocupado ao ver que os ombros de sua esposa sacudiam-. Alice, não chore. Sua cintura é igual ao caule de uma flor. Juro, desafiarei até a morte a qualquer um que afirme o contrário.
-É muito galante, milorde. –virou-se e o olhou. Os olhos brilhavam risonhos, não de lágrimas-. Mas prefiro que seja sincero nestas questões.
-Alice!
-Tem muita razão. Minha cintura já não é tão estreita como o caule de uma flor. E, para ser sincera, ultimamente, meus seios estão um pouco maiores que os pêssegos amadurecidos. E por um motivo muito válido: estou grávida, milorde.
Por um instante, Hugh não pôde mover-se: estava grávida. De seu filho.
-Alice!
A sorte o arrastou com a força do sol quando sai depois da tormenta.
Hugh se liberou do fugaz feitiço das palavras de Alice. Equilibrou-se sobre ela e a elevou com muito cuidado. Alice lhe rodeou o pescoço com os braços.
-Sabe, milorde?, eu não dava muito crédito às lendas, até que o conheci.
Hugh a olhou aos olhos e pôde divisar algo do que seria o futuro dos dois. Estava carregado de promessas de amor e felicidade.
-Então, estamos iguais. Eu nunca acreditei na alquimia do amor, até que a conheci.
O sorriso de Alice foi glorioso.
-Há dito amor, senhor?
-Sim. -Hugh riu, mais feliz que nunca na vida-. Amor.
Um morno dia de fins de outono, Hugh levou ao filho recém-nascido às muralhas do castelo do Scarcliffe, e lhe mostrou as terras que no futuro seriam dele.
Hugh acomodou o menino em um braço e contemplou o próspero feudo com uma profunda sensação de prazer. A colheita tinha sido boa. A lã esse ano era de excelente qualidade. E sempre contava com o ingresso do negócio das especiarias.
-Tem muito o que aprender -disse-lhe ao pequeno-, mas sua mãe e eu estaremos aqui para te ensinar tudo o que precise saber.
O pequeno Erasmus babou, feliz, e segurou o grande polegar do pai.
-Vê essas terras que se estendem para o leste? Pertencem a Rivenhall. O filho de sir Vincent está aprendendo a dirigi-las. O pequeno Reginald é seu parente sangüíneo. Nunca o esqueça.
-Seu pai está certo, Erasmus. -Alice saiu do topo da escada, na torre de guarda-. A família é muito importante.
Hugh a olhou, carrancudo.
-Está segura de que pode estar aqui?
-Como vê, estou muito bem de saúde. Na realidade, recuperei-me muito bem do parto durante umas semanas. Se preocupa muito, milorde.
"Parece saudável, inclusive radiante", pensou Hugh. O nascimento de seu filho esteve a ponto de enlouquecê-lo, mas Alice passou pela batalha com o aprumo de um guerreiro experiente que participa de uma justa.
-Falou a Erasmus das Pedras de Scarcliffe?
Alice sorriu para o menino.
-Ainda não. Há coisas mais importantes que tem que aprender primeiro -disse Hugh.
O menino o contemplava com infinito interesse. Hugh estava convencido de que já podia detectar uma aguda inteligência no olhar de seu filho.
-Bom -continuou Alice- falou sobre a lenda de Hugh o Implacável?
Hugh gemeu.
-Não, é um tema muito aborrecido. Logo o instruirei no comércio de especiarias.
Alice riu.
-Muito bem, senhor, farei um trato com você. Você lhe ensinará questões de negócios. Eu, ensinarei-lhe o que tenha que saber sobre as lendas da família. Está de acordo?
Hugh a olhou aos olhos transbordantes de amor. Recordou aquela escura noite, no salão do tio, quando Alice lhe propôs um acordo que os ligaria para toda a vida.
-Sabe que não há ninguém com quem eu goste mais de fazer um trato que com você, meu amor.
Amanda Quick
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