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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ÁRVORE DE FERRO / Tony DiTerlizzi e Holly Black
A ÁRVORE DE FERRO / Tony DiTerlizzi e Holly Black

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

O motor da caminhonete já estava ligado. Mallory apoiou-se na porta, os tênis surrados que usava todos os dias contrastavam com o branco vivo das longas meias de esgrima. Seu cabelo estava com gel e preso num rabo-de-cavalo tão apertado que seus olhos ficavam saltados. A senhora Grace estava parada no lado do carro onde fica o motorista, as mãos na cintura.

— Eu o encontrei! — disse Jared sem fôlego, correndo na direção deles.

— Simon — a mãe deles chamou. — Onde você estava? Nós o procuramos por todo lugar!

— Estava na casinha do elevador — disse Simon —, cuidando do... do pássaro que encontrei. — Simon parecia sem jeito. Não estava habituado a mentir. Isso geralmente era coisa do Jared.

Mallory revirou os olhos.

— É uma pena a mamãe não ter ido embora sem você!

— Mallory — disse a mãe, balançando a cabeça irritada. — Todos vocês, entrem no carro. Nós já estamos atrasados, e eu ainda preciso dar uma parada no caminho para deixar uma coisa.

Quando Mallory se virou para colocar a bolsa no porta-malas, Jared reparou que o peito dela parecia estranho. Duro e grande... com um jeito esquisito.

— O que você está usando? — perguntou ele, apontando para o peito dela.

— Cala a boca — disse ela.

Ele deu uma risadinha e disse:

— Parece que você está usando um...

— Cale a boca! — repetiu ela, entrando no banco da frente enquanto os meninos se acomodavam no de trás. — É para proteção, e eu preciso usá-lo.

 

 

 

 

Jared sorriu contra a janela e ficou observando os bosques. Há duas semanas não acontecia nenhuma confusão com os seres fantásticos — até mesmo o Tibério andava quieto — e, de vez em quando, Jared precisava lembrar-se de que tudo aquilo era real. Às vezes, tinha a impressão de que poderia existir outra explicação. Mesmo a água em chamas poderia ser justificada por ter vindo de um poço contaminado. Até que o velho encanamento pudesse ser ligado ao duto central, eles usaram galões de água do supermercado sem que a mãe achasse isso estranho. Mas havia o grifo de Simon e isso não dava para entender, a não ser com a ajuda das informações contidas no Guia de Campo de Artur.

— Pare de mastigar o rabo-de-cavalo — a mãe deles disse a Mallory. — Por que você está tão agitada? Esse novo time é bom mesmo?

— Eu estou ótima! — disse Mallory.

Quando moravam em Nova York, a garota treinava com calças de moletom e uma jaqueta do time que ficavam jogadas numa pilha de roupas.

Se você fizesse um ponto, um garoto ao lado ergueriaa mão para sinalizá-lo. Mas, na nova escola, os praticantes de esgrima usavam uniformes de verdade e tinham floretes eletrônicos ligados a uma máquina que registrava os pontos marcados. Járed achava que isso já era suficiente para deixar alguém nervoso.

Aparentemente, a mãe deles tinha outra explicação.

— É aquele menino, não é? O garoto que estava conversando com você na quarta-feira, quando fui apanhá-la.

— Que menino? — perguntou Simon do banco de trás, já começando a rir.

— Fique quieto — disse a mãe deles, mas respondeu assim mesmo. — Chris, o capitão de esgrima. Ele é o capitão, certo?

A irmã deles grunhiu, indiferente.

— Chris e Mallory estavam sentados numa árvore, trocando B-E-I-J-O-S — cantarolou Simon. Jared deu uma risadinha, e Mallory virou-se para o banco de trás, com um olhar fulminante.

— Você por acaso quer perder todos os seus dentes de leite, de uma vez só?

— Não ouça o que eles dizem — falou a mãe. — E não se preocupe. Você é esperta, linda e ótima esgrimista. Aposto que ele gosta de você.

— Mãe! — exclamou Mallory e afundou-se no banco.

A mãe deles parou na biblioteca onde trabalhava, entregou um relatório, e voltou para o carro sem fôlego.

— Vamos! Não posso me atrasar — disse Mallory, arrumando o cabelo sem que houvesse necessidade. — É minha primeira competição!

A mãe suspirou e disse:

— Estamos quase chegando.

Jared voltou a olhar pela janela a tempo de ver algo que se parecia com uma cratera profunda. O carro atravessava uma ponte de pedra. O ônibus da escola nunca passava por lá.

— Simon, olhe! O que é aquilo?

— É uma mina abandonada — disse Mallory impaciente. — As pessoas escavavam rochas.

— Uma mina — repetiu Jared. Ele se lembrava de uma coisa no mapa que tinham encontrado no estúdio de seu tio-avô Artur.

— Já pensou se eles encontrarem fósseis? — disse Simon, subindo sobre Jared para olhar pela janela. — Já imaginou se os dinossauros caminhavam por essa área?

A mãe deles já estava entrando com o carro no estacionamento da escola. Ela nem sequer respondeu.

Jared, Simon e a mãe deles acomodaram-se na arquibancada do ginásio de esportes, enquanto Mallory foi se sentar com o resto do time. Algumas outras famílias já estavam sentadas, além de um bando de gente que Jared conhecia da escola. Um tapete retangular, com linhas, foi colocado no chão. Mallory o chamava de pista, mas Jared achava que aquilo se parecia com um capacho comprido e preto. Atrás dele ficava uma mesinha portátil com o placar, seus botões grandes e coloridos faziam com que parecesse mais um jogo do que com um placar de verdade. O diretor mexia nos fios, conectando-os a um florete e testando se tinham eletricidade necessária para fazer tocar o sinal e acender a luz que marcava o ponto.

Mallory sentou-se numa cadeira de metal na ponta da pista e começou a tirar as coisas de dentro da bolsa. Chris abaixou-se para falar com Mallory. O outro time estava reunido no lado oposto. Todos os uniformes eram tão brancos que os olhos de Jared doíam.

Finalmente, o diretor anunciou que tinha chegado a hora do primeiro duelo. Ele chamou dois esgrimistas e fez com que cada um deles prendesse um pequeno receptor na parte de trás da calça, depois ajustou os fios nos floretes. Tudo parecia muito profissional. Quando os esgrimistas deram início à luta, Jared tentou lembrar-se do que Mallory havia lhe dito sobre as luzes que acendiam, mas não se recordava direito das regras.

— Isso é ridículo. Eu prefiro esgrima sem toda essa parafernália — disse em voz alta Jared.

Duas lutas mais tarde, Jared já tinha percebido que as luzes coloridas significavam que o toque estava valendo, mas a luz branca queria dizer que tinha sido anulado. Só valiam os toques no peito. Uma coisa realmente boba, na opinião de Jared. Ser atingido na perna doía muito, e Jared tinha treinado com Mallory o suficiente para ter certeza disso.

Finalmente, Mallory foi chamada à pista. Seu rival - um garoto alto chamado Daniel Alguma-Coisa — deu uma risadinha quando colocou a máscara. Era óbvio que ele não tinha a menor idéia daquilo que o esperava.

Jared cutucou Simon quando o irmão enfiou um biscoito na boca.

— Ele vai se ferrar.

— Ai — disse Simon. — Pare com isso.

O rabo-de-cavalo de Mallory balançou quando ela avançou. A espada da garota atingiu Daniel com força, no peito, antes que ele pudesse desviar. O diretor ergueu uma das mãos, e o placar marcou um ponto para Mallory. Jared sorriu.

A mãe deles estava inclinando o corpo todo para frente como se quisesse ouvir algo mais além do ruído das finas lâminas de metal brandindo quando seguia o padrão do ataque, finta, contra-ataque. Daniel tentou atacar desesperadamente, nervoso demais para controlar seus movimentos. Mallory contra-atacou e, fazendo da defesa um ataque, a garota marcou outro ponto.

A irmã deles venceu Daniel sem ser tocada nenhuma vez. Os adversários se cumprimentaram formalmente, e o garoto tirou a máscara, o rosto vermelho e a respiração ofegante. Quando a máscara de Mallory foi retirada, ela sorriu, os olhos brilhando de tanta satisfação.

No caminho de volta às cadeiras de metal, o capitão do time abraçou Mallory rápida e timidamente. Jared não conseguiu ver muito bem, mas podia jurar que o rosto de Mallory ficou mais vermelho nessa hora do que quando ela saiu da pista.

Os duelos prosseguiram e o time de Mallory se deu muito bem. Quando chegou a hora do capitão lutar, Mallory puxou a torcida. Infelizmente, não adiantou nada. Ele foi derrotado por poucos pontos. Ao retirar-se para o seu lugar, o garoto passou por ela sem dizer uma palavra, afundou na cadeira e ignorou as tentativas de Mallory para falar com ele.

Quando a garota foi novamente chamada à pista, Chris nem sequer levantou os olhos.

Jared observou tudo da arquibancada e ficou bravo. A braveza aumentou quando reparou numa garota loira com uma roupa branca remexendo na bolsa de sua irmã.

— Quem é aquela? — perguntou Jared, apontando.

Simon deu de ombros.

— Sei lá. Ela ainda não lutou.

Será que a garota era amiga de sua irmã? Talvez ela só quisesse pegar uma coisa emprestada. O jeito dissimulado com que a garota parava de mexer na bolsa de Mallory quando alguém do time olhava naquela direção levou Jared a pensar que ela estivesse roubando. Mas o que será que alguém poderia querer pegar na bolsa de Mallory que só continha meias sujas e floretes extras?

Jared levantou-se. Ele precisava fazer alguma coisa. Será que ninguém mais reparava no que estava acontecendo?

— Aonde você vai? — sua mãe lhe perguntou.

— Ao banheiro — mentiu automaticamente, embora soubesse que sua mãe poderia vê-lo atravessando o ginásio. Ele queria lhe dizer a verdade, mas ela teria inventado alguma desculpa para a garota. Sua mãe sempre pensava o melhor das pessoas, menos dele.

Jared desceu a arquibancada e, mantendo-se perto da parede, atravessou a quadra até chegar à garota que ainda remexia na bolsa. Mas, quando se aproximou das cadeiras, o técnico o deteve.

O técnico de esgrima era magro e baixo, com uma barba curta e branca.

— Desculpe, garoto, mas você não pode entrar aqui durante a disputa.

— Só que aquela garota está tentando roubar as coisas da minha irmã!

O técnico se virou:

— Quem?

Mas, quando Jared se virou para apontá-la, percebeu que a garota já tinha sumido. Ele se atrapalhou ao tentar explicar.

— Eu não sei quem é essa menina. Ela ainda não disputou.

— Todos já disputaram, menino. Acho melhor você voltar para o seu lugar.

Jared voltou para a arquibancada, envergonhado, depois pensou melhor. Virou-se e resolveu ir ao banheiro, assim sua mãe lhe faria menos perguntas quando voltasse. Um pouco antes de passar pelas portas azuis do ginásio de esportes, ele parou e olhou para trás. Agora era Simon que estava mexendo na bolsa de Mallory. Mas Simon estava usando as roupas dele! Todo mundo ia pensar que fora ele. Jared estreitou os olhos, desejando que aquilo que via fizesse sentido.

Foi então que uma suspeita horrível se formou em sua mente. Olhando para a arquibancada, ele avistou o irmão sentado ao lado da mãe, mastigando biscoitos. Seja lá o que fosse aquela coisa, não era Simon.

 

                 EM QUE os gêmeos viram trigêmeos

Jared não conseguia se afastar da porta de entrada. Ele ouvia o ruído das espadas brandindo e da torcida, mas os sons pareciam vir de um lugar bem distante. Ele olhou horrorizado quando o técnico confrontou seu duplo. O homem estava com a cara vermelha e alguns dos atletas olharam para o duplo de Jared, chocados.

— Legal — Jared deu uma risada. Não havia jeito para explicar uma coisa dessas.

O técnico apontou para a porta larga do ginásio, e viu o Não-Jared caminhando na direção dela — e dele. Assim que o Não-Jared se aproximou, Jared percebeu que ele sorria. Jared fechou os punhos para lhe dar um soco.

O Não-Jared passou por ele sem ao menos olhá-lo, batendo com força as mãos nas portas duplas. Jared queria descobrir um jeito de arrancar o sorriso daquele rosto. Decidiu segui-lo, passando por um corredor cheio de armários.

— Quem é você? — perguntou Jared. — O que você quer?

O Não-Jared virou o rosto para ele e algo em seus olhos fez com que Jared sentisse frio no corpo inteiro.

— Você não me conhece? Eu não sou você mesmo? — A boca retorcia-se num sorriso irônico.

Era estranho vê-lo movimentando-se e falando. Diferente de ver Simon e seu cabelo todo arrumado, com uma mancha de creme dental no lábio superior. E o outro também não era exatamente como ele — o cabelo mais despenteado, os olhos mais escuros e... diferentes. O outro deu um passo na direção de Jared.

Jared deu um passo para trás, desejando qualquer tipo de proteção de seres fantásticos, e então se lembrou do canivete no bolso da calça jeans. Seres fantásticos detestavam ferro, e aço contém uma parte de ferro. Ele abriu o canivete.

— Por que vocês não nos deixam em paz?

A criatura jogou a cabeça para trás e riu:

— É impossível fugir de si mesmo.

— Cale a boca! Você não sou eu! — Jared apontou o canivete contra seu duplo.

— Jogue fora esse brinquedo — disse o Não-Jared, a voz baixa e áspera.

— Eu não sei quem você é ou quem foi que o enviou, mas aposto como sei o que você está procurando — disse Jared. — O Guia. Bem, você nunca irá consegui-lo.

A boca da criatura alargou-se formando algo que não era realmente um sorriso. Depois, repentinamente, ela se encolheu como se tivesse ficado assustada. Jared observou espantado o corpo do Não-Jared diminuir, o cabelo negro clarear até ficar quase ruivo, o olho já azul alargando-se de tanto pavor.

Antes que Jared pudesse entender completamente o que o duplo estava vendo, ele ouviu a voz de uma mulher logo atrás:

— O que é que está acontecendo por aqui? Abaixe esse canivete!

A vice-diretora correu, agarrando o pulso de Jared. O canivete despencou no assoalho de linóleo. Jared ficou olhando para a lâmina enquanto o garoto de cabelos ruivos corria pelo saguão, soluçando de um jeito que lembrava muito uma gargalhada.

— Eu não acredito que você trouxe seu canivete para a escola — sussurrou Simon para Jared quando se sentaram juntos do lado de fora da sala da vice-diretora.

Jared fuzilou-o com o olhar. Ele tinha explicado muitas vezes — até mesmo para a polícia — que só estava mostrando o canivete para o menino, mas eles nunca encontraram o outro garoto para confirmar a história. Então, a vice-diretora pediu para que Jared aguardasse do lado de fora da sala. A mãe deles ficou conversando com ela por bastante tempo, mas Jared não conseguia ouvir o que estava acontecendo lá dentro.

— Que tipo de ser fantástico você acha que era aquele? — perguntou Simon.

Jared deu de ombros.

— Eu queria ter o Guia para conseguirmos descobrir isso.

— Você não se lembra de nenhuma criatura que fosse capaz de mudar de forma desse jeito?

— Eu não sei — Jared esfregou a mão no rosto.

— Olha, eu disse à mamãe que não foi culpa sua. Você só vai ter que explicar.

Jared deu uma risadinha.

— Sim, como se fosse possível contar para mamãe o que aconteceu.

— Eu diria que o garoto roubou uma coisa da bolsa de Mallory — quando Jared não respondeu, Simon tentou de novo. — Posso fingir que eu roubei. A gente troca de camisa e finge que um é o outro.

Jared fez que não com a cabeça.

Finalmente, a mãe deles saiu da sala da vice-dire-tora. Ela parecia cansada.

— Desculpe — disse Jared.

Ele se surpreendeu pelo tom calmo da voz dela.

— Eu não quero falar desse assunto, Jared. Chame sua irmã e vamos embora.

Jared concordou com a cabeça e seguiu Simon, olhando para trás a tempo de ver sua mãe afundar na cadeira que ele havia desocupado. O que será que ela estava pensando? Por que será que ela não estava gritando? Ele até preferia que ela estivesse zangada — ao menos isso ele conseguiria compreender. Sua tristeza silenciosa era mais assustadora. Era como se ela esperasse esse tipo de problema da parte dele.

Simon e Jared caminharam pela escola, parando diante da equipe de esgrima para perguntar se eles tinham visto Mallory. Ninguém a vira. Eles perguntaram por ela até a Chris, o capitão. Ele ficou sem jeito quando o indagaram sobre Mallory, mas fez que não com a cabeça. O ginásio de esportes estava vazio, os únicos ruídos eram o eco dos passos sobre o assoalho brilhante de madeira. O tapete preto tinha sido retirado, bem como os outros itens que faziam parte da disputa.

Finalmente, uma garota de longos cabelos castanhos lhes disse que Mallory estivera chorando no banheiro das meninas.

Simon fez que não com a cabeça.

— A Mallory? Chorando? Mas ela venceu!

A garota deu de ombros.

— Eu lhe perguntei se ela estava bem, mas ela disse que estava ótima.

— Você acha que era mesmo a Mallory? — perguntou Simon enquanto caminhavam em direção ao banheiro feminino.

— Você quer dizer que poderia ser algo que a representasse? Por que um ser fantástico se transformaria na Mallory para depois ficar chorando no banheiro das meninas?

— Sei lá — disse Simon. — Se eu me transformasse na Mallory, com certeza ia chorar.

Jared sugeriu:

— Então, você quer entrar e procurar por ela?

— Eu não vou entrar no banheiro feminino — disse Simon. — Além disso, você já está bem encrencado, não dá pra arranjar mais confusão.

— Eu sempre consigo arranjar mais confusão — disse Jared, com um suspiro. Ele abriu a porta. O banheiro feminino era quase idêntico ao masculino, mas não havia mictórios.

— Mallory? — chamou ele.

Ninguém respondeu. Jared espiou por debaixo das portas, mas não viu pés. Abriu uma das portas, devagarzinho. Mesmo sem encontrar ninguém, ele se sentia esquisito, assustado e envergonhado. Depois de um minuto, voltou correndo para o saguão.

— Ela não está lá dentro? — perguntou Simon.

— Está vazio — Jared deu uma olhada no corredor de armários, na esperança de que ninguém o tivesse visto.

— Talvez ela tenha ido até a sala da vice-diretora

para nos procurar — disse Simon. — Não a vi em lugar nenhum.

Uma sensação de pavor bateu no estômago de Jared. Depois que a vice-diretora o pegara ele não tinha parado para pensar em nada além das encrencas em que estava metido. Mas aquela coisa ainda estava correndo pela escola. Ele se lembrou de como a criatura tinha revirado a bolsa de Mallory na hora da disputa.

— E se ela foi lá fora? — disse Jared, esperando que eles a encontrassem antes do duplo. — Vai ver ela saiu para ver se estávamos esperando no carro.

— Vamos dar uma olhada. — Simon deu de ombros. Jared percebia que ele não estava convencido, mas ambos foram para fora de qualquer jeito.

O céu já estava se escurecendo em tons de violeta e dourado. Sob a luz tênue eles passaram pela pista de corrida e pelo campo de beisebol.

— Eu não estou vendo a Mallory — disse Simon.

Jared concordou com a cabeça. O estômago dele revirava de tanto nervosismo.

— Onde será que ela foi parar? — ele se perguntava.

— Ei — disse Simon. — O que é aquilo? — Ele deu alguns passos e abaixou-se para apanhar uma coisa brilhante na grama.

— A medalha de esgrima da Mallory — disse Jared. — E olhe!

Na grama grandes pedaços de pedra formavam um círculo em torno da medalha. Jared ajoelhou-se ao lado da maior pedra. A palavra TROCA estava gravada na pedra.

— As pedras — disse Simon. — Igualzinho na mina.

Jared olhou para cima, surpreso.

— Você se lembra do mapa que encontramos? Ele dizia que existem anões vivendo na mina, mas eu não acho que anão mude de forma.

— Vai ver a Mallory ainda está lá dentro com a mamãe. Ela pode estar na sala da vice-diretora, esperando por nós.

Jared queria acreditar nisso.

— Então, por que a medalha dela está aqui?

— Talvez ela a tenha deixado cair. Talvez isso seja uma armadilha.

Simon começou a caminhar de volta à escola.

— Anda — disse ele. — Vamos voltar e ver se ela está com a mamãe.

Jared concordou passivamente.

Quando eles entraram, encontraram a mãe na porta da escola, falando ao telefone celular. Ela estava sozinha, de costas para eles.

Embora a mãe deles falasse baixinho, dava para ouvi-la nitidamente de onde eles estavam.

— É, eu também pensei que as coisas estivessem melhorando. Mas, você sabe, o Jared nunca aceitou o que aconteceu quando nos mudamos para cá... e, bom, isso pode soar estranho, mas Mallory e Simon o protegem.

Jared congelou. Ao mesmo tempo que temia aquilo que ela ia dizer, sentia-se incapaz de fazer qualquer coisa que a impedisse de continuar a falar.

— Não, não. Eles negam ter feito essas coisas todas. E estão escondendo algo de mim. Eu sei disso por causa do jeito com que param de falar quando entram em um cômodo da casa, pelo jeito que um encoberta o outro, especialmente, o Jared. Você devia ter ouvido o Simon hoje à noite, inventando desculpas para o irmão que mostrou o canivete para aquele garotinho — ela soluçou e começou a chorar. — Eu já não sei se consigo mais lidar com essa situação. Ele está tão bravo, Richard. Talvez ele tenha que passar um tempo com você.

O pai. Ela estava falando com o pai deles.

Simon cutucou Jared.

— Venha. A Mallory não está aqui.

Jared virou-se, tonto, e seguiu o irmão pela porta. Ele não saberia dizer o que sentia naquele momento — talvez um vazio.

 

                     EM QUE Simon decifra um enigma

O que vamos fazer? — perguntou Simon enquanto caminhavam pelo corredor.

— Eles estão com a Mallory — Jared disse baixinho. Ele precisava apagar tudo o que tinha ouvido, apagar tudo de sua mente, com exceção de Mallory. — Eles querem trocá-la pelo Guia.

— Mas nós não estamos com o livro.

— Psiu! — disse Jared. Ele tinha uma idéia, mas não queria dizê-la em voz alta, ao ar livre. — Vamos.

Jared foi até seu armário e tirou uma toalha que estava na mochila de ginástica. Apanhou um livro — Matemática Avançada — que era do mesmo tamanho que o Guia e o embrulhou na toalha.

— O que você está fazendo?

— Olha — sussurrou ele, atirando o pacote embrulhado a Simon. Ele tirou a mochila de dentro do armário. — O Tibério nos enganou com esse truque. Talvez seja nossa vez de enganar a pessoa que levou Mallory.

Simon concordou imediatamente:

— Tudo bem. Acho que a mamãe tem uma lanterna no carro.

Eles saltaram por cima de uma cerca de metal no final do pátio e atravessaram a auto-estrada. O outro lado da estrada estava coberto pela vegetação. Era difícil caminhar no escuro e a lanterna emitia uma luz muito fraca.

Escalaram uma pilha de pedras, algumas delas estavam cobertas de limo escorregadio, outras meio rachadas. À medida que prosseguiam, Jared não parava de pensar nas palavras que tinha ouvido. Pensava nas coisas horríveis que sua mãe acreditava a seu respeito e nas coisas mais horríveis ainda que ela pensaria agora que ele tinha desaparecido. Tudo o que fazia só aumentava o tamanho da encrenca. E se fosse expulso da escola? E se fosse mandado para casa de seu pai e ele não quisesse recebê-lo?

— Jared, olhe! — disse Simon. Eles tinham chegado à entrada da antiga mina.

A rocha tinha sido aberta de qualquer jeito; pedaços de pedra saíam das bordas ao longo do caminho que dava para o vale acidentado que ficava embaixo. Chumaços de grama cresciam pelas paredes saindo das veias da terra. A auto-estrada passava sobre a caverna, atravessando uma ponte de pedra.

— É esquisito minerar uma rocha, não é? — perguntou Simon. — Quer dizer, elas são só rochas.

— Provavelmente são granitos — ele continuou quando Jared não respondeu. Simon embrulhou-se na jaqueta leve.

Jared iluminou as paredes com a lanterna, focalizando um fio de ferrugem e um toque de ocre com a luz. Ele não tinha a menor idéia de que tipo de pedra seria aquela.

Simon ergueu os ombros.

— Então, ah, como é que a gente vai descer?

— Sei lá. Por que você não me diz, você que é o sabe-tudo? — replicou Jared.

— Nós podíamos... — começou a dizer Simon, mas parou no meio e Jared se sentiu mal.

— Vamos tentar descer escalando a pedra — disse Jared, apontando. — Podemos saltar até aquela borda e depois tentar alcançar outro apoio.

— Isso é bem longe. Nós devíamos levar uma corda, ou alguma coisa.

— Não temos tempo — disse Jared. — Tome, segure a lanterna.

Confiando o cilindro de metal na mão de seu irmão gêmeo, Jared sentou-se na beirada do rochedo. Sem a lanterna, quando olhava para baixo, só via uma escuridão enorme. Ele respirou fundo, desceu, deixando-se cair num pedregulho que não tinha enxergado.

Virando-se, começou a se levantar. A luz foi diretamente em seus olhos, cegando-o. Ele tropeçou e caiu para a frente.

— Você está bem? — perguntou Simon.

Jared cobriu o rosto com as mãos e tentou manter a calma.

— Estou. Anda. É sua vez.

Ele ouviu o barulho da terra caindo quando Simon se deslocou. Logo, Jared saiu à frente, apalpando a terra em busca de um apoio do qual ele se lembrava vagamente. Simon caiu pesado ao lado dele, soltando um gemido.

A lanterna escorregou das mãos de Simon e despencou no meio da escuridão, atingindo o solo do vale com força, balançou uma vez e depois ficou parada, iluminando um caminho estreito de terra e pedra.

— Como você pode ser tão estúpido! — Jared sentiu a ira arrebentar como se fosse uma coisa viva dentro dele, que crescia a cada minuto. Ele só conseguia impedir que ela o dominasse, gritando.

— Por que você não atirou a lanterna para mim? Como é que vamos escalar a mina no escuro? E se a Mallory estiver correndo perigo? E se ela morrer porque você é um estúpido? Simon levantou a cabeça, os olhos brilhando com as lágrimas, mas Jared estava tão chocado quanto o irmão.

— Foi sem querer, Simon — disse ele rapidamente.

Simon concordou com a cabeça, mas afastou o rosto de Jared.

— Acho que a outra borda fica aqui. Está vendo o formato da rocha?

Simon ainda continuava calado.

— Eu vou primeiro — disse Jared.

Ele respirou fundo e sumiu na escuridão. Bateu feio na segunda borda - o apoio ficava mais longe do que ele tinha imaginado. O garoto perdeu o fôlego, e as mãos e joelhos começaram a queimar. Lentamente, ficou de pé. A calça jeans rasgou na altura do joelho, o braço sofreu um ferimento e começou a sangrar muito. Mas estavam quase chegando ao chão da mina.

— Jared? — a voz de Simon veio fraca do pedaço de rocha onde ele ainda estava sentado.

— Estou aqui — gritou Jared. — Não se mexa. Vou pegar a lanterna.

O garoto engatinhou pelo chão até apanhar a lanterna e virá-la na direção de seu irmão, procurando trechos onde Simon pudesse se apoiar ou agarrar. Lentamente, Simon desceu até chegar ao solo. Mas, enquanto aguardava, Jared ouviu ecos, uma batida distante que parecia vir do nada e de todos os lugares ao mesmo tempo.

Iluminando a mina com a lanterna, ele viu mais rochas pontiagudas com leves traços de perfuratriz. Agora, ele ficava pensando como é que eles conseguiriam sair. Mas antes que tivesse tempo de preocupar-se com isso, a lanterna iluminou uma saliência na parede de rocha. Quando o feixe de luz percorreu a pedra, uma mancha de fungos emitiu um brilho azulado.

— Bioluminiscência — disse Simon.

— Ah? — Jared aproximou-se.

— Quando algo produz a própria luz.

Sob a luminosidade tênue, Jared viu que um retângulo de pedra sob a saliência fora esculpido com um padrão de sulcos entrelaçados. Olhando para o centro da rocha, ele conseguia distinguir o topo das letras entalhadas na pedra. Ele apontou a lanterna diretamente para elas.

 

DA BEIRA RETIRAVAM DEZ BURROS E PATAS

 

— Um enigma — disse Jared.

— Não faz nenhum sentido — afirmou Simon.

— E quem liga para isso? Como podemos decifrá-lo?

Eles não tinham mais tempo a perder. Estavam quase dentro, quase perto de Mallory.

— Você decifrou aquele outro enigma lá em casa — disse Simon, sentando de costas para o irmão. — Você decifra esse também.

Jared respirou fundo.

— Olhe, desculpe pelo que eu disse antes. Você precisa me ajudar — suplicou Jared. — Todo mundo sabe que você é mais esperto do que eu.

Simon suspirou.

— Eu não estou entendendo esse enigma. Como é esse negócio de burros e patas da beira de onde? Juro que não entendi.

Jared olhou novamente para as palavras. Ele não conseguia concentrar-se. Como se pode abrir essa porta? Não seria um código? Será que o Guia continha alguma informação sobre códigos mágicos? Ele queria tanto estar com o livro agora...

— Ei, espere um pouco — disse Simon, dando a volta e ajoelhando. — Me dê a lanterna.

Jared entregou a lanterna ao irmão e ficou olhando enquanto Simon escrevia a mensagem na terra com o dedo. Depois, ele começou a apagar algumas letras e escrevê-las num padrão diferente.

 

DEZ BURROS TVIERAM PASTAR AITAE

 

— O que você está fazendo? — Jared sentou-se ao lado do irmão.

— Acho que precisamos reorganizar as letras para chegar à verdadeira mensagem. Como naqueles quebra-cabeças que a mamãe vive montando. Pode ser também que a gente precise trocar algumas palavras e acrescentar outras, vamos ver.

Simon escreveu a terceira frase na terra.

 

BATERÁ UM DOIS TRÊS PARA ABRIR DE VEZ

 

— Uau! — disse Jared.

Ele não conseguia acreditar que Simon tivesse decifrado o enigma. Ele nunca teria sido capaz disso.

Simon sorriu.

— Foi fácil — gabou-se, caminhando até a porta e batendo nela três vezes.

Foi então que o solo se moveu debaixo deles e os dois gêmeos despencaram dentro do abismo que se abrira aos seus pés.

 

EM QUE os gêmeos descobrem uma árvore completamente diferente

Os meninos caíram sobre uma rede de metal. Gemendo e chutando, Jared tentou levantar-se, mas não conseguia equilibrar-se. De repente, ele parou de lutar e levou um cutucão de seu gêmeo na orelha.

— Simon, pare! Olhe!

Fungos brilhantes cobriam as paredes formando manchas, iluminando os rostos de três homenzinhos cuja pele tinha o mesmo tom acinzentado das pedras. As roupas eram pardas feitas com tecidos rústicos, mas os braceletes prateados, em formas de serpentes, eram tão elaborados que pareciam vivos ao redor de seus braços finos; os colares eram confeccionados com fios de ouro tão delicados que pareciam de seda e os anéis eram tão lindos que seus dedos imundos pareciam brilhar.

— O que temos aqui? Prisioneiros! — disse uma voz grossa. — Raramente temos prisioneiros vivos.

— Os anões — sussurrou Jared ao irmão.

— E eles não parecem estar muito alegrinhos — Simon sussurrou de volta.

O segundo anão esfregou vários fios do cabelo de Jared entre os dedos e virou-se para o que havia falado antes.

— Eles não são muito extraordinários, não é mesmo? O negro dos cabelos é opaco e sem graça. A pele não é suave ou branca como neve. Acho que eles têm defeito de fabricação. Nós faríamos criaturas muito melhores do que estas.

Jared riu, sem muita certeza daquilo que o anão queria dizer. Novamente, ele desejou ter o Guia. Lembrava-se apenas de que os anões eram excelentes artesãos e o ferro, que tanto machucava os outros seres fantásticos, não os in-

comodava. O canivete seria inútil como arma, mesmo que não tivesse sido confiscado.

— Viemos procurar nossa irmã! — disse Jared. — Queremos fazer uma troca.

Um dos anões deu uma risadinha, mas Jared não saberia dizer qual deles. Fazendo um ruído, outro anão colocou uma gaiola de prata debaixo da rede.

— Korting disse que vocês viriam. Ele está muito ansioso para conhecê-los.

— Ele é uma espécie de rei dos anões ou algo parecido? — perguntou Simon.

Os anões não responderam. Um deles puxou uma maçaneta esculpida e a rede se abriu. Os dois meninos despencaram dentro de uma grande gaiola. As mãos de Jared e os joelhos doeram de novo. Ele deu um soco no chão de metal.

Jared e Simon permaneceram em silêncio enquanto eram conduzidos através das cavernas de ar frio e paredes úmidas. Eles podiam ouvir o som de martelos cada vez mais alto e mais nítido agora que estavam debaixo da terra, e o ruído de algo que deveria ser uma fogueira imensa. Acima deles, no escuro, manchas fosforescentes e sombrias revelavam pontas de largas estalactites que pendiam do teto formando uma floresta de pingentes de gelo.

Passaram por uma gruta onde morcegos guinchavam do alto, cujo solo era escuro e fedido por causa dos dejetos. Jared tentou conter um tremor. Quanto mais se aprofundavam, mais fria ficava a caverna. Às vezes Jared via sombras que se modificavam no escuro e ouvia batidas erráticas.

Enquanto se deslocavam por um corredor estreito, passando por colunas que pingavam, Jared respirava umidade, um cheiro mineral que lhe dava alívio depois do fedor dos morcegos. O próximo aposento parecia estar repleto de pilhas de objetos de metal empoeirados. Um rato dourado com olhos de safira saltou fora de um cálice de malaquita para observá-los. Um coelho prateado estava ao lado dele, com uma chave de dar corda pendurada no pescoço, enquanto um único botão de lírio platinado se abriu, depois se fechou, abrindo-se novamente. Simon olhou para o rato de metal com vontade de apanhá-lo.

Depois, os meninos foram levados até uma grande caverna onde viram anões esculpindo estátuas de outros anões dentro de paredes de granito. Uma luz súbita da lanterna feriu os olhos de Jared, mas, enquanto ele ia passando pelos anões, pensou ter visto um dos braços esculpidos mover-se.

Dali, foram conduzidos a um espaço enorme onde uma árvore maciça crescia. O tronco espesso subia até perder-se nas sombras, os galhos formando uma copa imensa. O ar enchia-se de um estranho canto de passarinhos metálicos.

— Isso não pode ser uma árvore — disse Simon. — Não há sol. Sem sol não acontece a fotossíntese.

Jared deu uma espiada no tronco.

— Ela é de metal — disse ele, percebendo que as folhas eram todas de um prateado metálico. No alto da árvore, um pássaro de cobre batia suas asinhas mecânicas e os fitava com olhos frios, projetados para fora.

— A primeira árvore de ferro — disse um dos anões. — Vejam, mortais, uma beleza que nunca será extinta.

Jared olhou para o alto da árvore com espanto, fascinado com a quantidade de metal que teria sido necessária para forjá-la, com o tronco tão espesso e os galhos entrelaçados com tanta delicadeza que pareciam filigranas. Cada folha de metal era única, cheia de veias e curvada como um verdadeiro vegetal.

— Por que vocês nos chamam de mortais? — perguntou Jared.

— Vocês não conhecem o próprio idioma? — disse um anão e riu. — Isso significa uma pessoa destinada a morrer. Do que mais poderíamos chamá-los? A sua espécie morre num piscar de olhos. — Ele aproximou-se das barras da gaiola e deu uma piscadinha.

Diversas passagens saíam da caverna dando em corredores escuros demais para que Jared percebesse para onde os levavam. A gaiola foi conduzida por um deles — um corredor amplo, cheio de colunas, que desembocava numa sala menor. Sentado no trono apoiado numa enorme estalagmite havia outro homem de pele acinzentada, uma barba negra e volumosa. Os olhos dele reluziam como duas jóias verdes. Um cachorro de metal estava deitado sobre um tapete de pele de veado colocado à frente do trono, a barriga do animal movimentava-se soltando um zumbido mecânico exatamente como se ele estivesse realmente dormindo. Nas costas do cão, uma chave de corda girava lentamente.

Ao redor do trono havia outros anões, todos em silêncio.

— Meu senhor Korting — disse um dos anões. — É como o senhor dissera. Eles vieram em busca da irmã.

Korting levantou-se.

— Mulgarath me disse que vocês viriam. Como vocês têm sorte de estar aqui, que honra será assistir ao começo do fim das leis humanas.

— Tudo bem — disse Jared. — Onde está Mallory?

Korting sorriu.

— Tragam a menina — disse ele, e vários anões saíram correndo imediatamente. — É melhor que vocês prestem atenção às suas próprias palavras. Mulgarath logo dominará o mundo e nós, seus leais servos, estaremos ao seu lado. Ele limpará a terra para nós e então construiremos uma nova e gloriosa floresta inteiramente formada por árvores de ferro. Nós reconstruiremos o mundo com prata, cobre e ferro.

Simon engatinhou até a ponta da gaiola.

— Isso não faz o menor sentido. O que vocês vão comer? Como vão respirar sem as plantas para fazer oxigênio?

Jared sorriu para Simon. Ás vezes não era tão ruim ter um irmão gêmeo metido a sabe-tudo.

O sorriso de Korting alargou-se.

— Você nega o fato de que os anões são os maiores artesãos que já existiram? Basta dar uma olhada em meu cão, aqui, para constatar nossa superioridade. Seu corpo de prata é mais bonito do que qualquer tipo de pelagem, ele corre mais rápido, não necessita de alimento, não baba nem fica pulando em ninguém.

Korting acariciou o cão com o pé. O cachorro virou-se e espreguiçou-se antes de voltar a dormir e roncar.

— Eu não acho que era isso que Simon estava tentando lhe dizer — começou Jared, mas foi interrompido por seis anões que entraram na sala, carregando uma caixa de vidro comprida nos ombros.

— Mallory! — gritou Jared com uma sensação de vazio no estômago. A caixa parecia com um caixão.

— O que foi que vocês fizeram com nossa irmã? — perguntou Simon. Seu rosto estava pálido. — Ela não está morta, não é?

— Pelo contrário — disse o senhor dos anões com um sorriso. — Ela nunca morrerá. Venham vê-la de perto.

Os anões depositaram a caixa de vidro sobre um aparador esculpido com ornamentos que estava ao lado da gaiola de Simon e Jared.

O cabelo de Mallory fora arrumado e preso em uma única longa trança que transcorria por seu rosto pálido e céreo. Sobre sua testa havia uma tiara de folhas metálicas. Seus lábios e faces estavam tão corados quanto os de uma boneca, e as mãos ainda empunhavam a espada prateada. Puseram-na em um vestido branco com bordados frívolos. Os olhos dela estavam fechados e Jared temia que, se ela os abrisse, fossem feitos de vidro.

— O que fizeram com ela? — perguntou Simon. — Não está parecendo nem um pouco com a Mallory.

— Sua beleza e juventude nunca desbotarão — disse Korting. — Fora desta caixa ela estaria condenada à velhice, à morte e à deterioração... Ao destino de todos os mortais.

— Acho que Mallory preferiria ser condenada — disse Jared.

O senhor dos anões bufou.

— Fique à vontade. O que você tem para me dar em troca dela?

Jared colocou a mão dentro de sua mochila e tirou o livro enrolado na toalha.

— O Guia de Campo de Artur Spiderwick — disse.

O menino sentiu uma pontinha de culpa pela mentir,a mas reprimiu-a impiedosamente.

Korting esfregou as mãos.

— Excelente. Foi isso o que esperava. Agora, entreguem o livro.

— Você nos devolverá nossa irmã?

— Ela será de vocês.

Jared estendeu o falso Guia, e um dos anões o arrancou enfiando a mão entre as barras da gaiola. O senhor dos anões nem sequer se deu ao trabalho de abri-lo.

— Levem essa gaiola até a sala dos tesouros e coloquem a caixa de vidro ao lado dela!

— O quê? — perguntou Jared. — Mas vocês queriam fazer uma troca!

— Nós já fizemos a troca — Korting disse com uma risadinha. — Vocês trocaram o livro por sua irmã, mas não por sua liberdade.

— Não! Vocês não podem fazer isso!

Jared bateu as mãos contra as barras, mas isso não impediu que os anões empurrassem a gaiola ao longo de um corredor escuro. Ele não podia olhar para Simon. Depois de gritar tanto com seu irmão, ele tinha sido estúpido, o que não fora suficientemente inteligente. Ele se sentiu cansado, desanimado, pequeno e patético. Ele era só um menino. Como é que conseguiria escapar de uma situação dessas?

 

EM QUE Jared e Simon despertam a Bela Adormecida

Jared mal reparou no caminho que tomaram em direção à sala do tesouro. Fechou os olhos para impedir a explosão de lágrimas.

— Chegamos — disse o anão que os conduzia. A barba dele era branca, na cintura, ele carregava um molho de chaves. O anão dirigiu-se ao grupo que carregava a caixa contendo Mallory.

— Coloquem essa caixa bem aqui.

A sala do tesouro estava iluminada por um único candelabro, mas as pilhas de ouro brilhante refletiam a luz, de modo que ela não era tão escura quanto poderia ser. Um pavão prateado com uma cauda cor de coral bicava um rato de cobre sentado no topo de um vaso com um jeito que mais parecia tédio do que maldade. O anão de barba branca os fitou enquanto os outros iam passando. Ele lhes sorriu, carinhoso.

— Vou tentar encontrar um brinquedo para vocês, meninos. Que tal umas pedrinhas? Elas até saltam sozinhas.

— Estou com fome — disse Simon. — Nós não somos mecânicos. Se você quiser nos manter aqui, precisa nos alimentar.

O anão estreitou os olhos.

— É verdade. Vou preparar um mingau de aranhas e nabos. Isso os alimentará muito bem.

— Como é que você vai dar esse mingau para a gente? — perguntou Jared subitamente. — Aqui não tem porta nenhuma.

— Tem uma porta, sim senhor — disse o anão. — Fui eu quem construiu essa gaiola. Ela é firme, não é?

— É sim — concordou Jared. — Muito firme.

O garoto revirou os olhos. Será que já não era o suficiente terem sido enganados e agora tinham que ser presos em uma gaiola? E o anão tinha ainda que ficar esfregando isso na cara deles?

— Olhe, a tranca fica dentro dessa barra. — O anão bateu de leve numa barra com o dedo. — Tive que construir uma tranca delicada, usei um martelo que era do tamanho de um alfinete. Se você reparar, dá para ver a emenda na porta. Bem aqui. Está vendo?

— Você consegue abri-la? — perguntou Simon. Jared o olhou surpreso. Será que Simon estivera planejando aquilo o tempo inteiro, enquanto Jared tinha perdido o tempo com sua raiva?

— Você quer ver como funciona? — quis saber o anão.

— Quero — disse Jared, quase sem acreditar que estavam começando a ter sorte.

— Bem, está certo, menino. Agora, afastem-se um pouco. Isso. Só uma vez, e depois vou pegar a comida. Ainda bem que finalmente eu posso usar essas coisas que inventei.

Jared sorriu encorajando-o. O anão escolheu uma chave minúscula no molho que trazia na cintura. Ela tinha o tamanho e formato de um apito, com um padrão de arestas bem complicado. Ele a inseriu dentro da barra, embora Jared não conseguisse ver o buraco da fechadura do lado de dentro da gaiola. Virando o pulso levemente, o anão produziu estalidos, zumbidos e outros ruídos que vieram da fechadura.

— Pronto. — O anão empurrou a barra e a parte da frente da gaiola se abriu revelando dobradiças ocultas. Mas, quando os meninos estâo se deslocando para a frente, o anão rapidamente fechou a gaiola. — Não teria sido tão divertido se vocês não tivessem tentado fugir. — Ele riu, recolocando a chave no cinto.

Jared esticou a mão e agarrou a chave ao mesmo tempo. Todas as chaves caíram no chão.

Simon as apanhou antes que o anão fizesse o mesmo.

— Ei! Isso não é justo! — disse o anão. — Devolvam as chaves!

Simon fez que não com a cabeça.

— Mas vocês precisam obedecer. Vocês são prisioneiros. Vocês não podem ficar com as chaves.

— Nós não vamos devolvê-las — disse Jared.

O anão entrou em pânico. Caminhou até a ponta do corredor e gritou:

— Rápido! Alguém me ajude! Guardas! Os prisioneiros estão escapando! — E quando ninguém veio, ele olhou fixamente para Jared e Simon. — Vocês tratem de ficar bem aqui! — ele disse e saiu pelo corredor, chamando os guardas.

Simon enfiou a chave na fechadura e eles escaparam da gaiola.

— Ande, eles estão vindo!

— Nós temos que levar a Mallory! — disse Jared apontando para a gaiola dela.

— Não temos tempo — alertou Simon. — Nós voltaremos.

— Espere! — disse Jared. — Vamos nos esconder aqui! Eles vão pensar que fugimos!

Simon parecia em pânico.

— Onde?

— Em cima da gaiola! — Jared apontou para a tampa da gaiola feita de prata sólida. Subiu numa pilha de metal para alcançar a tampa. — Venha!

Simon subiu até a metade e Jared o puxou até o fim. Mal tiveram tempo de agachar-se e os anões entraram correndo na sala.

— Eles não estão aqui — disse um anão. — Nem no corredor, nem nas salas.

Jared sorriu escondendo o rosto no metal frio.

— Tragam os cachorros. Eles os encontrarão.

— Cachorros? — sussurrou Simon a Jared assim que os anões saíram da sala.

— Qual é o problema? — sorriu Jared, contente com o sucesso de seu plano. — Você adora cachorro.

Simon revirou os olhos e saltou no chão, chutando o candelabro e espalhando algumas peças de hematita. Ele apanhou uma pedra e a enfiou no bolso.

— Pare de fazer tanto barulho — disse Jared, tentando descer da caixa de vidro com cuidado e quase despencando em cima de um arbusto de rosas de cobre.

Eles se ajoelharam ao lado da caixa de vidro, e Jared a abriu. Quando a porta se levantou, fez um ruído, como se um gás invisível estivesse escapando dela. Dentro da caixa, Mallory permanecia imóvel.

— Mallory — chamou Jared. — Levante!

O garoto puxou o braço da irmã, mas estava mole e caiu de volta no peito dela quando ele o soltou.

— Você não acha que alguém precisa beijá-la, não é? — perguntou Simon. — Igual à Branca de Neve?

— Que nojo!

Jared não conseguia lembrar-se de nenhuma informação a respeito de beijos no Guia de Campo, e nem sobre caixões de vidro. Ele se debruçou sobre a irmã e lhe deu um beijo rápido na bochecha. Ela não reagiu.

— Precisamos fazer alguma coisa — disse Simon. — Não temos muito tempo.

Jared arrancou um cacho de cabelo de Mallory e o apertou com força. Ela se moveu levemente e entreabriu os olhos. Jared suspirou aliviado.

— Me larga — murmurou ela tentando virar de lado.

— Me ajude a levantá-la, Simon — disse Jared retirando a espada dela do fundo da caixa.

O garoto ergueu o corpo da irmã um pouco mais antes que ela despencasse outra vez dentro da caixa.

— Vamos, Má — disse Jared no ouvido dela. — Levante!

Simon lhe deu um tapa no rosto. Ela se mexeu outra vez, abrindo os olhos, tonta.

— O que está...? — ela conseguiu dizer.

— Você precisa sair daí de dentro — disse Simon. — Levante.

— Use a espada como se fosse uma bengala — sugeriu Jared.

Com a ajuda dos irmãos, Mallory conseguiu ficar de pé e arrastou-se até o corredor. Ele estava vazio.

— Finalmente — disse Simon. — As coisas estão começando a melhorar para o nosso lado.

Foi então que ele ouviu o som distante de um latido oco, metálico.

 

                     EM QUE as pedras falam

Jared e Simon correram, meio que puxando Mallory, através de uma série de corredores e salas estreitas, escuras. Uma vez, passaram por uma saliência logo acima da caverna central de onde Korting vigiava os anões que trabalhavam colocando armas dentro de carroças. O latido no início era bem longe, mas foi se tornando mais alto e agressivo. Eles continuaram a correr, passando por um quarto depois do outro, escondendo-se atrás de estalagmites toda vez que sentiam a proximidade dos anões, depois continuavam a subida.

Jared parou numa caverna com lagos onde peixes

brancos e cegos nadavam em movimentos rápidos. Pequenas rochas equilibravam-se nas pontas das estalagmites e o som de gotas pingando ecoava pelo espaço, num ritmo estranho.

— Onde estamos?

— Não tenho certeza — disse Simon. — Eu teria me lembrado desses peixes, mas não me recordo. Eu não acho que viemos por esse caminho quando nos trouxeram para cá.

— Onde estamos? — gemeu Mallory, balançando levemente quando ficou de pé.

— Não podemos voltar — disse Jared nervoso. — Precisamos continuar.

Uma figura pequena, pálida, surgiu das sombras. Ela tinha olhos imensos e luminosos, que brilhavam no escuro. Na testa, duas longas antenas tremiam.

— O que... o que é isso? — sussurrou Simon.

A criatura bateu na parede com um dedo longo, cheio de juntas, depois pressionou a grande orelha contra a pedra. Jared reparou que as unhas da criatura estavam rachadas e quebradas.

— Aspedras. Aspedrasfalam. Aspedrasfalamcomigo. — A criatura tinha uma voz baixa como um sussurro e Jared teve que se esforçar para compreender cada palavra. A criatura bateu outra vez. O som era uma espécie de código Morse maluco.

— Ei — disse Jared. — Você sabe como se pode sair daqui?

— Psiu. — Ela fechou os olhos e fez que sim com a cabeça concordando com algo que Jared não conseguia ouvir. Depois, ela saltou nos braços de Jared, enrolando uma de suas fortes mãos no pescoço do menino. Jared tropeçou para trás.

— Sim! Sim! Aspedrascontamcomosairdaqui. — Ela apontou para a escuridão, além dos lagos de peixe branco.

— Legal, obrigado. — Jared tentou arrancar a criatura de seu pescoço. Finalmente, ela o soltou, arranhou a parede e começou a bater nela outra vez.

— O que é isso? — sussurrou Simon para Jared. — Um anão bem esquisito?

— Um protetor ou um mestre, eu acho — Jared sussurrou de volta. — Eles vivem em minas e avisam aos mineiros quando vai acontecer um acidente e coisas assim.

Simon fez uma careta.

— E todos eles são loucos desse jeito? Esse aí é pior do que o phooka.

— Paravocê,JaredGrace. — A criatura colocou uma pedra fria na mão de Jared. — Apedraquerviajarcomvocê.

— Ah, obrigado — disse Jared. — Precisamos ir embora, agora.

Ele se moveu em direção ao lugar escuro que o mestre-protetor tinha indicado. À medida que Jared se aproximava, conseguia ver uma abertura.

— Espere. Como é que você sabia o nome de Jared? — perguntou Mallory, saindo de trás dos irmãos lentamente.

Jared virou de costas, subitamente confuso.

— É. Como é que você sabia o meu nome? — perguntou ele.

A criatura bateu na parede da caverna de novo, uma série de batidas desiguais.

— Aspedrasmecontaram. Aspedrasabemdetudo.

— Ceeerto. — Jared continuou andando.

Na verdade, a criatura tinha apontando o lugar de uma pequena abertura na parede da caverna. Eles não a tinham visto antes. O orifício ficava muito perto da terra e estava escuro. Jared ficou de quatro e começou a engatinhar. O chão da caverna era úmido e às vezes ele achava que podia ouvir um ruído de deslizamento à sua frente. Seu irmão e irmã vinham logo atrás. Uma ou duas vezes ele ouviu um deles suspirar, mas isso não fez com que diminuísse os passos. Ele ainda conseguia ouvir o latido dos cães ecoando pelas cavernas.

Eles chegaram à sala onde ficava a árvore de ferro.

— Acho que é por ali — disse Jared, apontando para um dos corredores.

Percorreram todo o caminho até encontrarem uma abertura quase do tamanho de Jared. Ele olhou na escuridão. Estava tão escuro que parecia que o túnel não tinha fim.

— Precisamos saltar! — disse Simon. — Andem!

— O quê? — perguntou Mallory.

Os latidos estavam chegando perto deles. Jared viu olhos vermelhos na escuridão. Simon deu um passo para trás, depois saltou, caindo no chão com força.

— Você precisa saltar! — disse Jared, e agarrou a mão da irmã.

Saltaram todos juntos. Mallory tropeçou quando seu pé bateu na pedra ao seu lado, mas caiu em segurança no chão da caverna. Eles saíram correndo, esperando que os cães não conseguissem saltar como eles.

Mas essa passagem formava um círculo, e eles se viram de volta à sala central, sob os galhos maciços e os pássaros de metal que cantavam.

— Para onde vamos? — perguntou Mallory, empunhando a espada.

— Eu não sei — disse Jared, retomando o fôlego. — Eu não sei! Eu não sei.

— Eu acho que talvez seja por aqui — sugeriu Simon.

— Nós já passamos por aí e voltamos para o mesmo lugar!

O latido dos cães estava tão perto que Jared esperava que entrassem na sala a qualquer momento.

— Como é que vocês não sabem o caminho? — perguntou Mallory. — Vocês lembram como entraram aqui?

— Estou tentando lembrar! Estava escuro e nós estávamos presos na gaiola! O que você quer que eu faça? — Jared chutou o pé da árvore como se quisesse enfatizar suas palavras.

As folhas tremeram, batendo umas nas outras como se fossem inúmeros sininhos. O som era ensurdecedor. Um dos pássaros de cobre caiu no chão, as asas ainda batiam e o bico abria e fechava sem fazer ruído algum.

— Ai caramba! — disse Mallory.

Cães de metal entraram pela sala vindos de diversos corredores, os corpos delgados rapidamente cobrindo a distância entre eles e os gêmeos. Os olhos faiscavam.

— Subam! — gritou Jared, enfiando o pé no galho mais baixo ao mesmo tempo que estendia a mão para a irmã. Simon gritava ainda mais alto do que os latidos metálicos, roucos. Mallory levantou-se, tonta.

— Vamos, Mallory — implorou Simon.

Ela jogou a perna por cima de um galho bem na hora em que um cão a atacou. Os dentes dele conseguiram rasgar a ponta de seu vestido branco. Os outros cães a cercaram, rasgando o resto do tecido.

Jared atirou a pedra que estivera segurando. Ela passou por cima da cabeça do cachorro e rolou, sem força, até bater na parede da caverna.

Um dos cães correu atrás da pedra. Primeiramente, Jared pensou que talvez a pedra fosse mágica. Então reparou que o cachorro a prendera com os dentes, a cauda de metal balançando como um chicote.

— Simon — disse Jared. — Eu acho que o cachorro está brincando.

Simon olhou para o cachorro durante certo tempo e depois começou a descer da árvore.

— O que você vai fazer? — perguntou Mallory. — Cachorros-robôs mecânicos não são bichinhos de estimação.

— Não se preocupe — respondeu Simon.

Simon caiu no chão e os cães pararam de latir repentinamente, farejando-o como que para decidir se deviam mordê-lo ou não. Simon ficou parado. Só de observá-lo, Jared perdeu a respiração.

— Vem cá, amigão — Simon suavizava a voz que só tremia um pouco. — Você quer brincar? Quer apanhar a pedra? — Ele estendeu a mão e rapidamente retirou a pedra dos dentes de metal do cão.

Todos os cães saltaram no ar ao mesmo tempo, latindo, felizes. Simon olhou para seus irmãos gêmeos e sorriu.

— Você está brincando comigo — disse Mallory.

Simon atirou a pedra e todos os cinco cães correram atrás dela. Um deles a apanhou com os dentes e voltou marchando, orgulhosamente, os outros o seguiram, ansiosos. Simon debruçou-se para acariciar suas cabeças de metal. As línguas de prata caíam para fora das bocas.

Simon atirou a pedra mais três vezes antes que Jared o chamasse:

— Precisamos ir embora — disse ele. — Os anões podem nos encontrar se ficarmos mais tempo por aqui.

Simon pareceu ficar desapontado.

— Tudo bem — gritou ele. Depois, apanhou a pedra e atirou com muita força para a outra sala. Os cachorros saíram correndo para pegá-la. — Vamos!

Jared e Mallory desceram da árvore. Todos os três passaram pela pequena abertura na parede e espremeram-se pelo túnel, engatinhando rapidamente. Jared colocou a mochila na entrada do túnel para bloquear o caminho. Ele já podia ouvir os cães choramingando e arranhando o seu tecido.

Os irmãos apalparam o caminho no escuro, mas havia uma bifurcação no túnel que eles não tinham visto antes, porque desta vez avistaram uma luz suave, calorosa, no fim do corredor.

Perceberam que estavam de pé fora da mina, na grama úmida de orvalho. O amanhecer avermelhava o lado leste do céu.

 

EM QUE acontece um traição inesperada

Mallory olhou para si mesma, com desgosto.

— Eu detesto vestido. O que aconteceu? Por que fui acordar numa caixa de vidro?

Jared balançou a cabeça.

— Nós não sabemos direito... Acho que os anões agarraram você ou coisa parecida. Você se lembra de alguma coisa?

— Eu estava empacotando minhas coisas depois do jogo. — Ela deu de ombros. — Um menino me disse que você tinha se metido numa encrenca.

— Psiu — disse Simon, apontando para a mina. — Abaixem-se.

Eles se ajoelharam na grama e espiaram pela borda. Uma horda de goblins saía da caverna. Eles deslizavam e rolavam, rangendo os dentes e latindo depois de farejarem o ar. Atrás deles vinha um monstro maciço com ramos secos no lugar de cabelos. Ele vestia alguns farrapos escuros, de outros tempos, e chifres grandes, curvados, saíam da testa dele.

Korting e seus anões saíram da caverna. Atrás deles vieram mais goblins, puxando uma carroça cheia de armas brilhantes. No meio desse último bando, um prisioneiro vinha tropeçando. Ele era do tamanho de um humano adulto, um saco cobria-lhe a cabeça, tanto os pulsos quanto os tornozelos estavam amarrados com um pano sujo. Havia algo de familiar na figura dele. Os goblins empurravam o prisioneiro para dentro da mina, espetando-o com galhos pontudos, longe do lugar em que tinha parado o monstro.

— Quem é? — perguntou Mallory, apertando os olhos.

— Não consigo ver — respondeu Jared. — Por que será que eles precisam de um prisioneiro?

Korting limpou a garganta, nervoso, e um silêncio se espalhou pela multidão.

— Grande Senhor Mulgarath, nós lhe agradecemos pela honra de servi-lo.

Mulgarath parou. A imensa cabeça chifruda do ogro debruçou-se sobre o resto das criaturas e ele se virou em direção aos anões com um sorriso.

Jared engoliu em seco. Mulgarath. A palavra nunca tinha adquirido um significado para ele antes, mas agora o garoto estava com medo. Apesar de saber que o monstro não podia vê-

lo, ele sentiu aqueles olhos escuros passarem por perto e escondeu-se mais ainda.

— Estas são todas as armas que eu lhes pedi?

A voz vibrante de Mulgarath ecoava por toda a mina. Ele apontou para a carroça.

— Sim, claro — disse o senhor dos anões. — Uma prova de nossa lealdade e dedicação ao novo regime. Não poderíamos encontrar lâminas mais finas, ou mais bem-feitas. Juro pela minha vida!

— Jura mesmo? — perguntou o ogro.

Ele retirou o falso Guia de Campo de Jared de dentro de um bolso largo.

— E isso aqui. Você também jura por sua vida que esse é o livro que lhe pedi?

O senhor dos anões hesitou.

— Eu... Eu agi conforme suas ordens...

O ogro levantou o livro com uma gargalhada. Jared percebeu que era a mesma risada que o Não-Jared dera no corredor da escola.

Jared engasgou e Mallory o cutucou com força.

— Você foi enganado, senhor dos anões. Não faz mal. Eu tenho O Guia de Campo de Artur Spiderwick — disse Mulgarath. — A última peça que eu precisava para iniciar o meu reinado.

O anão fez uma reverência profunda.

— O senhor é realmente grandioso — disse Kor-ting. — Um mestre valioso.

— Posso ser um mestre de valor, mas não tenho assim tanta certeza a respeito do valor dos meus servos — ele ergueu a mão e todos os goblins pararam de tossir e coçar-se. — Matem todos eles!

Tudo aconteceu tão rapidamente que Jared não pôde acompanhar. Os goblins pareciam formar um só grupo, alguns paravam para apanhar as armas forjadas por anões, mas a maioria partiu para o ataque na base das mordidas e unhadas. Os anões hesitaram, gritaram, e esse momento de pânico e confusão foi suficiente para que os goblins os atacassem.

Eles morderam, agarraram e cortaram até que não sobrasse um único anão de pé.

Jared sentiu-se enjoado e tonto. Ele nunca tinha visto uma matança. Ao olhar para baixo, sentiu vontade de vomitar.

— Precisamos detê-los.

— Não podemos fazer isso sozinhos. Olhe só para todos eles — disse Mallory.

Jared olhou para a espada que ainda estava nas mãos de Mallory, a lâmina perfeita brilhando contra o sol nascente. Ela não seria suficiente para enfrentar todos os inimigos.

— Nós temos que contar para a mamãe o que está acontecendo — disse Simon.

— Ela não vai acreditar em nós! — disse Jared. Ele limpou as lágrimas dos olhos com a manga da camiseta e tentou desviar o olhar dos corpos estraçalhados na mina. — E se ela não acreditar em nós?

— Precisamos tentar — disse Mallory.

E assim, com os gritos dos anões ecoando em seus ouvidos, os três irmãos Grace correram de volta para casa. 

 

                                             Tony DiTerlizzi e Holly Black

 

 

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