Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ASTÚCIA DE CARLINHOS / J. W. Powell
A ASTÚCIA DE CARLINHOS / J. W. Powell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

A ASTÚCIA DE CARLINHOS

 

A valiosa prenda de aniversário

A propriedade dos Garden, em Lowick-Hill, não seria das maiores daquela região dos subúrbios de Londres, mas era incontestàvelmente uma das mais bonitas. O seu cottage, embora não obedecesse a um estilo rigorosamente definido, que o impusesse como autêntica obra de arte, era dotado interiormente de acomodações esplêndidas, muito confortáveis. O seu aspecto exterior, com a fachada toda bordada de trepadeiras verdes e tufadas a galgarem para cima do segundo andar até o telhado de ardósia, com as persianas pintadas de amarelo, num forte contraste com as verduras que as circundavam, com a sua escadaria nobre, à frente, a dar acesso ao amplo vestíbulo, onde se alternavam lindos vasos de plantas ornamentais com algumas copias de esculturas clássicas, muito graves nos seus plintos de mármore, começava a seduzir o visitante, mal este transpunha o portão que se abria para uma rua sossegada, de trânsito raro, por se encontrar num dos extremos da povoação.

Em volta do simpático edifício vicejava um jardim bem cuidado, que era todo o orgulho do João, o jardineiro, um velho que usava umas suíças fora de moda, todas salpicadas de sal e pimenta. Sulcavam o jardim arruamentos de saibro bem delineados e sinuosos com flores,

lindos tufos de roseiras, algumas árvores de grande porte, em cujos troncos se entrelaçavam heras caprichosas. O arruamento principal, que partia do largo portão de entrada até a escadaria, por entre canteiros floridos, bifurcava-se numa espécie de abraço, que cercava a casa eformava uma pequena rotunda. Aqui erguia-se um pequeno edifício, todo coberto de trepadeiras, onde o dono da casa guardava o seu automóvel, que raras vezes saía.

O Dr. Artur Garden era simultâneamente um grande médico e um óptimo cirurgião. O seu consultório, frequentado por uma clientela de escolha, considerava-se dos mais bem apetrechados de Londres e o Dr. Artur Garden, apesar de não contar mais de quarenta anos, presidia a um grupo de médicos auxiliares, muito notáveis e distintos, alguns deles de cabelos brancos.

Na sua casa de Lowick Hill, no seio duma família simpática, procurava o Dr. Garden o repouso e o sossego de espírito que todos os dias a sua clientela de enfermos lhe furtava na sua clínica londrina. Era ali que o grande ciruzgião se sentia feliz. Agora mesmo, acaba ele de regressar de Londres. O carro utilitário que ele próprio gosta de guiar, dispensando um motorista, entra no largo portão de ferro, que também se veste de trepadeiras, sobe a álea de saibro negro, onde os pneus produzem um rumor brando de sedas que se arrastam, e vai deter-se, com uma curva hábil, mesmo junto do primeiro degrau da escadaria quase sumptuosa, que conduz ao átrio.

Ainda não tinha aberto a portinhola, já duas crianças, ligeiras como aves que esvoaçam, correm ao seu encontro, para se dependurarem cada uma em seu braço, e lhe falarem ambas simultâneamente, num chilreio, qual delas a querer captar primeiro as atenções do pai. É um parzinho encantador, Isabel e Carlos, ela de oito anos, ele de dez incompletos. Enlevo de seus pais, diferiam um do outro como o dia da noite: ele, o Carlitos, louro, espigado, um pouco sardento, bonitos olhos dum azul celeste muito vivo; ela, a Isabel, moreninha rosada, pupilas dum castanho muito escuro, cabelo quase preto, dentinhos muito certos a espreitarem por entre lábios de romã. Lembrava muito sua mãe, a Sr. Garden, qe assomara à entrada do átrio e aguardava, com um sorriso doce, que o marido se aproximasse.

- Mas o Dr. Artur Garden, nesse dia, levava mais tempo a sair do carro, pois tivera que retirar do banco da retaguarda a valise grande, a misteriosa valise em que o médico costumava trazer compras mais numerosas, em dias excepcionais, daqueles que os pequenos costumavam marcar com uma pedra branca. Esse, 5 de Maio, era dos tais que eles não esqueciam facilmente:

esqueciam fàcilmente: Helena Garden fazia trinta e seis anos de idade e, simultâneamente doze de casada.

Quando o médico pousou, enfim, a misteriosa valise no primeiro degrau, os pequenos quiseram, cada um mais sôfrego do que outro, levar sòzinhos a mala.

- Arreda - exclamou Carlos. - Tu não podes. És muito criança para tanto peso.

- Tenho mais força do que tu - declarou Isabel, agarrando-se à argola da valise. - Queres ver?

E fazia sobre-humanos esforços para levantar o peso.

Com excessivas gargalhadas, Carlitos gritava-lhe, em ar de triunfo:

- Eu não te dizia ?.

O pai pôs cobro à discussão, pegando na mala. E o Carlitos dependurou-se-Lhe no braço direito, precisamente o que suportava o peso da mala, e Isabel no braço esquerdo, trepando ambos a toda a pressa para ver quem chegava primeiro à face do pai, para lha beijar.

Era todos os dias aquele regabofe. O Dr. Garden, rindo, subia os degraus com dificuldade. A Sr.a Garden, no topo da escadaria, dirigia repreensões sorridentes aos filhos.

- Meninos, deixem o papá. Fazem-lhe o fato numa rodilha... Não vêem que o maçam?

- Fui eu. Fui eu. -bradou Carlos, alcançando finalmente o pescoço do pai e beijando -lhe a face do seu lado. Mas Isabel não tardou em imitá-lo do outro.

-Não me importo!. -amuou ela. O melhor beijinho é para mim.

Entretanto, Emília, a criadita de fora, viera a correr libertar o doutor do estorvo da mala, mas não o podia libertar daqueles dois diabretes que só desceram quando ele, alcançando o topo da escada, abraçou e beijou sua esposa, renovando o parabém que, aliás, já lhe tinha desejado essa manhã.

- Veio alguém ? - perguntou o médico entrando no átrio, pelo braço da Sr.a Garden.

- Ninguém - respondeu ela. - Aliás, nos outros anos bem sabes que só tínhamos uma visita.

- O teu irmão.

-Sim, o Jaime. Este ano está em Paris. Não pôde vir pessoalmente, mas fez-se representar.

- Então, sempre veio alguém.

-Não, não veio pessoa alguma; veio uma coisa, um telegrama.

-Não se esqueceu de ti.

-Jaime nunca se esquece de nós. Não Lhe resta mais ninguém da família, a não ser eu, a mamã e os sobrinhos.

- E eu não sou ninguém?

- Sim, és muito para ele: um cunhado amável, e um grande amigo.

-Ah, não o duvides, sou muito amigo do jaime! só lamento a sua má cabeça. .

- Bem, não me lembres coisas tristes no dia de hoje, meu querido.

- Tens razão. hoje é para nós o dia mais bonito do ano.

Uma voz hesitante ergueu-se, perto deles, no átrio.

-Para ser totalmente bonito devia o nosso

Jaime estar presente.

O casal Garden voltou-se, ao som desta voz. Junto deles estava uma senhora idosa, porte majestoso, cabelo cor de neve a destacar-se dum rosto moreno, simpático, onde brilhavam uns olhos escuros e vivos. Era a Sr. a Doroteia Sommer, mãe de Helena Garden e, portanto, sogra do Dr. Artur Garden.

-Tem muita razão, mamã - replicou o médico. - Era pouco mais ou menos isso o que eu acabava de dizer a sua filha.

- Tens um coração cheio de bondade e de ternura; por isso mereces todas as felicidades com que o Céu te brinda - disse a Sr. a Sommer, com um tremor de comoção na voz. Mas vim ao teu encontro para te abraçar, meu querido Artur. Não te vi de manhã, antes de partires para Londres; por isso, só agora te felicito pelo abençoado dia de hoje.

A boa senhora estendeu os braços ao Dr. Garden, que a enlaçou com muita ternura.  

- Doze anos - disse ele. - Doze anos de       felicidade conjugal incomparável! Sua filha é bem o seu retrato em tudo, quer no físico, quer no moral, um verdadeiro anjo.

-Como tu te esqueces das tuas próprias virtudes!-exclamou a Sr.a Doroteia Sommer.

Entretanto, os dois pequenos tinham seguido a criada até a pequena saleta, antecâmara do quarto dos Garden, onde ela fora pousar a valise. Carlos, sempre endiabrado, encavalitou-se na mala, fingindo que seguia a galope.

-Olha que escangalhas isso e depois o papá ralha-advertiu Isabelinha, que não gostava das diabruras do irmão.

-Não escangalho nada. O que tu tens é inveja de não fazeres o mesmo - ripostou o Carlinhos.

Mas, de súbito, interrompeu a brincadeira, ajoelhou junto da mala e intentou mover a fechadura.

- Que estás a fazer ? - indagou Isabel, com estranheza.

- Queria abrir isto.

- Para quê ? - exclamou a pequena.

- Ora, ora. para ver o que está dentro. Com certeza que o papá trouxe hoje coisas boas.

-És um grande bisbilhoteiro. Não podes esperar mais um bocadinho até que o papá abra a mala ?

- Olha, olha, a fazeres-te santinha. - exclamou Carlitos. -Tu ainda és mais bisbilhoteira do que eu!

-Não mexo nas coisas que não me pertencem - redarguiu a pequena. - A mala é do papá, não é tua.

- A minha pena é estar fechada à chave.

- resmungou Carlos, teimando ainda em querer deslocar a fechadura.

- Ai, que feio- censurou Isabelinha. Não sabes que isso é um grande crime: querer abrir uma coisa que não é nossa e que ainda por cima está fechada à chave?

Carlos fez de conta que não a ouviu e indagou:

-Que é que tu imaginas que está cá dentro?

- Sei lá?. Prendas para a mamã, que faz hoj anos.

- E bolos - afirmou Carlos, convicto. O papá não deixava de trazer bolos, hoje que é dia de festa.

- A Sr. a Gertrudes fez um pudim lindo! para que havia o papá de trazer mais doces de Londres ?

- A cozinheira não faz os bolos ao gosto do papá - declarou Carlitos. E acrescentou, num ar importante - Nem ao meu. Por isso, o papá, quando quer doçaria boa, trá-la sempre de Londres.

- Adivinhaste, meu rapaz - apoiou a voz do Dr. Garden, que acabava de assomar à porta do aposento, na companhia da esposa e da sogra. -Não gosto dos doces da Gertrudes.

O Dr. Garden pegou na maleta, colocou-a em cima duma mesinha, enquanto todos o rodeavam. Carlitos, passando-Lhe por entre as pernas, apareceu com o nariz mesmo à altura da mala, que o pai principiava a abrir. Isabelinha chegada às saias da avó, escancarava muito os seus olhos escuros. Não era menos curiosa do que seu irmão, o que tinha era mais propósito.

O estalido que a fechadura produziu, ao abrir-se, fez com que o coração desse um salto no peito das duas crianças. O pai, bem- humorado, observava-as de soslaio e imprimia a maior lentidão a todos os seus gestos, para os impacientar. Levantou a tampa; mas, para desapontamento dos pequenos, só se viu um papel a cobrir o conteúdo, um papel bonito, com florinhas estampadas.

O Dr. Garden fez mais um compasso de espera. Cruzou os braços sobre o peito e, lançando um olhar, ora a Isabelinha, ora a Carlitos, perguntou:

-Vamos ver se adivinham o que eu trago aqui ?

- Doces - exclamaram os dois pequenos ao mesmo tempo.

- Sim, doces mas que espécie de doces ?

- Pudim de frutas - exclamou Carlos.

- Cremes de Chantilly - aventurou Isabel.

- Muito bem. Ambos adivinharam - disse o médico.

Ergueu o papel bonito e tirou sucessivamente, dois vastos embrulhos de papel ainda mais bonito, atados com um fitilho azul, e colocou-os em cima da mesa. As crianças bateram palmas.

-Agora, como prémio de terem adivinhado, têm uma prenda cada um. Aqui está.

Tirou dois cartuchinhos iguais, de papel

brilhante, amarrados na boca por uma linda fita de seda.

- Bombons ? - exclamou Carlitos, apoderando-se sôfregamente da sua prenda.

- Um saquinho igual de bombons para cada um- confirmou o Dr. Artur Garden.

- Então, não se agradece ao papá ? - perguntou, severa, a avó Doroteia.

Treparam, cada um por seu lado, até se dependurarem no pescoço do pai, e beijando-o, murmuravam Obrigado.

- A mamã - disse o cirurgião - já está a pensar que me esqueci de si.

-Ai, já estou velha para que se lembrem de mim replicou a idosa senhora, a sorrir.

- Bem sabes, Artur, que a única guloseima que a mamã adora são os rebuçados.

- Ó filha, passo bem sem eles - atalhou a Sr. Sommer, em cujas faces morenas se acenderam duas rosetas escarlates.

-Pois, hoje, apesar de ser dia de festa, mamã, terá de passar sem eles. Esqueci-me totalmente de si.

-Mas não te esqueceste do teu café, que é a coisa que mais adoras - interveio, risonha, a Sr. a Garden.

- O café com dificuldade passa clandestino. denuncia-se a distância, pelo aroma, o patife.

-exclamou o médico, tirando daquela espécie de malinha mágica um embrulho de café, cujo perfume realmente já se espalhava por toda a saleta.

- Meninos, não comam os bombons antes de jantar - repreendeu Helena, vendo que seus filhos já tinham aberto os seus saquinhos.

- Eu não comi nenhum, mamã - declarouIsabelinha.

-Mas tu já estás a comer, Carlinhos.

- Foi só para provar. um só para provar.

A Sr. a Sommer, embora quisesse resistir àquela pequenina tentação, não pôde deixar de espreitar para dentro da mala.

- Oh - exclamou ela, com alegria:  Muito gostas tu, Artur, de me fazer engordar um bocadinho!...

-Já descobriu o saquinho dos rebuçados.

Que indiscrição a sua, mamã!

A Sr.a Doroteia, corando mais ainda, replicou:

- Descobri-o sem querer. Já conheço o tipo dos saquinhos. Mas acredita, filho, não me zangaria, se por acaso te esquecesses... Tens tanto em que pensar. .

- Mas sempre me vou lembrando de todos

-foi dizendo o médico, enquanto estendia o saquinho de rebuçados a sua sogra.

E acrescentou:

-Hoje, porém, por mais estranho que isso pareça, esqueci-me de trazer uma prenda para a minha Helena. Imaginem, ela, que festeja ao mesmo tempo dois aniversários, o das suas trinta e seis primaveras e o dos seus doze anos de matrimónio, foi totalmente esquecida... Julgo que sofri dum verdadeiro ataque de amnésia...

Helena Garden escutava todo este arrazoado sem poder reprimir umas risadas cristalinas, que Lhe provocavam duas covinhas engraçadas, uma em cada face.

- Não fico amuada com o teu esquecimento - disse ela a seu marido. - Aliás, já contava com isso, motivo por que me muni dum óptimo remédio, excelente para a memória.

- Sim? - exclamou o Dr. Garden, com surpresa. - Não sabia que estavas tão adiantada em medicina, para assim te atreveres a receitar-me medicamentos.

-E tenho a certeza de que vais aprovar e usar o remédio, como se fosse receitado por ti. E quanto mais depressa começares a tomá-lo, melhor.

Helena Garden, ao proferir estas palavras, dirigiu-se a um pequeno móvel de acaju que ornava um canto da saleta e, abrindo uma das gavetas, tirou dela um estojo que entregou ao marido.

Era uma linda caixa quadrilonga, de marroquim, com um fechinho de ouro, que o Dr. Garden se apressou a abrir.

O médico quedou-se, um longo instante, a admirar o que aquele rico estojo continha. Os pequenitos erguiam-se nos bicos dos pés para espreitarem. A Sr. a Sommer, com um sorriso discreto, pois decerto não fora estranha à escolha daquela prenda, ficara a distância a contemplar o grupo. Uma luz de felicidade parecia iluminar-Lhe o rosto ainda muito fresco para os seus sessenta e dois anos de idade.

O que os olhos do Dr. Artur Garden e seus filhos contemplavam, extasiados, era uma riquíssima boquilha de âmbar para charuto, ornada de anilhas de ouro, numa das quais se entrelaçavam as iniciais A. G. e noutra se lia a data.

Passado o primeiro momento de surpresa, o médico lançou-se, muito comovido, nos braços de sua esposa.

-Oh, minha querida, isto é uma prenda principesca. Eu nunca me atreverei a fumar os charutos por esta boquilha. Tenho medo de a estragar.

-Pelo menos, estreia-a hoje, depois de jantar - pediu sua mulher.

- Bem - anuiu o doutor -, fumarei por ela só em dias solenes, como o de hoje.

Voltou a contemplar a boquilha, que repousava no seu fofo leito de seda creme.

- Gostas dela ? - perguntou-lhe sua esposa.

- Muito - respondeu ele. - E acho que como remédio contra a amnésia, é tão eficaz, que teve efeito retroactivo. Queres ver, querida?

Meteu a mão ao bolso interior do casaco e retirou um pequeno embrulho, muito bem feito, que entregou a Helena.

Os pequenos rodearam logo a mãe, para bisbilhotar; a Sr. a Sommer aproximou-se, a chupar um rebuçado, esquecida do mau exemplo que dava às crianças, saboreando antes de jantar aquelas guloseimas de que tanto gostava.

A esposa do doutor retirou o papel, com mão um tanto trémula, e ficou à vista um pequeno estojo de couro da Rússia, muito perfeito, que fez soltar um oh!, de admiração aos mais curiosos. Mas o assombro subiu de ponto, quando Helena Garden, premindo um minúsculo botão de platina, fez levantar a tampa num movimento automático e alguma coisa relampejou dentro do estojo, que era forrado de seda verde-pálido.

- Oh, que maravilha - exclamou a senhora, comovidíssima.

- Que precioso encanto - corroborou Doroteia Sommer.

- Mostre, mamã, mostre - choramingou Isabelinha, suspendendo-se-Lhe no braço.

- Mas eu já vi esta jóia - gritou Carlitos.

- Sim, já viste, mas pintada - replicou Helena, afagando-lhe o louro cabelo com a mão.

- Reconheceste-a - disse o médico, dirigindo um terno olhar a sua esposa.

-Mas é o alfinete que figura no teu retrato pintado por teu irmão - exclamou a Sr.a Sommer.

- Ah, a mamã também o reconheceu ?observou o Dr. Garden, como que agradecido.

Era um alfinete preciosíssimo, uma flor estili zada, toda de rubis, sobre a qual, brilhantes de bom quilate e duma água muito pura formavam uma estrela de cinco pontas. O contraste do brilho claro, aquoso, dos brilhantes, sobre o vermelho dos rubis era surpreendente de beleza e de simplicidade. O desenho fora inspirado num grande retrato a óleo, que Jaime Sommer, irmão da Sr.a Garden, um artista de grande merecimento, executara uns seis anos antes. Por graça, ele pintara uma jóia assim, apenas inspirado na sua fantasia, para fazer crer, segundo o seu gracejo, que sua irmã era podre de rica. O Dr. Garden lembrara-se de mandar fazer num dos melhores joalheiros de Regent Street, a reprodução exacta em pedraria autêntica e rara daquela jóia que até então não existira senão em pintura e em imaginação.

Oh, Artur - exclamou Helena, num tom de doce censura. - Esta jóia deve ter-te custado uma verdadeira fortuna.

- Uma bagatela - replicou o médicocomparada com a jóia que tu és.

Nesse momento, Emília, a criada, que nesse dia ostentava a farda azul das grandes solenidades, assomou à porta para dizer que o jantar estava na mesa.

 

O estranho capricho de Isabelinha

A sala de jantar da família apresentava o aspecto dos dias festivos. Um vasto compartimento do rés-do-chão, mobilado com sóbria sumptuosidade, tinha duas das suas janelas amplas volvidas ao poente; de onde vinham dourados raios do Sol em declínio, que acendiam fulgores nas pratas e nos cristais.

Aquelas cintilações parecia emprestarem mais alegria à que já primava na casa. As risadas de Isabelinha e do irmão obrigavam as pessoas mais velhas a sorrir, mesmo contra vontade.

Na ampla mesa tomaram lugar o doutor e sua esposa, um a cada cabeceira; à direita de seu genro, a Sr. a Sommer, e em frente desta, lado a lado os dois irmãos: Isabelinha, à esquerda do pai, e Carlitos, à direita da mãe.

Éram os lugares em que ficavam habitualmente, mas nesse dia, como se metera mais uma tábua na mesa, achavam-se um pouco mais distantes uns dos outros.

Devido à solenidade do dia, Bob o criado mais velho, dirigia o serviço da mesa, auxiliado por Emília, a graciosa criadita de dezassete anos, bonita e elegante, muito rosada e muito váidosa da sua gola branca engomada e do diadema de rendas que lhe ornava as madeixas douradas, levemente ondeadas. Bob, embora não usasse esse título demasiado pomposo, exercia as funções de mordomo. Era ele quem comandava todo o pessoal da casa. Tinha um físico imponente, um tanto majestoso. A sua face, muito escanhoada, era grave. Nesse dia envergava a sua casaca azul-escura, que lhe assentava como uma luva; apesar dos seus cinquenta, ainda apresentava um aspecto de robustez e de frescura, e ninguém lhe daria mais de uns trinta e tal.

A refeição iniciara-se na melhor disposição de espírito. Para isso muito contribuira um pequeno incidente provocado por Isabelinha.

De todas as pessoas, incluindo Bob, Emília e a própria Gertrudes, cozinheira, que a Sr.a Garden tivera a gentileza de mandar chamar para lhes mostrar a prenda excepcional que seu marido lhe ofertara, para comemorar doze anos de matrimónio feliz, quem ficara mais impressionada com a beleza da jóia, fora Isabelinha.

Pedira a sua mãe que Lhe pusesse o alfinete na palma da mão, para o examinar de perto. E permanecera um longo momento a contemplá-lo, absolutamente fascinada. A sua absorção fora tão completa, que todas as pessoas presentes, incluindo os criados, que ela parecia ter esquecido, a observavam em silêncio e com um sorriso de estranheza.

Achando excessiva aquela contemplação, Helena Garden decidiu espertá- la, pois ela parecia ter adormecido de olhos abertos.

- Então, minha filha - disse ela -, ainda não viste bem?

- Não me canso de o ver, mamã - respondeu a pequena, numa voz que traía uma viva comoção. - É tão lindo este alfinete!

-Gostavas de ter uma jóia assim?-perguntou-lhe o pai.

- Oh, papá - exclamou Isabelinha. - O dia em que eu tivesse uma jóia assim, seria o mais feliz da minha vida!

Esta expansão tão pouco própria da sua idade provocou uma risada em torno.

- Hás-de ter um alfinete como esse, minha querida, quando chegares à idade própria. quando fores uma senhora- vaticinou o Dr. Garden.

- E se fizeres por merecê-lo- ajuntou, sentenciosa, a avó.

- Mas eu não sou màzinha - exclamou a pequena, volvendo de novo os olhos para os brilhantes, que cintilavam na palma da sua mão.

- Sou obediente, gosto muito dos meus pais e da minha avòzinha. e se faço às vezes alguma maldade não é por querer... Portanto, porque não hei-de merecer uma coisa tão linda?

A pergunta era um tanto embaraçosa. No entanto, o Dr. Garden deu-lhe resposta pronta.

- Olha, minha filha, a tua primeira falta é o estares fazendo alarde das próprias virtudes. Em verdade, tens sido muito boazinha; mas, neste momento, pecaste. Não devemos ser nós a elogiar as nossas qualidades; temos de deixar esse trabalho aos outros.

- Então, peço que me perdoe este erro.

-murmurou Isabel, sempre com os seus belos olhos pretos, de longas pestanas, fixos na jóia como se esta exercesse nela uma atracção irresistível.

- Estás perdoada, Isabelinha- disse Helena.

- Muito obrigada. - ciciou a pequena, corando.

E acrescentou, em voz trémula:

- Queria pedir-lhe uma coisa, mamã.

- Pede, sim, minha filha - disse Helena, afagando- Lhe a cabeça.

-Deixas-me estar hoje à mesa, com este alfinete ao peito?

O pedido era tão estranho e tão inesperado

que as pessoas mais velhas se entreolharam, perplexas.

- O que és, Isabelinha, és uma grande vaidosa! E uma invejosa I. - exclamou Carlitos.

- O menino não tem autoridade para apreciar os actos de sua irmã- interveio a Sr. a Sommer, em tom severo.

- O que ela queria era o alfinete para ela.

- resmungou o rapazito. - Se pudesse, até o roubava à mamã.

- Ó Carlinhos, isso diz-se?. - repreendeu a avó, tornando-se mais severa.

Entretanto, o casal Garden tinha-se consultado com o olhar. Estavam perante um capricho de criança que não sabiam se deviam ou não satisfazer. Helena de boa mente acederia ao pedido da filha; mas, como o marido lhe trouxera aquela jóia com tanto entusiasmo, era porque decerto gostaria que ela a usasse nesse dia.

- Que fazemos ?. - murmurou ela ao ouvido do doutor.

- Seria para ela um prazer enorme - replicou ele, no mesmo tom. - Se não te importas, deixemo-la usufruir hoje essa grande alegria.

E pegando no alfinete que Isabelinha continuava a contemplar, extasiada, colocou-lho ao peito.

- À menina fazem todas as vontades. Se fósse eu.

Carlitos não continuou: um triste olhar de censura de sua mãe paralisou-o, fazendo-Lhe afluir todo o sangue ao rosto muito branco, que ficou como um pimentão.

- Tu é que me pareces invejoso do prazer da tua irmã.

- Pronto - exclamou o doutor, acabando de fechar o alfinete sobre o peito da filha. -Vê lá se te fica bem.

Isabelinha volveu-se para o grande espelho oval, de moldura dourada, que pendia ao canto, por sobre o pequeno móvel de acaju. Juntou as mãos, num gesto de quem se sente maravilhado, mas, reparando nos risos de todos que se reflectiam no cristal, sentiu-se muito envergonhada e, volvendo-se para sua mãe, estendeu-Lhe os braços e enlaçou-a, ocultando o rosto no seu peito.

Quando se sentaram à mesa, ainda a hilaridade provocada pelo estranho capricho da criança não tinha esmorecido totalmente. Só Isabelinha permanecia muito séria, numa atitude grave de pessoa crescida, muito metida nos seus pensamentos que, por certo, seriam importantíssimos para a sua idade.

Na posição que ela e o irmão ocupavam à mesa volviam as costas à janela, por onde penetrava a suave luz do fim da tarde, de maneira que ambos ficavam em frente da vasta parede, em que se viam três grandes quadros dois, um a cada extremidade, certamente da mão do mesmo autor, representavam frutos e flores tão viçosos, que dir-se-iam reais entre eles, porém, atraía os olhares um quadro muito alto, um retrato em tamanho natural. Era esta a tal obra de Jaime Sommer, irmão da Sr. a Garden, em que esta se via de pé, num majestoso vestido de veludo grenat escuro, quase preto, ornado de rendas finíssimas, que lhe descia até os pés. Era uma toillete de cerimónia, que lhe deixava os braços à mostra; o canhão das luvas brancas subia-lhe até meio do antebraço, num contraste com a carnação morena da retratada, e uma das mãos segurava um lindo leque semiaberto. Era nesse vestido que cintilava, num realce muito vivo, o tal alfinete de brilhantes e rubis fantasiado pelo artista. Ali, as feições de Helena Garden apresentavam uma semelhança flagrante, o seu sorriso nada perdera da doçura real e os seus belos olhos escuros, como a massa ondeante dos cabelos, tinham reflexos claros, dum tom azulíneo baço.

Maquinalmente, sem fazer reparo na observação de que era alvo, Isabel erguia de quando em quando os seus olhos para o retrato, a procurar a cintilação da jóia que não podia ver tão completamente porque a trazia ao peito. Talvez a sua imaginação infantil lhe criasse a ilusão de estar a ver-se a um espelho mágico, que reflectisse a sua imagem com mais vinte e tantos anos de idade.

Os pais pareciam intrigados com a criança e trocavam olhares, como se se interrogassem um ao outro.

-A Isabel está a pensar como será quando for crescida como a mamã- declarou Carlitos, convicto, como se se tratasse duma certeza e não duma simples hipótese.

- Talvez o Carlos tenha razão - admitiu a Sr. a Sommer.

As três pessoas adultas entreolharam-se, com certa surpresa.

-Não é para desprezar a hipótese do Carlitos - disse o cirurgião.

-As crianças têm, às vezes, ideias tão estra nhas - murmurou a Sr. a Garden.

Isabelinha manteve-se como que alheada deste breve diálogo. Dir-se-ia não o ter ouvido. Para se certificar, o Dr. Garden dirigiu-se à filha.

- Isabel, é verdade o que diz o teu irmão ? A pequena estremeceu, como se a despertassem dum sono profundo, e pronunciou:

- Falou comigo, papá ?

-Falei, sim, minha distraída. Não ouviste o que disse o Carlinhos?

- Não, papá.

-Diz ele que estás a pensar como serás quando fores crescida como a mamã. É verdade?

- Sim, papá, é verdade - confessou a pequena. - Estava a pensar que, quando for crescida, o tio Jaime á-de pimtar o meu retrato como o que pintou à mamã, e que também

hei-de ter depois uma jóia igual a esta, só para

mim, que o papá me há-de oferecer, não é verdade?

-O que estas crianças de agora são capazes de fantasiar, é uma coisa que me enche de espanto - exclamou a Sr.a Sommer, meneando a cabeça, num ar péssimista.

- Fantasiam o mesmo que todas as crianças, em todos os tempos - sentenciou o Dr. Garden. -A mamã é que já não se lembra do que pensava na idade dela.

-Eu já nem me lembro do que almocei ontem... -gracejou a boa senhora.

-Pois, havia de ter pensado muitas vezes no que seria e que faria quando fosse como as pessoas crescidas que a rodeavam - afirmou o médico. -Geralmente, as meninas tentam imitar a mãe e ser como ela; e os meninos, imitar o pai. Só mais tarde, quando a personalidade se afirma, procuram ser diferentes para vincarem a sua originalidade.

- Eu hei-de ser médico como o papáexclamou Carlos, com entusiasmo.

- Está a ouvir, mamã? O Carlinhos, agora, com dez anos incompletos, sonha em ser médico. E eu teria muito gosto em que ele o fosse, mais competente do que eu. Mas pode muito bem suceder que, dentro dalguns anos, nele se revele vocação para engenheiro ou para advogado.

-Se não for médico, quero ser pintor - declarou Carlitos, muito grave.

- Como vê - prosseguiu o doutor, dirigindo-se ainda a sua sogra - a sua opinião ainda não está bem formada. A sua vontade flutua entre duas carreiras que o atraem. E a verdade é que ele tem muito jeito para o desenho, como todos sabem. Por enquanto revela muito mais vocação para a pintura e o desenho do que para outra profissão qualquer.

- Se for artista - disse Helena -, queira Deus dar-lhe mais juízo do que a meu irmão.

-O Jaime não tem tanta falta de juízo como dizem- declarou, sisudo, o médico, encarando sua esposa. - O que ele tem tido é pouca sorte, desde que abandonou processos antiquados de arte, para enveredar por um caminho mais original, mais pessoal, e por isso menos compreendido.

- Desacreditou-se completamente-proferiu Helena, um pouco irritada. - Estava a encarreirar, a vender muito bem os seus quadros, com aceitação e aplausos nos meios aristocráticos. De repente, fez aquela exposição de enigmas, autênticas adivinhas que ninguém compreende, e tornou-se alvo da troça geral, caiu no ridículo.

-O pior foi nunca mais ter ganhado um ceitil e persistir na asneira, enchendo-se de dívidas até à ponta dos cabelos - suspirou a Sr. a Sommer. - Só duma pessoa sem juízo. Que Deus o proteja lá por Paris, onde com certeza não o tomaram mais a sério do que em Londres.

-Talvez seja lá mais compreendido - disse Garden. - Em Paris aceitam- se melhor as ino vações em arte. É uma cidade onde há público para tudo.

-Não tenho fé nenhuma no seu triunfo

- murmurou Helena.

-A propósito, que diz Jaime no seu telegrama ? - indagou o médico.

- É muito lacónico. felicita-nos pelos dois

aniversários, abraços à mamã e beijinhos aos pequenos.

-Foi gentil não se esquecer do dia de hoje

-disse o doutor, com um sorriso de agrado.

- Ah - exclamou a Sr. a Sommer. - Se Jaime tivesse um cérebro tão bom como tem o coração!

-Pois merece que também nos lembremos dele. Vamos fazer uma saúde em que o envolvamos no nosso regozijo pelo dia de hoje: O médico volveu um olhar para Bob, como a indicar-lhe o que ele, atento, aliás já principiara a fazer: encher os copos.

-Para o menino Carlinhos só dois dedos

-recomendou Helena Garden.

- Mas eu já sou quase um homem - repontou o pequeno.

O Dr. Garden ergueu-se, e disse, não sem uma pontinha de comoção:

-Minha querida, primeiro estás tu. Faço ardentes votos porque o teu aniversário natalício se repita indefinidamente e com tanta felicidade como hoje. Creio que te sentes venturosa, Helena. Tua mamã é a sogra mais gentil do mundo, tens marido que só pensa no teu bem- estar, teus filhos são umas crianças encantadoras. Que Deus te conserve a felicidade que possuis ou que ta aumente se for possível. Em seguida, felicito-te e felicito-me pelo passo que demos, fez hoje doze anos. Tivemos sorte um com o outro. Abençoada seja tua mãe que tão inteligentemente soube educar-te para esposa modelar. Portanto, vamos beber por ti, por tua mãe por teus filhos e por teu irmão Jaime, que não se esqueceu de quem tanto o estima. Hip Hip Hip. Hurrah.

- Hurrah. - brindaram todos, alegremente.

- Hurrah - bradou uma voz, como que num eco, no limiar da porta da sala.

Todos os olhos se volveram, cheios de surpresa.

-Cheguei precisamente a tempo de colaborar nessa saúde - disse a mesma voz.

Um homem dos seus trinta e poucos anos, delgado, moreno, grandes olhos negros, revolta cabeleira preta, avançou, a mostrar belos dentes, num sorriso folgazão.

- O tio Jaime-exclamaram as duas crianças, ao mesmo tempo.

 

Outro capricho da Isabelinha

Levantaram-se todos da mesa, como que impelidos por uma mola. Só a Sr.a Doroteia Sommer ficou imóvel, porque a sua comoção fora tão violenta que lhe roubara as forças para se mexer.

- Mas que enorme surpresa - exclamou o Dr. Garden.

-E depois do telegrama expedido ainda hoje de Paris - lembrou Helena, cheia de espanto.

- O telegrama foi para despistar - replicou Jaime Sommer, sacudindo a sua revolta cabeleira, num movimento peculiar. - Assim, convenci-os melhor da minha ausência. Mas a verdade é que tomei o avião, logo depois de ter telegrafado.

Acabou de dizer estas palavras, já com um sobrinho em cada braço. Ambos beijavam furiosamente o tio Jaime que, apesar de não o verem há mais dum ano, ainda conservavam muito vivo na sua memória.

-Esqueceste-te, Jaime, de que não se brinca assim com o coração duma pessoa da minha idade - disse a Sr. a Sommer, numa censura meiga, tendo recuperado enfim o dom da fala e a faculdade dos movimentos.

Jaime pousou os sobrinhos no chão e correu a amparar nos braços sua mãe, que se levantara da mesa e dera alguns passos vacilantes na sua direcção.

- Mamã!

- Meu filho!

Permaneceram um longo momento estreitamente enlaçados, sem poderem pronunciar mais palavra, ante o olhar enternecido dos pequenos e do casal Garden.

Entretanto, a um sinal do correcto Bob, já Emília tinha colocado ràpidamente um talher na mesa, a esquerda da Sr. a Sommer, enquanto o próprio Bob punha a cadeira no seu lugar, como se tudo já estivesse à sua espera.

- Chegaste mesmo em boa altura - disse o Dr. Artur Garden, depois que ele e sua mulher cumprimentaram efusivamente o recem-chegado. - Senta-te. Tínhamos começado há pouco, ainda não se seguiu o segundo prato.

Jaime relanceou um olhar e, vendo o lugar vago ao lado de sua mãe, exclamou:

- Mas já sabiam que eu tinha chegado. Bob sorriu discretamente e murmurou:

-O Sr. Doutor conta sempre com a provável presença do Sr. Sommer.

Esta saída diplomática do criado provocou uma risada geral.

- Tio, vieste pelo ar ? - perguntou Carlitos, mal Jaime acabara de sentar-se.

- Sim, Carlos, vim de avião. Uma viagem magnífica. Ainda é dos prazeres melhores deste mundo: voar. Não percebo como há gente que ainda tem medo de viajar de avião. Não há automóvel, nem comboio, nem transatlântico, por mais confortáveis, que ofereçam sensação mais deliciosa que a de voar!

- Já voei - disse Helena. - Mas confesso que me sinto um pouco inquieta lá nas alturas.

- Eu não voaria por preço algum- confessou a Sr. a Sommer. - E estou sempre receosa, quando qualquer pessoa da família viaja de avião. A última vez que Artur foi à Irlanda para fazer aquela operação a Lorde Scott, não sosseguei enquanto não o vi aqui, junto de mim, são e salvo. Acho um meio de transporte perigosíssimo.

-Já os nossos avós diziam o mesmo do comboio-gracejou Jaime, que começara a comer sem cerimónia e com bastante apetite. E agora já ninguém pensa que há mais desastres de caminho de ferro que de avião. A sensação é incomparável. Dá- nos uma convicção de domínio sobre os elementos, sobre o mundo, que nem sei explicar!

- Papá - exclamou Carlitos, de repente. Eu gostava de ser aviador!

O cirurgião sorriu e olhou para sua mulher.

- Vês ? - disse ele. - Como havemos nós de saber qual é a verdadeira vocação das crianças? Obedecem aos impulsos do momento.

-Mas tu tinhas-me dito que querias ser pintor como o tio - lembrou Jaime Sommer, fitando o pequeno, numa fingida censura. Assim voltas as costas à sublime arte das cores?

- Mas eu também quero ser pintor - afirmou Carlos, convicto.

- As duas coisas ao mesmo tempo ? - indagou Helena.

- Sim, mamã, não pode ser ? - replicou o pequeno.

-Podes aprender a pintar e tirares depois o brevet de aviador - disse o artista. - É mesmo mais fácil ser-se um bom aviador do que um grande pintor.

O Dr. Garden interveio.

-Já não te compreendo, meu filho-disse.

- Ainda não há muito tempo me disseste tu que gostavas muito de ser médico como o pai. Francamente, já não te entendo.

O pequeno ficou muito embaraçado, corando, sem saber que responder. A avó veio em seu auxílio.

-O Carlitos ainda é muito novo para escolher uma carreira - disse ela. - Deixem-no pensar bem; dentro de poucos anos tomará uma resolução.

-Há-de ser pintor. Ainda tens jeito para os bonecos ? - perguntou o Sr. Sommer.

- Tenho lá dentro muitos bonecos a cores. O tio quer ver? - exclamou Carlinhos, entusiasmado.

- Temos tempo depois de jantar - atalhou Helena Garden, temendo que o filho abandonasse a mesa para ir buscar o grande monte de papéis cobertos de desenhos que guardava no seu quarto, muito mal arrumados, por sinal.

Estabeleceu-se um súbito silêncio, daquelas longas pausas na conversação geral que parece obedecerem a um tácito acordo de todos, para se concentrarem melhor nos seus pensamentos ou para procurarem outro rumo ao diálogo. Jaime Sommer aproveitou o ensejo para comer mais apressadamente, a fim de ganhar o atraso a que estava dos restantes convivas. E de súbito, pousando o talher, lembrou:

- Mas faziam uma saúde, no momento em que eu entrava! Porque não continuaram?

- Porque nos é muito mais agradável renovar agora o brinde na tua presença- replicou o Dr. Garden.

- Com muito prazer- disse Jaim rguendo-se e levantando o seu copo. - Deixem-me exprimir também neste dia tão jubiloso para minha irmã e meu cunhado, particularmente, os meus votos porque os aniversários como o de hoje se repitam infindàvelmente, com saúde, felicidade. e dinheiro. Hip, hip.

- Esperem aí! - bradou Carlitos, interrompendo -Não tenho vinho para acompanhar o brinde.

- Então, que fizeste ao que Bob te deitou? -inquiriu a Sr. a Sommer.

- Bebi-o.

Houve uma risada geral, enquanto Bob, o correcto mordomo, a um sinal do doutor, deitava mais um dedal de vinho no copo de Carlinhos.

Durante alguns momentos aquela família tão unida e tão simpática entregou-se alegremente aos brindes entusiastas. Jaime Sommer, com o seu feitio folgazão, era o que imprimia mais vivacidade àquelas manifestações de regozijo.

Foi só quando estas abrandaram um pouco e a refeição prosseguiu, que o artista, depois de fixar por instantes a sua pequena sobrinha muito grave no lado oposto da mesa, teve uma exclamação de surpresa e comentou:

- Estás muito bonita, Isabelinha! Que jóia maravilhosa tu trazes ao peito! E tem graça que parece-me estar a reconhecê-la.

Os circunstantes sorriram em torno, enquanto a pequenita se tornava mais séria e se endireitava mais na cadeira, provàvelmente para parecer mais alta.

-Não reconheces o alfinete que Isabelinha traz hoje ao peito? - perguntou o doutor a seu cunhado.

Jaime Sommer franziu o sobrolho e afirmou-se melhor.

- Mas - disse ele, de repente - esta jóia não é de Helena?. Ah, esperem. tem graça. É uma imitação real do alfinete de fantasia que eu pintei no retrato.

E volveu-se na cadeira para examinar a pintura que estava na parede à sua retaguarda. E retomando a primitiva posição, voltou a fixar a jóia com os seus olhos negros, penetrantes, e declarou:

- Foi magnífica a ideia de transformar aquele sonho numa realidade tão linda.

- Imagina de quem partiu a ideia - pro nunciou sua mãe.

- Ora, de quem havia de ser - replicou o artista. - Foi do Artur, com certeza.

- É verdade - corroborou a Sr.a Garden.       Teu cunhado fez-me hoje esta linda surpresa, para comemorar a primeira dúzia de anos da nossa felicidade conjugal.

- Foi uma ideia gentil - aprovou o pintor.

- Merece, por isso, os meus aplausos mais entusiásticos. Mas o que não compreendo é que seja a Isabelinha a usá-lo e não Helena, a quem se destina a prenda.

- A mamã deu-me licença para eu a trazer - acudiu a pequena com alvoroço. -Gosto muito deste alfinete!

-Mas não acho muito próprio para a tua idade - objectou o tio.

- Eu já estou muito crescida... toda a gente diz que estou muito alta - replicou a pequena empertigando-se mais.

- Ora, ora. - interveio Carlitos. - Muito mais alto e mais velho sou eu, e nem por isso uso a boquilha do papá.

Esta intervenção provocou uma gargalhada em torno da mesa. Bob que, devido à sua categoria na casa, podia permitir-se umas certas liberdades, lembrou:

-A menina Isabelinha precisa de ter muito cuidado em não perder essa jóia de tanto valor.

- Não perco - replicou a menina, levando instintivamente a mão ao peito, como que para certificar-se de que o alfinete não lhe fugira.

O Dr. Artur Garden achou conveniente mudar de conversa e interpelou o cunhado:

- Como te dás lá por Paris ? As tuas cartas são tão raras e tão lacónicas, que nem fazemos ideia da vida que tens levado.

- Uma vida esplêndida! Uma vida como eu sempre sonhara - exclamou o artista. - Há muito tempo que eu devia ter tomado o rumo de Paris.

-Ganhas mais dinheiro do que em Londres ? - perguntou a Sr.a Sommer, com interesse.

-A mamã confunde sempre felicidade com dinheiro - replicou Jaime, com um gesto de impaciência.

-Não, meu filho, toda a gente sabe que o dinheiro não dá a felicidade, mas ajuda-disse Doroteia Sommer. - No mundo em que vivemos, sem dinheiro nenhum, não se pode ser feliz. É preciso algum, o suficiente. .

- Bem, mamã - atalhou o filho -, eu tenho tido em Paris o dinheiro suficiente. Não em excesso, mas o bastante para fazer uma vida decente e poder dedicar-me inteiramente ao novo género de pintura que o meu espírito exige.

-O tal género de pintura que ninguém entende - disse Helena, num leve tom de censura.

- Que tu não entendes - emendou Jaime Sommer. - Mas, pelo facto de tu não entenderes, não significa que não haja pessoas que a compreendam e apreciem.

-Há gostos para tudo -murmurou Helena.

- E em Paris tens alcançado aceitação ?indagou o Dr. Garden.

-Muito mais do que eu esperava.

- Fizeste uma exposição, não é verdade ?

- Duas - rectificou o pintor. - Uma com trabalhos à minha nova maneira, que levei de Inglaterra, e que foram aqui alvo de risos e troças. Essa constituiu um êxito animador. - E outra que encerrei há duas semanas apenas. Bem, esta teve até um bom resultado financeiro.

- Tão bom como o que logravas em Lon dres, quando pintavas à antiga maneira - perrguntou o médico.

- Não, nada que se pareça com isso-exclamou Jaime. - O público deste género de arte não é tão endinheirado como o público das obras à "bota de elástico", mas é incontestàvelmente mais entendido.

-Tu dantes, em Londres, só com uma exposição, chegavas a fazer quase uma fortuna - observou a Sr. a Sommer.

O artista esboçou um sorriso melancólico.

-Pois, agora, com a décima parte me contento, mamã - confessou ele. - Olhe, a minha última exposição em Paris chegou para pagar as minhas pequenas dívidas e aimda me sobrou para me permitir esta viagem de avião, e poder passar aqui uns dias na vossa companhia.

-Abençoada arte que me proporcionou o ensejo de te ver, meu filho - exclamou a Sr.a Sommer.

-Espero que fiques connosco, não uns dias, mas umas semanas - disse o médico.

- Precisas de repousar. acho-te magro - apoiou Hlena.

-Impossível demorar-me mais do que três ou quatro dias; tenho compromissos a respeitar.

- De ordem artística ? - perguntou o Dr. Garden.

O pintor sorriu.

- De ordem artística e sentimental - disse ele, após uma hesitação.

- Não me digas que pensas em casar, precisamente na altura da tua vida em que ganhas menos dinheiro - acudiu Doroteia, em tom de reprimenda.

-Penso muito a sério. Tenho trinta e dois anos.

- E a noiva é uma francesa, não ? - inquiriu Helena.

-Parisiense de gema.

- E tem fortuna? - perguntou a Sr. a Sommer.

- Tanta como eu.

-É pintora como tu?. . -insinuou Helena.

-Muito maior e muito mais ousada do que eu.

- Junta-se a fome com a vontade de comer

- comentou a Sr.a Sommer, meneando a cabeça num ar pessimista.

- Não, mamã - redarguiu Jaime, com entusiasmo- são duas vontades de triunfar que se aliam; duas almas que aspiram a realizar os mesmos ideais.

- Tens razão, Jaime - disse o doutor. Na união conjugal deve procurar-se, acima de tudo, aliar as afinidades de espírito. Isso vale mais do que um bom dote.

As sentenciosas palavras do médico-cirurgião encerraram o debate daquele assunto. A refeição prosseguiu no meio de sã alegria. Fizeram-se mais saúdes. No fim da refeição, a Sr.a Garden, que era dotada de grande intuição musical, instada por seu irmão, sentou-se ao piano e tocou algumas peças de Chopin.

O Dr. Garden estreou então a sua boquilha de âmbar, que o próprio pintor achou de muito bom gosto. O Carlitos assediou o tio de perguntas sobre o seu novo método de fazer bonecos, obtendo a promessa de que Jaime, no dia seguinte, lhe faria algumas demonstrações. Isabelita, em despeito dos grandes esforços que fazia, não pôde em certa altura deixar de mostrar que estava a cair de sono.

- Isabel, é melhor ires para a caminha! eu vou deitar-te.

-Não tenho sono, mamã-redarguia a pequena, abrindo muito os olhos.

Era a primeira vez que a pequena, em regra tão obediente, se recusava a deitar-se. Foi Carlitos quem descobriu o motivo daquela resistência.

- A Isabelinha não quer deitar-se, para não tirar o alfinete! - exclamou ele.

O pequeno adivinhara. A ideia de separar-se da linda jóia era quase intolerável para a criança. Carlos pusera o dedo na ferida.

-Mas a mamã torna a deixar-te pôr o alfinete, amanhã, à hora do jantar - prometeu Helena.

Isabel amuara. Estendeu o beicinho e irrompeu num sentido pranto.

Que estranha paixão a desta pequena pela joia - estranhou a avó. - Parece-me que também anda nisso um bocadinho de má educação. Estás a dar-lhe muitas largas, Helena.

- Não chores, Isabelinha - prometeu-lhe o tio. - Deixa lá. Se o tio ganhar muito dinheiro em Paris, compra-te um alfinete igual a esse.

A promessa era demasiado vaga para a acalmar. Só houve uma maneira de sossegá-la e essa foi obtida pelo pai, que ordenou:

-Deixem-na dormir com o alfinete. O fecho é sólido, e não correrá o perigo de se abrir.   É isso que tu queres, Isabelinha?

- Sim, papá. muito obrigada-murmurou a pequena, entre soluços.

O doutor segredou a sua esposa, sem que Isabelinha, muito ensonada, o percebesse:

-Deita-a com o alfinete e, logo, quando ela estiver bem pegada no sono, tiras-lho com todo o jeito.

 

Um bom conselho de Emília

Na manhã seguinte, o Dr. Artur Garden e seu cunhado Jaime Sommer saíram bastante cedo para Londres. As senhoras e os meninos ainda ficaram deitados à hora matutina em que ambos partiram de Lowick- Hill, no carro ligeiro, para a cidade. O médico, apesar de muito afamado e de se fazer pagar bastante caro no seu consultório da Cit, empregava as suas manhãs em visitas a doentes pobres nos bairros modestos, aos quais muitas vezes ainda custeava do seu bolso as receitas que passava.      

O pintor aproveitou o carro do doutor, que o levava ao coração de Londres em menos duma hora. Precisava, dizia ele, de fazer algumas compras de material artístico que, principalmente as tintas, se não eram mais baratas, eram de melhor qualidade. Além disso, durante o trajecto, iriam dando à língua: mais dum ano sem se verem acumulara muita coisa para dizerem. Os dois cunhados eram amigos como irmãos. O médico, mais velho apenas oito anos, julgava-se, contudo, no direito de o aconselhar, como se Jaime fosse o seu irmão mais jovem; e o pintor, apesar da independência do seu temperamento e das suas opiniões, escutava-o sempre com muito agrado e não raro seguia os conselhos que Lhe pareciam sensatos. Como na véspera se tinham deitado muito tarde, os pequenos, às oito da manhã, hora a que os cavalheiros saíram, ainda dormiam a sono solto. A Sr.a Garden, contra os seus hábitos, deixara-se ficar no leito, amodorrada, a acabar uns restos de sonolência; a Sra Sommer, essa, era quem se levantava habitualmente mais tarde, e não ia, nesse dia, fazer uma excepção.

Nesse dia, o mais madrugador fora o Carlitos. Pouco depois do médico e do pintor terem seguido para a cidade, vira-o João, o jardineiro, a correr para o fundo da cerca, onde o pequeno tinha, num sítio abrigado por uns outeiros, o seu jardim particular, no qual não permitia que mais ninguém tocasse, nem mesmo o jardineiro.

Tinha ele ali dois pés de roseira e alguns malmequeres e pouco mais. Muitos dos arbustos, que plantava por suas mãos, morriam, o que o enfurecia. Bem perdia ele, às vezes, o seu tempo a ver como o João tratava das plantas para depois o imitar, no seu jardinzito. Mas o que resultava nas mãos do velho jardineiro, malograva-se nas suas. Uma das coisas que mais o intrigava era podar as plantas.

- João - perguntava ele, um dia, em que observava este a podar umas roseiras -, porque é que tu as cortas ? Não te faz pena ?

O velhote, que tinha muita paciência para o aturar e que gostava de lhe dar explicações do seu trabalho, que considerava uma verdadeira arte, espraiou-se num longo arrazoado, para concluir:

-Assim, as hastes que a gente corta são as que estão roubando o vigor à planta; esta, sentindo-se desembaraçada desses estorvos, torna-se mais vigorosa, e toda a sua força se concentra nos ramos que lhe restam, que se desenvolvem mais ràpidamente, e em novos rebentos que surgem com todo o ímpeto.

Muito em segredo, uma vez, o Carlitos foi buscar uma tesoura a casa e dispôs-se a podar uma das suas roseiras. Deixou-a toda mutilada e esperou que em breve ela crescesse a olhos vistos e maravilhasse sua irmã, que tinha ordem de contemplar o seu jardim, sem contudo poder tocar numa única flor sequer. Mas a roseira, que ele supunha tão bem podada, fora mortalmente atingida pelos seus golpes de tesoura. Não tardou em estiolar-se e morrer, enquanto a outra, que ele não tratara, se cobriu de rebentos e de folhagens e começou a dar os primeiros botões que não tardariam em abrir.

Carlos ficara furioso consigo próprio. Não confessou a ninguém o seu desaire, com vergonha de fazer má vista perante os outros, principalmente perante sua irmã, e quando esta, um dia, com pena da pobre planta que morria, lhe

observou que provàvelmente fora ele que a matara com a tesoura, ele respondera-lhe, num ar sabichão:

-Não digas asneiras, minha palerminha. Eu sei podar tão bem como o João. Fiz tal qual como ele.

-Então, porque é que as roseiras do Sr. João estão tão lindas e a tua está mesmo seca?

- Foi algum bicho que lhe atacou a raiz - respondeu o pequeno. - O Sr. João diz que há bichos ruins que comem a raiz das plantas, debaixo da terra, sem a gente os ver, e as matam.

Isabelinha, geralmente, contentava-se com as explicações do irmão que, por ser mais velho, lhe parecia mais sábio. Depois, o Carlinhos dizia as coisas num tom peremptório e tão seguro!

Outra coisa que fazia grande confusão ao pequeno era a enxertia. Era uma operação que ele seguia atentamente sempre que o João se entregava a ela, com um cuidado, dir-se-ia mesmo um carinho enternecedor, ao mesmo

tempo que dava vastas explicações ao pequeno, maravilhado.

- Esta pereira - dissera ele, um dia, ao enrolar uma espécie de ligadura de serapilheira em volta da bola de lama que colara no galho enxertado - dava umas peras amargas como fel. Para o ano, se Deus quiser, já nos há-de dar alguns frutos grandes, sumarentos, daqueles de comer e chorar por mais. E talvez não saiba que se pode aproveitar a raiz e o tronco duma planta para nela enxertar uma planta diferente?

      Num pé de roseira brava, por exemplo, pode-se enxertar uma roseira fina, daquelas que dão rosas maravilhosas, de cheiro delicioso.

O pequeno quis experimentar. Tinha no seu jardim um pé de roseira de toucar, cujas flores quase não exalavam perfume. Lembrou-se de cortar- lhe uma haste, tal como João fizera à pereira, e nela enxertar um pé de madressilva que era dos perfumes que mais o inebriavam. A operação deu-lhe um trabalho enorme, pela delicadeza das hastes, que requeriam muito cuidado para nelas se fazer a incisão. Mas a operação fez-se, e bem feita, segundo o seu critério. E tudo se realizou muito em segredo. Queria fazer uma surpresa às pessoas de família, principalmente à Isabelinha, que ele tanto gostava de assombrar com as suas habilidades.

Todos os dias ia espreitar os progressos da sua enxertia extraordinária: estava ansioso por ver medrar a planta para poder dizer a sua irmã:

-Vês aqui este pé de roseira ? Pois já não é roseira, é madressilva. Vim aqui com uma varinha mágica, bati três pancadas na roseira de toucar, pronunciei três palavras cabalísticas e ordenei-lhe: Transforma-te em madressilva, E a planta obedeceu.

Mas, ai, não tardou que as suas mais formosas esperanças se transformassem num desapontamento total. O galhozinho da madressilva murchou e depois ficou seco como palha. Carlitos arrancou-o, furioso, e arremessou-o para longe. Limpou os vestígios da enxertia e volveu costas à roseira mutilada para não ver o malogro da sua obra. Durante alguns dias não foi ao seu jardim; custava-lhe ver o resultado do seu desaire. Só quando aquele desgosto se atenuou mais, voltou ao seu recanto. Teve então uma surpresa que, até certo ponto, o compensou do malogro da sua operação: a roseira mutilada apresentava rebentos novos, muito viçosos, prometendo emendar com os seus recursos imprevisíveis o grave erro do Carlitos, que bem podia ter custado a vida à pobre planta. A mutilação que ele lhe fizera, por um bom acaso, actuava como se a tivessem podado, e agora dava generosamente as súas rosinhas delicadas, pequeninas, de cor suave e não inteiramente desprovidas de perfume.

Ao vê-lo passar a correr para o recanto do jardim, o velho Juão teve um benévolo sorriso e murmurou, entre dentes:

- Lá vai o menino Carlinhos ver a roseira que podou. Sim, senhor, desta vez soube tratar da planta. Desta massa é que se fazem os grandes jardineiros.

E soltou uma risada de bonachão. O bom velhote estava convencido de que o menino podara propositadamente a roseira; não lhe passara pela cabeça que tão bons resultados proviessem dum erro.

O Carlitos não tardou muito tempo em voltar para casa, a correr. Eram oito e vinte da manhã, ainda não tomara o pequeno almoço eàs nove horas em ponto, tinha que entrar na escola, que ficava a uns dez minutos de sua casa.

Ao penetrar no vestíbulo cruzou-se com Emília, criadita gentil e viva, ainda muito jovem - dezassete anos, talvez, que olhava especialmente pelas crianças.

-Tem o seu pequeno almoço na mesa - disse ela. - Onde se meteu o menino, que estou farta de procurá-lo?

-Fui, num instantinho, ver as plantas do meu jardim - explicou o pequeno.

Entraram na sala de jantar.

- E que tal ? Estão viçosas, as suas flores ?

-indagou a rapariga.

- Nem por isso - replicou Carlitos, num ar pessimista.

- Qualquer dia vou lá vê-las – declarou Emília.

- Não vale a pena, por enquanto. Quando estiverem bonitas aviso-te.

-Não sei que capricho foi o do menino fazer o seu jardim tão longe - lamentou a criada. - É preciso andar quase uma légua para se chegar lá.

- Assim está mais resguardado - disse Carlos que, entretanto, devorava com muito apetite o seu pequeno almoço, mais variado e sumptuoso que de costume, porque o enriqueciam muitos doces do dia anterior.

Terminada a rápida refeição, o pequeno meteu alguns bolos no bolso e, guardando, na pasta dos livros, o saquinho dos bombons, partiu como uma flecha a caminho da escola, gritando para a criada:

- Até logo, Emília!

- Até logo, menino! Não abuse dos bombons, que lhe podem fazer mal!

A correr pela álea central do jardim, direito ao portão, o pequeno já não ouviu o conselho da criada. Esta ficou a contemplá-lo, com um sorriso agradecido, do alto da escadaria, até vê-lo desaparecer pelo portão florido da entrada. Depois, volveu para dentro do átrio, subiu a escadaria nobre, toda alcatifada de vermelho, que conduzia ao primeiro andar, percorreu o longo corredor com cuidado, apesar da passadeira Lhe amortecer o som dos passos, e entrou no quarto do Carlinhos e levantou a persiana.

A claridade dum belo dia de Primavera inundou de alegria o gentil compartimento. O Carlinhos tinha uma linda mobília de madeira, pintada de amarelo claro, rebrilhante, no qual se destacavam, em cores vivas, animais em atitudes alegres e travessas: coelhinhos, pulando; galos de grande crista vermelha, abrindo o bico como se entoassem o seu hino da manhã; belos cães, malhados, a correr; cavalos, com seu jockey de calção branco e casaca vermelha, a saltarem obstáculos.

Apesar de muito vistos, Carlos ainda, por vezes, experimentava vivo prazer em contemplar aqueles bonecos. Muitos deles já os tinha reproduzido a lápis de cor, em papel branco, e tinha-os ali num grande maço, de mistura com outros desenhos, em cima da sua mesinha de toilette. Não consentia que lhos tirassem daquele sítio, o que arreliava muito a criadita, que pretendia ter o quarto muito arrumado.

Emília, depois de contemplar, por momentos, o jardim em baixo e o arvoredo do parque em volta, muito rebrilhantes de cor, devido à gloriosa luz dum dia magnífico que principiava, começou a arrumar o quarto do Carlinhos. Depois, passaria ao quarto do Sr. Jaime e aos das outras pessoas da família, à medida que elas se fossem levantando. Esse serviço prometia deitar até tarde, visto que toda a gente parecia estar disposta a permanecer na cama mais tempo do que habitualmente.

A Isabelinha não tardaria em acordar. Seria preciso dar-Lhe banho, vesti-la, penteá-la, servir-lhe o pequeno almoço; e Emília, lidando no quarto do Carlitos e trauteando baixinho uma canção alegre, calculava que não teria todo o seu serviço despachado senão lá para o meio-dia. E a que horas limparia o pó daquele quarto? Não queria pôr o aspirador eléctrico a trabalhar, com receio de que o zumbido forte do motor despertasse a menina Isabel. Deixaria a limpeza do pó de todos os quartos para o fim de tudo. O quarto da menina era no outro lado do corredor; a porta ficava defronte da do Carlinhos.

Agora, tudo era sossego dentro da vivenda. No primeiro andar, sobretudo, onde ficavam os quartos de dormir, a tranquilidade era absoluta. Só em baixo, na copa, havia alguma animação; mas Gertrudes, a cozinheira, que costumava gritar a propósito de tudo e de nada, falava em voz surda enquanto os patrões dormiam.

Pela janela aberta do quarto de Carlinhos, entravam, de mistura com a claridade e o aroma fresco do jardim, os trinados trémulos das avezinhas que povoavam as árvores próximas. Aquela propriedade era o paraíso da passarada, visto que o Dr. Artur Garden proibira que se matasse ali uma única ave.

João, o jardineiro, não podia levar à paciência tanta benevolência para os piores inimigos da sua obra.

- Sr. Doutor - lastimava-se ele, um dia -, estes malditos bicam-me tudo na horta, furam os frutos mais apetitosos e até quebram as hastes das flores mais delicadas. É preciso acabar-lhes com a raça.

- João - replicara o cirurgião, com severidade-, não blasfemes contra os produtos mais belos e mais graciosos da Criação. Deus não fez as aves para nós as destruirmos.

- Mas, Sr, Doutor - retorquiu o pobre velhote, com mais calor, não vendo senão os perigos que corria a sua obra-, então, as cerejas, as belas peras, as flores não são também lindas coisas da Criação? E havemos de consentir que estes pássaros bisnaus as estraguem ?

- Põe espantalhos! - ordenou o médico. Não quero que na minha propriedade se destrua nem uma ave.

De má vontade, o velho jardineiro teve de submeter-se. Ergueu espantalhos no pomar e no jardim, uns horrendos bonecos de trapos com uma bandeira flutuante na cabeça. Eram horrorosos; até metiam medo às crianças.

- Toda a gente tem medo destes monosdizia o pobre João, roendo no pipo do seu cachimbo - menos estes ladinos.

Contudo, ele não devia mostrar-se tão pessi mista; os espantalhos evitavam muito mais a destruição das plantas do que se andassem a caçar os inocentes passarinhos.

A música alegre que eles entoavam lá fora parecia insinuar-se na própria alma de Emília, que se sentia, essa manhã, particularmente feliz.

De repente, interrompeu a sua lida. Parecera- lhe ouvir chamar pelo seu nome. Apurou o ouvido. Não havia dúvida: Isabelinha chamava-a.

Abalou a correr, atravessou o corredor e abriu a porta fronteira.

- Viva a menina Isabelinha - exclamou a criada em voz festiva, fechando a porta, para não perturbar o sossego do resto da casa.

A pequena estava sentada na sua cama e esfregava os olhos com força.

- Que é isso ? - estranhou a Emília. Ainda tem tanto soninho? Não dormiu tudo? Se quer, faça mais um bocadinho de óó.

A menina esfregava enèrgicamente os olhos com os punhos cerrados. Emília aproximou-se para a beijar e abraçar, como era seu costume todas as manhãs, mas vendo-a arquejar, percebeu que a criança chorava. Abraçou-a com mais ternura, afagou-Lhe a cabecita e indagou:

-Porque chora a minha linda? Dói-lhe alguma coisa ?

- Não - respondeu Isabelinha, reprimindo os soluços.

- Quer dormir mais?

- Não - respondeu a menina, quase enraivecida.

- Então que quer a menina Isabelinha ?perguntou a criada, dando à voz uma inflexão mais carinhosa.

- Queria o alfinete de brilhantes - choramingou a pequena.

- Ora, ora. - replicou Emília. - A menina bem sabe que o alfinete de brilhantes é da mamã.

- Mas ela prometeu que me deixava dormir com ele--disse Isabelinha, com tom magoado: Pregou-mo no pijama para eu, ao acordar o ver...

Emília meneou a cabeça e esboçou um sorriso benévolo.

- Talvez a mamã precisasse dele e lho viesse buscar.

- Não precisava - redarguiu a menina, enraivecida. - Disse-me que não se importava de que eu dormisse com ele, e, afinal, veio tirar-mo quando eu estava a dormir. Isto não se faz. Se prometeu, prometeu.

Emília sentou-se numa cadeirinha minúscula junto do leito da Isabelinha, que tinha uma mobília igual à do irmão, só diferindo nas pinturas que a ornamentavam, que eram só constituídas por bonecas em várias posições, brincando com bolas coloridas, correndo atrás de arquinhos atirando ao ar bolas de sabão, empurrando carrinhos, isto é, fazendo elas, bonecas, tudo o que as meninas gostam de fazer. - Oiça, minha linda-disse ela. -A menina Isabelinha sabe que eu sou muito sua amiguinha, não é verdade?

-Ah, sim, Emília, tu és a minha melhor amiga - concordou a pequena, passando ternamente os bracinhos em torno do pescoço da criada, que a beijou com meiguice.

-Pois bem, vou ser-Lhe franca-prosseguiu a rapariga. - A mamã foi ontem muito condescendente consigo. O papá trouxe-lhe aquela linda prenda para festejar os anos dela. Ora, qual seria o maior gosto do papá? Ver que a sua mamã usava a prenda que Lhe trouxera pelos anos. E vai a menina, e zás! quer à viva força pôr ao peito a jóia que não é sua, mas da mamã. Deu um desgosto a ambos. Mas eles, como são muito seus amigos, preferiram sofrer esse desgosto, a desagradar à sua filhinha querida.

-Achas que o papá e a mamã tiveram desgosto por eu ter posto o alfinete?-perguntou Isabelinha, com grossas lágrimas a tremerem-lhe ainda nas longas pestanas negras.

- Pois tiveram - respondeu Emília. - Eles é que não lho disseram, para a verem contente.

A mamã sacrificou-se a não usar o alfinete, só para lhe dar um prazer. Deixou-a deitar-se com ele. Depois, naturalmente, quando a viu a dormir, veio tirar-lho.

- Mas a mamã diz que é feio tirar as coisas às outras pessoas - objectou a pequena.

- Claro que é muito feio - retorquiu a criada. - Mas a mamã não lhe tirou nada, só veio buscar o que lhe pertencia.

A pequena ficou um momento pensativa e murmurou depois, com desgosto:

- Eu gosto tanto daquele alfinete.

- Mas a mamã também gosta e é dela - acudiu a criada, em tom convincente. - E sabe o que a menina devia fazer para dar muita alegria à mamã?

- Não.

-Não lhe falar mais no alfinete.

- Ela nunca mais mo empresta ? - indagou Isabel, assustada.

- Descanse que lho há-de emprestar muitas vezes, como prémio da boa vontade da menina.

- Tens razão, Emília - disse a menina, voltando a abraçar a criada. - Até tenho vergonha de ter dado desgosto à mamã, e ao papá, talvez.

- Sim, ao papá também.

- Nunca mais falo nisso. e, assim, a mamã há-de emprestar-mo muitas vezes, não é verdade, Emília ?

- Com certeza, minha rica menina. A rapariga acarinhou a pequena ainda com mais ternura, comovida com a sua inocência e com o fundo bondoso da sua alma.

Isabelinha não tardou em esquecer o seu desgosto. Deixou que a criada a lavasse, vestisse e penteasse. Quando Emília a levou para a sala de jantar e lhe mostrou a variedade de doces que tinha à sua disposição para o pequeno almoço, o caso do alfinete de brilhantes já não passava duma pequena contrariedade remota no seu espírito.

 

O alfinete de brilhantes desapareceu

A Sr.a Garden mal dera pela saída do marido, de manhã cedo. Estava ainda tão cheia de indolência, que recaiu em profundo sono, depois dele sair, aliás, pé ante pé, para não a perturbar. A Sr.a Garden não era uma preguiçosa, mas precisava pelo menos de oito a nove horas de repouso quotidiano.

Como a vida em Lowick-Hill era muito pacata, sem outras distracções senão as do lar ou as do parque quando estava bom tempo, em regra todos se deitavam cedo. E a maior parte das vezes, a Sr. a Garden, às onze horas da noite, já estava na cama, para se levantar fresca e bem disposta, pelas sete, sete e meia da manhã do dia seguinte.

Mas a festa do aniversário e a chegada imprevista de seu irmão obrigaram a prolongar insensivelmente o serão até bastante tarde. Passava da uma hora da madrugada, quando os adultos se deitaram. Os meninos às dez horas já dormiam a sono solto. A Sr.a Garden abandonara a sala com os olhos a fecharem-se. Ainda fora beijar os filhos, como de costume antes de recolher aos seus aposentos, deitara-se quase a dormir. Caíra na cama como num poço.

Quando voltou a acordar, depois de seu marido sair, bocejou e sorriu bem disposta. Em seguida, teve um pequeno sobressalto, ao lembrar-se de que já devia ser muito tarde. Consultou o relógio que estava em cima da sua mesa de cabeceira: nove e meia.

Levantou-se dum salto, preocupada com os filhos. O Carlitos não Lhe dava muito cuidado porque, com a sua pretensão de ser homem, havia tempo que se habituara a levantar-se, lavar-se, vestir-se e pentear-se sòzinho, irritando-se, quando a criada ou a mãe o queriam ajudar.

- Já não sou nenhuma criança para necessitar de auxílio-costumava ele dizer, dando-se ares de importância.

A menina, porém, é que requeria mais cuidados. Era menos resoluta do que o irmão e estava habituada a mais mimos. Quase sempre a mãe ou a Emília presidiam à sua toilette matutina antes de tomarem o pequeno almoço. A este só costumavam assistir Helena Garden e os dois pequenos, porque o doutor abalava sempre muito cedo sem querer tomar coisa alguma, e a Sr.a Sommer, que adorava as manhãs no quentinho, entre lençóis, tomava o seu chá com leite, acompanhado de torradas e biscoitos, sentada na cama. Só por volta das onze horas se apresentava muito bem penteada e vestida com certa cerimónia. A idade não a fizera perder o gosto pela elegância e adorava as boas maneiras e certas etiquetas que a gente moça de hoje está pondo de parte com excessivo rigor, pois se é um pouco ridícula a ceri mónia excessiva, torna-se muito mais desagradável a completa ausência de delicadeza.

Lembrando-se da Isabelinha, a Sr.a Garden saltou da cama, envergou o seu roupão felpudo, passou o pente pelos cabelos negros e levemente ondeados e dirigiu-se logo para o quarto da menina. Aí só encontrou as roupas do leito em desordem, indicando que a filha fora mais madrugadora do que a mãe, e logo calculou que a Emília, carinhosa como sempre, tratara da pequena.

Desceu a escadaria que conduzia ao andar térreo e dirigiu-se à sala de jantar. Isabelinha mal a viu, bateu palmas de contente. Estava saboreando bolos, com a criada a seu lado.

- Bom dia, mamã - exclamou ela, com tanta jovialidade, que ninguém diria que, minutos antes, estivera tão desgostosa e chorara lágrimas tão sentidas no seu quarto.

- Bom dia, meu amor - respondeu Helena Garden, aproximando-se da filha e beijando-a nas faces: Então, como passaste a noite? Dormiste bem ?

- Dormi muito bem, mamã.

- Tiveste sonhos bonitos ?

- Não sei, mamã, já não me lembro - respondeu a pequena, a sorrir, ao mesmo tempo que lançava a mão a um bolo apetitoso, em que o seu olhar recaíra.

A Sr.a Garden puxou uma cadeira e sen tou-se ao lado da filha.

-A senhora quer que lhe sirva já o pequeno almoço ? - inquiriu a Emília, que era muito serviçal e tinha uns modos muito agradáveis.

- Não, eu hoje dispenso-o respondeu Helena. - Em dias de festa, mesmo que não se queira, come-se sempre de mais. Creio que ontem me excedi, sinto-me um pouco enfartada. Nada melhor do que fazer um pequeno jejum.

-Ao menos, uma pinga de chá. Trago-lho quentinho - insistiu a criada, no seu modo amável.

- Não, não, Emília, não teimes - replicou a Sr.a Garden, com uma careta de repugnância. - O que eu quero é que me vás preparar um banho quente. Deita-lhe algumas gotas de jacinto.

- E a que horas quer o almoço ? - indagou a rapariga.

-Olha, diz à Gertrudes que o tenha pronto para a uma hora. É natural que o Sr. Sommer venha almoçar. Meu marido, porém, é que não deve vir, como de costume; no entanto, sempre devemos contar com alguma surpresa. Pronto, vai tratar de tudo isso, que eu fico aqui com a menina. Ela tem comido bem ?

- Tenho, sim, mamã - foi Isabelinha quem respondeu. - Estes bolos são muito bons. Devíamos tê-los sempre ao primeiro almoço, e talvez às outras refeições.

-Então a menina não costuma ter sempre doces às refeições ? - replicou Helena, num leve tom de censura.

-Mas não tão bons como estes, mamã.

-Estes são melhores e mais variados do que habitualmente, porque sobejaram da festa de ontem, e é natural que ainda sobejem de hoje- disse a Sr.a Garden.

- Dão-se aos netos do jardineiro, não é verdade, mamã ?

- Lembraste muito bem! foi pena não te recordares disso um pouco mais cedo, antes de te sentires farta.

-Mas eu ainda não estou farta, mamã. E mesmo assim lembro-me dos netos do Sr. João.

A Sr.a Garden não pôde reprimir uma risada.

- Ainda não estás farta ? - repetiu ela, riso nha. - Mas que grande gulosa tu me saíste.

- Saio à avozinha, não é verdade ? - disse a menina, sem malícia. - Ela mesma é que costuma dizer: "Ai, tenho tanto desgosto em ser gulosa"!

Helena Garden tornou a rir com gosto. depois, observou, passando, enternecida, a mão pela face da menina:

- Mas tu não tens desgosto em ser gulosa.

-Eu não sou gulosa; só gosto de coisas doces. Se a mamã deixasse, em vez de carne cozida e de cenouras, que me custam tanto a comer, comia pudim de pão, que é o doce que mais me agrada.

- E achas que isso não é ser gulosa ? - perguntou a mãe.

-Será, realmente, ser-se gulosa gostar de pudim de pão?-indagou Isabel, muito séria.

- Bem, gostar não é feio. gostar muito, muito, muito, é que é detestável.

- Ah! Quem gosta muito, muito, muito, é o Carlinhos. Não achas que ele é guloso, mamã?

- Sim, um bocadinho, mas há-de corrigir-se-asseverou a Sr. a Garden.

Emília assomou à entrada da sala e declarou:

-O banho está pronto, minha senhora.

-E deste o recado à Gertrudes acerca do almoço ?

-Sim, minha senhora; ela disse que já estava fazendo tudo, como se os senhores almoçassem em casa.

- Óptimo 1- disse a mãe de Isabelinha levantando-se. E dirigindo-se à filha:-Já acabaste de comer?

-Já, mamã. Só me falta um bombom. Mas deixei o saquinho no meu quarto. Ando a poupá-los, sabes, mamã?

-Assim é que é bonito. Então vá buscaro saquinho lá acima, mas não abuse dos bombons, que fazem mal. Aliás, a menina não é muito gulosa.

- Ah I Isso não sou, mamãzinha - disse Isabel, convicta.

-Bem, minha filha, dá cá um beijinho-proferiu Helena, que já estava de pé e inclinando-se para a oscular. - Em acabando esse bolo, podes ir brincar para o jardim, se quiseres.

Está um dia tão lindo!

-Sim, mamã. Está um dia glorioso para passear as minhas bonecas! coitadinhas, que há perto duma semana que não saem. Vou vestilas, pôr lhes as jóias...

- É verdade - interrompeu a Sr.a Garden. -A propósito de jóias: onde puseste o alfinete? Gostaste de dormir com ele?

Isabelinha lançou a sua mãe um olhar de espanto.

- O alfinete? - repetiu ela.

- Sim, filha, o alfinete com que tu quiseste dormir por força; e a mamã fez-te a vontade.

- Então, a mamã não mo tirou durante o sono ?

Coube a vez à Sr.a Garden de lançar

um olhar de espanto a sua filha.

-Que quer a menina dizer com isso?

-pronunciou a Sr.a Garden, hesitante.

A pequena teve receio de irritar a mãe e murmurou:

- Nada, mamã.

Pegando no saquinho de papel que continha os restos dos bombons, Isabelinha desceu da cadeira e parecia dispor-se a sair da sala, a ir talvez para o jardim, quando a mãe, que a observava com um olhar em que havia surpresa e incompreensão, perguntou, quase ríspida:

- Isabel, onde está o alfinete de brilhantes ?

- Não sei, mamã- respondeu a menina, visivelmente atarantada.

- Não sabes ? - repetiu Helena, com espanto: Então, a menina tem uma birrinha, quer à viva força deitar-se com a jóia, sua mamã faz-lhe a vontade, e agora diz que não sabe onde ela está?

-Mas, mamã. - titubeou a criança - mamãzinha, eu julguei que mo fosses buscar, de noite. quando eu dormia.

- Eu não fui buscar nada - exclamou a Sr.a Garden. - É preciso esclarecer isso. Não o teria guardado Emília?

-Não, mamã, creio que não balbuciou Isabel, que principiava a assustar-se sèriamente.

-A Emília até me recomendou que não falasse mais no alfinete à mamã.

- Que não me falasse mais no alfinete?

-exclamou Helena, levando as mãos à cabeça. - Mas porque não se há-de falar mais no alfinete? Eu caio das nuvens! Aquela rapariga está doida, com certeza. Já vou esclarecer tudo.

A Sr. a Garden fez soar a campainha com um movimento enérgico. Emília não tardou em surgir ao limiar da porta da sala de jantar.

- A senhora chamou ? - perguntou ela.

- Chamei, sim - respondeu sua ama, com cara de poucos amigos. - Anda cá. Que história vem a ser essa a respeito do meu alfinete de brilhantes?

A criada olhou para Isabelinha, entre receosa e surpreendida. Não sabia o que se passara entre mãe e filha, e tinha medo de dizer, alguma coisa que atraísse sobre a menina a má vontade de sua patroa.

- Bem, minha senhora - gaguejou ela -, a bem dizer, não há história nenhuma. sim, a não ser que, sim, a menina Isabelinha gostava muito de ter um igual.

- Não se trata dum igual - atalhou Helena, impaciente. - Trata-se do verdadeiro. Porque é que aconselhaste a menina a não me falar mais no alfinete ?

Emília, um pouco mais perturbada, voltou a olhar para o rosto da criança, como que a procurar indicação para uma resposta. Mas só lia inocência e susto na sua expressão. Resolveu negar.

-Eu não disse isso à menina Isabelinha - declarou ela, baixando os olhos ao chão.

- Mau, mau - exclamou a Sr. a Garden já irritada. - Afinal, quem mente, tu ou a menina ?

-Eu não menti, mamã, tu bem sabes que eu nunca minto - disse a pequena quase a chorar.

A Sr. a Garden volveu o olhar para a criada que, visivelmente embaraçada, murmurou:

-Sabe, minha senhora, eu disse realmente à menina que não Lhe falasse mais no alfinete para bem da senhora e da menina Isabelinha. .

- Para nosso bem ? - replicou a mãe da pequena. - Mas que coisa tão estranha! Em que é que o não falar-me mais no alfinete nos faria bem ?

- Eu Lhe digo, minha senhora - tentou Emília explicar. -É que a menina andava com aquela mania de usar o alfinete. Ora isso era um contra-senso. Hoje de manhã, quando acordou, começou a chorar porque queria o alfinete.

Queria o alfinete? - interrompeu a Sr.a Garden. - Então, a menina não tinha o alfinete, quando acordou ?

- Não, minha senhora, não lho vi.

- Tu não tinhas o alfinete ao acordar ?estranhou Helena voltando-se para a filha.

- Não, mamã. Foi por isso que eu chorei. E então a Emília disse-me que não falasse mais nisso à mamã, para não a arreliar. que assim era melhor, e que a mamã até mo emprestaria algumas vezes, quando eu menos o esperasse. .

- Mas, afinal, quem lhe tirou o alfinete ? Foste tu, Emília ?

- Eu ? - exclamou a rapariga. - Então não foi a senhora, antes de se deitar?

- Não, rapariga, não fui eu - declarou a Sr.a Garden em voz transtornada.

- Eu não lho tirei. É preciso procurá-lo na caminha da menina. Com certeza que se abriu o fecho, durante a noite, e caiu. com risco de picar a criança. Vamos lá procurá-lo.

Um estranho nervosismo apoderara-se da patroa e da criada, nervosismo esse que parecia ter-se transmitido à criança. Subiram a escada para o primeiro andar e percorreram o corredor, sem proferirem palavra. Só perto do quarto de Isabehnha, a Emília disse, em voz trémula:

- Com certeza, está caído entre as roupas.

Felizmente que eu, hoje, ainda não tivera tempo de sacudi-las da janela.

-E se sacudisses, havia de cair para o jardim- observou sua ama, em voz surda. - Tanto se procuraria que o havíamos de encontrar.

Entraram no quarto. As roupas da cama de Isabelinha ainda estavam em desalinho, tal como ficaram quando a menina se levantara.

- Toma cuidado, Emília - recomendou a patroa. - Pode ter caído para o tapete e corres o risco de pisá-lo.

Emília, deteve-se, a olhar para o chão. A luz do lindo dia entrava a jorros pela janela, iluminando perfeitamente o soalho e o tapete de cores garridas. A criada curvou-se, sua ama imitou-a, seguidas de Isabel que ia atrás delas, pensativa, a beliscar o lábio inferior, o que era nela sinal de inquietação.

No chão não se via nada. Emília pegou na ponta do tapete e sacudiu-o, na esperança de ouvir cair a jóia; mas, nada.

-Talvez esteja do outro lado da cama - lembrou Helena, dirigindo-se logo para o espaço compreendido entre o leito e a parede.

Mas a pesquisa não deu resultado.

-Não teria deslizado para debaixo da cama? - lembrou Emília.

A Sr. a Garden meneou a cabeça, numa dúvida.

- O mais certo é estar entre as roupas - disse ela. - Vai tirando peça por peça e sacudindo aí no meio da casa.

Emília obedeceu, começando por retirar o álmofadão, que colocou em cima duma cadeira. Depois tirou a colcha de lã, fazendo um molho com ela e, dirigindo-se para o meio do quarto onde havia muito espaço livre, sacudiu-a com energia. Não se sentiu cair coisa alguma.

Não era muito provável que a jóia se tivesse prendido à coberta exterior, mas antes às roupas de baixo. Por isso Emília se apressou a levantar a manta, sujeitando-a à mesma operação de sacudidela, sem melhor resultado.

Com mão trémula e febril, a rapariga retirou os lençóis, um a um. Já não restava senão o delgado colchão de lã que se estendia sobre o colchão de arame. Estaria ali? Mãe e filha olhavam, como que petrificadas, os movimentos da criada, que levantou o colchão, mirou-o dum lado e outro, agitou-o, deixando-o cair, por fim, num gesto de desalento.

Entreolharam-se, aterradas. A Sr.a Garden estava horrìvelmente pálida, Isabelinha tinha os seus grandes olhos negros húmidos e brilhantes, Emília mostrava um ar desnorteado.

- Uma coisa assim. Pode-se lá imaginar uma coisa assim. - murmurava ela, relanceando o olhar por todos os lados, como se contasse ver surgir o alfinete donde menos se esperasse.

-Temos de nos convencer de que o alfinete desapareceu - pronunciou Helena, a querer dominar as suas apreensões.

- Mas desapareçeu como, minha senhora ?

- exclamou Emília. - Há-de aparecer, dê lá por onde der. Ainda não procurámos debaixo da cama.

Como que tomada por uma fúria, a criada arredou violentamente o leito e baixou-se a procurar, depois ajoelhou-se e engatinhou a examinar todo o soalho. Foi em seguida passar muitas vezes a mão e o braço debaixo do guarda-vestidos e da mesa de cabeceira. Não houve desvão nem recanto que ela não rebuscasse. Por fim, ofegante de cansaço, deixou-se cair, sentada sobre o leito, ocultou o rosto nas mãos e desatou a soluçar.

Isabelinha, vendo-a naquele estado, foi abraçar- se a ela, a chorar.

A Sr. a Garden, cada vez mais pálida, murmurou:

- E não querias tu que a menina me falasse mais no alfinete.

 

A opinião da Sr. a Sommer

Recobrando o sangue-frio, Helena Garden ponderou que ainda havia algumas esperanças de que não estivesse tudo perdido. Antes de se fazer um juízo precipitado, convinha interrogar, primeiro, a Sr.a Sommer e o doutor.

-       Qualquer deles bem poderia ter tido, por prudência, a lembrança de retirar o alfinete do peito da criança, não fosse ela picar-se ou perdê-lo nas voltas que desse durante a noite.

A Sr. Sommer acabava justamente de tocar a campainha a chamar a criada. Emilia teve um sobressalto.

- Ai - exclamou ela. - São horas de levar o pequeno almoço à mamã da senhora.

Já ia correr para a porta, mas sua ama deteve-a.

- Escuta, Emília - disse ela. - Primeiro, limpa essas lágrimas e vê se apresentas à senhora uma cara prazenteira. Não lhe digas nada, por enquanto, a respeito do alfinete.

- E se ela me perguntar?

-Não to pergunta, com certeza, e se to perguntasse, tinhas boa resposta: nada sabes.

- Sim, minha senhora.

Segunda campainhada indicava que Doroteia Sommer começava a perder a paciência.

-Ai, meu Deus, que descompostura vou apanhar I - lastimou-se a rapariga.

-Vai lá então, e não te esqueças do que te recomendei.

Emília saiu a correr.

A Sr. a Garden ficou um momento absorta no meio da casa, enquanto a filha erguia para ela os seus olhos lacrimosos. Um soluço da pequena despertou-a da sua abstracção.

-Não chores, Isabelinha-disse a mãe, sentando-se na cadeirinha baixa do quarto e puxando-a para junto de si. - Não chores, porque o alfinete há-de aparecer, talvez quando menos se esperar. Nunca te aconteceu perderes uma coisa, procurares por toda a parte e não a encon trares, e um dia, sem quereres, ires encontrá-la num sítio em que não contavas?

- Já, sim, mamã - respondeu a meninareanimando-se. -Ainda há dias me sucedeu isso, com aquele trem de cozinha bonito que a avó me comprou.

-Bem sei, foi encontrá-lo a Gertrudes na despensa, enrolado num pano- lembrou Helena.

-Talvez o anel esteja lá! Vamos ver?exclamou Isabel.

A Sr. a Garden não pôde deixar de sorrir da ingenuidade da criança.

-Não, filha, na despensa não deve estar com certeza, mas deve estar em qualquer parte que a gente menos espere - disse a mãe, puxando do seu lencinho e limpando-lhe carinhosamente os olhos húmidos.

Depois, a Sr.a Garden caiu de novo numa abstracção, ao mesmo tempo que murmurava:

- Não sei o que pensar de tudo isto. Que desgosto para o Artur, coitado. Tinha-me comprado esta prenda com tanto gosto!

A pequena passou-lhe sùbitamente os braços em torno do pescoço e lamentou-se, em voz comovida:

-E eu que fui a culpada de tudo, mamã! Se não fosse o meu desejo de me deitar com o alfinete, não tinha acontecido tudo isto.

Em verdade, foste um poucochinho exigente. Devias ter-me restituído a jóia antes de te deitares, em paga de eu te ter permitido andar com ela todo aquele tempo. Mas, culpada não és, porque não ias adivinhar que sucedia uma coisa destas.

- Estou tão arrependida, mamã - exclamou a pequena, escondendo o rosto lacrimoso no peito da mãe.

Deves estar arrependida de teres abusado da minha condescêndencia, isso, sim - replicou Helena afagando-lhe a cabeça com brandura. Mas não precisas de te afligir tanto com o que sucedeu depois. Não és a culpada. - Fez uma pausa e indagou - Porque seria que a Emília tinha tanto empenho em que não me falasses no alfinete ?

-Ela disse que, assim, a mamã mo emprestaria da melhor vontade - exclamou Isabelinha.

-É curioso - murmurou a Sr.a Garden como se falasse com os seus botões. E erguendo-se bruscamente, sacudindo a cabeça como se afastasse para longe ideias impertinentes, disse:

-Olha, minha querida, não te apoquentes mais com isso. O alfinete há- de aparecer. Vai brincar para o jardim, com o carrinho das bonecas. Está hoje um dia lindo. Aproveita-o.

Deu um beijo na filha e saiu com ela ao corredor. Aí, parou a ver seguir Isabelinha até esta desaparecer na escadaria nobre que conduzia ao átrio da entrada. Ali ficou, de olhos pregados na passadeira, como que esquecida de tudo o que a cercava. O ruído duma porta que se fechava despertou-a daquela abstracção. Era Emília que saía do quarto da Sr.a Sommer.

Helena chamou-a em voz baixa.   A rapariga aproximou-se.

- Que tal é a disposição da senhora ? - perguntou Helena, em voz surda.

- Óptima - respondeu Emília, no mesmo tom. - Parece que o vinho do Porto não lhe fez mal, como é costume. Recebeu-me muito risonha e disse-me que tinha dormido toda a noite dum sono, coisa que já não lhe sucedia há muito tempo.

- Bem, bem - disse a Sr.a Garden, esbo çando um sorriso. - Não Lhe disseste nada a respeito do alfinete, pois não?

- Não, minha senhora. Não me esqueci do que me recomendou. Precisa de mais alguma coisa?

- Não - replicou a patroa. - Vai à tua vida. Trata de arrumar os quartos.         Tens o serviço todo atrasado, hoje.

-Vou já principiar pelo da menina Isabelinha e, de caminho, passo- lhe mais uma revista.

Às vezes...

Helena encolheu os ombros, dirigindo-se para o quarto de sua mãe, enquanto Emília se sumia no da criança.

- Bom dia, mamã - exclamou ela, fazendo uma cara prazenteira.

- Bom dia, querida. Como passaste ? - respondeu-lhe a Sr.a Sommer, sorrindo-lhe, sentada na cama, com o tabuleiro do pequeno almoço sobre os joelhos.

- Estás muito linda, hoje. Esse pijama cor-de-rosa fica-te muito bem!

- Achas ? - replicou a Sr.a Sommer, trin cando um biscoito que tinha acabado de molhar no leite. - Para te falar franca, gosto mais de camisa de dormir do que de pijama. Mas tu convenceste-me a usar este fato de pierrot...

Riu-se com gosto.

- É muito mais moderno - replicou a filha, sentando-se na beira do leito. - E eu quero que sejas do nosso tempo.

-Ai, Helena, não é o trajo que tira a idade - redarguiu Doroteia Sommer. - Ninguem me tira os sessenta e dois que já passaram por mim.

- A mamã podia perfeitamente tirar dez anos que ninguém o notaria.

-E o meu coração cansado? E o meu fígado que às vezes também gosta de me fazer a sua partidinha?

Mas o aspecto da Sr.a Sommer parecia desmentir as suas queixas pessimistas. Tinha a tez muito fresca, quase sem rugas, apenas se notando algumas pregas ao canto dos olhos quando se ria, mantinha o busto muito direito e um invejável desembaraço de movimentos.

-Para esses pequenos achaques cá está o Artur - disse a Sr.a Garden. - É uma grande coisa ter-se um genro médico.

- E médico célebre - ajuntou Doroteia. E a verdade é que ele parece conhecer os meus órgãos, um a um, tão bem como os seus próprios dedos.

- Dormiste bem ?

- Como há muito tempo não durmo - confessou a Sr.a Sommer, limpando os lábios ao guardanapo e dando por finda a refeição. E tu, como passaste a noite?

- Dormi como uma pedra – respondeu Helena, desembaraçando sua mãe do tabuleiro e colocando-o em cima duma cadeira. – Quando me deito tarde, é sempre assim. Quase não dei pela saída do Artur, nem vi o Carlitos antes de ir para a escola.

-Estou a ver que te tornaste mais dorminhoca do que eu - gracejou a senhora mais idosa.

-Levantei-me há pouco ainda ensonada, e o que acabou por me despertar foi uma notícia pouco agradável.

- Sim ? - exclamou Doroteia, lançando-lhe um olhar alarmado. - Que foi ?

-Nada que valha a pena assustares-te, mamã. Sossega - atalhou sua filha.

- Mas aconteceu alguma coisa ? – insistiu a Sra Sommer, sem poder dominar a sua inquietação.

- Sossega, mamã. Já te disse que não vale a pena assustares-te.

- O Jaime não se sente bem? –inquiriu Doroteia.

-Está de perfeita saúde. Foi de manhã cedo para Londres com o Artur.    

- Então que se passa ? Tira-me desta impaciência - pediu a Sr.a Somner.

Helena queria participar o caso a sua mãesem a alarmar muito. Mas percebia que, quanto mais tardasse em revelar-lhe a verdade, pior Lhe fazia. No entanto, disse-lhe as coisas mansamente, até no ar de quem não lhes ligava excessiva importância.

- Felizmente - asseverou ela - não se trata de questão de saúde. Estamos todos óptimos, graças a Deus. Trata-se duma perda que não é irremediável, evidentemente. Quando se perde um objecto e não se pode encontrá-lo o melhor é substituí-lo por outro, não é verdade?

- Mas o que é que se perdeu ? - indagou Doroteia, ansiosa.

- O alfinete que o Artur ontem me ofereceu.

- Quê ? - exclamou a Sr.a Sommer, dando um salto na cama. - É lá possível! Como foi isso arranjado?

- Não sei, não percebo, mamã.

- Ah! O Artur vai ficar muito contrariado!

- lastimou Doroteia: O pobre rapaz fez tanto gosto naquela surpresa! E em menos de vinte e quatro horas, desaparece. Que infelicidade a nossa!...

- O que mais me aborrece, realmente, é tratar-se duma prenda do Artur. - murmurou Helena, com tristeza.

-Mas já o procuraram bem? Talvez esteja caído em qualquer parte.

A Sr.a Garden contou então à mãe as pesquisas que já tinham efectuado.

-E tens a certeza de que a Isabelinha o levou para a cama?

- A certeza absoluta, mamã - replicou

Helena. - Não te lembras de ela o ter levado, quando se foi deitar?

- Perfeitamente - respondeu a Sr.a Sommer. - Até não concordei nada que acedessem àquele capricho infantil. Estão a fazer a criança malcriada com tanta transigência. Mas, enfim, tu e o teu marido é que Lhes dais a educação. Lavo daí as minhas mãos. Olha, não o teria ela perdido no trajecto da sala de jantar para o quarto ? Viram bem no corredor ?. Talvez esteja caído em qualquer parte.

A Sra' Garden meneava a cabeça, enquanto a mãe falava.

- Não, não caiu pelo caminho - disse ela: Mas não te exaltes que não vale a pena. Não caiu pelo caminho, porque ainda o tinha à uma da madrugada, quando lhe fui dar um beijo antes de me deitar.

- Devias ter-lho tirado, nesse momento-pronunciou a idosa senhora, em tom de censura.

- Era essa a minha primitiva intenção, efec tivamente - disse Helena. - Mas, depois, lembrando- me do desgosto que ela sentiria, hoje, de manhã, ao acordar sem ele, deixei-lho, no intuito de agora, por boas palavras, a persuadir de que não devia andar mais tempo com ele, visto o dia de festa já ter passado. A Isabelinha vai muito por boas palavras. A questão é a gente ter um bocadinho de paciência.

- Se ela o tinha a essa hora - murmurou Doroteia, pensativa - e hoje não se encontra em parte alguma, o caso muda muito de figura.

- Que estás tu a pensar ? - inquiriu a filha. - Olha, querida, eu às vezes até tenho medo das coisas que penso. Escuta: interrogaste a Emília ?

- Interroguei - respondeu Helena. - Disse-me que estava persuadida de que tinha sido eu quem lho tirara, à noite, antes de me deitar.

-E depois de te deitares ninguém mais foi ao quarto da pequena? - perguntou a Sr.a Sommer.

-Creio que mais ninguém.

- Não foi lá o Artur, depois ? Eu não sei bem, porque me deitei uns minutos antes.

- O Artur foi lá comigo - disse Helena.

-Então, parece que foram vocês dois as últimas pessoas a vê-la com o alfinete ao peito - deduziu a Sr. a Sommer. - Isto significa que o alfinete desapareceu durante a noite.

- Desapareceu como ?-exclamou a Sr.a Garden, quase desesperada. - A casa não tem buracos. Já procurámos por toda a parte.

- Ora, como havia de desaparecer ? - redarguiu Doroteia. -Admiro a tua ingenuidade. Desapareceu, porque alguém o roubou do peito da pequena enquanto ela dormia.

- Roubado ? Oh, não pode ser - exclamou Helena.

-Então, que explicação arranjas tu para o caso ?

- Não me quero convencer - disse a filha, com desespero.

- Interrogaste bem a Emília?

- Interroguei.

- Não foi ela a primeira a dar pelo desaparecimento da jóia?

- Foi.

- E que pensou ela do caso ?

- Já o disse. supôs que eu lha tivesse retirado, enquanto a menina dormia. O que eu acho estranho - acrescentou Helena - é a rapariga recomendar à criança que não me falasse mais no alfinete.

-Olha, querida, o melhor é telefonares ao Artur e contares-lhe tudo - aconselhou Doroteia.

- Por enquanto, não - disse Helena. - Poupemos-lhe esse desgosto. É possível que o alfinete ainda apareça em qualquer parte.

 

A Sr. a Sommer toma uma decisão

Como a notícia do desaparecimento do alfinete de brilhantes se espalhou por toda a casa, é coisa que não se sabe explicar bem. Quando a Sr. Garden, deixando sua mãe no quarto a acabar a sua toillete, saiu de novo ao corredor e aí começou a pesquisar ao longo da fofa passadeira, não tivesse por estranho acaso a jóia caído no chão sem ninguém dar por isso, apareceu logo solícito, o mordomo Bob, ainda metido na sua blusa de riscado com que procedia de manhã aos areados dos metais, a inquirir:

-Quer que a ajude a procurar o alfinete, minha senhora ?

Helena estranhou que o servo já soubesse com tanta precisão do que se tratava.

-Como sabe que é o alfinete que eu procuro, Bob ? - indagou ela.

O criado ficou um pouco embaraçado e replicou, numa evasiva:

- Bem, minha senhora. Eu não sei ao certo. Mas calculo, não é verdade ?

- Se calcula é porque alguém lhe deu algum indício.

- Realmente - confessou Bob -, já me constou que tinha desaparecido o alfinete.

- Mas quem lhe falou nisso ? - insistiu a Sr.a Garden.

- Bem - replicou Bob, no mesmo tom evasivo-, foi a Gertrudes quem me deu um lamiré. Mas ela própria parece que não tinha a certeza. Disse que acabara de o ouvir dizer ao jardineiro.

Ao jardineiro! A notícia daquela perda que tanto a afligia já chegara ao parque, provàvelmente por imdiscrição de Emília, e do parque voltava à vivenda por via da cozinheira.

- Agora - acrescentou Bob, após uma breve pausa - como vi a senhora curvada para a passadeira, depreendi que o boato se confirmava.

- Infelizmente, é verdade- disse a Sr. a Garden, sem poder dissimular o seu desgosto.

- Uma jóia tão bonita. -lastimou o criado.

- Em que eu fazia tanto gosto, por ser uma prenda de meu marido - ajuntou Helena.

-E de tanto valor... Deve ser jóia para algu mas cinco ou seis mil libras - calculou Bob.

-Meu marido não me disse o preço, mas, pelo número de brilhantes e rubis de que se compunha, devia ter custado bastante caro. Perde-se assim, tão misteriosamente.

- Ah! Mas havemos de achá-lo, com certeza- asseverou Bob. - Perdeu-se em casa, havemos de encontrá-lo, nem que seja preciso examinar tudo, centímetro por centímetro. Principiemos com método, minha senhora.

Ao dizer estas palavras, o criado dirigiu- se para a extremidade do corredor. Helena seguiu-o. Partindo daí, vieram ambos, cada um por seu lado, todos curvados para o solo, a explorar com a vista a larga passadeira felpuda e, à margem desta, o rebrilhante parket encerado que ela não cobria inteiramente.

Assim se aproximaram da ampla escadaria de mármore branco, que a passadeira grenat con tinuava a cobrir até o átrio da entrada, onde terminava.

Só aí se detiveram e quebraram o silêncio eém que tinham permanecido.

- Tenho o pressentimento, Bob, de que os nossos esforços são absolutamente inúteis - declarou a Sra Garden.

-Acho que é muito cedo para desanimar, minha senhora-replicou Bob, como que a querer incutir-lhe coragem.

-Seria cedo, se nós não soubéssemos, se não tivéssemos quase a certeza de que o alfinete não caiu no corredor, porque a menina quis dormir com ele pregado no pijama, como se deve recordar.

- Perfeitamente - confirmou Bob -, lembro-me bem de ouvir a menina Isabelinha dizer isso. Caprichos de crianças.

- Um capricho que nos custa a perda duma jóia valiosíssima, pois foi durante o sono que desapareceu -disse Helena, com amargura.

Bob quedou-se pensativo, e depois murmurou:

- Coisa estranha, muito estranha... -E acrescentou mais vivamente - Estranha e aborrecida para todos nós, principalmente, para o pessoal da casa.

-Ninguém está levantando suspeitas sobre o pessoal - acudiu a Sr. a Garden. - Sei que toda a gente que nos serve é da máxima confiança.

- Evidentemente - concordou o criado. Mas nós é que não ficamos descansados, enquanto o alfinete não aparecer.

- Vamos procurar na sala de jantar- disse Helena, para cortar aquele diálogo desagradável.

- Vamos, sim, minha senhora - anuiu Bob.

- Nem que seja preciso revolver a casa de cima para baixo. Vou, primeiro, avisar a Emília de que examine muito bem o lixo que se acumula dentro do saco do aspirador.

Helena sorriu.

-Seria quase impossível a jóia passar para dentro do aspirador-observou ela.

       Mas Bob, muito grave, obtemperou:

- Também era quase impossível o alfinete desaparecer, e desapareceu.

A Sr. a Garden calou-se. O criado tinha um pouco de razão. Entrou na sala de jantar, enquanto ele ia, num pulo, avisar Emília, que andava lá em cima a limpar e a arrumar o quarto do Sr. Jaime Sommer.

Entretanto, apareceu Doroteia que, vendo a filha a olhar, indecisa, para todos os lados, perguntou:

- Andas à procura do alfinete pelas paredes, Helena ?

-Ai, mamã, já nem sei o que ando a fazer. Sinto-me tão desorientada-confessou a Sr.a Garden. - Imagina que a notícia do desaparecimento da jóia já chegou ao João, o jardineiro, e agora já se espalhou por todo o pessoal.

Gertrudes e Bob já a conhecem.

- E só não a conhece - observou a Sr.a Sommer-quem devia ser advertido em primeiro lugar.

- Quem, o Artur?

- Evidentemente- confirmou Doroteiaquase severa. - Deves telefonar- lhe imediatamente.

-Nem sei como dar-Lhe essa notícia tão desagradável - murmurou Helena.

- Ele tem de vir a sabê-la- disse a Sr.a Sommer-, portanto, quanto mais depressa melhor! Talvez ele tome a tempo as providências necessárias.

-Mas que providências há-de o Artur tomar ?

- Que providências há-de tomar - exclamou Doroteia. - Essa pergunta é muito boa. Que há-de ele fazer, senão prevenir a polícia ?

- Ah, não - opôs Helena, com nervosismo.

-Não quero meter a polícia nisto. Que maçada! Começam a indispor toda a gente com perguntas aborrecidas. A polícia. E temos nós a certeza de que se trata dum roubo?

Neste momento, Bob, de regresso à sala de jantar, detivera-se a respeitosa distância e disse:

-Bom dia, Sr.a Sommer.

-Bom dia, Bob.

- Se me é permitido intervir no assunto - prosseguiu o criado, numa mesura -, sou da opinião da Sr. a Garden: a polícia vem compliar tudo e incomodar toda a gente. Ainda se se tratasse dum roubo.

-Então, em seu critério, de que se trata, Bob ? - inquiriu a Sr.a Sommer.

- Creio bem que se trata dum transvio - respondeu o criado.

A Sr. a Sommer teve uma risadinha e repisou:

- Um transvio. Bonito transvio, não haja dúvida. Ora, vejamos os factos: minha filha e meu genro vão beijar a pequena, já depois da uma da madrugada, ainda lhe vêem o alfinete pregado no peito do pijama. De manhã, a criança acorda sem o alfinete. Não é mais do que evidente que lho tiraram durante a noite ?

       Bob e a Sr.a Garden entreolharam-se, silenciosos. E este silêncio parece ter incitado mais Doroteia, que prosseguiu:

       -Se o alfinete não aparece, é porque lho roubaram, e se houve roubo o caso é com a polícia.

       Aquela lógica parecia esmagadora. Contudo, Helena reagiu, como uma pessoa que se sente presa e não sabe como soltar-se.

       - Seja como for, eu não quero meter a polícia no caso - disse ela. - Vai causar-nos uma série de aborrecimentos; não estou para aturar essa gente.

       -Acho que fazes uma grande asneira    - disse a Sr. Sommer. -E não sei se teu marido estará pelos mesmos ajustes. Não o avisar, é, pelo menos, um erro grave. Telefona-lhe, conta-Lhe tudo e ele que resolva como entender.

       -Não tenho coragem - murmurou   Helena.

       -Mas se tu não lho dizes, a responsabilidade de não o terem avisado a tempo recai sobre mim - declarou Doroteia. - Se queres telefono-lhe eu.

       - Então, fale-lhe a mamã - concedeu a

Sr.a Garden.

- Não será precipitação? -lembrou Bob.        O alfinete pode aparecer dum momento para o outro. Eu preferia revolver a casa em todos os sentidos, antes de chamar a polícia.

-Todo esse trabalho de pesquisa seria inútil - redarguiu Doroteia. - Aliás, o único local onde era possível encontrar-se, que era o quarto de Isabelinha, já foi revistado de alto a baixo, sem resultado. E o mesmo sucederá com os outros aposentos. O alfinete só poderia sair do peito da pequena se lho tirassem. Está mais do que demonstrado tratar- se dum roubo.

Bob meneou a cabeça, com amargura.

-Já estou a prever os vexames a que a polícia vai submeter o pessoal da casa-disse ele.

-Não sinto nenhuma vontade de humilhar as pessoas que me servem com tanta dedicação - disse Helena.

-Não vejo como a presença da polícia possa humilhar os inocentes que têm a consciencia tranquila - disse a Sr.a Sommer, encolhendo os ombros. -Eu, que não tenho grande predilecção pela polícia, não me sinto nada intimidada, pelo contrário, desejo a sua vinda para esclarecer o mistério, e até para que não se gere alguma suspeita injusta.

- Proceda a mamã como entender - concedeu Helena, como que fatigada de opor resistência.

-Nesse caso vou já ligar para o teu marido - declarou Doroteia. - Faltam dez para o meio-dia. Ainda o apanho no consultório.

Saiu da sala de jantar, a passo decidido, e dirigiu-se para o escritório do Dr. Garden, que não ficava longe.

- Vamo-nos meter em bonitos trabalhos. - murmurou Bob, depois da Sr. a Sommer se ter retirado. pode conduzir um inquérito policial! Minha mãe ainda vai arrepender-se da sua precipitação.

-A senhora tem a certeza de ter visto o alfinete no pijama da menina, ontem à noite        antes de se deitar ? - indagou o criado.

-Absoluta. O meu marido também o viu.

       - E Emília também estava?

-Não, Emília não voltou mais ao quarto depois de ter ajudado a deitar a menina.

-E foi ela quem de manhã deu pela falta do alfinete ? - perguntou Bob.

-Quem deu, primeiro, pela falta, foi a menina, ao despertar - esclareceu a patroa.     Emília, quando entrou, viu já a menina a chorar pela falta da jóia...

Bob ficou um momento pensativo e disse depois:

-Mas quem teria entrado no quarto entre a uma hora da madrugada e esta manhã?

- Ninguém, creio eu - disse Helena.

E emendou - Julgamos nós que ninguém, mas alguém teria sido, visto que o alfinete desapareceu. O que estranhei foi Emília recomendar à Isabelinha que não me falasse mais no alfinete...

-Disse-o, com certeza, na melhor intençãopois estava convencida de que a senhora lho tinha retirado durante o sono.

- Esse ponto é um tanto obscuro – notou a Sr. a Garden. - Vamos ver se ela o esclarece. Bob, toque a campainha e chame Emília cá abaixo.

O criado obedeceu. E ficaram ambos à espera de que a rapariga aparecesse.

 

As diabruras de Carlinhos

De regresso do colégio, Carlitos aproximou-se do portão de ferro, empurrou com toda a sua força o pesado batente, entrou, tornou a fechá-lo e, de sacola dos livros às costas, como uma mochila, subiu o largo arruamento coberto de saibro.

Mas, em vez de subir a escadaria exterior, torceu à esquerda e abalou a correr para o fundo do parque, onde tinha o seu jardim privativo, protegido por uma moita toda garrida de flores campestres que parecia quererem amesquinhar as plantas cultivadas pelo menino, que não medravam tanto como ele desejaria.

Ao aproximar-se, avistou, pelos intervalos dos troncos das árvores, um vulto na clareira destinada ao seu jardim. Logo reconheceu a irmã, que, ouvindo-lhe os passos, bateu as palmas de contentamento. O pequeno aproximou-se, carrancudo, e perguntou, com um arzinho insolente:

- Quem te deu ordem de vires para o meu jardim?

- Eu não mexi em nada, Carlinhos - desculpou-se a menina. -Bem sabes que gosto muito das tuas flores e como tu não queres que eu lhes toque, não toquei.

-Sempre quero ver se não me estás a mentir-disse o rapazinho.

Avançou para uma pequena sebe duns sessenta centímetros de altura, que ele laboriosamente construíra por suas mãos em volta do recinto que considerava seu, abriu a cancela de traves que ele próprio pregara sobre duas travessas e penetrou no jardinzito, que era sulcado por minúsculos arruamentos muito pouco simétricos, e, de sobrancelhas franzidas, passou lentamente um olhar em redor. Volveu- se bruscamente para a irmã, que ficara do lado de fora a olhá-lo, pesarosa do seu mau humor, e exclamou:

- Tu andaste aqui a mexer, Isabel!

-Juro-te que não passei lá para dentro, Carlitos - replicou a menina. - Estive a ver as flores cá de fora. Depois tirei as meninas de dentro do carrinho, para elas apanharem um bocadinho de ar e brincarem na relva...

- Cala-te lá com essa lengalenga - interrompeu o irmão. - Julgas que não estou mesmo a ver nos teus olhos que estás a mentir?

- Não mimto, Carlinhos. Juro-te que estou a dizer a verdade.

-Mas eu vejo aqui a terra revolvida de fresco. Olha - disse ele, apontando para o chão, num local em que a terra mais negra e mais solta indicava que fora mexida haveria muito pouco tempo.

- Isso não fui eu - negou a pequena. Para que havia eu de mexer nessa terra?

-Se calhar fizeste alguma cova, só para escangalhares os meus canteiros-lembrou Carlos.

- Julgas que sou tão má como isso ? Enganas-te. Não te ia fazer uma partida dessas.

-Eras capaz disso e de muito pior -resmungou o pequeno, transpondo a sebezinha sem mesmo ter o trabalho de abrir a cancela.

- Não digas uma coisa dessas - lamuriou Isabelinha. -Se soubesses o desgosto que eu tive hoje, não me arreliavas dessa maneira.

- Desgosto ? - repetiu Carlos, num ar de dúvida. - Tu já tens desgostos, minha miúda ? Se calhar, alguma boneca que partiu um braço.

- Não, Carlitos, não faças troça - replicou a criança, com as lágrimas quase a saltarem dos olhos pretos, muito brilhantes.

-Então, arrancaram alguma orelha ao urso branco ? - gracejou o rapazinho.

-Não faças troça, Carlos, pelo amor de Deus! - suplicou a criança. - Tenho estado aqui mais triste que nem tu calculas.

- Mas que sucedeu, afinal ? - perguntou o pequeno, enfiando as mãos nos bolsos dos calções, num ar importante, e bamboleando a cabeça ruiva, tal como às vezes via fazer o pai.

- Uma grande desgraça. A mamã também está muito triste e o papá, logo, quando vier, não o vai ficar menos.

- Bem - atalhou o pequeno -, desembuchas ou não ? Diz lá o que aconteceu ?

- Imagina-disse Isabelinha, em voz trémula

-que desapareceu o alfinete de brilhantes da mamã.

- Ah, sim? - exclamou Carlos. - E quem ficou com ele toda a noite não foste tu?

- Pois fui - confirmou a menina, em voz sumida.

- E que lhe fizeste ? - insistiu o pequeno.

-Nada. Desapareceu. Hoje, de manhã, quando acordei, notei a sua falta. Não percebo como aquilo foi.

Carlos deu uns passos, pensativo, e volvendo-se bruscamente para a irmã, indagou:

-E não sentiste coisa alguma?

- Nada - replicou a pequena. - Calculámos eu, a mamã e a Emília, que me tivesse caído, enquanto eu dormia. Revistou-se a cama toda, o quarto todo, e o alfinete não houve meio de aparecer.

-Boa piada! -exclamou Carlitos. - Se calhar foi algum rato que o engoliu.

- Oh, Carlos - redarguiu a menina, com amargura. - Pelo amor de Deus, não brinques com coisas sérias! Um rato não podia engolir uma coisa do tamanho do alfinete de brilhantes da mamã.

- Mas podia um lobisomem - lembrou o pequeno, fazendo voz rouca de papão - Ou o gigante dos sapatos de sete léguas.

- Cala-te, Carlitos - suplicou a menina. Apesar da mamã jurar que esses seres não existem, tenho muito medo deles, bem sabes.

- Então, não percebo quem poderia levar o alfinete- disse Carlos. E tomando o seu tom trocista, acrescentou-A não ser que fosses tu... Tinhas tanto empenho em ficares com o alfinete.

-Oh, Carlitos, não me digas uma coisa dessas - exclamou Isabel, indignada. - Eu gostava muito do alfinete, mas só queria que a mama mo emprestasse.

- O que tu querias era ficar com ele - volveu o pequeno. -Julgas que eu não te percebo? É ou não verdade que gostavas de ter um alfinete assim?

- Sim, isso é verdade - confessou a menina, juntando as mãos, num enlevo. -Era tão bonito.

- Vês? Tu própria o confessas - acudiu o pequeno. -Portanto, não me admirava nada de que o tivesses metido em qualquer parte, para todos se convencerem de que se perdeu, e ficares com ele só para ti.

-O que estás a dizer, Carlitos, é uma grande maldade - disse Isabelinha, sem poder conter mais as lágrimas.

-Fazes o mal e a caramunha, minha parvinha - comentou o irmão. - Mete lá as bonecas no carrinho das crianças e vamos para casa, que não deve tardar o almoço.

Isabel apanhou as bonecas que tinha espalhado na relva, meteu-as no carrinho, puxou o toldo para que elas não apanhassem sol, e dis pôs-se a acompanhar o Carlitos, que já se encaminhava para a álea, um tanto pensativo. Quando ela se lhe juntou, disse, como se continuasse em voz alta o seu pensamento:

-Vai ser um bonito sarilho, logo, quando

vier o papá. Trata de tapar bem os ouvidos, porque é a ti que ele considera culpada, com certeza.

- Eu ? - exclamou Isabelinha, assustada.

- Sim, tu - tornou Carlos. - Se não fosse a tua birra de quereres dormir com o alfinete, já nada disto sucedia.

-Mas a mamã disse que não me afligisse, porque não tenho culpa.

-Vamos a ver se o papá é da mesma opinião - replicou o pequeno, em tom mordaz. Consolava-me todo, se o visse dar-te um bom par de açoites.

- O papá nunca me bateu.

-Mas, desta vez, não escapas. É tão certo como dois e dois serem quatro.

Quando entraram no átrio, ouviram vozes a dialogar na sala de jantar e encaminharam-se para lá. A Sra Garden, Bob e Emília discutiam vivamente. Os pequenos aproximaram-se cuase sem serem notados, e ficaram àeescuta, cheios de curiosidade infantil.

- Ai, minha senhora - dizia a criada -, estou tão nervosa.

- Não o estás mais do que eu - acudiu sua ama-, mas eu tenho mais razões para isso. Só o pensar no desgosto que o Sr. Doutor vai sofrer.

-Mas, minha senhora, o que me faz mais confusão é parecer-me que estão a desconfiar de mim. Ora, a senhora sabe muito bem que eu não sou capaz de tirar nem um alfinete vulgar, quanto mais um alfinete de brilhantes.

- Sossega, rapariga- aconselhou Helena -, se te interrogamos, não é por desconfiarmos da tua honestidade. Sabemos perfeitamente que és séria. O que pretendemos é obter algum pormenor, algum indício que nos possa orientar, não compreendes?

-Compreendo, minha senhora-replicou a criada -, e também compreendo que não confiam inteiramente em mim. Isto faz-me muita impressão.

Bob movia a cabeça, como se apoiasse as suas palavras. A Sr. a Garden teve um trejeito de dor.

- Que horrível situação esta - exclamou ela. - Se pergunto alguma coisa com mais insistência, supõem logo que é por suspeitarmos. Não sei como proceder. Imagine-se que melindres não irá levantar a presença da polícia.

- Da polícia - bradou Emília, apavorada.

- A senhora vai chamar a políCia ?

- Não tenho nenhuma vontade disso-replicou a Sr. a Garden. -Mas a mamã acha que já se devia ter chamado.

-Vamos passar todos por um grande vexame - asseverou Bob, contristado.

- Que bom - exclamou Carlitos. - Vêm polícias cá para casa! Estás arranjada, Isabelinha. Levam-te presa, iria jurá- lo.

- Ai, mamã! É verdade ? - gritou Isabel, correndo a agarrar-se às saias da mãe. -Os polícias levam-me presa?

- Não, minha filha - respondeu Helena, afagando-lhe a cabeça -, não te levam. E tu, Carlitos, vê se te calas. Estão as pessoas mais velhas a falar.

- Minha senhora - declarou Emília -, eu não resisto a uma vergonha dessas. Essses homens a fazerem-nos perguntas e a desconfiarem de mim. Credo, que horror.

- Que remédio terás tu, Emília, senão sujeitares-te. Também hão-de interrogar-me e sabe Deus com que disposição os hei-de aturar - disse Helena, em tom magoado.

-Minha senhora-pronunciou a criada, com um movimento sacudido da cabeça-, faça-me contas que eu quero ir-me embora.

- Estás louca - exclamou a Sr.a Garden.

- Já lhe disse! Tenho medo desses homens! Tenho ouvido tantas histórias de pessoas inocentes que são presas e enforcadas por engano!

-disse Emília, em voz sufocada pelo terror. Helena Garden não pôde deixar de sorrir.

- Descansa, rapariga - disse ela -, que não é caso para forca.

-Mas não quero que me encerrem, inocente, numa prisão - replicou a rapariga, muito nervosa.

-Isabelinha, tu escondeste o anel. Os polícias vão meter-te numa prisão muito escura - disse Carlitos, à irmã, engrossando a voz para a tornar temível.

A criança soltou um grito de terror.

- Carlinhos - repreendeu a mãe. - Se tornas a assustar a menina, castigo-te severamente.

- Mamã, a Isabelinha é que escondeu o alfinete - redarguiu o rapazinho. - Toda a gente sabe que ela o queria à viva força. Como não lho davam, tirou-o.

As pessoas adultas entreolharam-se, como que assustadas com a suspeita que as palavras de Carlinhos suscitavam.

 

A decisão do Dr. Garden

O Dr. Artur Garden reconheceu logo a voz de sua sogra através dos fios telefónicos.

- Olá, mamã - exclamou ele. - Como passou a noite?

-Felizmente, muito bem, meu filho.

-Ainda bem. Agora, ao ouvir a sua voz receei que tivesse havido complicação.

-Não, pelo contrário - replicou a Sr. a Sommer. -Há muito tempo que não passo uma noite tão boa como esta. Desconfio que tenho de transgredir, de vez em quando, as prescrições médicas, para passar melhor... Como ontem abusei um pouco, o efeito foi maravilhoso.

-Agradeço o elogio indirecto à minha competência profissional - gracejou o grande cirurgião. - Então que grandes novidades há ? Não está ninguém doente, pois não?

-Não, graças a Deus. Estamos apenas um pouco nervosas.

- Nervosas ? - estranhou o médico, um tanto mais grave. - E por que motivo ?

-Por causa duma contrariedade, uma coisa muito aborrecida, que nos deixou perplexas - disse Doroteia.

-Alguma tempestade num copo de água, ia apostar- tentou ainda gracejar o Dr. Garden. - Para a mãe telefonar.

-Para eu telefonar, é porque o caso se reveste de alguma importância; se não evitava incomodar-te - declarou Doroteia.

-Então, diga, mamã. Está a parecer-me que o caso é mais sério do que eu supunha.

- Sério e bem sério!

-Então, diga-mo sem mais delongas, em vez de me criar mais apreensões.

-Roubaram o alfinete de brilhantes que ofereceste a tua mulher.

- Quê?! Roubaram o alfinete ?

- Sim, se não o roubaram pelo menos desapareceu.

Houve uma pausa. Percebia-se que o Dr. Garden fazia um esforço para se adaptar ràpidamente às realidades. Por fim pronunciou ao aparelho:

-Mas isso é uma coisa desconcertante. Ainda ontem à noite, quando fomos beijar a pequena.

- Sim, sim - atalhou a sogra -, tudo isso já foi rememorado: a pequena tinha o alfinete pregado no pijama; mas, a verdade é que, esta manhã, ao acordar, deu pela falta dele.

- Não se teria desprendido e caído ?.

-Não, não, não venhas com essas hipóteses que já foram todas encaradas por nós - interrompeu a Sr. a Sommer. - Não estava caído entre as roupas que foram todas minuciosamente revistadas por tua mulher e pela Emília; não estava caído no chão, que foi todo esquadrinhado palmo a palmo, nem no corredor, nem na sala de jantar, nem em parte alguma.

-Mas isso parece um desaparecimento mágico - exclamou o doutor.

- Desconcertante! A Helena até ficou um pouco aparvalhada... Nem tinha coragem de te dar esta má notícia; tive eu que decidir-me.

-Mas ela que não se aflija, nem a mãe tão-pouco - recomendou o médico. - Uma doença seria uma novidade muito pior. O alfinete não era assim um objecto tão pequeno que se sumisse completamente. Hão-de encontrá-lo em qualquer parte.

- Ter-se-ia encontrado, se alguém não o tivesse levado -observou a Sr.a Garden. É preciso não esquecer que desapareceu durante o sono da criança.

- Só se alguém lho foi tirar durante a noite-aventurou o Dr. Garden.

- Evidentemente.

-E a mãe acha verosímil a hipótese dum roubo ?

- Tem toda a aparência disso - respondeu Doroteia. -Um roubo muito bem feito, executado por mão de mestre.

- Há a certeza de que não entrou nenhuma pessoa estranha lá em casa?- perguntou o cirurgião.

-A certeza absoluta.

-Nesse caso, o roubo, se realmente de roubo se trata, foi praticado por pessoa que estava de portas adentro - deduziu o médico.

- Sim, filho, não é preciso ir a Oxford para deduzir uma coisa dessas.

-Bem, visto a mamã estar convencida de que se trata dum roubo praticado por pessoa da casa, sobre quem recaem as suas suspeitas?

- Sabes que é muito melindroso suspeitar-se de alguém - disse a Sr. a Sommer. - O caso é muito grave. Tão depressa achamos todas as pessoas que nos rodeiam mcapazes de semelhante acto, como de repente todos nos parecem comprometidos. No entanto, há uma pessoa que me produz, pelo menos, uma má impressão. E sabes que eu tenho certo faro policial.

- Ah, sim ? E quem é ? - indagou o doutor.

- Precisamente, uma pessoa com quem sempre simpatizei e que, se acaso está comprometida, constituirá para mim uma grande surpresa.

- Mas diga quem é, por favor - pediu o Dr. Garden, com impaciência.

-Bob!

- Quê ? Não é possível! Bob é um homem de absoluta confiança. Está há dez anos ao nosso serviço. Começam a embranquecer-Lhe os cabelos na nossa casa. Estima-nos como família. Adora os nossos filhos. Não, não, mãe! Parece impossível que a mãe tivesse semelhante ideia.

-Já te disse que, a ser verdade, me surpreenderia muito - declarou Doroteia. -Sempre simpatizei com ele. E se algum defeito lhe acho, é precisamente numa das suas qualidades demasiado correcto. E hoje, acho-lhe um não sei quê, como se andasse comprometido.

- Deve ser impressão sua, mamã.

-E depois, ainda antes que nós sonhássemos que a notícia do desaparecimento da jóia se divulgasse, já ele a sabia.

- A mamã é uma acusadora tremenda - exclamou o médico.

- Não estou a acusar - replicou ela. - Apenas chamo a tua atenção para mdícios, que serão insignificantes, mas que podem de repente valer muito.

- A mamã está a raciocinar sob a influência de inúmeros romances policiais que devora por mês-gracejou o cirurgião. - Pautemo-nospelas realidades e não pelas fantasias dos romancistas.

- Não acuso ninguém - disse Doroteia. Se tudo nos indica que há um ladrão e que esse ladrão devia estar dentro de casa esta noite, creio que é entre o pessoal que devemos escolher o mais provável.

-E acha, então, que o mais provável é exactamente o menos provável! - bradou o facultativo quase encolèrizado.

-E se eu te disser que ainda há óutro provávell -atirou a Sr. Sommer.

- Outro ? - exclamou o médico.

- Outro, ou melhor, outra - emendou Doroteia.

-Não me diga que pensa na pobre cozinheira.

- Não, essa é a menos provável.

- A Emília ? - indagou o doutor.

- Exactamente, a Emília - confirmou a Sr. a Sommer. -Digo-te mais: contra Bob não tenho senão palpites; ao passo que a Emília teve uma atitude que a compromete muito mais.

- Explique lá isso, mamã - pediu Artur.

-Foi ela a primeira a entrar no quarto de Isabelinha.

- Mas a pequena não estava já acordada ?

-Estava - confirmou a Sr. a Sommer. Mas quem me prova que não entraram lá, antes da Isabelinha acordar, a Gertrudes, Bob e já não direi o João jardineiro?

- Mas presta atenção, meu filho - insistiu Doroteia. -Tu não sabes, mas ficas agora sabendo, que a Emília convenceu a Isabelinha a não falar do alfinete à mãe.

- Hum. - resmungou o Dr. Garden.

-Isso já me parece um pouco mais grave, embora a gente não deva deixar-se convencer pelas aparências. Mas com que intuito fez ela essa recomendação ?

- Ah! Se eu soubesse ler claro nos intuitos das pessoas - replicou, com calor, a Sr. a Sommer.

O Dr. Artur Garden permaneceu silencioso por uns instantes, como se meditasse.

- Vejo o caso muito embrulhado - disse ele, depois.

- Também eu - concordou Doroteia. E creio que nós, com os nossos fracos recursos de investigadores, não seremos capazes de o deslindar.

-Então, eu não serei capaz de pôr tudo em pratos limpos ? - indagou o médico.

- Acho que virás perder tanto tempo, como eu e tua mulher. É preciso interrogar ousadamente o pessoal da casa. Ora, nós temos demasiada consideração por ele para Lhe fazermos certas perguntas; o nosso receio de melindrá-lo fará com que passemos muita coisa em branco que poderia constituir a chave do mistério.

- A mãe talvez tenha razão - concordou o Dr. Garden. -Confesso que não teria muita coragem para submeter, por exemplo, Bob a um mterrogatório em forma. Só o facto de lhe fazer algumas perguntas mais pertinentes o levaria a pensar que eu perdera a confiança nele, e estando inocente como acredito que ele esteja, isso bastará para se sentir profundamente ofendido. Em verdade, a coisa é complicada.

-Complicadíssima - anuiu Doroteia. Mas não podemos ficar assim, de braços cruzados, sem tentar reaver uma jóia de tanto valor real como estimativo. A Helena não pode resignar-se à ideia de ter perdido para sempre uma prenda que Lhe deste com tanto gosto.

- É preciso proceder, realmente.

- E ràpidamente - acentuou a Sr. Sommer, com energia.

-Estou a ver que não há outro caminho senão entregar o caso à polícia - disse o cirurgião.

- Vieste ao encontro do meu pensamento

- exclamou Doroteia. - A Helena fica toda atarantada só de ouvir falar em polícia. Mas na verdade, não há outro caminho a seguir.

- Bem, vou daqui à Scotland Yard - disse o médico. - Há lá um chefe muito meu amigo.

- E demoras-te muito ?

- O menos possível. Espero o Jaime para irmos almoçar juntos, conforme combinámos. Depois, vamos à Scotland Yard e em seguida partimos para aí.

- óptimo.

- Entretanto, procurem bem o alfinete. Era preferível que a polícia não tivesse de intervir.

- Então, demora-te o menos possível - aconselhou a Sr.a Sommer.

-Agora estou impaciente por voltar para casa. Vou cancelar todas as consultas marcadas para esta tarde. Oiça mamã, acalme a Helena e não lancem o alarme entre o pessoal de que vai intervir a polícia; isso seria colocá-lo desde já numa situação suspeita.

- A tua recomendação vem tarde, meu fillho

-replicou Doroteia. -Já declarei diante de Bob que ia telefonar-te e dar-te essa sugestão.

- Foi pena. E reparou na reacção dele ?

-Parece não ter gostado nada da brincadeira.

-Bem, não percamos tempo. Até logo, mamã.

-Até logo, Artur.

-A Sr.a Sommer ouviu desligar o telefone. Pousou por seu turno o auscultador no descanso e voltou à sala de jantar, onde encontrou Helena, Bob e Emília, ainda perplexos pelas suspeitas que o Carlitos parecia ter levantado ingènuamente sobre a irmã, que estava lavada em lágrimas.

- Mamã - disse a Sr. a Garden ao ver entrar a mãe-, preciso de falar contigo um minuto em particular. Passemos ali ao escritório.

 

As suspeitas da Sr. a Sommer

Mal se viu só com sua mãe, a Sr.a Garden indagou - Que resolveu o Artur ?

- O que devia resolver. pedir a intervenção da polícia.

Helena deixou-se cair numa poltrona próxima, num ar acabrunhado. Sua mãe estranhou-a.

- Porque ficaste tão abatida ? - perguntou ela. -Parece-te que um polícia é algum ser do outro mundo, ou representa alguma ameaça, quando, em verdade, só ele nos poderá solucionar o problema que nós não sabemos resolver?

-A Sr.a Garden ficou com o cotovelo fincado no braço da poltrona, a fronte apoiada na mão, que a apertava um pouco trémula, e os olhos baixos, fitos nos seus oelhos. Doroteia

Sommer acrescentou, após uma breve pausa em que a observou:

-O Artur disse que ia à Scotland Yard onde tem um amigo, e que voltaria para casa o mais depressa possível. Não vejo, portanto, motivo para estares apreensiva. Verás que tudo o que nos parece agora inexplicável, se torna claro como água para um investigador experimentado.

Sem levantar a testa da mão, como se a cabeça lhe pesasse muito e tivesse de ampará-la, Helena meneou tristemente os seus belos cabelos negros e anelados.

- Estou mesmo a adivinhar - disse ela em voz sumida - que vem para aí um homem qualquer, um desconhecido, começa a fazer perguntas indiscretas, ofendendo toda a gente, e, o que é pior, a assustar as crianças.

-As crianças ? - estranhou a Sr.a Sommer.

-Evidentemente-insistiu Helena, erguendo por fim o olhar para sua mãe. -Uma das pessoas que ele há-de interrogar é Isabel, e provàvelmente o Carlinhos, também. Ora, a Isabelinha é uma menina assustadiça, nervosa, para quem um interrogatório feito por um desconhecido deve representar uma verdadeira tortura, à qual nós temos o dever de subtraí-la.

A Sr. a Sommer esteve um momento calada, pensativa, como se as observações de sua filha a tivessem chocado. Mas, arredando as suas preocupações, replicou, por fim:

-Parece-me que estás a ver as coisas por uma lente de aumentar! Sempre foste, desde criança, uma exagerada. A coisa mais insignificante causava-te uma impressão enorme. Chegavas a cair no ridiculo.

-Reconheço que tenho uma sensibilidade um pouco exagerada - confessou Helena. E minha filha, nesse ponto, sai bastante a mim. Por isso, avalio melhor do que tu, mamã, a sensação desagradável, deprimente, que a Isabelinha vai sofrer em contacto com esse homem que ela não conhece senão pelo nome apavorante de polícia.

-Achas então que é preferível resignarmo-nos à perda duma jóia de tanto valor, só para não pregar um sustozinho à menina?perguntou Doroteia, num leve ar de troça.

-Acho que se devem evitar quanto possível situações que produzam na pequena abalos de nervos que muito podem prejudicar a sua delicada sensibilidade. E tanto mais que o Carlinhos teve agora uma das suas saídas intempestivas e impensadas que pôs a menina em foco.

- Em foco de que maneira - indagou Doroteia.

-Levantando a suspeita de que a irmã, que mostrara ontem tanto empenho em possuir um alfinete semelhante, ocultara o meu, dando origem a toda esta confusão.

-O Carlitos é uma criança que não sabe o que diz - comentou a Sr.a Sommer. - Quis brincar.

-O Carlitos herdou um pouco o espírito trocista e mordaz da avó - observou Helena.

Às vezes, estou a ouvi-lo e a pensar em si, mamã. Por uma brincadeira é capaz de impor um sacrifício a pessoas que ele estime, como realmente estima a irmã.

-Mas quem é que vai tomar essa ideia a sério? - redarguiu Doroteia. - Quem é que vai acreditar que a Isabelinha ocultou o alfinete de brilhantes ?

- Não acreditas tu, não o acredito eu - respondeu a mãe dos pequenos. - Mas na atmosfera de suspeição que se respira, uma hipótese dessas lançada assim, inconscientemente, pode tomar um vulto extraordinário.

- Ora, ora.

- Escuta, mamã! só queria que visses a cara e os olhares de Bob e de Emília, quando o Carlitos disse aquela insensatez. Percebi logo que eles achavam o facto muito provável, isto é, que a menina ocultara a jóia e fizera a comédia de simular que lhe desaparecera do pijama onde a Emília o pregara.

- Talvez Bob e Emília tivessem conveniência em fazer-nos acreditar nessa atoarda - pronunciou a Sr.a Sommer lentamente, como que a ponderar bem as palavras.

-Porque dizes isso, mamã?

- Porque em minha opinião - disse Doroteia, baixando mais a voz -é entre Bob e Emilia que devemos procurar o autor do furto, se acaso não fizeram o furto de combinação.

- Oh, mamã! Até sinto repugnância em admitir essa hipótese!

- Tenho visto mais mundo do que tu, minha filha-insinuou a Sr. Sommer. -A Humanidade já não me apanha tão ingénua como a tique confias às cegas em toda a gente.

- Oh, não, mamã! Bob serve-nos há dez

anos. É úm homem sossegado, dedicado à família. É um crime pensar dele uma coisa dessas, quanto mais dizê-lo!

- E Emília?

- Emília tem dezassete anos mas a sua mentalidade é quase infantil. Além disso tem um fundo amorável que me comove, e é duma honestidade sólida. Quer ela, quer Bob, não podem estar em causa. Seríamos duma ingratidão vergonhosa se suspeitássemos deles.

-No entanto, tu estranhaste que Emília recomendasse a tua filha que não te falasse mais no alfinete -lembrou Doroteia.

- É verdade, mamã - confessou Helena. Não pude impedir que essa suspeita detestável se infiltrasse no meu espírito. Até tenho vergonha de o dizer. Achei, realmente, aquilo esquisito. Mas, se a rapariga disse isso, na suposição que fora eu quem tirara o alfinete à menina durante o sono, era louvável: queria evitar atritos entre mãe e filha.      

- Muito bem, Helena - proferiu a Sr.a Sommer. -Mas o difícil é saber se Emília, de posse do alfinete, aconselhou a menina a não te falar nele, para evitar que a questão do desaparecimento se levantasse muito cedo e lhe desse

tempo de dar sumiço ao furto.

-Meu Deus, não será pecado suspeitar

assim duma pessoa que provàvelmente está tão inocente como eu ou como tu, mamã ? - exclamou Helena, revelando nesta frase a tortura do seu espírito. E ajuntou, com amargura - E no entanto, a suspeita sobre essa pobre rapariga infiltrou-se em meu espírito, contra a minha vontade. Juro-lhe, mamã, que se tudo se esclarecer e ela ficar ilibada, como espero, Lhe hei-de pedir perdão dos meus maus pensamentos.

- Deus queira que assim suceda - desejou a Sr.a Sommer-e que a jóia apareça, para sossego de nós todos. Olha, eu é que não tenciono pedir-lhe perdão.

- Mas, por agora, o que me está dando mais cuidado é a situação de Isabelinha-declarou Helena.

- Escuta. porque não a chamas aqui e não conversas um pouco com ela? Até lhe podes preparar o espírito para a eventualidade de ser mterrogada pelo polícia - sugeriu Doroteia.

- Talvez tenha razão - disse a Sr.a Garden, levantando-se e tocando a campainha que estava em cima da vasta secretária do doutor.

Emília não tardou em assomar à porta.

-Diz à menina Isabelinha que chegue aqui

- ordenou Helena.

A rapariga retirou-se sem proferir palavra.

- Reparaste no ar transtornado desta rapariga? - perguntou a Sr.a Sommer.

- Anda nervosa e assustada - observou Helena.

- Tem cara de quem não traz a consciencia tranquila - afirmou a Sr. a Sommer. - Ou eu me engano muito, ou ela está comprometida no caso, talvez de cumplicidade com Bob.

- Oh, mamã, cesse com essas hipóteses horríveis - exclamou a Sr. a Garden, com uma careta de repugnância.

Ouviu-se bater frouxamente à porta.

- Entra, Isabelinha - gritou Doroteia. A porta arredou-se lentamente e o vultozinho airoso de Isabel assomou ao limiar.

-Fecha a porta e anda cá, meu amor - ordenou-lhe carinhosamenre a mãe, voltando a sentar-se na poltrona.

A menina aproximou-se, encostando-se-lhe aos joelhos. O seu rosto ainda apresentava vestígios de lágrimas, o seu olhar era triste e do peito soltava-se-Lhe, de quando em quando, um soluço abafado.

- Não estejas triste, Isabelinha - disse-lhe a mãe, puxando-a a si e passando-lhe a mão pelo rosto moreno, num afago cheio de ternura.

- O Carlinhos não me dá senão desgostos - disse a menina, que apertava a si uma pequena boneca, muito graciosa.

- O teu irmão não sabe o que diz - observou-lhe a avó.

Isabelinha volveu para ela o rosto melancólico e replicou:

-Só me acusa com mentiras. Eu estava com o carrinho e as minhas bonecas num cantinho de relva, mesmo ao pé do jardim que ele tem ao fundo do parque. Gosto muito daquele sítio porque tem uma relva fresca para as minhas meninas brincarem à sombra das tílias. Mas eu nunca mexo no jardim do Carlinhos. Ele não gosta, e não o quero contrariar, embora eu não estragasse nada... Pois bem, o Carlinhos, mal chegou da escola, foi logo lá embirrar comigo.

-Embirrar porquê, se não lhe estragaste nada ? - estranhou a mãe.

-Pois não lhe toquei nem numa flor.

- Não estás a mentir Isabel ? - interrogou a Sr. Sommer.

- Não, avózinha, posso jurar-lho. Mas ele disse que eu tinha andado a revolver-lhe a terra no jardim! -exclamouapequena, indignada.

- O Carlinhos precisa de ser repreendido - disse a Sr.a Garden. - Anda muito fora da ordem.

- Ouve lá, Isabelinha- interveio a avó. Por que é que o Carlinhos diz que tu ocultaste o alfinete de bzilhantes? Como pode ele afirmar um disparate desses?

- Outra mentira, avòzinha. - bradou a menina, com os olhos afogados em lágrimas. O Carlinhos não faz senão embirrar comigo. Eu não ocultei o alfinete. Desapareceu-me do peito. A Emília bem viu.

- Tu não deste por a Emília ter ido de noite ao teu quarto?-inquiriu a Sr. a Sommer, baixando a voz.

- Mamã, que perguntas essas. - proferiu Helena, em tom de enfado.

- Não, avòzinha - replicou a menina. Eu, quando acordei, vi que me faltava o alfinete, fiquei muito aflita e chamei a Emília. Foi só nessa altura que eu a vi entrar no quarto.

Doroteia e a filha trocaram um olhar.

- Olha, Isabelinha - disse Helena, puxando mais a menina a si -, o pai logo traz cá um       senhor para procurar o alfinete.

-O Carlinhos disse-me que havia de vir um polícia, um "detective"...

- Sim, um "detective" - confirmou Helena, percebendo que Carlos já falara de mais.      

-O Carlinhos disse-me que o polícia me        levava presa e me metia numa casa muito escura - proferiu a pequena, em voz sufocada e lançando à mãe um olhar aterrado.

- O teu irmão só diz palermices – proferiu a Sr.a Garden, impaciente. E dirigindo-se a Doroteia - A mamã não vê que o pequeno está a tornar-se insuportável?

- É preciso pôr-lhe um freio - sentenciou       a Sr.a Sommer.

- Tenho de ter uma conversa muito a sério com o Artur a respeito dele – declarou Helena. E volvendo-se para a filha, disse:- Não te assustes. O polícia não te leva presa.      

Tu não escondeste o alfinete, pois não?

- Eu não, mamã - replicou a menina.    

E acrescentou, hesitante - A não ser que o fizesse a dormir, e agora não me lembre onde    o pus... O Carlinhos diz que há pessoas que cometem crimes a dormir. Leu isso num livro da avó.

-Isso são as pessoas sonâmbulas, as que fazem tudo tal qual como se estivessem acordadas, mas, em realidade, estão a dormir; e

quando acordam não se lembram de coisa alguma do que fizeram-explicou a Sr. a Garden.

-Mas tu, graças a Deus, não padeces dessa doença.

-Então o polícia não me leva presa, pois não ? - perguntou ainda a menina, ansiosa por que a tranquilizassem.

-Não, filha, sossega, que ninguém te leva presa. É a tua mamã quem to afiança.

Isabelinha soltou um profundo suspiro, limpou os olhos húmidos às costas da mão e perguntou ingènuamente:

-Então, quem é que o polícia vem cá prender ?

- Ninguém, minha querida-assegurou-lhe a mãe. -O polícia vem só procurar o alfinete. Para isso, há-de fazer perguntas às pessoas: à avó, a mim, à Emília, a ti.

- A mim também? - estranhou a criança, com terror.

-Sim, mas não te assustes que ele não te faz mal.

-Como é ele, mamã? É muito grande? A Sr. a Sommer soltou uma risada.

- Como queres que eu to descreva, se nunca o vi ? - replicou Helena: Mas asseguro-te que não é muito grande e, além disso, gosta de crianças, de meninas bem comportadas como tu.

Isabelinha ficou, pensativa, a dar voltas à boneca que tinha nas mãos.

Nesse momento, a porta do aposento abriu-se e Emília assomou a cabeça.

- Minha senhora-anunciou ela-, o almoço está na mesa.

- O almoço - exclamou a Sr. a Garden.

-Com esta barafunda esqueci totalmente a refeição. E ainda estou de robe.

- Também eu - disse Doroteia. - O melhor é irmos assim mesmo para a mesa. Felizmente, não temos visitas.

 

Um gigante em acção

Por volta das quatro horas da tarde, ouviu-se o rumor dum automóvel no parque, e Carlitos, espreitando através do cortinado duma das janelas do rés-do-chão, viu que era o carro do pai e que dele se apeava, além do doutor, um homem muito alto e entroncado. A portinhola fechou-se e não se apeou mais ninguém.         O Dr. Artur Garden e o desconhecido começaram a subir lentamente a escadaria de pedra do exterior, fugindo do ângulo de visão de Carlitos, que correu pelo interior da casa à   procura da Isabelinha. Foi encontrá-la num compartimento afastado, que se destinava apenas às brincadeiras das crianças. Era ali que o Carlinhos guardava a sua bicicleta e o grande automóvel de pedais em que às vezes andava pelo parque, e a menina as suas bonecas, as bolas coloridas, os seus arcos e as suas mobílias miniaturais.

Estava ela, quase esquecida dos desgostos dessa manhã, a arrumar uma casinha muito bem mobilada para a sua boneca maior, a sua Daisy, que andava, movia os olhos e a cabeça e proferia as palavras " papá " e " mamã ", quando Carlos entrou no aposento como um furacão.

- Isabelinha - bradou o pequeno. - Vem aí o tal polícia. Estás bem arranjada com a tua vida.

A menina, apesar de muito inquieta, ainda teve coragem para replicar:

-Bem te percebo. O que tu queres é meter-me medo.

- Já te disse que chegou agora - teimou Carlos. -O papá trouxe-o no automóvel.

- Não acredito - replicou Isabel. - Tu és um mentiroso. O que pretendes é assustar-me... Mas não o consegues.

- Só te digo que é um verdadeiro gigante! - insistiu o irmão. - Eu vi-o da janela. Nem cabia no carro. Vinha todo dobrado lá dentro.

- Ora, ora, é lá possível. - murmurou a menina, cada vez menos tranquila.

- Não acreditas ? - disse Carlos. - Vem comigo ali à esquina do corredor. Estão a entrar agora. O papá deve levá-lo para a biblioteca, para conversarem. Anda cá ver.

O pequeno pegou na mão da irmã e, quase à força, puxou-a para fora do aposento, percorreram o corredor até à esquina e daí puderam espreitar: Efectivamente, três pessoas percorriam o outro trecho do corredor, mas afastando-se, por forma que as crianças viam-nas de costas. À frente ia Bob, que abriu uma porta e se arredou para dar passagem ao Dr. Garden e a um homem excessivamente alto e forte, que, aos olhos de Isabelinha, apavorada, ainda parecia mais alto e mais forte, um verdadeiro gigante.

- Eu não te dizia ? - pronunciou Carlinhos, num ar triunfante. - Viste com os teus olhos ?

A menina juntara as mãozitas, sem poder proferir palavra, e, tomada de súbito pânico, fugiu para a casa dos brinquedos e fechou-se por dentro, enquanto o irmão soltava grandes gargalhadas de contentamento.

Logo que entraram na biblioteca, o doutor ordenou a Bob, muito correcto na sua libré azul:

- Pede à senhora o favor de vir aqui. Volveu-se para o desconhecido e, apontando-lhe uma vasta poltrona de couro, disse-lhe: - Tenha a a bondade de sentar-se.

O homem acomodou-se com dificuldade, apesar da amplidão da poltrona. Era louro, cabelo ralo nas têmporas, rosto enérgico, maxilares pronunciados, nariz robusto e olhos dum azul-metálico, em que a claridade feria lampejos que lembravam relâmpagos. Esses olhos excessivamente perfurantes passeavam em sua volta, como se quisessem registar tudo quanto se encontrava no aposento.

- Um cigarro, inspector ? -perguntou o médico, abrindo a cigarreira de ouro.

O inspector ergueu a mão, como que a detê-lo ( uma mão enorme, larga e musculosa ) e respondeu:

-A minha especialidade é o cachimbo.

O doutor sorriu e replicou:

- Se Lhe apetece, não faça cerimónia.

- Por enquanto, não, muito obrigado - disse o gigante. - Quando me apetecer, pedir-lhe-ei licença.

Permaneceram um momento silenciosos. Foi o médico o primeiro que tornou a falar.

- Tenho a impressão de que este caso para si é fácil - disse ele.

O inspector falava repousadamente.

- Tenho muito medo dos casos que parecem fáceis. Enganam muito. vamos a ver.

- No entanto, o que já lhe contei. O inspector voltou a erguer a grande mão, detendo o médico:

- Sr. Doutor, o que me contou foi muito. No entanto, teremos de rever tudo no ambiente próprio. O senhor recebeu as informações pelo telefone, eu recebi-as do senhor, portanto, duma forma ainda mais indirecta. Dão-se deformações involuntárias, colhem-se informações ao. invés, sem mesmo darmos por isso. Convém rever os factos, em contacto com as pessoas que neles intervieram e.

A porta abriu-se e a Sr.a Garden entrou. O médico e o inspector levantaram-se. Ela dirigiu-se ao marido e beijou-o. Tinha um ar triste, abatido.

- Helena - disse o médico -, deixa-me apresentar-te o inspector Jackson, que vem tratar do nosso assunto.

A Sr.a Garden ergueu a cabeça para ver o rosto do polícia que, apesar de se ter curvado, numa mesura, ainda ficava muito distante.

- Muito prazer - disse ela, estendendo-Lhe a mão que desapareceu como que engolida pela dele. - Queira sentar-se e estar à vontade.

O casal Garden sentou-se num sofá, perto da vasta poltrona que o gigante voltara a ocupar. Helena fazia todo o possível por dominar o seu nervosismo. Os olhos metálicos do polícia, que pareciam afiados como espadas, fixavam-na tão agudamente, que dir-se-iam tocar-lhe o coração, magoando-a. Sentia-se perturbada, e ainda mais a perturbava não o querer mostrar.

Após um longo silêncio incomodativo, o inspector Jackson decidiu-se a falar.

- Minha senhora - disse ele -, o seu marido soube dos acontecimentos através dum telefonema de sua mãe, suponho que é sua mãe a Sr.a Sommer.

- acrescentou ele, revelando grande memória ao recordar o apelido de Doroteia- e eu conheci-os através do relato, talvez inconscientemente alterado, de seu marido. Portanto, devo ter uma noção imperfeita dos factos. Preciso de alguém que tivesse estado mais em contacto com as pessoas e, por assim dizer, com as coisas, que possa fazer- me um relato fiel do que sucedeu. Esse alguém é a senhora. Tenha a paciência e a bondade de me fazer a história de tudo, com todos os pormenores, mesmo os que lhe pareçam mais insignificantes.

Falava pausadamente, com todos os pontos vírgulas e, ao calar-se, recostou-se um pouco e ficou na expectativa.

Helena lançou um olhar angustiado a seu marido, como se lhe pedisse socorro.

-Vamos, minha filha, diz o que sabes - pronunciou o Dr. Garden, para a estimular.

A Sr.a Garden baixou os olhos, apertou nervosamente as mãos uma contra a outra e esboçou um sorriso doloroso.

- Não sei por onde começar. - murmurou ela.

- O melhor é principiar pelo primeiro facto que lhe vier à cabeça - aconselhou o inspector.

-Em começando a falar, depressa apanha o fio da meada.

- Bem - disse Helena -, o princípio foi meu marido, ontem, que era dia do meu aniversário e simultâneamente o do nosso casamento ter-me trazido um alfinete de rubis e brilhantes, cópia duma jóia de fantasia que meu irmão pintou num retrato que me fez. Meu irmão é pintor.

- Já sei - disse Jackson. -E depois ?

- Depois. depois, tudo correu muito bem: Estivemos muito alegres, como é natural.

- E sua menina, a Isabelinha. É esse o seu nome, não é verdade? - acrescentou o inspector. - A sua menina teve uma birra. de criança e quis que lhe emprestassem a joia.

- Exactamente-confirmou Helena. E contou o capricho de Isabelinha não querer abandonar o alfinete, nem mesmo quando se foi deitar.

- Muito bem - disse o inspector Jackson:

Estamos a chegar ao ponto melindroso da questão. Quem foi a última pessoa que viu a menina com o alfinete na cama?

-Fui eu e meu marido também.

- A que horas ?

- Uma e dez ou uma e um quarto da madrugada.

-E os senhores foram os últimos a deitar-se ?

- Não - foi o Dr. Garden quem respondeu. - Os criados ainda ficaram a pé. Fora dia de festa, havia a sala de jantar para arrumar, louça a lavar e a limpar.

- Não sabem, então, a que horas se deitou o pessoal - observou o polícia.

- Não, mas é fácil de saber - respondeu Helena, que se ia tornando mais afoita. - Basta-nos interrogar Bob.

- Quem é Bob?

-O nosso criado mais antigo, uma espécie de mordomo, que dirige superiormente todos os trabalhos domésticos.

- Convinha-me ouvir desde já esse Bob - disse o investigador.

Helena houve por bem advertir:

-É um homem honestíssimo, quase uma pessoa da família. Está ao nosso serviço há dez anos.

Jackson limitou-se a inclinar-se, num movimento de compreensão. Entretanto, o médico tocou a campainha.

- É agora o momento de me darem licença de usar o meu cachimbo - disse o inspector, sorrindo pela primeira vez e revelando um dente de ouro. - Permite- me, minha senhora?

- Faça de conta que está em sua casa - respondeu a mãe de Isabelinha.

Jackson desabotoou o seu vasto jaquetão, sacou dum cachimbo e duma tabaqueira de couro e começou a preparar metòdicamente o tabaco, triturando-o ligeiramente entre os grossos dedos para encher a concavidade. Entretanto, a porta abriu-se e foi o próprio Bob, muito grave, quem apareceu.

-Entre e feche a porta-ordenou o Dr. Garden.

O criado obedeceu silenciosamente, em movimentos compassados, e avançou ums metros, ficando de pé, no meio da sala, num ar comedido. O médico, então, pronunciou algumas palavras para o pôr à vontade.

- Bob - disse ele -, está aqui o inspector Jackson, que vem, a meu pedido, auxiliar-nos a procurar o alfinete. É um dos melhores investigadores da Scotland Yard e tem mais prática destas coisas do que nós. Já o informei da tua posição em nossa casa. és como uma pessoa de família, que muito estimamos e por quem temos o maior respeito.

- Muito obrigado - murmurou Bob, que permanecia carrancudamente sério.

- O inspector precisa de te ouvir - acrescentou o doutor. - Escusado será recomendar-te boa vontade.

Bob inclinou-se, num ar de concordância. O polícia interveio, no seu tom pausado.

- Sr. Bob - disse ele -, eu estou a contar com o seu auxílio. Tenho a certeza de que não mo negará; vamos, portanto, trabalhar de comum acordo. Está combinado?

-Perfeitamente, senhor-pronunciou o criado, sem sair da sua severa circunspecção.

- Ora, muito bem - exclamou o inspector, como se acabasse de receber a mais espontânea e entusiástica adesão. - A certeza da sua confiança faz-me esperar um êxito absoluto.

A Sr.a Garden assistiu àquele diálogo, com uma expressão de tristeza, e o doutor admirava a habilidade diplomática de Jackson.

- Ora - prosseguiu este -, para iniciarmos a nossa colaboração, Sr. Bob, permita-me que lhe peça alguns esclarecimentos. - Fez uma larga pausa, cravando o seu agudo olhar, que lampeava como aço, no rosto do criado. Recorda-se da hora a que se deitaram os seus amos ?

- Perfeitamente - respondeu o criado, sem hesitações. -Passavam uns dez minutos da uma hora, quando o Sr. Doutor e sua esposa me deram as boas-noites na sala de jantar e subiram para se deitarem. A senhora até me disse que estava com um sono que quase nem podia abrir os olhos.

- Exactamente - corroborou Helena.

-A Sr.a Sommer tinha-se recolhido aos seus aposentos, talvez uns dez a quinze minutos antes - pormenorizou o criado.

-E quem ficou a pé? O pessoal, não é verdade-disse o inspector Jackson.

-Apenas eu e Emília, a criada de fora

- informou Bob.

- Por muito tempo ? -indagou o polícia.

-Cerca de meia hora, não posso precisar bem - replicou o criado. - Dei ainda uns retoques no arrumo da sala de jantar, enquanto Emília, na cozinha, acabava de limpar as últimas louças, isto é, o serviço de café e os cristais.

- E a cozinheira ?

- Essa deita-se um pouco mais cedo.

-E a que horas se deitou o Sr. Bob?-inquiriu o investigador.

- Eram precisamente duas menos um quarto

-respondeu o criado prontamente.

- Emília já se tinha deitado, é claro.

- Não - opôs Bob, fazendo uma ligeira careta- Emília ainda ficou a pé. Não podia ir para a cama, sem se lavar primeiro. É uma rapariga muito asseada.

- E deu por ela deitar-se ? – perguntou jackson.

-Não, não dei por coisa alguma.

- Já tinha adormecido ?

- Sim, não tardei em adormecer-confessou Bob. - Mas mesmo que estivesse acordado, não daria por ela se recolher, porque os nossos quartos ficam perfeitamente opostos, no segundo andar o meu alcança-se pelo corredor da direita, que parte do patamar; o dela pelo corredor da esquerda. De maneira que, mesmo que estivesse acordado, dificilmente a sentiria recolher-se a não ser que fizesse muito barulho.

-Então, não pode precisar a hora a que ela se deitou - disse o inspector Jackson.

-Não posso precisar, mas suponho que seria poucos minutos depois de mim - declarou Bob.

- E de manhã, quem se levantou primeiro ?

-indagou o detective.

- Habitualmente, sou eu o primeiro a levantar-me -disse Bob. -Mas hoje, provàvelmente, por ter adormecido tarde, fui o segundo.

- Quem se levantou primeiro, afinal?

- Emília - respondeu o criado.

Houve um silêncio que se prolongou apenas um instante mais do que o normal, mas o suficiente para estabelecer um certo mal-estar entre os circunstantes.

Como se quisesse atenuar aquela má disposição, Bob ajuntou uma explicação:

-Quando me levantei, fui bater à porta do quarto dela, receando que tivesse dificuldade em acordar, por ter adormecido muito tarde. Mas Emília é uma rapariga diligente e cuidadosa, apesar da sua pouca idade. já não estava no quarto, cuja porta encontrei entreaberta. Quem ainda dormia a sono solto era Gertrudes.

- A cozinheira ?

-Sim, a cozinheira.

- E que fazia a Emília?

-Fui encontrá-la a pôr a mesa para o pequeno almoço do Sr. Doutor e do Sr. Jaime, que se levantaram muito cedo, a fim de seguirem juntos para Londres.

- Ah, o cunhado do Sr. Doutor ? - lembrou-se o policia.

- Sim, o meu cunhado de quem já lhe falei!   -exclamou o médico.

- A propósito: porque não veio meu irmão contigo ? - indagou a Sr.a Garden.

- Tinha ficado de ir almoçar comigo - explicou o cirurgião. - Mas telefonou-me a dizer que fora agarrado por uns amigos, que o obrigavam a almoçar com eles. Pediu-me desculpa e despediu-se até à hora do jantar.

Jackson volveu a interrogar Bob.

-O senhor não pode saber ao certo o que fez Emília durante o tempo em que esteve a repousar. Só sabe que ela ficou a pé, depois do Sr. Bob se deitar, e que já estava a pé quando o Sr. Bob se levantou. -E volvendo o olhar para os Garden, acrescentou:

-Há, portanto, um espaço de tempo que escapa ao " controle" de qualquer outra pessoa na casa...

- Perdão - interrompeu Bob. - Há uma pessoa que talvez possa dizer o que se passou até ela se deitar, visto ter-se recolhido ainda mais tarde do que Emília.

- Quem ? - estranhou Helena.

- O Sr. Jaime Sommer - declarou Bob.

- Ele próprio declarou, ao pequeno almoço,  que estivera fechado na biblioteca até as duas e meia da madrugada, a escrever uma carta para Paris, e que se admirava de estar tão fresco apesar de ter dormido tão poucas horas.

-Exactamente, Bob; eu ouvi-o dizer isso mesmo - corroborou o Dr Garden.

O inspector, que despejava as cinzas do cachimbo no grande cinzeiro de metal que estava a seu lado, parecia agora distraído a enchê-lo de novo sem prestar atenção ao que se dizia.   

Depois acendeu o cachimbo, lançando grandes baforadas, para volver novamente para Bob o seu olhar frio.

-Já sei que Emília é uma rapariga de toda a confiança - disse ele. - O Sr. Bob notou-Lhe porém, alguma particularidade de carácter digna de registo.

- Não percebo bem o sentido da pergunta... - disse o criado.

- Por exemplo é namoradeira, leviana, ambiciosa, amiga do luxo?

Bob esboçou o seu primeiro sorriso.

- Pobre Emília - pronunciou ele cheio de comiseração. - Tem hoje dezassete anos. Veiopara aqui com quinze. É filha de camponeses honestos, compadres do nosso jardineiro. Sossegada como poucas da sua idade! Os patrões são para ela a sua segunda família. Adora os meninos, a menina Isabelinha principalmente.

As suas ambições são tão modestas, tão limitadas.

- Apraz-me ouvir todas essas boas referências - disse o inspector Jackson, que estivera movendo a cabeça em sinal de aprovação, enquanto Bob falava. -Isso quer dizer que todas as informações que eu obtenha dela são de absoluta confiança, não é verdade?

- Absolutamente - confirmou Bob, com energia.

- Muito bem - pronunciou o inspector. Sr. Doutor, dá licença que Bob me traga aqui a Emília ?

- Evidentemente - anuiu o médico. -Bob, vá chamá-la e recomende-lhe que não se assuste.

- Perfeitamente, Sr. Doutor - respondeu o criado, fazendo uma vénia e retirando-se.

- Com toda a franqueza - confessou o médico, depois de Bob ter fechado discretamente a porta -, ainda não ouvi coisa alguma que nos dê uma pista.

- Nada realmente - concordou o polícia.

-Há apenas um certo espaço de tempo, à noite e de manhã, em que Emília praticou ou não praticou actos que escapam ao nosso " controle ". Que fez ela antes de se deitar? Que fez antes de Bob se levantar? Nada de anormal, estou convencido, visto tratar-se duma rapariga honesta. Mas é possível que, durante esse espaço de tempo, ela tenha visto ou ouvido alguma coisa que nos conduza a uma pista.

- Mas o Sr. Inspector tem a certeza de que se trata dum furto?- perguntou a Sr.a Garden, saindo do seu longo mutismo.

O polícia mostrou novamente o seu dente de ouro, num sorriso.

- Há noventa e nove probabilidades contra uma de ser realmente um roubo - disse ele.

- E de pessoa da casa?

- Evidentemente, visto não haver um único indício, conforme me disseram, de pessoa estranha aqui se ter introduzido durante a noite.

Alguém bateu discretamente à porta.

- Entre - gritou o Dr. Garden.

Bob entrou, com certo ímpeto, avançou uns passos, parou, relanceando os olhos escancarados no rosto muito pálido, e proferiu, em voz estrangulada:

- Emília. Emília não está cá. Foi-se embora.

- Fugiu - disse tranquilamente o inspector Jakson sem tirar o pipo do cachimbo de entre os dentes.

O casal Garden entreolhou-se, cheio de espanto.

 

Indícios graves contra Emília

Só o inspector Jackson não parecera surpreendido com aquela notícia. Dir-se-ia ter achado muito natural que Emília tivesse fugido. Mastanto Helena como o Dr. Garden mostraram-se tão transtornados como o próprio Bobque puxara dum lenço de impecável alvura e limpava o suor que lhe humedecia a testa.

- Mas, porque havia a rapariga de fugir? Exclamou o médico. - - Ela não estava em causa.

-Não estava, mas talvez se sinta comprometida por qualquer coisa. - disse o polícia.

Helena pronunciou, muito comovida:

-Estou aflita com o destino que ela poderá ter levado. Emília é uma jovem muito nervosa. Só a ideia de ter de comparecer perante um polícia lhe infunde um terror pânico.

- Só isso pode explicar a sua atitude - disse o cirurgião.

- Para onde teria ela ido ? - prosseguiu a Sr. a Garden, consternada. -Receio que, no seu desvairo, faça alguma loucura.

- Escute, Bob - interveio o inspector. i Ela não disse coisa alguma? Foi-se, assim embora, sem mais nem menos?

Bob tornou a limpar o suor antes de responder:

-Quando saí daqui, chamei-a várias vezes, sem obter resposta. Dirigi- me à cozinha e perguntei por ela à Gertrudes. Respondeu-me que não a via há uma boa meia hora. Estranhara tê-la visto com os sapatos novos dos domingos e perguntara-lhe se os patrões a mandaram a recado. Respondera- lhe de mau modo que não sabia. Gertrudes como a acha acriançada, encolheu os ombros e não fez caso dos seus modos, pensando consigo: "Está com alguma birra". Depois disso, não a viu mais. Corri lá acima ao quarto dela. A porta estava aberta e a sua mala, com o tampo levantado, denunciava que ela retirara dali alguma roupa limpa para se vestir. Tornei a descer a escada e, no átrio, encontrei o menino Carlinhos. Perguntei-lhe se tinha visto a Emília. Respondeu-me que sim, que a encontrara minutos antes a caminho do portão. Perguntando-lhe aonde ia, respondeu-Lhe que ia fazer uma visita a casa dos pais, deu-lhe um beijo de fugida e dirigiu-se a toda a pressa para a rua. E não sei mais nada. Vim para aqui trazer estes informes.

Bob arquejava, como se dizer tudo aquilo dum fôlego o fatigasse tanto como uma corrida.

O inspector Jackson ergueu-se a toda a sua altura, e, tanto o médico como Bob, que eram homens altos, pareceram crianças a seu lado.

-O senhor sabe onde vivem os pais de Emília - perguntou ele ao criado.

-É relativamente perto daqui.

- Podemos ir lá, num instante - disse o inspector.

Nesse momento, a Sr.a Sommer apareceu no limiar da entrada.

- Não sou de mais, pois não ? - inquiriu ela, risonha.

- Oh, Entre, mamã - exclamou o Dr. Garden. - Quero apresentar-Lhe o inspector Jackson. A Sr.a Sommer, minha sogra.

- Muito prazer-pronunciou Doroteia, apertando a mão ao polícia. E acrescentou - pelo que vejo, já sabem a novidade.

- Mais alguma novidade, mamã - inquiriu Helena.

- A Emília fugiu.

-Ah! Já sabíamos, realmente, estávamos a comentar o caso - disse o médico.

- Eu soube-o, agora, pelo Carlitos - declarou a Sr. a Sommer. -Foi por isso que me atrevi a interrompê-los. Tudo parece indicar que o meu sexto sentido não me enganou.

- A que respeito, minha senhora ? - indagou o polícia.

- A respeito de Emília - respondeu Doroteia. - Não há dúvida de que a rapariga é um tanto infantil, mas, tal como as crianças, susceptível de praticar os seus delitos. E ou eu me engano muito ou ela não é alheia ao desaparecimento do alfinete.

Ao pronunciar estas palavras, lançou um olhar a Bob, que meneou a cabeça, num ar consternado.

- Mas tem alguma suspeita, minha senhora?

-perguntou o inspector.

Doroteia ergueu a cabeça, como se olhasse para um primeiro andar, e replicou:

-Tive logo de início uma suspeita, que vários indícios e factos não fazem senão confirmar. Com licença, deixem-me sentar. E estou a obrigá-los a permanecer de pé. - Acomodou-se numa cadeira, enquanto os circunstantes volviam aos seus lugares. - Mas, como eu ia dizendo - continuou ela -, suspeitei da Emília, logo de início. Porquê? Primeiro, por palpite, e o senhor, que é um "detective" afamado, sabe que raras vezes os primeiros palpites enganam; segundo, por indícios. Ela diz, que a menina a chamou, de manhã, e foi encontrá-la sentada na cama a choramingar por falta do alfinete. Mas quem me prova que Emília não estivera lá antes, com a menina a dormir?

- É muito provável - interveio Jackson.        

-E ainda há mais pormenores: do pessoal    ela foi a última a deitar-se. É muito possível que, ao transitar do andar térreo, passando pelo primeiro andar, entrasse no quarto da menina, lhe tirasse a jóia e seguisse para o seu quarto, onde fàcilmente se ocultaria. Mais ainda: contra o costume, foi a primeira a levantar-se esta manhã, tendo portanto outra o oportunidade de tirar o alfinete durante o sono da menina...  

- Tudo isso só confirma as minhas suspeitas - exclamou a Sr.a Sommer, com ar triunfante. - E o senhor já sabe que a Emília, quando a menina chorava por falta de alfinete, lhe recomendou que não dissesse nada à mamã ?   !

- Hum resmungou o polícia, movendo a cabeça num sinal de aprovação. Começo a compreender por que motivo ela agora se afastou...

- Ah! Eu não me posso resignar à ideia de que Emília seja culpada, embora as aparências a acusem - exclamou a Sr.a Garden.   

-Filha, não nos podemos deixar levar por sentimentalismos - acudiu Doroteia. - Tu própria foste a primeira a suspeitar dela, por causa daquela recomendação à menina. . As realidades estão a meter-se pelos olhos dentro.

- Tudo aquilo é criancice e nervos - disse a Sr. a Garden.  

- Ainda és muito ingénua-disse Doroteiano seu ar trocista.

-Confesso-declarou o médico-que ainda me custa a acreditar que a Emília fosse capaz de cometer um delito tão grave! Mas o melhor é tirar a prova dos nove.

- Indo procurá-la, não é verdade ? - alvitrou o inspector Jackson.

- Se o senhor quer, eu levo-o no carro a casa dos pais dela; conheço- os perfeitamente, convém não os assustar-disse o Dr. Garden.

-Acho que já começamos a perder tempo declarou o polícia, consultando o relógio de pulso. - Ela terá saído daqui a uns três quartos de hora, o máximo se for a pé- poderemos apanhá-la no caminho?

- Temos muitas probabilidades disso - con cordou o médico-, tanto mais que ela não tem meio de transporte para lá.

O inspector Jackson levantou-se e, acompanhado do médico, depois de breves despedidas, saiu apressadamente do aposento. Bob foi até à porta do átrio e, dali, viu-os partir em boa velocidade. O jardineiro acorreu, solícito, a abrir o portão, e o automóvel sumiu-se na estrada.

Bob meneou a cabeça e, volvendo à biblioteca, surpreendeu a Sr. Sommer e a filha em acesa discussão.

- Ah - exclamava a avó de Isabelinha. Ainda há- de vir o primeiro dia em que a minha intuição me engane! Sempre suspeitei da rapariga.

- Não, não me convenço - replicou Helena. Parece que quanto mais os indícios se acumulam contra ela, mais me persuado da sua inocencia.

- Uma sentimental - pronunciou Doroteia

com leve desdém. - Não passas duma sentimental. Por isso hás-de ser intrujada toda a vida.     

Bob tinha-se detido no limiar da porta.

- Peço-lhe mil perdões, minha senhora -       disse ele, em tom respeitoso. - Mas eu estou, como a Sr.a Garden, convencido da inocência de Emília.   

-Não percebo que conveniência podes ter, Bob, em defenderes tão calorosamente a Emília - insinuou Doroteia.

O criado corou até as orelhas e, sempre respeitoso, replicou, inclinando-se:

-A mesma conveniência da Sr. a Garden.

Desejam mais alguma coisa de mim?   

- Não, podes retirar-te-ordenou a Sr. a Sommer, de má catadura.

Bob saiu, fechando discretamente a porta.

- Valores entendidos... - disse Doroteia entre dentes. - Ninguém me tira da cabeça que o golpe foi combinado entre Bob e Emília.

- Mamã, que pecado, acusar sem provas! - exclamou Helena, em tom dolorido.

- O tempo há-de dar-me razão - redarguiu a Sra Sommer, com orgulho.

 

Carlinhos em grande actividade

A presença do " detectiv e " em casa parecia despertar em Carlitos tanta curiosidade quanto terror infundia a sua irmã. Enquanto a Isabelinha se refugiava a um canto da casa dos brinquedos e se rodeava das bonecas, como se estas a pudessem defender de qualquer perigo, ele andava numa dobadoura, percorrendo o corredor cuja passadeira espessa lhe abafava os passos, detendo-se à porta da biblioteca, na esperança de surpreender as conversas, correndo à cozinha a dar novidades à Gertrudes, mulher gorda e corada, a quem tudo aquilo causava grande confusão.

-Sr. a Gertrudes-segredara o pequeno quando o criado fora chamado à biblioteca -, o polícia vai levar Bob para a prisão.

- Credo, o Céu nos valha - exclamara a pobre mulher. -É lá possível prender-se o Sr. Bob, tão bom homem!.

Carlos ria-se à socapa dos terrores da pobre mulher. E da cozinha, corria à casa dos brinquedos para dar novidades terríveis a sua irmã.

- Isabelinha, prepara-te! o polícia desconfia que tu tiraste o alfinete à mamã.

- É mentira - choramingáva a pequena.

-Ele adivinha tudo-replicava Carlitos, com um riso escarninho. - Lê a verdade na cara das pessoas.     Basta olhar-te para os olhos para adivinhar o que tu pensas.          

- E eu não lhe mostro os olhos, fecho-os com toda a força-dizia ingenuamente a criança.

O rapazinho ria-se dos terrores causado à irmã.

Com Emília agira de forma diferente:

- As coisas estão más cá por casa, Emília - dissera ele. - Ouvi algumas palavras do polícia na biblioteca.

- Sim, menino ? Que dizia ele ? - indagou a criada, cada vez mais imquieta.

- Não percebi bem. Mas falava-se em roubo, no alfinete, em Emília... Não pude ouvir bem, porque isto foi só quando eu passava, e a mamã não gosta que eu escute às portas.

- Oh, meu Deus - exclamou a pobre rapariga. - Aquele homem é capaz de suspeitar de mim. Toda a gente desconfia de mim, ninguém me defende.

Deu alguns passos ao acaso, pelo quarto, apertando a cabeça nas mãos. O menino disfarçou um sorriso e declarou:

- Vou lá para baixo, ver se sei mais alguma coisa.

Voltou a correr, à cozinha.

-Então sabe mais alguma coisa, menino Carlinhos ?

- Parece que desconfiam da Emília. Ela vai fugir - segredou o pequeno.

- Fugir ?. Ah, desgraçada. Por isso, há pouco a vi aí com os sapatos de sair. Oh, meu Deus, ela seria capaz de tirar o alfinete ?. Eu não o acreditaria, nem que meus olhos o vissem.

-Vou ver se sei mais alguma coisa-disse o pequeno, fugindo da cozinha, muito satisfeito com as novidades que levava a um lado e a outro.

Dirigiu-se para o átrio, a fim de alcançar o jardim e falar com o João. Mas, ouvindo passos nas lajes de mármore, volveu-se e viu Emília, que se dirigia ápressadamente para a saída.

- Sempre te vais embora, Emília? - perguntou ele.

-Não, menino, vou só visitar minha mãe.

Até logo - disse ela, dando-Lhe um beijo.

Carlitos viu-a sair quase em corrida, percorrer a álea e sumir-se lá em baixo através do portão a toda a pressa, deixando-o entreaberto.

O pequeno ficou um momento no largo patamar, a relancear o olhar, na esperança de descobrir o jardineiro. Como não o visse, desistiu de ir procurá-lo, porque o que se passava dentro de casa tinha para ele multo mais interesse. Tornou a entrar. quando atingiu o corredor do rés-do-chão viu Bob sair da biblioteca e dirigir-se para a cozinha.       

Teve então ensejo para deitar um ouvido à porta da biblioteca, mas não distinguia senão um rumor abafado de vozes conversando, sem que se percebessem as palavras.

Um rumor de passos fê-lo abandonar aquela posição comprometedora. Começou a percorrer vagarosamente o corredor. Apareceu Bob, de regresso da cozinha, que o interpelou:

- O menino viu a Emília ?

- Vi, há bocadinho - respondeu o pequeno.

-Ia de vestido novo; disse que ia visitar a mãe.

Carlos viu que o rosto de Bob se tornara horrivelmente pálido. Era a primeira vez que o via naquele estado. O homem puxava do seu lenço branco e limpava a testa rebrilhante de suor.      

- Que loucura... Que loucura... - ouviu-o Carlitos murmurar.

Em seguida, Bob encaminhou-se para a biblioteca, cuja porta abriu, entrou e, como o batente tornasse a fechar-se, o pequeno não pôde ouvir o que se passava. O seu grande desgosto era não poder escutar o que discutiam as pessoas crescidas.

De súbito, ouviu passos no átrio e reconheceu-os logo. Era sua avó que vinha do primeiro andar. O menino correu logo ao seu encontro, agarrando-se-Lhe a uma das mãos.

-Sabes uma novidade, avòzinha?disse ele.

-Que sucedeu, meu filho, alguma coisa grave ? - perguntou a Sr.a Sommer.

O pequeno baixou a voz para dizer:

- A Emília fugiu.

- Fugiu ? - repetiu Doroteia, num espanto.

-Fugiu, sim, avòzinha, que eu bem o percebi - insistiu o neto. - Ela disse-me que ia ver a mãe, mas o que ela ia era a fugir. Quase corria para a saída!.

- Oh - exclamou a Sr.a Sommer. - Os meus palpites nunca me enganaram. Vejo mais a dormir do que eles todos acordados. Quem poderá agora duvidar de que foi ela quem roubou o alfinete ?. Com certeza que o levava consigo. Reparaste se ela levava alguma coisa ?.

-Levava aquela malinha de mão, bonita, que a mamã Lhe ofereceu quando ela fez dezassete anos - explicou o menino.

-Mais do que suficiente para ocultar uma centena de alfinetes, quanto mais um só!

- comentou Doroteia, - E o tal polícia que aí está já sabe da evasão?       

- Não sei, avó, mas é provável - disse Carlinhos. - Eu avisei Bob, que vinha à procura dela, depois de eu já a ter visto fugir.

-E que disse Bob? - perguntou aSr. a Sommer.

-Bob fez-se muito branco, parece que não se sentia bem...

- Hum. . Talvez sejam valores entendidos... Talvez o ladrão se sinta roubado...

-resmungou a avó. - E que fez ele depois ?

-Foi para a biblioteca e não sei mais nada.  

- Bonito... - murmurou Doroteia. - Deixaram voar o pássaro com a presa no bico... vai ser bonito para o apanhar...

Depois de proferir estas palavras, dirigiu-se a passo rápido para a biblioteca, a ajeitar com a        mão delicada em que cintilavam jóias, os seus lindos cabelos ondeados e platinados.

Foi aí então que ela, depois de lhe apresentarem Jackson, defendeu com ardor a hipótese de ser Emília a culpada do furto do alfinete.

O Carlinhos assistiu em seguida à partida precipitada de seu pai e do " detective " no automóvel do primeiro, e ficou muito pesaroso de não os poder acompanhar na perseguição a Emilia, que, em sua imaginação, havia de ser muito divertida. Observou a maneira como Bob ficara imobilizado, à porta da vivenda mesmo um momento depois de se ter extinguido ao longe o ruído do motor.

- O polícia vai prender a Emília ? - perguntou ele.

O criado meneou gravemente a cabeça.

-Deve tratar-se de um mal-entendido, menino - disse o criado, num tom muito triste. Emília é uma excelente rapariga. Eu punha as mãos no fogo por ela. As aparências, só as aparências se estão reunindo contra uma pessoa por cuja inocência eu era capaz de jurar.

Como as senhoras tinham ficado na biblioteca, Bob voltou para lá. Carlos seguiu-o, sem que ele parecesse dar pela sua presença, e introduziu-se sorrateiramente no aposento onde mãe e filha discutiam acaloradamente.

- Já o disse e repito-o - disse a Sr.a Garden-, não compreendo a má vontade que a mãe está demonstrando contra a pobre rapariga. O facto dela ter recomendado à pequena que não me dissesse do alfinete, parece demonstrado que não foi por mal.

Parece - insinuou Doroteia, com um meio sorriso cheio de subentendidos.

- Eu tinha remorsos de fazer acusações sem me basear em certezas.

-E para que fugiu ela?

- Tudo aquilo é nervos - afirmou Helena.

-Olhe, mamã, a minha vontade também era fugir.

-Mas não foges porque tens a consciencia tranquila.

- A rapariga é muito nova, não compreende quanto a compromete o deixar-se guiar apenas pelos seus nervos-alegou a Sr.a Garden.

E, no entanto, eu, que tenho o dobro da idade dela, sinto-me tentada a fugir perante toda esta confusão.

-Oh, filha, até fica mal comparares-te com a criada, que tem uma educação e uma mentalidade muito inferiores às tuas - disse Doroteia quase indignada.

-A mamã, sem o querer, justificou, agora melhor do que eu a atitude da Emília- replicou Helena. - É precisamente porque a sua mentalidade e a sua educação são fracas, que ela foge.

Ainda não tem o raciocínio suficientemente desenvolvido, nem uma educação bem esclarecida, para compreender que, fugindo, só se compromete e atrai as desconfianças.

A Sr.a Sommer, reparando na presença de Carlitos, desviou um pouco o rumo da conversa, perguntando-lhe:

- Não notaste nada de estranho na Emília?

- A mamã não devia meter o seu neto neste assunto - censurou Helena.

Mas o Carlitos apressara-se a responder:

- Sabes, avozinha, ela levava cara de quem tinha chorado e até parece que lhe custava a falar quando me disse que ia ver a mãe.

- Pois! Todos os sintomas duma pessoa comprometida!.. - resmungou a senhora idosa.

- Todos os sintomas de uma pessoa aflita ou atemorizada por verificar que duvidam da sua inocência - emendou Helena.

A Sr. a Garden ia a replicar, mas o ruído dum motor lá fora cortou-lhe a palavra.

- É o carro do papá - exclamou Carlos correndo para fora do aposento.

Provàvelmente, não conseguiram apanhá-la - calculou Doroteia, levantando-se e saindo ao corredor.

Não tardou que se ouvisse ruído de passos no átrio e em seguida entraram no corredor, uns após outros, o Dr. Artur Garden, Emília o inspector Jackson e Carlitos, que fechava o cortejo silencioso.

A Sr. a Sommer voltou para o seu lugar e esperou que todos entrassem na biblioteca. Emília, lavada em lágrimas, não tirava os olhos do chão, num ar envergonhado que fazia dó ver-se.

 

A aliada do inspector Jackson

- Imaginem - disse o médico, dirigindo-se às duas senhoras e quebrando o opressivo silêncio que parecia pesar sobre as circunstantes-que encontrámos a Emília na estrada. - Fez uma pausa e acrescentou, olhando com brandura para a criada, que não se atrevia a fitá-lo de frente - Coitada, estava cheia de saudades da mãe e, como não queria perturbar-nos quando estávamos aqui reunidos com o Sr. Jackson, resolveu ir andando e logo, no regresso, justificar a sua ausência.

- Mas ela não devia retirar-se sem nos pedir licença - observou a Sr.a Sommer, em tom ríspido.

-A Emília não fez isto com má intenção, não é verdade, pequena?- disse o doutor, a facilitar-lhe a desculpa. - Ela nem sequer sabia que o inspector Jackson lhe queria falar. Se o soubesse, não sairia, não é assim, Emília?

- Sim, senhor - respondeu a rapariga, em voz abafada.

-Parece que também está assustada com a presença do imspector em nossa casa - prosseguiu o cirurgião. - Ora, é preciso que ela se convença de que o Sr. Jackson, apesar da sua enorme corpulência, não quer mal a ninguém, sobretudo a uma boa pequena como ela...

A Sr. Sommer moveu a cabeça com impaciência, como se achasse que se estava perdendo o tempo com delicadezas; Helena envolveu a criada num olhar de piedade e o inspector Jackson tomou a palavra e disse:

-Eu só preciso de que esta menina me dê umas informações, para me orientar nos meus trabalhos.

Falara com ma doçura que parecia impossível num corpanzil daqueles. E como Emília continuasse a dar mostras de grande nervosismo, retorcendo nas mãos a sua malinha e fitando obstinadamente o tapete, continuou a falar-lhe ainda mais brandamente:

-Escute, minha menina, diga-me lá, que idade tem ?

- Fiz dezassete a quinze de Março - respondeu ela, em voz apagada.

- Muito bem- disse o policia em tom jovial. - Está com uma idade bonita, quase uma senhora. Portanto, não deve ter medo, pelo facto de eu ser assim muito corpulento. Ora, diga-me lá: tem medo de mim?

- Não, senhor. - murmurou ela, cheia de terror.

- Gosto muito de a ouvir falar assimdeclarou o inspector Jackson, relanceando um olhar pelas outras pessoas, que começavam a sorrir em melhor disposição.

-Já sei que ontem foi dia de festa cá em casa e que a Emilinha esteve muito alegre. Provàvelmente a sua ama deu-Lhe uma pinga de vinho do Porto, não?

-Deu, sim, senhor.

-Nem outra coisa havia a esperar duma patroa tão generosa como a sua - observou Jackson. - Houve mais que fazer, ontem, mas a Emilinha não se importou não é verdade?

- Eu gosto de fazer o serviço - declarou a rapariga.

- Já sei. Estou informado de que é muito diligente e serviçal - disse o " detective ". E também sei que teve de deitar-se ontem mais tarde, para deixar o seu serviço todo feito. Não foi assim?

- Exactamente.

-Que horas eram pouco mais ou menos, quando se deitou? recorda-se?

-Eram duas, e cinco no relógio despertador que tenho à minha cabeceira-declarou Emília, cuja voz acusava um ligeiro tremor.

-Bastante tarde, realmente, para quem tinha de levantar-se muito cedo - comentou jackson.

- Eu, quando me deito tarde e com a preocupação de que preciso de levantar-me cedo, ainda acordo mais cedo que de costume- disse Emília, com uma pontinha de orgulho.

-Foi o que lhe sucedeu hoje, provàvelmente.

-Foi, sim, senhor. Levantei-me às seis e meia.

- Para que horas marcara o despertador ?

-Para as sete horas.

- Bravo -exclamou o "detective". -Então, foi a primeira pessoa a levantar-se na casa.

- Por acaso, fui a segunda - esclareceu a rapariga.

Verificou-se uma leve surpresa, logo reprimida, em todos os rostos. Jackson prosseguiu, imperturbável, o seu interrogatório:

- Então, quem foi que madrugou primeiro do que a menina, pode dizer- mo?

- Bob, naturalmente - lembrou Doroteia.

- Não, senhor - refutou Emília. - Quem já

estava a pé era o Sr. Jaime Sommer. Vi-o

vir do parque, quando cheguei ao átrio. Deu-me os bons-dias. (não desfazendo, o Sr. Sommer é muito delicado) e disse- me que o jardineiro lhe afiançara que ia estar um dia glorioso. Depois, perguntou se não havia chá para tomar. Como a cozinheira ainda não se levantara, fui pôr a chaleira ao lume; depois é que apareceu Gertrudes que lhe fez o chá.

- Oiça, Emília, e à noite, quando subiu para deitar-se e passou pelo quarto da menina Isabel e a beijou, notou se ela ainda tinha o alfinete?

A rapariga encarou, pela primeira vez, o polícia, abrindo muito os olhos, num espanto.

- Mas eu não fui ao quarto da menina antes de me deitar - exclamou ela.

- Ah, não ? - disse Jackson com naturalidade. - Julguei que tinha esse hábito, como é muito amiga dela.

- Ai, amiga sou - replicou a rapariga. Quero-lhe mesmo cá de dentro do coração. Às vezes, quando subo para me deitar, passo pelo quarto dela, para ver se tem a roupa bem aconchegadinha e dou-lhe sempre um beijo, muito de mansinho, para não a acordar.

- Mas ontem não foi lá?

-Não, senhor... Como a senhora e o senhor tinham lá estado antes de mim, calculei que a menina estava bem e fui logo para o meu quarto.

- Está bem, compreende-se - disse o inspector. - De maneira que só lá foi hoje de manhã cedo.

- Cedo, não - atalhou a criada. - Quem lá foi de manhã cedo, enquanto esperava pelo chá, foi o Sr. Jaime.

- Quem ? - perguntou o médico.

- O Sr. Jaime - repetiu a serviçal.

- É impossível que esta rapariga não esteja a mentir - observou a Sr.a Sommer, batendo o o pé com impaciência.

- Oh, mamã, porque havia ela de mentir ?exclamou a Sr.a Garden. - Não acha natural que sendo o Jaime tão amigo da sobrinha e tendo estado tanto tempo longe dela, a fosse ver e beijar durante o sono?

- Bem, bem, eu cá me entendo - replicou Doroteia, com um movimento de amuo.

- Então, só viu a menina quando ela já não tinha o alfinete ? - inquiriu o polícia, um pouco mais secamente.

- Já o disse umas poucas de vezes - afirmou Emília, com mais nervosismo. - Já o Sr. Doutor e o Sr. Sommer tinham saído e as senhoras estavam ainda a dormir, quando ouvi a menina chamar por mim.

- Que horas eram, pouco mais ou menos ?

- Não sei bem, talvez umas nove horas - respondeu a rapariga. - Corri logo para lá, e encontrei a menina Isabelinha a choramingar, porque Lhe faltava o alfinete. Ora, eu sabia que a menina tivera aquela birrinha de querer ficar com o alfinete. E que é que eu pensei? Que a minha senhora, à noite, ao vê-la a dormir, lho tivesse tirado, com medo de que ela o perdesse ou se picasse.

- Sim, era plausível esse raciocínio- aquiesceu o inspector Jackson. - Mas porque é que recomendou à menina que não falasse mais à sua patroa no alfinete?

- São destas coisas. - replicou Emília agora mais desembaraçada e com certo calor. Parece-me que qualquer outra se lembraria de dizer o mesmo que eu disse. A menina Isabelinha continuava com o seu capricho de querer usar o alfinete. Ora, eu tinha pensado que, se a minha senhora lho tirara, era porque não queria que a brincadeira continuasse. Para evitar mais dissabores à minha senhora e mais lágrimas a menina, convencia-a, muito a boa mente, a não falar mais no alfinete à mamã, dizendo-lhe que a minha senhora, vendo que ela era boazinha, lho emprestaria para outra vez.

-Muito bem-aprovou Jackson. - Também é plausível. Fica, portanto, assente o seguinte: a Emília não foi a primeira a levantar-se, visto que já encontrou o Sr. Sommer a pé; mas foi a última a deitar-se...

- Perdão, senhor - atalhou a rapariga, que tomara um pouco, de cor. - O Sr. Jaime ainda ficou aqui, na biblioteca, quando eu subi para me deitar.

       - Já cá se sabia - disse Doroteia.

- Mas o Sr. Polícia não o sabia, não é verdade? - redarguiu a criada.

- Não o sabia mas isso é um pormenor sem importância - declarou o inspector.

Neste momento, Carlitos, que estivera muito quieto a um canto, por forma que todos se esqueceram da sua presença, deu uma corridinha sorrateira para a porta, abriu-a, saiu e tornou a fechá-la.

Este episódio, que suspendeu por momentos o diálogo em curso, fez sorrir os circunstantes.

- Nem me lembrei de que o Carlos estava aqui - disse o Dr. Artur Garden. - Talvez não seja conveniente que uma criança da sua idade assista a estas conversas.

- Tem a curiosidade própria das crianças - desculpou a Sr.a Sommer.

- O Carlitos é muito precoce - disse Helena. - Também receio que ouvir estas coisas não lhe faça grande bem.  

- Ora, que mal lhe pode fazer ? - tornou a Sra Sommer. -Ele tem uma grande curiosidade pelas coisas policiais. Imaginem que, às vezes, tira-me da mesa de cabeceira, onde sempre tenho meia dúzia, um livro policial para ler às escondidas depois, muito sorrateiramente torna a pô-lo no seu lugar.

O Dr. Garden fez um trejeito que significava descontentamento.

-Já tenho dito por mais duma vez pronunciou ele, um pouco carrancudo - que não gosto de que o pequeno leia livros policiais. É muito criança para isso.

- Ora, ora, que mal Lhe pode fazer isso ?redarguiu Doroteia.

-Aprende muita coisa, que não é conveniente para a sua idade-disse Helena.

- Aprende que é preciso perseguir os criminosos - afirmou a Sr.a Sommer.

-Também aprende como os criminosos

actuam - interveio o médico, com severidade.     

-E eu tenho notado - reforçou a Sr.a Garden - que o Carlinho tem andado muito excitado desde que soube do desaparecimento do alfinete.     

Até chegou a afirmar que a Isabelinha, por ter muito interesse na jóia, a ocultara e dera origem a toda esta confusão.

- E quem acredita uma coisa dessas ?exclamou a Sr. a Sommer.

-Ninguém, evidentemente, nem o próprio Carlos - disse o Dr. Garden. - No entanto, é preciso corrigi-lo, ensiná- lo a não fazer afirmações à toa, sobretudo em casos de tanto melindre como este.

O inspector Jackson interrompeu, fazendo mais uma pergunta à criada:

-A Emília acredita que a menina Isabelinha fosse capaz de esconder o alfinete?

- Credo! Coitadinha da menina - exclamou a rapariga. - Ela que é a inocência em pessoa!

-Seria um contra-senso pensar uma coisa dessas - disse o investigador, sorrindo. - No entanto, nós temos estado a cometer um erro grave. fazemos perguntas uns aos outros e ainda nada perguntamos à menina Isabelinha.

- Não me diga que desconfia de minha neta

-exclamou a Sr.a Sommer, quase feroz.

- Oh minha senhora! - redarguiu o polícia. Quem iria desconfiar duma criança de oito anos.

- Incompletos. ainda os não fez - emendou Doroteia.

-Não desconfio da menina Isabelinha como não desconfio da Emília, nem de pessoa alguma afinal-- declarou Jackson: Apenas procuro um caminho que me leve ao alfinete perdido. alfinete que começo a desconfiar que não foi roubado.

- Quem havia de o roubar ? - exclamou

Emília, que logo se envergonhou do seu atrevimento em formular aquela pergunta.

- Tem muita razão, Emília - apoiou o inspector. - Ainda não vi tão- pouco quem poderia ter interesse em furtar essa jóia. São tudo pessoas de absoluta confiança. O pessoal é antigo e como família e está, portanto, acima de toda a suspeita. As pessoas na própria família, não iam furtar. Tem razão, Emília.

A criada esboçou, pela primeira vez, desde havia muitas horas, o seu primeiro sorriso de satisfação. Aquele gigante, que tanto a atemorizara, começava a tornar-se-lhe familiar, e experimentava a grata sensação de ter encontrado nele um defensor e não um acusador, como supusera a princípio.

A Sr. a Sommer é que começava a não gostar muito do caminho que as coisas tomavam. Por aquele andar, toda a gente era insuspeita, e desistia-se de perseguir o ladrão do alfinete.

- Não sei; afinal - disse ela um tanto desabridamente-, o que o senhor veio cá fazer. Se o alfinete não foi roubado.

- Perdão, minha senhora - atalhou o "detective"-, eu não afirmei que não tivesse havido roubo. admiti apenas esta hipótese. Precisamos de procurar as provas. E, como eu ia dizendo, acho que seria de toda a utilidade ouvir a

pequenina Isabelinha, a pessoa afinal que devíamos ouvir primeiro. Talvez ela, na sua inocência, nos possa fornecer o elemento decisivo que nos conduza à verdade.

- Ai, meu Deus - gemeu a Sr.a Garden -, a menina vai ter um medo horrível.

-Eu sei tratar com crianças. Descanse, minha senhora- respondeu o polícia. E volvendo-se para a criada. - Emília, vá buscar a menina Isabelinha. Procure sossegá-la, se vir que ela está com medo.

- Ah! Comigo, vem com certeza!-exclamou Emília. -A menina tem muita confiança em mim.

A criada saiu ràpidamente. Depois dela ter fechado a porta, o Dr. Garden confessou:

-Estou admirado, inspector Jackson, da maneira como soube dominar Emília. De uma inimiga, fez uma aliada.

Jackson limitou-se a mostrar o seu dente.

 

A menina e o gigante

Emília foi encontrar Isabelinha, muito encolhida, a um canto da casa dos brinquedos. No primeiro relance, quando espreitou da porta da entrada, não a viu; mas ao retirar- se, deu inadvertidamente com os olhos no grande carrinho de bebé em que a menina costumava passear as bonecas no jardim e avistou o seu vulto meio dissimulado por detrás dele. Avançou logo, exclamando:

- Oh, menina Isabel! Está ai tão quietinha ? Parece que está escondida...

A pequena viu-a aproximar-se e agarrou-se com mais força a uma enorme boneca de panoque tinha faces coradas, muito aveludadas, e olhos pretos de longas, muito longas pestanas como as suas. Só quando Emília se deteve e se baixou para ficar ao seu nivel, é que a menina pôde articular:

-O Carlitos disse que o policia gigante vinha para me prender.

Emília, em que os terrores próprios se tinham dissipado, sorria agora dos pavores da criança.

-O menino Carlinhos diz-Lhe essas coisas só para lhe meter medo. Bem sabe que ele gosta muito de brincar, pregando sustos às    pessoas - explicou a criada.

- Eu bem o vi - disse a pequena em voz baixa. - É realmente um gigante! o Carlinhos não mentiu.

- É realmente muito forte - replicou Emília -, mas não faz mal a ninguém. A menina bem sabe que as pessoas não são todas iguais. Cada um é conforme Deus o fez. Umas pessoas crescem muito, outras crescem menos, umas engordam, outras são magrinhas; há louras e morenas, umas azougadas, como o menino Caros, outras sossegadas como a menina Isabelinha.      

- Mas os gigantes têm muita força e fazem mal às crianças - alegou Isabel, dando voltas à boneca.

- Não diga isso, minha menina - replicou a criada. - Olhe, este polícia chama-se Jacksone e não faz mal a ninguém; pelo contrário, é bem amigo do papá, da mamã, da avòzinha. Olhe, se visse como ele me tratou bem. Mostrou-se mais meu amigo do que um irmão que eu tenho, que só gosta de me fazer judiarias.

A pequena olhou-a, num ar de incredulidade, e redarguiu, baixinho, como se receasse que mais alguém a ouvisse:

- Mas este gigante é polícia e leva as pessoas para a prisão; o Carlinhos diz que ele mete os meninos numa casa muito escura.

-Já lhe disse que o menino Carlinhos não pretende senão meter-lhe medo. Os polícias só levam presas as pessoas que fazem maldades, mas defendem as pessoas boazinhas, como a menina, dos ladrões e outros criminosos. Portanto, não tenha medo. Olhe, quer vir vê-lo?

- Eu, não - bradou Isabelinha, tomada de súbito terror.

Emília soltou uma gargalhada forçada para lhe incutir confiança.

-A menina ainda há-de rir-se do medo com que está agora - asseverou a criada, por fim. Confesso que, a princípio, eu também estava com um certo medo dele. Mas depois, quando o ouvi falar, juro-lhe que o achei o homem mais simpático do mundo. Tem uma maneira tão agradável de tratar as pessoas!

Isabelinha fitava em Emília um olhar desconfiado. Receava que ela estivesse a dizer-lhe aquelas coisas para a tranquilizar.

- Estás a falar verdade, Emília? - perguntou ela, sondando-a com o olhar.

- Tão verdade como eu achar a Isabelinha a menina mais bonita que conheço.

- E para que me queres levar ao pé do gigante?-perguntou a garota, sempre em guarda.

- Para o ver e lhe falar. Verá que ele é bem como eu lhe digo: não faz mal a uma mosca.   

- E o Carlinhos também lá está ao pé dele ?

-O menino Carlinhos tem lá estado este        tempo todo.   

- E o gigante não o leva preso ?

-Não lhe faz mal algum-respondeu Emília. -Porque havia de levar o menino Carlinhos preso ?

- Ele faz tantas maldades. . - respondeu a criança.

- Mas o gigante não faz caso das maldades dos meninos! até gosta muito deles, mesmo traquinas como o seu mano.

- Então, não gosta de mim.

-Ainda vai gostar mais da menina, porque sabe que é muito bem comportada e mutto sossegadinha.

A pequena ficou um momento pensativa; depois voltou a inquirir:

-Ele não vai ralhar comigo, por eu ter perdido o alfinete?

- Não - exclamou a criada. - O que ele quer é ajudar-nos a achar o alfinete e até já pediu à mamã que, quando se encontrasse, deixasse a menina trazê-lo ao peito durante um dia todo.       

- Sim? - perguntou Isabelinha, meio fascinada, meio incrédúla. -É como lhe digo - afirmou Emília: Bem sabe que eu nunca lhe minto - acrescentou ela, pedindo mentalmente perdão daquela sua mentira tão bem intencionada.

Isabél parecia hesitante. Ainda murmurou:

- Tenho medo.

Mas a criada estendeu-lhe a mão para a ajudar a sair do seu recanto. Pô-la de pé, beijou-a e abraçou-a carinhosamente, ao mesmo tempo que Lhe ciciava ao ouvido:

- Era tão bom, se a Isabelinha pudesse andar amanhã, com o alfinete da mamã ao peito!

- E a mamã deixa?

-Pois claro, que há-de deixar. Venha, venha daí comigo. Vamos ajudar o polícia a procurar o alfinete.

- Eu não sei como poderei ajudá-lo- disse a pequena, que estava agora de pé, mas não se decidia a encaminhar-se para a porta.

- Não sabe - disse Emília, exagerando o seu espanto. - Ora essa! Duma maneira muito fácil. É fazer como eu fiz, e a mamã, o papá, e a avòzinha.

- E como fizeram eles ?

-Responderam direitinhos a todas as perguntas que o polícia fez.

A pequena já se deixava levar brandamente para o corredor.

- E ele faz muitas perguntas ?

- Bastantes.

- E que é que ele pergunta ? - insistiu Isa bel, excitada pelo seu receio e pela sua curiosidade infantil.

- Várias coisas.

Já iam transitando ao longo do corredor, sem que a menina opusesse amenor resistência.

Entretanto, na biblioteca, já se estranhava a demora de Emília em dar o recado à menina.

- Não me admirava nada que ela tentasse fugir outra vez-declarou a Sr. Sommer, passando a mão pelas ondas do seu cabelo platinado, na apreensão de que não estivessem bem certas.

- Suponho que não - opôs o genro.

- Posso garantir-lhe que não - disse o inspector Jackson. - Emília transformou-se numa das minhas mais preciosas auxiliares.

A Sr. a Sommer teve uma risada escarninha que fez lembrar as do neto quando pretendia troçar da irmã.

-Não esteja ela a ensinar à menina o que há-de dizer ao Sr. Inspector. - insinuou ela em seguida.

- Não faço essa ideia da rapariga - pronunciou a Sr.a Garden, convicta.

- Não nos esqueçamos - acudiu sua mãe - de que ela ensinou a menina a não te falar do alfinete.

-Mas já está esclarecida a intenção com que o fez - interveio o médico, com um vago gesto de enfado.            

- Não - voltou Jackson a insistir -, a Emília há-de fazer todo o possível por me auxiliar.

-Isso quase equivale a dizer que a acha ilibada de toda a culpa - observou Doroteianum certo tom de ironia.

- Se a senhora quiser tomar as minhas palavras nesse sentido - replicou o inspector, imclinando-se numa leve reverência- eu não o posso impedir. Mas, a verdade é que não foi isso que eu disse.

-Vejo que se inclina cada vez mais para a hipótese de não ter havido roubo - disse a Sr.a Sonmer.

- Acho uma hipótese muito plausível - replicou Jackson.

- E a hipótese de roubo ?

- Também a acho plausível.

- Ah Nesse caso, para haver roubo, tem de haver ladrão - exclamou Doroteia. - E sobre quem recaem as suas suspeitas, visto parecer pôr Emília de parte?

- Ninguém - redarguiu o polícia. - Os factos é que devem elucidar-me, se for possível. Em investigação não pode haver ideias preconcebidas. Não podemos partir dum hipotético ladrão para um hipotético roubo, mas sim dos indícios deroubo, se os houver, para um hipo tético ladrão.

- Parece-me que a mamã está pondo questões fora de propósito - observou Helena, num leve ar de censura.

A Sr. a Sommer ia replicar, mas não teve tempo, porque nesse instante a porta abriu-se e Emília surgiu, num ar triunfante, com a Isabelinha pela mão.

- Já viram a menina mais bonita do Mundo ? - exclamou ela, sem poder ocultar o seu contentamento por ter trazido a pequena. -Ei-la! É a menina Isabelinha!

A criança, levando a boneca de pano a rastos, só segura por uma mão, correu para os joelhos da mãe, que a beijou com ternura.

- Estavas a brincar, minha filha ? - perguntou a Sr. a Garden, meigamente.

- Estava muito sossegada, na casa dos brinquedos, rodeada de todas as suas meninas - imformou Emília. E acrescentou, atrevendo-se a lançar um olhar de entendimento ao inspector Jackson - Sabe, Sr. Polícia, que a menina Isabelinha quer ajudá-lo a achar o alfinete?

- Eu já contava com a boa vontade duma menina tão bonita-declarou o "detective", compreendendo a intenção da rapariga.

- Minha senhora - acrescentou ela, volvendo-se para sua ama-, caso o alfinete se encontre, não falte à promessa feita à menina Isabelinha.

- Qual promessa ? - indagou He lena, erguendo a vista para a criada e notando que ela piscava agaiatadamente um olho.

-A de que deixaria a menina Isabelinha andar um dia inteiro com o alfinete ao peito - respondeu Emília, com forçada circunspecção.

- Ah! Evidentemente - concordou a Sr.a Garden, percebendo a manobra inteligente da criada.     

- Para lho roubarem outra vez - resmungou Doroteia, de má vontade. E acrescentoucom ironia - Ou se perder de novo...

- Não há-de repetir-se essa infelicidade - assegurou o Dr. Garden.

- Esta menina tem um nome muito bonito - disse o polícia, dirigindo-se à criança, que não tirava os olhos dele. - Sabe que também tenho uma irmã chamada Isabelinha.

- E ainda é pequenina ? - perguntou a pequena em voz débil.

O " detective " sorriu, mostrando o dente de ouro.

- Sim - respondeu ele-, é mais pequena do que eu. tem só um metro e oitenta de altura.

Ninguém, em torno, pôde reprimir uma risada que intimidou a pequena.

- Venha cá ao pé de mim- pediu o polícia, muito brandamente. - Já sei que vai ser muito minha amiguinha, para eu procurar o alfinete que a menina há-de trazer ao peito, o dia todo, sim? Venha cá.

A menina avançou timidamente um passo e deteve-se.

-Então, Isabelinha, tens de ir falar àquele senhor. Tu és uma menina bem educada - disse Helena, para lhe criar ânimo.

Isabel apanhou a boneca, que lhe caíra no tapete, apertou-a contra o peito, como que para se proteger com ela, e avançou, decidida, para o " detective ". Este estendeu- lhe as enormes mãos e recebeu-a com ternura. Levantou-a, como se ela fosse uma pena, e sentou-a nos seus joelhos.

A menina observava-o, num misto de espanto e de inquietação. Aquelas mãos colossais, aquele vasto tronco, o pescoço de touro que parecia querer rebentar o colarinho, os olhos metálicos que tinham agora reflexos alegresporque lhe sorriam, a boca rasgada a mostrar o grande dente de ouro cintilante, tudo constituía surpresa para a Isabelinha.

- O senhor mete na prisão as pessoas más ?

-perguntou ela em voz sumida. O polícia respondeu, decidido:

-Sim, meto-as todas numa prisão muito escura. Mas as boas como a Isabelinha, não!

A pequena pareceu ter ficado mais tranquilizada.

- O Carlinhos disse-me que o senhor me levava para essa prisão escura-proferiu ela, baixinho.

- Foi a brincar - respondeu Jackson. – Ele bem sabe que eu não faço mal aos meninos e meninas bem comportados.

- Vê, Isabelinha? - acudiu Emília.

- Eu não lhe dizia que ele não fazia mal aos meninos ?

- Não te metas onde não és chamada   - pronunciou a Sr.a Sommer em tom ríspido.   

O inspector pareceu não a ter ouvido e disse:

- A Emília tem muita razão. Eu até gosto muito das meninas, como a Isabelinha, que estão prontas a responder a todas as minhas perguntas.

-São perguntas difíceis, como as de Lifs Cross?

Helena elucidou, a sorrir:      

- lifs Cross é a professora que vem dar-lhe lições, três vezes por semana.

-Não, não são perguntas difíceis como as de lifs Cross - assegurou Jackson: Pelo contrário, são até muito fáceis. Quer ver? Olhe: lembra-se de alguém ter ido ao seu quarto, ontem à noite, depois da menina se deitar?

A menina beliscou o lábio inferior, como se puxasse pela memória e respondeu, por fim:

-Quem esteve ontem à noite no meu quarto foi a Emília.

- Mas quando ?

- Quando me fui deitar. Foi ela quem me ajudou a despir - respondeu a criança.

- Quem lhe pregou o alfinete no pijama?

- Foi ela.

Os circunstantes trocaram um olhar.

- Ah! Foi a Emília - insinuou Doroteia.

-Foi, sim, senhora-teimou Isabelinha, julgando que sua avó duvidava. - Não é verdade que foste tu, Emília?

- Fui, sim, minha menina - confirmou a criada.

- Foi, mas algumas horas antes de nós irmos ao quarto e de vermos ainda a pequena com o alfinete - explicou o Dr. Garden para evitar mais confusões.

- Já o tinha depreendido - disse o inspector, baixando levemente a cabeça, a agradecer.

A Sr.a Sommer ficou muito séria, como se a contrariasse ver que a sua insinuação fora descabida.

O "detective" volveu-se de novo para a menina que tinha nos joelhos e perguntou:

-E de manhã, quem foi a primeira pessoa que entrou no seu quarto?

- Foi a Emília - respondeu prontamente a criança.

- Porque é que ela entrou no seu quarto ?

- Eu chamei-a - disse singelamente a menina.

- E porque é que a chamou ? - insistiu o polícia.

- Eu não tinha o alfinete... Sentia muita pena. Julguei que ela mo tivesse tirado.

- E a Emília entrou - ajuntou Jackson e disse-lhe que fora a mamã quem lhe tirara o alfinete, enquanto a menina dormia, não é verdade?

- Foi, sim, senhor - confirmou a pequena.

       Doroteia acrescentou:

-E recomendou-te que não falasses no alfinete à mamã, não é verdade?

- É, sim, avòzinha.

- Ainda querem mais claro ?. . – exclamou a Sr.a Sommer, triunfante. -Não sei para que se está a perder tanto tempo. Porque não se revista essa rapariga? Deram-lhe tempo de sair e de ocultar o alfinete...

- Calúnia - bradou Emília. - A senhora está enganada... Oh, meu Deus!

- Calem-se - bradou o médico.

- A mamã está impossível - lamentou Helena, contrariadíssima. -Não faz senão perturbar os trabalhos. . Nem sei o que o Sr. Jackson pensará de si...

- Penso que a Sr. a Sommer se precipita um pouco - disse o "detective" sem perder a calma. -Agora, só peço que me deixem conversar sossegadamente com esta menina. Nós já somos bons amigos, não é verdade, Isabelinha?

-Pois somos. O senhor não me leva presa.

- Pois não. Ninguém pensa nisso.

Emília chorava sentidamente, fazendograndes esforços para abafar os soluços. Notando-o, Jackson chamou-a, brandamente:

- Emília, venha para o pé de mim. Ninguém lhe quer mal. Venha cá.

- O melhor é pegar-lhe ao colo. - resmungou a Sr. a Sommer, entre dentes.

Helena lançou-lhe um olhar de censura. O Dr. Garden soltou um grande suspiro, a denunciar a sua falta de paciência.

- Ora bem. - pronunciou o inspector.

-Vamos lá a ver se a Isabelinha me responde a mais uma pergunta. Esta manhã, antes da Emília, quem é que encontrou no seu quarto?

- Nimguém - respondeu a menina, prontamente.

- Tem a certeza ? Veja lá se se recorda - insistiu o polícia.

A pequena lançou um olhar ao tapete e quedou-se um instante pensativa ante a expectativa geral. Teve de súbito uma exclamação.

- Ah Sim, sim, lembro-me!

- De quê ? - perguntou Jackson, de mansinho.

- Da outra pessoa. Mas eu estava quase a dormir. Tornei a adormecer.

Em torno suspenderam-se as respirações.

Poder-se-ia ouvir o zumbido duma mosca.

Quem era a outra pessoa?-insistiu o polícia, cautelosamente.

- Era o tio Jaime - declarou Isabelinhacomo se achasse o caso muito natural.

Doroteia fez-se muito pálida. Helena e o marido trocaram um olhar de surpresa. Jackson prosseguiu, com a mesma calma.

- Que foi o tio Jaime fazer ao seu quarto.

- Deu-me um beijinho.

- E que mais ?

- Mais nada, não me lembro. Tornei a dormir - respondeu a menina, com toda a sua candura.

- Essa menina mente - bradou a Sr. Sommer. - Mente com quantos dentes tem na boca.

- Mãe, que disparate - gritou Helena, querendo dominá-la, mas sem resultado.

-Creio que o Sr. Inspector não será tão ingénuo, que não tenha percebido toda a manobra. Estamos a perceber a razão da longa demora de Emília, lá dentro, junto da criança.

Esteve a ensinar-lhe o recado, a ensinar a menina a mentir. Arranjou este processo de atirar todas as suspeições para cima de meu filho. Ah, malvada mulherr!

Tornou a cair na cadeira, numa crise de choro. Ninguém Lhe censurou a cena. Todos perceberam que, nesse momento, a Sr.a Sommer defendia desesperadamente o seu filho das graves suspeitas que a declaração ingénua de Isabelinha acumulava sobre a sua honra. O que provocava antipatia era sòmente o querer defendê-lo, acusando Emília, que provàvelmente estaria inocente.

 

A declaração de Jaime Sommer

Em despeito do seu corpanzil, o inspector Jackson era um homem muito discreto e delicado. Perante a tempestade de nervos que a ingénua declaração de Isabel provocara na Sr.a Sommer, achou conveniente fazer uma retirada hábil e deixar a família à vontade.

Descendo a menina dos seus joelhos para o chão, disse:

- Se me dão licença, vou dar uma volta pelo parque. Preciso de meditar um pouco sobre o assunto e gosto de fazê-lo ao ar livre, sobretudo num ambiente tão formoso como o que rodeia esta casa.

O Dr. Garden acolheu com simpatia a atitude delicada do polícia e, levantando-se por seu turno, indagou:

- Quer que o acompanhe ?

- Nunca consentiria que se incomodasse por minha causa-replicou vivamente o "detective".

- Sei perfeitamente o caminho.

O médico compreendeu que ele queria estar só e não insistiu. Limitou-se a dizer:

-Proceda como se estivesse em sua casa. O inspector Jackson esboçou uma leve inclinação de cabeça e disse:

-Até já. Não devo demorar-me muito. Quando regressar, far-me-ei anunciar por Bob.

Proferidas estas palavras, retirou-se, fechando brandamente a porta e deixando os circunstantes um tanto perplexos.

A Sr. a Sommer, que suspendera por instantes o seu pranto para seguir os seus movimentos, comentou, decorrido um longo silêncio:

- É este o famoso inspector Jackson de quem os jornais tanto falam e de quem a Scotland Yard tanto se ufana?

-É este, realmente-respondeu o Dr. Garden, que reprimia o mau humor que a atitude da sogra lhe vinha provocando.

-Não vejo por onde se justifique a sua fama-disse Doroteia, entre chorosa e indignada. - Que fez ele até agora ? Divagar, deixar-se levar ao sabor das circunstâncias e acreditar em tudo o que directa ou indirectamente essa rapariga lhe impinge.

E apontava Emília, que tremia na sua frente e a olhava com uma expressão de espanto e de desgosto.

- Não sei o que a minha senhora tem contra mim. - lamentou a criada. - Ainda não fez senão embirrar comigo.

- E com razão-redarguiú violentamente a Sr.a Sommer. -Julgas que não percebi perfeitamente que estiveste lá dentro a ensinar à menina o que havia de responder ao polícia ?

- Eu ? - exclamou Emília. - Se me demorei mais foi para persuadir a menina Isabelinha de que o inspector não lhe faria mal, como não lhe fez, não é verdáde, minha menina?

A pequena, que se refugiara, com a boneca, junto da mãe, consternada, e abria para aquela cena os seus belos olhos amedrontados, murmurou apenas:

- Tu disseste-me que a mamã depois me deixava andar um dia inteiro com o alfinete.

- Oiçam! Oiçam! - bradou Doroteia, dirigindo-se à filha e ao genro. - Fez à pequena promessas para obter dela declarações falsas ao polícia! Soube insinuar-lhe no espírito que o Jaime estivera no quarto da garota antes dela própria, Emília. Que pretendia com este pormenor? Comprometer meu filho, insinuar no espírito do investigador que fora Jaime e não ela quem tirara o alfinete do peito da criança! E o mais triste, o mais revoltante, é que esse inspector palerma parece acreditar em tudo isto.

- Oh, mamã - interveio, finalmente, Helena, que até ali estivera a conter-se, por se encontrar na presença da criada. -Não compreendo que obcecação é a sua, que a leva a dizer tanta injustiça!

-Chamas-me injusta por ver mais longe do que todos os outros - replicou Doroteia, com vivacidade.

-Por ver mais errado do que todos os outros-acudiu o Dr. Garden, mais à vontade por sua esposa ter falado primeiro. -Eu não tenho querido fazer comentários às suas atitudes, para que não os julgue pouco respeitosos. Mas não há duvida alguma de que Helena tem absoluta razão. A mãe, na sua ânsia de acusar Emília, vai até à injustiça de lhe atribuir actos que ela não praticou e palavras que ela não proferiu. A rapariga não ensinou a Isabelinha recado nenhum, nem lhe disse o que ela havia de responder ao inspector, pela simples razão de não saber o que ele iria perguntar.

- Não sabia, mas era-lhe fácil calcular pelo mterrogatório que ela já sofrera e do qual se saiu com uma abilidade e uma astúcia raras!

-opôs a Sr.a Sommer, acentuando muito as últimas palavras.

Helena bateu o pé com nervosismo e comentou:

-Assim, é impossível que uma discussão nos conduza a alguma coisa de útil. A mamã está discutindo de má fé.

- De má fé - repetiu Doroteia, levantando-se para melhor expandir a sua indignação. - Foi preciso chegar aos sessenta e dois anos de idade para que a minha própria filha me acusasse de má fé.

- É a conclusão a que são forçados a chegar todos, os que pretendem discutir consigo de boa fé - replicou a Sr.a Garden.

- Meu Deus - exclamou Doroteia. - Para o que eu estava destinada: ver-me acusada de má fé por minha filha!

- Mãe - interveio o Dr. Garden, ensaiando um tom conciliador-, acho que estamos a desencadear uma tempestade num copo de água. O assunto não merece tanta indignação.

- Não o merecerá para quem não tiver a noção do brio e da honra- redarguiu a Sr. a Sommer. - Mas eu não posso ver imsinuar que foi um filho meu quem roubou o alfinete.

- Ninguém formulou essa acusação - ponderou o médico.

-Insinuou-o esta rapariga, aconselhando a menina a dizer que foi o Jaime quem primeiro entrou no seu quarto - bradou Doroteia, erguendo para Emília um dedo acusador.

- Eu não disse uma coisa dessas - negou a criada, entre lágrimas e soluços. - Eu nem sabia que o Sr. Jaime lá tinha estado. Está aí a menina de testemunha que pode dizer se falo verdade ou mentira.

-A menina ainda não tem a noção destas coisas - afirmou a Sr.a Sommer, tornando a sentar-se pesadamente na cadeira.

- Eu não sei discutir com a senhora - choramingou a rapariga. - Só sei que estou inocente do que me acusam. E não posso viver nesta casa, onde desconfiam de mim. Quero ir para a minha mãe.

-Calma, Emília, calma-recomendou o doutor, com um sorriso contrafeito. -Deixa-te estar, que tudo se há-de esclarecer e a tua inocência á-de brilhar por forma a não oferecer dúvidas a ninguém.

- Bravo - exclamou Doroteia. - Promete-lhe a impunidade. É precisamente isso que ela quer.

A Sr.a Garden tentou desviar o rumo à conversa, dirigindo-se ao marido:

-Foi pena meu irmão não ter vindo contigo. Ficava logo esclarecido o episódio de ele ter ido de manhã cedo ao quarto de Isabelinha.

- Aliás - ajuntou o médico - a declaração da pequena revela bem com que intuitos ele lá foi: beijar a criança, uma coisa que ele muitas vezes fazia quando estava em nossa casa.

-Quando ele te telefonou, disseste-lhe o que se passava a respeito do alfinete ? – indagou Helena.

- Disse-lhe apenas muito por alto que parecia que tinha desaparecido ou se perdera - respondeu o médico. - Creio que ele não atribuiu grande importância ao caso.

- Mal pensa o meu pobre filho - lastimou a Sr.a Sommer em voz dramática - que há quem o acuse de ter furtado a jóia e há um polícia néscio que não repele logo, como impossível e caluniosa, semelhante acusação ?

O Dr. Garden não pôde deixar de sorrir, sem fazer comentários.

A Isabelinha agarrou-se à mãe e disse:

-A Emília não se vai embora, pois não, mamã? Eu não queria que ela se fosse embora.

- Se calhar, tenho de ir, minha rica menina - proferiu a rapariga entre lágrimas. -A sua avòzinha já não gosta de mim.

- Cinismo não falta a esta rapariga. pronunciou a Sr.a Sommer, entre dentes, lançando à criada um olhar cheio de rancor.

- Mamã, o que é cinismo ? - perguntou ingènuamente a criança.

Todos sorriram, em torno. Aquela pergunta era embaraçosa. Como fazer compreender aquela palavra a uma mentalidade infantil?

A Sr.a Garden respondeu:

- Em outra ocasião te explico, sim, minha filha ?

-Porque não explicas agora, é muito dificil ? - insistiu a menina.

- É um bocadinho difícil e leva muito tempo a explicar - disse Helena.

Mas a menina, quanto mais lhe adiavam a explicação, mais vontade tinha de saber.

-Devo perguntar amanhã àLlú,Cross quando ela vier dar-me a lição ? - indagou a pequena.

-Não, não vale a pena maçares Vliss Cross com essa pergunta - aconselhou a mãe.

- E tu, Emilia, sabes o que é cinismo ?interrogou a criança, volvendo-se para a criada.

- Ah! Essa sabe, com certeza- dardejou a Sr.a Sommer.

- Olhe, menina Isabelinha - disse a rapariga-, cinismo é a modos que uma pessoa dizer coisas desagradáveis na cara de outra e ficar-se ainda a rir, por cima.

A criança abriu muito os olhos, num esforço de compreensão e, decorrida uma pausa, lembrou:

- É o que o Carlinhos às vezes me faz!

- Credo, menina - exclamou Doroteia. - Estás a chamar cínico ao teu irmão sem o saberes.

- Acho melhor mudarmos de assunto - propôs Helena.

- Também eu - concordou a Sr.a Sommer.

-A conversa já não me está cheirando muito bem. - E ajuntou sem transição - Que andará o grande " detective " a farejar pelo parque ?

Alguma lebre ?.

Neste momento, soaram passos no corredora aproximar-se da porta.

- Aí vem ele, com certeza - disse o Dr. Garden.

A porta abriu-se e partiu uma exclamação simultânea de todas as bocas.

- Jaime!

- O tio Jaime - gritou alegremente a criança, correndo ao encontro do Sr. Sommerque logo lhe pegou ao colo para a beijar.

- Todos reunidos na biblioteca - pronunciou ele, depois de dar as boas-tardes: Trata-se com certeza de deliberações graves. - E sem esperar resposta, dirigindo-se ao cunhado:

- Peço perdão de não ter ido almoçar consigo; mas não pude descartar-me duns colegas, senão agora. Tive de contar-lhes como se triunfa e como se passa fome em Paris. - E notando a expressão transtornada de todos - Que aconteceu ? Acho-lhes não sei quê.

-É por causa do alfinete de brilhantes - explicou o Dr. Garden. .        

- Ah, sim, sempre se perdeu, realmente.

- Não há forma de se encontrar - respondeu a Sr.a Garden. - Já se revistou tudo.

- Até já mete polícia. - acrescentou a Sr. a Sommer. - Anda aí um " detective " a farejar no parque.

- Quê ? - estranhou o pintor. - À procura do alfinete no parque? Tu levaste o alfinete para o parque?

O médico contou a seu cunhado como a menina se deitara com o alfinete e como de manhã acordara sem ele. Helena narrou as pesquisas que se fizeram na cama, no quarto, por toda a parte, inùtilmente.

-Mas a Isabelinha ainda o tinha ao peito,

hoje de manhã quando eu lá fui dar-lhe um beijo - estranhou Jaime Sommer.

-Ah - exclamou a Sr.a Sommer. - Eis a prova. Vejam se ainda querem mais claro. . A menina tinha o alfmete quando Jaime a foi beijar. Quer dizer que foi tirado do peito depois dela readormecer. Quem foi a segunda pessoa que entrou no quarto? A Emília.

A acusação era tão esmagadora, que a criada se deixou abater numa cadeira, a chorar, como se lhe tivessem vibrado uma martelada na cabeça.

As outras pessoas entreolharam-se, perplexas.

Carlinhos "detective"

O inspector Jackson desceu a escadaria de mármore, muito elegante e nobre, que dava acesso à vivenda e, ao pisar o saibro da álea central que conduzia ao portão, voltou-se e ficou a admirar o edifício todo forrado de trepadeiras verdejantes, em que cintilam flores lilases e azuis. Pareceu gostar, pois fez com a cabeça um movimento afirmativo e começou a andar a passo pesado e vagaroso, circunvagando

o olhar e tornejando a casa, como se a sua intenção fosse admirá-la também pelas traseiras.

Efectivamente, aí tornou a parar e ficou a observar o alpendre todo coberto de verdúrasque dava acesso à porta da cozinha que estava entreaberta e pela qual ele enxergou vagamente, na sombra, o vulto da cozinheira.       Ia a retirar-se quando viu assomar Bob ao alpendre e perguntar:

- Deseja alguma indicação,    Sr. Inspector ?       

- Não, meu amigo, muito obrigado - respondeu o polícia, no seu tom calmo e lento. - Ando a passear um pouco, para refrescar as ideias.      

- Já se descobriu alguma coisa, Sr. Inspector ? - perguntou o criado, com certa ansiedade.    

- Ainda não, Bob, mas não se inquiete, que tudo se há-de esclarecer- replicou o "detective".

-O que é preciso é calma, muita calma. Até já!

-Até já, Sr. Inspector.

Jackson afastou-se no mesmo passo lento e pesado. Bob quedou-se sob o alpendre a contemplar as suas vastas costas de colosso. Quando o viu desaparecer por detrás dum maciço de verdura, voltou para a cozinha, a menear a cabeça.

O polícia prosseguiu no seu passeio, como que entregue só ao prazer de se encontrar entre canteiros repletos de lindas flores ou grupos de arbustos muito viçosos, por essa amena Primavera. Ao entrar na curva duma álea um pouco afastada do edifício, avistou sùbitamente um homem, todo curvado para a terra, a sachar umas plantas. Era o Sr. João, o jardineiro. Aproximou-se, sem pressa, e perto do homem deteve-se.

- Boa tarde, Sr. João - disse ele.

O jardineiro endireitou-se, pousou as mãos no cabo da sachola, ergueu os olhos para o gigante e murmurou:

-Boa tarde, senhor.

- Este jardim é todo tratado por si ? - perguntou o "detective".

- Sim, senhor - respondeu João; passando a manga da camisa pela fronte húmida de suor em que se empastava o seu cabelo grisalho. Só em ocasiões de mais aperto de trabalho é que meto um homem ou dois para me ajudar.

-Mesmo assim, deve ter muito que fazer, porque a área ajardinada é grande e toda ela revela muito cuidado - disse o inspector. - As plantas parecem agradecidas ao jardineiro, hem?

João sorriu, lisonjeado, mostrando apenas três ou quatro dentes dispersos sob o bigodito cor de cinza.

- Sabe - replicou ele relanceando um olhar enternecido pelas plantas- , a gente cria amor a isto. Não tenho mais nenhum amor no Mundo, a não ser isto e os meus netos que vivem na aldeia próxima. A minha velhota faleceu, vai para cinco anos. tenho um filho lá para a América e só de ano a ano, pelo Natal, se lembra de me escrever, se calhar só para saber se eu ainda estou vivo. De modo que vivo para isto que está vendo. Se não fosse jardineiro, queria ser jardineiro.

- É uma profissão linda - gabou o polícia. E ajuntou - Aliás, todas as profissões são lindas, desde que a gente viva para elas, de alma e coração. Eu também gosto muito do meu ofício. No entanto, talvez ainda venha a acabar a cultivar um jardim. Sou doido por flores.

Enquanto o ouvia, João movia a cabeça em ar de aprovação.

- E que profissão é a do senhor?-inquiriu

ele, curioso.

- Polícia - respondeu Jackson.

-Ah, então é o polícia que vem tratar do desaparecimento do alfinete da minha senhora?

-Sou eu, realmente.

- O senhor tem bom corpo para lutar com os ladrões e os assassinos - comentou o jardineiro, sorrindo.

- Efectivamente, força não me falta - concordou o "detective". - Mas raramente a emprego. Só em casos de absoluta necessidade.

-Então, como é que o senhor se arranja para os prender? - exclamou João, cheio de curiosidade.

- Pouca coisa! desmascaro-os, quando eles menos o esperam, e depois o resto é fácil, quase que se entregam, não lhes vale a pena fugir.

O velho soltou uma risada.

- l boa. É muito boa. - Depois, abrandando o riso perguntou: - E que lhe parece o caso do alfinete da senhora?

- Fácil, relativamente fácil - replicou Jackson.

- Trata-se, realmente, dum roubo?

- Ainda não sei bem. - respondeu o polícia, encolhendo os ombros, quase indiferente.

- Hom'essa Então, se não sabe, como sabe que é fácil ? - estranhou o jardineiro.

- Porque só me faltam uns pormenores para saber tudo - redarguiu o inspector. - Depois, será completamente fácil E acrescentou:

- A propósito, o senhor levanta-se muito cedo, não é verdade?

-Pelas seis horas da manhã, e às vezes antes. Aborrece-me estar muito tempo na cama - confessou o jardineiro.

-Hoje, também se levantou cedo?

- Também, ainda não eram seis horas.

-Não deu pela presença de alguém estranho no jardim, pois não?

- Absolutamente ninguém - asseverou João.

-Até, quando ouvi falar de roubo, fui por minha alta recreação dar uma volta por toda a cerca, junto do muro, mas não vi pegadas na terra húmida, nem coisa alguma que indicasse ter algum estranho entrado aqui durante a noite.

- E não têm um cão?

- Uma fera - respondeu o jardineiro. Chama-se Leão e olhe que o nome assenta-Lhe que nem uma luva. Fica à solta durante a noite.

O desgraçado que cá entrasse ficava feito em fanicos. De manhã cedo, quando me levanto, a primeira coisa que faço é prendê-lo. É um        perigo aquele demónio à solta...      

-Quer dizer, então, que quase não haveria possibilidade dum estranho, durante a noite, se introduzir no parque e na casa, estando o cão à solta- concluiu Jackson.  

- Era impossível! Só matando-o – afirmou João.  

Passos precipitados obrigaram os dois homens a volver a cabeça. Avistaram Carlitosque se aproximou a correr.

- Olá - exclamou, jovial, o "detective":

Anda a brincar?     

- Estava a tratar do meu jardim - respondeu o pequeno. Ouvi-os falar e vim para aqui.       

- Então, não é este senhor que trata do seu jardim ? - estranhou o polícia.        

- Não, senhor - replicou o gaiato, com vivacidade. - Ali só eu é que mexo.        

- Tem algum jardim privativo - inquiriu   Jackson.

Carlitos moveu a cabeça afirmativamente.   

- Só meu - declarou ele.

- Nem a irmãzinha tem ordem de lá mexer, não é verdade, menino Carlinhos - disse o jardineiro, afagando as suíças grisalhas.

- Não, que ela estraga-me tudo - declarou o pequeno. - Se lá mexesse, dava-lhe uma bofetada.

João riu-se.

- É mais cioso daquele bocadinho de terra

- exclamou ele, - Ainda hoje de manhã cedo, já lá andava. Mais tarde, quando viu que a menina fora brincar para as proximidades, ia sendo o bom e o bonito.

-Tem amor ao seu jardim, e acho muito bem - disse Jackson, muito grave. - O que não está bem é bater na sua mana.

-É que eu tinha lá estado a fazer uns arranjos esta manhã - explicou o pequeno - e quando vim da escola desconfiei que ela estivera lá a mexer.

- Mas não era caso para lhe bater - disse o polícia.

- Ele tem amor àquilo - desculpou o jardineiro. - Coitadinho, estivera de manhã a cavar; vio-o cá de longe, e naturalmente receou que a menina Isabelinha Lhe escangalhasse a obra. - concluiu ele, com uma risada de bom humor.

Jackson encolheu os ombros e, dirigindo um sorriso ao velhote, pronunciou:

- Crianças. - E volvendo-se para o menino - Vamos lá ver o seu jardim. Fica muito longe ?

-Não, senhor, é já ali adiante.

Foram andando, o polícia no seu passo pachorrento, que, no entanto, a criança tinha de acompanhar apressadamente. Não tardaram em alcançar o recinto cercado por uma tosca e baixa sebe, que Carlinhos considerava o seu jardim. Raras eram as plantas que tinham florido, mas o pequeno tinha muito orgulho na sua obra. João, que os seguira de sachola ao ombro, piscou um olho ao polícia e comentou para lisonjear o garoto:

- Não está nada mau, pois não, senhor ?

- Eu gosto bastante - declarou Jackson, perfeitamente sério, e com a sua pachorra habitual.

-Para a Primavera que vem deve apresentar-se magnífico-disse gravemente o jardineiro.

Carlos tinha entrado no seu jardim, dando um passo por cima da sebe, que era tão baixinha que lhe dispensava o trabalho de abrir a tosca cancela.

- Olhe - disse ele, baixando-se junto duma planta-, enxertei uma madressilva num pé de roseira, mas continuou a dar rosas, porque a madressilva secou.

- Engraçado - achou o polícia.

- E ali, que vai o menino plantar ?-inquiriu João.

- Onde ?

- Aí, a sua retaguarda, nesta terra revolvida de fresco? - Ah, aqui? Quero plantar uma árvore - respondeu Carlos. - O Sr. João há- de dar-me um pé. Já hoje cavei a terra. Amanhã, quero regá-la muito bem.

-Estas folhinhas aqui são violetas, não é assim ? - perguntou o inspector Jackson.

- São violetas mas não floriram - disse o pequeno.

O jardineiro desculpou-o:

- Plantou-as muito tarde. Cada coisa tem o seu tempo. O menino não quer ouvir os meus conselhos.

- Eu bem sei o que hei-de fazer - replicou

Carlitos, com orgulho e mal-humorado.

- Bem-disse o "detective", depois de consultar o relógio-, são horas de voltar para casa.

O menino Carlinhos vem também?

- Vai descobrir quem roubou o alfinete ?

-inquiriu o menino, fitando-o com interesse.

- É muito possível - admitiu o polícia.

Carlos transpôs a sebe e dispôs-se a acompanhá-lo. João seguiu-os até o local onde Jackson o encontrara a trabalhar e aí despediu-se afàvelmente.

- Boa sorte no seu trabalho - desejou ele ao polícia.

- Igualmente, no seu - replicou este acenando-lhe com a mão.

Pelo caminho, Carlinhos foi conversando.

- O senhor desconfia que foi a Emília quem roubou o alfinete, não é?

- Tenho umas desconfianças –replicou Jackson, baixando a voz, em tom de confidência. - E o menino que pensa.

Carlitos teve uma risada e replicou:

- Sei lá ? - E após uma pausa acrescentou

-Nos romances policiais, o ladrão quase nunca é aquele de quem a gente desconfia.

- O menino gosta de romances policiais ?

-Muito. Mas o papá não quer que eu os leia.

- E o menino lê?

- Leio os da minha avó! ela nem dá por isso.

Ao dizer isto, riu-se com gosto. Jackson acompanhou-o na hilaridade, com não menor entusiasmo.

- Essa é boa - exclamou ele. – Como arranja o menino isso?

-Entro no seu quarto, sem ninguém dar por isso, tiro um volume, quase sempre o que está por debaixo da grande rima que ela costuma lá ter, e guardo-o na sacola do colégio; depois leio às escondidas, no meu quarto, e às vezes, no parque, quando está bom tempo.

- Boa partida - achou Jackson.

Carlitos meteu as mãos nos bolsos e esticou-se um pouco para se dar ares de homem, e mudando o rumo à conversa, perguntou:

- Quem é que o senhor vai prender, a Emília ou o Bob?

- Ainda não sei. - respondeu o polícia hesitante. - Também já me disseram que o menino desconfia que sua mana escondeu o alfinete.

-Muito interesse nele tinha ela, isso é verdade - replicou Carlitos. - Se visse, ontem à noite, teve uma birra e não o quis tirar. A mamã teve de deixá-la ir deitar-se com ele.

- Mostrou demasiado interesse na jóiamurmurou o "detective", pensativo.

-Diz-se que se deve procurar o criminoso na pessoa a quem mais pode interessar o crime, não é verdade ? - observou o pequeno.

- É realmente essa a teoria - pronunciou o polícia, olhando-o com surpresa. - Onde leu o menino isso ?

- Num livro policial da avó - respondeu o pequeno, num ar negligente.

-Pois, não há dúvida de que me estava a esquecer de aplicar a teoria a este caso-confessou o inspector, um pouco confuso. E, após uma pausa acrescentou, como se falasse com os seus botões - A quem interessava mais o alfinete de brilhantes?

Carlitos adiantou a resposta:

- À Isabelinha.

Jackson parou a meio da álea e olhou o rapazito do alto da sua estatura gigantesca.

-O menino gostava que eu prendesse a sua mana ?

- Prender. prender. não - tartamudeou ele. Mas, refazendo-se e rindo com prazer, acrescentou - No entanto, gostava muito que ela apanhasse um grande susto.

- Pois é muito provável que lho pregue - disse o inspector Jackson, alongando o passo. Venha daí comigo, Carlinhos. Creia que me ajudou a descobrir quem furtou o alfinete.

Hei-de pedir a seu papá que lhe dê o prémio que o menino Carlinhos merece.

Subiram ràpidamente a escadaria exterior e entraram em casa.

 

A chave do enigma

- Ainda bem que o senhor aparece- exclamou a Sr.a Sommer, quando o inspector regresou à biblioteca, acompanhado de Bob e de Carlinhos. - Já se encontrou a prova decisiva da culpabilidade dessa rapariga!

E apontava severamente a Emília, caída numa cadeira, a chorar convulsivamente.

- Mamã, não se precipite -disse Helena. - Ao menos, deixe-me, primeiro apresentar meu irmão Jaime Sommer ao inspector Jackson.

Doroteia voltou logo à carga:

- Sr. Inspector, esta rapariga teve a ousadia de inculcar no espírito de minha neta que o tio a tinha visitado e.

- E, afinal, é verdade-atalhou Jaime Sommer, sorrindo. - A grande calúnia não passa duma verdade. E há mais: quando eu fui beijar minha sobrinha, antes de Emília se levantar, ainda a vi com o alfinete no peito. portanto, devia ter-se perdido entre esse momento e a hora em que Emília a viu já sem ele.

- Portanto - emendou a Sr.a Sommer

- devia ter sido Emília quem lho tirou. Tão certo como dois e dois serem quatro, visto que mais ninguém entrou no quarto entre as duas visitas.

- Perdão - interrompeu o polícia delicadamente. - Se me deixarem falar cinco minutos, sem estorvo, eu explico que mais alguém entrou no quarto.

Entreolharam-se todos, cheios de surpresa.

- Não é possível. - barafustou Doroteia, sem querer conformar-se.

- Desculpe-me, minha senhora - pronunciou o gigante-, deixe-me proceder sem o seu auxílio. Há só uma pessoa a quem peço ajuda neste momento. Uma pessoa que, apesar da sua pouca idade, revela qualidades de investigação admiráveis. É o menino Carlinhos.

Todos fitaram o pequeno que, metendo as mãos nos bolsos, se sentiu muito importante.

- Sai à avó. - murmurou Doroteia, com vaidade.

- O menino Carlinhos já me forneceu dados de grande valor e vai agora auxiliar-me a deslindar toda esta meada, não é verdade?

- Sim, senhor - pronunciou o pequeno, corando um pouco.

- Ora diga-me lá, menino Carlinhos, quando visitou sua mana, antes de ir fazer os seus trabalhos no jardinzinho, privativo, ela ainda tinha o alfinete ao peito, não é verdade?

- Tinha. - respondeu dbilmente o menino. Depois emendou, tornando-se vermelho como um pimentão - Não, não senhor, já não tinha...

- Ah, a Isabelinha já o tinha escondido? perguntou o detective".

- A Isabelinha... - gaguejou a criança. A Isabelinha tinha muito interesse... A Isabelinha queria o alfinete.

-Nesse caso,   ainda não o tinha escondido...

-Pois não ciciou o pequeno.

- Viu onde ela o ocultou depois ?... - indagou o polícia.

- Não vi...        Eu não vi.

- Tê-lo-ia enterrado no seu jardim ?

- No meu jardim ?. - repetiu Carlos, desorientado.

- Sim, naquele sítio onde o João viu o menino estar a escavar esta manhã.

       - Sim, eu escavei - titubeou o pequeno -       eu fiz um buraco no chão, mas depois... tornei a tapar.

-Pois tornou a tapar; para esconder o alfinete que o menino tirou a sua mana, quando ela dormia, depois de o tio a visitar.      E Emília só mais tarde entrou no quarto, quando o menino tinha ido para a escola.

Carlinhos fez-se de mil cores.        De repente, soltando um grito de angústia, correu a lançar-se aos pés de seu pai, tomado dum choro convulsivo.      

- Perdão! Perdão!.. - soluçava ele. – Eu queria meter um susto à Isabelinha... Fui eu      . quem tirou o alfinete...

O Dr. Garden levantou-se muito pálido e trémulo de cólera. Percebia- se que estava prestes a agredir brutalmente o filho. Helena correu a lançar-se-lhe nos braços.

- Artur, é teu filho - soluçou ela apertando-o contra si.

-Quem havia de adivinhar uma coisa destas. - pronunciava a Sr.a Sommer, desorientada.

Jaime Sommer foi levantar o Carlitos, que ficara de rojo, quase desmaiado, enquanto Emília, abraçada à Isabelinha, chorava e ria, ao mesmo tempo. Bob, junto à porta, esforçava-se por conter as lágrimas.

Quieto, e calmo, como uma torre, o inspector Jackson permanecia de braços cruzados no meio da sala, à espera duma oportunidade para falar.

Quando o conseguiu, disse, dirigindo-se ao médico:

-Sr. Dr. Garden, este menino não é inteiramente culpado do acto que praticou. Tem um espírito travesso e um tanto endiabrado que tomará o seu equilíbrio na idade do raciocínio. Foi a esse espírito travesso que fizeram muito mal os livros policiais que leu. É leitura demasiado forte para uma criança.

-Mas onde ia ele buscar os livros policiais ? - exclamou o cirurgião.

- Retirava-os furtivamente da rima de livros do género que a Sr.a Sommer costuma ter no seu quarto- elucidou o polícia.

- Efectivamente - confessou Doroteia sumidamente - eu percebia que ele lia esses livros à socapa, e fazia vista grossa. Nunca supus que Lhe pudessem fazer mal.

- Fazem-Lhe mal a ele e fazem-lhe mal a si - pronunciou o médico, com irritação. -Obliteram-lhe o critério de equidade e de justiça, e levam-na a ver criminosos onde estão inocentes.

A Sr.a Sommer baixou os olhos ao chão e chamou, em voz apagada:

-Emília, perdoa-me o mau conceito que fiz de ti.

- Oh, minha senhora - exclamou a rapariga, lançando-se comovidamente nos seus braços.

- Eu sempre gostei muito de si. E tinha tanta pena que a senhora não gostasse de mim...

A Sr. a Sommer abraçou-a, mas logo lhe penderam as mãos e teria caído redondamente se Emília não a segurasse, a gritar:

- Ai, que a minha senhora morre!

Doroteia acabava de desmaiar. O inspector levantou-a como se não passasse duma pena e estendeu-a no sofá, onde ela se quedou inerte.

- Deixem-na agora comigo - pediu o médico, rompendo o caminho e abeirando-se dela para Lhe palpar o pulso.

Fora um simples desmaio que, mercê dos cuidados do genro, depressa passou.  

O inspector Jackson, com bons modos,        pediu então ao Carlinhos que fosse ele próprio desenterrar o alfinete, na presença do pai e da mãe. O menino obedeceu. E o polícia aproveitou a ausência dos Garden para se despedir ràpidamente dos restantes membros da família, de Bob e de Emília, e escapar-se sorrateiramente para Londres.

Mas, no dia seguinte, o doutor enviou-lhe um cheque de duzentas libras e uma carta, que podia considerar-se um verdadeiro atestado de competência passado por um homem que era uma sumidade médica de Inglaterra.

A Sr.a Sommer declarou mais tarde que o inspector Jackson era o maior " detective " do Mundo.

O Carlinhos ficou privado de doces e de qualquer divertimento durante um mês. A condenação fora por três meses, mas o pai, vendo que ele estava sinceramente arrependido e se tornara muito amigo da Isabelinha e afectuoso para toda a gente, comutou-Lhe a pena e começou a tratá-lo com a consideração que merecem as pessoas de bem.

A Isabelinha nunca mais pediu o alfinete à sua mãe. esta é que, de vez em quando, permitia que ela o usasse por umas horas.

 

                                                                                J. W. Powell  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"