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CAPÍTULO DOZE
DEPOIS que ela saiu, Moray permaneceu largos momentos escutando os seus leves movimentos no quarto de cima; depois, automaticamente, começou a enfiar os discos de long-playing nas capas de polistireno e a
recolocá-los na estante. Abriu a meio uma das três janelas altas, e espiou a noite através do terraço. A neve, tendo começado levemente, caíra sem parar durante todo o fim da tarde mansa, silenciosa, nublando o ar com grandes flocos esvoaçantes. O jardim já estava todo coberto, nada se via para além dele, a vida dir-se-ia extinta. Nenhum som perturbava a quietude sobrenatural, não fosse o lamento desamparado de um bote, movido a roda de paletas, a tatear o caminho no lago amortalhado, e o débil gemido da bise que, quase imperceptível a princípio, ia-se tornando cada vez mais forte. Não lhe era estranho aquele vento a espiralar montanha abaixo com uma violência inaudita, onde os seus sentidos reconheceram os sinais iniludíveis de uma tempestade. Dentro de cinco minutos, como previra, o vento uivava em derredor da casa, fazendo ranger as venezianas e dando vergastadas no telhado. O ar, cada vez mais frio, punha franjas de gelo nos flocos torvelinhantes. Estes caíam com mais força, misturados com golfadas de pesado granizo e pelotas de neve. As árvores, invisíveis mas audíveis, tinham começado a dançar aquele louco fandango do costume, e que, de mistura com um disco de Berlioz, ele tanta vez dramatizara para se entreter.
Estava porém demasiado transtornado para pensar em Berlioz. Wagner, refletiu sombriamente, teria sido mais apropriado para acompanhar a tormenta, algo assim como a Cavalgada das Valquírias. Ele porém não tinha ânimo para nada, só pensava na fatal decisão que devia tomar, e em Kathy. Fechou a janela e puxou o cordão de borla que cerrou a acolchoada cortina de cor róseo-clara, e indagando de si para si se ela estaria adormecida ou, como parecia provável, assustada com a tempestade. Deitada sozinha, lá em cima, decerto escutava, de olhos dilatados, as ásperas dissonâncias noturnas!... Se ao menos pudesse ir até lá! Mas não podia, claro. Deus do Céu, como estava aflito! Precisava de compor-se, aclarar as ideias. Tirando um livro da prateleira (uma nova biografia de Lord Curzon), atirou-se numa cadeira. Mas não podia concentrar-se na leitura, nem mesmo da vida de Curzon, homem que admirava
profundamente, e ao qual em verdade inconscientemente adotara como exemplo. Sua atenção vacilava, as palavras se fundiam num borrão incompreensível. Levantou-se, olhou o alto relógio tompion... Apenas dez e meia: demasiado cedo para recolher-se; impossível dormir a essa hora. Pôs-se a andar de um lado a outro do salão, cabeça baixa, sem ao menos um olhar de relance para os quadros, tão frequentemente seu consolo no passado. Sentia um calor insuportável e refreou um impulso desordenado de sair para o terraço coberto de neve. Em vez disso, dirigiu-se para a copa e girou o termostato do aquecimento central para baixar a temperatura. Nenhum rumor na cozinha. Arturo e Elena estavam recolhidos em seus aposentos. Até eles andavam inquietos ultimamente, como se esperassem, penalizados, alguma participação iminente. Voltando à sala, estava quase a reencetar a caminhada pelo aposento, quando, impulsivamente, parou, decidido a olhar de frente o problema.
Uma vez resolvido que Kathy não ficaria, restava-lhe apenas uma única saída. Conquanto tivesse obstinadamente procurado fugir a uma solução, ele via que, desde o instante em que pousara os olhos nela no cemitério de Markinch, aquele desfecho tornara-se inevitável, fazia parte do seu destino. Foi a necessidade urgente de corrigir sua vida o que em primeira instância o conduzira de volta à sua terra natal. Mas eis que agora ela lhe oferecia a exata oportunidade que ele procurava, e, ligado a isso, toda a maravilha do seu amor. Como podia recusar? Kathy transformara-se numa necessidade absoluta para ele; se a perdesse por indecisão ou por estupidez, a vida se lhe tornaria impossível. Não aprendera já essa lição, mercê do seu triste equívoco juvenil? Devia acompanhar Kathy a Kwibu, entregar-se inteiramente à obra que lhe fora designada. E por que não? Era uma obra esplêndida. Verdadeiramente desejava ser o novo homem em que ela queria transformá-lo. E sê-lo-ia. Não era demasiado tarde. Não era impossível. Outros descobriram a centelha salvadora, e de maneira igual. Lera a respeito de homens torturados em ânsias espirituais, que a si mesmos se descobriram em estranhas e ínvias regiões, habitualmente tropicais, e na hora do último suspiro.
- Irei - disse em voz alta. - É o único caminho.
Depois de pronunciar essas emocionantes palavras, teve de imediato uma vibrante sensação de alívio. Sentiu-se repentinamente mais leve, como se lhe tivessem tirado um peso dos ombros. Que liberação - quase uma transfiguração! Não seria, quem sabe, uma
conversão? Kathy falara-lhe da graça, e agora parecia que ele não só lhe compreendia o significado, como até mesmo a sentia fluir, invadindo-o. Um fluido etéreo, uma fonte de luz - as palavras lhe voltavam, enquanto, com a cabeça no espaldar, ele olhava para cima, genuína e profundamente comovido, gozando em cheio esse momento de beatitude, até se sentindo, embora a distância, em contacto com o Céu. Ainda não podia ascender às alturas. Ficara muito tempo acorrentado à terra, e por isso não tentou orar... Mas lá chegaria, possivelmente, mais tarde.
Lentamente, foi relaxando os nervos tensos. A coisa estava resolvida, a sorte fora heroicamente lançada, a alegria o invadiu. E como fora fácil! Nada mais que a aceitação da verdade, do que a entrega do seu próprio ser. Por que hesitara tanto tempo, mantendo a moça na agonia de uma contínua incerteza? Como sofrera, a pobrezinha! Talvez mais profundamente do que ele. Se ao menos pudesse dizer-lhe isso agora, poupando-a àquelas horas de expectativa! Todavia, seria isso conveniente? O direito e a razão estavam de seu lado. Mas não, ele sentia que tal não seria correto. Bem, agora podia ao menos repousar com a mente tranquila.
Depois de permanecer imóvel por vários minutos, apagou as luzes e subiu devagar para seu quarto. Ainda inspirado, aquecido pela salvação, tomou um banho tépido e polvilhou-se de talco, vestiu o roupão, calçou as chinelas de marroquim e sentou-se à beira da cama. Devia em verdade recolher-se. Mas o excitamento da decisão continuou a crescer em seu interior. Sua boa nova simplesmente não podia ser guardada; era-lhe impossível, fisicamente, refreá-la. Estaria ela adormecida? Se não estava, nenhuma caridade mais cristã do que dar-lhe a boa nova, agora e em pessoa. Levantou-se, hesitou um pouco, entreabriu a porta de seu quarto e considerou atentamente o longo patamar. Depois, retendo o fôlego, caminhou cautelosamente na ponta dos pés, sem um só rangido sobre o espesso tapete Wilton que conduzia ao quarto de Kathy.
O vento, que ainda rugia lá fora, acentuava a quietude interna do patamar às escuras, enquanto ele parava à porta do quarto dela. Estava quase a voltar. Depois, com o pulso a latejar-lhe nos ouvidos, bateu na almofada e suavemente deu volta à maçaneta.
- Kathy - murmurou ele - está acordada?
Imediatamente ouviu um rumor no escuro, antes mesmo que lhe chegasse a voz sobressaltada de Kathy.
- David!
- Não se assuste, querida Kathy. Pensei que a tempestade não a deixaria dormir... e como você está acordada... tenho algo importante para lhe dizer.
Avançando às apalpadelas, chegou até à cama e junto dela se ajoelhou. Mal vislumbrava o contorno da cabeça de Kathy sobre o travesseiro, e o de um braço nu, em cima da colcha. Tocou-o levemente, como a tranquilizá-la.
- Kathy... querida Kathy. Já resolvi. Precisava comunicar-lhe que partirei com você.
- David! - exclamou ela, num suave murmúrio emocionado. Ele sentia a súbita alegria que a possuiu, todos os nervos de seu corpo pareciam vibrar. - Oh, obrigada... obrigada, de todo coração.
- Não está zangada porque a incomodei?
- Zangada! Oh, querido, eu estava aqui deitada, desejosa de ouvir exatamente isso que você acaba de me dizer!
- Não podia suportar a ideia de a fazer esperar... durante toda uma noite que bem poderia ser sem sono. - E fez uma pausa. - Agora, que estou aqui, posso ficar mais um pouquinho para conversarmos?
- Sim, fique, fique. Estou perfeitamente acordada. Quer que acenda a luz?
- Não, querida. Enxergo-a muito bem.
- Eu também o enxergo. - E soltou um suspiro de alegria. - Oh, sou tão feliz! Quer saber o que eu sonhava um pouco antes de você chegar?
- Diga, querida.
- Sonhava que estávamos juntos em Kwibu e que tio Willie... - aqui ela hesitou, depois abriu o coração - e que tio Willie nos estava casando na igreja da Missão.
- E assim será, querida Kathy.
E ficaram a olhar um para o outro. O coração dele se lhe dilatando dentro do peito, era dor e era prazer. Pousando os macios dedos no braço dela começou a acariciá-lo.
- Continuo a pensar em nosso futuro - prosseguiu ela, numa sonhadora voz de acalanto. - Tudo arranjado. Eu e você, juntos.
Lá fora a chuva e o granizo tamborilavam na vidraça, depois um corisco relampeou e um trovão ribombou. Ele estremeceu ligeiramente.
- Querido David, você está com frio. Por favor, apanhe uma coberta para se cobrir.
- com efeito, está frio. - Moray sentiu um nó na garganta. Ele, porém, falava calmamente, com tranquila moderação. - Se você repartisse comigo a colcha, poderíamos ficar bem juntinhos... a moda das Ilhas da nossa terra... Temos tanto que dizer um ao outro!
Um instante após, estava ele deitado junto dela; mas na semiobscuridade, enquanto tateava para erguer a colcha, levantara, quase inadvertidamente, o cobertor e o lençol de linho que a cobriam. O rosto dela Uniu-se ao dele no travesseiro. Kathy, a princípio, ficou rígida, permanecendo tão quieta, que Moray pensou que ela deixara de respirar; porém, logo sentiu que ela estremecia. E apressou-se a tranquilizá-la.
- Querida, não quero afligi-la.
- Mas David...
- Respeito-a; quero-lhe mais que a tudo no mundo.
Gradualmente, muito devagar, Kathy afrouxou seu estado tenso. O calor de seu corpo jovem chegava até Moray através da camisola de algodão. A chuva gorgolejava nas calhas e o trovão ribombava, ecoando entre as montanhas. Voltando-se um pouco, ele beijou-lhe os cabelos.
- David, isto é errado - disse ela com voz trémula. - Por favor, não nos deixe fazer o que é errado.
- Meu bem - disse ele, com funda convicção, - como pode ser errado? Já somos um só aos olhos do Céu.
- Sim, David; mas esperemos, querido.
- Você ama-me bastante?
- Oh, sim... sim... amo-o tanto que chego a sofrer. Mas teríamos muito remorso, depois...
- Não, Kathy querida, um amor como o nosso já é por si mesmo uma absolvição.
- Mas David...
- E decerto que... o nosso mútuo compromisso torna sagrado este momento. - Ele sentia a luta que se desenrolava dentro dela. Murmurou sofregamente: - Não pode estar errado, querida, uma vez que dentro de poucos dias, talvez numa questão de horas, Willie nos casará.
Tomou-a nos braços, inalando o perfume de sua epiderme macia. Como era delgada e leve, como era jovem, e com que força o coração dela batia contra o peito de Moray! Dir-se-ia um pássaro ainda há pouco capturado a esvoaçar entre as grades da gaiola.
- Não, David querido...
Mas a natureza venceu, libertando-a da consciência. com um suspiro, enlaçou as mãos na nuca dele e beijou-o ardentemente.
- Não posso evitá-lo. Amo-o tanto... que é como... como se fosse morrer.
Um sentimento de justificação o inundou. Aos murmúrios, procurou
acalmar-lhe os tremores. As relações amorosas puras não eram pecado, mas antes uma santificação, quase um ato de adoração. Não havia muito fora isso dito por um eclesiástico - fora ou não fora?- num tribunal de justiça... Envolvendo-a com ternura, apertou-a mais estreitamente em seu abraço, mas com devota mansidão. Como era doce provar o lento prazer, o arrebatamento crescente, tudo em odor de santidade... Mais tarde, ao sentir as lágrimas que deslizavam pelo rosto de Kathy, suspirou apaziguado, embora ainda exaltado.
- Você chora... Mas por quê, querida?
- Receio pelo que fizemos, David.
- Mas você também não achou maravilhoso, meu amor?
- Sim, maravilhoso... - e sua voz saía abafada do travesseiro. - Mas foi pecado, David, e Deus nos punirá.
- Não, querida, ele sabe. Ele compreende. Mas se você acha que fizemos mal - por pouco que fosse - repará-lo-emos.
"É diferente da mãe", pensou Moray absorto, como quem pensa numa sombra que lhe passa diante dos olhos. Mary não teve sequer um pingo de remorso. Entretanto, também se voltara para a religião, no fim...
- Não chore, querida - disse ele à guisa de consolo, enxugando-lhe o rosto triste e humedecido com a ponta amarfanhada do lençol. - Pense em nosso trabalho... na felicidade que está à nossa frente...
- Sim, David. - Esforçando-se docilmente para reprimir as lágrimas, Kathy aconchegou-se mais a Moray. - Estou tentando... pensar em você e em mim, David... na igrejinha da Missão.
CAPÍTULO TREZE
No aeroporto de Zurique, caminhando de um lado para o outro entre a tenda da florista e o quiosque de jornais que flanqueavam a saída da aduana, Moray enchia o peito respirando longa e profundamente. Trespassara-o uma nova alegria de viver, uma alegria tão grande que ele sorriu involuntariamente - um sorriso cheio de orgulho. Muitas vezes experimentara já um delicioso sentimento
de viver, porém nunca com a mesma intensidade de agora. O SuperConstellation aterrissará, em questão de minutos, Willie apareceria. Estava indiscutivelmente nervoso, e por essa razão, entre outras, lograra persuadir Kathy a permanecer em casa, explicando-lhe que um encontro de tal maneira emocionante seria melhor na intimidade. Kathy, porém, continuava nervosa, ainda não voltara a ser o que era. Espiando para dentro de seu quarto antes de sair para o aeroporto, Moray ficara preocupado, vendo-a de joelhos, rezando contritamente. Mas, conquanto ele respeitasse aqueles ternos escrúpulos, tinha todavia a certeza de que os mesmos haviam de passar. E se ele próprio sentia uma pontada de compunção, reconfortava-o a ideia de que afinal trilhava o caminho que longamente buscara, e de que era amado, graças à decisão vital que tomara; um homem investido de uma missão na vida, e que logo iria saborear a alegria de uma ação enérgica, a emoção do entusiasmo e a sagrada paz conquistada no cumprimento de um dever. Levantando-se cedo, meteu mãos à tarefa que tinha pela frente. Já havia encomendado, por telefone, os mais recentes livros de medicina, mandara pedir informações a respeito da aparelhagem necessária nos trópicos, e já considerara o meio pelo qual pudesse pôr seus negócios em dia. Olhando o passado, considerava agora o vazio, a falsidade de sua vida pregressa, com envergonhado e desdenhoso autodesprêzo. Mas a perspectiva do futuro absolvia-o da culpa, enchia-o de satisfação com a dupla esperança de uma regeneração espiritual e a doçura de um amor eterno.
Nisto, estacou abruptamente. Acabara-se a inspeção da alfândega, os passageiros do grande avião da Trans-World, vindo de Luanda via Lisboa, já saíam pelas portas de vidro, e ali - o último da fila - vinha um homem alto, de aspecto emaciado e ombros caídos, carregando uma pequena valisa azul para viagem aérea, com fecho éclair; usava uma camisa encardida, de gola aberta, e um terno militar caqui, cuja blusa, de bolsos sobrepostos, era do feitio da que se usava durante a guerra. Estava sem chapéu, e o seu cabelo, queimado pelo sol, tinha a mesma cor do rosto, o qual, sulcado e chupado, era de um amarelo indefinível. Mas seus olhos, embora afundados nas órbitas, ainda eram jovens, tinham um brilho quase sobrenatural e, ao dar com eles no meio da multidão, Moray percebeu, sem receio de equívoco, que o dono deles era Willie.
Apertaram-se as mãos; depois, para alívio de Moray (pois a despeito da fé que em si mesmo reencontrara, experimentava uma súbita e esmorecedora invasão de medo pânico), Willie sorriu.
- Você logo me conheceu - disse ele. - Eu também, não me enganei. ..
- Alegro-me em tornar a vê-lo. Kathy ficou esperando em casa.
Fez boa viagem? Já almoçou? - Em seu nervosismo, Moray só fazia pairar; havia tanto o que dizer e explicar; transbordava.. .
Willie não quis almoçar, mas disse que gostaria de beber uma xícara de café.
- Sente-se frio quando se volta à Europa - acrescentou com doçura.
E não era para admirar, pensou Moray: estava sem sobretudo, e com aquele terno ralo... Disse em voz alta:
- Iremos para casa assim que sua bagagem for liberada.
- Minha bagagem se resume nisto - disse Willie, indicando a bolsa de fecho éclair. - Não preciso de mais. Umas camisas, um pacote de filmes coloridos... Vim por pouco tempo.
No café que ficava por baixo do restaurante, a garçonete trouxe duas xícaras fumegantes. Enquanto Willie bebia, Moray teve uma inspiração dolorosa, entretanto oportuna.
- vou explicar-lhe tudo, Willie... na esperança de que você me perdoe. É uma longa tragédia, mas talvez você a ouça, pois tem um fim... acredito-o piamente... um fim feliz. Como vê, eu...
- Não me diga nada - tornou Willie, fitando o outro com seus olhos cansados e brilhantes. - Isso é do passado e já foi esquecido. Os seres humanos não se devem julgar uns aos outros. Recebi seu telegrama e a carta de Kathy. Não diga mais nada.
Uma onda de gratidão invadiu Moray - tão quente, tão dominadora, que ele ficou sem fala. No mais absoluto silêncio, observava Willie acalentando a xícara quente, saboreando o café em pequeninos goles. Se o missionário não tinha carne no corpo, muito menos a tinha nas mãos: os dedos que seguravam a xícara eram esqueléticos. Notou igualmente que Willie tinha um tique deveras pronunciado, que o forçava, periodicamente, a sacudir a cabeça para o lado, revelando uma cicatriz que ia de um lado do pescoço até à laringe.
- Vejo que já descobriu o belo arranhão que tenho no pescoço - disse Willie, percebendo que Moray tinha visto a cicatriz. - Um dos malandros que tenho lá foi, em seu tempo, campeão de arremesso de dardo. Agora é o melhor dos meus catequistas. Ela não me incomoda muito, embora, de vez em quando, eu perca a voz. Mas valeu a pena.
Disse isso com um ar tão natural e bem-humorado, que Moray ficou mais impressionado ainda. E teria dado tudo, para anunciar a intenção que lhe ardia no peito. Mas não, Kathy reclamara o
privilégio de compartilhar essa sensação ligada à notícia de seu próximo casamento; por isso, com toda a abnegação recém-encontrada, ele se conteve, dizendo apenas:
- Se já acabou, vamos indo.
Uma vez dentro do carro, Moray abriu de todo o aquecimento; mas não tinha rodado muito, quando descobriu que Willie tremia. Quis parar e
oferecer-lhe o sobretudo; isto, porém, embora São Francisco de Assis tivesse estabelecido o precedente, pareceu-lhe excessivo no caso presente. Contudo, seu coração se derretia de afeição por Willie. Vestido como estava, com aquele tique explosivo e seu trémulo e singular alheamento, Willie era um sujeito esquisito, extremamente esquisito, mas havia nele qualquer coisa bastante genuína: era um homem de fato. Já Moray se identificava com ele, e, meio voltado, com um olho em Willie e outro na estrada, disse:
- Se eu tivesse uma ideia dos seus planos, isso me permitiria tomar as melhores providências possíveis para a sua estada em Schwansee.
- Devo estar em Edimburgo no dia onze. Vejamos - e Willie refletia. - De hoje a três dias. Tenho de expor um assunto muito sério perante o comité. E pronunciar uma conferência no Husher Hall. É melhor Kathy ir comigo - acrescentou - para me ajudar e apanhar suas coisas.
- Precisam partir tão depressa assim? - perguntou Moray com uma voz desapontada. - Fiz planos de os reter comigo mais algum tempo.
- É tudo muito urgente. Não ficaremos muito tempo em Edimburgo: desceremos até Londres, fazendo conferências pelo caminho. Precisam de mim na Missão. Regresso a Kwibu no dia vinte e um.
- Santo Deus... mais cedo do que esperávamos! Menos de duas semanas, a partir de hoje. E eu que gostaria tanto de preparar algo para você aqui!
No fundo de seu pensamento, Moray já sentira a necessidade de um ato ostensivo, para realçar sua partida de Schwansee. Partiria com estardalhaço. Nada de clandestino, nada de esconde-esconde: sairia marchando de cabeça erguida, bandeiras ao vento. E eis que agora, sob o acicate da pressa, essa ideia assumia uma forma definida: daria uma festa de despedida e apresentaria Willie numa reunião de amigos; haveria uma declaração clara de sua parte e um discurso adequado de Willie... Ah, seria uma atração extra!
- Diz que vai fazer algumas conferências?
- É o nome que lhe dão: conferências. - E Willie sorriu. - Mas não passam de um pequeno relato sobre a Missão, principalmente
sobre os nossos começos ali, e ilustrado por slides coloridos. Só faço isso para levantar fundos.
- Então - disse Moray com entusiasmo - por que não levantar aqui mesmo uma parte dos fundos? Amanhã fará a conferência em minha casa. Posso prometer-lhe uma contribuição substancial.
- Não vejo qualquer inconveniência - disse Willie após um instante de reflexão. - Não sou grande orador, mas sempre se pode dizer alguma coisa.
- Então está combinado.
Encontravam-se agora além de Láchen, já no último trecho do caminho; contudo, a paisagem deslumbrante das montanhas não suscitou nenhum comentário da parte de Willie. Ao contrário, notou Moray que o companheiro, refugiado a um canto do assento, e a despeito do calor que fazia dentro do carro, era presa de um violento ataque do tremor que já antes o acometera. Deixando momentaneamente de olhar para a estrada, Moray voltou-se para o outro e descobriu o olhar demasiado brilhante de Willie pousado humildemente sobre ele.
- Não se importe comigo - disse Willie. - Já no avião senti isto, É apenas uma pontinha de febre.
Voltando o olhar para a frente, Moray tateou o assento em procura dos dedos esqueléticos de Willie. Estavam secos e ardentes.
- Deus do céu, homem! Está com um febrão. Tem de ir para a cama assim que chegarmos.
Aproveitando uma pausa entre os seus tremores, Willie sorriu:
- Se me metesse na cama de cada vez que a febre me ataca, nunca estaria de pé.
- Mas que é que tem? - perguntou Moray instantes após. - Malária?
- Pode bem ser. Mas tenho tudo quanto é bicho dentro de mim - amebas, cocos, tripanossomos, não sei que mais - nunca se sabe.
- Não me diga que tem tripanossomos!
- Oh, tenho, sim, Já sofri um acesso de doença do sono. Tive de ficar um tempão deitado de costas.
- Bem: paremos na farmácia para comprar um pouco de quinino.
- Obrigado, David, você é muito generoso. Mas a verdade é que tive de fazer por tanto tempo uma dieta à base de quinino, que o remédio deixou de fazer efeito. Ocasionalmente recorri à atebrina e à paludrina, mas agora o melhor mesmo é deixar que os bichos briguem entre si. Se os deixarmos em paz, as diferentes espécies entram em guerra e mutuamente se destroem.
Santo Deus, pensou Moray, olhando firme para a frente e franzindo o sobrolho, este homem é um herói, ou um santo... se não for um pouquinho maluco.
Mas já chegavam a Schwansee, e, contornando o monte junto ao lago, entraram na avenida serpenteante, margeada de acácias. Moray parou em frente à casa. Precipitando-se da varanda, Kathy acorreu imediatamente; fazia mais de uma hora que esperava ouvir o ronronar do carro.
Contemplando o encontro do tio com a sobrinha, Moray sentiu uma pontada de ciúme pela afetuosidade de que o mesmo se revestiu. Entretanto, màsculamente, afastou de si qualquer sentimento indigno: Kathy, ele bem o sabia, era sua e de mais ninguém. Sorriu-lhe significativamente.
- Acompanhe Willie até ao quarto, querida. Você tem muita coisa para lhe contar.
Depois de se ter banhado e refeito com um trago de amontillada, Moray dirigiu-se para a biblioteca a fim de esperar Kathy. Ela demorou muito para descer, e embora ele se ocupasse em fazer a lista dos convidados para a conferência do dia seguinte (Arturo lhes telefonaria à tarde), ele já começava a afligir-se quando ela apareceu. Tinha as faces coradas, e voou diretamente para seus braços, qual uma pomba que regressasse ao pombal.
- Contei-lhe tudo. Tio Willie vem falar com você, por isso não fico. Acho que vai tudo bem. Estou certa de que ele gosta de você... Sou de novo feliz, David!
Depois que ela saiu, Moray ficou esperando com uma pontinha de apreensão, ciente dos vários tópicos em que iria ser interrogado. Willie logo chegou, mas a sua expressão, misto de paciência e bondade, estava longe de intimidar. Ali de pé, os ombros caídos e as descarnadas mãos balouçantes, dir-se-ia que seus ossos estavam frouxamente ligados debaixo da pele seca como pergaminho. Willie fitou Moray de sob as sobrancelhas que lhe encimavam os olhos febris e luminosos. Tinha um jeito embaraçado, ainda mais evidente pela exacerbação do tique que lhe repuxava a face.
- Kathy me contou - disse ele. - Eu devia ficar satisfeito por nós três. Ela o quer; eu o quero. Mas... - e hesitou - você quer mesmo partir conosco? Creio que deve pensar muito antes de se decidir.
Moray, que esperara uma aceitação entusiasta, talvez mesmo congratulações, encarou fixamente Willie, desapontado e como que desorientado.
- Já pensei em tudo. Quero mesmo partir. Mas, naturalmente... - e baixou o olhar - você terá boas razões para desconfiar de mim.
- Não, não; não é isso, David. Apenas imagino que você deve estar fortemente habituado a este estilo de vida. Talvez ele o obrigue a voltar, mesmo contra a sua vontade. Talvez não seja bem sucedido rompendo com o tipo de vida que leva...
- julga-me erroneamente - protestou Moray com seriedade, com uma inequívoca sinceridade. - Minha vida, a vida que levei até aqui, tem-me sido prejudicial. Há muito tempo, mesmo antes de conhecer Kathy, senti o quanto ela é vazia e insignificante; uma existência inútil, com efeito. Agora sei que não preciso escravizar-me ao passado, e que posso fazer de mim aquilo que desejo. Resolvi viver uma vida nova... uma vida feliz.
- Uma vida feliz... - repetiu Willie como se refletisse. - E quando diz isso, não está pensando apenas em si mesmo? Essa espécie de vida não faz parte da nossa obra. A felicidade nunca deve ser considerada como um fim em si mesma; ao contrário, ela é encontrada na total ausência de preocupações pessoais. Se você nos acompanhar, será chamado a fazer muitas coisas que não são nem agradáveis nem prazenteiras.
- Reconheço que assim é - disse Moray com voz magoada, mas não sem dignidade. - Mas, com Kathy a meu lado, e com a ajuda de você, creio que poderei executar satisfatoriamente a tarefa que me couber. Pelo menos, tentarei.
Durante o silêncio que se seguiu, Willie fixou atentamente Moray. Seu olhar era franco, mas tinha, no fundo, algo de inquiridor. Em seguida, ele sorriu e estendeu a mão.
- Acredito que conseguirá isso - disse, subitamente animado. - E, se o fizer, será recompensado de uma maneira que está muito além de sua atual expectativa. Acredito, David, que toda e qualquer pessoa, que tenha sido contemplada com qualidades como as suas, deve dedicar-se ao serviço de seus semelhantes. Se obrar bem, terá atingido a finalidade de todo ser humano. Caso contrário, será consumido pelo remorso, e mais cedo ou mais tarde sofrerá um castigo atroz. Assim, pois, por você e por mim, rejubilo-me com a sua decisão. Então está tudo resolvido. E agora posso dizer quão grande me será o seu auxílio: você e Kathy, médico e enfermeira, uma parelha de marido e mulher trabalhando juntos... É um presente que me veio diretamente do Céu.
CAPÍTULO QUATORZE
O sentimento do drama sempre fora um traço do caráter de Moray, até mesmo naqueles dias longínquos em que tão desveladamente surpreendera Mary cem as maravilhas do Hospital de Glennburg, e do bangalô, onde jamais haveriam de morar. Agora, homem diferente e numa causa diferente, entretanto com o mesmo entusiasmo de sempre, resolvera fazer da reunião de despedida e da conferência de Willie, uma ocasião a ser lembrada em Melsburg muito tempo depois de sua partida para a África. Os preparativos foram complexos, e havia chegado o dia, a hora, o momento da sua realização. Ali estavam reunidos todos os seus amigos, sentados e em expectativa num perfeito hemiciclo dentro do salão, onde, em frente às portas duplas e fechadas, uma tela branca se desenrolava. Na outra extremidade estava um projetor sobre uma mesa Pembroke, já ligado a uma tomada elétrica.
Desde o começo - quando Leonora Schutz, chapéu novo à cabeça, chegou com o Dr. Alpenstiick, logo seguidos pela pequena Gallie em companhia de Archie Stench, que lhe dera uma carona, depois por Madame Ludin e seu marido, e, finalmente, após um intervalo aflito, por Frida von Altishofer - a reunião decorrera com êxito, progressivamente animada pelo excelente bufete e o champanha de primeira qualidade. Leonora estava com boa veia e seu riso atingia as raias da estridência; Stench rondava, com o copo na mão, sempre repetindo, "Isto é pródigo, meu velho; indubitavelmente pródigo", enquanto a pequena Gallie, a sacola pronta na mão, ria para consigo mesma - aquele enigmático e contido sorriso das pessoas muito surdas. Não se esperava idêntica reação da parte dos plácidos Ludins, mas até eles tinham correspondido ao ambiente de expectativa que ali reinava. Moray estava satisfeito. Archie talvez tivesse desenvolvido alguma atividade, fazendo alusões indiscretas no ouvido dos presentes, mas não a ponto, esperava, de estragar a surpresa final. Uma ou duas vezes, olhando para Madame Altishofer, que discretamente saboreava as guloseimas, pensou no que poderia ela saber de suas intenções, mas uma singular convicção já o assaltara de que ela sabia tudo; por que meios, eis com que não podia atinar. Pelos seus modos, entretanto, bastante amáveis, especialmente com Kathy, e o seu completo à-vontade (casualmente, pilhara-a a olhá-lo, com ar irónico) não davam nenhum sinal do
desapontamento que dela se poderia esperar. Restava a Moray elogiar-lhe o comportamento, e esperar, caridosamente, que ao menos a recordação de sua amizade sobrevivesse intacta.
Mas o que especialmente o satisfez foi o sucesso, merecido porém inesperado, de seus hóspedes, principalmente de Kathy, conquanto ele a preferisse menos nervosa, e socialmente mais à vontade. Ainda assim, Madame Ludin e a vivaz Leonora faziam-lhe muitas festas, enquanto o ubíquo Archie rondava já meio tonto pela sala, transbordando elogios e risadinhas. Willie também, embora no começo, devido à sua aparência pouco eclesiástica, o que despertou uma certa perplexidade, logo se transformou em centro de atenção dos presentes. Observando Kathy e Willie, Moray sentiu-se invadir por um cálido sentimento de camaradagem. Nunca se sentira mais feliz. Era como um colegial ao fim do período letivo, de saída para gozar as férias. Quão satisfatórios, quão cheios de expectativa foram aqueles três últimos dias - dias da mais estreita intimidade, durante os quais os três tiveram conversas muito compridas, discutiram planos, uniram-se numa associação deveras estreita... A doce presença de Kathy, a alegria de saber que ela o amava, como que se intensificava pela presença de Willie. Estar com este equivalia a compreender o valor da obra que ele, Moray, pretendia realizar. Sim: fora, em verdade, espantoso o efeito que Willie nele produzira, mercê da sua alacridade prática e humana, até mesmo mercê de seus mutismos. Inspirado, Moray a si próprio se dizia quão feliz fora em ter sua vida ligada a um caráter tão transparentemente simples conquanto forte, e, acima de tudo, tão bondoso. Sentia-se, de algum modo, que Willie amava toda a humanidade.
Chegara o momento da conferência. Moray avançou e, tomando Willie pelo braço, conduziu-o para as cadeiras em semicírculo. Enquanto fazia isso, foi de novo invadido por uma sincera, profunda maré de sentimento, de afeto, e, ainda mais, de amor por aquele farrapo de homem, magro e doentio, de terno caqui desbotado. Dando uma pancada com o nó dos dedos na mesa especialmente preparada para a solenidade, Moray provocou uma interrupção na tagarelice e um polido espichar de pescoços.
- Senhoras e senhores, ou melhor, meus bons amigos: meu querido amigo, o Reverendo William Douglas, vai dar início à sua conferência. Tenho algo a dizer-lhes, depois que ele terminar.
Encarando o auditório, que ali viera movido mais por curiosidade e pela secreta expectativa de um divertimento, tal como podia oferecê-lo algum ator excêntrico, ou um prestidigitador a sacar coelhinhos
do fundo da cartola, Willie apresentava um aspecto canhestro, uma figura destrambelhada e desgraciosa, os braços frouxamente dependurados dos ombros caídos, o pescoço repuxando mais do que o costume. Entretanto sorria - um sorriso alheado e remoto, que lhe humanizava a singularidade.
- Não se assustem - disse docemente ao auditório - não vou fazer um sermão, nem tampouco exemplá-los. Em vez disso, creio que podia ser do interesse dos ouvintes, ficarem eles sabendo como, com a ajuda de Deus, uma pequena colónia cristã foi criada do nada no longínquo agreste da África Central. Peço-lhes o favor de não hesitarem em interromper a palestra quando tiverem perguntas a fazer, ou caso eu não fale com clareza. - Encaminhando-se para o projetor, limpou a garganta e, num estilo cordial, sem a menor formalidade, prosseguiu: - Em primeiro lugar, como foi que chegamos àquele lugar? Há vinte anos isso não era muito fácil. Habitualmente, os missionários saem do nosso quartel-general em Melopo, em grupos de dois ou de três; mas, no caso em apreço, isso não era possível. O que puderam me arranjar foi um catequista nativo, mas homem bom, batizado com o nome de Daniel, vou agora mostrar-lhes seu retrato. Pois bem: lá partimos nós dois, rumo ao distrito de Kwibu, no extremo nordeste, uma das regiões mais selvagens da fronteira entre Angola e o Congo. Como queríamos levar conosco algum gado, e como a região era muito acidentada e pedregosa, resolvemos empregar no transporte um velho carro de bois em vez de um caminhão. Foi uma bênção termos agido assim, pois, de outro modo, nunca teríamos chegado lá. Enquanto ganhava experiência, e aprendia a língua da terra, fiz algumas viagens nas cercanias de Melopo; isto, porém, foi o pior de tudo. vou dar aos ouvintes uma ideia da região que atravessamos. Não se trata daquela que geralmente a gente associa aos trópicos - feita de pântanos e selvas fumegantes e coisas desse género, pois aquela região tinha seus próprios problemas. Estas fotografias foram naturalmente tomadas em época posterior.
E Willie exibiu na tela uma sucessão de slides: profundos leitos de rios secos, afogados em pedreiras; declives precipites de negras pedras com bordos afiados, numa confusão de cascalho amarelo; maciços de espinheiros tão cerrados que chegaram a suscitar murmúrios no auditório.
- Como conseguiu atravessar tudo isso, velhinho? - perguntou Archie, servindo de porta-voz ao sentimento geral. - Não ficou todo lacerado?
- Perdemos alguns centímetros de pele - disse Willie, sorrindo. - Mas fizemos uma média de pelo menos cinquenta jardas por hora. Mas isso não foi o pior. Logo depois que atravessamos o último trecho que lhes mostrei, perdi a bússola por estupidez pura e pus-me a vaguear na alta meseta ao norte, até ao deserto de Cazar. Foi um erro péssimo: areia, funda areia por toda a parte e um cerrado baixo e espinhento, verdadeiro deserto sem água. No calor e nas cegantes tempestades de poeira, acabou-se a água, e teria sido muito pior se não encontrássemos três bosquímanos que nos conduziram a um bebedouro - um simples buraco lamacento, que haviam cavado na areia.
- Os bosquímanos não são aqueles medonhos aborígines anões, que têm pêlo por toda a cara? - perguntou Leonora, inteligentemente.
- Estes não eram grandes: tinham apenas quatro pés de altura - respondeu Willie docemente. - Mas não eram medonhos, isso não; pois se não tivessem humanamente partilhado conosco o seu escasso suprimento de água, nem meu companheiro nem eu teríamos sobrevivido. Em verdade, quase não sobrevivemos, pois o meu bom catequista logo teve um ataque de disenteria, três bois adoeceram e morreram, e eu... Bem: nessa altura estávamos ambos cobertos de mordidas de mosquitos e de carrapatos, e foi aí que apanhei a malária. Gomo se isso não bastasse, as correntes do carro se partiram, e foi um verdadeiro milagre termos enfim chegado ao lugar do nosso destino, Kwibu, vila principal do distrito, e
quartel-general da tribo dos Abatus. Tenho aqui uma velha fotografia, tirada logo após a nossa chegada. - E projetou outra imagem na tela. - Como estão vendo, a vila é apenas um amontoado de choças cónicas de barro e cobertas de colmo, sem nenhuma plantação. No fundo poderão distinguir algum gado esquelético, pobres animais famintos, sempre cheios de bernes, vagueando miseravelmente pelo chão gretado. Mas enfim chegamos, e estávamos satisfeitos pela proeza, quando recebemos um horrível choque. O chefe dos Abatus não quis deixar-me entrar na aldeia. Aqui está ele, todo pintado para a cerimónia, e creio que vocês concordarão em que foi prudente eu não ter insistido em entrar...
- Meu Deus! - exclamou Leonora, vibrante de compaixão. - Que horrível pecador!
- Às vezes, são os pecadores mais empedernidos que se transformam nos melhores santos - disse Willie com um sorriso. - E o velho Tshosa não foi tão ruim assim, como verão. Mas, naquela altura,
não estava naturalmente transbordante de amor fraternal, de modo que fomos obrigados a levantar acampamento e afastando-nos um pouco para um planalto acima da aldeia, onde havia uma pequena moita de árvores de tacula e- uma fonte. Ali, antes de tudo, construímos uma pequena choça. Mas o calor era de derreter! Eu ainda não estava habituado àquela temperatura escaldante, e a madeira de tacula era tão dura que logo embotou o fio do meu machado. Não tínhamos material para o telhado, e os nossos mantimentos se achavam quase esgotados na ocasião.
- Era isso mesmo o que eu pretendia perguntar - atalhou Madame Ludin. - Como viviam? Sou, de profissão, fornecedora, e interessava-me saber...
- Nosso único alimento era uma espécie de mingau. Eu punha água para ferver e despejava-a numa tigela com um punhado de aveia no fundo. Parece muito pouco, mas é um forte alimento na Escócia e nos serviu otimamente.
- A mim não serviria - exclamou Archie. - Sou pela dieta escocesa: não a sólida, mas a líquida.
- De qualquer forma - disse Willie, partilhando da risada geral, - já havíamos começado a plantar uma horta e a cavar valetas para levar a água da fonte até à plantação. Adequadamente regado, o capim cresceu depressa; cultivamos farináceos, batatas e milho, e os bois que nos restavam começaram a arribar. Durante esse tempo todo, nenhum membro da tribo se aproximou de nós. Nossos únicos visitantes eram leões, leopardos e um ou outro rinoceronte.
- Misericórdia! E não atirou neles? - disse Leonora. Estava fascinada por Willie, sua singularidade, seu tique, sua expressão maravilhosamente doce. Uma ideia lampejou em sua mente aturdida: se havia caça por lá, por que não levar Herman num safari, enquanto ela visitava a Missão, como uma heroína de Hemingway? Ele porém já lhe respondia.
- Não - disse. - Nunca andamos armados. Eles chegavam bem perto de nós, e nós os afugentávamos atirando-lhes pedras.
- Santo Deus! E não tinham medo?
Willie sacudiu a cabeça.
- Creio que não os temíamos porque ambos estávamos terrivelmente fracos. Tínhamos o ânimo por terra, especialmente quando a estação das chuvas começou, e os contínuos temporais se faziam seguir por uma praga de formigas brancas. Daniel e eu estávamos ambos com febre. Ele ficara tão fraco, que eu precisava alimentá-lo com uma colher; eu também não estava bom. Até parecia que o
Pai Celestial já não queria saber mais de nós, e justamente quando eu já estava prestes a renunciar, Tshosa, o chefe, subitamente nos apareceu, à frente de uma longa fila de seus melhores guerreiros, todos carregando lanças. O espetáculo era assustador, e eu fiquei alarmado, pois pensei, naturalmente, que tinha chegado a nossa hora. Mas não, o chefe trazia-nos uma oferta... - E aqui Willie fez uma pausa e sorriu debilmente. - Podem os ouvintes imaginar que oferta era essa?
Ninguém pareceu capaz de propor uma sugestão, mas todos escutavam atentamente.
- Pois bem: era uma tigela de sangue e leite, símbolo da amizade dos Abatus. Por conseguinte, bebi aquela horrível mistura, embora muito me custasse a fazê-lo, e as conversações se estabeleceram entre nós. Era evidente que eles vinham observando atentamente nossos esforços hortícolas, e agora pretendiam que os ensinássemos a cultivar a terra ressequida lá deles. Pois bem: principiamos a lavrar seus campos, e logo depois, como recompensa, conseguimos que alguns membros da tribo - na maioria mulheres, pois eram elas, coitadas, que faziam os trabalhos mais árduos - nos ajudassem a edificar uma igrejinha de barro secado ao sol. Aqui está ela. - (Na tela surgiu um pobre barraco com telhado de folhas de palmeto, com a porta e a janela tapadas por um pano de saco.) - Aqui celebrei os primeiros cultos, tentando implantar as sementes do Evangelho na mente daqueles pobres selvagens. Ia também frequentemente aos postos de gado para explicar aos homens os princípios evangélicos, especialmente para ensinar as crianças. Não era fácil. Tínhamos de enfrentar a ignorância primitiva e a superstição mais arraigada. E havia sempre o perigo de um repentino levantamento em massa, suscitado por aqueles que temiam a palavra de Deus, que na certa iria solapar seu prestígio e destruir o fetichismo pagão que constitui a base de muitos costumes tribais. Por exemplo, tive alguma dificuldade com este sujeito... - E apareceu na tela outro slide.
- Oh, que homem medonho! - exclamou Leonora. - É pior que o chefe.
- Este é o curandeiro e fazedor de chuva. Quando a seca chegava (o que era coisa frequente) incumbia-lhe acabar com ela por meio de magia. E quando a sua pantomima falhava, ele culpava a péssima medicina da nova religião. No meu segundo ano, houve ali uma seca tão grave e prolongada que as coisas ficaram péssimas para nós. Creio que nunca orei tanto pedindo chuva... Quase fiz os céus se rasgarem!
- E as chuvas chegaram... - murmurou Leonora, com uma voz de sonho. (Já se sentia um pouco apaixonada por Willie.)
- Não, não vieram: nem uma só gota - disse Willie tranquilamente, fazendo uma pausa. - Mas veio-me uma ideia repentina, uma inspiração, se preferirem: a de que a minha fonte, que desaparecera lá em cima na colina, bem podia estar correndo pela encosta por debaixo do chão! Jamais fui rabdomante em minha vida, mas cortei uma varinha de mangana, que mais que todas as outras árvores semelhava a aveleira, roguei ao Senhor que me assistisse se não quisesse ver seu servo degolado, e pus-me a descer a colina em direção à aldeia. Quando lá cheguei, toda a tribo me rodeou observando-me, inclusive o nosso amigo da tela. De repente, logo em frente à choça do chefe, a varinha deu um prisco. Atribuí o fato a meus nervos descontrolados, mas aproveitei a ocasião e disse-lhes que cavoucassem. Vinte pés abaixo da superfície, topamos com uma impetuosa corrente subterrânea que atravessava diretamente o centro da aldeia. Não posso descrever a cena alucinante que então se passou, pois já me pusera de joelhos, recitando o décimo quarto Salmo; mas, de então em diante, nunca mais nos faltou água, e foi aí que fiz meus primeiros conversos.
Houve um burburinho de interesse e apreciação, uma reação espontânea que foi uma quente carícia nos ouvidos de Moray. Já agora sócio declarado dessa esplêndida empresa, ele lançou a Kathy um olhar significativo.
Enquanto isso, Willie prosseguia descrevendo o progresso ulterior da Missão, a lenta e dolorosa subida, das trevas para a luz, de uma tribo selvagem e isolada. Houve obstáculos, naturalmente, e alguns péssimos desastres. A igrejinha primitiva incendiara-se, e quando ele, já dominando a língua, quis mudar os ritos tribais de iniciação - nos quais os rapazes e as moças eram sujeitos a indescritíveis torpezas - atravessou uma fase difícil. Não fosse a intervenção de Tshosa, e a Missão inteira teria sido destruída. Assim mesmo, três de seus conversos foram mortos, e houve várias tentativas contra a sua vida. No ano seguinte, um missionário sueco, seu vizinho mais próximo (coisa de umas noventa milhas de distância...), foi assassinado juntamente com a mulher e duas filhas pequenas - todos eles decapitados. Era tão difícil transformar os corações de homens afeitos à brutalidade e à carnificina, que ele resolvera concentrar-se nas crianças. Ensinando-as logo cedo, podia obter resultados positivos, e por essa razão construíra uma escola, e, mais tarde, um orfanato. Exibiu vários slides de crianças agrupadas
em redor de Daniel, o catequista, agora homem velho. Eram fotografias comoventes que levaram Leonora a exclamar:
- Meu Deus... como é divinamente patético o branco de seus olhos!
- É porque a maioria deles teve tracoma. Conforme pode ver, alguns dos rostos estão até marcados com escaras de bexiga.
- Quer dizer que o distrito não é muito saudável? - perguntou alguém.
- Infelizmente, não. A malária ainda é endémica, a doença do sono também, e há um bocado de amarelão e filariose na região, e, esporadicamente, até mesmo algum caso de lepra.
Por conseguinte, a maior necessidade era mesmo um hospital, e - dirigiu um sorriso a Moray - ele esperava ter um logo. O tratamento médico adequado seria um grande benefício. Assim mesmo, após quase vinte anos de aturado labor, não se envergonhava dos resultados conseguidos: uma igreja de pedra muito bonita, a escola, o orfanato, a Casa da Missão - que os filmes iam mostrando - tudo era muito diferente do primitivo barraco de barro. Possuía agora uma igreja com trezentos membros praticantes, além de quatro catequistas e vários postos avançados na mata, que ele, com o seu jipe, visitava alternadamente todos os meses. Desnecessário dizer que ainda sofriam dificuldades. Preocupava-o a situação que - poderia evoluir - reinante na vizinha província de Kasai. Se a autoridade civil enfraquecesse, agora que os belgas estavam de partida, poderiam ocorrer desordens. E eles estavam muito próximos; de fato, dois de seus mais recentes postos avançados ficavam do outro lado da fronteira. Até ali, nada acontecera digno de menção, mas, devido à possibilidade de tumultos, ele precisava regressar rapidamente à Missão, para o caso de precisarem dele.
- E isto - disse Willie, com um sorriso de quem pede desculpas, olhando para o relógio - é mais ou menos tudo quanto tinha a dizer. Só espero não os ter aborrecido demasiado, e que os ouvintes me perdoem por lhes ter tomado grande parte do tempo.
Quando ele concluiu, houve cordial aplauso, tributo ligeiramente mesclado com uma nota de apreensão com que a conferência terminou. Animado pela aprovação geral que, mediante a sua inclusão no plano da reforma médica, de certo modo se lhe aplicava, Moray agarrou a oportunidade e
levantou-se. Normalmente, ele era um orador fluente, mas agora estava constrangido, quase humilde. Todavia as palavras jorraram.
- Creio falar por todos nós... ao apresentar os nossos mais calorosos agradecimentos a este amigo pela sua palestra reconfortante e comovente. A obra por ele empreendida foi sumamente corajosa e altruísta... uma ação épica de humanitarismo. Diga-se de passagem - acrescentou, procurando abrir um parêntese humorístico - que, se os presentes quiserem demonstrar a sua apreciação de uma forma mais tangível, há no salão uma bandeja para esse fim. E agora - prosseguiu rapidamente - se me é lícito abusar mais um pouco da paciência dos ouvintes, eu gostaria de acrescentar, à margem do que foi dito, algo pessoal. - Fez uma pausa, quase vencido pela onda de sentimento que o invadiu. - A verdade é que... é que tomei uma decisão que poderá surpreendê-los... mas que, espero, vocês compreenderão.
Um indisfarçável movimento percorreu a assistência.
- Poderão imaginar que se trata de uma decisão repentina. Mas não é assim. Embora eu tenha sido feliz aqui, sempre senti uma certa instigação, um ímpeto, pode-se dizer assim, para uma vida mais ativa e mais útil, onde eu possa utilizar os meus conhecimentos de medicina, não pelos proventos, mas a fim de praticar o bem. E de que maneira extraordinária essa intenção foi levada a efeito! logo no início do mês passado, aconteceu que me senti impelido a visitar minha terra natal. Ali, entrei em contacto com uma família que conhecera e amara na minha mocidade - para resumir, uma família da qual são membros Kathy e Willie. Eu não conhecia Kathy, por isso a alegria de descobri-la foi a maior possível. Willie já era meu conhecido de outros tempos. Ele e eu, naquela época, éramos amigos - ele, ainda rapazinho, e eu, um estudante irrefletido, se bem que ambicioso; e muitas vezes, durante nossas longas conversas, ele me fez vibrar mediante o seu ardente entusiasmo pela vida missionária. Agora completou-se o círculo. - Fez uma pausa, e tão comovido estava que mal pôde continuar: - Meus amigos, não quero
fatigá-los com a história da regeneração de uma alma. Simplesmente direi que vou com Willie para a Missão, na qualidade de médico; e Kathy, a minha querida Kathy... - e encaminhou-se para junto do projetor onde ela estava e enlaçou-a pelos ombros - também lá estará, como minha esposa que vai ser.
O que de fato se seguiu foi uma reação extraordinária em forma de silêncio imediato, logo interrompido por uma súbita explosão. Todos se levantaram atropeladamente e começaram a falar ao mesmo tempo. Congratulações choveram sobre Moray, houve apertos de mão, as senhoras comprimiram-se ao redor de Kathy.
- Mais champanha - berrou Stench. - Um brinde para a noiva e o noivo!
Trouxeram o champanha e ergueu-se o brinde. Até parecia que a reunião ia recomeçar. Entretanto, mais animadora do que tudo foi a discreta aceitação por Madame Altishofer do fato consumado. Ele temera por dificuldades, alguma demonstração de despeito ou desagrado. Mas não, o comportamento da amiga foi perfeito: para ele, um sorriso de congratulações, talvez tocado de uma pontinha de indisfarçável tristeza; para Kathy, um beijo na face.
Meia hora depois, quando os outros começaram a sair, e ele, de pé no saguão, fazia as despedidas, Frida parou para dizer-lhe uma última palavra.
- Caro amigo, muito me alegra a sua felicidade. A garota é adorável. Tudo isso - e o céu também, mais a esplêndida obra da Missão.
- Você é bondosíssima, Frida.
- É, eu pressenti que íamos perdê-lo, e isso já quando me achava em Baden e você não escrevia.
- Você sempre foi intuitiva - disse ele com certa reserva.
- Desgraçadamente, sim. Mas tudo já passou. Agora é hora de sermos práticos, de mostrar quanto vale uma amiga verdadeira, que também é, como você diz, realista. Seu deménagemeni em prazo tão curto será um tanto difícil. Vai precisar de auxílio e eu posso dá-lo, se você quiser. Sua garota me disse que partirá amanhã com seu maravilhoso Willie. Eu gostaria de voltar aqui, mas você vai para o aeroporto, não é? Pois bem: que me diz se eu voltar depois de amanhã?
- Você é muito atenciosa - disse ele, percebendo, após um instante de reflexão, que nada podia ser mais oportuno: ela era tão capaz, e ele já começara a apoquentar-se com a complexidade dos arranjos que teria de fazer. - Ficarei à sua espera. E muito obrigado.
Ela sorriu e cruzou a porta.
Imediatamente ele correu para reunir-se a Kathy e a Willie no salão. Levou consigo a bandeja que estava sobre a mesa do vestíbulo.
- Que tal? Não foi um sucesso? - perguntou alegremente.
- Tudo correu tão bem - disse Kathy, ruborizada e feliz.
- Também pensa assim, Willie?
Willie confirmou, sacudindo a cabeça. Estava sentado e parecia exausto.
- Todos foram muito bondosos.
- Vejamos em que medida - disse Moray em tom malicioso. Estava tremendamente animado. com um ar de conspirador, estendeu a bandeja para Kathy, e enquanto ela a segurava, começou a contar o dinheiro. Havia uma respeitável pilha de notas de cinquenta e de cem francos - e uma moedinha de dois francos.
- Aposto que é da pequena Gallie. - E Moray soltou uma risada.
- Pois tem um grande significado - disse Willie, inesperadamente.
- Oh, sim - concordou Kathy, entusiasmada, - Gostei mais dela do que das outras. - Houve uma pausa, depois Kathy acrescentou: - Não se esqueceu de um pedaço de papel que ficou no fundo?
- Será que esqueci? Santo Deus, não me diga que alguém colocou na bandeja um cheque sem fundos! Olhe só, Kathy.
Ela olhou o cheque e ficou sem fala; depois estendeu-o a Willie, e olhou calada para Moray. Então, passou-lhe subitamente os braços em torno do pescoço e beijou-o.
CAPÍTULO QUINZE
No dia seguinte, às duas da tarde, Moray chegou de volta de Zurique, ainda um tanto deprimido pela partida de Kathy e Willie, mas cheio de resolução. Mais dez dias, e ele se reuniria a ambos no aeroporto de Londres. Tinha muito que fazer em tão curto prazo. A necessidade de ação imediata era imperiosa. Ao entrar em casa (depois que os convidados partiram, dera a Arturo e Elena uma tarde de licença), sentiu-se satisfeito com a promessa de auxílio por parte de Madame Altishofer: esperava que ela não deixasse de aparecer na manhã seguinte.
Sentado em seu estúdio, mal começara a abrir a correspondência quando, para surpresa sua, ouviu o ruído do pequeno Dauphine de Frida na aléia. Abandonando, sem os abrir, o Jornal de Medicina Tropical, do qual acabava de tomar uma assinatura, e um pacote contendo material de acampamento de nylon extraleve, que prometia ser interessante, Moray correu ao encontro dela.
- Vim muito cedo? - Falava com muita animação, e seu aspecto era extraordinariamente eficiente. Vestia uma saia de linho cinza e um paletó de tricô de lã. - É que eu o vi passar na perua e não quis esperdiçar a tarde.
- Tem toda a razão - concordou ele calorosamente, indo à frente dela para a biblioteca. - Há tanto o que fazer... Quanto mais cedo começarmos, melhor.
- Diga-me então, aproximadamente, quais são os seus planos. - E
sentou-se, não na cadeira, mas no braço da mesma, mostrando-se pronta para agir imediatamente.
- A villa, naturalmente, será vendida. Arturo e Elena mudar-se-ão para o chalé; ficarão como guardiães da propriedade, até que a mesma seja vendida.
- E suas coisas?
- Os quadros e a baixela irão provisoriamente para o banco. Seu último destino ficará nas mãos do meu advogado. Stieger é um homem digno de confiança. A mobília e os livros podem ficar aqui mesmo, temporariamente... Estarão em segurança uma vez que se feche a casa.
- Ah, estes admiráveis livros! - exclamou ela olhando as duplas filas de finíssimas encadernações de Sangorski. - Não pode abandoná-los assim, numa casa fechada... Criariam mofo... Devem ser todos embrulhados separadamente, e isso eu poderei fazer...
- Arturo... - começou ele.
- Não, não é preciso. - E levantou-se sorridente. - Ele já tem bastante o que fazer. E está tão abalado com a sua mudança, que não é capaz de executar qualquer serviço extraordinário. Além disso, adoro livros. Meu pai teve uma famosa livraria em Kellenstein. Portanto, vá tratar de seus afazeres e deixe isto comigo. - E enquanto ele se encaminhava para a porta, ela acrescentou, cheia de tato, mas com um olhar a um tempo irónico e aprovativo: - A propósito, suponho que leu o artigo de Stench no Tageblaít.
- Ainda não li os jornais de hoje. Que artigo?
- É um trabalho acerca de sua recepção em prol da Missão, mas fala muito em você... e na sua coragem de ir para lá, a despeito das guerras entre as tribos. É muito elogioso.
Moray enrubesceu de contentamento, pensando em seus amigos de Melsburg e em tantos outros do cantão, que agora iam saber coisas ditas a seu respeito nos jornais.
- Archie é um tipo cacete - disse ele. - Embora no fundo tenha bom coração. Espero que não tenha exagerado. E que guerras são essas entre as tribos?
- Parece que uma revolta, provavelmente nada mais do que a inquietação geral descrita por seu amigo na conferência. E agora diga-me onde posso encontrar algumas resmas de papel de embrulho.
- Na copa. Elena tem pilhas dele dentro do armário.
Quando ela saiu, ele apressou-se, dando início à sua primeira tarefa importante: o inventário de suas antiguidades. Era coisa de que gostava muito, e enquanto andava pela casa de caneta e papel na mão, anotando uma peça aqui, outra ali - a papeleira de laca vermelha Carlos II, adquirida na Antique Fair, em Londres, a secretária, singularmente delicada, estilo Rainha Ana, e mencionada na famosa obra de Macquoid A Época da Nogueira, as poltronas Luís XIV, que ele arrematara com tanto êxito nas Galerias ParkeBernet - uma onda de recordações, uma agridoce nostalgia o invadiu. Era-lhe difícil separar-se daquelas dispendiosas bagatelas; entretanto, nunca se sentira tão sublime, tão convencido do mérito da renúncia. Archie Stench tinha razão. O que ele fazia era algo que em verdade valia a pena.
A lista ainda não se completara, quando, às cinco horas, Madame Altishofer foi encontrá-lo cismarento diante do bufete isabelino da sala de jantar.
- Hora do chá - anunciou ela.
Ele olhou-a.
- Já acabou?
- Ainda não. Só os livros tomarão pelo menos outra metade de um dia. Mas os que trabalham no mundo precisam comer. Por isso tomei a liberdade de preparar alguns amarettis...
A pausa era em verdade muito bem-vinda.
- Que deliciosas bolachas! - observou ele. - Nunca a associei às virtudes domésticas.
- A gente as aprende por necessidade... também mediante desilusões, das quais muito sofri. Sirva-se de mais uma.
- Não devo. - E esboçou um sorriso súplice. - Tenho a impressão de que estou ficando preso aos prazeres da mesa.
- Que tolice - disse ela animadamente. - Especialmente agora, para ganhar forças, deve comer bem. Só Deus sabe a dieta horrível que terá de fazer lá!
- Quanto pior, melhor. Tomei muito mingau na minha juventude.
- Na sua juventude... Sim, querido amigo - e ela sorriu com benevolência. - Mas... e agora?
Um breve silêncio se fez após esta observação, durante o qual ela passeou o olhar pela sala ainda não vazia, para afinal pousá-lo no encantador pastel de Madame Melo e a filha.
- Lembra-se daquela tarde em que me mostrou o Vuillard? Parece que foi ontem; no entanto, quanta coisa aconteceu desde aquele
dia! Prometa-me conservar os quadros na parede até ao último momento. Muitas vezes me disse que não poderia viver sem eles, e que certamente nunca os venderia. - Nisto, ocorreu-lhe uma ideia. Ela hesitou, desviou o olhar dele, depois fitou-o, para enfim exclamar impetuosamente: - Será mesmo preciso você vender a casa? Não poderia conservá-la como está, assim como uma espécie de casa de descanso para onde pudesse voltar quando achasse necessário? Caro amigo, você preocupa-me; e a última coisa que desejo é vê-lo apanhar uma daquelas horríveis moléstias tropicais que arruinaram a saúde do pobre Willie... E que rosário ele desfiou! Malária, doença do sono, lepra e o resto... O coitado parece sofrer de todas essas doenças ao mesmo tempo... Enfim, como eu ia dizendo, se você contrair alguma doença séria, pelo menos terá um lugar garantido num bom clima, para a convalescença e a recuperação..
Ele olhou-a, primeiro de testa franzida como se duvidasse, depois com uma expressão meditativa. Tal ideia nunca lhe ocorrera; todavia, à primeira vista, parecia ter um mérito considerável. Por que vender a casa com cega precipitação? Não tinha a menor necessidade de dinheiro. Além disso, se desse tempo ao tempo, mercê do valor crescente da propriedade, sem dúvida teria garantido um melhor preço. Mas não, não: isso apenas significava contemporizar, utilizar-se de panos quentes - método perigoso em qualquer época. Partiria para sempre, nunca mais voltaria. Sacudiu a cabeça num gesto resoluto.
- Não, prefiro acabar com isto definitivamente.
- Talvez tenha razão. Você sempre vê as coisas com clareza, nunca pensa em si mesmo. Errei, fazendo-lhe uma proposta tão inócua, mas isso é porque só penso em você. Deus sabe que, enquanto você estiver por lá, nunca deixará de preocupar-me.
- Mas por quê, Frida? A Missão não é assim tão horrorosa!
- Ah, meu bom amigo, por ser corajoso e forte não deve simular, só para tornar a separação mais fácil para mim. Compreende melhor do que eu os perigos que ali o esperam. Ontem de noite, só de pensar naquela pobre família sueca decapitada, não pude dormir. Se uma morte tão cruel sobrevêm a um homem com tantos anos de serviço, o que não poderá acontecer a você, um simples recém-chegado?
Ele fitou-a com irritação, até mesmo com uma ponta de grosseria:
- Pelo amor de Deus, Frida, não exagere!
- E será exagerar, contar-lhe os pensamentos de uma noite mal dormida? Inda se fosse só isso, eu seria feliz! E, além das febres,
não há também no jângal animais selvagens, sol causticante, chuvas torrenciais, e, pior que tudo, essa perturbação no Congo? Diz Stench que ela começou e deverá espalhar-se. E você vai ficar tão perto! Mas por quê essa tolice minha de falar sobre coisas que você já sabe? - E levantou-se abruptamente. - Trabalhar... trabalhar... eis o que devemos fazer para não pensar um só momento no futuro. Há nas prateleiras mais altas da biblioteca alguns livros que não posso alcançar. vou encostar o carrinho de chá; depois quero que você me ajude. Logo após já será tempo de eu voltar a Seeburg.
Moray encaminhou-se lentamente para a biblioteca, de testa franzida e vagamente contrariado, não com ela (ninguém tomaria mais a peito seus interesses), mas com a maneira pela qual ela apresentava o já sabido. Como se ele ignorasse o que o esperava... Absurdo! Os livros que ela mencionara eram principalmente as edições especiais da série Paragon de obras de arte, e, embora estivesse de olhos voltados para eles, Moray não os via, tal o seu alheamento. Afinal, com um ligeiro sobressalto, voltou a si, decidido a não ir buscar a escada no porão, mas trazer, em lugar dela, o comprido escabelo guarnecido de renda irlandesa que ficava em frente da lareira. Galgando-o, ergueu o braço, e, um a um, começou a transferir os pesados volumes acolchoados e de vistosos fechos para uma prateleira inferior, mais acessível. Estava quase acabando, quando ela apareceu e ficou a observá-lo.
Só restavam três livros na extremidade da prateleira mais alta. Cheio de pressa, Moray entortou o corpo para o lado e apanhou os três volumes. Mas, no esforço que fez para levantá-los, perdeu o equilíbrio, e, segurando-os ainda acima da cabeça, foi obrigado a dar um passo rápido atrás, pulando, são e salvo mas ruidosamente, para fora do escabelo.
- Que sorte! - exclamou ela, elogiando-o. - Escapou com grande destreza!
- É... - disse ele, apertando os lábios - mas parece que torci a espinha.
- É que você pulou com certa brusquidão. É melhor sentar e descansar um pouco.
Ele sentou-se cautelosamente na ponta do escabelo e, premindo a mão contra a parte afetada, observava Frida enquanto ela embrulhava os livros.
- E agora, está melhor? - indagou ela quando acabou.
- Não muito... Mas não é nada: vai passar.
- Se não passar, deverá fazer um exame. Hoje de noite tome uma aspirina e mande Arturo fazer-lhe uma massagem. Tem aí algum linimento analgésico?
- Acho que há um no armarinho de remédios.
Ela continuou a observá-lo com solicitude, a cabeça inclinada para um lado.
- Preferia não deixá-lo... Mas não se esqueça: analgésico e aspirina, depois de um bom banho. Não, fique aí mesmo: não é preciso acompanhar-me. E... até amanhã; digamos... às dez horas?
Ele confirmou com a cabeça, fazendo o menor movimento possível; e, depois que ela saiu, ainda permaneceu ali sentado por vários minutos, sondando as costas com um dedo investigador. Então, como tudo parecesse intacto, levantou-se e, embora com dificuldade, começou a locomover-se. O inventário estava completo; agora, precisava apenas marcar um encontro com seu advogado. Dirigiu-se para o telefone, e ligou para o número de Stieger. Respondeu a jovem secretária, com aquela cadência cantada que os suíços locais emprestavam ao inglês que haviam aprendido nos bancos escolares.
- Sinto muito, Sr. Moray... Herr Stieger está em Munique.
- Quando volta?
- Sábado de manhã... Mas, se o caso é urgente, telefonarei para Herr Stieger.
Moray pensou rapidamente.
- Sábado? Está bem. Marque uma entrevista para as onze da manhã.
- Pois não, Sr. Moray. O recado será dado.
Moray afastou-se do telefone gingando - algo pouco prudente, que o levou a uma contração de dor. Que aborrecimento, a ausência de Stieger! Queria que tudo se fizesse depressa, com a maior rapidez possível. Seu estado de ânimo anterior - cheio de força e confiança - quase roçando pela exaltação, sofrera um colapso. Tinha saudades de Kathy, do contacto de seus lábios e de seu meigo olhar estimulante. Para quem sempre apreciara ficar, só, agora era estranho o desagrado que sentia ante a solidão. Se ao menos Madame Altishofer não tivesse sido obrigada a sair correndo - que ajuda significava para ele a sua presença naquela emergência! A ideia de um jantar solitário não o seduzia; além disso, acreditava que devia, no seu próprio interesse, recolher-se cedo. Chamou Arturo, ordenou-lhe que preparasse uma bandeja e a levasse para o estúdio; explicou-lhe que precisava de uma massagem antes de dormir, e em seguida, passando
por entre as pilhas de livros embrulhados, ligou o rádio para o programa noturno da B.B.C. Andava ultimamente tão preocupado com seus negócios que nem mesmo escutava o jornal falado. Era porém demasiado tarde, e uma voz anunciou:
- E aqui termina o nosso noticiário.
Soltando uma exclamação desligou o rádio e subiu a escada, lembrando-se de que comprimidos de vitaminas...
CAPÍTULO DEZESSEIS
NA manhã seguinte, às dez horas em ponto, a campainha da porta tocou, e Arturo com uma expressão mais enigmática do que a habitual, introduziu Madame Altishofer na sala de visitas, onde Moray, sentado no sofá em frente à papeleira holandesa aberta, contemplava pensativamente a sua coleção de porcelana chinesa.
Depois de a cumprimentar e rogar-lhe que o escusasse por continuar sentado, Moray fez um gesto eloquente com a mão.
- A fútil tirania dos bens materiais! Tudo isto vai ser embalado. Quando as adquiri com tanto prazer - e são todas autênticas peças K'hang Hsi - mal podia imaginar que viessem a causar-me um transtorno destes.
- Deixe que eu trato disso - disse ela, tranquilamente. - Para que não o amolem... Mas primeiro diga-me: como vão as costas?
- Não pioraram, embora eu tenha dormido pessimamente. Parece entretanto que adquiri uma singular espécie de coxeadura...
- Coxeadura?
- Da perna direita, quando ando.
- Então precisa imediatamente mandar examinar isso.
- Não - respondeu ele, recusando a sugestão. - Não pode ser coisa séria. Esperarei mais um dia.
E, afastando-se da papeleira, surpreendeu o olhar dela pousado nele com uma expressão tão preocupada, que teve um sobressalto.
- Aconteceu alguma coisa, Frida?
- Não, não - disse ela depressa, com um sorriso forçado. - Estava pensando no seu mal. Espero que possa comparecer à reunião desta tarde.
- Que reunião?
- Ora! A de Leonora, naturalmente.
- Não me disseram nada...
- Mas certamente foi convidado. Vamos todos - todos os da nossa roda. Seria um equívoco, se se esquecessem de você. Vai comigo,
não é?
Ele mordeu o lábio, aborrecido porque o deixaram de fora nesta hora derradeira... Era como se já o considerassem letra morta.
- Não tenho tempo: estou muito ocupado. A reunião-conferência que realizei foi meu canto de cisne. Já não me interessam as frívolas bobagens de Leonora.
- Sinto muito, meu amigo. Compreendo que aqui tudo se acabou para você, que de agora em diante precisa procurar companhia no lugar para onde vai, se isso for possível entre aqueles... aqueles selvagens.
- Terei a companhia de Willie e de minha querida esposa - disse ele com rispidez. - E a minha missão consiste em civilizar aqueles selvagens.
- Claro! E será muito feliz! - disse ela num tom conciliatório. - Ainda assim, três pessoas constituem um grupo muito limitado, depois da interessante sociedade à qual se habituou. Mas, por ora, chega: você já tem muito com que se preocupar. vou acabar de arranjar os livros. Mais tarde, talvez amanhã, tratarei dos objetos de porcelana.
Bolas, que havia com Frida? - perguntou a si próprio quando ela saiu da biblioteca. Na véspera, apresentara-se radiante e enérgica; hoje, tinha o olhar anuviado de melancolia... Achava inexplicável a mudança de sua atitude e disposição de ânimo.
Ao fim da manhã, ele se afastou um instante da escrivaninha, onde estivera ocupado com a liquidação de todas as contas por pagar, para dar uma espiada na biblioteca - aparentemente, para inspecionar a atividade de Frida, mas, na realidade, para verificar se ela estava mais bem-humorada. Não estava; em verdade, até piorara.
- Há qualquer coisa com você, Frida - disse ele ao vê-la.
Ajoelhada junto à prateleira inferior, ela endireitou o corpo, mas sem olhar para Moray.
- Não, não... não há nada comigo.
O tom evasivo de sua voz era apenas aparente. Ao almoço - foi só para poupar tempo que ela consentira em ficar para uma refeição mais leve - ele fez o que pôde para dissipar-lhe a melancolia.
- Não come nada, Frida. Aceita um pouco desta salada?
- Não, obrigada.
- E outra fatia de galantína?
- Nada mais, obrigada. Hoje estou sem apetite.
- Nesse caso, se já acabou, vamos descansar um pouco no terraço. O sol está hoje muito forte.
Decididamente, estava quente lá fora, e Wilhelm varrera a neve, levando para o local as cadeiras de jardim. Ambos se sentaram de frente para o maravilhoso perfil dos Alpes.
- O panorama que você desfruta daqui é o mais belo em toda a Suíça - murmurou ela. - Panorama que desfrutará pelo menos mais alguns dias...
Fez-se um silêncio. Depois, pensando agradar Frida, possivelmente abrandá-la, Moray disse:
- Espero que você compreenda, Frida, que a terei sempre na mais alta consideração.
- Terá mesmo?
- Sempre. Além do mais, Frida, não aceito o seu auxílio como coisa que me seja devida. Gostaria que você escolhesse como lembrança algum objeto da minha coleção.
- Você é generoso, meu amigo, mas não me importo com lembranças. Elas sempre me entristecem.
- Mas insisto: escolha uma.
- Está bem: desde que deseja que me entristeça, entristecer-me-ei profundamente. Dê-me a pequena fotografia que está do lado direito de sua escrivaninha.
- Refere-se ao instantâneo de nós dois em Reisenberg?
- Exatamente. Guardá-lo-ei como lembrança.
- Minha cara Frida - disse ele com um sorriso de censura - você fala em estilo de artigo necrológico!
Ela lançou-lhe um longo olhar sombrio.
- Não é de surpreender. - E, como a sua reserva se desfizesse, acrescentou: - Mein Gott, como estou triste por você! Não queria
mostrar-lhe isto, mas é preciso que você fique sabendo.
Frida tirou da sacola um recorte de jornal e estendeu-o a Moray. Ele reparou que o mesmo fora extraído do Daily Echo, jornal que ela comprava raramente, e onde se lia o seguinte Título: MASSACRE NO CONGO: QUINHENTAS PESSOAS MORTAS.
Correu depressa os olhos pelo telegrama:
"Ontem à noite, na Província de Kasai, onde, nas últimas semanas, houvera indícios de que a agitação fermentava, irrompeu finalmente uma guerra tribal. A aldeia de Tshilenge foi vítima de um ataque não provocado, por parte
dos Balubas, e duas vezes mudou de mão durante a luta, sendo enfim incendiada e destruída. Calcula-se que quinhentos mortos jazem sob as palmeiras e bananeiras devastadas."
- Agora - disse ela - você já sabe o lugar para onde vai.
Ele ergueu os olhos e encontrou os dela, que o fitavam fixamente. Moray não ficou nem um pouco abalado; estava firme, fortificado, dir-se-ia até empedernido em seus propósitos.
- Frida - disse ele friamente - eu sei muito bem que nestes dois últimos dias você vem tentando dissuadir-me da viagem - sem dúvida, na melhor das intenções. Creio porém que não faz ideia de quão profundamente estou apaixonado. Sei perfeitamente que as condições do lugar são péssimas. Assim mesmo, sigo para lá. Seguiria Kathy até aos confins da terra.
Ela apertou os lábios.
- Sim, meu amigo - disse com um suspiro. - E não será sempre assim, quando um homem mais velho se apaixona por uma moça? E o fim é sempre trágico... Isto me faz lembrar aquele grande filme alemão, O Anjo Azul...
Ele corou de indignação.
- As circunstâncias não se comparam de forma nenhuma.
- Não - aquiesceu ela com voz sumida. - O velho professor apenas foi ao circo, enquanto que você vai.. .- E Frida voltou a cabeça, tapando o rosto com a mão para esconder seus sentimentos. - Sim: sinto-o no fundo do coração... Você vai... - e sem poder dizê-lo, simplesmente acrescentou com voz fraca: - ...para algo muito pior.
Uma resposta azeda subira aos lábios de Moray, mas, respeitando a desventura da mulher, abafou-a a tempo. Frida sempre escondera o que sentia; as lágrimas jamais foram o seu meio de expressão, mas não havia dúvida de que estava transtornada. Sentado ereto na cadeira, ele olhava em frente para os picos longínquos, toucados de neve; e finalmente, num gesto submisso, mas ainda com o rosto voltado, ela levantou-se.
- Meu amigo, já não posso fazer mais nada hoje. Voltarei amanhã.
- Sinto muito - murmurou ele, desorientado com aquela súbita partida. - Precisa mesmo de ir?
- Sim. Até amanhã. Se tenho de visitar Madame Schutz e os nossos amigos, devo antes recuperar a calma.
Ele não insistiu mais, acompanhou-a até ao carro e esperou até que morresse ao longe o ruído do Dauphine. Depois fechou o portão
e voltou coxeando para casa. Atentamente, tornou a ler, palavra por palavra, o recorte de jornal; depois rasgou-o num gesto resoluto.
Durante toda a tarde prosseguiu nos seus preparativos, mas sempre com um olho no relógio. Às cinco horas devia telefonar para Markinch, a fim de falar com Kathy, onde ela era hóspede da Missão; haviam combinado esse telefonema antes que ela partisse. Depois de todos os problemas e contrariedades dos dois últimos dias, como estava ansioso por falar com ela!
Após uma rápida xícara de chá, dirigiu-se para o telefone, ligou para o interurbano e deu o número do Pastor Fotheringay. Havia pouco movimento na linha, e em dez minutos completou-se a ligação. Para seu grande prazer, foi a própria Kathy que atendeu; isso, naturalmente, porque estava sentada junto ao telefone, aguardando a chamada.
- Kathy, é você? Como vai, querida?
- Muito bem, David. E horrivelmente ocupada. Foi uma sorte você ter-me encontrado. Agora mesmo estava de partida para Edimburgo.
Levemente arrefecido em seu ânimo, ele perguntou:
- Que tem feito?
- Oh, uma porção de coisas... aprontos para a partida... como você, suponho.
- Sim, também tenho estado muito ocupado. A hora se aproxima ...
- É verdade. E eu estou tão feliz e emocionada! vou lhe enviar pormenores do lugar do nosso encontro em Londres, tão logo tenha um minuto livre para escrever.
- Pensei que já me tivesse escrito, querida.
- É mesmo? Eu tinha pensado que, como nos encontraríamos logo... Por outro lado tio Willie preocupa-me. Está com um febrão desde que chegamos, e hoje à noite deve pronunciar uma conferência.
- Sinto muito - disse ele quase que por simples formalidade, pensando em seus próprios males. - Dê-lhe lembranças.
- Darei, sim, David. E vou escrever hoje de noite, assim que regressarmos de Edimburgo.
- Não quero obrigá-la a isso, Kathy.
- Mas David... - E Kathy interrompeu-se. - Está zangado?
- Não, querida. Mas confesso que me sinto muito só. Nem tudo corre bem aqui. Levei um tombo e machuquei as costas. Estava
ansioso por receber notícias suas, nem que fosse uma só palavrinha dizendo que você sentia falta de mim...
- Mas claro, querido, que tenho sentido falta de você... - A voz embargada de Kathy tornava as palavras indistintas. - ...Ê que tão ocupada, e com tio Willie doente... eu não pensava...
- Está bem, querida - disse ele, abrandado pela aflição da moça. - Mas se Willie está tão doente, como poderá partir para a África no dia vinte e um?
- Pode, sim, David - respondeu ela, confiante. - Nem que tenha de ser levado para o aeroporto numa padiola.
Como se ele fosse útil nesse estado, pensou Moray com certo azedume; logo em seguida, todavia, arrependeu-se, pois gostava de Willie.
- Decerto você já soube da luta de Kasai, não?
- Sim, e a coisa pode ficar feia. Mas já esperávamos por isso. Agora preciso ir-me, querido. O ônibus chegou. Tio Willie está lá fora, chamando por mim.
- Ouça, Kathy...
- Se eu não for já, perderemos o ônibus, e tio Willie chegará atrasado para a conferência. Por ora, adeus, querido David... logo nos tornaremos a ver.
E desligou, ou, pelo menos, fora obrigada a fazê-lo, deixando-o desapontado e com uma desalentadora impressão de pouco caso. Quão pouco satisfatória fora aquela conversa, com Kathy atribuindo tanta importância a Willie e tão pouca a si, Moray! Não, não, não devia pensar assim; e rapidamente baniu da ideia aquele ciúme indigno. Kathy amava-o; a pobre garota vivia simplesmente atropelada e preocupada, e as conversas por telefone nunca eram satisfatórias. Encontrou várias razões para
desculpá-la, mas, sem nenhuma lógica, a sensação de que fora menosprezado persistiu, gravou-se-lhe no espírito e aí ficou a noite inteira.
À hora de dormir, como ainda estivesse perturbado, resolveu tomar uma pílula para adormecer - coisa que deixara de fazer nas últimas semanas. Quinze centigramas de Soneryl, seguidos de um copo de leite quente, levaram-no a mergulhar num profundo sono que deveria durar pelo menos seis horas. Mas infelizmente o sono foi estragado, em verdade interrompido, por um sonho pavoroso e ao mesmo tempo ridículo.
Viu-se deitado numa cama-de-vento, atrás de altos e negros rochedos. O ar, vibrante com o zumbido de insetos, era insuportavelmente quente - dir-se-ia o calor húmido de uma noite tropical. A escuridão
reinava por toda a parte, todavia ele podia ver, se bem que vagamente, e em breve percebeu a forma alta e indistinta de um homem de pé, à distância de alguns passos, olhando para a frente. O homem vestia camisa e calças caqui, e suas botas eram curtas, de borracha. Embora seu rosto permanecesse invisível, ele sabia que o homem era Willie. Quis chamá-lo; mas, ainda que seus lábios formulassem as palavras, não saía som algum. De repente, para seu horror, viu três animais enormes saindo do mato. Eram três leões - pelo menos tinham o tamanho e a forma de leões - mas algo sobrenatural lhes fora acrescentado, emprestando-lhes uma ferocidade que o deixou paralisado. Atrás dos animais, uma fila de guerreiros dos Abatus avançava com suas lanças, seu perfil recortando-se na treva mais além. Debalde tentou erguer-se. Queria fugir; queria fazer qualquer coisa para escapar àquele duplo perigo... o esforço inútil alagara-o em suor. Quando se deu por perdido, o homem que era Willie começou a rir, e, apanhando uns pedregulhos, atirou-os a esmo na direção dos leões, tal como um menino atira num gato sobre um muro. Imediatamente as feras estacaram, um momento hesitaram, depois tornaram a avançar atropeladamente.
- O Senhor é meu pastor - disse Willie. - Far-se-á mais tarde uma coleta de moedas de prata.
Imediatamente, cessou a carga. Os leões fizeram meia volta e se sentaram sobre as patas traseiras numa atitude suplicante, enquanto os soldados negros se puseram a bater passo ao ritmo das mãos. Depois, numa desafinação parecida com a do coro de Markinch, entoaram aos berros o Avante, Avante, ó Crentes!
A visão grotesca e ridícula cessou repentinamente. Moray quis rir, soltar urros e gargalhadas, e afinal deu um berro que o despertou.
Exausto, mas aliviado pela realidade do quarto, ficou algum tempo meditando sombriamente sobre as razões daquela fantasia absurda e dolorosa. E o mais grave de tudo era o seu próprio comportamento. Seria ele assim tão fraco? Não, de modo nenhum. Cerrou os dentes e continuou refletindo. Obviamente, concluiu ele, tratava-se de um conflito subconsciente, entre a admiração que tinha pela vida heróica e de
auto-sacrifício de Willie e a antiga indiferença dele próprio, Moray, com respeito à religião. Isto deduzido, ergueu-se. O mostrador luminoso de seu relógio Gubelin de cabeceira assinalava três horas. Tateando o corpo, despiu o húmido paletó do pijama, e, depois de friccionar-se vigorosamente com uma toalha, vestiu outro pijama e voltou para a cama. Agitado, debateu-se no leito por mais de uma hora, até que enfim adormeceu.
CAPÍTULO DEZESSETE
TENDO dormido mal, Moray despertou, na manhã seguinte, amargamente irritado consigo próprio. Levantou-se apressado, impelido por uma sensação de vergonha, aceitando como uma penitência o mal-estar da espinha deslocada, que agora parecia ter piorado sensivelmente. Vagando pela casa, esperando nervosamente por Madame Altishofer, examinou e tornou a examinar os preparativos: o inventário estava completo, os papéis em ordem, o banco fora avisado, sua entrevista com Stieger definitivamente marcada para o dia seguinte. Mas ainda restava alguma coisa para empacotar. Impaciente, os ouvidos atentos ao ruído do Dauphine, olhou para o relógio: mais de dez horas. Por que diacho ela não vinha? A pontualidade sempre fora uma de suas muitas virtudes. Estava quase a telefonar-lhe, quando, com desmedida sensação de alívio, ouviu os passos dela na aléia pedregulhada. A campainha da porta soou. Ele mesmo atendeu.
- Não veio de carro... Estava a pensar na razão do seu atraso. Entre.
Dê-me o casaco.
- Não, obrigada. Não vou entrar. Ou antes: só entrarei até ao vestíbulo.
Ele a fitou perplexo, vendo-a com um só passo cruzar o limiar. Não vinha com o seu costumeiro vestido cinzento de trabalho, mas com o desbotado tailleur cor de ferrugem e o chapéu bersagliere com que habitualmente saía a passeio. Mas foi a sua expressão tranquila e firme o que o deixou atónito, a ponto de exclamar, receando algum desastre:
- Aconteceu alguma coisa, Frida?
Ela não respondeu; logo, porém, fitando-o compassivamente com os seus estranhos olhos castanhos, disse:
- Meu amigo, a despeito da grande vontade que tenho de ajudá-lo, resolvi não voltar a vê-lo.
- Como? - Todo confuso, ele articulava as palavras com dificuldade. - Mas por quê? Você me prometeu... Confiava em que me ajudasse a acondicionar a porcelana!
- A porcelana! - repetiu ela com um ar de sarcasmo. - Que importa a porcelana? Já não lhe serve para nada. Nunca mais a verá.
- Mas... preciso de sua ajuda para outras coisas.
- Nesse caso, deve arranjar-se de outro modo. - E com o olhar fixo sobre ele, sacudiu vagarosamente a cabeça de um lado para outro. - É demasiado penoso para mim. O melhor, segundo você mesmo disse, é acabar com isto definitivamente.
Seguiu-se um instante de silêncio total, durante o qual Moray não sabia o que dizer, exceto "Por quê?", e isso ele já dissera antes. E Frida continuou, com o mesmo tom solene, quase a calcar uma nota de sombria fatalidade:
- Meu amigo, meu caro amigo, o que sinto por você (e isso está além da sua compreensão) me induziu em erro. Sou mulher e, por fraqueza, consenti em ajudá-lo. Mas ontem, durante a reunião, falando com seus amigos, percebi que foi um erro, um lamentável erro de minha parte. Pois todos estão consternados, todos têm a mesma opinião sobre você.
- Sou muito grato a todos por essa preocupação - murmurou ele, espicaçado pelos comentários que os amigos teceram às suas costas. - Mas não sei por que a mereço.
- É que eles enxergam! - A voz de Frida era uma pontada. - Todos, sem exceção, falavam a respeito de você, um homem que toda a vida lutou para vencer e enriquecer, um homem que possui amigos excelentes e uma bela casa, e que, à beira da velhice, joga tudo fora por uma ideia repentina, uma ideia tão extremada, que o próprio Stench anda dizendo, com seu jeito irónico, que você não poderá jamais mastigar o bocado que pôs na boca.
- Agradeço a Stench a observação, bem como a todos os outros - disse ele com azedume. - Não obstante, creio saber o que estou fazendo.
- Saberá mesmo? Anda tão ocupado e tão obcecado que já não lê nem escuta mais as notícias. Ontem Stench nos dizia (acabava de saber) que em outra aldeia, Kalinda, vizinha da de Willie, hordas de negros, armados de setas inflamadas e cutelos, irromperam na Missão Belga e massacraram todos os que lá estavam. Não só os assassinaram como ainda os mutilaram
decepando-lhes as mãos. Mein Gott, suas mãos, tão lindas e sensíveis, e sempre admiradas por mim! E pensar que algum desses horríveis selvagens poderia decepá-las... É de espantar que eu e os outros nos sintamos angustiados por causa de você?
Ele mordeu os lábios e franziu o cenho; uma luta entre a inquietação e a ira se travava dentro de si. Predominou a ira.
- Você parece que se esqueceu de que Willie me advertiu dos possíveis riscos. Já pensei seriamente em todos eles.
- Não acredito.
- Acusa-me de mentiroso?
- Acuso-o de iludir-se deliberadamente.
- Se assim é, faço-o por motivos altamente louváveis.
- Quer dizer que pretende tornar-se mártir e santo, talvez deixar-se esfuracar de setas para variar... como Sebastião, para depois ganhar uma harpa e uma auréola em recompensa! - Os olhos de Frida se estreitaram, sarcasticamente. - Falo no seu próprio interesse, ao dizer-lhe que...
- Não adianta - atalhou ele rispidamente. - Não me dissuadirá.
E se encararam durante um longo (e, da parte dela, calculado) silêncio.
- Então vai mesmo? - disse ela finalmente numa voz dura.
- vou sim.
- Então vá. Está completamente cego; perdeu o juízo.
- Obrigado.
Brigavam, iam dar início a uma cena.. .- e essa ideia o confrangia dolorosamente.
- Você diz que faz isso movido por um grande ideal, isto é, a fim de reparar pecados. Não é nada disso. O que quer é ir deitar-se com aquela idiotazinha, aquela crente desmancha-prazeres por quem você está babando de paixão; uma criatura sem qualquer maturidade, incapaz de uma comunhão intelectual com você, pobre enfermeira que não sabe distinguir um Bonnard de uma "comadre"!
Parido até aos lábios com os insultos, emitidos com uma força irreprimível e reveladora, Moray deu-lhe resposta indignada e à altura:
- Lembre-se de que a mulher de quem fala será minha esposa.
- - E nessa qualidade, o que pensa que ela lhe poderá proporcionar? Paixão, nunca - que isso ela não tem. Essas crentes não têm sexo. - Ele estremeceu. - Pois, para a paixão que você requer, é necessário um corpo vigoroso e cheio de vitalidade. Uma força correspondente à sua, e que ela não possui. É fraca. E já está de todo presa ao seu Willie; você representa, para ela, apenas a imagem do pai. Além disso, já tem um concorrente muito sério: ela não pode amar ao mesmo tempo a você e a Deus!
- Lamento ter de pedir-lhe que se retire.
Frida respirava com profunda, embora controlada violência. Dava a impressão de uma prima - dona wagneriana, de figura esplêndida, o olhar cheio de fogo. De repente ficou calma, e, fria como gelo, disse:
- Sim, retiro-me. Mas não se esqueça de que o adverti. E lembre-se de uma coisa: se recuperar a razão, eu continuo em Seeburg, sua amiga de sempre.
Mal esperou que ela pisasse a aléia para fechar a porta com estrondo. Estava furioso, ofendido, ultrajado, e, acima de tudo, inflexivelmente decidido em seus propósitos. Como se atrevia ela a tomar tais liberdades com Kathy e com ele próprio? Isto, juntamente com o fato irritante de seus amigos terem feito dele o alvo de seus maliciosos comentários, era motivo suficiente para tornar a sua resolução numa decisão de aço. O que o feria mais que tudo - e que o levava a recordar a noite em que Kathy docemente se lhe rendera - era a vergonhosa alusão à capacidade de amar de sua futura esposa. Uma imagem do pai a competir, com Willie e Deus, pela afeição de Kathy. Podia haver alegação mais injusta, mais vergonhosa, até mesmo mais blasfema? Era essa farpa envenenada, a pior de todas, que mais fundo lhe penetrara a carne e ali ficara vibrando. Para piorar as coisas, quando batera a pesada porta o deslocamento dorsal se lhe agravara, e agora, censurando Frida pelo acidente (era, inequivocamente, culpa dela), descobriu que a coxeadura se lhe tornara mais pronunciada.
Estava muito agitado, mas não podia decidir-se a ficar inativo em casa. Que fazer? Era essencial tratar imediatamente da espinha, e como ainda restassem algumas compras a fazer, resolveu tomar o trem para Zurique e ir consultar seu bom amigo, o Dr. Muller. Tendo cancelado o almoço, foi conduzido pelo perplexo Arturo para a estação de Melsburg, tendo chegado a tempo de apanhar o schnéllzug das onze e quarenta e cinco.
Sentado numa confortável poltrona junto da janela - não havia trens comparáveis aos suíços - abriu a Gazette Suisse, que apanhara quase instintivamente na banca de jornais. Naturalmente, Madame Altishofer tinha exagerado o caso, a fim de assustá-lo; todavia era verdade, como ela insinuara, que ele ultimamente andava demasiado absorto para se preocupar com o que se passava no planeta. Raramente prestava atenção aos acontecimentos, preferindo banir de sua vida reclusa os choques e as discórdias de um mundo enlouquecido. Agora, entretanto, achava que valia a pena ler o noticiário completo. Mas não foi preciso. Logo na primeira página deparou com este Título: MASSACRE ATROCE À LA MISSION KALiNDA .2
2. Em francês, no original: "Feroz Massacre na Missão de Kalinda. -N. da T.
Preso ainda de uma grande tensão, Moray leu o relato. Mais de cem pessoas - homens, mulheres e crianças, - tendo procurado refúgio na Missão, foram trucidados com incrível ferocidade. Nesse banho de sangue, os próprios missionários, dois sacerdotes franciscanos, foram reservados para tratamento especial: primeiro, mutilados, e em seguida decapitados e reduzidos a pedaços. Era uma história pavorosa, mas trazia o cunho da verdade; e, a julgar por um massacre anterior, efetuado em Tochilenge, era inegável que também este fazia parte de um plano geral da carnificina pavorosa que afinal irrompera.
Frida tinha dito a verdade: que triste fim para um homem sensível, fino! Um tremor de náusea contraiu-lhe o estômago e ele baixou o jornal, olhando a plácida paisagem suíça - vacas de cincerro ao pescoço, a pastar tranquilamente nos verdes pastos, entre cerejeiras e pereiras. Talvez que, no final das contas, ao tomar a decisão heróica, ele não tivesse pesado devidamente as obrigações e os perigos que a mesma lhe ia acarretar. Mas essa ideia lhe repugnava. Mesmo que não quisesse ir à África, queria Kathy... Não, não voltaria atrás.
O trem entrou na estação de Zurique e ele desembarcou com tamanha dificuldade, que lamentou não ter trazido bengala. A indisfarçável coxeadura atraiu olhares compassivos na Bahnhofstrasse; mas, fazendo um esforço, fez as compras na casa Grieder, que, ao contrário de tantos outros estabelecimentos, não fechava para o almoço. Depois, sem pensar no Baur-au-Lac, almoçou sobriamente no Sprungli, um picadinho de vitela com nhoques, seguido de compota e café com creme. Ele estava, em verdade, muito perturbado, muito deprimido para poder comer, e foi com essa disposição que tomou um táxi, rumo ao consultório do Dr. Muller, em Gloriastrasse, onde teve a sorte de falar com o médico antes de começarem as consultas. Muller não estava a par (e isto era importante) da iminente partida do cliente para o continente negro. Naquela hora, congratulações ou censuras teriam sido insuportáveis para Moray, que entrou logo no assunto, descreveu seus sintomas e concluiu:
- Tenho quase certeza de que estou com uma hérnia de disco.
Homenzinho rubicundo e jovial, metido em seu avental engomado e excessivamente folgado, Muller, que parecia apreciar as delícias da vida, ouvira o relato de Moray na postura encurvada que era seu hábito adotar durante as consultas, lançando de vez
em quando ao cliente um olhar bem-humorado. Depois levantou-se, fez o que pareceu a Moray um exame rápido e superficial.
- Um leve deslocamento do latissimas dorsi. Mande o empregado fazer-lhe massagens com um bom linimento.
- Já mandei, mas não adiantou.
- Naturalmente: ainda demora alguns dias.
- Mas a coxeadura é certamente coisa grave...
- Puramente psicossomática. Uma transferência protetora da preocupação que tem com o dorso. Mas por que isso o preocupa - eis o que não posso imaginar. Tem algum problema, alguma ansiedade premente?
Cenho franzido, Moray se esquivou à pergunta.
- Acha que não preciso de uma radiografia da espinha?
- Mein Gott! - Muller riu, afastando a ideia de Moray. - Não se faz radiografia de um simples deslocamento.
Moray saiu do consultório pior do que entrara. Experimentou não coxear, mas o esforço agravou-lhe o estado, levando-o a enrijecer e arrastar a perna.
- "Maldito Muller!" - murmurou com seus botões. - "Não perde essa mania tola do psicossomático."
Teve a tentação de consultar outro médico, mas conteve-se, receando parecer ridículo. Em vez disso, esperançado em que o exercício o pudesse ajudar, desceu a pé a colina até ao Belvedere, depois fez uma caminhada pela margem do lago. Um sol pálido, iluminando a água quieta através de um bruma nacarada, emprestava à tarde um aspecto tranquilo e luminoso. Mas essa estranha luminosidade o inundou de confusa apreensão - incerteza quanto à sua própria realidade, e um desolado sentimento de sua própria insegurança num mundo hostil. Que fazia ele ali, a coxear sem destino, a mente toldada por um exército de ideias em conflito e a pungi-lo como um enxame de marimbondos? O rumo que sua vida tomara pareceu-lhe de repente absurdo. Sentia-se desamparado, tinha a impressão de que caíra num abismo. Por que lhe fizera Frida um ataque tão violento e inquietante naquela manhã? Sem dúvida, era imperdoável; todavia, procurando o que a teria levado àquilo, descobriu a seu favor muitas escusas, e até motivos para lhe perdoar. Ela amava-o, tinha ciúme de Kathy, estava desesperada pela sua partida, receava pela sua saúde e pela sua segurança... Lamentou profundamente a ruptura havida entre os dois. Sempre gostara dela, mas a culpa era dele, que talvez lhe tivesse encorajado as esperanças
de maior intimidade. Entretanto, nas presentes circunstâncias, era melhor separarem-se.
Fazendo um esforço, endireitou o corpo, chamou um táxi e deixou-se levar para a estação. O jornal da tarde, que ele leu na viagem de volta, confirmava amplamente as más notícias da manhã: um comunicado oficial fora emitido pelas Nações Unidas, deplorando a violência contra inocentes cidadãos. Leu também a notícia de uma irrupção de varíola e peste bubônica, e ouviu a irradiação de vários apelos de assistência médica. Quando, uma hora mais tarde, chegou em casa, nada achou ali para
minorar-lhe o desânimo: nenhum recado telefónico de Kathy, nem mesmo uma carta, e, ainda por cima, a casa toda revirada - pilhas de livros no chão da biblioteca, a baixela embrulhada em papel de seda, as cortinas do salão retiradas e amontoadas a um canto, a ausência de todo e qualquer indício de conforto e segurança. E porque ele sofria tudo isso, e tudo abandonara pelo amor de Kathy, ela devia-lhe pelo menos algumas palavras de carinho e incentivo. Precisava falar-lhe imediatamente.
Dirigiu-se para o telefone da biblioteca e pediu ligação para a residência dos Fotheringays, em Markinch. Houve uma demora interminável; ele, porém, não saiu de perto do aparelho. Finalmente, depois de uma algaravia, com sotaque escocês nas linhas locais, estabeleceu-se uma ligação deplorável. Quem atendeu foi a Srª. Fotheringay, cuja voz ele mal podia ouvir, em virtude do zumbido contínuo. Depois, quando foi possível um contato inteligível, tudo se desmoronou. Willie e Kathy tinham partido na véspera, estavam agora a caminho da Inglaterra, provavelmente já em Manchester, mas não sabia em que endereço... Podia entretanto
fornecer-lhe o número da Missão Central de Edimburgo, onde talvez pudessem dar-lhe informações certas.
Cortando a conversa que a Srª. Fotheringay poderia ter prolongado indefinidamente, Moray mandou ligar para Edimburgo, como ela lhe indicou, e teve mais sorte quanto à ligação. Mas também sem resultado. O Sr. Willie Douglas já pronunciara a sua conferência em Edimburgo e partira com a sobrinha para Londres. Contudo, não conheciam o seu endereço ali.
Moray jantou pouco, e em seguida foi para o estúdio, único aposento que permanecia habitável. Ainda se achava ali, sentado e remoendo pensamentos, quando, cerca de uma hora depois, ouviu de repente o telefone tilintar. No mesmo instante saltou para o aparelho.
Mas não - apertou-se-lhe o coração ansiado - não era a doce e tão esperada voz de Kathy que lhe chegava do vazio, mas os acentos guturais de seu advogado Stieger, o qual, retido em Munique, lhe pedia um adiamento do seu encontro até segunda-feira.
- É claro que, se o assunto for urgente, tomo o avião da manhã, e à noite volto para Munique.
- Não - disse Moray, lutando para dominar-se. - Não há urgência. .. não se incomode com isso. Segunda-feira está bem.
- Então dentro de três dias nos encontraremos.
"Três dias", refletiu Moray, pendurando o fone. Nenhum mal lhe poderia advir desse adiamento que, pelo menos, lhe daria uma pausa para respirar, e assim recuperar e consolidar as forças. Teve então a consciência de que experimentava uma vaga sensação de alívio.
CAPÍTULO DEZOITO
UMA semana se passou. Teria sido, realmente, uma semana Numa espera como aquela, estando ele pronto para partir e com tudo preparado, perdia-se a noção dos dias. Mas era domingo, e um domingo chuvoso. A chuva torrencial transformava a neve em lama, e as montanhas se ocultavam por detrás de grossas nuvens hidrópicas. Santo Deus, que dia horrível e opressivo para uma pessoa como ele, tão susceptível às mudanças do tempo! Afastou-se da janela, e, talvez pela vigésima vez, tirou do bolso a carta de Kathy - a única que lhe escrevera, e que fora posta no correio na manhã seguinte ao dia em que ela estivera em Edimburgo. Devia tê-la escrito e remetido imediatamente ao voltar a Markinch.
Querido David:
Foi maravilhoso ouvi-lo ao telefone, e em verdade não tive tempo de escrever-lhe antes. Como já lhe disse, tio Willie teve um acesso de 'febre bastante grave. Mas não desistiu da conferência e logo partiremos em viagem pela Inglaterra. Em Londres ficaremos hospedados com o Sr. e Srª. Robertson, amigos escoceses da Srª. Fotheringay. Caso você escreva, o endereço deles é: 3, Hillside Drive, Ealing, N. W. 11. Fica perto do aeroporto de Londres. Tudo está pronto. Tio Willie mandou reservar três passagens. O número do voo é AF-4329. O avião sai na têrça-feira, dia vinte e um, às 11 da
noite Por isso, encontrá-lo-emos no saguão do aeroporto, uma hora antes da partida. 'Estaremos lá das nove em diante a fim de que não haja engano, pois tio Willie está aflito por partir. As coisas pioraram em Kwibu, e, se quisermos salvar nossos postos avançados em Kasai, teremos de voltar imediatamente para lá. Estou ansiosa por trabalhar com você na Missão e usufruir das recompensas espirituais que isso nos trará. Querido David, é a primeira vez que lhe escrevo, e é difícil dizer tudo quanto desejo. Mas você bem sabe que minha esperança está em você e que em breve serei sua esposa dedicada,
Kathy P. S. Tio Willie recomenda-lhe que não se atrase.
com uma renovada sensação de desapontamento, Moray pousou a carta que pouco antes abrira com tanta sofreguidão. Certamente esperava algo melhor do que aquelas poucas linhas breves e reservadas. Em vez do lacónico horário da partida do avião, não podia ela ter insistido com mais ternura no amor que os ligava? Não podia ter dito que sentia falta dele, e que ansiava por estar novamente entre seus braços? Em todo o seu vocabulário, não haveria acaso uma palavra mais forte do que "querido"? Admitia que fosse tímida, coitada, e que a consciência da intimidade de ambos a perturbasse - assim interpretou a frase, "em breve serei sua esposa dedicada". Ao mesmo tempo, estaria limitada pela exiguidade do papel. Todavia, encontrara espaço para falar de Willie - duas conferências, sua doença e seus preparativos, a recomendação para que ele, Moray, não se atrasasse... Nem uma palavra, nem uma simples indagação acerca do estado físico e mental, ou acerca da tristeza e dificuldades que ele porventura estivesse experimentando na ausência dela! Isso era em verdade péssimo. Ele amava-a, desejava-a, e ela só fazia falar-lhe de Willie!
Esta sensação estranha de abandono era acentuada mais ainda pela solidão de sua vida atual. Rompera com a rotina normal, despedira-se dos amigos de Schwansee, já ninguém o visitava, todos o haviam riscado do seu grupo, como membro que se afastara. E Frida - havia mais de uma semana que não lhe punha a vista em cima, embora ele, na esperança de encontrá-la, em várias oportunidades tivesse saído a coxear pela chuva, contornando o lago em direção à propriedade dela. Sentia falta da companhia que ela tão liberalmente lhe dera, e da qual - principalmente agora, quando a certeza e a incerteza se lhe atropelavam na cabeça - ele necessitava acima de tudo. Lamentou amargamente o estremecimento havido
entre ambos, resultado de algumas palavras francas de parte dela, palavras que ele, percebendo a finalidade com que foram ditas, já perdoara. Claro que não poderia partir sem antes tentar uma solução boa para o caso. O tempo urgia, era cada vez mais curto e ele partiria dentro de dois dias. Devia galgar a colina e visitá-la. Mas alguma coisa, talvez orgulho, ou um lampejo de cautela inibidora havia impedido isso até agora.
A chamada para o almoço fê-lo voltar à realidade. Comeu num silêncio distraído, sem nenhum apetite; depois, como sempre fazia aos domingos, tirou uma soneca. Acordando quase às três horas, viu que a chuva caía mais impiedosa do que nunca. Levantou-se, andou pela casa, conferiu as malas, fumou um cigarro, tentou matar o tempo, mas gradualmente essa animação foi declinando, chegou a um ponto de profunda depressão. Moray resistiu durante todo o dia; todavia, quando a tarde, tristemente cinzenta, se transformou de repente em noite, não resistiu ao desejo de ouvir uma palavra de consolo. Frida dar-lhe-ia essa palavra. Era, sempre fora, sua amiga. Não mais discutiriam; não discutiriam nenhum assunto que envolvesse controvérsia; apenas passariam em mútua comunhão uma derradeira e tranquila hora de humana cordialidade.
Precipitadamente, antes que mudasse de ideia, pôs o impermeável, apanhou um velho guarda-chuva no porta-chapéus e, saindo discretamente de casa, lá se foi, manquitolando. A balsa conduziu-o através do lago; mas, para um homem que coxeava, o caminho foi longo, e íngreme a subida pela encosta serpenteante que levava ao schloss. Finalmente chegou, os joelhos trémulos como os de um cavalo após duro esforço. Meu Deus! - pensou - a que trapo estou reduzido.
Quase perdido nas nuvens mais baixas, o Seeburg elevava-se à sua frente. Construído com granito bruto de montanha, no estilo suíço do século XVII, tinha, com seu telhado de ameias e torres gémeas a modo de pimenteiras, na escuridão que descia, um ar espectral e mal-assombrado, impressão essa acentuada pelo áspero grasnar dos corvos encharcados que se acolhiam sob a saliência dos beirais. Avançando pelo terraço musgoso que se estendia diante das estreitas janelas duplas que abriam para a sala de visita, Moray endireitou o corpo e prendeu a respiração. Sim, lá estava ela, sozinha no sofá, junto à antiga lareira de azulejos, trabalhando em seu bordado, sob uma única lâmpada velada que mal iluminava o espaçoso e elevado aposento, parcamente mobilado com pesadas cadeiras de nogueira de alto espaldar, e um enorme armário bávaro.
Seu Weimaraner preferido, Peterkin, repousava sobre o tapete, a seus pés, o focinho enfiado entre as patas.
Aquela cena melancólica de intimidade doméstica comoveu Moray. com a mão trémula, bateu na vidraça. Imediatamente Frida ergueu a cabeça, dirigiu os olhos para a escuridão exterior e, pousando o trabalho, avançou lentamente, indo abrir a porta. Durante um longo momento ela olhou-o fixamente, e em seguida, com uma voz tranquila e firme, inteiramente isenta de solicitude, disse:
- Meu pobre amigo, como parece doente! Entre. vou ajudá-lo. Isso... - E tomando-lhe o braço, conduziu-o para o sofá. - Sente-se aqui; descanse.
- Obrigado - murmurou ele, respirando com dificuldade. - Como vê, estou bem ruinzinho... Como deve estar lembrada, eu machuquei as costas... Ainda não melhorei.
- Sim - disse ela, inclinando-se para ele. - Três vezes o vi junto ao lago, tentando uma caminhada. E disse de mim para mim: "Pobre homem! Não tardará a procurar-me...".
Nada havia, em seu tom de voz ou seus gestos, que denotasse qualquer sinal de triunfo. Nela se sentia apenas uma tranquila vontade de
protegê-lo, como se estivesse a lidar com um aluno preferido mas insubmisso.
- Senti que devia vir - defendeu-se ele depressa. - Não podia tolerar que a brecha entre nós permanecesse aberta. Devo... devo partir depois de amanhã.
Ela nada disse, mas sentou-se ao lado dele no sofá e tomou-lhe a mão, segurando-a com dedos fortes e dominadores. Durante minutos, houve um silêncio absoluto; depois, olhando-o atentamente, ela lhe falou com a tranquila convicção do fato consumado.
- Meu bom amigo, ainda não voltou a si. E agora compete à mulher que o conhece e compreende, à mulher que tem por você o melhor e o mais forte afeto, salvá-lo de si mesmo.
- De mim mesmo? - repetiu ele confuso e sobressaltado.
- Você caiu tolamente numa péssima situação. Por ser homem honrado e, embora esteja doente, querer mostrar-se corajoso, teima em cumprir o que prometeu. Mas está claro que não sobreviverá à experiência. - Frida, calmamente, fez uma pausa. - Mas quanto a isso, não deixarei de intervir.
No silêncio que se seguiu, Moray, compelido por uma estranha mistura de atração e repulsão, viu-se forçado a levantar a cabeça e a olhá-la.
- Devo confessar que... - disse ele procurando afirmar-se - que com esta coxeadma, estou meio indeciso... isto é, não sei se poderei ir conforme foi combinado, ou se irei mais tarde.
- Já não está em dúvida, meu amigo. Não tenciono deixá-lo ir.
Um singular choque percorreu-lhe o corpo, uma combinação de cargas contrárias, de eletricidade positiva e negativa, possivelmente; de qualquer modo, um autêntico choque.
- Mas eu estou comprometido... de qualquer maneira - protestou ele.
- É, você se enganou. - E Frida levantou um dedo de advertência. - E enganou-se estupidamente. Mas escute: quando anda pela montanha e descobre que está no caminho errado, continua a avançar até cair numa ravina? Não. Depois de pedir instruções a uma pessoa melhor informada, faz meia volta e regressa. Pois é isso o que vai fazer.
- Não, não. Não posso. Que pensariam de mim Kathy e Willie? E o pessoal daqui, depois de todos os comentários, depois do meu discurso na reunião e da publicidade na Tageblatt? Fariam de mim o objeto de escárnio de todo o cantão. Não, não ficarei.
- Nem é mister que fique - respondeu ela, como que sem refletir. - Vai sair para umas longas férias... em minha companhia.
De novo e visivelmente Moray teve um sobressalto; ela, porém, o manteve calado com um tranquilo sorriso, e continuou no mesmo tom coloquial:
- Primeiro, iremos a Montecatini, onde há excelentes banhos medicinais; e depois, para quando melhorar, há também um belo campo de golfe, onde irei vê-lo jogar. Em seguida, faremos um cruzeiro naquele lindo naviozinho chamado Stella Polaris. Só na primavera regressaremos aqui, quando todo esse falatório idiota estiver acabado e há muito esquecido.
Imobilizado por aquele olhar hipnótico, ele fitava Frida como que em transe, notando contudo, pela primeira vez, que seus cabelos tinham sido recentemente lavados e penteados, e que, como se o esperasse, ela trazia um vestido de seda lilás, com pequeno decote e larga saia pregueada - um vestido ao mesmo tempo clássico e da moda, que mais lhe fazia realçar a natural distinção. Frida era ainda uma bela figura de mulher - a certa distância. Mas, de perto... e as dilatadas pupilas de Moray refletiram os estigmas iniciais da meia-idade: a leve trama reticulada sob as órbitas, o ligeiro afrouxamento da linha muscular do pescoço, a descoloração e as manchas de seus fortes dentes uniformes. Como comparar tudo
isso com aquele outro lindo rosto, com aquele outro corpo, delicado e jovem? Um suspiro incontido levou-o a estremecer. Entretanto ... em seu atual e lamentável estado. .. não era ela um abrigo, um ancoradouro? Por outro lado, era uma senhora distinta, culta, e, em última análise, digna, em tudo e por tudo, do leito dele. Respirou fundo, e estava a pique de falar quando, com uma pontinha de ironia, ela o precedeu:
- Sim, sou uma troca razoável; a esposa que lhe convém... quer de dia, quer de noite. Acaso também eu não tive desejos todos estes anos em que vivi sozinha? Servir-nos-emos mutuamente. E com que interesse restauraremos e redecoraremos Seeburg, enchendo-o com suas lindas coisas! Nosso salão será mais famoso do que Coppet na época de Madame de Staêl.
Ele ainda engrolou um protesto.
- Gosto imensamente de você, Frida. Mas...
- Mas é isso mesmo, meu pobre amigo, também eu gosto de você. De uma vez por todas: não o deixarei partir para que se destrua naqueles confins.
Fez-se novo silêncio. Que mais podia ele dizer ou fazer? Sentia-se subjugado, dominado, possuído, e todavia invadido por uma onda lenta e insinuante de conforto. O plano que ela descrevera era tão sadio, tão agradável a todos os respeitos - tão diferente do negro futuro que, nesses poucos dias, ele chegara a recear. Aceitá-lo seria como mergulhar num banho morno após uma longa e fatigante jornada. Fechou os olhos e
deixou-se deslizar. O alívio foi indescritível. Reclinou-se no sofá.
- Meu Deus, Frida! Sinto que devo contar-lhe tudo... desde o começo.
E foi o que fez, minuciosamente, muito comovido.
- Ah, sim! - murmurou ela compassiva, entretanto com certa ambiguidade. - Percebo tudo.
- Você é a única mulher que até hoje me compreendeu.
Enquanto Moray falava, o cão acordou, olhou para cima e, soltando um latido de reconhecimento, saltou-lhe para os joelhos.
- Está vendo... - disse ela sacudindo a cabeça - Peterkin também o aceita! Mas você está cansado! Descanse um pouco, enquanto eu arranjo alguma coisa para reanimá-lo. - Dentro em pouco voltou com um copo na mão: - Isto vem de sua terra, é velho e muito especial. Faz muito tempo que o reservo para você. Agora... para me agradar... beba tudo.
Se havia bebida que ele detestava, era o uísque. Não se dava bem com ele, azedava-lhe o estômago, transtornava-lhe o fígado. Mas precisava de um estimulante, e queria ser agradável; além disso, não sentia vontade alguma de resistir.
- Muito bem - disse ela elogiando-o e tornando a sentar-se junto dele. - Vamos agora ficar quietinhos como dois ratos de igreja, até que você melhore.
Conforme ele esperara, o uísque lhe subiu imediatamente à cabeça. O sangue afluiu-lhe às faces, e ele se sentiu num ápice, não melhor, mas estúpido e congestionado. Observando-o, Frida disse com ar reflexivo:
- Estive pensando na melhor maneira de celebrar o nosso casamento. Temos de fazê-lo com a maior discrição, mas rapidamente, se quisermos partir antes que toda essa confusão, que você tanto receia, fique conhecida. Não é assim?
- Quanto mais cedo partirmos, tanto melhor.
- Então o melhor é irmos à Basileia, para onde partiremos amanhã cedo. Ficaremos lá três dias, pois há muitas formalidades a preencher. Mas podemos estar de volta na sexta-feira à noite.
- E depois, querida Frida?
- Na manhã seguinte sairemos de férias.
Viu confusamente que ela o olhava sorrindo, curvada sobre ele. Diacho, ela não era assim tão feia, com aqueles olhos maravilhosos e aquele sólido corpo wagneriano que prometia ser elástico e macio... Que dizia ela?
- Ainda há pouco você estava muito terno. Chamou-me de "querida"...
- E é mesmo, como sabe. - E, inesperadamente, sufocando o riso: - Uma verdadeira Brunilda...
- Você saberá isso... futuramente. Ainda não conhece o andar superior de Seeburg. Meu quarto, que vai ser o nosso, é ótimo. Hoje não o veremos. Mas qualquer dia, não é? Não me achará fria. Há quem não precise de amar, fisicamente; mas, no que nos toca, o amor físico será natural e frequente. E também necessário, pois nos alivia. Agora falemos do nosso feliz futuro.
Uma hora depois, o Dauphine conduziu-o triunfalmente de volta à villa. Na escura intimidade do carro, ela deu-lhe uma palmadinha na mão e riu significativamente.
- Agora, bem como eu, vai ter sonhos felizes. Boa noite, mein lieb mann. Amanhã virei, bem cedo. Partiremos para Basileia antes das nove.
Exausto, mas obtuso e consolado, Moray entrou aos tropeções em casa, grato pelo fato de estar tão fatigado que só queria cair na cama.
- vou diretamente para o quarto - disse a Arturo num tom que procurou tornar normal. - Antes de recolher-se, veja se está tudo trancado.
Leve-me o café às oito em ponto.
- Pois não, senhor - respondeu Arturo, um tanto perplexo. - E esta noite, não quer que lhe leve o leite quente e os sanduíches?
Não, pensou ele; depois do uísque, não, pois a sobriedade ainda não lhe voltara.
- Hoje não. - Fez uma pausa, pensando em participar ao criado a mudança de seus planos. Não haveria maior dificuldade com Arturo, uma vez que ele ficara desorientado ante a simples perspectiva de sua partida. - A propósito... - e escolhia as palavras - aconteceu uma coisa inesperada. No final das contas, não me será preciso partir para sempre, mas apenas por uns três meses.
Diversos matizes de expressão sucederam-se no rosto do outro, antes que o inundasse um clarão de alegria.
- Oh, estou tão feliz, senhor, e tão alegre! Dou graças a Deus e a Santa Filomena, pois muitas foram as minhas preces para que o senhor ficasse. Ah, quando Elena souber!...
A alegria extravagante de Arturo foi para Moray um reconforto suplementar... Que lealdade, que afetuosa dedicação, pensou ele dirigindo-se para o primeiro andar; e também Elena, como lhe era dedicada! Mas agora... cama!
com uma expressão singular, Arturo acompanhou-o com o olhar até ele entrar no quarto, depois voltou-se e dirigiu-se à copa. Elena fitou-o esperançosa. Ele respondeu com um gesto afirmativo e uma eloquente careta.
- Você tinha razão. A alemã pescou-o. Agarrou-o pelos cabelos.
- Madre d'Dio! - exclamou a mulher, e prosseguiu num napolitano solto. - Lu viecchio'nzannaluto.
- E, isso mesmo - e Arturo encolheu os ombros, concordando. - E como vai sofrer!
- Mas viver também - disse Elena com desânimo. - Aquela squaldrina vai vigiar o dinheiro dele como um fiscal suíço de imposto. Adeus nosso pequeno ríbasso no mercado, quando ela meter as unhas nas contas!
- Mas isso é melhor do que se ele tivesse de partir. Ainda se poderá mungi-lo.
- Llecao culo a chillu víecchio'nzannaluto?
- É isso, ele ainda dará muita manteiga. - E dirigindo-se a uma prateleira, dali tirou uma garrafa e desarrolhou-a. - É o patrão mais idiota com que já lidei.
- Mas cuidado agora, com essa mulher a vigiá-lo.
- Sei o que faço. Tirar dele o máximo enquanto isso for possível. Antes que se acabe, porque aquela chula tudo lhe arrancará.
- Chella fetente vá e ferni co mettenterra - disse Elena significativamente.
E a esse vaticínio que envolvia a completa emasculação de seu empregador, ambos se entreolharam e romperam em risadas.
CAPÍTULO DEZENOVE
Três dias depois, sexta-feira, à hora do crepúsculo, o Humber, salpicado da lama da viagem, atravessou discretamente a aldeia de Schwansee, e entrou na conhecida aléia das acácias, parando em frente à villa de Moray.
- Cá chegamos, Frida! - exclamou Moray, tirando as luvas e enunciando o óbvio, com um sorriso de satisfação, para logo em seguida acrescentar, olhando para o relógio do painel: - E em cima da hora!
O bem - sucedido segredo com que haviam envolvido o ato do casamento emprestava a Moray um ar de conquista - tudo correra exatamente como fora planejado. Comprimindo-se, saiu da direção, e apressou-se a contornar o carro para, com uma solicitude derramada, ajudá-la a descer. No mesmo instante, a porta da villa escancarou-se e Arturo apareceu, adiantando-se com um inequívoco sorriso de boas-vindas.
- Tudo bem? - perguntou-lhe Moray, enquanto o empregado retirava a bagagem do porta-malas.
- Muito bem, senhor. Tornamos a pôr em ordem o salão, toda a porcelana voltou para seus lugares. Mas a biblioteca e os quartos tomarão mais tempo.
- Tempo não faltará. Partimos amanhã numa viagem bastante comprida. - E aqui pareceu hesitar: - Alguma correspondência?
- Nenhuma, senhor.
Impossível conter um involuntário suspiro de alívio. Receara a possibilidade de um telefonema de última hora, um recado angustioso esperando seu regresso. Mas nada: tinham partido sem uma palavra, exatamente como Frida predissera; tinham partido para a
Missão, para o trabalho deles, não dele - nunca fora dele - sim, para o trabalho que lhes enchia a vida e que, pela sua própria complexidade, dificuldade e perigos, iria absorvê-los e levar Kathy a esquecê-lo mais depressa. Que equívoco ter ele pensado que poderia beneficamente ligar o seu futuro ao daquela pobre garota dedicada! E como fora prudente, tanto para interesse dela como dele, descobrir o erro antes que fosse demasiado tarde! Agora já não mais haveria em sua vida qualquer tolice idealista, nem o gesto de quem tenta alcançar os raios de um luar espiritual; casado com uma mulher madura e distinta, já experimentava uma cálida sensação de segurança, uma sensação de que afinal chegara ao término da jornada.
- Traga depressa o chá, Arturo - disse ele, seguindo Frida para a sala de visitas.
Sentando-se junto dela no canapé Chesterfield, olhou em torno, com satisfação. Sim, tudo estava em ordem, exatamente como antes - a palavra tinha agora um definido significado histórico - tal como A. c. ou D. c. - denotando a demarcação entre as suas duas épocas de pré e pós-redenção. Seus quadros se mostraram mais sedutores do que nunca. (Deus do Céu, e pensar que poderia viver sem eles!) A baixela resplandecia, a porcelana, recém-lavada e arranjada, faiscava à luz de um acolhedor fogo de crepitantes troncos de cedro.
- Não acha isto tudo gemútlich? - E Moray sorriu ternamente para Frida. - Termos voltado unidos, termos tudo arranjado com tanta felicidade!
- Naturalmente, David. Vai ver os arranjos que farei. - E acenou-lhe com amável sacudidela de cabeça. - Vai ver... depois que nos instalarmos em Seeburg.
Ele estava a pique de responder - bailava-lhe na língua um elogio - quando Arturo entrou, empurrando o carrinho de chá; assim, limitou-se a esfregar as mãos e dizer:
- Oh, o chá! Quer servi-lo, querida?
E, enquanto Frida servia, Arturo, tendo encostado o carrinho, apresentava a Moray a bandeja do saguão.
- A correspondência, senhor.
- Que mundo de cartas! - exclamou ela levantando o bule de prata Jorge I, 1720. - Como você é importante!
- Na maioria, cartas de negócio.
E ele encolheu os ombros, examinando-as. Todavia, uma não o era. com os nervos contraídos, reconheceu a letra redonda e igual de Kathy. Entretanto, olhando disfarçadamente nos carimbos, imediatamente se tranquilizou. A carta fora postada a dezessete - quatro
dias antes de ela partir - e recebida em Schwansee na segunda-feira, vinte, dia em que ele saíra com Frida para Basileia. Assim sendo, não podia (graças a Deus!) conter queixas nem censuras. com um cauteloso olhar de soslaio para Frida, que ainda servia o chá, deslizou-a discretamente para dentro do bolso lateral. Lê-la-ia mais tarde, quando estivesse só.
- E por falar em negócios - disse ela, acrescentando açúcar e limão ao chá e estendendo-lhe a xícara, - qualquer dia destes você precisa
contar-me os seus; talvez quando chegarmos a Montecatini, sim? Tenho boa cabeça para negócios. As ações dos produtos químicos alemães, por exemplo, estão bem cotadas hoje em dia.
- Estão, sim - aquiesceu ele com displicência, inclinando-se para cortar o bolo. - Estamos bem supridos dessas ações.
- Ótimo! E as obrigações alemãs? Estas também estão dando altos dividendos.
- Vejo que vai ser para mim um auxílio precioso, minha querida. Mas prove este bolo. É uma receita especial de Elena, e ela o fez em homenagem a você. - E Moray ficou olhando, enquanto Frida provava a fatia de bolo de cereja que ele lhe oferecera. - Que tal, é ou não é bom?
- Sim... é bom... muito bom. Mas podia ser melhor, muito melhor. Para começar, tem baunilha demais e fruta de menos. Mais tarde ensinarei a Elena como é que se faz.
- Precisa ter bastante tato, querida. Elena é horrivelmente suscetível.
- Ora, meu pobre David, você faz-me rir. Como se eu não tivesse nenhuma experiência com essa gente! Em Kellenstein, tínhamos um pessoal de quinze empregados, todos precisando de quem os vigiasse. Aqui só há dois, e você anda mal servido, e até aposto que o roubam. Não duvido que Elena tenha alguns arranjinhos particulares, além de o roubar na manteiga e nos ovos frescos, enquanto o seu maravilhoso Arturo - eu conheço muito bem esses napolitanos! - diante de você é todo sorrisos, enquanto que, por detrás, rouba.
Um receio momentâneo perturbou Moray, logo abafado quando ela lhe acariciou a mão com um sorriso protetor.
- Mais uma xícara do seu excelente Twinings. Pelo menos, não mudarei o chá.
com que graça sabia ela manejar os utensílios de chá! Uma graça inata - nem nervosa como Kathy nem canhestra como Dóris, que, naqueles dias distantes e já quase esquecidos de suas crises, sempre deixava cair as coisas no chão. Sim, depois de todos aqueles
anos perturbados, ele acertara, afinal. Sempre aspirara a ter uma esposa bem-educada, não só pelas vantagens sociais que ela lhe traria, mas também por aquele requinte extra, mediante o qual, graças à sua educação, ela haveria de enriquecer a intimidade conjugal. Ah, sim, Frida iria refazer-lhe a vida! E quão tranquilizador se lhe anunciava o futuro imediato: Montecatini, o cruzeiro no Polaris (ela já fizera reserva das cabinas no American Express, de Basileia ), e, depois, dedicar-se por completo à restauração de Seeburg! Embora confortável, sua villa nunca passaria de uma casa burguesa, verdadeiramente imprópria para conter seus tesouros, que agora iriam adornar e transformar o enorme Schloss o cavaleiro do lago. Todavia, enquanto bebericava, todo satisfeito, o chá no salão confortável e aquecido, Moray não podia deixar de pensar, não exatamente de forma auto-recriminatória, mas com uma espécie de dolorosa pungência, no avião que, naquele mesmo instante, após o pouso noturno em Lisboa, devia estar voando em direção a Luanda. A essa altura, já ela devia ter recebido o duro golpe. Mas era jovem, recuperar-se-ia, a tristeza não durava para sempre, o tempo tudo curava... - pensava ele, consolando-se com esses pensamentos profundos e outros de igual género.
- Está dormindo?... - disse-lhe uma voz um tanto zombeteira, mas com uma pontinha de censura.
- Não... não... não estou. Mas voltando àquele assunto: você precisa mesmo passar a noite em Seeburg? Por que não fica aqui? No final das contas, já estamos casados!
- Sim, somos pessoas muito bem casadas, e, por isso mesmo, devemos ser sensatos.
- Mas por quê, querida Frida? Já foi penoso para mim... termos passado duas noites fora... e em quartos separados!
Ela riu, satisfeita.
- Folgo em ver que sente o mesmo que eu. Mas, para recém-casados, o melhor é iniciar a lua-de-mel numa viagem, longe daqui. Para mim, a novidade será maior. E para você, especialmente, é melhor estar livre de certas associações de ideias que poderiam perturbá-lo.
- Está bem - aquiesceu ele a contragosto. - Deve haver alguma verdade nisso. Mas, ainda assim...
A título de pacificá-lo, Frida premiu o corpo contra o de Moray, deixando-o marcado, pouco acima da cintura, pela saliência do espartilho; em seguida, antes que ele a pudesse cobiçar, afastou o corpo.
- O desejo aumenta se o contivermos. Prometo que serei boazinha em Montecatini. O Freiherr, meu falecido marido, era forte na cama, e eu nunca deixei de lhe corresponder com o mesmo vigor. Como estamos casados, posso falar-lhe francamente sobre essas coisas. E agora vou subir. Depois de uma viagem tão comprida, preciso tomar um banho.
Quando ela saiu da sala, Moray pôs-se a cochilar diante da lareira, como que narcotizado pelo cheiro do cedro em combustão. Por vezes, sentia-se como se estivesse com a cabeça inteiramente vazia; depois,
recuperando-se, desfrutava um momento de repouso tranquilo. Cinco, dez, quinze minutos se passaram. Que estaria fazendo Frida lá em cima? Tomando banho? Não gostara da sua referência ao falecido e lamentado Barão, mas pelo menos ela revelara que não era de natureza fria. Meio adormecido, pensou nos avantajados seios de Frida, naquelas volumosas coxas. Depois, através da sua euforia, lembrou-se, descuidado, da carta de Kathy. Fosse qual fosse a sua relutância, tinha esse dever para com Kathy, ler com ternura a sua derradeira e querida mensagem. Apalpando o bolso, retirou a carta e, após tornar a examinar o envelope, verificando a data do carimbo, abriu-a resolutamente.
Ao fazê-lo, ouviu o toque de uma campainha. Seria na porta da frente? Sim. Ergueu-se imediatamente, pedindo a Deus que não fosse uma visita. Se um de seus amigos, Stench principalmente, irrompesse ali, precisamente naquele momento seria coisa desastrosa; na verdade isso estragaria todos os planos de ambos de uma partida discreta. Devia ter prevenido Arturo para que dissesse que não havia ninguém em casa. Agora era demasiado tarde; Arturo atendia já à porta...
Moray levantou-se, abriu a cortina da janela lateral e espiou a aléia escurecida. Não havia nenhum carro ali; devia ser algum negociante, talvez algum caixeiro-viajante... - inútil preocupar-se. Mas a conversa na porta parecia prolongar-se. Aplicando o ouvido, escutou Arturo dizer, quase suplicante:
- Por favor... espere aqui... vou ver.
- Mas não é preciso... - disse uma voz fina, com uma nota de urgência. - Esperam-me. Deixe-me entrar.
O coração de Moray deu um salto. Meu Deus, pensou, não pode ser... estou sonhando ou perdi o juízo. Instintivamente recuou alguns passos. Retirada inútil. A seus ouvidos chegou o som de passos precipitados no saguão, e, logo em seguida, Kathy surgiu à sua frente.
- David! - exclamou ela, com alívio. - Pelo que Arturo me disse, pensei que você não estava. - Todo o corpo dela parecia inclinar-se para Moray; depois, precipitando-se para a frente, Kathy enlaçou-o nos braços e encostou a cabeça no peito dele.
Mortalmente pálido, em seu rosto perplexo Moray exprimia horror e espanto. Tratava-se de um pesadelo, coisa imaginária, não podia ser verdade. Ficou gelado, num silêncio que o imobilizava.
- Oh David, querido David - continuou murmurando Kathy. - Só estar de novo perto de você...
Ele não podia falar - a pele, em torno da sua boca, tornara-se de repente tensa. Finalmente, com a respiração ofegante, tartamudeou:
- Kathy... o que... por que está aqui?
- Porque preciso de você... porque agora preciso muito mais de você... - E, ainda unida a ele, ergueu os olhos como se não o compreendesse: - Você sabe que tio Willie me mandou...
- Willie? - repetiu Moray, como um papagaio.
- Não recebeu minha carta?
- Não... não recebi... pelo menos, não em tempo oportuno... Estive ausente.
- Então não sabe. Oh, David, foi horrível demais! A Missão foi incendiada e inteiramente destruída. Houve um ataque medonho de terroristas armados. Lutam por toda a vizinhança, e a maioria da nossa gente foi assassinada. A obra de tio Willie, um trabalho de vinte anos, totalmente arrasada. - Lágrimas deslizavam-lhe pelas faces. - Tio Willie partiu para verificar os estragos; irá até lá, se consentirem, mas sabe que tudo se acabou. Não quis que o acompanhasse. Está esmagado pela dor. Creio que terá de desistir. Quanto a mim, já nada tenho que fazer lá... Só me resta você, querido David. E rendo graças a Deus por isso. Se não fosse você, teria enlouquecido.
Silêncio. Um frio suor de medo porejava da testa de Moray, e o coração batia-lhe descompassado. Afastou-se um pouco, apertou a mão na fronte, procurando encontrar palavras...
- Isto... é horrível, Kathy. Um grande choque. Se eu tivesse sabido...
Ela fitou-o com olhar confiante, mas sem entender.
- Mas David! Como você não apareceu no aeroporto, fiquei certa de que recebera a carta onde eu lhe dizia tudo...
- Sim, precisamente... é tão... tão difícil... estive ausente... - Moray mal sabia o que estava dizendo, e Kathy começara a olhá-lo
com uma expressão estranha, igualmente transtornada, com "uma repentina angústia em seu pequeno rosto delicado e exausto.
- David, aconteceu alguma coisa?
- Não... Apenas... tudo é tão triste... tão imprevisto...
A isso, toda a alegria dela murchou: obviamente assustada, parecia encolher-se dentro de si mesma.
- David, por favor, tenha piedade de mim...
Meu Deus, pensou ele, isto não pode continuar. Tenho de contar-lhe tudo... é preciso fazer isso. E fez um esforço para se compor.
- Kathy... - disse, retesando-se - querida Kathy...
Não pôde prosseguir; nem para salvar a própria vida se decidiria contar. Seguiu-se um instante do mais completo e terrível silêncio. A boca se lhe enchia de uma amarga saliva, e ele só fazia pensar: "E dizer que eu teria podido tê-la aqui, nas condições que eu exigisse, caso tivesse aguardado mais alguns dias!" Era uma tortura aquilo. E enquanto continuava ereto, as mãos crispadas, incapaz de fitar os olhos assustados da moça, a porta abriu-se e Frida entrou na sala. Surpreendida ante a cena, compreendeu, com um simples olhar, o que estava acontecendo; depois, sem mudar de expressão, avançou calmamente na direção de ambos.
- Kathy, você chegou! - disse beijando-a no rosto. Ao mesmo tempo fez para Moray um gesto brusco de quem dizia, resolutamente: "Saia, deixe isto comigo!"
Ainda preso ao chão, Moray parecia incapaz de locomover-se, mas, cambaleando um pouco, conseguiu sair da sala. Kathy estava muito pálida, mas parara de chorar. Perplexidade e espanto, haviam-lhe secado as lágrimas.
- Que acontece com David? Estará doente?
- Neste instante parece que não está muito bom. É o choque, como vê. Mas venha aqui, minha filha; sentemo-nos para readquirir a calma e conversemos um pouco. - com uma expressão persuasiva, o braço por sobre o ombro de Kathy, Frida conduziu-a para o canapé. - Diga-me primeiro, querida: como foi que veio para cá?
- De avião até Zurique, de trem até Melsburg, e, depois, de lancha até Schwansee.
- Que viagem cansativa! Não gostaria de descansar e tomar alguma coisa?
- Não, não, obrigada. - Kathy tremia ligeiramente, cerrando os dentes para evitar que começassem a bater.
- Pelo menos uma xícara de chá. Serve-se rápido.
- Oh, nada, por favor. Só desejo que me fale de David.
- Sim, naturalmente, falaremos de David, pois é ele, como diz aquele belo romance, o âmago do assunto. Mas sejamos francas, pois, ainda que isto doa, é preciso que a verdade seja dita. - Fez uma pausa e segurou na sua a mão de Kathy. - Olhe, querida, o David que você adora é um homem bom, sempre transbordante de boas intenções, conquanto nem sempre dotado de força para executá-las, o que não raro é doloroso para ele e para os outros. Não existe um provérbio inglês que diz que "o inferno está calçado de boas intenções"? Você nunca perguntou a si mesma por que razão foi ele procurar sua família na Escócia? Pensava que era para retribuir as atenções por ele recebidas quando moço. Mas não era. É duro, para mim, ter que lhe contar isto, como será duro para você ter de ouvir. A razão foi que David, quando jovem, foi amante de sua mãe, amante de verdade (se é que você me entende). Prometeu-lhe casamento, depois abandonou-a pela filha de um ricaço.
- Não, não... - E Kathy soltou um fundo soluço angustiado, as pupilas se lhe dilataram com o choque. - Impossível! A senhora está inventando!
- Como inventando, se soube de tudo pela boca do próprio David? Isso mesmo: ele é dessa espécie de homens que procuram descarregar suas culpas por meio de confissões emocionais. E é bem sucedido. Por meio de lágrimas também, pois, a exemplo de outros grandes homens, ele chora facilmente... igual a uma mulher.
- Não quero ouvir mais nada! Chega!
- Mas precisa ouvir-me, querida Kathy, e para seu próprio interesse. Assim, nosso David regressou à Escócia com a louvável intenção de reparar completamente o mal que causara. .Mas, infelizmente, sua mãe já não estava viva, e você ficou sendo o objeto de suas generosas atenções. Tudo correu bem no princípio, sim, perfeitamente bem e de modo correto, mas logo as coisas mudaram e ele, com muita nobreza, pretendeu fazer ainda mais por você. Deste modo - pois homens assim encantadores têm um jeito especial de lidar com as mulheres, - sob a promessa de casar-se com você e acompanhá-la à Missão, tornou-se seu amante, assim como já fizera com sua mãe.
- Cale-se! - E, desesperada, Kathy tapou os ouvidos com as mãos. - Não posso... não quero ouvir mais nada! É demasiado horrível!
- Não há dúvida de que a ideia não foi nada bonita: primeiro seduzir a mãe, depois a filha - tudo na melhor e mais sublime das intenções. Entretanto lhe asseguro que David não é mau se comparado
aos outros, pois conheço os homens, minha filha, e alguns são muito mais horríveis do que David, que é apenas egoísta e fraco, propenso a evitar a todo custo transtornos e dificuldades. Não, não fuja - disse ela, estendendo o braço para barrar o caminho a Kathy. - Não percebe que falo para seu próprio bem? Preciso mostrar-lhe como se enganou. Se tivesse desposado esse célebre David, em seis meses ele estaria cansado de você, dando-lhe um grande desgosto. Você é muito diferente dele; não pertence à mesma casta. Nunca o converteria à religião, nem o faria retornar ao seu trabalho de médico. Nem ele conseguiria fazê-la gostar de suas estúpidas antiguidades ou seus quadros famosos - que tudo não passa de uma moda criada por antiquários. O casamento de vocês seria um desastre fatal.
Kathy calara-se, sua expressão era agora vaga, como se tivessem desaparecido os traços de seu rosto. Havia qualquer coisa de aterrador em sua imobilidade. Sentia-se febrilmente angustiada, despojada de tudo quanto prezava, degradada e impura. Quis fugir, mas não encontrou forças; restavam-lhe apenas fraqueza e nojo de si mesma.
- Assim, pois - não é evidente? - a mulher de que David precisa não é uma terna e dócil garota como você, mas uma mulher suficientemente forte para dominá-lo; uma mulher que o faça obedecer e fazer sempre e sempre o que for mais conveniente.
Os olhos de Kathy dilataram-se subitamente - dois grandes poços de sombra na brancura de seu pequeno rosto.
- Você - disse ela ofegante.
- Sim. Casamo-nos hoje em Basileia.
Silêncio de novo. Sobrancelhas contraídas pela dor, Kathy tinha as feições contorcidas. Que se passaria em sua mente torturada? A cabeça tombou-lhe para o peito; impossível conter ou rebater suas lembranças... - o encontro na tumba de sua mãe, o encantador e austero sorriso, um amigo da família, aquele dia em Edimburgo, ele tão alegre e generoso, as visitas que fizeram juntos, a enfermeira maravilhosa, mas um tanto cansada, uma xícara de caldo, minha querida... tudo tão terno. Depois, Viena, uma estranha e torvelinhante confusão de luzes, ruídos e música, Pinkerton, querido David, você jamais seria como ele... depois a Suíça, um manto de pureza, sim, irei com você, a igrejinha da Missão, um só corpo perante o Céu, e, em seguida, como sua querida mãe morta... - Deus do Céu, ela não suportava aquilo! Deu um salto desesperado e frenético, procurando escapulir.
Mas Frida levantou-se e foi postar-se diante da porta, barrando-lhe o caminho.
- Espere, Kathy... tenha juízo. Acredite que desejo apenas o seu bem. Ainda podemos fazer muito por você.
- Deixe-me sair. Quero ir embora... ir para casa.
- Kathy... o carro a levará até o hotel...
- Não, não... irei de lancha... Quero ir para casa.
A porta continuava bloqueada. Kathy olhou febrilmente em torno, precipitou-se para a janela envidraçada e escancarou-a.
- Pare, Kathy!
Ela porém já se precipitara pelo terraço e o relvado, em direção à aléia que conduzia do jardim para a aldeia. Correndo na escuridão, desceu pela íngreme vereda, caindo sobre os joelhos, em sua pressa desesperada, tornando a levantar-se, varando as trevas traiçoeiras, só desejando escapulir. Escuras formas de arbustos fustigavam-na como coisas viventes, lacerando-a com a perversidade peculiar aos seres humanos. Mais estarrecida do que emocionada, já não era ela mesma, já não vivia, apenas se locomovia num sonho trágico e confuso. No mundo obscuro em que corria, tudo dentro dela se diluía, exceto a dor. Aquilo era o fim. Estava perdida.
Frida não pôde segui-la. Muda e consternada junto à janela da qual irradiava um feixe de luz, ficou a olhar até que a figurinha cambaleante se perdesse na noite feroz, que a engoliu. Depois, voltando-se devagar, sacudiu a cabeça, fechou a janela, e, dirigindo-se para o saguão, chamou por Moray. Ele desceu lenta e nervosamente, de olhos húmidos e muito pálido. Estivera sentado no patamar de cima, procurando acalmar-se com um de seus cigarros Sobranie.
- Está tudo acomodado - disse Frida, calmamente. - Ela já se foi.
- Mas para onde... e como? - a voz dele tremia.
- Ofereci-lhe o carro, mas ela preferiu voltar como veio: de lancha. Vai imediatamente para casa. É só o que deseja: voltar para casa.
- Mas, Frida... - disse ele vacilante. - Ela deixou o emprego. Não pode ir ao encontro de Willie. Onde fica a casa dela?
- Você fez a pergunta, e ninguém melhor do que você poderá dar a resposta.
Uma pausa.
- Ela ficou... muito magoada?
- Ficou.
- A respeito de quê?
- Não adivinha?
- O que lhe disse?
- A verdade. No interesse dela e no nosso, foi preciso uma operação cirúrgica. Foi o que fiz.
- Contou-lhe tudo?
- Sim.
- Mas você explicou... que minha intenção era boa?
- Nada ficou por explicar.
- E ainda assim ela ficou magoada... muito magoada.
- Ficou. - E Frida acrescentou, com crescente rispidez: - Já não lhe disse isso?
- Mas, seguramente, deve ter compreendido que eu não podia ir à África.
- Ela não veio aqui para convencê-lo a ir.
Ele levantou ambas as mãos.
- Mas, meu Deus, como podia eu adivinhar que a Missão se incendiaria?
- Nas presentes circunstâncias, isso era mais do que provável. As missões estão sendo todas transformadas em fogueiras.
- Meu Deus, Frida, sinto-me horrivelmente transtornado. Preocupa-me o regresso de Kathy. - E fitou o relógio. - É possível que ela tenha perdido a lancha... e é a última para Melsburg. vou sair atrás dela... Talvez ainda esteja no embarcadouro.
- Pois bem, vá.
As palavras de Frida foram ditas num tom cortante. A expressão daqueles olhos, com suas pupilas miúdas, fê-lo enrubescer e esmorecer.
- Não - disse. - Não seria prudente... Você tem razão.
Novo silêncio. Depois, com firmeza, ela pousou-lhe a mão sobre o ombro.
- Pelo amor de Deus, procure ser homem. Ela é jovem, e, a exemplo da mãe, logo esquecerá tudo. Você está em condições de lhe fazer uma doação, e uma boa doação. Mais tarde, poderá enviar-lha dentro das formalidades legais.
- É - disse Moray levantando ligeiramente o rosto. - Graças a Deus, tenho posses para isso. Hei de proporcionar-lhe uma vida confortável. Mas Frida... - Moray hesitou, fez uma pausa um tanto longa, e depois disse, suplicante: - Esta noite não quero ficar só.
Ela pareceu examiná-lo com um interesse quase clínico, mostrou-se a ponto de recusar, mas afinal cedeu.
- Está bem. Embora você merecesse ser castigado, ficarei. Suba e tome o banho de costume. Depois, cama, pois está muito cansado. Direi aos criados que lhe levem a ceia. Eu irei depois.
Ele fitou-a com um ar abjeto.
- Deus a abençoe, Frida.
Ela esperou que ele galgasse a escada, depois, atravessando o salão, saiu para o terraço. Atrás dos farrapos das nuvens, a lua brilhava fracamente. Havia degelo; a neve do relvado adquirira um amarelo encardido, e um cheiro húmido e sensual de folhas enchia o ar. Ela espichou a vista para o lago. Sim, lá ia a lancha, pequena fonte de luz brilhante e aconchegada, já a caminho de Melsburg. Um débil palpitar de motores chegava-lhe aos ouvidos. Kathy mal tivera tempo de entrar a bordo. Desviando o olhar, fitou o embarcadouro. Sim. Tudo quieto e deserto. A única lâmpada amarela, habitualmente acesa a noite inteira, iluminava o solitário banco de madeira. Ninguém sentado nele.
CAPÍTULO VINTE
ESPERTANDO angustiadamente de um sono agitado, Moray teve o sentimento confuso de despertar numa singular obscuridade. Onde estava? E por que estava só? Depois, através do peso que lhe oprimia a fronte, o primeiro bruxuleio de consciência apresentou-lhe a humilhante resposta.
Deus, tinha sido horrivelmente inábil, procurando consolação nos braços de Frida. Bem que ela quis ajudá-lo, primeiro suscitando-lhe o desejo, depois, incentivando-o, finalmente, com uma paciência penosa. Tudo debalde - não conseguiu o que queria. Depois, seriamente fatigada pelas inúteis tentativas dele, Frida dissera, num tom que mal disfarçava o desprezo, mas em que não havia nem amargura nem frustração:
- Precisamos de descansar um pouco, se é que vamos viajar amanhã cedo. Não seria melhor que você fosse para outro quarto?
E agora ali estava ele, no quarto de hóspedes - em verdade, quase um hóspede em sua própria casa. Por que, dizia de si para si, sua virilidade normal o abandonara? Teria o choque repentino do reaparecimento de Kathy provocado uma impotência depressiva? Podia bem ser isso - a fêmea grandalhona em sua cama antiga, seus odores almiscarados e a anatomia musculosa haviam suscitado nele imagens
paralisantes da forma esbelta e jovem que ele uma vez possuíra - Kathy, que bem podia ter sido sua, mas que em vez disso ele irremediavelmente perdera.
Kathy... Deitado de costas, começou a gemer. Se ao menos não tivesse faltado com a palavra dada, tudo se teria ajeitado, como fora do seu desejo. Deus do Céu, como fora idiota, em sua fraqueza, em sua sede de companhia, casando com Frida! Em verdade, ela o apanhara: ele engolira a isca, o anzol, a linha e o chumbo, e era trazido agora, arquejante, para a margem. E com que perícia ela o pescara: primeiro, aquela resignada aceitação de sua partida, congratulações, amáveis oferecimentos de assistência; depois, a gradual disseminação da dúvida, até ao assalto frontal a seus receios. Por fim, quando ele já se achava suficientemente subjugado, aquela decisão firme, uma ordem quase, para que ele se casasse com ela. Infelizmente, reconhecia-lhe a força. Teria de ser dela, de corpo e alma.
Deus do Céu, que horrível situação! Uma raiva impotente tomou conta dele, seguida por um espasmo de nojo de si próprio. Lágrimas ardentes
vieram-lhe aos olhos à ideia da sua deslealdade para com Kathy. Entretanto, não fora uma traição proposital, disse de si para si, mas apenas um momento de confusão, um lapso pelo qual já fora castigado, e pelo qual posteriormente poderia dar satisfação.
Satisfação... sim. Essa ainda era a chave, a palavra imperiosa. Custasse o que custasse, não devia perder o contato com Kathy. Não obstante o acontecido, ela estava sob a responsabilidade dele, sob seus cuidados, o que era essencial tanto para ele como para ela. Precisava, sim, precisava encontrá-la imediatamente. Uma carta explanatória, contrita mas construtiva, era a sua necessidade mais premente, não apenas para traçar os planos de ajuda que tinha para ela, mas também para exprimir-lhe a esperança de que, quando o desgosto tivesse sido abrandado pela compaixão, eles poderiam tornar a ver-se. Extravasaria todo o coração nessa carta, e, como na manhã seguinte partisse com Frida, precisava escrevê-la sem tardança. Uma luz débil e vacilante pareceu aclarar a nublada perspectiva do seu futuro. A esperança é a última que morre - nunca se deve desistir. Graças especialmente ao seu dinheiro sempre haveria meios e modos de recompensar Kathy. Talvez que, no correr do tempo, tudo se aplainasse. Pôs-se até a imaginar um divórcio amigável, que futuramente o libertasse... e podia sem dúvida confiar no perdão de sua amada.
Apressando-se, levantou-se com esforço, acendeu a luz, e, enquanto vestia com dificuldade o roupão, olhou o relógio de pulso. Vinte minutos para a meia-noite. Não teria dormido mais de uma hora. Cautelosamente, foi tateando o caminho para o patamar. Crescendos rítmicos e pouco melodiosos, coando-se através do quarto dele (agora dela), fizeram-no encolher-se. Passou depressa junto à porta. Embaixo, na biblioteca, sentou-se à escrivaninha junto da janela, acendeu a lâmpada do abajur, e apanhou papel de carta da gaveta central. Depois, com a pena na mão, o olhar voltado para a escuridão exterior, pôs-se a procurar, apreensivo, a forma de tratamento que mais a tocasse. Deveria escrever "Querida Kathy", "Queridíssima Kathy", ou, mesmo, "Kathy, meu bem"? Ou, quem sabe, simplesmente o sóbrio, contido, mas tão significativo "Minha querida"?
Após refletir um pouco, fixou-se na última forma, quando através da sua abstração teve consciência de que um reflexo de luz brilhava à distância, na noite opaca. Eis a lua, pensou, vendo um sinal de bom augúrio naquele brilho repentino - a disposição de ânimo em que se encontrava era realmente propícia aos avisos e presságios. Entretanto, não poderia ser a lua, pois o céu continuava uniformemente escuro, e aquela luz parecia ser, mais que uma radiância, uma cintilação estranha, um lampejo movediço de pontos luminosos, dançando como fogo - fátuo sobre as invisíveis águas do lago, lá embaixo. Que seria aquilo? Habituado a contemplar o desencadeamento dos mais tempestuosos elementos sobre aqueles píncaros imprevisíveis, não era provável que se espantasse com qualquer fenómeno terrestre. Entretanto, era tão tenso, tão instável o seu estado de espírito, que não pôde reprimir um leve tremor de suspeita.
Levantando-se, abriu a janela, e, a despeito de estar pouco agasalhado (sempre tivera tendência para os resfriados), saiu para o terraço.
A noite, conforme suspeitara, estava escura como breu e mais fria do que ele supunha. Fechando melhor o chambre leve, espichou o olhar para as luzes. Estas já estavam mais perto, misteriosa e surpreendentemente mais perto. De repente, porém, ele compreendeu aquilo, e num reflexo de absurdo alívio, até podia ter sorrido, embora não o tenha feito - de sua própria tolice. Ora! Era a pequena frota pesqueira! Meia dúzia de barcos, a dançarem alegremente sobre as águas, os homens lançando as redes, pescando de noite com tochas de petróleo! Os felchen deviam estar saltando, e em cardumes, para que eles saíssem tão tarde para a pesca.
Estava quase para voltar ao conforto da casa, quando uma ideia o assaltou. Os felchen não apareciam no inverno, e nunca, ao que soubesse, naquela parte do lago. Costumavam aglomerar-se na embocadura do rio, onde chegavam transpondo a garganta do Reisberg. Pondo a mão em pala sobre os olhos - embora isso não fosse necessário - para uma averiguação mais atenta, viu com espanto um bando de gente reunido no embarcadouro. Que seria? Àquela hora da noite. Hesitou. Quis entrar, deixando as coisas como estavam, mas algo o impeliu a ir apanhar o seu binóculo, o esplêndido binóculo Zeiss que adquirira em Heidelberg.
A princípio não conseguiu encontrá-lo; mas, depois de revirar várias gavetas, achou-o. De volta ao terraço, assestou-o rapidamente sobre o lago; viu, então, que todas as luzes estavam aglomeradas agora em torno do embarcadouro, uma a uma se apagando, até que uma cortina de trevas, escassamente atenuada pela lâmpada do cais, tapou-lhe a visão.
Baixou o binóculo, indeciso. Estava com uma dor de cabeça de rachar, e, por alguma razão extraordinária, sentia o coração bater-lhe fortemente dentro do peito. Devia entrar; tinha de escrever a carta, a carta já iniciada, de modo simples, e comovente, com "Minha querida"... E teria entrado, se não o contivesse o som de passos que se aproximavam.
Voltou-se. Dois homens, a princípio vistos indistintamente, depois, pouco a pouco, adquirindo forma reconhecível, vinham subindo pelo caminho que dava no lago: tratava-se do encarregado do embarcadouro e de Herr Sacht, da Polizeiwache da aldeia.
Sempre achara graça no fato de a polícia cantonal, em todo o seu aspecto exterior - o duro capacete, seu uniforme azul e espaçosas botas, - ser tão parecida com os guardas-civis londrinos; talvez aquilo fosse no passado um delicado cumprimento, supunha ele, a fim de que os milordes ingleses que visitavam a Suíça se sentissem mais seguros e mais à vontade. Agora, porém, já não achava graça, nem tampouco se sentia seguro e garantido à medida que Herr Sacht e o companheiro avançavam em sua direção. Sentia, ao contrário, um aperto no coração, sinal premonitório de uma desgraça desconhecida ainda, mas inevitável.
- Griiss Gott, mein Herr. - Respeitosamente, quase a pedir desculpa, o encarregado do cais tomou a iniciativa de falar, pois Sacht, lento e fleumático, era sempre parco em palavras. - Aconteceu um desastre lá embaixo... e nós viemos aqui pedir o seu conselho... embora não queiramos incomodá-lo. Uma moça...
- Não... não... - disse Moray, mal podendo respirar.
- É, sim. Acabamos de encontrá-la.
- Mas como?... - Não pôde dizer mais nada; pálido e rígido, perdera o fôlego.
- Depois que passou o bote noturno, ouvi um chape na água... assim como o salto de um peixe. Não desconfiei de nada. Mas ao dar o meu último giro no cais, achei uma bolsa caída no chão, e, à flor da água, um chapeuzinho de mulher boiando... Achei prudente avisar a Polizei. - E olhou para Sacht, que sacudiu a cabeça num gesto de vigorosa aprovação. - Saímos nos botes, e, depois de dragar duas horas, encontramos a moça... morta, naturalmente. - Fez uma pausa de respeitosa compaixão. - Receio que seja a sua amiga... aquela garota inglesa, que chegou hoje de tarde, na lancha das cinco...
Encarando-os, Moray recuou horrorizado. De repente, rompeu a chorar histericamente.
- Oh, meu Deus, não pode ser. Mas sim... uma moça... ela veio... Kathy - Kathy Urquhart... minha amiga, conforme dizem, filha de uma velha e muito querida amiga... Ela nos deixou... Corria para alcançar a última lancha...
- Ach, só? - disse Sacht, sacudindo a cabeça com tarda compreensão. - Corria no escuro... e talvez... ou antes, isto é, decerto foi um acidente.
com ar apalermado, Moray olhava ora um ora outro, atento a qualquer possibilidade que o isentasse de culpa, procurando por uma saída do impacto que lhe causara aquela desgraça atroz.
- Que outra coisa podia ser? - À custa de muito esforço, procurou algumas palavras elucidativas. - Ela estava a caminho de casa, e veio ver-me de novo - uma visita breve - só para me dizer adeus. Era enfermeira, vocês compreendem - diplomada, - uma enfermeira com grande prática... e ia trabalhar na África com o tio... um missionário. Quis mandar levá-la de carro... mas ela já tinha passagem comprada e gostava de viajar de lancha. Decerto escorregou, pisou em falso... havia chovido, e a neve derretida é muito traiçoeira ... E agora... - Moray cobriu o rosto com as mãos.
- Que tristeza para o senhor, Herr Moray - disse o encarregado do embarcadouro. - Mas não queremos incomodá-lo. Entretanto, o senhor podia ajudar. Pergunta Herr Sacht se o senhor podia ir conosco para identificar o corpo... Quanto ao relatório, ele mesmo o fará.
- Sim, naturalmente... irei com vocês - e sua voz exprimia um desejo de ajudar, toda a sua boa vontade em cooperar...
- Primeiro vá vestir uma roupa mais quente a fim de não apanhar um resfriado. Esperaremos que se apronte.
Até então Moray não percebera que estava quase nu. Na prateleira do saguão achou um sobretudo, boina e cachecol, e um par de botas para neve, com forro de feltro. Juntando-se, rápido, aos outros dois, desceu pela vereda abaixo. Ainda sob a ação do choque recebido, ele, instintivamente, representava um papel que visava à sua proteção; mas, ao aproximarem-se do embarcadouro, onde um grupo calado se reunira diante do baixo galpão que servia de sala de espera, não pôde reprimir um estremecimento de horror.
À chegada dos três, o grupo cindiu-se, e eles entraram na desguarnecida sala de espera, onde o corpo de Kathy fora deposto sobre uma mesa de pinho, debaixo de uma lâmpada simples, pendente do teto. Não havia mortalha, e ela estava semicoberta com o paletó de um pescador, que Herr Sacht discretamente retirou. A princípio, Moray não pôde olhar. Estava enregelado. Fitá-la seria exigir muito de si, seria fisicamente impossível. Olhava parado para a extremidade mais próxima da mesa, vendo apenas a sola gasta de um de seus pequenos sapatos marrons, ouvindo um contínuo e lento gotejar na ponta superior da mesa. O cheiro que se desprendia das tochas de petróleo e da fumaça de cigarros enchia a sala. Voltando-se prudentemente, seu olhar caiu num cinzeiro onde se lia: "Cerveja de Melsburg." Estava no chão, e transbordava de tocos de cigarros. Mas o encarregado do cais começou a falar, e ele precisava responder; caso contrário, poderiam imaginar qualquer coisa absurda. Lentamente, com grande esforço, ergueu e voltou a cabeça na direção da mesa, mas, protegendo-se ainda, sem olhar o rosto da morta. Não, ainda não... Por enquanto daria apenas uma rápida olhadela.
A absoluta imobilidade e a extraordinária imaturidade da morta
deixavam-no estarrecido. Ele tinha razões para saber que ela era frágil e delicada; porém, nunca sonhara que ela fosse tão... tão nova assim. As roupas encharcadas moldavam-lhe o corpo, arredondavam-lhe os seios delicados, bipartiam-lhe os frágeis membros, a ponto de revelarem o mons veneris - a frase veio... ele era médico - e tudo, tudo com a fria indecência da morte. Uma das meias escorregara e enrolara-se-lhe no tornozelo, um botão da blusa estava desabotoado, e uma das mãos, de palma voltada para cima como que estendida para pedir, dependurava-se a um extremo da mesa. A pele, molhada, começava a encolher.
Uma ligeira convulsão percorreu o corpo de Moray quando, vendo que tinha de fazer aquilo, dominou-se e contemplou aquele rosto,
do qual não mais pôde desviar os olhos. Voltado para a luz da lâmpada, o rosto de Kathy apresentava uma palidez esverdeada; os lábios estavam roxos e desfeitos, e o cabelo, encharcado e empastado na nuca, caía em mechas sobre o delicado pescoço branco, e a gotejarem sobre o soalho. Quase irreconhecível em sua feiúra mortal, o rosto dir-se-ia envolvido num estranho e insuportável enigma. Mais misteriosos, todavia, e mais insofríveis eram os olhos: sem expressão e ainda abertos, olhavam diretamente para ele. Subitamente, na insondável profundidade daquele olhar, ele se viu - num instante 'de verdade - tal qual era, sem nenhuma ilusão, desnudo sob o céu atento.
- Ach só? É a mocinha inglesa? - disse alguém, em voz baixa e compassiva.
Moray voltou-se, fez um lento e melancólico gesto de confirmação. A revelação poderia tê-lo arrasado; mas o hábito, o estilo, o molde dos anos, persistia.
- Ai de mim... é ela sim - disse, articulando cuidadosamente as palavras. - E é tão doloroso tudo isto, que não há palavras para exprimi-lo. Morta tão repentinamente... e tão jovem ainda. Só pode ter sido acidente. Observaram o sapato dela, a sola... gasta e lisa! Nas pranchas húmidas do embarcadouro... a borda escorregadia.
- Sim, é sempre perigoso com um tempo destes - falou o encarregado do cais, defendendo-se. - Mas é - me impossível enxugar as pranchas.
- Meu Deus, espero apenas que ela não tenha sofrido.
- Ach, não - disse duramente Sacht, todavia querendo ser bondoso. - O frio da água mata com rapidez. - E sacou do bolso o caderno de apontamentos.
- Bem... decerto vai pedir pormenores - disse Moray; e, pondo-se ereto, disse com toda a calma o nome, a idade e a nacionalidade da morta, que Sacht ia anotando no caderno, com um toco de lápis molhado em saliva.
Depois que tudo terminou, o encarregado do embarcadouro, valendo-se da compaixão que sentia, apertou o braço de Moray para dizer-lhe:
- Parece que não está bem, Herr Moray. Vamos a minha casa tomar uma xícara de café.
- Muita bondade de sua parte. Mas preciso ir-me. - E, voltando-se para Sacht... - Mais alguma pergunta a fazer? Suponho que já não precisa de mim.
- Por agora, não. Mas, naturalmente, será chamado a comparecer na Leichenschau.
- Ah... o inquérito... - disse Moray numa voz sumida. - Acha que é necessário?
- Para o senhor, isso é uma simples formalidade, Herr Moray; mas oficialmente exigida... para constar nos registros da Stadt.
- Compreendo. - E endireitou o corpo. - Mas fica entendido, naturalmente, que me cabe o direito de custear todas as despesas do enterro.
Havia algo mais a dizer? Aparentemente não. Ele apertou a mão dos dois homens, e, sem olhar de novo a morta, saiu.
Embora andasse devagar, poupando-se com frequentes paradas, Moray sufocava ao subir a colina. A despeito do frio, transpirava um suor abjeto que lhe escorria das axilas e da dobra interior dos joelhos, um suor que antes provinha da espantosa inutilidade do esforço que fazia para se iludir. Tudo fazia parte da mentira convencional, da aparência impressionante, da imponente fachada. Agora conhecia a verdade - a verdade sobre si mesmo. E cedo todos haveriam de conhecê-la também. Sim, tudo viria à tona, tudo, tudo - a reunião oferecida a Willie, seu noivado com Kathy, o comunicado de sua partida heróica para a África... E agora, passados poucos dias, ali estava ele ainda, casado com Frida, e Kathy morta! Deus do Céu, que não pensariam a seu respeito? O falatório, o escândalo, a reprovação geral, tudo recairia sobre si! E não podia escapar a isso - desta vez, não, - não podia partir de manhã cedo com Frida, não podia esgueirar-se despercebido e comodamente esquecer. Precisava ficar para a Leichenschau, ficar até que tudo se aclarasse, e, depois, continuar detestavelmente ligado a Frida, que nunca o deixaria fugir, mas que iria triturá-lo implacavelmente, reduzindo-o à última sujeição. E tudo isso, quando podia ter tido Kathy como esposa; Kathy que, naquele mesmo instante, ainda podia estar viva, amorosa e tépida em seus braços.
Num acesso de desespero sufocado, cerrou os dentes e debruçou-se no gradil, em busca de apoio. Aquilo era um sonho mau, um pesadelo, impossível compreender como tudo acontecera. As intenções dele foram boas, pretendera agir direito. Senhor, lutara tanto, quisera fazer bem a todo mundo! Era incapaz de maltratar sequer uma mosca. Não podiam censurá-lo se, na melhor das intenções, ele supervalorizara as suas forças, para depois cair e ser obrigado a recuar. Não fora uma traição deliberada a sua, fora apenas um momento de... já dissera isso antes, não adiantava repeti-lo, a
coisa já não funcionava. O instante de iluminação em que contemplara aqueles olhos mortos arrasara a imagem que fizera de si próprio. Rompida a casca falsa, nada restara... nada! Destruindo Kathy, destruíra-se a si próprio.
Entre as ruínas, a clareza com que via a podre impostura de sua vida era espantosa, estereoscópica, quadridimensional. Tudo acontecera por sua própria culpa; brotara, não do acidente, mas de algo interno, da sua tendência de sempre adotar o caminho que lhe parecesse mais vantajoso. Um génio no esquivar-se à responsabilidade, à dificuldade, às consequências desagradáveis, via agora que nada mais tinha feito do que chegar à sua conclusão lógica. Entretanto... "que homem fino", "que sedução", "que cultura", "que patrocinador das artes"... - quantas vezes ouvira esses elogios. Pena que tudo se acabara - ou em breve se acabaria - reputação, posição, liberdade, felicidade, esperança no futuro, e, naturalmente, sua crença em si mesmo. Uma lógica singular começou a dominá-lo, uma lógica de certo modo consoladora. Sacudiu duas vezes a cabeça, a concordar inteiramente. Aprisionado, emparedado, todas as saídas estavam seladas.
Chegou ao topo da colina e parou; estava exausto, mas estranhamente mais calmo do que antes. Que panorama! E que noite formosa! Soprava uma leve brisa, e a lua, ressuscitada, deslizava entre nuvens; uma leve cerração subia do lago, e ouvia-se, distante, o ruído de uma barcaça noturna e invisível. Seu pensamento mudou de rumo. Certa feita, um homem lhe dissera que a sua mais longínqua lembrança da infância era o resfolegar de uma máquina. Quem tinha sido? Esquecera. Seria interessante
perguntar-lhe o que queria ele dizer com aquilo. Formas indefiníveis, recordações de seu passado, surgiam e desapareciam em sua mente. Podiam dizer o que quisessem, vivera uma vida interessante. Uma coruja piou no pomar. De repente vislumbrou um ouriço-cacheiro - uma bolinha parda locomovendo-se na própria sombra através do relvado, com uma entristecedora ausência de velocidade. Entre todas as coisas, um
ouriço-cacheiro! Divertido, chegou quase a sorrir, lembrando-se de certa vez em que Wilhelm vilipendiara o pobre animalzinho por causa da pouca profundidade dos buracos que fazia na terra. Momentaneamente, perdeu o contacto com o meio ambiente, mas súbito tomou consciência do lugar onde estava.
- Cerds siliquatirum... - murmurou. - No Oriente, usam-se as folhas para fazer salada...
Sim, era uma bela árvore na primavera, a sacudir as flores purpurinas que manchavam o relvado. Uma prensa de lagar de vinho... ele sempre fora poeta...
Parou de meditar e, sob os galhos balouçantes da árvore, levantou a cabeça, olhando repentinamente para cima. O balanço, com suas longas cordas, oscilava mansamente na brisa. Sedutora... aquela oscilação fascinava-o. Acompanhando o brando movimento sobre um fundo de lua, ele não podia desviar os olhos do balanço. O débil rangido rítmico das argolas de metal era uma àriazinha a tocar em seu cérebro. A realidade desaparecera, e a ilusão lhe iluminava os olhos. Começava a tudo entender de um modo peculiar e interessante. Aquela calma extraordinária era a sensação mais maravilhosa de quantas experimentara. E agora falava - falava sozinho - numa voz tranquila e confidencial, formulando cuidadosamente as palavras: restituição, plena justificação, o tribunal de última instância - absolvendo toda a culpa, restaurando o seu ser ideal. Longo tempo ficou ali sorrindo para si mesmo, gozando antecipadamente a sua absolvição triunfal, antes de decidir que já era tempo de apresentar as provas.
Na manhã seguinte, logo depois das sete horas, Arturo, segundo as ordens da nova madame, dirigiu-se para o quarto de hóspedes, bateu na porta e entrou com a bandeja do café: suco de laranja, torradas e ovos quentes, mel silvestre, e o delicioso café à Toscanini na garrafa térmica de prata. Era péssima a sua disposição de espírito, pois estava quase certo de que teria de deixar o emprego; todavia, deu os bons dias e pôs a bandeja na mesa oval, junto à janela. Depois, abriu as cortinas de seda forradas, e, escancarando as venezianas, empurrou-as até encaixá-las nos prendedores automáticos.
A manhã estava fria e brumosa. O ar cortante fez com que os olhos de Arturo se enchessem de lágrimas, e ele sentia a cabeça anuviada pelo vinho que bebera na noite anterior. Estava para fechar a janela, quando repentinamente ficou hirto, perguntando a si próprio se estava realmente acordado. Embora não enxergasse claramente, esquadrinhou a cerração, atraído por uma miragem singular. Volvendo a cabeça lentamente, viu que não havia ninguém na cama. com a respiração presa, tornou a voltar-se com maior lentidão; depois, recuou convulsamente, esbarrando na bandeja que caiu com estrondo. Uma brisa vinda do lago havia movido a névoa luminosa, adelgaçando-a. E desta vez Arturo via, com toda a nitidez, o que pendia da árvore.
A. J. Cronin
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