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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A AUTO ESTRADA / Stephen king
A AUTO ESTRADA / Stephen king

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A AUTO ESTRADA

 

Eu não sei por quê. Você não sabe por quê.

Com toda probabilidade, Deus também não sabe por quê.

É simplesmente negócio do governo, só isso.

— Entrevista com o homem comum sobre o Vietnã, cerca 1967.

Mas o Vietnã já era e o país continuava...

 

Naquela tarde quente de agosto o carro de reportagem da WHLM estacionou perto de Westgate, na extremidade da auto-estrada 784. Uma pequena multidão cerca um palanque coberto de tiras de pano coloridas que fora apressadamente armado. O pano colorido era como carne fina em cima de um esqueleto de tábuas nuas. Atrás do palanque, no alto de uma ribanceira relvada, erguiam-se os telheiros de ferramental da estrada. Em frente ao palanque, descampadas terras alagadas se estendiam na direção da franja suburbana dos limites da cidade.

 

Um jovem repórter da TV chamado Dave Albert realizava uma série de entrevistas com pessoas comuns, enquanto ele e seus colegas esperavam pelo governador e o prefeito, que iriam dar início à cerimônia de inauguração das obras.

 

Estendeu o microfone para um homem idoso, de óculos escuros.

 

— Bem — disse o velho, olhando trêmulo para a câmera —, acho que isto é uma grande coisa para a cidade. Estamos precisando desta obra há muito tempo. É... uma grande coisa para a cidade. — Engoliu em seco, consciente de que sua mente estava irradiando ecos de si mesma, incapaz de parar, hipnotizada pelo olho ciclópico, inexorável, da posteridade. — Grande — acrescentou debilmente.

 

— Muito obrigado, senhor. Muito obrigado, mesmo.

 

— O senhor acha que vão usar isso? No noticiário de hoje à noite? Albert endereçou-lhe um sorriso profissional, que nada dizia.

 

— É difícil saber, senhor. Mas há uma boa probabilidade.

 

O encarregado do som apontou para o posto de pedágio, onde o Chrysler Imperial do governador acabara de parar, piscando e brilhando como uma bola oito cromada no sol de verão. Albert acusou o aviso com uma inclinação de cabeça e levantou um único dedo. Ele e o cinegrafista aproximaram-se para um cara de camisa branca, mangas arregaçadas.

 

O cara olhava pensativamente para o palanque.

 

— O senhor se importaria em nos dar sua opinião sobre toda esta cerimônia, Sr...

 

— Dawes. Não, não me importaria. A voz era baixa, agradável.

 

— Filmando — disse o cinegrafista.

 

O homem de camisa branca disse, ainda em tom agradável:

 

— Eu acho que é uma merda.

 

O cinegrafista fez uma careta. Albert inclinou a cabeça, olhando com ar de censura para o homem de camisa branca e em seguida, com os dois primeiros dedos da mão direita fez o sinal de cortar.

 

O cavalheiro idoso olhava para a cena demonstrando autêntico horror. No alto, perto dos telheiros do ferramental, o governador descia nesse momento de seu Imperial. Sua gravata verde resplandecia ao sol.

 

O homem de camisa branca perguntou polidamente:

 

— Isso vai aparecer no noticiário de 6h ou 7h?

 

— Oh, cara, você é uma graça — disse Albert azedamente e se afastou para ir ao encontro do governador.

 

O cinegrafista seguiu-o. O homem de camisa branca observou atento o governador, que nesse momento descia cauteloso a ribanceira relvada.

 

Dezessete meses depois, Albert voltou a encontrar o homem de camisa branca, mas uma vez que nenhum dos dois se lembrava de terem se encontrado antes, para os dois aquilo bem que poderia ter sido a primeira vez.

 

20 de novembro de 1973

 

Continuava a fazer coisas sem se permitir pensar nelas. Era mais seguro assim. Era como se tivesse um disjuntor de circuito na cabeça, que desligava toda vez que uma parte dela tentava perguntar: Mas por que você está fazendo isso? Parte da mente escurecida. Hei, Georgie, quem foi que apagou as luzes? Ora, eu. Alguma coisa errada na fiação, acho. Só um segundo. Restabeleça o circuito. As luzes voltam. Mas o pensamento desapareceu. Tudo está perfeito. Vamos continuar, Freddy. Onde era que nós estávamos?

 

Dirigia-se para o ponto de ônibus no momento em que viu a placa, que dizia:

 

CASA HARVEY

 

ARMAS E MUNIÇÕES

 

Remington Winchester Colt Smith & Wesson

 

BEM-VINDOS CAÇADORES

 

O céu cinzento derramava nesse momento um pouco de neve. Primeira neve do ano, ela caía sobre a calçada como se fosse borrões de bicarbonato de sódio e em seguida derretia. Um menininho usando um boné vermelho tricotado passou por ele, a boca aberta e a língua estirada para pegar um floco. Vai simplesmente derreter, Freddy, pensou, olhando para o menino, mas o menino continuou a fazer aquilo de qualquer maneira, a cabeça inclinada para trás, virada para o céu.

 

Parou em frente à Casa Harvey, hesitando. Viu no lado de fora uma prateleira com as últimas edições dos jornais do dia. Uma manchete dizia:

 

CONTINUA O DUVIDOSO CESSAR-FOGO

 

Na parte inferior da prateleira, um aviso branco sujo dizia:

 

POR FAVOR, PAGUE O JORNAL!

 

ESTA BANCA É PARA PESSOAS HONRADAS,

 

O PROPRIETÁRIO TEM QUE PAGAR TODOS OS JORNAIS

 

Estava quente ali dentro. A loja era comprida mas não muito larga, com um único corredor. Do outro lado da porta, no lado esquerdo um armário de vidro onde eram guardadas as caixas de munição. Reconheceu imediatamente os cartuchos .22 porque, ao tempo de garoto em Connecticut, possuíra uma carabina .22 de tiro único. Quisera aquela arma durante três anos e quando finalmente a ganhara, não soubera o que fazer com ela. Durante algum tempo, atirara em latas. Depois, matou um gaio azul. Aquele gaio não fora uma execução bem feita. O passarinho ficara parado na neve cercado por uma mancha rosada de sangue, o bico abrindo-se e fechando-se lentamente. Depois disso, guardara a espingarda, que permanecera pendurada durante três anos, até que a vendera a um garoto da rua por nove dólares e uma caixa de revistas em quadrinhos.

 

Os outros tipos de munição eram menos conhecidos. Trinta-trinta, trinta-zero-seis, e algumas que pareciam obuses em miniatura. Que animais só morriam quando atingidos por aquelas balas? perguntou a si mesmo. Tigres? Dinossauros? Ainda assim, fascinavam-no, ali dentro do armário envidraçado como se fossem bombons numa vitrine.

 

O empregado, ou proprietário, conversava nesse momento com um homem gordo vestido com calça verde e camisa de serviço da mesma cor. A camisa possuía bolsos com flapes. Falavam sobre uma pistola nesse momento desmontada, em cima de outra caixa de vidro. O homem gordo puxou para trás o cursor e os dois olharam para dentro da câmara oleada. O gordo disse alguma coisa e o empregado, ou proprietário, riu.

 

— As automáticas sempre engasgam? Você herdou essa de seu pai, Mac. Confesse.

 

— Harry, você está cheio de babaquice até o gogó.

 

Você está cheio também, Fred, pensou, Até o gogó. Sabia disso, Fred? Fred disse que sabia.

 

À direita uma vitrine de vidro prolongava-se por todo o comprimento da loja. Cheia de rifles descansando em cima de suportes. Conseguiu identificar uma espingarda de dois canos mas tudo o mais era mistério para ele. Ainda assim, algumas pessoas — como os dois no balcão mais distante, por exemplo — haviam aprendido a dominar esse mundo com a mesma facilidade com que dominara contabilidade geral na faculdade.

 

Entrou mais na loja e examinou um mostruário cheio de armas curtas. Viu algumas pistolas de ar comprimido, uma poucas .22s, um .38 com cabo de madeira um .45, e uma arma que reconheceu como um Magnum .44, a arma que Dirty Harry usara naquele filme. Ouvira Ron Stone e Vinnie Mason conversando na lavanderia sobre aquele filme e Vinnie dissera: Nunca deixam que um tira ande com uma arma como aquela na cidade. Com uma delas pode-se abrir um buraco num cara a quilômetro e meio de distância.

 

O gordo, Mac, e o empregado, ou proprietário, Harry (como em Dirty Harry), haviam remontado a arma.

 

— Bata um fio pra mim quando receber aquela Menschler — disse Mac.

 

— Combinado... mas seu preconceito contra automáticas é irracional — disse Harry. (Chegou à conclusão de que Harry devia ser o proprietário: um empregado jamais chamaria de irracional um cliente.) — Vai precisar do Cobra na próxima semana?

 

— Eu gostaria — respondeu Mac.

 

— Não posso prometer nada.

 

— Você nunca pode... mas é o melhor armeiro da cidade, e sabe disso.

 

— Claro que sei.

 

Mac bateu com a arma em cima do mostruário de vidro e virou-se para ir embora.

 

Chocou-se com ele — Cuidado, Mac. Sorria quando fizer isso — e depois dirigiu-se para a porta. Mac levava um jornal dobrado sob o braço e conseguiu ler:

 

DUVIDOSO CESS

 

Harry virou-se para ele, sorrindo ainda e sacudindo a cabeça.

 

— Posso ser-lhe útil em alguma coisa?

 

— Tomara que possa. Mas aviso, de início, que não manjo nada de armas. Harry encolheu os ombros.

 

— Há alguma lei dizendo que o senhor deve? Há para alguém? Como presente de Natal?

 

— Exatamente — disse ele, aproveitando a sugestão. — Eu tenho um primo... Nick, é o nome dele. Nick Adams. Mora em Michigan e tem armas. O senhor sabe como é. Adora caçar, mas é mais do que isso. É uma espécie de, bem, um...

 

— Um hobby? — perguntou Harry, sorrindo.

 

— Isso, é isso.

 

Estivera prestes a dizer fetiche. Seus olhos caíram sobre a registradora, onde um velho adesivo de pára-choques fora pregado. O adesivo dizia:

 

SE AS ARMAS FOREM PROSCRITAS,

 

SÓ OS PROSCRITOS TERÃO ARMAS.

 

Sorriu para Harry e disse:

 

— Isso aí é uma grande verdade, sabia?

 

— Claro que é — confirmou Harry. — Esse seu primo...

 

— Bem, é um caso de um querer superar o outro. Ele sabe como eu gosto de barcos e no último Natal me deu de presente um motor Evinrude de 60hp. Enviou-o como encomenda expressa. Eu dei a ele uma jaqueta de caça. Não preciso dizer que fiquei danado de humilhado.

 

Harry inclinou compreensivo a cabeça.

 

— Bem, recebi uma carta dele há umas seis semanas e ele parecia um garoto que ganhou um passe livre para o circo. Parece que ele e seus amigos juntaram uns trocados e compraram um pacote para um lugar no México, uma espécie de zona livre de tiro...

 

— Uma zona de caça sem limite ao número de peças abatidas?

 

— Sim, é isso mesmo. — Fred soltou uma pequena risada. — O cara pode atirar tanto quanto quiser. Os proprietários mantêm o lugar abastecido de caça. Veados, antílopes, ursos, bisões. Tudo.

 

— Esse lugar seria Boca Rio?

 

— Realmente, não me lembro. Acho que o nome era mais comprido do que esse. Os olhos de Harry tornaram-se levemente sonhadores.

 

— Esse cara que acaba de sair daqui, eu e dois outros fomos para Boca Rio em 1965. Matei uma zebra! Uma zebra de verdade! Mandei empalhá-la e ela está em minha sala de troféus lá em casa. Foi o melhor tempo que já passei em toda minha vida. Tenho inveja de seu primo.

 

— Bem, conversei sobre isso com minha mulher — disse Fred —, e ela me disse para ir em frente. Tivemos um ano muito bom na lavanderia. Eu trabalho na Blue Ribbon Laundry, que fica lá em Western.

 

— Eu sei onde fica.

 

Achou que podia continuar a conversar com Harry o dia inteiro, pelo resto do ano, e com verdades e mentiras bordar uma bela e vistosa tapeçaria. O mundo que se lixasse. O diabo levasse o racionamento de gasolina, o alto preço da carne e o duvidoso cessar-fogo. E que pudessem conversar sobre primos que nunca existiram, certo, Fred? Certo, Georgie.

 

— Este ano, conseguimos a conta do Central Hospital de doentes mentais e também de três novos motéis.

 

— O Quality Motor Court, na Franklin Avenue, é um de seus clientes.

 

— Sim, é.

 

— Hospedei-me lá umas duas vezes — disse Harry. — Os lençóis são sempre muito limpos. Engraçado, a gente nunca pensa em quem lava os lençóis quando se hospeda num motel.

 

— Bem, tivemos um ano muito bom e eu pensei, talvez eu possa dar de presente a Nick um fuzil e uma pistola. Sei que ele sempre quis um Magnum .44, ouvi-o falar nisso certa vez...

 

Harry trouxe o Magnum e colocou-o com cuidado em cima do balcão de vidro. Fred levantou-o. Sopesou-o. A arma parecia ser capaz de dar conta de um recado. Recolocou-o sobre o balcão.

 

— A carga dessa arma... — começou Harry. Fred riu e levantou a mão.

 

— Não me convença. Já estou convencido. Um ignorante sempre se convence a si mesmo. Quanta munição devo levar com a arma?

 

Harry encolheu os ombros.

 

— Dê a ele umas dez caixas, por que não? Ele poderá sempre conseguir mais. O preço da arma é 289 dólares, fora o imposto, mas vou fazer 280 para o senhor, incluída a munição. Que tal isso?

 

— Super — retrucou Fred, acreditando no que dizia. Em seguida, porque achou que algo mais era necessário, acrescentou: — É uma bela arma.

 

— Se é para Boca Rio que ele vai, poderá usá-la bem.

 

— Agora, o fuzil...

 

— O que é que ele tem?

 

Fred encolheu os ombros e abriu as mãos.

 

— Sinto muito, mas realmente não sei. Duas ou três espingardas e uma que ele chama de automuniciamento...

 

— Remington?

 

Harry fez a pergunta tão rapidamente que ficou com medo. Era como se estivesse andando com água pela cintura e subitamente caísse num buraco.

 

— Acho que sim. Mas posso estar enganado.

 

— A Remington é que fabrica as melhores — explicou Harry e inclinou a cabeça, pondo-o à vontade novamente. — Em matéria de preço, até aonde o senhor quer ir?

 

— Bem, vou ser honesto com o senhor. O motor custou a ele provavelmente uns quatrocentos dólares. Eu gostaria de ir até pelo menos quinhentos. Seiscentos como máximo.

 

— O senhor e esse primo são realmente muito amigos, não?

 

— Nós crescemos juntos — retrucou Fred, com toda sinceridade. — Acho que daria meu braço direito a ele, se ele quisesse.

 

— Bem, vou lhe mostrar uma coisa — disse Harry. Tirou uma chave de um molho e dirigiu-se a um dos armários envidraçados. Abriu-o, subiu num tamborete e desceu um comprido e pesado fuzil com coronha trabalhada. — Este aqui pode ser um pouco mais caro do que o teto que o senhor estabeleceu, mas é uma bela arma.

 

Harry entregou-lhe o fuzil.

 

— O que é isso?

 

— Essa arma é uma Weatherbee 4-60. Utiliza munição de maior calibre do que a que tenho neste momento na loja. Eu teria que encomendar a Chicago todos os projéteis que o senhor quiser. Levaria uma semana, mais ou menos. É uma arma com equilíbrio perfeito. A energia de saída desse bebê é de mais de 450kg... mais ou menos como atingir alguma coisa com uma limusine de aeroporto. Se atingir um alce na cabeça com esta arma, terá que contentar-se com a cauda dele como troféu.

 

— Não sei — disse Fred, parecendo em dúvida, embora já houvesse resolvido que queria aquela arma. — Sei que Nick gosta de ter troféus. Faz parte do...

 

— Claro que faz — concordou Harry, abrindo a câmara do Weatherbee. O buraco parecia suficientemente grande para alojar um pombo. — Ninguém vai a Boca Rio para comer. De modo que seu primo atira pra valer. Com esta peça, o caçador não tem que preocupar-se em seguir o animal por 30km através de terreno acidentado, o animal sofrendo o tempo todo, para nada dizer de perder o jantar. Este bebê aqui é tiro e queda.

 

— Quantos?

 

— Bem, vou ser franco com o senhor. Não consigo vendê-lo nesta cidade. Quem quer um canhão antitanque quando por aqui nada mais há para caçar, com exceção de faisões? E se põe o faisão na mesa, parece que a gente está comendo fumaça de escape. É vendido no comércio a 950 dólares e a atacadistas por 630.O senhor pode levá-lo por 700 dólares.

 

— A conta total, neste caso, vai a quase... mil dólares.

 

— Nós damos um desconto de 10% em compras acima de 300 dólares. O desconto reduz o total para 900. — Encolheu os ombros. — Dê esta arma a seu primo. Aposto que ele não tem uma igual. Se tiver, recompro a arma por 750 dólares. E ponho isto por escrito, tão certo estou do que digo.

 

— Não está brincando?

 

— Absolutamente. Absolutamente. Claro, se é caro demais, tudo bem. O senhor pode examinar outras armas. Mas se ele é realmente maluco por armas, não tenho outra coisa da qual ele quereria ter duas.

 

— Compreendo. — Fred adotou uma expressão pensativa. — Tem telefone?

 

— Claro, lá nos fundos. Quer telefonar pra sua mulher e conversar com ela.

 

— Acho que seria melhor.

 

— Claro. Venha comigo.

 

Harry levou-o para uma atravancada sala nos fundos da loja. Havia aí uma bancada de madeira toda arranhada coberta de peças de armas, molas, fluido de limpeza, panfletos e garrafas etiquetadas cheia de projéteis de chumbo.

 

— O telefone fica ali — indica Harry.

 

Fred sentou-se, tirou o aparelho do gancho e discou, enquanto Harry voltava à loja para pegar o Magnum e colocá-lo numa caixa.

 

— “Muito obrigada por ligar para o serviço de Meteorologia da WDST — disse uma alegre voz gravada. — Esta tarde, borrifos de neve que se transformarão em leve queda de neve à noite...”

 

— Oi, Mary? — disse ele. — Escute, estou numa loja chamada Casa Harvey, Armas e Munições. Sim, é a respeito de Nicky. Comprei a pistola sobre a qual falamos, não houve problema. No mostruário havia exatamente o que queríamos. Depois, o moço me mostrou um fuzil...

 

— “...melhorando pela tarde de amanhã. As mais baixas temperaturas hoje à noite oscilarão entre 1°C e 4°C e amanhã deverá variar entre 7°C e 9°C. As probabilidades de precipitação hoje à noite...”

 

-...de modo que, o que é que você acha que devo fazer? Harry encontrava-se nesse momento à soleira da porta, às suas costas. Podia ver-lhe a sombra.

 

— Sim — disse. — Sei disso.

 

— “Obrigada por ligar para o Serviço de Meteorologia da WDST e não esqueça de assistir ao Notícias-mais-60, com Bob Reynolds, todos os dias da semana às 6h da tarde, para obter um boletim atualizado. Adeus”.

 

— Você não está brincando. Sei que é um bocado de dinheiro.

 

— “Muito obrigada por ligar para o Serviço de Meteorologia da WDST. — Esta tarde, borrifos de neve que se transformarão em leve queda de neve à noite...”

 

— Tem mesmo certeza, amor?

 

— “As probabilidades de precipitação hoje à noite são de 80%. Amanhã...

 

— Bem, tudo bem. — Virou-se no banco, sorriu para Harry, e formou um círculo com o polegar direito e o indicador. — Ele é uma cara bacana. Ela disse que garantia que Nick não tem uma arma igual.

 

— “...tarde de amanhã. As mais baixas temperaturas hoje à noite...”

 

— Eu te amo também, Mary. Tchau.

 

Desligou. Jesus, Freddy, essa foi bem feita. Foi, George. Foi. Levantou-se.

 

— Disse para eu ir em frente, se achar que devo. Acho. Harry sorriu.

 

— O que é que o senhor vai fazer se ele lhe enviar um Thunderbird? Fred retribuiu o sorriso.

 

— Devolverei, sem abrir o embrulho. Quando voltavam para a loja, Harry perguntou:

 

— Cheque ou a debitar?

 

— American Express, se aceitável.

 

— Tão bom como ouro.

 

Puxou do bolso o cartão de crédito. Nas costas, escrito na fita especial, o nome:

 

BARTON GEORGE DAWES

 

— Tem certeza de que os cartuchos chegarão a tempo de eu enviar tudo junto a Fred?

 

Harry ergueu a vista da fatura do cartão de crédito.

 

— Fred?

 

O sorriso de Fred expandiu-se.

 

— Nick é Fred e Fred é Nick — explicou. — Nicholas Frederic Adams. É uma espécie de brincadeira sobre o nome. De nosso tempo de garotos.

 

— Oh. — Harry sorriu polidamente como acontece quando a gente não entende uma piada. — Quer fazer o favor de assinar aqui?

 

Fred assinou.

 

Harry tirou um livro de baixo do balcão, um livro pesado, com uma corrente de aço passada através do canto superior esquerdo, perto da lombada.

 

— E agora seu nome e endereço aqui, para a polícia federal. Fred sentiu os dedos se contraírem em volta da caneta.

 

— Claro — disse. — Olhe pra mim, nunca comprei uma arma em toda minha vida e sou louco.

 

Escreveu no livro o nome e endereço.

 

Barton George Dawes, 1241 Crestallen Street West

 

— Eles se metem em tudo — disse.

 

— Isso não é nada em comparação com o que gostaria de fazer — observou Harry.

 

— Eu sei. Sabe o que ouvi no noticiário um dia destes? Querem uma lei estabelecendo que caras que dirigem motos têm que usar um protetor de boca. Um protetor de boca, pelo amor de Deus. Agora, é assunto do governo se um cara quer arriscar perder seu teclado?

 

— Não, na minha opinião não é — respondeu Harry, guardando o livro sob o balcão.

 

— Ou veja aquela ampliação da auto-estrada que estão construindo em Western. Um topógrafo cretino diz “Vai passar por aqui” e o estado envia um bocado de cartas e elas dizem: “Lamentamos muito, mas a ampliação da 784 vai passar por aqui. O senhor tem um ano para procurar uma nova casa”.

 

— Isso é uma grande vergonha.

 

— Ora, se é. O que é que “domínio iminente” significa para um cara que morou na droga da casa durante 20 anos? Fez amor com a esposa lá, criou nela os filhos e é o lugar para onde volta após uma viagem. Isso é simplesmente um troço que tiraram de um livro de direito e que interpretam de maneira a roubar mais tranqüilamente a gente.

 

Cuidado, cuidado! O disjuntor de circuito, porém, foi um pouco lento dessa vez e deixou passar alguma coisa.

 

— O senhor está se sentindo bem? — perguntou Harry.

 

— Estou. Comi no almoço um desses sanduíches enfeitados. Não devia ter feito isso. Eles me provocaram um bocado de gases.

 

— Experimente um destes — disse Harry, e tirou uma fita de comprimidos do bolso da camisa. Na parte externa estava escrito:

 

ROLAIDS

 

— Obrigado — disse Fred.

 

Pegou um dos comprimidos e levou-o à boca, não se importando com o pedacinho de papel que veio colado ao remédio. Olhe para mim. Estou num comercial da TV. Consome 47 vezes seu próprio peso em excesso de ácido estomacal.

 

— Eles sempre resolvem o problema no meu caso — garantiu Harry.

 

— A respeito da munição...

 

— Certo. Uma semana. Não mais de duas. Vou-lhe conseguir setenta tiros.

 

— Bem, que tal eu deixar as armas aqui mesmo? Ponha meu nome nelas ou coisa assim. Acho que é tolice minha, mas não quero realmente essas armas em casa. Tolice, não é?

 

— Cada louco com sua mania — disse afavelmente Harry.

 

— Tudo bem. Anote aí o número de meu escritório. Quando essas balas chegarem...

 

— Cartuchos — interrompeu-o Harry. — Cartuchos ou cargas.

 

— Cartuchos — disse Fred, sorrindo. — Quando chegarem, dê-me um telefonema. Pegarei as armas e providenciarei o aviso delas. O correio transporta armas, não?

 

— Claro. Seu primo vai ter que assinar um recibo quando as receber, só isso. Escreveu o nome em um dos cartões comerciais de Harry, que dizia:

 

Harold Swinnerton 849-6330

 

CASA HARVEY — ARMAS

 

Munição Armas antigas

 

— Hei — disse —, se você é Harold, quem é Harvey?

 

— Harvey era meu irmão. Morreu há oito anos.

 

— Oh, sinto muito.

 

— Todos nós sentimos. Ele chegou aqui certo dia, abriu a loja; zerou a caixa registradora e caiu morto com um ataque do coração. Um dos homens mais doces que se poderia imaginar. Podia abater um cervo a 200m de distância.

 

Ele estendeu a mão e apertou a do proprietário.

 

— Eu lhe darei um telefonema — prometeu Harry.

 

— Cuide bem de minhas armas.

 

Saiu novamente para a neve que caía, passou pela manchete CONTINUA O DUVIDOSO CESSAR-FOGO. A neve caía com mais força nesse momento e deixara as luvas em casa.

 

O que era que você estava fazendo lá dentro, George?

 

Um estalido e o disjuntor de circuito foi acionado.

 

Ao chegar ao ponto de ônibus, aquilo podia ter sido um incidente sobre o qual lera em algum lugar. Não mais do que isso.

 

Crestallen Street West era uma rua comprida que descia em curva e desfrutara uma excelente vista do parque e do rio até que o progresso interviera sob a forma de um alto prédio de apartamentos. Construído na Westfield Avenue dois anos antes, o prédio bloqueara a maior parte da paisagem.

 

O número 1241 era uma casa estilo rancho em vários níveis, com garagem para um carro ao lado. Possuía um longo pátio fronteiro, nesse momento estéril e à espera de ser coberto pela neve — neve de verdade. A entrada de automóveis era de asfalto, recapeada e quente na primavera anterior.

 

Entrou e ouviu a TV, o novo modelo de gabinete Zenith que haviam comprado no verão. No telhado havia uma antena orientável que ele mesmo instalara. Ela não quisera por causa do que se supunha que ia acontecer, mas ele insistira. Se podia ser montada, raciocinara, podia ser desmontada quando se mudassem dali. Bart, não seja tolo. É simplesmente uma despesa extra... apenas um trabalho extra pra você. Ele, porém, resistira mais e ela finalmente dissera que ia fazer “a vontade” dele. Era isso o que ela dizia nas raras ocasiões em que ele se importava o suficiente com uma coisa para forçá-la através do melado pegajoso dos argumentos da mulher. Tudo bem, Bart. desta vez vou fazer sua “vontade”.

 

Nesse momento ela assistia a um programa em que Mery Griffin conversava com uma celebridade. A celebridade era Lorne Green, que falava sobre sua nova série policial, Griff. Lorne contava a ela como adorava fazer aquele programa. Logo depois, uma cantora negra (uma negra cantora, pensou) de quem nunca ninguém ouvira falar, apareceria para cantar, talvez, I left my heart in San Francisco.

 

— Oi, Mary — disse.

 

— Oi, Bart.

 

Correspondência na mesa. Folheou-a rapidamente. Uma carta para Mary enviada pela irmã ligeiramente psicótica que morava em Baltimore. Uma fatura do cartão de crédito Gulf — 38 dólares. Um extrato de conta corrente: 49 débitos, 9 créditos, saldo de US$954.47. Fora uma boa coisa ter usado o cartão da American Express na loja de armas.

 

— O café está quente — gritou Mary da sala. — Ou prefere um drinque?

 

— Um drinque — respondeu ele. — Eu mesmo vou preparar.

 

Três outras cartas: uma notícia de atraso de devolução, da biblioteca, pelo livro Facing the Lions, de Tom Wicker. Wicker falara em um almoço do Rotary há um mês e fora o melhor orador que ouvira em anos.

 

Uma nota pessoal de Stephan Ordner, um dos altos executivos da Amroco, a empresa que nesse momento era a proprietária quase total da Blue Ribbon. Ordner convidava-o a aparecer por lá a fim de discutirem aquela questão Waterford. Sexta-feira seria conveniente ou ele estaria pensando em viajar no Dia de Ação de Graças? Se assim, telefonasse. Se não, trouxesse Mary. Carla sempre gostava de bater um papo com Mary, e blablablá, blablablá, etc. e tal.

 

E outra carta do departamento de estradas de rodagem.

 

À luz da tarde cinzenta que caía pelas janelas ficou olhando durante muito tempo para a carta. Em seguida colocou a correspondência em cima do aparador. Preparou um uísque com gelo e levou-o para a sala de estar.

 

Merv continuava prosando com Lorne. A cor na nova televisão Zenith era melhor do que boa, quase desaparecera. Se nossos mísseis balísticos internacionais forem tão bons como nossas televisões, pensou, algum dia vai haver uma explosão danada de grande. Os cabelos de Lorne eram cor de prata, a tonalidade concebível mais impossível de prata. Poxa, se estivesse aí eu lhe arrancava essa peruca e você ia aparecer careca como é, pensou, soltou uma risadinha. Aquela fora uma das frases favoritas de sua mãe. Não sabia bem por que a imagem de um Lorne Greene careca era tão divertida. Um leve ataque de histeria atrasada após o episódio na loja de armas, talvez. Mary ergueu a vista, um sorriso nos lábios.

 

— Uma piada engraçada?

 

— Nada — respondeu ele. — Apenas uma coisa que pensei.

 

Sentou-se ao lado da esposa e deu-lhe uma bicota no rosto. Era uma mulher alta, de 38 anos nessa ocasião e naquela crise de aparência em que a beleza anterior está resolvendo o que fazer com a meia-idade. A pele dela era boa, os seios pequenos e sem tendência para cair demais. Comia muito, mas seu metabolismo de esteira transportadora mantinha-a esbelta. Não era provável que tremesse ao pensamento de usar um maiô numa praia pública dentro de dez anos, por mais que os deuses resolvessem dispor do resto de sua embalagem. Esses pensamentos tornaram-no consciente de sua barriguinha. Diabo, Freddy, todo executivo tem uma barriguinha. É um símbolo de sucesso, tal como um Delta 88. Isso mesmo, George. Cuidado com o coração e os cigarros cancerígenos e você ainda chega aos oitenta.

 

— Como é que foram hoje as coisas? — perguntou ela.

 

— Bem.

 

— Foi ver a nova instalação em Waterford?

 

— Hoje, não.

 

Não estivera em Waterford desde fins de outubro. Ordner sabia disso — um passarinho devia ter contado a ele — e daí a nota que lhe enviara. O local da nova instalação era o de uma fábrica de tecidos abandonada e o corretor imobiliário que estava à frente do negócio continuava a telefonar-lhe. Temos que fechar o negócio, continuava a dizer o corretor. Vocês não são os únicos no Westside que estão interessados. Estou indo tão depressa quanto posso, respondera ao corretor. Você vai ter que ser paciente.

 

— E o tal lugar em Crescent? — perguntou a esposa. — A casa de tijolos.

 

— Está fora de nosso alcance — respondeu ele. — Estão pedindo 48 mil por ela.

 

— Por aquele lugar? — perguntou ela, indignada. — Puro roubo!

 

— Claro que é. — Tomou um gole fundo do uísque. — Quais são as novidades da velha Bea, de Baltimore?

 

— As mesmas de sempre. Faz parte nesse momento de um grupo de hidroterapia de aumento de conscientização. Isso não é uma graça? Bart...

 

— Claro que é — respondeu ele rapidamente.

 

— Bart, vamos ter que fazer alguma coisa a este respeito. O 20 de janeiro está chegando e vamos acabar na rua.

 

— Eu estou indo tão ligeiro quanto posso — defendeu-se ele. — Temos que ser simplesmente pacientes.

 

— Aquela pequena casa colonial na Union Street...

 

— ...foi vendida — terminou ele, e terminou a bebida.

 

— Bem, é isso mesmo o que quero dizer — continuou ela, exasperada, — Aquela casa teria sido absolutamente perfeita para nós dois. Com o dinheiro que a municipalidade vai pagar por esta casa e terreno, poderíamos ter tido preferência.

 

— Eu não gostei dela.

 

— Nestes dias você não parece gostar muito de coisa alguma — protestou ela com surpreendente amargura. — Ele não gostou da casa — disse à televisão.

 

A negra cantora estava nesse momento cantando Alfie.

 

— Mary, eu estou fazendo o que posso.

 

Ela virou-se e fitou-o, muito séria.

 

— Bart, eu sei como você se sente a respeito desta casa...

 

— Não, não sabe — disse ele. — Não sabe, absolutamente.

 

21 de novembro de 1973

 

Uma leve camada de neve caíra sobre o mundo durante a noite e quando as portas do ônibus se abriram com um resfôlego, ele pôde ver os rastros das pessoas que haviam estado ali antes. Desceu a Fir Street a partir da esquina, ouvindo o ônibus partir às suas costas com um ronronado de tigre. Nesse momento, Johnny Walker passou por ele, a caminho da segunda coleta da manhã. Johnny acenou-lhe da cabine da caminhonete azul e branca da lavanderia e ele acenou em resposta. Passava um pouco das 8h da manhã.

 

A lavanderia iniciava o dia às 7h, quando Ron Stone, o capataz, e Dave Radner, chefe da lavagem chegavam ao local e aumentavam a pressão da caldeira. As moças que trabalhavam com camisas batiam o ponto às 7:30h e as que guarneciam o passador de alta velocidade começavam às 8h. Ele odiava o térreo da lavanderia, onde era realizado o trabalho bruto, onde a exploração continuava, mas, por alguma razão perversa, os homens e mulheres que ali trabalhavam gostavam dele. Tratavam-no pelo primeiro nome. E com umas poucas exceções, ele gostava deles.

 

Entrou pela porta de carregamento dos motoristas e abriu caminho pelas cestas de lençóis que tinham sobrado da noite anterior e que não haviam sido passados ainda. Todas as cestas eram cobertas cuidadosamente com plásticos para evitar poeira. Na frente da sala, Ron Stone estava apertando a correia acionadora da velha Milnor enquanto Dave e seu ajudante, um evadido de faculdade chamado Steve Pollack, enchiam as máquinas Washex industriais com lençóis de motel.

 

— Bart! — gritou Ron Stone. Ele só falava berrando. Trinta anos falando a pessoas enquanto procurava abafar os ruídos combinados de secadores, calandras, passadoras de camisas e lavadoras haviam introduzido um fole em seu sistema. — Essa Milnor filha da puta continua a emperrar. O programa está tão adiantado para a fase de alvejamento que Dave teve que operá-la no manual. E a secagem continua a pifar.

 

— Nós temos a encomenda da Kilgallon — tranqüilizou-o. — Dentro de mais dois meses.

 

— Na instalação de Waterford?

 

— Claro — respondeu ele, um pouco tonto.

 

— Mais dois meses e vou estar pronto para ser internado num asilo de doidos — disse sombriamente Stone. — E mudar para lá... isso vai ser pior do que um corredor polonês.

 

— Os pedidos vão se acumular, acho.

 

— Acumular! Não compensaremos o atraso nem em três meses. Então será verão. Fred inclinou a cabeça, não querendo continuar com a conversa.

 

— Qual é o pedido que você vai atender primeiro?

 

— O do Holiday Inn.

 

— Envie uns 50kg de toalhas com cada remessa. Você sabe como eles reclamam as toalhas.

 

— O que eu sei é que eles reclamam tudo.

 

— Quantas você recebeu?

 

— Uns 300kg. A maioria como resultado da convenção dos Shriners. A maioria deles ficou até a segunda-feira. Os lençóis mais duros de esperma que jamais vi em toda minha vida. Alguns poderiam até ficar em pé.

 

Fred inclinou a cabeça na direção do novo empregado, Pollack.

 

— Como é que ele está indo?

 

Era grande o giro de jovens ajudantes na Blue Ribbon. Dave tirava o couro deles e os mugidos de Ron deixavam-nos nervosos, mesmo ressentidos.

 

— Legal, até agora — respondeu Stone. — Lembra-se do último? Lembrava-se. O garoto durara três horas ali.

 

— Lembro-me. Qual era o nome dele?

 

A testa de Ron Stone tornou-se tempestuosa.

 

— Não me lembro. Baker? Barker? Alguma coisa assim. Vi-o na Stop and Stop na última sexta-feira, distribuindo panfletos sobre um boicote à alface ou outra coisa qualquer. Que coisa, ahn? Um cara não consegue se segurar num emprego e sai por aí dizendo a todo mundo como é uma vergonha que a América não possa ser igual à Rússia. Isso me corta o coração.

 

— Você atende à encomenda da Howard Johnson em seguida? Stone pareceu magoado.

 

— É sempre a primeira que atendemos.

 

— Por volta das 9h.

 

— Pode apostar o cu nisso.

 

Dave acenou para ele e ele retribuiu. Subiu, passou pela seção de lavagem a seco, cruzou a contabilidade e entrou em seu escritório. Sentou-se na cadeira giratória à escrivaninha e puxou da bandeja tudo o que havia para examinar. Em cima da mesa havia uma plaqueta que dizia:

 

PENSE

 

Isso Talvez Seja uma Nova Experiência

 

Não gostava muito daquela plaqueta mas conservava-a ali porque fora um presente de Mary — quando? Há cinco anos? Suspirou. Vendedores que o visitavam achavam a plaqueta engraçada. Riam feito doidos. Mas também se a gente mostrasse a um vendedor uma foto de menininhos morrendo de fome ou Hitler copulando com a Virgem Maria, eles também ririam feito doidos.

 

Vinnie Mason, a pequena ave que sem dúvida alguma estivera treinando nos ouvidos de Steve Ordner, possuía uma placa em cima de sua mesa que dizia:

 

PEMSE

 

Ora, que tipo de sentido fazia esse Pemse? Nem mesmo um vendedor riria com isso, certo, Fred? Certo, George — correto. Ouviu o ronco de motores diesel no lado de fora e girou a cadeira para olhar. Uma comprida carreta-plataforma com dois bulldozers em cima passava nesse momento pela lavanderia, seguida por uma impaciente fila de carros.

 

Do terceiro andar, por cima da seção de lavagem a seco, podia-se acompanhar o andamento da construção. Ela cortava os bairros comercial e residencial da zona oeste como se fosse uma longa incisão parda, uma cicatriz de operação com uma cataplasma de lama. Já cruzara a Guilder Street e enterrara o parque infantil na Hebner Avenue, onde tinha o costume de levar Charlie quando ele era pequeno... praticamente um bebê, na realidade. Qual era o nome daquele parque? Não sabia. Simplesmente o parquinho da Hebner Avenue, Fred. Havia um campo de beisebol da Pequena Liga, um bocado de meninos pequenos aprendendo a andar e um lago de patos com uma casinha no centro. No verão, o telhado da casinha ficava sempre coberto de merda de ave. E havia também balanços. Charlie experimentara um balanço pela primeira vez no parquinho da Hebner Avenue. O que é que você acha disso, Freddy, meu velho? Ele se assustou da primeira vez, chorou, depois gostou e quando chegou a hora de voltar para casa chorou novamente porque o tirara do balanço. Fizera xixi na calcinha e no assento do carro de volta para casa. Teria tudo isso realmente acontecido há 14 anos?

 

Outra carreta passou, levando um caminhão-caçamba.

 

O quarteirão da Garson fora demolido há quatro meses, o que significava três ou quatro quadras a oeste da Hebner Avenue: uns dois prédios de escritórios cheios de companhias de financiamento, um ou dois bancos, e o resto consultórios de dentistas, quiropráticos e calistas. Aquilo não importava muito, mas, Cristo, como doera ver o velho Grand Theater ser derrubado. Fora ali que assistira a alguns de seus filmes prediletos na década de cinqüenta tais como Disque M para Matar, com Ray Milland. E O Dia em que a Terra Parou, com Michael Rennie. Este último fora reprisado na TV numa noite recente, fizera planos para revê-lo, mas depois caíra no sono em frente ao aparelho e só acordara naquela cena do hino nacional. Derramara um drinque no tapete e Mary ficara uma fera por causa disso.

 

O Grand, porém — aquilo fora realmente outra coisa. Hoje havia nos subúrbios esses cinemas de nova geração, pequenos prédios no meio de 6km de pátios de estacionamento. Cinema I, Cinema II, Cinema III, Sala de Projeção, Cinema MCMXLVn. Levara Mary a um deles em Waterford para assistirem a O Poderoso Chefão, os ingressos haviam custado US$2.50 cada e lá dentro o troço parecia com uma pista de boliche. Nada de galeria. O Grand, porém, possuíra piso de mármore na sala de espera, balcão e uma antiga, linda, graxenta máquina de fazer pipoca, onde um saco grande custava dez centavos. O cara que rasgava o bilhete (que custara 60 centavos) usava uniforme vermelho, como se fosse porteiro de prédio, e tinha pelo menos seiscentos anos de idade. E sempre grasnava a mesma coisa: “Tomara que goste do filme”. Dentro, o grande lustre de vidro. Ninguém nunca se sentava ali embaixo porque, se um dia caísse, a pessoa teria que ser apanhada no chão com uma faca de passar manteiga no pão. O Grand era...

 

Olhou com um sentimento de culpa para o relógio. Quase quarenta minutos haviam passado. Cristo, isso era uma má notícia. Acabara de perder quarenta minutos e nem mesmo estivera pensando esse tempo todo. Só sobre o parque e o Grand Theater.

 

Há algum problema com você, Georgie? Pode haver, Fred. Acho que talvez possa haver.

 

Passou os dedos pelo rosto, embaixo dos olhos e reconheceu pela umidade neles que estivera chorando.

 

Desceu para falar com Peter, que era o encarregado das entregas. A lavanderia funciona a plena carga nesse momento, a calandra batendo e silvando à medida que os primeiros lençóis da Howard Johnson eram colocados sobre seus cilindros, as máquinas de lavar moendo e fazendo vibrar o piso, as máquinas de passar camisas chiando enquanto Ethel e Rhodia davam tudo o que podiam.

 

Peter disse-lhe que as entregas miúdas já haviam sido colocadas no caminhão número quatro e gostaria ele de dar uma olhada, antes de despachá-lo? Ele disse que não. Perguntou a Peter se já fora enviado o material do Holiday Inn. Peter respondeu que o carregamento estava sendo feito nesse momento, mas que o imbecil que dirigia o motel já telefonara duas vezes pedindo as toalhas.

 

Inclinou a cabeça e voltou para o andar superior à procura de Vinnie Mason. Phyllis, porém, disse que Vinnie e Tom Granger tinham ido àquele novo restaurante alemão a fim de regatear sobre a lavagem das toalhas de mesa.

 

— Quer fazer o favor de dizer a Vinnie para me procurar, logo que voltar?

 

— Sim, senhor, sr. Dawes. O sr. Ordner telefonou, perguntando se o senhor vai ligar para ele.

 

— Obrigado, Phyllis.

 

Voltou ao escritório, pegou a correspondência que se acumulara na bandeja ENTRADA e começou e folheá-la.

 

Um vendedor queria visitá-lo para falar sobre um novo alvejante industrial, o Yellow-Go. Onde é que eles descobrem esses nomes, especulou, e pôs a carta de lado, marcando-a para a atenção de Ron Stone. Ron adorava infligir novos produtos a Dave, especialmente se conseguia arrancar grátis uns 250kg do produto a título de experiência.

 

Uma carta de agradecimentos do Fundo Unido. Separou-a para pregá-la no quadro de avisos no térreo, que ficava ao lado do relógio de ponto.

 

Uma circular sobre mobiliário de escritório, todo ele em pinho executivo. Jogou-a na cesta.

 

Outra circular de um produto que irradiaria uma mensagem e gravaria chamadas até trinta segundos. Eu não estou, estúpido. Desligue, Na cesta.

 

Carta de uma senhora que enviara à lavandeira seis camisas do marido c as recebera de volta com os colarinhos queimados. Separou-a para providencias ulteriores, com um suspiro. Ethel andara bebendo novamente no almoço.

 

Um pacote de teste sobre qualidade de água, oferecido pela universidade. Separou-o para discutir o assunto com Ron e Tom Granger depois do almoço.

 

Circular de uma companhia de seguros, na qual Art Linkletter lhe dizia como ganhar oitenta mil dólares e que tudo que tinha que fazer para isso era morrer Na cesta.

 

Uma carta do corretor imobiliário esperto que estava vendendo a instalação de Waterford, dizendo que uma companhia de calçados manifestara interesse pelo local, a Thom McAn, nada menos que ela, não uma empresazinha de merda, e lembrando-lhe que a opção da Blue Ribbon de compra do local expirava no dia 26 de novembro. Cuidado, executivozinho de merda de lavanderia. A hora da verdade se aproxima. Na cesta.

 

Outro vendedor para Ron, este oferecendo um tirador de manchas com o nome desonesto de Tira Tudo. Juntou a carta à da Yellow-Go.

 

Ia se virando novamente para a janela quando tocou o telefone interno. Vinnie voltara do restaurante alemão.

 

— Mande-o entrar.

 

Vinnie entrou imediatamente. Era um rapaz alto, de uns 25 anos de idade, de compleição azeitonada. Os cabelos pretos estavam penteados à habitual maneira cuidadosamente desarrumada. Usava paletó-esporte vermelho-escuro e calça marrom-escura. Gravata-borboleta. Muito devasso, não acha, Fred? Acho, George, acho.

 

— Como vai, Bart? — perguntou Vinnie.

 

— Ótimo — respondeu ele. — Que história é essa sobre aquele restaurante alemão? Vinnie riu.

 

— Você devia ter estado lá. O velho kraut praticamente caiu de joelhos, de tão feliz em nos ver. Vamos realmente acabar com a Universal quando nos instalarmos no novo terreno, Bart. Ela não havia nem mesmo enviado uma circular, para não falar em representante. Aquele kraut, acho que ele pensava que ia ter que lavar aquelas toalhas de mesa na cozinha. Mas montou um negócio em que você nem acreditaria. Material de cervejaria legítimo. Ele vai acabar com a concorrência. O aroma... Deus! — Bateu com as mãos para sugerir o aroma e tirou um maço de cigarros de um bolso interno do paletó-esporte. — Vou levar Sharon até lá quando ele abrir o negócio. E vou ganhar um desconto de 10%.

 

Em um estranho tipo de superposição, ouviu Harry, o proprietário da loja de armas, dizendo: Damos um desconto de 10% em compras superiores a trezentos dólares.

 

Meu Deus, pensou, comprei mesmo aquelas armas ontem? Comprei, realmente? Aquele compartimento em seu cérebro entrou em regime de escuridão. Hei, Georgie, o que é que você...

 

— Qual é o volume do pedido? — perguntou. Falou em voz um pouco abafada. Pigarreou.

 

— Quatrocentas a seiscentos toalhas de mesa por semana, logo que começar a funcionar. Além de guardanapos. Tudo em linha, autêntico. Quer que tudo seja lavado com Ivory Snow. Eu disse que isso não era problema.

 

Tirava o cigarro da caixa nesse momento, fazendo isso muito devagar, para que ele pudesse ler o nome. Se havia uma coisa em Winnie com que podia realmente antipatizar eram seus cigarros metidos a besta.

 

O nome na caixa dizia:

 

player’s navy cut

 

cigarros

 

médio

 

Ora, quem neste mundo de Deus, exceto Vinnie, fumaria Player’s Navy Cut? Ou King Sano? ou English Ovais? Ou Marvels ou Murads, ou Twists? Se alguma companhia lançasse uma marca chamada Cigarro de Merda ou Pulmões Pretos, Vinnie os fumaria.

 

— Eu disse a ele que poderíamos precisar de dois dias para fazer as entregas — continuou Vinnie, dando-lhe um último vislumbre da caixa, antes de guardá-la — até que nos instalemos em Waterford.

 

— Era sobre isso que eu queria falar com você — disse ele. Dou uma espinafração nele, Fred? Claro, Afunde-o, George.

 

— É mesmo?

 

Acendeu o cigarro com um esguio Zippo de ouro e ergueu as sobrancelhas por trás da fumaça, como se fosse um ator característico britânico.

 

— Recebi ontem um bilhete de Steve Ordner. Ele me pediu para visitá-lo na noite de sexta-feira para uma conversinha sobre a instalação de Waterford.

 

— Oh?

 

— Esta manhã, recebi um telefonema de Steve Ordner enquanto estava lá embaixo conversando com Peter Wasserman. O sr. Ordner quer que eu ligue para ele. Isso dá a impressão de que está profundamente curioso para saber alguma coisa, não?

 

— Acho que sim — respondeu Vinnie, relampejando seu sorriso número dois — Pista escorregadia, guie com cuidado.

 

— O que eu queria saber é quem tornou Steve Ordner assim de repente tão curioso. Era isso o que eu queria saber.

 

— Bem...

 

— Ora, vamos, Vinnie. Vamos acabar com fingimentos entre nós. São l0h, tenho que conversar com Ordner, tenho que conversar com Ron Stone, tenho que conversar com Ethel Gibbs sobre colarinhos queimados. Você andou tirando catota de meu nariz quando eu não estava olhando?

 

— Bem, Sharon e eu fomos a St... à casa do sr. Ordner para jantar no sábado à noite...

 

— E você por acaso disse que Bart Dawes está remanchando no caso do negócio de Waterford, enquanto a ampliação da 784 se aproxima cada vez mais, foi isso?

 

— Bart! — protestou Vinnie. — Aquilo tudo foi perfeitamente cordial. Foi muito...

 

— Tenho certeza de que foi. Como foi também o pequeno bilhete que ele me enviou, convidando me a comparecer ao pelourinho. E acho que nossa pequena conversa telefônica vai ser também perfeitamente cordial. Mas isso não é importante. O importante é que ele convidou você e sua mulher para jantar na esperança de que você batesse com a língua nos dentes e ele não teve motivo para decepcionar-se.

 

— Bart...

 

Ele apontou-lhe um dedo.

 

— Preste atenção ao que vou dizer, Vinnie. Se jogar mais merda como essa no chão para eu escorregar, vai ter que procurar novo emprego. Pode contar com isso.

 

Vinnie ficou chocado, o cigarro praticamente esquecido entre os dedos.

 

— Vinnie, eu quero lhe dizer uma coisa — continuou ele, a voz baixando para o normal. — Sei que rapazes como você ouviram a seis mil conferências sobre como velhos como eu fizeram misérias quando eram da sua idade. Mas você mereceu esta.

 

Vinnie abriu a boca para protestar.

 

— Eu não acho que você tenha me esfaqueado pelas costas — disse ele, levantando a mão para calar o protesto de Vinnie, — Se pensasse isso, sua carta de demissão estaria preparada no momento em que você entrou aqui. Acho simplesmente que você foi estúpido. Chegou àquela grande casa, tomou três drinques antes do jantar, depois sopa e uma salada com cobertura Mil Ilhas e depois do bom e do melhor como prato principal, tudo isso servido por uma empregadinha em uniforme preto, enquanto Carla representava o papel de senhora do castelo — mas não sendo em nada condescendente — e finalmente como sobremesa morangos ou vacínios com creme de leite batido, e como arremate umas duas xícaras de café batizado com conhaque ou Tia Maria, e você simplesmente se abriu todo. Foi mais ou menos assim que aconteceu?

 

— Mais ou menos — murmurou Vinnie, a expressão de seu rosto dividida em três partes de vergonha e duas de ódio obstinado.

 

— Ele começou lhe perguntando como ia Bart. Você disse que Bart estava ótimo. Ele disse que Bart era um cara bacana às pampas, mas não seria ótimo se ele se mexesse um pouco a respeito daquele negócio de Waterford? Você disse sim, claro que seria. Ele disse: Por falar nisso, como é que está indo aquele negócio? Você disse: Bem, esse não é realmente meu departamento. E ele disse: Não me diga, Vincent, que você não sabe o que está acontecendo. E você disse: Tudo o que sei é que Bart não fechou o negócio ainda. Ouvi dizer que o pessoal da Thom McAn está interessado no local, mas talvez isso seja apenas boato. Então ele disse: Bem, tenho certeza de que Bart sabe o que está fazendo. E você disse: Claro, e você tomou outro café com conhaque e ele perguntou se você achava que os Mustangs jogariam as finais, e em seguida você e Sharon voltaram para casa. E sabe quando será convidado novamente para jantar com ele, Vinnie?

 

Vinnie ficou calado.

 

— Será convidado quando Steve Ordner precisar de outra indiscrição. Será nessa ocasião.

 

— Sinto muito — disse mal-humorado Vinnie. Fez menção de levantar-se.

 

— Eu ainda não acabei.

 

Vinnie voltou a sentar e olhou com olhos queimando em fogo lento para um canto da sala.

 

— Eu fazia o seu trabalho há doze anos, sabia? Doze anos. Isso provavelmente lhe parece um tempo danado de comprido. Quanto a mim, quase nem sei para onde foi esse tempo. Mas lembro-me do trabalho o suficiente para saber que você gosta dele. E que você faz um bom trabalho. Aquela reorganização da seção de lavagem a seco, com o novo sistema de numeração... aquilo foi uma obra-prima. Vinnie fitava-o, incrédulo.

 

— Comecei na lavanderia há vinte anos — disse ele. — Em 1953, eu tinha vinte anos de idade. Minha mulher e eu acabávamos de casar. Eu havia completado dois anos de faculdade e Mary e eu íamos esperar, mas estávamos usando o método de coito interrompido, você sabe como é. Nós íamos para o centro da cidade e foi aí que bateu a porta lá embaixo, tomei um susto e tive um orgasmo na hora. Ela engravidou logo. De modo que quando começo a me sentir muito sabido nestes dias, simplesmente lembro a mim mesmo que uma balida de porta foi responsável por eu estar onde estou hoje. É humilhante. Naqueles dias não havia essa lei cheia de buracos sobre aborto. Quando a gente engravidava uma pequena, a gente casava com ela ou dava no pé. Fim das opções. Casei e peguei o primeiro emprego que consegui arranjar e que foi este. Ajudante na sala de lavagem, exatamente o mesmo trabalho que aquele garoto Pollack está fazendo neste minuto. Naqueles dias tudo era feito na mão e toda a roupa tinha que ser tirada molhada das lavadoras c secada em unia grande espremedora Stonington que trabalhava com 250kg de pano molhado. Se a carregássemos errado ela levava o pé da gente. Mary perdeu o bebê no sétimo mês e o médico disse que ela nunca teria outro. Trabalhei como ajudante durante três anos e meu salário limpo por 55 horas de trabalho era 55 dólares. Depois, Ralph Albertson, que era chefe da lavagem naqueles’ dias, meteu-se em uma pequena balida de carro e morreu de ataque cardíaco na rua enquanto ele e o outro cara estavam trocando nomes de companhias de seguro. Ele era um cara bacana. A lavanderia fechou no dia do enterro dele. Depois que ele foi enterrado com todas as honras, procurei Ray Tarkington e pedi o emprego dele. Tinha certeza de que ia conseguir. Sabia de tudo sobre lavagem porque Ralph me ensinara.

 

“Naqueles dias, isto aqui era um negócio de família, Vinnie. Ray e o pai dele, Don Tarkington, eram os donos. Don o herdara do pai, que fundara a Blue Ribbon em 1926. Era um negócio não sindicalizado e acho que o pessoal do trabalho organizado dizia que todos os três Tarkingtons eram exploradores paternalistas de operários e operárias sem educação. E eram. Mas quando Betty Keeson escorregou no chão molhado e quebrou o braço, os Tarkingtons pagaram a conta do hospital e lhe deram dez dólares semanais para o rango até que ela pôde voltar. E todos os Natais eles ofereciam um jantar na sala de marcação — o melhor bolo dc frango que havia, geléia de uva-do-monte, pãezinhos doces, chocolate e a sobremesa que uma pessoa poderia desejar. Don c Ray davam a todas as operárias um par de brincos c a todos os homens uma gravata nova. Eu ainda guardo minhas nove gravatas num armário lá em casa. Quando Don Tarkington faleceu em 1959, usei uma delas 110 enterro dele. Estava fora de moda e Mary disse-me o diabo por causa disso, mas usei-a de qualquer maneira. O local de trabalho era escuro e as horas muito compridas, o trabalho era monótono, mas as pessoas se importavam com a gente. Se a secadora quebrava, Don e Ray desciam para lá como nós todos e, com as mangas das camisas arregaçadas, espremiam à mão aqueles lençóis. Era isso o que significava um negócio de família, Vinnie. Uma coisa assim.

 

“De modo que quando Ralph morreu e Ray Tarkington disse que já havia contratado um cara de fora para dirigir a lavagem, não deu para compreender o que era que estava acontecendo. E Ray disse: Seu pai e você querem que você volte para a faculdade. E eu respondi: maravilhoso, mas com o quê? Com passes de ônibus? E ele me entregou um cheque visado no valor de dois mil dólares. Olhei para o cheque e não acreditei no que estava vendo. Perguntei: O que é isso? E ele disse: Não é muito, mas vai dar pra pagar suas mensalidades, pensão e livros. Quanto ao restante, no verão você trabalha aqui, certo? E eu disse: Há uma maneira como eu possa agradecer ao senhor? E ele disse: Claro, três maneiras. Em primeiro lugar, resgate esse empréstimo. Em segundo, resgate os juros. Em terceiro, traga o que aprender de volta para a Blue Ribbon. Levei o cheque para casa, mostrei a Mary, e ela chorou. Cobriu o rosto com as mãos e chorou.”

 

Vinnie fitava-o nesse momento com uma expressão de completo espanto.

 

— De modo que, em 1955, voltei à faculdade e me formei em 1957. Voltei para a lavanderia e Ray me botou pra trabalhar como chefe dos motoristas. Noventa dólares semanais. Quando paguei a primeira prestação do empréstimo, perguntei a Ray qual seria o juro. Ele disse: Um por cento. Eu disse: O quê? Ele disse: Você ouviu o que eu disse. Você não tem trabalho a fazer? Aí eu disse: Sim, acho melhor ir ao centro e trazer um médico para examinar sua cabeça. Ray riu feito um doido e disse que caísse fora de seu escritório. Paguei o resto do dinheiro em 1960 e quer saber de uma coisa, Vinnie? Ray me deu um relógio. Este relógio.

 

Puxou o punho da camisa para cima e mostrou a Vinnie o Bulova com corrente expansiva de ouro.

 

— Ele disse que isso era um presente atrasado de formatura. Vinte dólares de juros foi tudo o que paguei por minha educação superior e aquele filho de uma puta me dá um relógio de 80 dólares. Com uma gravação nas costas: Com os melhores votos de Don & Ray. The Blue Ribbon Laundry. Nessa ocasião Don já estava enterrado havia um ano.

 

Em 1963, Ray me deu o cargo que você tem hoje, manter de olho a lavagem a seco, arranjar novos clientes e dirigir as filiais de laundromat — apenas naqueles dias só havia cinco, em vez de 11. Fiquei nesse emprego até 1967 e depois Ray me deu este cargo aqui. Há quatro anos, ele teve que vender o negócio. Você conhece essa história, a maneira como aqueles calhordas apertaram as tarraxas nele. Esse fato transformou-o num velho. De modo que hoje somos parte de uma empresa que tem uma dezena de outros negócios — lanchonetes, golfe Ponderosa, aquelas lojas de departamentos com descontos que doem na vista, os postos de gasolina, toda essa merda. E Steve Ordner nada mais é que um capataz metido a besta. Há uma diretoria cm algum lugar em Chicago, ou em Gary, Indiana, que passa talvez 15 minutos por semana tratando da operação Blue Ribbon. Não dá a mínima merda para a operação de uma lavanderia. Não sabe merda nenhuma a esse respeito. Sabe como ler um demonstrativo de lucros e perdas, lá isso sabe. O contador encarregado de custeio diz: Escute. Vão prolongar a 784, passando pela Westside, e a Blue Ribbon fica bem no meio do caminho, juntamente com metade do distrito residencial. E os diretores dizem: Oh, é assim? Quanto querem nos pagar pela propriedade? E é isso. Cristo, se Don e Ray Tarkington estivessem vivos, impetrariam tantos mandados limites na justiça contra aqueles safados do departamento de estradas de rodagem que eles não se livrariam nem no ano 2000. Iriam atrás deles com um bom cacete pontudo. Talvez eles fossem uma dupla de calhordas paternalistas exploradores, mas eles possuíam senso de lugar, Vinnie. Ninguém consegue isso num relatório de custeio. Se estivessem vivos e alguém lhes dissesse que a comissão de estradas ia enterrar a lavanderia embaixo de oito pistas de concreto armado, você teria ouvido os gritos deles daqui até a prefeitura.

 

— Mas eles morreram — disse Vinnie.

 

— Sim, estão mortos, certo. — Sentiu de repente a mente flácida e solta como uma guitarra de amador. O que quer que precisasse dizer a Vinnie se perdera numa massa de assuntos pessoais embaraçosos. Olhe para ele, Freddy, ele não tem a mínima idéia do que estou falando. — Graças a Deus eles não estão aqui para ver isto.

 

Vinnie conservou-se calado.

 

Com um esforço, ele conseguiu controlar-se.

 

— O que estou tentando dizer, Vinnie, é que nisto estão envolvidos dois grupos. Eles e nós. Nós somos gente de lavanderia. Este é o nosso negócio. Eles são contadores especialistas em custos. Esse é o negócio deles. Enviam-nos ordens de lá de cima e temos que cumpri-las. Mas isso é tudo que temos que fazer. Entendeu?

 

— Claro, Bart — disse Vinnie, mas ele percebeu que Vinnie não entendera, absolutamente.

 

Nem ele mesmo tinha certeza de que compreendia.

 

— Muito bem — resolveu. — Vou falar com Ordner. Mas, simplesmente para sua informação, Vinnie, a instalação de Waterford é praticamente nossa. Vou fechar o negócio na próxima terça-feira.

 

Vinnie sorriu, aliviado.

 

— Jesus, isso é maravilhoso.

 

— Sim, é. Tudo está sob controle.

 

No momento em que Vinnie ia saindo, ele gritou:

 

— Mantenha-me informado sobre como está indo aquele restaurante alemão, sim? Vinnie lançou-lhe seu sorriso número um, alegre e cheio de dentes, todos os sistemas em condições de operar.

 

— Claro, Bart.

 

Quando Vinnie saiu, ficou olhando para a porta. Meti os pés pelas mãos nisso, Fred. Não acho que você tenha se saído tão mal assim, George. Talvez tenha perdido o controle no fim, mas é apenas nos livros que as pessoas fazem todas as coisas certas logo na primeira vez. Não, baguncei tudo. Ele saiu daqui pensado que Barton Dawes perdeu algumas cartas de seu baralho. Deus o ajude, ele tem razão, George, tenho que lhe perguntar coisa, de homem para homem. Não, não me desligue. Por que foi que você comprou aquelas armas, George? Por que foi que você fez isso?

 

Estalido, o do disjuntor desligando.

 

Desceu para o térreo e entregou a Ron Stone o material enviado pelos vendedores. Quando se afastava, ouviu Ron berrando, chamando Dave para examinar aquele material, talvez houvesse ali alguma coisa. Dave rolou os olhos para o alto. Havia alguma coisa ali, certo. Uma coisa conhecida como trabalho.

 

Subiu ao seu escritório e ligou para Ordner, esperando que ele estivesse fora, saboreando um de seus almoços líquidos. Nenhuma sorte naquele dia. A secretária completou imediatamente a ligação.

 

— Bart! — exclamou Steve Ordner. — É sempre um prazer conversar com você.

 

— O mesmo digo eu. Estive conversando com Vinnie Mason há alguns momentos e achei que ele pensa que você pode estar um pouco preocupado a respeito da instalação de Waterford.

 

— Deus do céu, não, embora eu de fato pense que, talvez na sexta-feira à noite, pudéssemos resolver alguns pontos...

 

— Eu telefonei principalmente para dizer que Mary não vai poder ir.

 

— Oh?

 

— Um vírus. Ela não ousa ficar cinco segundos longe do sanitário mais próximo.

 

— Oh, sinto muito ouvir isso.

 

Enfie essa simpatia no rabo, seu ordinário.

 

— O médico receitou uns comprimidos e parece que ela está melhor. Mas, você sabe, ela poderia ter uma recaída.

 

— A que horas você pode aparecer por aqui, Bart? Oito horas?

 

— Combinado, oito horas está bem.

 

Isso mesmo, ordinário, perca o Cinema das Noites de Sexta-feira.

 

— Como é que está indo aquele negócio de Waterford, Bart?

 

— Esse é um assunto que é melhor tratarmos pessoalmente, Steve.

 

— Tudo bem. — Outra pausa. — Carla está aqui enviando seus melhores votos. E diga a Mary que Carla e eu...

 

Claro. Sim, blablablá, blabla, blá, blablablá.

 

 

 

22 de novembro de 1973

 

Acordou com uma sacudidela que jogou no chão o travesseiro, receoso de que pudesse ter gritado. Mary, porém, continuava a dormir na outra cama, uma trouxa silenciosa. O relógio digital na cômoda informava:

 

4:23H da manhã

 

O relógio deu um clique e passou para o minuto seguinte. A velha Bea, de Baltimore, a que fazia hidroterapia para expandir a consciência, dera-lhes o relógio de presente no último Natal. Não fazia restrições ao relógio, mas nunca conseguira acostumar-se com aquele clique quando os números mudavam: 4:23 clique, 4:24 clique, dava para enlouquecer uma pessoa.

 

Foi até o banheiro, acendeu a luz e urinou. Urinar fez com que o coração batesse forte no peito. Ultimamente, quando urinava, o coração batia alto como um bombo. Está tentando me dizer alguma coisa, Deus?

 

Voltou à cama e deitou-se, mas o sono demorou muito a vir. Debatera-se muito quando estivera dormindo e a cama fora transformada em território inimigo. Não conseguiu ajeitá-la novamente. E braços e pernas pareciam ter também esquecido como se arrumavam quando ele dormia.

 

O sonho era muito fácil de interpretar. Nenhum problema aí, Fred. A pessoa podia operar aquele disjuntor de circuito com toda tranqüilidade quando estava acordado; continuar a colorir uma imagem peça por peça e fingir que não podia ver o resultado completo. Podia enterrar o grande quadro sobre o chão da mente. Mas havia um alçapão. Quando o cara dormia, o alçapão abria-se às vezes com estrondo e alguma coisa esgueirava-se para a escuridão. Clique.

 

4:23H DA MANHÃ.

 

No sonho, estivera em Pierce Beach com Charlie. (Engraçado, quando fizera para Vinnie Mason aquela autobiografia resumida esquecera de mencionar Charlie. Isso não é engraçado, Fred? Não, não acho que seja tão engraçado assim,. George. Nem eu, Fred. mas é tarde. Ou cedo. Ou alguma coisa.)

 

Ele e Charlie estavam naquela longa praia branca e fazia um dia lindo para estar na praia — céu azul brilhante e o som brilhando como a face de um daqueles botões sorridentes idiotas. Pessoas deitadas em toalhas berrantes e sob barracas de muitas tonalidades, menininhos brincando na beira d’água com baldes de plástico. Um salva-vidas em sua torre caiada de branco, a pele tão marrom como um sapato, a entreperna de seu calção de banho de látex arqueando-se bojuda, como se o tamanho de pênis e testículos fosse um pré-requisito para aquele trabalho e como se ele quisesse que todos ali na área soubessem que estava vigilante. O radiotransmissor de alguém berrava um rock and roü e mesmo nesse momento podia lembrar-se da música:

 

Mas eu amo aquela água suja,

 

Oh, Boston, você é meu lar.

 

Duas mocinhas passaram em seus biquínis, seguras e sensatas dentro de corpos belos e tratáveis, nunca por nós mas por namorados que nunca ninguém via, os dedos dos pés levantando pequenos leques de areia.

 

Apenas a coisa era engraçada, Fred, porque a maré estava chegando e não havia maré em Pierre Beach porque o oceano mais próximo ficava a 1.500km de distância.

 

Ele e Charlie construíam nesse momento um castelo de areia. Mas haviam-no começado perto demais da água e as ondas que chegavam aproximavam-se cada vez mais.

 

A gente tem que fazer o castelo mais para trás, papai, dissera Charlie, mas ele era teimoso e continuara a construí-lo. Quando a maré trouxe a primeira água até a primeira muralha, ele cavara um fosso com os dedos, abrindo a areia úmida como se fosse vagina de mulher. A água continuou a vir.

 

Droga!, gritara com a água.

 

Reconstruíra a muralha. Uma onda derrubara-a. Pessoas começaram a gritar a respeito de alguma coisa. Outras corriam. O apito do salva-vidas cortou o ar como se fosse uma flecha de prata. Não levantou a vista. Tinha que salvar o castelo. Mas a água continuava a chegar, lambendo-lhe os calcanhares, derretendo uma torre, um telhado, os fundos do castelo, todo ele. A última onda retirou-se, deixando apenas área comum, lisa e plana, parda e brilhante.

 

Ouviu mais gritos. Alguém chorava. Levantou a vista e viu que o salva-vidas estava aplicando respiração boca a boca em Charlie. Charlie estava molhado e branco, com exceção dos lábios e pálpebras, ambos azuis. O peito dele não subia e descia. O salva-vidas parou de tentar. Sorria.

 

Ele foi num lugar onde perdeu o pé, dizia nesse momento, sorrindo. Não era ocasião de ir ajudá-lo?

 

Gritara: Charlie!, e fora nessa ocasião que acordara, receoso de ter realmente gritado.

 

Ficou deitado ali na escuridão durante muito tempo, escutando o relógio digital e fez força para não pensar no sonho. Finalmente, levantou-se para ir tomar um copo de leite na cozinha e só quando viu o peru degelando na pedra da cozinha é que se lembrou que era Dia de Ação de Graças e que naquele dia a lavanderia estaria fechada. Bebeu de pé o leite, olhando pensativo para o corpo depenado. A cor da pele do peru era a mesma cor da pele do filho no sonho. Mas Charlie não se afogara, claro.

 

Ao voltar para a cama, Mary murmurou alguma coisa em tom de interrogação, alguma coisa abafada e indecifrável por causa do sono.

 

— Nada — disse. — Vá dormir.

 

Ela murmurou mais alguma coisa.

 

— Tudo bem — disse ele na escuridão. Ela dormiu.

 

Clique.

 

Eram 5:5h da manhã. Quando finalmente cochilou, o amanhecer entrara sorrateiro no quarto como se fosse um ladrão. Seu último pensamento foi para o peru de Ação de Graças, ali na pedra da cozinha sob o brilho da fria luz florescente do teto, carne morta esperando estupidamente para ser devorada.

 

 

 

23 de novembro de 1973

Aos cinco minutos para as 8 subiu com seu LTD de dois anos de idade na entrada de automóveis de Stephan Ordner e parou atrás do Delta 88 verde-garrafa do dono. A casa era uma esparramada estrutura de pedra, discretamente recuada da Henreid Drive e em parte oculta por um alto alfeneiro nesse momento esquelético no nevoento fim de outono. Estivera ali antes e conhecia muito bem o local. No térreo havia uma lareira maciça forrada de pedra e outras, mais modestas, nos quartos no primeiro andar. Todas elas funcionavam. No porão havia uma mesa de bilhar

 

Brunswick, uma tela de cinema para sessões em casa, um sistema de som KLH que Ordner convertera em quatro-em-um no ano anterior. Fotos dos dias de basquetebol universitário de Ordner decoravam as paredes. Ele media l,95m de altura e ainda se mantinha em forma. Ordner tinha que baixar a cabeça quando passava por portas e desconfiava que ele se orgulhava disso. Talvez ele tivesse mandado reduzir os vãos das portas para poder se abaixar ao passar por elas. A mesa da sala de jantar era uma prancha maciça de carvalho polido de três metros de comprimento. Uma cômoda alta também de carvalho completava o conjunto, brilhando luxuosamente através de seis ou oito mãos de verniz. Na outra extremidade da sala havia um alto armário de porcelanas — oh, mais ou menos l,95m, não acha, Fred? Acho, mais ou menos isso. Nos fundos da casa havia uma churrasqueira em plano mais baixo, de tamanho quase suficiente para assar um dinossauro, e um campo de golfe. Nada de piscina em forma de rim. Piscinas em forma de rim eram consideradas insípidas naqueles dias. Eram reservadas estritamente para os classes médias do sul da Califórnia, adoradores de Ra. Os Ordners não tinham filhos, mas sustentavam um garoto coreano, um garoto sul-vietnamita, e estavam custeando os estudos de um ugandense na escola de engenharia, de modo que ele pudesse voltar para casa e construir usinas hidrelétricas. Eram democratas e haviam sido democratas por Nixon.

 

Seus pés sussurraram pela calçada e tocou a campainha. A empregada abriu a porta.

 

— Sr. Dawes — disse ele.

 

— Naturalmente, senhor. Queira me dar seu casaco. O sr. Ordner espera-o no gabinete.

 

— Obrigado.

 

Entregou-lhe o sobretudo e desceu o corredor, passando pela cozinha e a sala de jantar. Apenas um vislumbre para a grande mesa e a Cômoda Monumento a Stephan Ordner. O tapete terminou e cruzou um vestíbulo de linóleo preto e branco axadrezado, os pés estalando de leve.

 

Chegou à porta do gabinete, que foi aberta por Ordner no momento em que estendia a mão para a maçaneta, como sabia que Ordner faria.

 

— Bart! — exclamou Ordner.

 

Trocaram um aperto de mãos. Ordner usava uma jaqueta marrom de tecido canelado com falsos remendos de couro nos cotovelos, calça cor-de-azeitona, e chinelos Burgundy. Sem gravata.

 

— Oi, Steve. Como vão as finanças? Ordner grunhiu teatralmente.

 

— Terríveis. Leu ultimamente as páginas dos jornais sobre o mercado de ações? Mandou-o entrar com um gesto e fechou a porta. Paredes forradas de estantes. À esquerda, uma pequena lareira com toras elétricas. No centro, uma grande escrivaninha com alguns papéis. Sabia que naquela escrivaninha havia um Selectric IBM enterrado em algum lugar. Apertando-se o botão certo, ele apareceria no tampo da mesa como se fosse um lustroso torpedo preto.

 

— O mercado bateu no fundo do poço — disse ele. Ordner fez uma careta.

 

— Isso é eufemismo. Mas pode confiar em Nixon, Bart. Ele acha um uso para tudo.

 

Quando torpedearam a teoria do dominó lá no sudeste da Ásia, ele simplesmente aproveitou-a e usou-a na economia americana. Lá, foi um fracasso. Aqui, funciona que é uma maravilha. O que é que vai beber?

 

— Um uísque com gelo seria ótimo.

 

— Tenho aqui mesmo.

 

Foi até um armário de portas dobrável, tirou uma garrafa de um quinto de uísque escocês, dessas pela qual a gente só recebe uns trocados em moedinha quando paga com uma nota de dez dólares numa loja que dá desconto, c serviu uma dose farta sobre dois cubos de gelo em um copo pequeno. Entregou-lhe a bebida, dizendo:

 

— Vamos nos sentar.

 

Sentaram-se em poltronas bergère ao lado da lareira elétrica. Ele pensou: Se eu jogasse meu drinque aí, poderia explodir essa droga de lareira. Quase fez isso, também.

 

— Carla também não pode ficar para fazer sala — disse Ordner. — Um dos grupos de que faz parte está patrocinando um desfile de modas. A renda será doada a uma lanchonete de adolescentes em Norton.

 

— O desfile é lá?

 

Ordner pareceu espantado.

 

— Em Norton! Diabo, não. Em Russell. Eu não permitiria que Carla fosse a Landing Strip nem mesmo acompanhada de dois guarda-costas e um cão policial. Há um padre... Drake, acho que é esse o nome dele. Bebe pra caramba, mas aqueles garotos adoram-no. Ele serve como uma espécie de ligação. Padre de rua.

 

— Oh.

 

— Isso mesmo.

 

Olharam para o fogo durante um minuto. Tomou metade do uísque.

 

— A questão da instalação de Waterford veio à baila na última reunião da diretoria — disse Ordner. — Em meados de novembro. Tive que confessar que estava meio desatualizado nesse assunto. Eu... bem, eles me deram a missão de descobrir exatamente qual é a situação. Nenhuma censura à sua administração, Bart...

 

— Nem interpretada assim — disse ele, e tomou mais um pouco de uísque. Nada mais havia ali, exceto algumas gotas de álcool presas entre os cubos de gelo e o copo.

 

— É sempre um prazer quando nossos trabalhos coincidem, Steve.

 

Ordner pareceu satisfeito.

 

— De modo que, qual é a história? Vin Mason me disse que o negócio não foi fechado.

 

— Vinnie Masson tem um curto-circuito entre o pé e a boca.

 

— Então está fechado?

 

— Fechando. Espero assinar os papéis de nossa ida para Waterford na próxima sexta-feira, a menos que surja algum empecilho.

 

— Disseram-me que o corretor lhe fez uma proposta muito razoável, que você recusou.

 

Ele olhou para Ordner, levantou-se e soltou as gotas de álcool.

 

— Você não ouviu isso de Vinnie Mason.

 

— Não.

 

Voltou para a poltrona bergère e o fogo elétrico.

 

— Acho que você não me diria onde ouviu contar isso? Ordner abriu as mãos.

 

— É uma questão de negócio, Bart. Quando ouço algum boato, tenho que checá-lo... mesmo que todo meu conhecimento pessoal e profissional de um homem indique que alguma coisa está furada. É uma coisa chata, mas não há razão para irritar-se com isso.

 

Freddy, ninguém sabia nada a respeito daquela recusa, salvo o corretor e eu. O velho Sr. Apenas Questão de Negócio fez uma pequena investigação pessoal, é o que parece. Mas isso não é razão para me irritar, certo? Certo. Devo mandar bala nele e afundá-lo, Freddy? É melhor ficar frio, George. E eu iria com calma na bebida.

 

— A importância que recusei foi 450 mil — disse. — Apenas para constar, foi isso o que ouviu?

 

— Por aí.

 

— E essa soma lhe pareceu razoável?

 

— Bem — disse Ordner, cruzando as pernas —, na verdade, pareceu. A municipalidade avaliou a velha instalação em 620 mil c uma caldeira pode ser transportada de um lado a outro da cidade. Claro, não há muito espaço para ampliação, mas o pessoal da diretoria diz que desde que a instalação principal já alcançou praticamente o tamanho ideal, não há necessidade de espaço extra. Achei que poderíamos pelo menos empatar, talvez obter algum lucro... embora essa não fosse a consideração principal. Temos que nos mudar, Bart. E tão logo que for possível.

 

— Talvez você tenha ouvido mais alguma coisa. Ordner recruzou as pernas e suspirou.

 

— Para dizer a verdade, ouvi. Ouvi dizer que você recusou 450 mil e que em seguida a Thom McAn apareceu e ofereceu 500 mil.

 

— Um oferecimento que o corretor, de boa-fé, não pode aceitar.

 

— Ainda não, mas nossa opção vence na terça-feira. Você sabe disso.

 

— Sim, sei. Steve, deixe-me apresentar dois ou três argumentos, sim?

 

— À vontade.

 

— Primeiro: Waterford vai nos colocar a 4,5km de distância de nossos contatos industriais — isso em média. Isso vai elevar nossas despesas fixas de operação. Todos os motéis estão situados à margem da estrada interestadual. Pior do que isso, nosso serviço vai tornar-se mais lento. A Holiday Inn e a Uojo reclamam como o diabo quando nos atrasamos 15 minutos na entrega das toalhas. Como é que vai ser quando nossos caminhões tiverem que enfrentar o congestionamento do centro da cidade?

 

Ordner estava nesse momento sacudindo a cabeça.

 

— Bart, eles estão ampliando a Interestadual. É por isso que vamos nos mudar, lembra-se? Nossos rapazes dizem que não haverá perda de tempo nas entregas. Elas podem até se tornar mais rápidas, com emprego da extensão. E dizem também que as empresas de motéis já compraram boas terras em Waterford e Russell, perto do local onde vai ficar o novo trevo rodoviário. Indo para Waterford, vamos melhorar nossa posição, não piorá-la.

 

Dei uma topada, Freddy. Ele está olhando para mim como se eu tivesse perdido todas as minhas bolinhas de gude. Certo, George. Correto. Ele sorriu.

 

— Tudo bem. Argumento aceito. Mas esses outros motéis não entrarão em funcionamento ainda por um ano, Talvez dois. E se essa crise de energia for tão grave quanto parece...

 

Em voz medida, Ordner disse:

 

— Isso é uma decisão de política, Bart. Nós somos apenas dois soldados rasos. Cumprimos ordens.

 

Bart achou que havia nessas palavras uma ponta de censura.

 

— Tudo bem. Mas eu queria que minha opinião constasse da ata.

 

— Tudo bem. Consta. Mas eu não formulo a política, Bart. Quero que isso fique perfeitamente claro. Se o abastecimento de gasolina secar e todos os motéis fecharem, vamos levar uma patada, juntamente com todo mundo. Enquanto isso, é melhor deixar que os rapazes da diretoria se preocupem com o caso enquanto nós fazemos nosso trabalho.

 

Fui repreendido, Fred. Quanto a isso, não há dúvida, George.

 

— Tudo bem. Eis o resto. Calculo que serão necessários 250 mil dólares em reformas antes que a instalação de Waterford possa produzir um centavo de lucro.

 

— O que?

 

Ordner bateu com força o drinque na mesa. Ali, Freddy. Você atingiu um nervo exposto dele.

 

— As paredes estão cheias de caruncho. Alvenaria nos lados norte e leste desmoronou na maior parte, virou pó. E os pisos estão em tal estado que a primeira lavadora industrial que colocarmos neles vai acabar caindo no porão.

 

— Essa estimativa é firme? De 250 mil?

 

— Firme. Vamos precisar de uma nova chaminé. Novos pisos, no térreo e nos andares superiores. E vamos precisar de cinco eletricistas, trabalhando durante duas semanas, para cuidar da parte elétrica. A fiação do local é para apenas dois circuitos de 40 volts e vamos precisar de cinco Ilações para 50. E desde que vamos ficar na extremidade mais distante das linhas dos serviços de utilidade pública da municipalidade, posso lhe prometer que nossas contas de energia e água vão subir em uns 20%. Podemos tolerar o aumento de 20% em energia, mas não preciso lhe dizer o que um aumento de 20% no custo da água significa para uma lavanderia.

 

Ordner fitava-o nesse momento, chocado.

 

— Esqueça o que eu disse sobre o aumento nos serviços de utilidade pública. Isso se inclui em despesas fixas de operação, não em reformas. De modo que, onde era que eu estava? A instalação tem que ter a fiação mudada para cinco de 50 volts. Vamos precisar de um bom alarma contra ladrões e um sistema de televisão de circuito fechado. Novo isolamento térmico. Novo telhado, Oh, sim, e de um sistema de drenagem. Lá na Fir Street estamos em terreno alto, mas a Douglas Street fica no fundo de uma bacia natural. Só o sistema de drenagem custará alguma coisa entre 40 e 70 mil dólares.

 

— Poxa, como é que Tom Granger não me disse nada disso?

 

— Ele não foi comigo inspecionar o local.

 

— Por que não?

 

— Porque eu disse a ele que ficasse na lavanderia.

 

— Você fez o quê?

 

— Aquele foi o dia em que a fornalha apagou — explicou ele pacientemente. — As encomendas estavam se empilhando e não havia água quente. Tom teve que ficar lá. Ele é o único na lavanderia que consegue falar com aquela fornalha.

 

— Ora, Cristo, Bart, você não poderia tê-lo levado lá noutro dia? Ele acabou a bebida e disse:

 

— Não vi a vantagem disso.

 

— Você não viu a... — Ordner não conseguiu terminar a frase. Pôs o copo na mesa e sacudiu a cabeça, como um homem que acaba de levar um soco. — Bart, você sabe o que isso vai significar se sua estimativa estiver errada e perdermos aquela instalação? Vai significar seu emprego, é isso o que vai significar. Se você for posto no olho da rua, o que é que vai dizer a Mary? É isso o que você quer?

 

Você não compreenderia, pensou ele, porque nunca fez um movimento a menos que estivesse coberto de seis maneiras diferentes e tivesse três bodes expiatórios prontos para assumir a culpa. Foi assim que você terminou com 400 mil dólares em ações e fundos, um Delta 88, e uma maquina de escrever que salta da escrivaninha como se fosse uma caixa de surpresas idiota. Seu merda estúpido. Eu poderia engabelar você pelos próximos dez anos. E talvez faça isso mesmo, também.

 

Sorriu para o rosto tenso de Ordner.

 

— Esse é o meu último argumento, Steve. É por isso que não estou preocupado.

 

— O que é que você quer dizer com isso?

 

Alegremente, ele mentiu:

 

— A Thom McAn já avisou ao corretor que não está interessada na instalação. Mandaram seu pessoal examiná-lo e eles a vetaram aos gritos. De modo que você tem minha palavra que o local é uma merda de caro por 450 mil. O que você tem também é uma opção que se vence na terça-feira. E também um corretor esperto chamado Monohan, que vem blefando e fazendo com que a gente cague nas calças. Quase que funcionou.

 

— O que é que você está sugerindo?

 

— Estou sugerindo que deixa a opção expirar. Que fiquemos na moita até a próxima quarta-feira, mais ou menos. Você fala com nosso pessoal de custos e contabilidade sobre esse aumento de 20% no preço das utilidades públicas. Eu falo com Monohan. Quando eu acabar com ele, ele vai estar de joelhos pedindo que a gente compre por 200 mil.

 

— Bart, você tem certeza?

 

— Claro que tenho — disse ele, e sorriu tenso. — Eu não ia arriscar o pescoço se soubesse que alguém ia me passar a perna.

 

George, o que é que você esta fazendo???

 

Cale essa boca, cale essa boca, não me chateie agora.

 

— O que temos aqui — continuou ele — é um corretor esperto sem comprador. Temos condições de escolher o momento. Todo dia em que o mantivermos na corda bamba é outro dia em que o preço cai, até comprarmos.

 

— Tudo bem — disse lentamente Ordner. — Mas vamos deixar uma coisa clara, Bart. Se não exercermos a opção e depois alguém de fato comprar aquela instalação, vou ter que demiti-lo. Nada...

 

— Eu sei — disse ele, subitamente cansado. — Nada de pessoal.

 

— Bart, tem certeza de que não pegou o vírus de Mary? Você parece um pouco abatido hoje à noite.

 

Você também parece um pouco abatido, seu idiota.

 

— Eu ficarei bem quando tudo isto estiver resolvido. Isso tudo tem me provocado muito tensão.

 

— Claro que tem. — Ordner arrumou o rosto em linhas de solidariedade humana. — Eu tinha quase esquecido... sua casa também fica bem no meio do eixo da estrada.

 

— Fica, sim.

 

— Arranjou outro lugar para morar?

 

— Bem, estamos de olho em uns dois lugares. Eu não ficaria surpreso se fechasse o negócio da lavanderia e meu negócio particular no mesmo dia.

 

Ordner sorriu.

 

— Deve ser a primeira vez em sua vida em que você negociou e fechou negócios de 300 mil a um milhão de dólares entre o amanhecer e o anoitecer.

 

— Sim, vai ser um dia e tanto.

 

De volta para casa, Freddy continuou a tentar conversar com ele — na verdade, gritar — e ele teve que acionar continuamente o disjuntor. E estava justamente entrando na Crestallen Street West quando o disjuntor fundiu com um cheiro de sinapses fritas e axônios sobrecarregados. Todas as perguntas espirraram e ele pisou com os dois pés no freio. O LTD parou com um guincho de pneus no meio da rua e foi lançado contra o cinto do assento com força suficiente para trancá-lo e provocar-lhe um grunhido no estômago.

 

Quando recuperou o controle de si mesmo, encostou lentamente no meio-fio. Desligou o motor, apagou os faróis, desafivelou o cinto de segurança e ficou sentado ali, tremendo, com as mãos no volante.

 

Do lugar onde estava via a rua curvando-se suavemente, os postes de iluminação formando um gracioso anzol de luzes. Era uma rua bonita. A maioria das casas que a margeavam havia sido construída no período do pós-guerra, 1946-1958, mas, por um milagre, escapara de alguma maneira da Síndrome das Caixas de Biscoito da década de cinqüenta e as doenças que a acompanhavam: fundações que se dissolviam, gramados que ficavam carecas, proliferação de brinquedos, velhice prematura dos carros, pintura que despelava, janelas de inverno de plástico.

 

Conhecia os vizinhos. Por que não? Ele e Mary moravam na Crestallen Street há quase 14 anos. Isso era muito tempo. Os Upslingers, que moravam na casa vizinha, rua acima. O filho deles, Kenny, entregava o jornal da manhã. Os Langs, do outro lado da rua; os Hobarts, duas casas abaixo (Linda Hobart servira de baby-sitter para Charlie e nesse momento era estudante de pós-graduação no City College); os Stauffers; Hank Albert, cuja esposa falecera de enfisema quatro anos antes; os Darbys, e apenas quatro casas além do local onde estava nesse momento estacionado; os Quinns. E uma dúzia de outras famílias que ele e Mary conheciam de vista — principalmente as que tinham crianças pequenas.

 

Uma boa rua, Fred. Uma boa vizinhança. Oh, eu sei como os intelectuais escarnecem dos subúrbios — não é tão romântico como as casas de cômodos infestadas de ratos ou aquele movimento em prol da vida natural e volta à natureza. Nos subúrbios não há grandes museus, grandes florestas, grandes desafios.

 

Mas houve bons momentos. Eu sei o que é que você está pensando, Fred. Bons tempos, mas o que são os bons tempos? Não há grandes alegrias nos bons tempos, nem grandes mágoas, nem grandes vazios. Simplesmente blablablá. Churrascos no fundo do quintal no anoitecer do verão, todo mundo um pouco alto mas ninguém ficando realmente bêbado ou desagradável. Carros solidários para todos irem ver os Mustangs jogar. Os safados dos Mustiés que nem mesmo conseguiram vencer os Pats naquele ano em que as apostas estavam na base de 1-12. Convidando amigos para jantar e indo jantar fora. Jogar golfe no campo do Westside ou levar as esposas para Ponderosa Pines e dirigir aqueles pequenos Karts. Lembra-se da vez em que Bill Stauffer atravessou a cerca de madeira num deles e caiu na piscina de um vizinho? Sim, lembro-me, George, nós todos rimos como uns alucinados. Mas George...

 

De modo que, tragam os buldôzeres, certo, Fred? Vamos enterrar tudo aquilo. Logo depois haverá outro subúrbio, lá em Waterford, onde até este ano nada havia, exceto um bocado de terras devolutas. A Marcha do Tempo. O Progresso em Revista. Bebês de um Bilhão de Dólares. Um bocado de caixas de biscoitos salgados pintados de cores diferentes. Canos plásticos que vão congelar todos os invernos. Madeira de plástico. Tudo de plástico. Porque Moe da Comissão de Estradas disse a Joe, na Comissão de Construção, e Sue que trabalha em frente à escrivaninha de Joe disse a Lou, na Comissão de Construção de Lou, e antes de muito tempo vai começar a toda força a grande especulação imobiliária em Waterford, conjuntos residenciais vão começar a brotar nos lotes vazios e também altos prédios de apartamentos, os condomínios. Você consegue uma casa na Lilac Lane, que se cruza com a Spain Lane, que vai para o norte e a Dain Lane, que vai para o sul. Você pode escolher Elm Street, Oak Street, Cypress Street, White Pine Blister Street. Todas as casas com banheiro completo no térreo, meio banheiro no primeiro andar, e uma falsa chaminé no lado leste. E se voltar para casa bêbado pode mesmo encontrar sua própria droga de casa.

 

Mas George...

 

Cale essa boca, Fred, eu estou falando. E onde estão seus vizinhos? Talvez eles não fossem muita coisa, esses vizinhos, mas você sabia quem eram. Você sabia a quem pedir emprestada uma xícara de açúcar quando ficava desprevenido. Onde estão eles? Tony e Alicia Lang estão em Minnesota porque ele pediu transferência para um novo território e conseguiu. Os Hobarts mudaram-se para Northside. Hank Albert conseguiu um lugar para morar em Waterford, é verdade, mas quando voltou da assinatura dos papéis parecia um homem que usava uma máscara de felicidade. Eu vi os olhos dele, Freddy. Parecia alguém que acabara de ter as pernas amputadas e estava tentando fazer com que todos acreditassem que esperava ansioso para ganhar suas novas pernas plásticas porque elas não ficariam com feridas se ele por acaso batesse com eles numa porta. De modo que nos mudamos e onde estamos nós? Apenas dois estranhos sentados numa casa que está sentada no meio de um bocado de outras casas de estranhos. É isso o que nós somos. A Marcha do Tempo, Freddy. É isso o que é. Quarenta anos esperando pelos cinqüenta, esperando pelos sessenta.

 

Esperando por uma bela cama de hospital e um enfermeira bacana para enfiar um cateter em nós. Freddy, quarenta é o fim de se ser e sentir jovem. Bem, na verdade, os trinta são o fim de se ser jovem, quarenta é o momento em que você deixa de tentar enganar-se. Eu não quero envelhecer num lugar estranho.

 

Estava chorando novamente, e sentado em seu carro frio e escuro, chorando como um bebê.

 

George, é mais do que a auto-estrada, mais do que a mudança. Eu sei o que há de errado com você.

 

Cale essa boca, Fred, estou-lhe avisando.

 

Mas Fred não quis calar-se e isso foi ruim. Se não pudesse mais controlar Fred, como jamais conseguiria paz?

 

É o Charlie, não, George? Você não quer enterrá-lo pela segunda vez.

 

— É o Charlie — disse ele em voz alta, abafada, estranha, molhada de lágrimas. — E sou eu. Não posso, realmente, não posso...

 

Arriou a cabeça no peito e deixou as lágrimas rolarem, o rosto contraído e as mãos cobrindo os olhos como qualquer menininho que perdeu por um buraco no bolso da calça o níquel com que ia comprar balas.

 

Quando finalmente ligou o motor e começou a rodar, estava esgotado. Sentia-se seco, oco mas seco. Perfeitamente calmo. Podia mesmo olhar para as casas escuras em ambos os lados da rua, de onde pessoas já haviam se mudado sem tremores.

 

Estamos morando em um cemitério, pensou. Mary e eu, em um cemitério, exatamente igual a Richard Boone naquele filme Enterro os Vivos. As luzes estavam acesas na casa dos Arlins, mas eles iam se mudar no dia 5 de dezembro. E os Hobarts haviam se mudado no último fim-de-semana. Casas vazias.

 

Subindo o asfalto de sua própria entrada de automóveis (Mary estava lá em cima, podia ver o brilho baixo de sua lâmpada de leitura) descobriu-se de repente pensando numa coisa que Tom Granger dissera há umas duas semanas. Ia falar com Tom a esse respeito. Na segunda-feira.

 

25 de novembro de 1973

 

Estava assistindo ao jogo entre Mustangs e Chargers na TV em cores e tomando sua bebida particular, Southern Comfort e Seven-Up. Era sua bebida particular porque as pessoas riam quando a tomava em público. Os Chargers estavam à frente por 27-3 no terceiro intervalo. Rucker fora interceptado três vezes. Grande jogo, hem, Fred? Claro que é, George. Não entendo como você pode agüentar essa tensão toda.

 

Mary dormia nesse momento lá em cima. Esquentara no fim-de-semana c nesse momento chuviscava. Ele mesmo sentia-se sonolento. Já tomara três drinques. Houve intervalo na partida e um comercial apareceu na tela. Nele Bud Wilkenson estava dizendo que essa crise de energia era um problema sério e que todo mundo devia insular seus portões e também que o cano da chaminé estivesse fechado, a menos que estivesse tostando marshmallows, queimando feiticeiras ou fazendo alguma outra coisa. O logotipo da companhia patrocinadora do comercial apareceu no fim: um tigre feliz olhando para você por cima de uma tabuleta que dizia:

 

EXXON

 

Pensou que todo mundo devia ter sabido que dias aziagos se avizinhavam quando a Esso mudou o nome para Exxon. Esso escorria facilmente da boca como o som de um homem que relaxa numa rede. Já Exxon parecia o nome de um caudilho do planeta Yurir.

 

— Exxon exige que todos os insignificantes terráqueos deponham suas armas — disse. — Fora esses insignificantes porcos terráqueos.

 

Soltou uma risadinha e preparou outro drinque. Não teve nem mesmo que se levantar: o Southern Comfort, a garrafinha de Seven-Up e a tigela plástica de gelo estavam ali mesmo numa mesinha redonda ao lado da poltrona.

 

De volta ao jogo. Os Chargers marcaram um ponto. Hugh Fednach, o homem dos Mustangs que jogava avançado, pegou a bola e correu para a linha 31 de seu time. Em seguida, sob o olhar duro como aço de Hank Rucker, que poderia ter visto o Troféu Heisman alguma vez num noticiário, os Mustangs fizeram um avanço de 60 jardas. Gene Voreman marcou para seu time. Andy Cocker, dos Chargers, levou a bala até a linha 46 dos Mustangs. E assim continua, como Kurt Vonnegut observara tão perspicazmente. Lera todos os livros de Kurt Vonnegut. Gostava deles principalmente porque eram engraçados. No noticiário da semana passada soubera que o departamento de educação de uma cidadezinha chamada Drake, em Dakota do Norte, mandara queimar exemplares do romance de Vonnegut, Slaughterhouse Five, que tratava do bombardeio incendiário da cidade de Dresden. Quando se pensava bem nisso, descobria-se uma engraçada ligação nos dois casos.

 

Fred, por que essas bestas do departamento de estradas de rodagem não constroem o prolongamento da 784 passando por Drake? Aposto que adorariam isso. George, isso é uma excelente idéia. Por que não escreve uma carta ao The Blade a esse respeito? Foda-se, Fred.

 

Os Chargers marcaram, transformando o escore em 34-3 — Algumas chefes de torcida cabriolavam no Astroturf, rebolando os bumbuns. Caiu num semicochilo e quando Fred começou a atanazá-lo não conseguiu livrar-se dele.

 

George, desde que aparentemente você não sabe o que está fazendo, deixe que eu lhe diga. Deixe que eu lhe diga, com detalhes, meu chapa. (Deixe-me em paz, Fred.) Em primeiro lugar, a opção relativa a instalação de Waterford vai expirar. Isso vai acontecer à meia-noite de terça-feira. Na quarta-feira, a Thom McAn vai fechar o negócio com aquele pequeno e baboso pedaço de merda chamado Patrick J. Monohan. Na quarta-feira à tarde ou na quinta pela manhã, vai ser colocada lá uma grande tabuleta dizendo VENDIDO. Se alguém da lavanderia vir aquilo, você poderá talvez adiar o inevitável dizendo: Claro. Vendido a nós. Mas se Ordner for conferir, você está liquidado. Provavelmente, ele não vai. Mas (Freddy, deixe-me em paz) provavelmente na sexta-feira outra tabuleta vai ser colocada lá. Essa tabuleta dirá:

 

LOCAL DE NOSSA FUTURA FÁBRICA EM

 

WATERFORD

 

CALÇADOS THOM McAN

 

Continuamos a Crescer!!!

 

Na segunda-feira, bem cedinho, você vai perder seu emprego. Sim, da maneira que vejo a coisa, você estará desempregado antes da pausa para o café às l1h da manhã. Depois, pode voltar pra casa e contar a Mary. Não sei quando isso vai acontecer. A viagem de ônibus leva apenas 15 minutos, de modo que possivelmente você poderia encerrar vinte anos de casamento e vinte anos de emprego remunerado em mais ou menos meia hora. Mas, depois de contar a Mary, começa a cena da explicação. Você poderá adiá-la embebedando-se, mas, mais cedo ou mais tarde...

 

Fred, cale essa maldita boca.

 

...mais cedo ou mais tarde você vai ter que explicar exatamente como perdeu o emprego. Você terá simplesmente que confessar. Bem, Mary, o departamento de estradas de rodagem vai derrubar nossa instalação na Fir Street dentro de um mês, mais ou menos, e eu dormi no ponto para conseguir outra. Continuei a pensar que toda essa história do prolongamento da 784 era uma espécie de pesadelo do qual eu ia acordar. Sim, Mary, arranjei uma nova localização... em Waterford, isso mesmo, você entendeu bem —, mas, por algum motivo, não consegui levar a coisa até o fim. Quanto tudo isso vai custar à Amroco? Oh, acho que um milhão ou um milhão e meio, dependendo de quanto tempo vão gastar para arranjar uma nova localização para a lavanderia e quantos negócios vão perder para sempre.

 

Eu estou lhe avisando, Fred.

 

Ou você pode dizer a ela que ninguém conhece melhor esse assunto do que você, George, que a margem de lucro ficou tão estreita que os especialistas em custos poderiam simplesmente levantar as mãos para o céu e dizer: Vamos sucatear todo este troço, caras. A gente simplesmente recebe a indenização paga pela municipalidade e compra uma galeria de jogos eletrônicos em Norton ou uma pista de boliche em Russell ou Crescent. Há prejuízos financeiros potenciais grandes demais neste negócio depois do açúcar que aquele filho da puta do Dawes botou em nosso tanque de gasolina. Você pode dizer isso a ela.

 

Oh, vá pro inferno.

 

Oh, mas este é apenas o primeiro filme e este é um programa duplo, certo? A parte II começa quando você diz a Mary que não há casa nenhuma para se mudarem e que não vai haver nenhuma. E como é que você vai explicar isso?

 

Eu não estou fazendo nada.

 

Exatamente. Você é simplesmente um cara que adormeceu no barco a remo. Mas quando chegar a meia-noite de terça-feira, você vai despencar pelas cataratas, George. pelo amor de Deus, vá procurar Monohan na segunda-feira e torne-o um homem infeliz. Assine na linha pontilhada. Vai ter problemas, de qualquer maneira, com todas aquelas mentiras que contou a Ordner na noite de sexta-feira. Mas pode dar um jeito de se safar disso. Deus sabe que, ria bruta, você se safou antes de coisas piores.

 

Deixe-me em paz. Estou quase dormindo.

 

É o Charlie, não é? Essa é uma maneira de cometer suicídio. Mas não é justo com Mary, George. Não é justo com ninguém. Você é... Sentou-se espigado, derramando o drinque no tapete. — Ninguém, exceto talvez eu.

 

Neste caso, por que comprou aquelas armas, George? O que é que me diz daquelas armas?

 

Tremendo, apanhou o copo e preparou outro drinque.

 

26 de novembro de 1973

 

Estava almoçando com Tom Granger no nicky’s, um restaurante situado a três quadras da lavanderia. Sentados em um reservado, tomando cerveja, esperavam pela refeição. Uma vitrola automática tocava nesse momento Good-bye Yellow Brick Road, de Elton John.

 

Tom comentava o jogo Mustangs-Chargers, que os segundos haviam ganho pelo escore, de 37-6. Tom adorava todos os times da cidade e quando eles perdiam ficava louco. Algum dia, pensou, enquanto escutava Tom demolir toda a equipe dos Mustangs, homem por homem, Tom Granger vai cortar uma das orelhas com um alfinete de lavanderia e enviá-lo ao diretor do clube. Um louco o enviaria ao treinador, que acharia graça e o pregaria no quadro de avisos do vestiário. Tom, porém, enviá-lo-ia ao diretor do clube, que ficaria remoendo aquele presente.

 

A comida chegou, trazida por uma garçonete que usava um terninho de náilon branco. Calculou-lhe a idade em trezentos anos, possivelmente em 304. O peso, a mesma coisa. Um pequeno cartão sobre o seio esquerdo da dita cuja dizia:

 

GAYLE

 

Obrigado por Ter Vindo

 

Nicky’s Diner

 

Tom pedira uma fatia de rosbife que nesse momento flutuava de barriga para cima em uni prato cheio de molho. Quanto a ele, preferira dois cheeseburgers, malpassados, com acompanhamento de batatas fritas. Sabia que os cheeseburgers viriam bem-passados. Fizera refeições antes no Nicky’s. O prolongamento da 784 ia errar o Nicky’s por meia quadra.

 

Comeram. Tom terminou a tirada sobre o jogo da véspera e perguntou-lhe sobre a instalação de Waterford e sua reunião com Ordner.

 

— Vou assinar na quinta ou sexta-feira — disse

 

— Eu pensava que as opções expiravam na terça.

 

Ele contou aquela história que dizia que a Thom McAn resolvera que não queria a instalação de Waterford. Não era nada divertido mentir para Tom Granger. Conhecia-o há 17 anos. Ele nada tinha de espantosamente inteligente. Não havia desafio nenhum em mentir a Tom.

 

— Oh — disse Tom quando ele terminou e o assunto foi encerrado. Tom enfiou o rosbife na boca e fez uma careta. — Por que é que nós comemos aqui? A comida é uma porcaria. Até o café é. Minha mulher faz um café melhor.

 

— Não sei — respondeu ele, aproveitando a abertura. — Mas lembra-se de quando abriu aquele novo restaurante italiano? Nós fomos lá com Mary e Verna.

 

— Lembro-me, em agosto. Verna ainda delira sobre aquele troço à base de ricota... não, regatone. É esse o nome que dão ao prato. Regatone.

 

— E aquele cara que se sentou perto de nós? Aquele cara grandalhão, gordo?

 

— Grandalhão, gordo...

 

Tom continuou a mastigar, tentando lembrar-se. Sacudiu a cabeça.

 

— Você disse que ele era um patife.

 

— Ohhhhhh. — Abriu muito os olhos. Empurrou o prato para a frente e acendeu um Herbert Tareyton, deixando cair o fósforo apagado no prato, onde ele ficou flutuando no molho. — Sim, isso mesmo. Salty Magliore.

 

— Era esse o nome dele?

 

— Era, esse mesmo. Cara grandalhão, óculos de lentes grossas. Um bocado de papada. Salvatore Magliore. Parece a especialidade da casa num puteiro italiano, não? Sally Caolho, era assim que o chamavam porque ele tinha catarata num olho. Mandou tirar há três ou quatro anos na Clínica Mayo... a catarata, não o olho. Sim, um bandidão.

 

— No que é que ele trabalha?

 

— No que é que todos eles trabalham? — perguntou Tom, batendo a cinza do cigarro no prato. — Drogas, putas, jogo, trambiques em investimentos. E no assassinato de outros bandidões. Não leu no jornal? Na última semana. Encontraram um cara na mala de um carro, atrás de um posto de gasolina. Seis tiros na cabeça e a garganta cortada. Isso foi realmente ridículo. Por que alguém quereria cortar a goela de uni cara depois de meter seis balaços na cabeça dele? Crime organizado, é nisso que trabalha Sally Caolho.

 

— Ele tem algum negócio legítimo?

 

— Tem, acho que tem. Ali na Landing Strip, depois de Norton. Vende carros. Revenda Magliore de Carros Usados Perfeitos Garantidos. Um cadáver em cada mala.

 

Tom soltou uma risada e bateu mais cinza no prato. Gayle voltou e perguntou se eles queriam mais café. Os dois queriam.

 

— Consegui hoje aqueles pregos para a porta da caldeira — disse Tom. — Eles me lembram meu pau.

 

— É mesmo?

 

— É e você devia ver aqueles filhos da puta. Vinte e dois centímetros de comprimento por 7,5cm de largura.

 

— Você está se referindo ao meu pau? — perguntou ele, e os dois riram e conversaram sobre negócios até chegar a hora de voltar para o trabalho.

 

Naquela tarde, desceu do ônibus na Barker Street e entrou no Duncan’s, um bar tranqüilo da vizinhança. Pediu uma cerveja e ficou escutando durante algum tempo Duncan a espinafrar o jogo Mustangs-Chargers. Um homem aproximou-se vindo dos fundos e disse a Duncan que a máquina de boliche eletrônico não estava funcionando bem. Duncan foi para os fundos do bar examinar a máquina, ele bebericou a cerveja e ficou olhando a TV. Havia uma novela no ar e nela duas mulheres falavam em tons baixos e apocalípticos sobre um homem chamado Hank. Hank estava voltando para casa, terminada a faculdade, e uma das mulheres acabara de descobrir que ele era filho seu, resultado de um experimento desastroso que ocorrera depois de seu baile de formatura na escola secundária há uns vinte anos.

 

Freddy tentou dizer alguma coisa mas George calou-o imediatamente. O disjuntor de circuito estava funcionando às mil maravilhas. Estivera assim o dia todo.

 

É isso mesmo, seu esquizofrênico cie merda! gritou Fred, e George sentou-se em cima dele. Vá pentear macacos, Freddy. Você é persona non grata por aqui.

 

— Claro, não vou dizer a ele — disse uma das mulheres no cinescópio. — Como é que você espera que eu diga a ele uma coisa dessas?

 

— Simplesmente... conte a ele — aconselhou a outra.

 

— Por que é que eu deveria fazer isso? Por que deveria tirar toda sua vida de órbita por causa de uma coisa que aconteceu há vinte anos?

 

— Vai mentir pra ele?

 

— Não vou contar nada a ele.

 

— Você tem que contar.

 

— Sharon, eu não posso.

 

— Se você não contar, Betty, eu mesma conto.

 

— Aquela merda de máquina está toda fodida — disse Duncan, voltando. — Tem sido um chute no saco desde que a instalei aqui. Agora, o que é que vou ter que fazer? Telefonar para aquela droga da Automatic Industries Company. Esperar vinte minutos até que uma secretária de merda me ponha na extensão certa. Escutar um cara qualquer dizer que estão sobrecarregados mas que vão tentar mandar um cara na quarta-feira. Quarta-feira! Depois, um cara que tem o cérebro entre as bochechas da bunda aparece aqui na sexta-feira, bebe quatro dólares de cerveja grátis, conserta o que estiver errado e provavelmente deixa um gatilho para que outra coisa se quebre dentro de duas semanas, e me diz que não devo deixar que os caras apertem os botões com tanta força. Eu tinha máquinas de boliche mecânicas. Eram boas. Aquelas máquinas quase nunca enguiçavam. Mas isto é progresso. Se eu ainda estiver aqui em 1980, vão levar o Boliche Eletrônico e instalar uma máquina de chupada automática. Quer outra cerveja?

 

— Claro — disse ele.

 

Duncan foi buscar. Ele pôs cinqüenta centavos no tampo do bar e dirigiu-se até a cabine telefônica que ficava ao lado do Boliche Eletrônico quebrado.

 

Descobriu o que estava nas páginas amarelas, sob Automóveis, Novos e Usados. A listagem ali dizia: carros usados Magliore, Est. 16, Norton 892-4576.

 

A estrada 16 transformava-se na Venner Avenue quando o cara entrava mais em Norton. A Vender Avenue era conhecida também como Landing Strip, onde se podiam obter todas as coisas que as páginas amarelas não anunciavam.

 

Colocou uma moeda de dez centavos na ranhura e discou para Carros Usados Magliore. À segunda chamada, uma voz masculina disse:

 

— Carros Usados Magliore.

 

— Fala aqui Dawes — disse ele. — Barton Dawes. Posso falar com o sr. Magliore?

 

— Sal está ocupado. Mas terei prazer em ajudá-lo, se puder. Pete Mansey.

 

— Não, tem que ser o sr. Magliore, sr. Mansey. É a respeito daqueles dois Eldorados.

 

— O senhor está sem sorte — disse Mansey. — Não estamos aceitando carros grandes como entrada pelo resto do ano, por causa desse troço da crise de energia. Ninguém está comprando esses carros. De modo que...

 

— Eu estou comprando — disse ele.

 

— O quê?

 

— Dois Eldorados. Um 1970 e um 1972. Um dourado, o outro creme. Falei com o sr. Magliore sobre eles na semana passada. É negócio fechado.

 

— Oh, certo. Mas ele não está realmente aqui no momento, sr. Dawes. Para dizer a verdade, ele está em Chicago. Só vai chegar lá pelas 11h da noite.

 

Não salão do bar, Duncan estava pendurando um aviso em cima do Boliche Eletrônico. Que dizia:

 

enguiçado

 

— Ele estará aí amanhã?

 

— Sim, com certeza. É um negócio de troca?

 

— Não, compra direta.

 

Ele hesitou por um momento e depois disse:

 

— Isso mesmo. Quatro da tarde seria uma boa hora.

 

— Obrigado, sr. Mansey.

 

— Eu digo a ele que o senhor telefonou.

 

— Faça isso — disse, e colocou com todo cuidado o fone no gancho, sentindo suadas as palmas das mãos.

 

Ao chegar em casa, Merv Griffin estava prosando com celebridades. Nada na correspondência, o que era um alívio. Entrou na sala de estar.

 

Encontrou Mary bebericando uma mistura qualquer de rum quente em uma xícara de chá. Viu uma caixa de lenços de papel ao lado dela. a sala cheirava a Vicks.

 

— Você está bem? — perguntou ele.

 

— Não me beije — respondeu ela e a voz mostrava longínqua semelhança com uma buzina de nevoeiro. — Capotei com alguma coisa.

 

— Pobre menina — disse ele, e beijou-lhe a testa.

 

— Odeio pedir isso a você. Bart, mas você poderia fazer as compras no supermercado hoje à noite? Eu ia com Meg Carder, mas tive que ligar para ela e pedir desculpa.

 

— Claro. Está com febre?

 

— Acho que não. Bem, talvez um pouco.

 

— Quer que eu marque uma hora com Fontainc para ele examiná-la?

 

— Acho que não. Faço isso amanhã, se não me sentir melhor.

 

— Você está realmente rouca.

 

— Estou. Umas pastilhas Vicks, cama logo depois, mas agora... — Encolheu os ombros e sorriu lividamente. — Estou falando igualzinho ao Pato Donald.

 

Ele hesitou por um momento e depois disse:

 

— Amanhã à noite vou me atrasar um pouco.

 

— Oh?

 

— Vou até a Northside dar uma olhada numa casa. Parece que é uma boa coisa. Seis cômodos. Um pequeno quintal. Não muito longe dos Hobarts.

 

Com grande clareza, Freddy disse:

 

— Ora, seu filho da puta ordinário.

 

Mary animou-se.

 

— Mas que maravilhoso! Posso ir com você?

 

— É melhor não, não com esse resfriado.

 

— Eu me agasalho bem.

 

— Na próxima vez — retrucou ele, firme.

 

— Tudo bem — concordou ela. — Graças a Deus você está fazendo alguma coisa a esse respeito. Eu estava preocupada.

 

— Pois não fique.

 

— Não vou ficar.

 

Tomou um gole da zurrapa quente de rum e aconchegou-se a ele. Ele lhe ouviu a respiração fungada, entrando e saindo. Merv Griffin estava batendo um papo com James Brolin sobre seu novo filme, Westworld, que pouco depois estaria sendo exibido em barbearias por todo o país.

 

Depois de algum tempo, Mary levantou-se e pôs os jantares congelados no forno. Ele levantou-se também, mudou o canal da TV para uma reprise de F Troop e esforçou-se para não escutar o que lhe dizia Freddy. Depois de algum tempo, porém, Freddy mudou o tom.

 

Lembra-se de quando comprou sua primeira IV, Georgie?

 

Ele sorriu um pouco, olhando não para Forrest Tucker mas através dele. Lembro-me, Fred. Claro que me lembro.

 

Tinham voltado para casa certa noite, uns dois anos depois de casados, de uma visita aos Upshaws, onde haviam estado assistindo Your Flit Parade e Dan Fortune e Mary lhe perguntara se não achara Donn Upshaw um pouco... Bem, desligada naquela noite. Naquele momento, sentado ali, lembra-se bem de Mary, esguia e estranha e fascinantemente atraente usando aquelas sandálias brancas que comprara para comemorar a chegada do verão. Ela estivera usando bermudas, também, as pernas longas e de potranca parecendo que poderiam subir até o queixo. Na verdade, ele não estivera muito interessado em se ou não Donn Upshaw parecera um pouco diferente. Estivera interessado em tirar Mary de dentro daquelas bermudas apertadas. Era ali que estava seu interesse — para não ser delicado demais nesse particular.

 

— Talvez ela esteja ficando cansada de servir amendoim a metade da vizinhança porque eles são o único na rua que têm um aparelho de TV — dissera ele.

 

Achou que vira uma pequena ruga entre os olhos dela — aquela que sempre significava que Mary estava planejando alguma coisa, mas, por essa altura eles já estavam a meio caminho na escada, a mão dele descendo por cima do assento daquelas bermudas — e que pequeno assento era — e só mais tarde, depois, é que ela disse:

 

— Quanto você acha que custaria um modelo de mesa, Bart? Quase dormindo, ele respondera:

 

— Bem, acho que poderíamos comprar um Motorola por 28, talvez trinta dólares. Mas um Philco...

 

— Rádio, não. Uma TV.

 

Ele se sentara na cama, acendera a luz e a fitara, deitada ali, nua, o lençol cm torno dos quadris. E embora ela sorrisse, achou que ela falava sério. Era o sorriso desafiador dela.

 

— Mary, nós não temos condições dc comprar uma TV.

 

— Quanto custaria um modelo de mesa? Uma GE. ou uma Philco, ou outra marca qualquer?

 

— Nova?

 

— Nova.

 

Ele pensou na pergunta, observando o jogo de sombras do abajur sobre as lindas curvas dos seios dela. Ela fora tão mais esguia nesse tempo (embora ela dificilmente possa ser considerada gorda agora, George, repreendeu ele a si mesmo. Eu nunca disse que ela era, Freddy, meu chapa), de alguma maneira tão mais viva. Até mesmo os cabelos dela irradiavam uma mensagem crepitante: viva, desperta, consciente...

 

— Aí por uns 750 dólares — disse, pensando que esse número apagaria aquele sorriso... mas não apagara.

 

— Bem, olhe aqui — dissera ela, sentando-se à moda indiana na cama, com as pernas cruzadas sob o lençol.

 

— Estou olhando — respondera ele, sorrindo.

 

— Não para isso.

 

Mas ela rira e a vermelhidão descera lindamente do rosto para o pescoço (ela não se cobrira com o lençol, lembrou-se).

 

— No que é que você está pensando?

 

— Por que é que homens querem uma ‘IV? — perguntou ela. — Para assistir a todos os esportes no fim-de-semana. E por que mulheres a querem? Por causa das novelas à tarde. A gente pode assistir enquanto passa a roupa a ferro ou levantar os pés pro ar se seu trabalho já está feito. Agora, vamos supor que nós dois arranjamos alguma coisa para fazer — alguma coisa que renda dinheiro — na ocasião em que não estaríamos fazendo nada...

 

— ...ou lendo um livro ou fazendo amor? — sugeriu ele.

 

— Agente sempre arranja tempo para isso — disse ela, riu e enrubesceu, seus olhos eram escuros à luz do abajur, que lançava uma sombra quente, semicircular entre seus seios, e ele soube naquele instante que ia dar uma televisão a ela, ele lhe teria prometido um modelo Zenith de gabinete se ela apenas deixasse que fizesse amor com ela novamente e, a esse pensamento, começou a endurecer, sentiu a serpente transformar-se em pedra, como Mary dissera certa vez quando bebera um pouco demais na festa de Ano-Novo dos Ridpaths (c nesse instante, 18 anos depois, sentiu a serpente transformar-se novamente em pedra — só de se lembrar).

 

— Bem, tudo bem — dissera ele —, vou arranjar outro emprego nos fins-de-semana e você vai arranjar um à tarde. Mas o que, querida Mary, ou não tão Virgem Mary, nós vamos fazer?

 

Ela saltara sobre ele, rindo, os seios um peso suave em seu estômago, bastante liso naqueles dias, sem nenhum sinal de barriguinha.

 

— Aí é que está o problema — dissera ela. — Que dia é hoje? Dezoito de junho?

 

— Isso mesmo.

 

— Bem, você faz suas coisas no fim-de-semana e no dia 18 de dezembro juntaremos nosso dinheiro...

 

— ...e compraremos uma torradeira — dissera ele, sorrindo.

 

— ...e compraremos aquela TV — dissera ela, solene. — Tenho certeza de que podemos fazer isso, Bart. — Os risinhos voltaram. — Mas o engraçado vai ser que não diremos um ao outro o que faremos depois.

 

— Enquanto eu não vir uma luz vermelha em cima daquela porta quando eu voltar do trabalho amanhã — dissera ele, capitulando.

 

Ela agarrara-o, subira em cima dele, começara a lhe fazer cócegas, que se transformaram em carícias.

 

— Me dê isso — murmurara ela contra seu pescoço, e agarrou-o com suave mas dolorosa pressão, guiando-o e apertando-o ao mesmo tempo. — Enfie em mim, Bart.

 

E depois, novamente no escuro, mãos cruzadas atrás da cabeça, ele dissera:

 

— Nós não diremos um ao outro, certo?

 

— Certo.

 

— Mary, o que foi que provocou isso? O que eu disse sobre Donn Upshaw, que estava cansada de servir amendoim a metade da vizinhança?

 

Não houvera risinhos na voz dela quando respondera. A voz saiu calma, austera e apenas um pouco assustadora: um leve gosto de inverno no quente ar de junho no apartamento de terceiro andar servido por escada apenas, que então ocupavam.

 

— Eu não gosto de explorar ninguém, Bart. E não vou explorar. Nunca.

 

Durante uma semana e meia ele pensara naquela estranha proposta de Mary, perguntando a si mesmo exatamente o que devia fazer para contribuir com sua parte dos 750 dólares (e provavelmente com mais de três quartas partes dessa soma, do modo como acabara a coisa, pensou) nos vinte e tantos fins-de-semana seguintes. Estava um pouco velho para aparar a grama dos vizinhos a 25 centavos cada jardim. E Mary estava com uma expressão — uma expressão assim como quem sabia das coisas e estava satisfeita — que lhe dava a idéia de que ela ou conseguiria alguma coisa ou estava conseguindo. Melhor preparar-se, Bart pensara, e tivera que rir alto consigo mesmo.

 

Dias maravilhosos aqueles, não, Freddy? perguntou a si mesmo enquanto Forrest Tucker e a F Troop cediam lugar a um comercial de cereal onde um coelho de desenho animado pregava que “Trix é a comida certa das crianças”. Eram, Georgie. Foram dias maravilhosos.

 

Certo dia, estivera abrindo o carro depois do expediente e por acaso olhara para a grande chaminé industrial que ficava por trás da seção de lavagem a seco e a idéia lhe ocorrera.

 

Recolocara as chaves no bolso e fora falar com Don Tarkington. Don recostara-se na cadeira, fitara-o por baixo das cabeludas sobrancelhas que já naquela ocasião estavam embranquecendo (como também os cabelos que saíam das orelhas e faziam cachos a partir das narinas), as mãos cruzadas sobre o peito.

 

— Pintar a chaminé — repetira Don. Ele inclinara a cabeça, confirmando.

 

— Nos fins-de-semana.

 

Inclinara novamente a cabeça.

 

— Por um preço fixo... trezentos dólares.

 

Outra vez.

 

— Você está louco.

 

E explodira numa gargalhada. Depois, Don sorrira de leve.

 

— Você tem o hábito de drogas, Bart?

 

— Não — respondera. — Mas tenho um pequeno negócio com Mary.

 

— Uma aposta?

 

As bastas sobrancelhas subiram meio quilômetro.

 

— Mais cavalheiresco do que isso. Um desafio, acho que era isso o que o senhor diria. De qualquer modo, Don, aquela chaminé precisa ser pintada e eu preciso de trezentos dólares. O que é que me diz? Um pintor lhe cobraria quinhentos.

 

— Você verificou isso?

 

— Verifiquei.

 

— Seu cabra louco — dissera Don e explodira noutra gargalhada. — Você provavelmente vai levar uma queda e morrer.

 

— Sim, provavelmente vou — dissera e começara a rir de si mesmo (e ali, naquele momento, 18 anos depois, quando o coelho da Trix cedia lugar ao noticiário, riu feito um tolo).

 

E foi assim que, uma semana após o 4 de julho, empoleirou-se num andaime bambo a 20m de altura, uma broxa na mão e a bunda balançando ao vento. Certa vez, depois de uma chuvarada, partira-se uma das cordas que sustentavam o andaime com tanta facilidade com que se parte um barbante em volta de um pacote, e ele de fato quase se esborrachara no chão. A corda de segurança em volta da cintura agüentara e ele descera para o telhado, o coração batendo como um tambor, convencido de que nenhum poder na terra conseguiria que ele voltasse a subir para aquelas alturas — não em troca de uma droga de uma TV modelo gabinete. Mas voltara, não pela TV, mas por Mary, pela sombra do abajur sobre seus seios pequenos e empinados, por aquele desafio nos lábios dela e nos olhos — os olhos escuros que podiam às vezes ficar tão claros ou escurecer ainda mais, transformando-se em nuvens de tempestade.

 

Em princípios de setembro terminara a chaminé, higienicamente branca contra o céu, uma marca de giz em um quadro azul, esguia e brilhante. Fitou-a com algum orgulho enquanto esfregava os antebraços com solvente de tinta.

 

Don Tarkington pagara em cheque.

 

— Serviço nada ruim — fora seu único comentário — considerando o asno que o realizou.

 

Ganhara mais cinqüenta dólares pregando os lambris nas paredes da nova sala de estar de Henry Chalmers — naqueles dias Henry fora o capataz da lavanderia — e pintando o idoso Chris-Craft de Ralph Tremont. Ao chegar o dia 18 de dezembro, ele e Mary se sentaram à pequena mesa da sala de jantar, como se fossem gângsteres inimigos mas estranhamente cordiais c ele colocara diante dela 390 dólares em dinheiro vivo — depositara o dinheiro no banco e ele rendera algum juro.

 

Ela colocara na mesa 416 dólares. Tirara-os do bolso do avental. Em um maço muito mais volumoso do que o seu porque constituído principalmente de notas de um e cinco dólares.

 

Olhara boquiaberto para o dinheiro e perguntara:

 

— O que, em nome de Deus, você fez, Mary? Sorrindo, ela respondera:

 

— Fiz 26 vestidos, subi a bainha de 49, baixei a bainha de 64, fiz 31 saias, três bordados, quatro tapetes, tricotei cinco suéteres, dois afegãs e um jogo completo de toalha de mesa; bordei 63 lenços, 12 conjuntos de toalhas e 12 conjuntos de fronhas, e ainda posso ver todos os monogramas cm meus sonhos.

 

Rindo, ela estendeu as mãos e pela primeira vez, ele notou realmente as grossas almofadas nas pontas dos dedos dela como os calos que os tocadores de guitarra acabam eventualmente desenvolvendo.

 

— Oh, Cristo, Mary — dissera ele, a voz rouca. — Cristo, olhe só para suas mãos.

 

— Minhas mãos estão ótimas — respondera ela e seus olhos esqueceram e dançaram nas órbitas. — E você pareceu muito bonitinho lá em cima na chaminé. Bart, uma vez eu pensei em comprar um estilingue e ver se podia acertar na sua bunda...

 

Rindo feito louco, ele saltara da cadeira e a perseguira pela sala de jantar e até o quarto. Onde passamos o resto da tarde, se me lembro bem, Freddy, meu velho.

 

Descobriram que não só tinham o suficiente para uma TV gabinete mas que pagando mais quarenta podiam comprar uma tipo consolo. A RCA havia lançado um modelo mais novo, disse-lhes o proprietário da John’s IV (a John s já estava enterrada sob o prolongamento da 784, há muito tempo, claro, juntamente com o Grand e tudo mais) c ia entrar em falência. Ele teria todo prazer em vender o aparelho, pagando eles a diferença em prestações de apenas dez dólares por semana...

 

— Não — resolveu Mary. John parecera infeliz.

 

— Moça, são apenas quatro semanas e a senhora está dificilmente empenhando sua vida em fáceis prestações.

 

— Espere um minuto — dissera Mary c puxou-o para o frio de antes do Natal, onde as canções de Natal se misturavam umas com as outras acima e abaixo da rua.

 

— Mary — dissera —, ele tem razão. Não é como se a gente...

 

— A primeira coisa que vamos comprar a crédito será nossa própria casa, Bart — dissera ela. Aquela leve ruga reaparecera entre seus olhos. — Agora, escute bem...

 

Voltaram à loja.

 

— O senhor segura a TV para nós? — perguntara ele a John.

 

— Acho que... sim por algum tempo. Mas esta é minha temporada de grandes vendas, sr. Dawes. Por quanto tempo?

 

— Só pelo fim-de-semana — dissera ele. — Volto aqui na segunda-feira à noite. Haviam passado aquele fim-de-semana no campo, agasalhados até os olhos contra o frio e a neve que ameaçara mas não caíra. Subiram para cima e para baixo escadas vicinais, rindo como crianças, um engradado de seis cervejas para ele e uma garrafa de vinho para ela, guardaram suas garrafas e pegaram mais, sacos de garrafas de cerveja, sacos de garrafas de soda, as menores valendo dois centavos e as maiores cinco. Fora um fim-de-semana danado de cansativo, pensou nesse momento Bart — os cabelos de Mary eram compridos nessa ocasião, caíam às costas dela sobre aquela imitação de casaco de couro, a cor avermelhando-lhes os rostos. Ainda podia vê-la nesse instante, indo até uma valeta cheia de folhas murchas de outono, chutando-as com as botas, produzindo um ruído que lembrava um crepitar baixo de fogo na floresta... e então o clique de uma garrafa, que ela erguia no ar em triunfo, jogava para ele do outro lado da estrada, sorrindo como uma criança.

 

Agora ninguém usa mais garrafas restituíveis, Georgie. O evangelho nestes dias é nenhum depósito, nenhuma devolução. Usa-se e joga-se fora.

 

Naquela segunda-feira, depois do trabalho, haviam conseguido 31 dólares com as garrafas vazias, vendendo-as em quatro diferentes supermercados. Chegaram à John’s dez minutos antes de a loja fechar.

 

— Faltam nove dólares — dissera a John,

 

John escreveu ‘pago” na fatura que fora colada à RCA modelo consolo.

 

— Feliz Natal, sr. Dawes — dissera. — Vou buscar meu carrinho e ajudá-la até o carro.

 

Chegaram em casa e um emocionado Dick Keller, aquele do primeiro andar, ajudou-os a carregá-la pelas escadas e naquela noite assistiram TV até que o hino nacional foi tocado no último canal em funcionamento e haviam feito amor em frente às faixas de ajuste das cores, ambos com terríveis dores de cabeça por causa do esforço ocular.

 

Desde então, a TV raramente lhes parecera tão agradável.

 

Mary entrou e viu-o olhando para a TV, o copo de uísque com gelo vazio na mão.

 

— Seu jantar está pronto, Bart — disse — Quer que o traga para aqui?

 

Ele fitou-a, perguntando-se quando, exatamente, vira pela última vez aquele sorriso de desafio nos lábios da esposa... exatamente quando a pequena ruga entre os olhos começara a estar ali o tempo todo, como um pregueado, uma cicatriz, uma tatuagem proclamando idade.

 

Existem algumas coisas, matutou ele, que nunca, neste mundo de Deus, a gente quer saber. Ora, por que diabo acontece isso?

 

— Bart?

 

— Vamos para a sala de jantar — disse ele. Levantou-se e desligou a TV.

 

— Tudo bem.

 

Sentaram-se. Ele olhou para a refeição na bandeja de alumínio. Seis pequenos compartimentos e alguma coisa que parecia impressa em cada um. A carne tinha molho em cima. Achava que a carne nessas embalagens de comida pronta sempre tinha molho em cima. A comida pronta parecia nua sem molho, pensou, e nesse momento, sem razão nenhuma, lembrou-se de seu pensamento sobre Lorne Green. Rapaz, vou arrancar essa peruca e deixá-lo careca.

 

Mas dessa vez não achou graça. Por algum motivo, assustou-o.

 

— Sobre o que era que você estava sorrindo lá na sala, Bart? — perguntou Mary. O resfriado havia lhe avermelhado o nariz, e o nariz parecia carne viva.

 

— Não me lembro — respondeu ele e por um momento pensou: Eu vou simplesmente gritar agora, acho. Por coisas perdidas. Pelo seu sorriso, Mary. Perdoe-me enquanto jogo a cabeça para trás e grito por aquele sorriso que nunca mais reapareceu nos seus lábios. Okay?

 

— Você parecia muito feliz — observou ela.

 

Contra a vontade — era uma coisa secreta, naquela noite ele precisava de suas coisas secretas, naquela noite seus sentimentos estavam tão em carne viva como o nariz de Mary —, contra a vontade, disse:

 

— Eu estava pensando naquela vez em que saímos a fim de apanhar garrafas para completar o pagamento daquela TV. A RCA modelo consolo.

 

— Oh, aquela — disse Mary, e espirrou no lenço, por cima do jantar congelado.

 

Encontrou por acaso Jack Hobart no Stop ‘n’ Shop. O carrinho de Jack estava cheio de comida congelada, produtos enlatados do tipo esquente-e-sirva, e um bocado de cerveja.

 

— Jack! — exclamou. — O que é que você está fazendo aqui, tão longe de casa?

 

Jack sorriu levemente.

 

— Não me acostumei ainda ao outro supermercado, de modo que... eu pensei...

 

— Onde está Ellen?

 

— Ela teve que ir de avião a Cleveland — explicou ele. — A mãe dela faleceu.

 

— Jesus! Que pena, Jack. Foi coisa súbita?

 

Clientes moviam-se em volta deles sob as frias luzes do teto. De alto-falantes ocultos saía música suave, velhos números que nunca se conseguia reconhecer inteiramente. Uma mulher com um carrinho cheio passou por eles arrastando um garotinho de três anos aos berros, vestido de jaqueta e capuz azul e catota nas mangas.

 

— Sim, foi — respondeu Jack Hobart.

 

Sorriu vagamente e olhou para seu carrinho. Havia nele um grande saco amarelo que dizia:

 

KITTY-PAN KITTY LITTER

 

Use, Jogue Fora!

 

Higiênico!

 

— Sim, foi. Ela andava se sentindo esquisita, mas achava que isso podia ser, você sabe, uma espécie de resto de mudança de vida. Era câncer. Abriram-na, deram uma olhada e costuraram-na novamente. Três semanas depois ela morreu. Foi um golpe terrível para Ellen. Quero dizer, ela só era vinte anos mais moça do que a mãe.

 

— Humm — disse ele.

 

— De modo que ela vai passar algum tempo em Cleveland.

 

— Humm.

 

— Humm.

 

Entreolharam-se e sorriram envergonhados ante o fato da morte.

 

— Como é a coisa por lá? — perguntou. — Lá em Northside.

 

— Bem, vou lhe contar a verdade, Bart. Ninguém parece muito cordial.

 

— Não?

 

— Você sabe, a Ellen trabalha no centro, em um banco, não?

 

— Sei, claro.

 

— Bem, um bocado de moças organizou um pool de carros... Eu deixava Ellen usar o carro todas as quintas-feiras. Era o dia dela. Há um pool de carros de Northside para a cidade, mas todas as mulheres que o usam fazem parte de um clube no qual Ellen não pode ingressar, a menos que more no local há pelo menos um ano.

 

— Isso me parece quase uma discriminação, Jack.

 

— Elas que se fodam — disse irritado Jack. — Ellen não entraria para aquele clube de merda nem que elas viessem pedir rastejando sobre as mãos e os joelhos. Comprei um carro para ela. Um Buick usado. Ela adora o carro. Eu devia ter feito isso há dois anos.

 

— E como vai a casa?

 

— É boa — disse Jack, e suspirou. — O consumo de eletricidade é alto, porém. Você devia ver nossa conta. Isso não é bom para uma família que tem um filho numa escola de preparatórios.

 

Andaram se arrastando por ali. Passada a raiva de Jack, a expressão envergonhada lhe voltara ao rosto. Compreendeu que Jack estava pateticamente feliz por rever alguém da velha vizinhança e que queria prolongar o momento. Teve uma visão súbita de Jack andando ao léu pela nova casa, o som da TV enchendo os cômodos com uma companhia fantasma, a esposa a mil e quinhentos quilômetros de distância acompanhando a mãe até a sepultura.

 

— Ouça, por que não dá um pulo lá em casa? — perguntou. — Levaremos uns dois engradados de seis cervejas c ficaremos ouvindo Howard Cosell explicar tudo que há de errado com a NFI.

 

— Hei, isso parece um grande programa.

 

— Simplesmente, deixe-me ligar para Mary depois de pagarmos as compras. Ligou para Mary e Mary disse tudo bem. Disse que ia botar uns pastéis congelados no forno c depois iria dormir, para não contaminar Jack com seu resfriado.

 

— O que é que ele está achando do novo bairro? — perguntou ela.

 

— Acho que está gostando. Mary, a mãe de Ellen faleceu. Ela foi para o enterro, em Cleveland. Câncer.

 

— Oh, não.

 

— Assim, eu pensei que Jack talvez pudesse gostar de um pouco de companhia, você sabe...

 

— Claro, claro. — Ela fez uma pausa. — Você lhe disse que poderemos voltar a ser vizinhos antes de muito tempo?

 

— Não — confessou ele. — Não disse.

 

— Pois devia. Isso poderia animá-lo um pouco.

 

— De fato. Adeus, Mary.

 

— Tchau.

 

— Tome umas aspirinas antes de dormir.

 

— Vou tomar.

 

— Tchau.

 

— Tchau, George. Ela desligou.

 

Ele olhou para o telefone, gelado. Ela só o tratava pelo nome quando estava extremamente satisfeita com ele. Inicialmente, o Fred-e-George fora a brincadeira de Charlie.

 

Ele e Jack Hobart foram para sua casa e assistiram ao jogo. Beberam um bocado de cerveja. Mas a noitada não foi grande coisa.

 

Quando, às 12:15 da noite Jack tomou o carro para voltar pra casa, olhou-o com expressão triste e disse:

 

— Aquela merda de estrada. Foi ela que fodeu tudo.

 

— Lá isso foi.

 

Acho que Jack parecia velho e isso assustou-o. Jack tinha mais ou menos a sua idade.

 

— Dê notícias, Bart.

 

— Vou dar.

 

Sorriram sem alegria um para o outro, um pouco bêbados, um pouco doentes. Seguiu com os olhos o carro de Jack até que as luzes traseiras desapareceram na longa colina em curva.

 

27 de novembro de 1973

 

Estava um pouco de ressaca e um pouco sonolento por ter ficado acordado até tão tarde da noite. O som das lavadoras da lavanderia, entrando no ciclo dc secagem, pareceu-lhe alto, e o som repetido do silvo das passadoras de camisas e calandras fizeram-no encolher-se um pouco.

 

Freddy estava pior. Freddy estava fazendo o diabo naquele dia.

 

Escute, dizia nesse momento Fred. Esta é a sua última oportunidade, meu rapaz. Você ainda tem a tarde para ir até o escritório de Monohan. Se esperar até às 5h da tarde, vai ser tarde demais.

 

A opção só expira à meia-noite.

 

Certo. Mas logo depois do horário do expediente Monohan vai sentir uma necessidade inadiável de visitar uns parentes. No Alasca. Para ele, isso significa a diferença entre uma comissão de 45 mil dólares e uma de cinqüenta mil dólares — o preço de um carro novinho em folha. Para essa quantia de dinheiro, ninguém precisa de uma calculadora de bolso. Por esse tipo de dinheiro, um cara pode descobrir parentes no sistema de esgotos de Bombaim.

 

Mas não importava. A coisa tinha ido longe demais. Deixara que a máquina funcionasse sozinha, desassistida, por um tempo longo demais. listava hipnotizado pela explosão próxima, quase que ansiava por ela. As entranhas gemeram em suas próprias secreções.

 

Passou a maior parte da tarde na sala de lavagem, observando Ron Stone e Dave fazerem testes com um dos novos produtos. Era alto o barulho ali. O ruído doía na cabeça, que estava sensível, mas impedia-o também de ouvir os próprios pensamentos.

 

Após o expediente, tirou o carro do pátio de estacionamento — Mary lhe cedera com prazer o carro pelo dia inteiro, uma vez que ele ia dar uma olhada na nova casa que iam adquirir —, cruzou o centro da cidade e chegou a Norton.

 

Em Norton, cheia de negros em volta de esquinas e do lado de fora de bares, restaurantes anunciavam diferentes tipos de comidas típicas. Crianças saltavam e riscavam aviões de amarelinha nas calçadas. Viu um caftemóvel — um enorme Cadillac Eldorado cor-de-rosa — parar em frente a um prédio de apartamentos comum, de pedra. O homem que dele desceu tinha a altura de um Wilt Chamberlain, usava chapéu branco de plantador, temo da cor de sorvete de creme com botões de pérola e sapatos pretos tipo plataforma com fivelas de ouro enormes nos lados. Brandia uma bengala de rotim com uma grande bola de marfim na empunhadura. Lenta e majestosamente deu a volta cm tomo do capo do carro, onde estava montado um par de galhadas de caribu. Uma pequena colher de prata pendia de seu pescoço em uma corrente do mesmo metal e piscava no fraco sol de outono. Observou pelo retrovisor, enquanto crianças corriam a fim de pegar bombons.

 

Nove quadras depois, as casas de cômodo rareavam e eram substituídas por campos abertos e terra ainda virgem e pantanosa. Água oleosa separava pequenas elevações cobertas de mato, lembrando suas superfícies arco-íris planos, mortais. À esquerda, perto do horizonte, viu um avião pousando no aeroporto da cidade.

 

Estava nesse momento na estrada 16, passando pelo trecho amplo que se estendia da cidade propriamente dita e seus limites,. Passou por lojas da McDonald’s, Sha-key’s, e Nino’s Steak Pit. Passou por uma Dairy Freez e pelo Noddy-Time Motel, ambos fechados nessa estação. Passou pelo cinema drive-in de Norton, cuja marquise anunciava:

 

sáb — dom — seg

 

RESTLESS WIVES

 

SOME CAME RUNNING CLASSIFICAÇÃO X

 

EIGHT-BALL

 

Passou por uma galeria de boliche e uma pista de automóveis, esta fechada por causa da estação, e por postos de serviço — dois deles com tabuletas anunciando:

 

sinto muito. não temos gasolina

 

Faltavam ainda quatro dias para que recebessem suas quotas de gasolina para dezembro. Não conseguiu sentir pena do país como um todo no momento em que ele entrava nessa crise estilo ficção científica — o país estivera esbanjando petróleo por tempo longo demais para lhe provocar compaixão — mas podia sentir pena do homem comum colhido entre os dentes da engrenagem.

 

Quilômetro e meio depois chegou à Revenda de Carros Usados Magliore. Não sabia o que esperara mas sentiu desapontamento. Aquilo parecia uma firma suspeita, que oferecia descontos suspeitos. Os carros estavam alinhados no pátio, de frente para a estrada, sob cordas encurvadas de bandeiras que estalavam ao vento —vermelhas, amarelas, azuis, verdes —, que haviam sido amarradas entre postes que iluminariam o produto à noite. Preços e indicações estavam pregados nos pára-brisas:

 

$795

 

Motor ótimo!

 

$550

 

Bom transporte!

 

e numa empoeirada e velha Valiante com pneus arriados e pára-brisa rachado:

 

$75

 

Oferta especial para mecânicos!

 

Um vendedor usando guarda-pó cinzento-esverdeado inclinava a cabeça e sorria evasivamente para um rapaz vestido com uma jaqueta de seda vermelha que lhe falava nesse momento. Estavam ao lado de um Mustang azul que sofria de câncer da lataria. O rapaz disse alguma coisa em tom veemente e bateu na porta do motorista do carro com a mão espalmada. Ferrugem caiu da porta em uma pequena nuvem. O vendedor encolheu os ombros e continuou a sorrir. O Mustang continuou no mesmo lugar e envelheceu um pouco mais.

 

No centro do pátio havia uma combinação de garagem e escritório. Estacionou e saltou do carro. Viu um elevador de carros na garagem e em cima dele um velho Dodge com barbatanas gigantes. Um mecânico saiu de baixo do carro, segurando nas mãos enluvadas de graxa um silencioso, como se fosse um cálice.

 

— Hei, o senhor não pode estacionar aí, moço. É passagem.

 

— E onde é que posso estacionar?

 

— Se vai ao escritório, leve lá pros fundos.

 

Levou o LTD para os fundos, guiando com cuidado pela estreita passagem atrás da garagem e desceu. O vento, forte e cortante, provocou-lhe arrepios. O sistema de aquecimento do carro lhe deixara desprotegido o rosto e teve que apertar os olhos para evitar que lacrimejassem.

 

Ali atrás havia também um ferro-velho de automóveis, que se estendia por hectares. A maioria dos carros fora depenada de algumas peças e nesse momento repousavam sobre jantes de rodas ou eixos, parecendo vítimas de alguma peste horrível e tão contagiosa que nem mesmo podiam ser arrastadas para a vala comum. Grelhas com encaixes vazios de faróis olhavam-no fascinadas.

 

Dirigiu-se para frente do prédio. O mecânico instalava nesse momento o silencioso. À sua direita, uma garrafa aberta de Coca-Cola equilibrava-se em cima de uma pilha de pneus.

 

Gritou para o mecânico:

 

— O sr. Magliore está?

 

Falar com mecânicos sempre o fazia sentir-se como um imbecil. Comprara seu primeiro carro há 24 anos e falar com mecânicos ainda o deixava sentindo-se como se fosse um adolescente cheio de espinhas no rosto.

 

O mecânico olhou por cima do ombro enquanto continuava a trabalhar com a chave de boca.

 

— Está, ele e Mansey. No escritório, os dois.

 

— Obrigado.

 

— Por nada.

 

Entrou no escritório, paredes de imitação de pinho, piso de quadrados enlameados vermelho e branco, de linóleo. Havia ali duas velhas cadeiras e uma pilha de revistas velhas e rasgadas — entre elas, Outdoor Life, Fieldand Stream, True Argosy. Ninguém nas cadeiras. Viu uma porta, que provavelmente dava para outro escritório e, no lado esquerdo, um pequeno cubículo parecido com uma bilheteria de teatro, onde uma mulher trabalhava com uma máquina de somar, um lápis amarelo enfiado nos cabelos. Óculos de armação colorida descansavam sobre o peito magro, presos por uma corrente de contas de vidro. Dirigiu-se para ela, nervoso nesse momento. Umedeceu os lábios antes de começar a falar.

 

— Com licença.

 

A mulher levantou a vista.

 

— Sim?

 

Ele teve uma vontade insana de dizer: Estou aqui para falar com Sally Caolho, sua puta. Mexa o rabo.

 

Em vez disso, limitou-se a dizer:

 

— Tenho hora marcada com o sr. Magliore.

 

— Tem? — Fitou-o desconfiada por um momento e depois consultou uns papéis na mesa, ao lado da máquina de somar. Puxou um deles: — Seu nome é Dawes? Barton Dawes?

 

— Isso mesmo.

 

— Pode entrar.

 

Estirou o beiço para ele e começou a cutucar novamente a máquina de somar.

 

Estava muito nervoso. Certamente eles sabiam que os havia enganado. Faziam ali uma espécie de venda clandestina de carros e muita coisa se tornara óbvia com a maneira como Mansey falara com ele na véspera. E eles sabiam que ele sabia. Talvez fosse melhor sair dali naquele exato momento, correr feito louco para o escritório de Monohan e talvez conseguir ainda fechar o negócio antes que ele viajasse para o Alasca, Timbutu ou qualquer outro lugar para onde estivesse indo.

 

Finalmente, disse Freddy. O homem demonstra algum bom senso.

 

Foi até a porta, a despeito de Freddy, abriu-a, e passou para o escritório interno. Viu dois homens ali. O que estava sentado à escrivaninha era gordo e usava óculos de grossas lentes. O outro, magro como uma lâmina de barbear, usava um casaco-esporte e de cor salmão que fê-lo pensar em Vinnie. Nesse momento estava curvado sobre a escrivaninha, os dois examinando um catálogo da J.C. Whitney.

 

Ergueram a vista quando entrou. Magliore sorriu de trás da escrivaninha. Os óculos tornavam-lhe os olhos vagos e enormes, tais como gemas de ovos escaldados.

 

— Sr. Dawes?

 

— Eu mesmo.

 

— É um prazer recebermos sua visita. Poderia fechar a porta?

 

— Tudo bem.

 

Fechou-a. Quando se voltou, Magliore não sorria mais. Nem Mansey. Simplesmente fitavam-no e a temperatura da sala parecia ter caído uns vinte graus.

 

— Muito bem — disse Magliore. — Que merda é essa?

 

— Eu queria falar com o senhor.

 

— Eu falo gratuitamente. Mas não com merdas como você. Você liga para Pete e fala uma merda sobre dois Eldorados. — Ele pronunciava a palavra como “Eldoraidos”. — Agora fale comigo, moço. Diga qual é a sua jogada?

 

Junto à porta ainda, ele respondeu:

 

— Ouvi dizer que o senhor vende coisas.

 

— Vendo, certo. Carros. Vendo carros.

 

— Não — disse ele. — Outro material. Material como... — Olhou em volta para as paredes de pinho de imitação. Só Deus sabia quantos órgãos do governo tinham aparelhos de escuta clandestinos ali. — Simplesmente, material — terminou, as palavras saindo sobre muletas.

 

— Você quer dizer, drogas, putas e apostas fora do jóquei? Ou quer contratar um capanga para matar sua mulher ou seu chefe? — Magliore notou que ele se contraía e riu asperamente. — Isso não está nada mau, moço, nada mau, absolutamente, para uma merdinha. Esse é o grande número “E se este lugar estiver grampeado?”, certo? Esse é o primeiro número na academia de polícia, certo?

 

— Escute, eu não estou...

 

— Cale a boca — ordenou Mansey, que tinha ainda nas mãos o catálogo da J.C. Whitney. Unhas manicuradas. Nunca vira unhas manicuradas exatamente daquele jeito, exceto em comerciais da TV em que o apresentador tinha que mostrar um vidro de aspirina ou coisas assim. — Se Sal quiser que você fale, ele lhe diz pra falar.

 

Ele pestanejou e fechou a boca. Aquilo parecia um pesadelo.

 

— Vocês, caras, ficam mais estúpidos a cada dia que passa — continuou Magliore. — Tudo bem aqui. Gosto de tratar com testas-de-ferro. Estou acostumado a tratar com testas-de-ferro. Sou bom nisso. Agora, não que você não sabia, mas este escritório está absolutamente limpo. Fazemos uma varredura nele todas as semanas. Lá em casa tenho uma caixa de charutos cheia de grampos. Microfones de contato, microfones de botão, microfones de pressão. Gravadores Sony não maiores do que sua mão. Eles nem mesmo tentam muito, ultimamente. Agora, mandam uma merda como você.

 

Ele ouviu a si mesmo dizer

 

— Eu não sou nenhum merdinha.

 

Uma expressão de surpresa exagerada apareceu no rosto de Magliore. Virou-se para Mansey.

 

— Você ouviu isso? Ele disse que não é um merdinha.

 

— Sim, ouvi — confirmou Mansey.

 

— E ele parece um merdinha?

 

— Parece — disse Mansey.

 

— Fala mesmo como um merdinha, não?

 

— Fala.

 

— Então, se você não é um merdinha — perguntou Magliore, virando-se para ele —, quem é você?

 

— Eu sou... — começou ele, sem saber bem o que dizer.

 

O que era? Fred, onde está você, quando preciso de você?

 

— Ora, vamos — disse Magliore. — Polícia estadual? Municipal? Receita Federal? FBI? Ele lhe parece um FBI típico, Pete?

 

— Parece — confirmou Pete.

 

— Nem mesmo a polícia municipal enviaria um merdinha como você, moço. Você tem que ser FBI ou um detetive particular. Qual dos dois?

 

Ele começou a ficar furioso.

 

— Jogue-o na rua, Pete — disse Magliore, perdendo o interesse.

 

Mansey começou a aproximar-se da porta, trazendo ainda nas mãos o catálogo da J.C. Whitney.

 

— Seu caralhão estúpido! — gritou ele subitamente para Magliore. — Você provavelmente vê policiais embaixo da cama, de tão estúpido que é! Provavelmente pensa que eles estão em sua casa fodendo sua mulher, quando você está aqui!

 

Magliore fitou-o, os olhos ampliados esbugalhando-se. Mansey ficou paralisado, uma expressão de incredulidade desenhada em seu rosto.

 

— Caralhão — repetiu Magliore, virando a palavra na boca, da mesma maneira que um carpinteiro gira nas mãos uma ferramenta que não conhece. — Ele me chamou de caralhão?

 

Ele estava espantado com o que dissera.

 

— Vou levá-lo lá pros fundos da garagem — disse Mansey, avançando novamente.

 

— Espere aí — disse baixinho Magliore. Fitou-o com autêntica curiosidade. — Você me chamou de caralhão?

 

— Eu não sou tira — disse ele —, nem marginal. Sou simplesmente uma cara que ouviu dizer que você vende material a pessoas que têm dinheiro para comprá-lo. Bem, eu tenho dinheiro. Eu não sabia que a gente tinha que dar a senha, ter um anel decodificador como o do Capitão Meia-Noite e toda essa bosta. Sim, chamei o senhor de caralhão. Sinto muito ter chamado, se isso evita que esse cara aí me espanque. Eu sou...

 

Umedeceu os lábios e não conseguiu pensar numa maneira de continuar. Magliore e Mansey fitavam-no fascinados, como se, diante dos olhos deles, ele houvesse se transformado numa estatua grega de mármore.

 

— Caralhão — disse baixinho Magliore. — Passe uma revista nesse cara, Pete.

 

Pete deu-lhe uma palmada nos ombros e ele se virou.

 

— Bote as mãos na parede — ordenou Mansey, a boca junto de sua orelha. Ele cheirava a Listerine. — Pernas abertas atrás. Igualzinho como nos filmes policiais.

 

— Eu não assisto a filmes policiais — disse ele, mas sabia o que Mansey queria dizer e colocou-se na posição de ser revistado.

 

Mansey correu as mãos por suas pernas, bateu na entreperna com toda a impessoalidade de um médico, enfiou a mão dentro do cinto, deslizou os dedos pelos lados do corpo e introduziu um dedo atrás do colarinho da camisa.

 

— Limpo — anunciou.

 

— Vire-se, você — disse Magliore.

 

Virou-se. Magliore continuava a olhá-lo fascinado.

 

— Venha até aqui. Foi.

 

Magliore deu uma pancadinha no tampo de vidro da mesa. Sob o vidro havia vários instantâneos: uma mulher escura sorrindo para a câmera, óculos de sol empoleirados no alto dos cabelos escadinha, crianças de pele azeitonada espadanando numa piscina; o próprio Magliore andando na praia, usando calção de banho preto, parecendo o rei Farouk, com um grande cão collie seguindo-o.

 

— Esvazie — ordenou.

 

— Ahn?

 

— Tudo que tem nos bolsos. Esvazie.

 

Pensou em protestar, mas lembrou-se de Mansey, que estava bem atrás de seu ombro esquerdo. Esvaziou.

 

Do bolso do sobretudo saíram os canhotos do último filme que fora ver com Mary, um filme com muito canto, cujo nome não se lembrava.

 

Tirou o sobretudo. Do paletó extraiu um isqueiro Zippo com suas iniciais — BGD — gravadas. Um pacotinho de pedras para isqueiro. Um Phillies Cheroot. Uma latinha de comprimidos de leite de magnésia de Phillips. Um recibo da A&S Tires, a oficina onde mandara colocar os pneus de neve. Mansey olhou para isso com satisfação e disse:

 

— Cristo, você foi esfolado.

 

Tirou o paletó. Nada no bolso da camisa, exceto uma pequena bola de fios. Do bolso direito da calça puxou as chaves do carro e quarenta centavos em moedas, a maioria níqueis. Por alguma razão que nunca conseguira descobrir, moedinhas de cinco centavos pareciam sempre gravitar em sua direção. Nunca havia uma de dez centavos para o parquímetro dos pátios de estacionamento, só níqueis, que não eram aceitos pela máquina. Colocou a carteira de notas em cima do tampo de vidro, juntamente com as outras coisas.

 

Magliore pegou a carteira e examinou o monograma desbotado, um presente de aniversário de Mary, há quatro anos.

 

— O que é que significa o 6? — perguntou Magliore.

 

— George.

 

Abriu a carteira e espalhou o conteúdo como se fosse um jogo de paciência. Quarenta e três dólares, em notas de vinte e um.

 

Cartões de crédito: Shell, Sunoco, Arco, Grant’s, Sears, Carey’s Department Store, American Express.

 

Carteira de habilitação. Cartão da Seguridade Social. Cartão de doador de sangue tipo A-positivo. Cartão da biblioteca. Um envelope de plástico. Cartão com cópia fotostática de certidão de nascimento. Vários recibos antigos de contas pagas, alguns rompendo-se nas dobras de pura idade. Fichas de depósito em bancos, algumas retroagindo a junho.

 

— O que diabo há com você? — perguntou irritado Magliore. — Nunca faz uma faxina na carteira? Carrega a carteira desse jeito e anda com ela durante um ano. Estraga a carteira.

 

Ele encolheu os ombros.

 

— Odeio jogar coisas fora.

 

Era estranho, pensou, que o fato de Magliore tê-lo chamado de merdinha o houvesse irritado, ao passo que criticar sua carteira não o aborrecia absolutamente.

 

Magliore abriu o envelope plástico, que estava cheio de instantâneos. O primeiro era de Mary, olhos zarolhos, língua estirada para a câmera. Uma velha foto. Naquela época ela fora mais magra.

 

— Sua mulher?

 

— É...

 

— Aposto que é bonita quando não enfiam uma câmera na cara dela.

 

Passou para outra e sorriu.

 

— Seu garoto? Tenho um dessa idade. Ele acerta numa bola de beisebol? Aposto que sim.

 

— Era meu filho, sim. Morreu.

 

— Que pena. Acidente?

 

— Tumor cerebral.

 

Magliore inclinou a cabeça e olhou para as outras fotos. Pequenos recortes de sua vida: a casa na Crestallen Street West, ele e Tom Granger na sala das lavadoras, uma foto dele na tribuna da convenção dos donos de lavanderia no ano em que fora realizada na cidade (fora ele quem apresentara o principal orador), um churrasco de fundo de quintal, ele junto à grelha usando chapéu de cozinheiro e um avental que dizia: papai está cozinhando, mamãe está olhando.

 

Magliore pôs o envelope plástico na mesa, juntou os cartões de crédito numa pilha e entregou-os a Mansey.

 

— Tire fotocópias deles — ordenou. — E leve uma dessas fichas de depósito. A mulher dele guarda o talão de cheques sob sete chaves, é igualzinha à minha.

 

E Magliore soltou uma risada. Mansey fitou-o céptico.

 

— Você vai fazer negócio com esse merdinha?

 

— Não o chame de merdinha e ele talvez não me chame de caralhão novamente. — Soltou uma risada fanhosa que terminou com uma perturbadora subitaneidade. — Simplesmente, meta-se com sua vida, Pete. Não meta o focinho na minha.

 

Mansey riu, mas saiu numa andadura modificada.

 

— Caralhão — disse. — Deus do céu, eu pensava que já havia sido chamado de tudo.

 

— Por que ele vai tirar fotocópias de meus cartões de crédito?

 

— Nós somos sócios de um computador. Ninguém é dono de todo ele. É usado na base de tempo compartilhado. Se conhece os códigos certos, o cara pode entrar nos bancos de memória de mais de cinqüenta empresas que têm negócios com a municipalidade. Se aqueles cartões de crédito forem falsos, nós vamos descobrir. Se são autênticos, mas não seus, descobriremos isso também. Mas você me convenceu. Acho que você é honesto. Caralhão. — Sacudiu a cabeça e riu. — Ontem foi segunda-feira? Você teve sorte porque não me chamou de caralhão na segunda-feira.

 

— Posso lhe dizer agora o que quero comprar?

 

— Pode, e se fosse um tira armado com seis gravadores ainda assim não poderia me tocar. Isso legalmente é chamado de cilada. Mas não quero ouvir isso agora. Venha amanhã, à mesma hora, e eu direi se quero ouvi-lo ou não. Mesmo que seja uma cara legal, eu talvez não lhe venda nada. Sabe por quê?

 

— Por quê? Magliore riu.

 

— Porque acho que você é bicha. Andando sobre três rodas. Voando por instrumentos.

 

— Por quê? Porque lhe chamei um nome?

 

— Não — respondeu Magliore. — Porque você me lembra de uma coisa que me aconteceu quando eu era um garoto da idade de meu próprio filho. Havia um cão lá no bairro em que eu vivia. No Hell’s Kitchen, em Nova York. Isso aconteceu antes da Segunda Guerra Mundial, na Depressão. E um cara chamado Piazzi tinha uma cadela vira-lata chamada Andréa, e todo mudo só a chamava de o cachorro do sr. Piazzi. Mantinha a bichinha na corrente o tempo todo, mas aquele cachorro nunca ficou brabo, não até um dia quente de agosto. Isso pode ter acontecido em 1937. Atacou um garoto que veio lhe fazer uns agrados e o mandou para o hospital por um mês. Trinta e sete pontos no pescoço. Mas eu sabia que aquilo ia acontecer. Aquele cachorro ficava ao sol forte o dia inteiro, todos os dias, durante o verão. Em meados de junho ele deixou de balançar o rabo quando garotos vinham afagá-lo. Depois, começou a rolar os olhos. Em fins de julho, ele rosnava no fundo da garganta quando meninos chegavam para acariciá-lo. Quando ele começou a fazer isso, deixei de agradar o cachorro do sr. Piazzi. E os caras disseram: Qual é o problema, Sally? Ficou medroso? Eu disse não, não fiquei medroso mas não sou estúpido, também. Aquele cachorro tinha ficado feroz. E todos eles disseram: meta essa idéia no cu, a cadela do sr. Piazzi não morde, ela nunca mordeu ninguém, ela não morderia um bebê que enfiasse a cabeça na garganta dela. E eu disse: vão lá e agradem ela, não há lei que diga que não podem fazer isso, mas eu não vou. E eles saíram por toda parte dizendo: Sally amunhecou, Sally é uma menina, Sally quer que a mamãe o acompanhe quando pára perto do cachorro do sr. Piazzi. Você sabe como são crianças.

 

— Eu sei — disse ele.

 

Mansey voltara com seus cartões de crédito e estava à porta, escutando.

 

— E um dos garotos que gritava mais alto foi o que finalmente pegou o dele. Luigi Bronticelli era o nome dele. Um bom judeu como cu, sabia? — Magliore soltou uma risada. — Certo dia de agosto, quando fazia calor de fritar ovo na calçada, ele foi alisar o cachorro do sr. Piazzi, e nunca mais conseguiu falar mais alto do que um sussurro desde aquele dia. Ele tem uma barbearia em Manhattan e o pessoal o chama de Gee Murmurante.

 

Magliore sorriu-lhe.

 

— Você me lembra o cachorro do sr. Piazzi. Não está rosnando ainda, mas se alguém lhe fizer uns agrados, você rolaria os olhos. E já deixou de balançar o rabo há muito tempo. Pete, dê a esse homem as coisas dele.

 

Mansey devolveu-lhe os pertences.

 

— Volte amanhã e a gente conversa um pouco mais — disse Magliore. Observou-o enquanto ele repunha as coisas na carteira. — E você devia realmente fazer uma limpeza nessa carteira. Está rasgando a carteira de tão cheia que ela fica.

 

— Talvez eu faça isso — prometeu ele.

 

— Pete, leve-o até o carro dele.

 

— Por aqui.

 

Ele abriu a porta e ia saindo quando Magliore disse em voz alta às suas costas:

 

— Sabe o que fizeram com a cadela do sr. Piazzi, moço? Levaram-na para o depósito municipal e deram-lhe gás.

 

Depois da ceia, enquanto John Chancellor dizia que a velocidade menor no Trevo de Jersey provavelmente fora a responsável pelo menor número de acidentes, Mary perguntou-lhe sobre a casa.

 

— Cupins — respondeu ele.

 

O rosto dela caiu como se fosse um elevador expresso.

 

— Oh. Então não presta?

 

— Bem, eu vou lá novamente amanhã. Se Tom Granger conhecer um bom exterminador de pragas, vou levar o cara comigo para ver a casa. Obter a opinião de um especialista. Talvez o caso não seja tão ruim como parece.

 

— Tomara que não seja. Um quintal e tudo mais... — e sorriu desejosa.

 

Oh, você é um príncipe, disse de repente Freddy. Um verdadeiro príncipe. Como é que você é tão bom para sua esposa, George? Isso é um talento natural ou você tomou lições?

 

— Cale essa boca — bradou.

 

Mary virou-se para ele, sobressaltada.

 

— O quê?

 

— Oh... Chancellor — disse ele. — Fico com uma dor no saco só de ouvir Chancellor, Walter Cronkite e o resto dessa cambada.

 

— Você não devia odiar o mensageiro por causa da mensagem — observou ela e olhou para John Chancellor com olhos perturbados, cheios de dúvida.

 

— Acho que não — concordou ele, e pensou: Freddy, seu filho da puta. Freddy disse-lhe para não odiar o mensageiro por causa da mensagem. Ficaram assistindo ao noticiário durante algum tempo. Apareceu um comercial de remédio para resfriado — dois homens cujas cabeças haviam se transformado em blocos de meleca. Quando um deles tomou o comprimido para o resfriado, o cubo cinzento-esverdeado que lhe envolvia a cabeça desfez-se em grandes pedaços.

 

— Seu resfriado parece que está melhor hoje à noite — disse ele.

 

— Está. Bart, qual é o nome daquele corretor?

 

— Monohan — respondeu ele, automaticamente.

 

— Não, não o homem que está lhe vendendo a instalação. O que está vendendo a casa.

 

— Olsen — respondeu ele imediatamente, tirando o nome de uma cesta de lixo interna.

 

O noticiário voltou, trazendo uma matéria sobre David Ben-Gurion, que estava prestes a juntar-se a Harry Truman no grande Secretariado lá no céu.

 

— O que é que Jack acha da nova moradia? — perguntou ela logo depois.

 

Ia responder que Jack não estava gostando, absolutamente, e quando deu por si estava dizendo:

 

— Boa, acho.

 

John Chancellor encerrou contando uma história engraçada sobre discos voadores avistados sobre o Ohio.

 

Foi dormir às 10:30h e deve ter tido um pesadelo quase imediatamente. Quando acordou, o relógio digital marcava:

 

11:22h

 

No sonho estivera em uma esquina em Norton, na esquina da Vanner e Riçe Street. Bem embaixo de uma placa da rua. Rua abaixo, em frente a uma loja de bombons, um caftemóvel cor-de-rosa com galhadas de caribu montadas no capo acabara de parar e garotos começaram a correr para eles, saindo de alpendres e umbrais de portas.

 

No outro lado da rua, um grande cachorro preto estava acorrentado à grade de uma casa de cômodos de tijolo, meio fora de prumo. Um menininho aproximava-se confiante do cachorro.

 

Tentou gritar: Não agrade esse cachorro. Vá pegar sua bala! As palavras, porém, não queriam sair da boca. Como se em câmara lenta, o cáften de terno branco e chapéu de plantador virara-se também para olhar. Todas as crianças em volta do rufião eram negras, mas o menininho que se aproximava do cachorro era branco.

 

O cachorro atacou, catapultando-se a partir dos quartos traseiros como se fosse uma flecha rombuda. O garoto gritou e cambaleou para trás, levando as mãos à garganta. Quando se virou, sangue escorria entre seus dedos. Era Charlie.

 

Fora nesse momento que acordara.

 

Os sonhos. As drogas de sonhos.

 

Seu filho morrera há três anos.

 

 

 

28 de novembro de 1973

 

A neve caía quando acordou e levantou-se mais tarde, mas já quase parará quando chegou à lavanderia. Tom Granger veio correndo de lá de dentro, em mangas de camisa, a respiração formando curtas e duras plumas no ar frio. Pela expressão no rosto de Tom soube que aquele dia ia ser péssimo.

 

— Temos problemas, Bart.

 

— Graves?

 

— O bastante. Johnny Walker teve um acidente ao voltar da Holiday Inn, na primeira coleta do dia. Um cara em um Pontiac derrapou através de um sinal vermelho na Deakman e atingiu-o bem no meio. Kapow. — Parou e olhou sem ver para as portas de carga e descarga do prédio. Não havia ninguém lá. — A polícia diz que Johnny está em mau estado.

 

— Santo Cristo.

 

— Cheguei lá 15 ou vinte minutos depois do acidente. Você conhece o cruzamento...

 

— Conheço, sim, é um horror... Tom sacudiu a cabeça.

 

— Se não fosse uma coisa tão terrível a gente teria que rir. Parece que alguém jogou uma bomba numa lavanderia. Há lençóis e toalhas da Holiday Inn por toda parte. Algumas pessoas estavam roubando-as, os ladrões de cadáveres filhos da puta, você pode acreditar que alguém faça uma coisa dessas? E o caminhão... Bart, não sobrou nada da porta do lado do motorista para cima. Só sucata. Johnny foi jogado longe.

 

— Ele está na Central?

 

— Não, no St. Mary’s. Johnny é católico, você não sabia?

 

— Quer ir lá de carro comigo?

 

— É melhor que eu não vá. Ron está berrando, pedindo pressão na caldeira. — Encolheu os ombros, embaraçado. — Você conhece Ron. O show tem que continuar.

 

— Tudo bem.

 

Voltou ao carro e dirigiu-se para o St. Mary’s Hospital. Jesus Cristo, entre tanta gente logo com quem aquilo fora acontecer. Johnny Walker era o único empregado na Blue Ribbon, à parte ele, que já trabalhava na firma em 1953 —Johnny, na verdade, era de 1946. O pensamento alojou-se em sua garganta como se fosse um presságio. Sabia pela leitura dos jornais que a ampliação da 784 tornaria obsoleta a perigosa passagem da Deakman.

 

O nome dele não era Johnny, absolutamente, não na realidade. O nome era Corey Everett Walker e o vira um número enorme de vezes em cartões de ponto para saber disso. Mas era conhecido como Johnny há mais de vinte anos. A esposa falecera em 1956 quando numa viagem de férias em Vermont. Desde então, ele residira com o irmão, que dirigia um caminhão de coleta de lixo da municipalidade. Havia dezenas de trabalhadores na Blue Ribbon que chamavam Ron de “Colhões de Pedra”, pelas costas, mas Johnny fora o único que podia dizer-lhe isso na cara e se safar.

 

Pensou: Se Johnny morrer, ficarei sendo o empregado mais antigo na lavanderia. No emprego durante uns recordistas vinte anos. Isso não é divertido, Fred?

 

Fred achou que não tinha nenhuma graça.

 

Encontrou o irmão de Johnny na sala de espera da ala de emergências. Era um homem alto, muito parecido com Johnny, rosto vermelho, usando ainda roupas de trabalho verde-oliva e jaqueta preta de pano. Girava nas mãos, entre os joelhos, um boné verde-oliva e olhava para o chão. Ergueu a vista ao ouvir o som dos passos.

 

— O senhor é da lavanderia? — perguntou

 

— Sou. O senhor é... — não esperava que o nome lhe ocorresse, mas ocorreu — Arnie, certo?

 

— Isso. Arnie Walker. — Sacudiu devagar a cabeça. — Eu não sei, sr...?

 

— Dawes.

 

— Eu não sei, sr. Dawes. Eu o vi numa daquelas salas de exames Ele parecia muito machucado. Ele não é mais uma criança. Parecia estar mal.

 

— Sinto muitíssimo.

 

— Aquela esquina é uma assassina. Não foi culpa do outro cara. Ele simplesmente derrapou na neve. Não culpo o cara. Dizem que ele quebrou o nariz, mas só foi isso. É engraçada a maneira como essas coisas terminam, sabia?

 

— Sim.

 

— Lembro-me de uma vez em que eu dirigia uma grande carreta para a Heming-way, isso em começos dos anos 60, eu estava na via de pedágio de Indiana e vi...

 

A porta externa foi aberta com um som alto e um padre entrou. Bateu os pés para sacudir a neve da botas e subiu apressado o corredor, quase correndo. Arnie Walker viu e seus olhos se esbugalharam, assumindo uma expressão vidrada de choque. Produziu um som arquejante, de choradeira, no fundo da garganta e tentou levantar-se. Ele pôs um braço em volta dos ombros de Arnie e conteve-o.

 

— Jesus! — exclamou Arnie. — Ele trouxe o cibório, viu aquilo? Vai dar a extrema-unção a ele... talvez ele já esteja morto. Johnny...

 

Havia outras pessoas na sala de espera: um adolescente com um braço quebrado, uma senhora idosa com um atadura elástica numa perna, um homem com o polegar envolvido em uma bandagem gigantesca. Ergueram a vista para Arnie e em seguida baixaram os olhos, embaraçados, para as revistas que fingiam ler.

 

— Calma — disse, sem propósito e sem necessidade.

 

— Solte-me — pediu Arnie. — Eu tenho que ver.

 

— Escute...

 

— Solte-me!

 

Soltou-o. Arnie Walker dobrou uma esquina no corredor e desapareceu, exatamente como fizera o padre. Durante um momento, ele sentou-se na cadeira de plástico moldado, pensando no que devia fazer. Olhou para o chão, que estava coberto com pegadas pretas, de neve suja. Olhou para a estação das enfermeiras, onde uma mulher cobria nesse momento a mesa telefônica. Olhou pela janela e viu que a nevasca terminara.

 

Ouviu um grito vindo do corredor, onde ficavam as salas de exame. Todos levantaram a vista e a mesma expressão de quem se sentia mal surgiu em todos os rostos.

 

Outro grito, seguido por um urro áspero, de dor.

 

Todos voltaram a olhar para suas revistas. O garoto com o braço quebrado engoliu em seco audivelmente, produzindo um pequeno clique no silêncio. Ele levantou-se e saiu rapidamente dali, sem olhar para trás.

 

Na lavanderia, todo mundo que trabalhava no térreo correu ao seu encontro e Ron Stone não os deteve.

 

— Não sei, disse a eles. Não consegui descobrir se ele ainda estava vivo ou morto. Vocês terão notícias. Eu simplesmente não sei.

 

Fugiu para o primeiro andar, sentindo-se estranho e desligado de tudo.

 

— Sabe como está Johnny, sr. Dawes? — perguntou-lhe Phyllis.

 

Pela primeira vez notou que Phyllis, a despeito do elegante cabelo rinsado de azul, parecia velha.

 

— Ele está mal — respondeu. — Um padre veio dar a extrema-unção a ele.

 

— Oh, que sujeira. E tão perto assim do Natal.

 

— Alguém foi até a Deakman apanhar a coleta dele? Ela fitou-o com um leve ar de censura.

 

— Tom enviou Harry Jones. Ele trouxe a carga há cinco minutos.

 

— Ótimo — disse, mas não era ótimo.

 

Era ruim. Pensou em descer até a sala de lavagem e jogar Hexlite suficiente nas máquinas para desintegrar tudo aquilo e quando a operação de secagem terminasse e Pollack as abrisse nada encontraria senão uma pilha de flocos cinzentos. Isso seria ótimo.

 

Phyllis dissera alguma coisa, que ele não ouvira.

 

— O quê? Desculpe.

 

— Eu disse que o sr. Ordner telefonou. Ele quer que o senhor ligue para ele imediatamente. E também um tal Harold Swinnerton. Disse que os charutos haviam chegado.

 

— Harold...? — Lembrou-se então da Casa Harvey, Armeiros. Apenas Harley, como Marley, estava morto e enterrado. — Sim, certo.

 

Entrou no seu gabinete particular e fechou a porta. A tabuleta em cima da escrivaninha ainda dizia:

 

PENSE!

 

Isso Talvez Seja uma Nova Experiência!

 

Tirou-a de cima da mesa e jogou-a na cesta de papéis usados. Clunk.

 

Sentou-se à mesa, tirou tudo que havia na bandeja de Entrada e lançou tudo na cesta sem examinar nada. Parou e olhou em volta. As paredes eram forradas com lambris. À esquerda, dois diplomas emoldurados: um da faculdade, o outro do Instituto de Artes de Lavagem, onde estudara nos verões de 1969 e 1970. Atrás da mesa, uma grande ampliação de si mesmo apertando a mão de Ray Tarkington, no pátio de estacionamento da Blue Ribbon. Ele e Ray sorriam. A lavanderia era vista no fundo, três caminhões encostados na porta de carga. A chaminé ainda parecia conservar-se muito branca.

 

Ocupava esse gabinete desde 1967, há mais de seis anos. Desde antes de Woodstock, antes do Kent State, antes do assassinato de Robert Kennedy e Martin Luther King, desde antes de Nixon. Anos de vida passados entre aquelas quatro paredes. Milhões de respirações, milhões de batidas do coração. Olhou em volta, procurando descobrir se sentia alguma coisa. Sentiu uma leve tristeza. Só isso.

 

Esvaziou as gavetas, jogando fora documentos pessoais e seus livros de contas particulares. Escreveu seu pedido de demissão nas costas de uma fórmula impressa de lavagem e enfiou-a em um envelope de pagamento da lavanderia. Deixou as coisas impessoais — clipes de papel, fita adesiva, o grande talão de cheques, a pilha de cartões de ponto em branco, presa com elástico.

 

Levantou-se, tirou os dois diplomas da parede e jogou-os na cesta. O vidro que cobria o diploma do Instituto de Artes de Lavagem quebrou-se. Os retângulos onde os diplomas haviam estado pendurados durante todos esses anos eram um pouco mais claros do que o resto da parede, e isso era tudo.

 

O telefone tocou; e atendeu, pensando que devia ser Ordner. Mas era Ron Stone, telefonando do térreo.

 

— Bart?

 

— Eu.

 

— Johnny faleceu há meia hora. Acho que ele nunca teve a menor chance.

 

— Fico muito triste em saber disso. Eu quero que você feche pelo resto do dia, Ron.

 

Ron suspirou.

 

— Essa é a melhor coisa a fazer, acho. Mas os chefões não vão lhe dar uma espinafração por isso?

 

— Eu não trabalho mais para os chefões. Acabei de redigir meu pedido de demissão.

 

Aí estava. Dera a notícia. Isso tornava real a situação.

 

Caiu um silêncio mortal no outro lado da linha. Ouviu o som das lavadoras e o silvo regular da calandras. As mutiladoras, com a chamavam, por causa do que aconteceria se uma parte do cara ficasse preso numa delas.

 

— Eu devo ter entendido mal — disse finalmente Ron. — Pensei ter ouvido você dizer...

 

— Eu disse mesmo, Ron. Acabei por aqui. Foi um prazer trabalhar com você, com Tom e mesmo com Vinnie, nas vezes em que ele conseguia manter o bico calado. Mas acabou.

 

— Hei, escute, Bart. Vá com calma. Sei que tudo isto deixou-o perturbado...

 

— Não é por causa de Johnny — disse, sem saber se isso era verdade ou não. Talvez ainda pudesse ter feito um esforço para salvar-se, salvar a vida que existira sob um domo protetor de rotina nos últimos vinte anos. Mas quando o padre passara rapidamente por eles e descera o corredor quase correndo, dirigindo-se para o lugar onde Johnny estava morrendo ou já morto, renunciara a tudo. Fora tal como dirigir um carro numa derrapagem, ou procurar enganar-se dizendo a si mesmo que está guiando, e então tirar as mãos do volante e tapar com elas os olhos.

 

— Não é por causa de Johnny — repetiu.

 

— Bem, escute... escute... — Ron parecia nervoso.

 

— Ouça, eu converso depois com você, Ron — disse, sem saber se faria isso ou não. — Vá em frente, mande o pessoal bater o cartão de ponto e dispense todos.

 

— Tudo bem, tudo bem, mas... Ele desligou, suavemente.

 

Tirou da gaveta o catálogo telefônico e procurou nas páginas amarelas sob o título ARMAS. Discou para a Casa Harvey, Armeiros.

 

— Alô, Casa Harvey.

 

— Fala aqui Barton Dawes — disse

 

— Oh, Aqueles cartuchos chegaram no fim da tarde de ontem. Eu lhe disse que os receberia com tempo de sobra para o Natal. Duzentos tiros.

 

— Ótimo. Escute, vou ficar horrivelmente ocupado esta tarde. Vocês abrem hoje à noite?

 

— Ficaremos abertos até às 9h até o Natal.

 

— Ótimo. Vou tentar chegar aí por volta de 8h. Se não, amanhã à tarde, com certeza.

 

— Tudo bem. Hei, descobriu se era Boca Rio?

 

— Boca... — Oh, sim, Boca Rio, onde seu primo Nick Adams logo estaria caçando. — Boca Rio, sim, acho que é isso mesmo.

 

— Jesus, que inveja tenho dele. A vez cm que estive lá foi o melhor tempo de toda minha vida.

 

— Mantém-se o duvidoso cessar-fogo — disse.

 

Uma súbita imagem lhe ocorreu, a cabeça empalhada de Johnny Walker em cima da lareira de fogo elétrico de Ordner, com uma pequena placa de bronze polido embaixo, dizendo:

 

HOMO LAUNDROMAT 28 de novembro de 1973 Abatido na esquina da Deakman

 

— O quê? — perguntou Harry Swinnerton, um pouco confuso.

 

— Eu disse que tenho inveja dele, também — respondeu, e fechou os olhos. Uma onda de náusea subiu pelo interior do corpo. Estou tendo um colapso nervoso, pensou, isto é chamado de colapso nervoso.

 

— Oh, bem, então até mais ver.

 

— Claro. Obrigado, mais uma vez, sr. Swinnerton.

 

Desligou, abriu os olhos novamente para o escritório desnudado. Apertou o botão do sistema de comunicação interna.

 

— Phyllis?”

 

— Sim, sr. Dawes?

 

— Johnny faleceu, vamos fechar a casa.

 

— Eu vi gente saindo e pensei que ele devia ter morrido.

 

Phyllis dava a impressão de que podia ter estado chorando.

 

— Antes de sair, veja se consegue ligar para o sr. Ordner, sim?

 

— Sim, senhor.

 

Girou a cadeira e olhou pela janela. Uma gradeadora de estrada, pintada de alaranjado brilhante, passava pesadamente, correntes em suas rodas gigantescas, surrando a estrada. Isso é culpa deles, Freddy. Tudo culpa deles. Eu estava indo bem até que aqueles caras na Prefeitura resolveram esculhambar minha vida. Eu estava indo bem, certo, Freddy.

 

Freddy?

 

Fred?

 

O telefone tocou e ele levou o aparelho ao ouvido.

 

— Dawes.

 

— Você enlouqueceu — disse secamente Steve Ordner. — Ficou inteiramente pirado.

 

— O que é que você quer dizer com isso?

 

— Quero dizer que liguei pessoalmente para o sr. Monohan esta manhã, às 9’30h. O pessoal da McAn assinou às 9h os documentos de compra da instalação de Waterford. Agora, o que diabo foi que aconteceu, Bart?

 

— Acho que é melhor discutirmos isso pessoalmente.

 

— E eu também. E acho que deve saber que vai ter que dar umas explicações muito boas para salvar seu emprego.

 

— Deixe de fazer brincadeiras comigo, Steve.

 

— O quê?

 

— Você não tinha a menor intenção de me conservar, nem mesmo como varredor. Já escrevi meu pedido de exoneração. Está num envelope fechado, mas posso citá-lo de memória. “Demito-me. Assinado, Barton Georges Dawes”.

 

— Mas por quê? — Ele parecia fisicamente ferido. Mas não estava chorando, como Arnie Walker. Duvidava muito que Steve Ordner tivesse derramado uma única lágrima desde seus 11 anos. O choro era o último recurso de inferiores.

 

— Duas horas? — perguntou.

 

— Duas está bem.

 

— Adeus, Steve.

 

— Bart...

 

Desligou e olhou, expressão vazia, para a parede. Após algum tempo, Phyllis enfiou a cabeça pela fresta da porta, parecendo cansada, nervosa e confusa embaixo de seu elegante penteado Pessoa Mais Velha. Ver o chefe sentado tranqüilamente no escritório desnudo em nada contribuiu para lhe melhorar o estado mental.

 

— Sr. Dawes, quer que eu vá embora? Eu teria prazer em ficar se...

 

— Não, vá embora, Phyllis. Vá pra casa.

 

Ela deu a impressão de que lutava consigo mesma para dizer mais alguma coisa. Ele virou-se e olhou pela janela, na esperança de poupar a ambos um embaraço. Após um momento, ela fechou a porta, bem devagar.

 

Embaixo, a caldeira soltou um chiado e apagou. Motores começaram a ser ligados no pátio de estacionamento.

 

Ficou ali sentado no escritório vazio, na lavanderia vazia, até chegar a hora de ir ao encontro de Ordner. Estava se despedindo.

 

O escritório de Ordner situava-se no centro, cm um dos altos prédios comerciais que a crise de energia poderia, antes de muito tempo, tornar obsoletos. Setenta andares de altura, todo de vidro, ineficiente para aquecer no inverno, um horror para esfriar no verão. Os escritórios da Amroco ocupavam o 54o andar.

 

Estacionou no porão, tomou a escada rolante até o nível do saguão, cruzou portas giratórias e chegou à bateria direita de elevadores. Subiu em companhia de uma negra que usava um grande penteado afro. Usava também jaqueta com capuz e levava na mão um bloco de estenografia.

 

De repente, sem razão nenhuma, ele disse:

 

— Gosto de seu afro.

 

Ela olhou-o friamente e nada disse. Nada, absolutamente.

 

A sala de espera de Stephen Ordner era decorada com cadeiras estilo moderno e uma secretária ruiva que se sentava embaixo de uma reprodução do “Girassóis”, de Van Gogh. Um felpudo tapete cinzento-claro cobria o chão. Iluminação indireta, música indireta, tocando Mantovani.

 

A ruiva sorriu-lhe. Usava casaco e capuz pretos e tinha os cabelos presos numa rede dourada.

 

— Sr. Dawes?

 

— Sim.

 

— Pode entrar, por favor.

 

Abriu a porta e entrou. Ordner escrevia nesse momento alguma coisa à escrivaninha, que possuía um impressionante tampo de Lucile. Atrás dele, uma janela panorâmica oferecia uma visão da zona oeste da cidade. Ele ergueu a vista e pôs a caneta de lado.

 

— Olá, Bart — disse tranqüilamente.

 

— Olá.

 

— Sente-se.

 

— Isso vai demorar tanto tempo assim? Ordner olhou-o fixamente.

 

— Eu gostaria de lhe dar uma bofetada — disse ele. — Saiba disso. Gostaria de esbofeteá-lo em volta deste gabinete. Não socá-lo apenas ou espancá-lo. Mas esbofeteá-lo.

 

— Eu sabia disso — respondeu ele, e sabia.

 

— Acho que você não tem a menor idéia do que jogou fora — continuou Ordner. — Acho que o pessoal da McAn abordou-o. Tomara que lhe tenham pago bastante. Porque eu havia pessoalmente escolhido você para ocupar uma vice-presidência executiva nesta empresa. Esse cargo, para começar, teria implicado um salário de 35 mil dólares anuais. Tomara que lhe tenham pago mais do que isso.

 

— Eles não me pagaram nem um centavo.

 

— Isso é verdade?

 

— É...

 

— Neste caso, por quê, Bart? Por quê, em nome de Deus?

 

— Por que eu deveria lhe dizer, Steve?

 

Sentou-se na cadeira que fora oferecida, a cadeira do suplicante, em frente à grande escrivaninha com tampo de Lucite.

 

Durante um momento, Ordner pareceu desarvorado, sem saber o que dizer. Sacudiu a cabeça como faz um pugilista quando atingido, mas não gravemente.

 

— Porque você é meu empregado. Que tal isso para começar?

 

— Não é suficientemente bom.

 

— O que é que isso significa?

 

— Steve, eu fui empregado de Ray Tarkington. Ele era uma pessoa real. Você pode não ter gostado dele, mas teve que admitir que ele era real. Às vezes você falava com ele, ele soltava um peido, arrotava ou enfiava um dedo na orelha. Ele tinha problemas reais. Às vezes, eu era um dos problemas. Certa vez, quando tomei uma decisão errada sobre a cobrança de uma conta a um motel na Crager Plaza, ele me jogou contra a porta. Você não é igual a ele. Para você, a Blue Ribbon é um brinquedo, Steve. Você não se importa comigo. Você se importa com sua própria mobilidade vertical. De modo que não me venha com essa merda de empregado. Não finja que meteu seu pau na minha boca e que eu o mordi.

 

Se o rosto de Ordner era fachada, nela não havia rachaduras. A fisionomia continuou a registrar uma moderada aflição, só isso.

 

— Você acredita realmente nisso? — perguntou.

 

— Acredito. Você só se preocupa com a Blue Ribbon na medida em que ela afeta seu status na empresa. De modo que vamos acabar com essa merda. Tome aqui.

 

Empurrou o pedido de demissão para o outro lado do tampo de Lucite. Ordner deu outra pequena sacudidela na cabeça.

 

— E o que é que você me diz das pessoas que magoou, Bart? As pessoas humildes. À parte tudo mais, você ocupava uma posição de importância. — Pareceu saborear a frase. — O que é que me diz das pessoas na lavanderia que são contra perder os empregos porque não têm um lugar para onde se mudar.

 

Bart riu asperamente e disse:

 

— Seu filho da puta barato, você não está alto demais para ver o que se passa embaixo?

 

Ordner ficou vermelho. Respondeu, medindo as palavras:

 

— É melhor você explicar isso, Bart.

 

— Todos os assalariados da lavanderia, de Tom Granger ao garoto Pollack na sala das lavadoras, possuem seguro-desemprego. Deles. Pagam esse seguro. Se está tendo problema com esse conceito, pense nele como uma dedução na declaração de imposto de renda. Tal como um almoço com quatro coquetéis no Benjamin’s.

 

Atingido, Ordner respondeu:

 

— Isso é dinheiro da previdência social e você sabe disso. Bart repetiu:

 

— Seu filho da puta ordinário.

 

As mãos de Ordner se juntaram, as duas cerradas em punho, como as mãos de uma criança que foi ensinada a rezar o Pai-Nosso ao lado da cama.

 

— Você esta passando dos limites, Bart.

 

— Não, não estou. Você me chamou aqui. Pediu que eu explicasse. O que era que queria ouvir de mim? Sinto muito, botei tudo a perder, quer que eu indenize a companhia? Não posso fazer isso. Não estou arrependido, não vou indenizar coisa nenhuma. E se botei tudo a perder, isso é um assunto entre mim e Mary. E ela nunca nem mesmo saberá, não com certeza. Vai me dizer que eu prejudiquei a empresa? Acho que nem mesmo você é capaz dessa mentira. Depois que uma empresa atinge certo tamanho, nada pode prejudicá-la. Ela se transforma em um ato de Deus. Quando as coisas correm bem, ela obtém um lucro imenso, quando ficam ruins, ela apenas lucra e quando vai para a cucuia, ela abate tudo no imposto de renda. Bem, você sabe disso. Pesando as palavras, Ordner perguntou:

 

— E o seu futuro? E o futuro de Mary?

 

— Você não se preocupa com isso. Isso é apenas uma alavanca que pensa que pode usar. Vou-lhe perguntar uma coisa, Steve. Isso vai prejudicá-lo? Vai lhe reduzir o salário? Seu dividendo anual? Seu fundo de aposentadoria?

 

Ordner sacudiu a cabeça.

 

— Vá pra casa, Bart. Você não está regulando bem.

 

— Por quê? Porque estou falando a seu respeito e não apenas sobre dinheiro?

 

— Você está perturbado, Bart.

 

— Você não sabe — disse ele, levantando-se e plantando os punhos sobre o tampo de Lucite. — Você está danado comigo mas não sabe por quê. Alguém lhe disse que se uma situação como essa surgisse você deveria ficar furioso. Mas você não sabe por quê.

 

Ordner repetiu, pausadamente:

 

— Você está perturbado.

 

— Você tem toda razão. E você?

 

— Vá pra casa, Bart.

 

— Não vou, mas vou deixá-lo sozinho e é isso o que você quer. Simplesmente, responda a uma pergunta. Durante um segundo, deixe de ser um homem de empresa e me responda a uma única pergunta. Você se importa com isso? Qualquer parte dessa situação significa alguma coisa para você?

 

Ordner fitou-o durante o que pareceu um longo tempo. A cidade estendia-se às costas dele como um reino de torres envolvido em cinzentos e nevoeiros. Respondeu:

 

— Não.

 

— Muito bem. — Olhou para Ordner sem nenhuma animosidade. — Eu não fiz isso para foder você. Nem a empresa.

 

— Então, por quê? Respondi à sua pergunta. Agora, responda à minha. Você podia ter assinado a compra da instalação de Waterford. Depois disso, ela teria sido a dor de cabeça de alguma outra pessoa. Por que não assinou?

 

— Não posso explicar — respondeu ele. — Escutei a mim mesmo. As pessoas, porém, escutam dentro de si uma linguagem diferente. E é uma merda quando a gente tenta explicar isso. Mas foi a coisa certa a fazer.

 

Ordner fitou-o, impassível.

 

— E Mary?

 

Bart ficou calado.

 

— Vá pra casa, Bart — disse Ordner.

 

— O que é que você quer, Steve? Ordner sacudiu impaciente a cabeça.

 

— Terminamos. Se você não quer uma sessão de encontro com alguma pessoa, vá para um bar.

 

— O que é que você quer de mim?

 

— Apenas que caia fora daqui e vá pra casa.

 

— O que é que você quer da vida, então? Quando está preso a coisas?

 

— Vá pra casa, Bart.

 

— Responda-me! O que é que você quer?

 

Olhou francamente para Ordner. Que respondeu:

 

— Quero o que todo mundo quer. Vá pra casa, Bart.

 

Ele saiu sem olhar para trás. E nunca mais voltou a entrar ali.

 

Ao chegar a Revenda de Carros Usados Magliore a neve caía forte e a maioria dos carros pelos quais passara estavam com os faróis acesos. Seus limpadores de pára-brisa varriam sem cessar o vidro, de um lado para o outro, e fora de seu alcance a neve que degelara, transformara-se em lama suja e descia pelo Saf-T-Glass como se fossem lágrimas.

 

Estacionou nos fundos da firma e deu a volta no prédio para chegar ao escritório. Antes de entrar, olhou para seu reflexo fantasmagórico no vidro laminado e esfregou os lábios. O encontro com Ordner perturbara-o mais do que teria acreditado. Comprara um vidro de Pepto-Bismol numa farmácia e tomara metade a caminho dali. Provavelmente não vou cagar durante uma semana, Fred. Freddy, porém, não estava em casa. Provavelmente fora visitar os parentes de Monohan em Bombaim.

 

A mulher atrás da máquina de somar lançou-lhe um estranho olhar especulativo e com um gesto mandou-o entrar.

 

Encontrou Magliore sozinho, lendo o The Wall Street Journal. Quando entrou, Magliore jogou-o por cima da mesa, e o jornal caiu na cesta de papéis usados com um som crepitante.

 

— As coisas todas estão indo pro inferno — disse Magliore, como se estivesse continuando um monólogo interior que começara há algum tempo. — Todos esses corretores de ações são umas velhas, como diz Paul Harvey. O presidente renunciará? Fará isso? Não fará? Deverá fazer? Estará a GE indo a falência por causa da carência de energia? Tudo isso é pra mim um chute no saco.

 

— De fato — disse, mas sem saber bem com o que estava concordando.

 

Sentiu-se inquieto e não estava inteiramente convencido de que Magliore lembrava-se de quem ele era. O que era que deveria dizer? Eu sou o cara que o chamou de caralhão, lembra-se? Cristo, isso não era maneira de começar.

 

— Nevando forte, não?

 

— É, está.

 

— Odeio neve. Meu irmão, ele vai pra Puerto Rico no dia lo de novembro e fica lá até 15 de abril. É dono de 40% de um hotel por lá. Diz que tem que cuidar de seus investimentos. Merda. Ele não saberia como cuidar do próprio cu se a gente lhe desse um rolo de papel higiênico. O que é que você quer?

 

— Alin?

 

Sobressaltou-se um pouco e sentiu-se culpado.

 

— Você veio aqui para obter alguma coisa. Como é que posso obtê-la para você se não sei o que é?

 

Quando a pergunta foi feita tão bruscamente assim, achou difícil responder. A palavra referente ao que queria parecia ter quinas demais para sair de sua boca. Lembrou-se de uma coisa que fizera no tempo de menino e sorriu um pouco.

 

— Qual é a graça? — perguntou Magliore com seca cordialidade. — Da maneira como estão os negócios, bem que eu apreciaria uma piada.

 

— Uma vez, quando eu era menino, enfiei um ioiô na boca — respondeu ele.

 

— E isso é engraçado?

 

— Não. Mas não consegui tirá-lo. Isso é engraçado. Minha mãe me levou ao médico para tirá-lo. Ele deu um beliscão cm minha bunda e, quando abri a boca para gritar, ele simplesmente puxou o ioiô.

 

— Eu não vou beliscar sua bunda — prometeu Magliore. — O que é que você quer, Dawes?

 

— Explosivos.

 

Magliore fitou-o. Rolou os olhos para cima. Fez menção de dizer alguma coisa mas simplesmente deu uma palmada na bochecha.

 

— Explosivos.

 

— Isso mesmo.

 

— Eu sabia que esse cara era bicha — disse ele para si mesmo. — Disse isso a Pete quando você saiu daqui. Lá vai um cara doido para que lhe aconteça um acidente. Foi isso o que eu disse a ele.

 

Ele permaneceu calado. Conversas sobre acidente faziam-no lembrar-se de Johnny Walker.

 

— Tudo, tudo bem, engulo essa. Para o que é que você quer explosivos? Vai explodir a Exposição Comercial Egípcia? Vai seqüestrar um avião? Ou simplesmente mandar sua sogra pro inferno?

 

— Eu não desperdiçaria explosivos com ela — disse ele formalmente e isso fez com que ambos rissem, mas não acabou a tensão.

 

— Nesse caso, o que é? Contra quem você tem uma tesão? Ele respondeu:

 

— Não tenho tesão contra ninguém. Se quisesse matar alguém, compraria uma arma.

 

E lembrou-se de que comprara de fato uma arma, duas, na verdade, e o estômago drogado com Pepto-Bismol começou a revirar-se novamente.

 

— Se assim, por que precisa explosivos?

 

— Quero explodir uma estrada.

 

Magliore olhou-o com ponderada incredulidade. Todas suas emoções pareciam exageradas, como se ele houvesse adaptado seu caráter para combinar com as propriedades ampliadoras dos óculos que usava.

 

— Você quer explodir uma estrada? Que estrada?

 

— Ela não foi construída ainda.

 

Estava começando a tirar uma espécie de prazer deformado dessa situação. E, naturalmente, adiava a confrontação inevitável com Mary.

 

— De modo que você quer explodir uma estrada que ainda não foi construída. Eu me enganei com você, moço. Você não é veado. Você é psico. Não pode dizer coisa com coisa?

 

Explicando com cuidado as palavras, ele explicou:

 

— Estão construindo uma estrada que é conhecida como ampliação 784. Quando estiver pronta, a estrada de pedágio estadual passará através da cidade. Por algumas razões que não quero discutir — porque não posso— a estrada destruiu vinte anos de minha vida. Ela é...

 

— Por que e!a vai derrubar a lavanderia onde você trabalha e também sua casa?

 

— Como foi que descobriu isso?

 

— Eu lhe disse que ia mandar investigá-lo. Pensou que eu estava brincando? Eu sabia até que ia perder o emprego. Talvez antes do senhor.

 

— Não, eu já sabia disso há um mês — retrucou ele, sem pensar no que estava dizendo.

 

— E como é que vai fazer isso? Estava pensando simplesmente em passar de carro pela obra, acendendo pavios com o charuto e jogando bananas de dinamite pela janela?

 

— Não. Quando há um feriado, deixam todas as máquinas no local. Eu ia explodir todas elas. E todas as três novas passagens de nível. Quero explodi-las, também.

 

Magliore fitou-o, olhos esbugalhados. Durante muito tempo. Depois, jogou a cabeça para trás e riu. A barriga sacudiu-se e o cinto subiu e desceu como um pedaço de madeira no alto de uma grande onda. Um riso rico, gostoso, sonoro. Riu até que lágrimas espirraram lhe dos olhos. Tirou do bolso um lenço imenso do tipo usado em óperas-bufas e enxugou-os. Ele ficou olhando Magliore rir e, de repente, teve absoluta certeza de que esse homem gordo de grossos óculos ia vender-lhe os explosivos. Observou-o com um leve sorriso nos lábios. Não se importava com o riso do interlocutor. Naquele dia, riso tinha um som agradável.

 

— Homem, você é doido de pedra — disse, quando o riso diminuiu para risadinhas e fungadelas. — Eu gostaria que Pete estivesse aqui para ouvir isso. Ele não ia acreditar de jeito nenhum. Você ontem me chamou de c-caralhão e h-hoje... h-hoje...

 

E recomeçou, o riso transformado em rugido, o lenço nos olhos para secar as lágrimas.

 

Quando o divertimento diminuiu um pouco, perguntou:

 

— Como é que vai financiar essa pequena aventura, sr. Dawes? Agora que não tem mais um emprego remunerado?

 

Que maneira esquisita de dizer aquilo. Não tem mais um emprego remunerado. Quando você disse isso, dessa maneira, falou a verdade. Ele não tinha mais emprego. Nada daquilo era um sonho.

 

— Resgatei meu seguro de vida na semana passada — explicou. — Eu estive pagando uma apólice de dez mil dólares nos últimos dez anos. Consegui resgatar três mil.

 

— Esteve realmente planejando isso durante tanto tempo assim?

 

— Não — respondeu ele com toda honestidade. — Quando resgatei a apólice, não tinha certeza do que queria fazer com o dinheiro.

 

— Naqueles dias você ainda mantinha abertas as suas opções, certo? Pensava que podia queimar a estrada, metralhá-la até a morte, estrangulá-la ou...

 

— Não. Eu simplesmente não sabia o que ia fazer. Agora, sei.

 

— Bem, não conte comigo.

 

— O quê? — Olhou pestanejando para Magliore, honestamente espantado.

 

Isso não estava no roteiro. Esperava que Magliore lhe criasse dificuldade, mais ou menos duro como o seria um pai. Depois lhe venderia os explosivos. Esperava também que Magliore dissesse: Se você for preso, vou negar ter qualquer conhecimento de sua existência.

 

— O que foi que o senhor disse?

 

— Eu disse não. N-ã-o. Que se escreve n, a, o, til, não.

 

Todo bom humor lhe deixara os olhos. Estavam sem expressão e, de repente, haviam ficado pequenos a despeito da ampliação causada pelos óculos. Não eram absolutamente os olhos de um Papai Noel napolitano folgazão.

 

— Escute — disse ele a Magliore. — Se eu for preso, negarei ter jamais ouvido falar no senhor. Nunca mencionarei seu nome.

 

— Uma merda que não mencionaria. Despejaria tudo e alegaria insanidade mental. Eu pegaria prisão perpétua.

 

— Não, ouça...

 

— Você é que vai me ouvir. — cortou-o Magliore. — Você é engraçado até certo ponto. E já chegou a ele. Eu disse não, e é não. Nem armas, nem explosivos, nem dinamite, nem nada. Por quê? Porque você é um veado e eu sou um empresário. Alguém lhe disse que eu podia “arranjar” coisas. Posso, certo. Arranjei um bocado de coisas pra um bocado de caras. Arranjei também umas coisas pra mim. Em 1946, peguei uma sentença de dois a cinco anos por transportar uma arma escondida. Cumpri dez meses. Em 1952, fui acusado de formação de quadrilha, mas consegui me safar. Em 1955, fui acusado de sonegação de imposto, e me safei também. Em 1959, fui processado como receptador, e dessa não me livrei. Cumpri 18 meses em Castleton, mas o cara que deu o serviço no tribunal arranjou um buraco no chão. Desde 1959, fui acusado três vezes, dois arquivados por falta de provas e um fui inocentado. Gostariam de me pegar porque, mais uma condenação e eu pegaria vinte anos, nada de livramento condicional. Em um homem na minha situação, a única parte dele que deixa a prisão após vinte anos são os rins, que dão a algum negro de Norton que está na enfermaria gratuita. Isto para você é um jogo. Maluco, mas um jogo. Pra mim não é jogo nenhum. Você pensa que está dizendo a verdade quando diz que ficaria calado. Mas está mentindo. Não a mim, mas a você. De modo que a resposta é um categórico não. — Levantou as mãos pro céu. — Se fosse mulheres que queria, Jesus, eu lhe daria duas, gratuitamente, pelo espetáculo de pista que deu ontem aqui. Mas não vou topar nada disso.

 

— Tudo bem — disse ele, o estômago pior de que nunca, a impressão de que ia vomitar.

 

— Este lugar está limpo — continuou Magliore —, e eu sei que está. Além disso, sei que você é limpo, embora Deus saiba que não vai ficar se continuar assim. Mas vou-lhe dizer uma coisa. Há uns dois anos, um negro me procurou e disse que queria explosivos. Ele não ia explodir nada inocente, como uma estrada. Ele ia explodir uma droga de tribunal federal.

 

Não me diga mais nada, pensou ele. Vou vomitar, acho. O estômago lhe pareceu estar cheio de penas, todas elas fazendo cócegas ao mesmo tempo.

 

— Vendi o troço a ele — prosseguiu Magliore. — Um pouco disso, um pouco daquilo. Regateamos. Ele falou com seu pessoal, eu falei com o meu. Dinheiro mudou de mãos. Um bocado de dinheiro. O material mudou de mãos. Pegaram o cara e dois dos amigos dele antes que pudesse machucar alguém, graças a Deus. Mas nunca perdi um minuto de sono preocupando-me porque ele ia dar o serviço aos tiras, ao promotor público ou ao Efe Bê I. Sabe por quê? Porque ele andava com um bando de veados, veados negros, e eles são a pior raça, e um bando de veados é um caso inteiramente diferente. Quanto a um único maluco como você, o Efe Bê I não dá a mínima. Ele se acaba logo. Mas se há trinta caras e três deles são presos, eles simplesmente fecham a boca e não abrem.

 

— Tudo bem — repetiu ele, sentindo os olhos pequenos e quentes.

 

— Escute — disse Magliore, um pouco mais calmo. — Três mil dólares, de qualquer maneira, não seriam suficientes para o que você quer. Isso é como o mercado negro, entendeu? Seria preciso três ou quatro vezes mais para comprar o material que você quer.

 

Ele ficou calado. Não podia ir embora até que Magliore o dispensasse. Essa situação era como um pesadelo, apenas não era pesadelo. Tinha que continuar dizendo a si mesmo que não ia fazer nenhuma coisa estúpida na presença de Magliore, Tal como beliscar-se para acordar.

 

— Dawes?

 

— O quê?

 

— De nada adiantaria, no final das coisas. Será que não sabe disso? Você explodir uma pessoa, um marco natural ou destruir uma peça bela de arte, como aquele doido que atacou a Pietá com um martelo, que o pau dele apodreça. Mas não pode explodir prédios, estradas ou coisas assim. É o que esses negros idiotas não compreendem. Se você explode um tribunal federal, os federais constroem dois em seu lugar — um para substituir o que foi explodido e outro para condenar todo negro safado que passa pela porta de entrada. Se você anda por aí matando tiras, eles contratam seis por cada um que você mata — e cada um dos novos tiras fica doido pra passar fogo em carne negra. Você não pode ganhar, Dawes. Branco ou negro. Se você se meter na frente daquela estrada, passam por cima de você, como vão fazer com sua casa e fizeram com seu emprego.

 

— Vou ter que ir agora — ouviu-se ele dizer em voz abafada.

 

— Vá, você parece em mau estado. Precisa tirar isso de seu sistema. Posso lhe arranjar uma velha puta, se quiser. Velha e estúpida. Se quiser, pode dar uma surra nela. Livrar-se do veneno. Eu até que gosto de você e...

 

Ele correu dali. Correu cegamente, passou pela porta, cruzou o escritório principal e saiu para a neve, onde ficou tremendo, bebendo em grandes haustos conge-lantes o ar nevado. Teve de repente certeza de que Magliore viria atrás dele, agarrá-lo-ia pelo colarinho, levá-lo-ia de volta ao escritório e conversaria com ele até o fim dos tempos. Quando Gabriel tocasse a trombeta do Apocalipse, Sally Caolho ainda lhe estaria explicando pacientemente a invulnerabilidade de todos os sistemas, em toda parte, e insistindo que ele aceitasse a velha puta.

 

Ao chegar em casa a neve já tinha quase 15cm de altura. As gradeadoras haviam passado e teve que romper com o LTD um montículo de neve endurecida antes de poder entrar em sua garagem. Para o LTD aquilo não foi problema. Era um carro bom e pesado.

 

Encontrou a casa às escuras. Quando abriu a porta e entrou, batendo com os pés no capacho para soltar a neve, notou que estava também silenciosa. Merv Griffin não estava conversando com nenhuma celebridade.

 

— Mary? — gritou. Nenhuma resposta. — Mary?

 

Pensou que ela não estava em casa até ouvir-lhe o choro na sala de estar. Tirou o sobretudo e pendurou-o no armário. Nele havia uma pequena caixa no chão, sob o cabide. A caixa estava vazia. Mary colocava-a ali todos os invernos para receber os pingos. Às vezes, pensava: quem é que se importa com pingos em um armário? Nesse momento a resposta lhe ocorreu, perfeita em sua simplicidade. Mary se importava. Era por isso.

 

Entrou na sala. Encontrou-a sentada no sofá em frente à TV Zenith apagada, chorando. Não usava lenço. Tinha as mãos ao lado do corpo. Ela sempre fora chorona discreta, indo para o banheiro do primeiro andar quando queria fazer isso, ou, se surpreendida, escondia o rosto nas mãos ou num lenço. Assim como estava, parecia nua e obscena, com o rosto de uma vítima de acidente de avião. E apertou-lhe o coração.

 

— Mary — disse, baixinho.

 

Ela continuou a chorar e não olhou. Ele sentou-se ao lado dela.

 

— Mary — disse —, a coisa não é tão ruim assim. Nada é. Mas ficou em dúvida.

 

— É o fim de tudo — respondeu ela e as palavras lhe saíram dos lábios aos arrancos, entrecortadas pelo choro.

 

Estranhamente, a beleza que ela nem conseguira nem perdera para sempre, aparecia nesse momento em seu rosto, brilhando. Nesse momento de destruição final era uma mulher linda.

 

— Quem foi que lhe contou?

 

— Todo mundo me contou! — exclamou ela. Não queria ainda olhar para ele, mas uma mão subiu e fez movimento de batida e torção no ar antes de cair contra a perna de calça-esporte. — Tom Granger ligou. Depois, foi a mulher de Ron Stone. E em seguida Vincent Mason. Queriam saber o que estava acontecendo com você. E eu não sabia! Eu não sabia o que estava errado!

 

— Mary — disse ele e tentou segurar-lhe a mão.

 

Ela soltou-a com um repelão como se ele fosse portador de uma moléstia contagiosa.

 

— Você está me punindo? — perguntou ela e finalmente olhou-o. — É isso o que está me fazendo? Punindo-me?

 

— Não — disse ele com toda seriedade. — Oh, Mary, não. Teve vontade de chorar, mas isso seria errado. Muito errado.

 

— Porque eu lhe dei um bebê morto e depois um bebê com uma tendência de autodestruição inerente? Você pensa que assassinei seu filho? É esse o motivo?

 

— Mary, ele foi nosso filho...

 

— Ele era seu! — gritou ela,

 

— Não diga isso, Mary. Não diga isso. Tentou abraçá-la e ela o repeliu à força.

 

— Não toque em mim.

 

Entreolharam-se, atordoados, como se houvessem descoberto pela primeira vez que havia mais neles do que jamais tinham sonhado — espaços em branco enormes em algum mapa interior.

 

— Mary, não pude evitar o que fiz. Por favor, acredite nisso. — Mas isso poderia ser uma mentira. Ainda assim, continuou: — Se teve alguma coisa a ver com Charlie, teve. Fiz coisas que não compreendo. Eu... resgatei meu seguro de vida em outubro. Essa foi a primeira coisa, a primeira coisa real, mas coisas vinham acontecendo em minha cabeça muito antes disso. Mas era mais fácil fazer coisas do que falar sobre elas. Você pode entender isso? Não pode tentar?

 

— O que é que vai me acontecer, Barton? Eu não sei nada, exceto ser sua esposa. O que é que vai acontecer comigo, Barton?

 

— Não sei.

 

— E como se você tivesse me estuprado — disse ela e voltou a chorar.

 

— Mary, por favor, não faça mais isso. Não... Tente não fazer mais isso.

 

— Quando esteve fazendo todas essas coisas, não pensou nunca em mim? Nunca pensou que eu dependo de você?

 

Ele não teve como responder. De uma maneira estranha, desligada, era como se estivesse falando novamente com Magliore. Era como se Magliore tivesse chegado em casa antes dele, vestido cinta, as roupas e a máscara de Mary. O que viria em seguida? O oferecimento da velha puta?

 

Ela levantou-se.

 

— Vou lá para cima. Vou me deitar.

 

— Mary...

 

Ela não o interrompeu, mas ele descobriu que não havia palavras para seguir aquela.

 

Ela deixou a sala e ele ouviu-lhe o som dos passos, subindo a escada. Depois, o estalido da cama quando ela se deitou. E em seguida, mais choro. Levantou-se, ligou a TV e aumentou o volume para abafar o choro da mulher. Na TV, Merv Griffin conversava com celebridades.

 

 

 

 

 

 

DEZEMBRO

 

Ah, amor, sejamos sinceros

 

Um com o outro porque o mundo, que parece

 

Estender-se diante de nós como uma terra de sonhos,

 

Tão variado, tão belo, tão novo,

 

Realmente não tem nem alegria, nem amor, nem luz,

 

Nem certeza, nem paz, nem alívio para a dor.

 

E aqui estamos como se uma planície que escurece

 

Varrida por confusos exércitos de luta e fuga,

 

Onde exércitos ignorantes se digladiam à noite.

 

 

 

— "Matthew Arnold “Dover Beach”

 

5 de dezembro de 1973

 

Estava tomando sua bebida particular, Southern Comfort e Seven-Up e assistindo a um programa de TV cujo nome não sabia. O herói do programa era um tira à paisana ou um detetive particular e um cara atingira-o na cabeça. Isso fizera com que o tira à paisana (ou detetive particular) chegasse à conclusão de que estava chegando perto de alguma coisa. Mas antes de ter oportunidade de dizer isso, o programa foi substituído por um comercial do Gravy Train. O apresentador do comercial dizia que Gravy Traiu, quando misturado com água quente, fazia seu próprio molho. E perguntava à platéia se o resultado não parecia exatamente igual a molho de guisado de bife. Para Barton George Dawes aquilo parecia exatamente uma cagada rala que alguém fizera num prato vermelho de cachorro. O programa voltou. O detetive particular (ou tira à paisana) estava interrogando um garçom de bar que possuía antecedentes criminais O garçom dizia sacou. O garçom dizia deu no pé. O garçom dizia babaca. Era um garçom de bar muito frio, certo, mas George Dawes pensava que o detetive particular (ou tira à paisana) sabia que era o tal.

 

Estava muito bêbado e assistia à televisão de cueca e nada mais. Fazia um grande calor na casa. Ligara o termostato para 26°C e o deixara nessa marca desde que Mary fora embora. Que crise de energia? Foda-se, Dick. E lambem o cavalo em que você veio. E que Checkers se foda, também. Quando entrou na estrada expressa, guiava a 115km/h e mostrara os dedos em forma de caralho e colhões aos motoristas que buzinaram chamando a atenção para a velocidade que desenvolvia. A especialista em consumo do presidente, uma mulher que dava a impressão de que poderia ter sido uma estrela infantil na década de 1930, antes que o tempo a transformasse numa hermafrodita política, falara em um programa de serviço, duas noites antes, comentando as maneiras como “Você & Eu!!!” podemos economizar eletricidade em casa. O nome dela era Virgínia Knauer e discorreu de forma muito pomposa sobre as diferentes maneiras como Você & Eu podemos economizar energia, porque esta crise é realmente séria e estamos todos na mesma canoa. Ao terminar o programa, ele fora à cozinha e ligara o misturador elétrico. A sra. Knauer dissera que os misturadores elétricos eram os segundos maiores desperdiçadores dos pequenos eletrodomésticos. Deixara o misturador ligado a noite toda e quando acordara na manhã seguinte o aparelho fundira o motor. Os maiores desperdiçadores de energia, pontificara a sra. Knauer, era aqueles pequenos aquecedores ambientais elétricos. Ele não possuía um desses, mas pensara em comprar um para deixar ligado dia e noite até queimar. Possivelmente, se estivesse bêbado e perdesse o sentido, queimaria também. Aquilo seria o fim de toda essa autocomiseração.

 

Serviu-se de outra bebida c começou a pensar nos velhos programas de TV, nos que eram apresentados ao tempo em que ele c Mary ainda eram praticamente recém-casados e um modelo consolo novinho em folha RCA — modelo comum, que se levava para o jardim de modelo consolo RCA em preto e branco — ainda era coisa para fascinar a pessoa. Lembrou-se do “The Jack Benny Program” e do “Amos ‘n Andy”, daqueles negros. E também de “Dragnet”, o “Dragnet” original, com Ben Alexander fazendo o papel de parceiro de Joe Friday, em vez daquele novo cara, Harry qualquer coisa. E de “Highway Patrol”, com Broderick Crawford, rosnando no seu microfone e todo mundo andando de Buicks que ainda tinham vigias nos lados. “Your Show of Shows”. “Your Hit Parade”, com Gisele Mackenzie cantando coisas como Green Door e Sranger in Paradise. O rock and roll liquidara esse programa. Ou os programas de perguntas e respostas, o que acontecera com eles? “Tic-Tac-Dough” e “Twenty-One” todas as noites de segunda-feira, estrelando Jack Barry. Pessoas entrando em cabines à prova de som, botando nas orelhas aqueles fones estilo ONU e ouvindo perguntas incríveis sobre as quais já haviam sido instruídos. O “The $64.000 Question”, com Hal March. Participantes cambaleando para fora do palco com os braços cheios de obras de referência. “Dotto”, com Jack Narz. E os programas das manhãs de sábado como “Arnie Oakley”, que estava sempre salvando o irmãozinho de confusões que nada tinham de cristãs. Ele sempre se perguntara se aquele garoto não era filho natural dela. E havia “Rin-Tin-Tin”, que tinha sua base de operações no Fort Apache, o “Sergeant Prcston”, que fazia o mesmo no Yukon — uma espécie de missão ambulante, caberia dizer. “Range Ridcr”, com Jock Mahoney. “Wild Bill Hickok”, com Guy Madison e Andy Devine como Jingles. Mary dizia: Bart, se pessoas soubessem que você assiste a isso, iam pensar que você é débil mental. Realmente, um homem de sua idade! E ele sempre respondera: Quero ter assunto para conversar com meus filhos. Exceto que nunca houve filhos, não, realmente. O primeiro nada mais fora do que coisa morta — como era aquela velha piada sobre botar rodas em abortos? — e o segundo fora Charlie, em quem era melhor não pensar. A gente se vê em meus sonhos, Charlie. Parecia que, todas as noites, ele e o filho se reuniam num e noutro sonho. Barton George Dawes e Charles Frederick Dawes reunidos pelas maravilhas da mente subconsciente. E aqui estamos, gente, de volta à mais nova pista de divertimentos do Disney World, A Terra da Autocomiseração, onde você pode fazer um passeio de gôndola pelo Canal das Lágrimas, visitar o Museu dos Velhos Instantâneos, e dar um passeio no maravilhoso Nostalgia móvel, guiado por Fred MacMurray. A última parada de sua excursão será uma réplica maravilhosa da Crestallen Street West. Ela está aqui mesmo, nesta garrafa gigante de Southern Comfort, preservada para todo o sempre. Isso mesmo, madame, simplesmente baixe a cabeça quando entrar pelo gargalo. Ele vai se alargar logo. E este é o lar de Barton George Dawes, o último residente vivo da Crestallen Street West. Olhe pela janela aqui — um momentinho, filho, vou levantá-lo um pouco. Esse aí é o próprio George, sentando na frente de sua TV em cores Zenith, usando seu calção listrado de boxeador, e chorando. Chorando? Claro que está chorando. O que mais poderia fazer ele na Terra da Autocomiseração? Ele chora o tempo todo. O fluxo de suas lágrimas é regulado pela nossa MUNDIALMENTE FAMOSA EQUIPE DE ENGENHEIROS. Nas segundas-feiras, ele toma uma pequena folga porque o movimento à noite é pequeno. No resto da semana chora muito mais. Nos fins-de-semana, liga o overdrive e, no Natal, a gente tem que usar guarda-chuva para se proteger das lágrimas. Reconheço que ele é um pouco revoltante, mas ainda assim continua a ser um dos habitantes mais populares da Terra da Autocomiseração, empatando com nossa recriação de King Kong no alto do Empire State Building. Ele... Jogou o drinque na televisão.

 

Errou-a por uma grande margem. O copo atingiu a parede, caiu no chão e despedaçou-se. E ele prorrompeu em novas lágrimas.

 

Chorando, pensou: Olhe pra mim, olhe pra mim, Jesus, você está nojento. Você está num estado de dissolução inacreditável. Você estragou toda sua vida, e a de Mary também, e fica sentado aí fazendo pilhérias a esse respeito, sua sucata inútil. Jesus, Jesus, Jesus...

 

Chegou a cobrir metade do caminho até o telefone antes de controlar-se. Na noite anterior, bêbado e chorando, telefonara para Mary e lhe suplicara que voltasse. Implorara até que ela começara a chorar e desligara na sua cara. Contorcia-se e sorria ao mesmo tempo, pensando como fizera uma coisa dessas, tão danada de embaraçosa.

 

Foi até a cozinha, pegou a pá de lixo e uma vassoura e voltou à sala de estar. Desligou a TV e varreu o vidro. Levou-o para cozinha, cambaleando um pouco e jogou-o na lata de lixo. E depois ficou parado ali, perguntando a si mesmo o que fazer em seguida.

 

Ouviu o zumbido de inseto do refrigerador e ficou assustado. Foi para a cama dormir. E sonhou.

 

6 de dezembro de 1973

 

Eram 3:30H e estava pisando na tábua na auto-estrada a caminho de casa, desenvolvendo uns 130km/h. O dia estava claro, frio, sem uma nuvem no céu, a temperatura por volta de 1 °C. Desde que Mary fora embora, todos os dias ele saía para um longo passeio pela estrada — o que, de certa maneira, se transformara em seu substituto do trabalho. A corrida acalmava-o. Quando a estrada se desenrolava à sua frente, suas bordas claramente marcadas pelos baixos bancos de neve de começos de inverno em cada lado, pensamentos desapareciam e ele ficava em paz. Às vezes, cantava acompanhando o rádio, em voz sentida e alta. Às vezes nessas saídas pensava em continuar rodando, deixando que estrada se somasse a estrada, comprando gasolina no cartão de crédito. Iria para o sul e não pararia até que a estrada acabasse ou saísse da terra. O cara poderia guiar sem parar até a ponta meridional da América do Sul? Não sabia.

 

Mas sempre voltava. Saía da estrada, comia hambúrgueres e batatas fritas em algum restaurante de beira de estrada e em seguida entrava na cidade, chegando ao pôr-do-sol ou um pouco depois.

 

Sempre descia na Stanton Street, estacionava e saía do carro para ver que progresso o prolongamento da 784 fizera durante o dia. A companhia construtora erigira uma plataforma especial para curiosos — na maioria velhos e gente que ia às compras mas tinha alguns minutos de folga — que durante o dia ficava sempre cheia. Alinhavam-se ao longo do corrimão como se fossem patos de barro numa galeria de tiro, vapor frio evolando-se de suas bocas, olhando boquiabertos para buldôzeres, gradeadoras e topógrafos com seus sextantes e tripés. Alegremente, poderia ter passado fogo em todos eles.

 

Mas à noite, com as temperaturas abaixo de 0°C, o pôr-do-sol transformado em uma azeda linha alaranjada no oeste e milhares de estrelas espiando friamente para baixo pelo Armamento, podia medir, sozinho e sem ser perturbado, o progresso da estrada. Os momentos que ali passava estavam se tornando muito importantes — desconfiava, de uma maneira obscura, que os momentos passados na plataforma recarregavam-no, mantinham-no preso a um mundo de pelo menos meia sanidade. Nesses momentos, antes que começasse o longo mergulho na embriaguez, antes que surgisse a ânsia inevitável de ligar para Mary, antes que iniciasse as atividades noturnas na Terra da Autocomiseração, ele era totalmente ele mesmo, fria e vivamente sóbrio. Curvava as mãos em torno do cano de ferro e olhava para as obras lá embaixo até que os dedos se tomavam tão insensíveis como o próprio ferro e era impossível dizer onde terminava o mundo de si mesmo — o mundo de coisas humanas — e começava o mundo externo de tratores, guindastes e plataformas de observação. Nesse momento não havia necessidade de se debulhar em lágrimas ou retomar as sendas do passado que lhe atravancavam a memória. Nesses momentos, sentia o seu ser pulsando quente na fria indiferença da noite de princípios de inverno, uma pessoa real, talvez ainda inteira.

 

Naquele momento, correndo a 130 km/h, ainda a 65km do posto de pedágio de Westgate, viu uma figura de pé no acostamento, pouco depois da saída 16, entrouxada em um casaco CPO e usando uma boina preta tricotada. A figura mostrava uma tabuleta que dizia (o que era espantoso no meio de tanta neve): Las Vegas. E, embaixo dessas palavras, desafiadoramente: ou a morte!

 

Pisou fundo no freio servo-assistido c sentiu o cinto do assento abrir um sulco na cintura com a desaceleração brusca e ficou um pouco intoxicado com o som Richard Petty de seus próprios pneus cantantes. Parou a uns 20m além da figura, que botou a tabuleta embaixo do braço e correu para ele. Alguma coisa na maneira que a figura corria disse-lhe que o carona era uma mulher.

 

Abriu a porta do passageiro e ela entrou.

 

— Oi, obrigada.

 

— De nada. — Olhou pelo retrovisor e acelerou, voltando aos 130km/h. A estrada começou a desenrolar-se mais uma vez à sua frente. — É um bocado de chão até Las Vegas.

 

— Claro que é. — Sorriu para ele, um sorriso padrão destinado às pessoas que lhe diziam que havia um bocado de chão até Vegas, e tirou as luvas. — Importa-se se eu fumar?

 

— Não, à vontade.

 

Ela puxou uma caixa de Marlboros.

 

— Aceita um?

 

— Não, obrigado.

 

A moça botou um cigarro na boca e tirou do casaco CPO uma caixa de fósforos de cozinha, acendeu, puxou uma grande tragada e exalou, embaciando parte do pára-brisas, guardou a caixa e os fósforos, soltou o cachecol azul-escuro em volta do pescoço e disse:

 

— Estou muito grata pela carona. Está bem frio lá fora.

 

— Esperou muito tempo?

 

— Mais ou menos uma hora. O último cara que passou estava bêbado. Homem, como fiquei contente em descer.

 

Ele inclinou a cabeça e disse:

 

— Eu levo você até o fim da estrada expressa.

 

— O fim. — Fitou-o. — Vai o caminho todo até o Oregon?

 

— O quê? Oh, não — e deu o nome de sua cidade.

 

— Mas a estrada expressa atravessa a cidade. — Tirou do bolso do casaco um mapa rodoviário Sunoco, as pontas viradas de tantas consultas. — É o que diz o mapa.

 

— Desdobre e olhe novamente. A moça obedeceu.

 

— Qual é a cor da parte da estrada onde estamos agora?

 

— Verde.

 

— Qual é a cor da parte que passa pela cidade?

 

— Verde pontilhado. Ela está... oh, Cristo, está em construção?

 

— Exatamente. O mundialmente famoso prolongamento 784. Moça, você nunca vai chegar a Las Vegas se não ler a chave para os símbolos de seu mapa.

 

Ela curvou-se, o nariz quase tocando o papel. A pele dela era clara, talvez normalmente cor-de-leite, mas o frio lhe dera um toque de rosado às bochechas e testa. A ponta do nariz estava vermelha e uma pequena gota d’água equilibrava-se ao lado da narina esquerda. O cabelo fora cortado curto e não muito bem. Trabalho caseiro. Uma bela cor castanha. Uma pena cortá-lo, pior ainda cortá-lo mal. Qual era o título daquele conto de O’Henry? “The Gift of the Magi.” Trocou os cabelos por dinheiro para comprar uma corrente de relógio para quem, pequena vagabunda?

 

— O verde contínuo recomeça em um lugar chamado Landy. — disse ela. — A que distância fica isso do lugar onde termina esta parte?

 

— Mais ou menos uns 50km.

 

— Oh, Cristo.

 

Ela examinou um pouco mais o mapa. A saída 15 passou como um relâmpago.

 

— Qual é a estrada de contorno? — perguntou ela finalmente. — Aqui me parece apenas um enroscado de linhas.

 

— A estrada 7 é a melhor — explicou ele. — Fica na última saída, na que chamam de Westgate. — Hesitou. — Mas seria melhor você interromper a viagem durante a noite. Há lá um Holiday Inn. Vamos chegar lá só quase à noite e você não vai querer pegar carona na estrada 7 depois de escurecer.

 

— Por que não? — perguntou ela, olhando-o de cima a baixo.

 

Os olhos dela eram verdes e desconcertantes, uma cor de olhos sobre a qual se lê ocasionalmente mas raramente se vê.

 

— É uma estrada de contorno municipal — explicou ele, ocupando a pista de ultrapassagem atrás uma fila inteira de veículos que seguiam a 80km/h. Vários deles buzinaram furiosamente. — Quatro faixas com uma pequena mureta de concreto entre elas. Duas pistas na direção oeste para Landy e duas na direção leste para a cidade. Um bocado de shopping centers, barracas de hambúrgueres, galerias de boliche, e tudo mais. Todo mundo segue em pequenas e rápidas arrancadas. Ninguém quer parar.

 

— Ah — disse ela com um suspiro. — Há ônibus para Landy?

 

— Havia uma companhia municipal de ônibus, mas quebrou. Acho que deve haver um da Greyhound...

 

— Oh, droga.

 

Dobrou o mapa e guardou-o no bolso e ficou olhando a estrada, parecendo desconcertada e preocupada.

 

— Não tem dinheiro para pagar um quarto de motel?

 

— Moço, eu tenho 13 dólares. Não poderia alugar nem uma casa de cachorro.

 

— Pode ficar em minha casa, se quiser — ofereceu ele.

 

— Sim, e talvez seja melhor deixar que eu desça aqui mesmo.

 

— Esqueça. Retiro o oferecimento.

 

— Além do mais, o que sua mulher iria pensar?

 

Olhou intencionalmente para a aliança que ele usava. Era um olhar que sugeria também que ele poderia ficar passeando em volta dos pátios de brinquedos de escolas depois que o inspetor dava por encerrado seu trabalho no dia.

 

— Eu e minha mulher nos separamos.

 

— Recentemente?

 

— É, desde 1º de dezembro.

 

— E agora está com todos esses grilos, para os quais poderia usar um pouco de ajuda — disse ela. Havia desprezo na voz, mas um desprezo antigo, não dirigido especificamente contra ele. — Especialmente a ajuda de uma mocinha.

 

— Eu não quero transar com ninguém — respondeu ele, com toda honestidade. — Eu nem mesmo sei se conseguiria levantar o pau.

 

Deu-se conta de que acabara de usar duas expressões que nunca empregara antes com uma mulher em toda sua vida, mas que pareciam as certas. Não boas ou más, mas certas, tal como se estivesse discutindo o estado do tempo.

 

— Está dizendo isso como um desafio? — perguntou ela. Puxou uma forte tragada e exalou mais fumo.

 

— Não — respondeu ele. — Acho que se parece com uma linha de convencimento, se está à procura delas. Acho que uma moça andando sozinha vive sempre procurando identificá-las o tempo todo.

 

— Essa deve ser a parte três — disse ela. Havia ainda um leve desprezo e hospitalidade em seu tom de voz, mas temperado com certo cansado divertimento. — “Como é que uma moça direita como você entra assim num carro de um desconhecido?

 

— Oh, o diabo leve tudo isso! — explodiu ele. — Você é insuportável.

 

— Isso mesmo, sou. — Apagou o cigarro no cinzeiro e enrugou o nariz. — Olhe para isso. — Olhe para ele. Cheio de papel de embrulhar balas, celofane, e todo tipo de lixo. Por que não usa no carro um saquinho de lixo?

 

— Porque eu não fumo. Se você tivesse simplesmente telefonado antes dizendo: “Barton, meu velho, pretendo pedir carona na estrada hoje, de modo que me ajude, você faria isso? E por falar nisso, limpe aquela merda de seu cinzeiro porque pretendo fumar” — neste caso cu o teria limpado. Por que não joga isso pela janela? Ela sorria nesse momento.

 

— Você tem um excelente senso de ironia.

 

— É a minha triste vida.

 

— Sabe quanto tempo leva para filtros de cigarro se biodegradarem? Duzentos anos, tudo isso. Ao fim desse tempo, seus netos já estarão mortos.

 

Ele deu de ombros.

 

— Você não se importa se respiro seus carcinógenos usados, se esculhambo os cílios de meus pulmões, mas não quer jogar um cigarro com filtro na estrada. Tudo bem.

 

— O que é que isso significa?

 

— Nada.

 

— Escute, quer que eu desça? É isso?

 

— Não — respondeu ele. — Por que não falamos sobre alguma coisa neutra? O estado do dólar. O estado da União. O estado de Arkansas.

 

— Acho que vou tirar um pequeno cochilo, se não se importar. Parece que vou ficar acordada a maior parte da noite.

 

— Tudo bem.

 

Ela inclinou o gorro de malha por cima dos olhos, cruzou os braços c ficou imóvel. Após alguns momentos, a respiração aprofundou-se. Ele observou-a em rápidos olhares de soslaio, formando uma imagem. A moça usava jeans apertado, desbotado, fino. A calça modelava-lhe as pernas o suficiente para concluir que ela não usava um segundo par de jeans nem roupa de lã por baixo. As pernas compridas estavam dobradas sob o painel para lhe dar um pouco de conforto e nesse momento provavelmente tinham a cor de lagosta e cocavam como o diabo. Ia perguntar-lhe se as pernas cocavam mas depois pensou no que isso ia parecer. A idéia de ela pegando carona na estrada 7, pegando pequenos percursos ou não pegando nenhum, deixava-o à vontade. Noite, calça de tecido fino, temperaturas por volta de 1 °C. Bem, isso era problema dela. Se esfriasse demais, ela podia ir a algum lugar e aquecer-se. Nenhum problema aí.

 

Passaram pelas saídas 14 e 13— Deixou de olhar para ela e concentrou-se em dirigir o carro. A agulha do velocímetro continuava pregada nos 130km/h e permaneceu na faixa de ultrapassagem. Mais carros buzinaram em protesto. Ao passarem pela saída 12, um homem em uma caminhonete que levava um adesivo dizendo NÃO PASSE DE 80km/h pregado no pára-choque traseiro buzinou indignado três vezes e piscou indignado os faróis. Mostrou o dedo médio e o indicador e o anular formando pau e colhões ao motorista da caminhonete.

 

Com os olhos ainda fechados, ela disse:

 

— Você está indo depressa demais. É por isso que estão buzinando.

 

— Eu sei por que eles estão fazendo isso.

 

— Mas não dá bola.

 

— Não, não dou.

 

— Apenas outro interessado cidadão — cantarolou ela — fazendo sua parte para salvar a América da crise de energia.

 

— Eu não dou a mínima bola para a crise de energia.

 

— É isso o que todos dizem.

 

— Eu costumava guiar a 85km/h na estrada expressa. Nem mais, nem menos. É nessa velocidade que meu carro consegue a melhor quilometragem. Agora, estou protestando contra a Ética do Cachorro Treinado. Certamente leu sobre ela em suas aulas de sociologia, não? Ou estou errado? Tomei você como uma universitária.

 

Ela se endireitou no assento.

 

— Estive me especializando em sociologia por algum tempo. Bem, mais ou menos. Mas nunca ouvi falar na Ética do Cachorro Treinado.

 

— Isso acontece porque fui eu que a inventei.

 

— Oh, l2 de abril.

 

Revolta. Voltou a escorregar no assento e puxou novamente o gorro para cima dos olhos.

 

— A Ética do Cachorro Treinado, proposta pela primeira vez por Barton George Dawes em fins de 1973, explica inteiramente mistérios tais como a crise monetária, a inflação, a guerra do Vietnã, e a atual crise de energia. Vamos tomar a crise de energia como exemplo. O povo americano é constituído de cachorros treinados, treinados neste caso para amar brinquedos que bebem vorazmente petróleo. Carros, trenós motorizados, grandes barcos, buggies para correr por dunas, motocicletas, minicicletas, veículos para camping e muito, muito mais coisas. De 1973 a 1980 seremos treinados para odiar brinquedos que consomem energia. O povo americano adora ser treinado. O treinamento faz com que abane a cauda. Use energia. Não use energia. Mije no jornal. Não sou contra economizar energia. Sou contra o treinamento.

 

Quando deu por si estava pensando no cachorro do sr. Piazzi, que primeiro deixou de mexer a cauda, depois começou a rolar os olhos e finalmente rasgou a garganta de Luigi Bronticelli.

 

— É como os cães de Pavlov — continuou. — Foram treinados para salivar ao som de uma campainha. Fomos treinados para salivar quando alguém nos mostra um Bombardier Skidoo com overdrive ou uma IV em cores Zenith com antena motorizada. Tenho uma delas lá em casa. A IV tem um dispositivo Comando Espacial. Podemos sentar numa cadeira e mudar os canais, aumentar ou baixar o volume, desligá-la ou ligá-la. Enfiei o aparelhinho na boca uma vez, aperto o botão de ligar e a TV se iluminou logo. O sinal passou direto pelo meu cérebro e ainda fez o trabalho. A tecnologia é uma coisa maravilhosa.

 

— Você é louco — disse ela.

 

— Acho que sou. Passaram pela saída 11.

 

— Acho que vou dormir. Diga quando chegarmos ao fim.

 

— Tudo bem.

 

Ela fechou os olhos e cruzou novamente os braços. Passaram pela saída 10.

 

— De qualquer modo, eu não sou contra a Ética do Cachorro Treinado — disse ele. — mas contra o fato de que os treinadores são mental, morai e espiritualmente idiotas.

 

— Você está tentando tranqüilizar a consciência com um bocado de retórica — comentou a moça, olhos ainda fechados. — Por que não reduz simplesmente a velocidade para 80km/h? Ia sentir-se melhor.

 

— Eu não vou me sentir melhor.

 

Disse isso com tal veemência que ela espigou no assento e olhou-o.

 

— Você está bem?

 

— Estou ótimo — respondeu ele. — Perdi mulher e emprego porque ou o mundo enlouqueceu ou eu enlouqueci. Depois, dou carona a uma garota de 19 anos, pelo amor de Deus, o tipo que se acha que acredita que o mundo enlouqueceu — e ela me diz que sou eu, que o mundo está indo muito bem. Não quanto ao petróleo, mas fora isso, está indo bem.

 

— Eu tenho 21 anos.

 

— Ótimo para você — retrucou azedamente ele. — Se este mundo é tão são, o que é que uma menina como você está fazendo, pedindo carona no meio do inverno para chegar a Las Vegas? Pensando em passar a noite inteira pegando carona na estrada 7 e provavelmente pegando ulceração de frio nas pernas porque não está usando nada por baixo desse jeans?

 

— Eu estou usando coisas por baixo! O que é que você pensa que eu sou!

 

— Eu penso que você é estúpida1. — rugiu ele para ela. — Vai congelar a bunda.

 

— E assim você não poderá se aproveitar dela, certo? — perguntou ela docemente.

 

— Oh, meu Deus — murmurou ele. — Oh, meu Deus.

 

Passaram com um ronco por um sedã que ia a 80km/h. O sedã buzinou.

 

— Meta no cu! — gritou ele. — Sem vaselina!

 

— Acho que é melhor deixar que eu desça agora mesmo — disse ela calmamente.

 

— Esqueça — respondeu ele. — Não vou provocar nenhum acidente. Vá dormir. Ela fitou-o, desconfiada, durante um longo segundo; em seguida fechou os olhos e cruzou os braços. Passaram pela saída 9.

 

Passaram pela saída 2 às 4:05h. As sombras que se alongavam pela estrada haviam adquirido uma tonalidade azulada peculiar que é uma propriedade exclusiva das sombras de inverno. Vênus já se mostrava no leste. O tráfego se tomara mais intenso à medida que se aproximavam da cidade.

 

Lançou-lhe um olhar e notou que ela estava se espigando no assento, acompanhando com a vista os carros apressados e indiferentes. O carro que ia diretamente à frente transportava uma árvore de Natal amarrada ao bagageiro da capota. Os olhos verdes da moça estavam muito abertos, caiu dentro deles e por um momento, através deles viu o mundo, na empatia perfeita que, misericordiosamente, só acontece com seres humanos em raros intervalos. Viu que todos os carros iam para algum lugar onde era quente, algum lugar onde não havia negócios a realizar, amigos a cumprimentar ou um tear de vida familiar para pegar e dar um ponto. Notou-lhes a indiferença para com estranhos. Compreendeu em um curto e frio instante o que Thomas Carlyle chamou de a grande locomotiva do mundo, correndo sem parar a alta velocidade.

 

— Estamos quase chegando? — perguntou ela. ‘ — Mais 15 minutos.

 

— Escute, se fui grosseira com o senhor...

 

— Não. Eu fui grosseiro com você. Escute, eu nada tenho de especial a fazer. Vou levá-la até Landy.

 

— Não...

 

— Ou eu a hospedarei no Holiday Inn para passar a noite. Sem obrigações. Feliz Natal e tudo isso.

 

— Está realmente separado de sua mulher?

 

— Estou.

 

— E tão recentemente assim.

 

— É...

 

— Ela está com seus filhos?

 

— Nós não temos filhos.

 

Estavam se aproximando do posto de pedágio, cujas luzes verdes piscavam indiferentes no começo do anoitecer.

 

— Leve-me para sua casa com você, então.

 

— Não tenho que fazer isso. Quer dizer, você não tem que ...

 

— Eu preferia ficar com alguém hoje à noite — disse ela. — E não gosto de pedir carona à noite. Dá medo.

 

Enveredou num dos portões de pedágio, baixou a janela e deixou entrar o ar frio. Entregou ao funcionário seu cartão e um dólar e noventa centavos. Afastou-se dali lentamente. Passaram por uma tabuleta refletora que dizia:

 

Obrigado por dirigir em segurança!

 

— Tudo bem — disse ele, cauteloso. Sabia que estava provavelmente agindo errado ao tentar tranqüilizá-la — provavelmente conseguindo obter o efeito oposto — mas aparentemente não podia evitar isso. — Escute, acontece apenas que a casa fica muito solitária somente comigo. Podemos cear, talvez assistir a um pouco de TV e comer pipoca. Você pode dormir no quarto de cima e eu...

 

Ela riu um pouco e ele lançou-lhe um olhar quando passaram pelo trevo rodoviário. Mas era difícil vê-la nessa ocasião. Ela poderia ser alguma coisa com que ele sonhara. Essa idéia aborreceu-o.

 

— Ouça — disse ela —, é melhor que eu lhe conte isto agora. Lembra-se do bêbado que eu lhe disse que me deu uma carona? Passei a noite com ele. Ele ia para Stilson, onde você me deu carona. Foi o preço dele.

 

Ele parou num sinal vermelho na descida do trevo.

 

— Minha colega de quarto me disse que ia ser assim, mas não acreditei nela. Eu não ia atravessar o país fodendo para obter passagem, eu não. — Fitou-o por um momento, mas ele continuou sem poder decifrar-lhe o rosto na escuridão. — Mas não é como se as pessoas obriguem a gente a fazer isso. É ficar desligada de tudo, como se estivesse andando no espaço. Quando a gente entra numa grande cidade e pensa em toda gente que há nela, dá vontade de chorar. Não sei por quê, mas você faz isso. A coisa fica de tal jeito que a gente passaria a noite espremendo as espinhas supuradas de algum cara só para ouvi-lo respirar e falar.

 

— Não me interessa com quem você andou dormindo — disse ele, e entrou na corrente de tráfego.

 

Automaticamente, entrou na Grand Street, dirigindo-se para casa, que ficava do outro lado da construção da 784.

 

— Esse vendedor — disse ela — é casado há 14 anos. Continuou a dizer isso enquanto metia em mim. Quatorze anos, Sharon, continuava ele a dizer, 14 anos. Ele gozou em uns 14 segundos.

 

Soltou uma pequena risada, pesarosa e triste.

 

— É esse o seu nome? Sharon?

 

— Não. Acho que é o nome da mulher dele. Ele parou junto ao meio-fio.

 

— O que é que você está fazendo? — perguntou ela, imediatamente desconfiada.

 

— Nada de mais — respondeu ele. — Isso faz parte de voltar pra casa. Desça, se quiser. Vou lhe mostrar uma coisa.

 

Desceram do carro e dirigiram-se para a plataforma de observação, nesse momento deserta. Ele pôs as mãos sobre o frio cano de ferro e olhou para baixo. Naquele dia haviam construído o subleito, notou. Nos três últimos dias, haviam estendido a camada de cascalho. Nesse momento, o subleito. Equipamento parado — caminhões, buldôzeres e retroescavadeiras sobressaíam silenciosos nas sombras da noite como se fossem peças de um museu de dinossauros. Aqui temos o estegossauro vegetariano, o tricerátope carnívoro, a apavorante pá diesel comedora de terra. Bon appétit:

 

— O que é que você acha disso? — perguntou ele.

 

— Tenho que achar alguma coisa?

 

Ela estava se esquivando, tentando descobrir o que significava aquilo.

 

— Você tem que achar alguma coisa — insistiu ele. Ela deu de ombros.

 

— É trabalho de construção de estrada. E daí? Estão construindo uma estrada numa cidade para onde provavelmente nunca voltarei. O que é que devo pensar? É feio.

 

— Feio — repetiu ele, aliviado.

 

— Eu crescei em Portland, Maine — disse ela. — Nós morávamos num grande prédio de apartamentos e construíram um enorme shopping center no outro lado da rua...

 

— Derrubaram tudo para construí-lo?

 

— Ahn?

 

— Eles...

 

— Oh, não aquilo era apenas um lote vazio com um grande campo por trás. Eu tinha nessa época uns seis ou sete anos de idade. Eu pensava que iam continuar a cavar, rasgar e aterrar para sempre. E eu só conseguia pensar em... é engraçado... tudo em que podia pensar era na pobre e velha terra, era como se estivessem aplicando um clister nela, nunca perguntaram se ela queria tomar um ou se havia alguma coisa errada com ela. Naquele ano tive uma infecção intestinal e era a especialista da quadra em clisteres.

 

— Oh — disse ele.

 

— Fomos lá num domingo, quando não havia trabalho, e a coisa era muito parecida com isto aqui, muito silencioso, como um cadáver que morreu na cama. Parte dos alicerces já haviam sido lançados e havia aquelas coisas amarelas de metal subindo do cimento...

 

— Barras de sustentação.

 

— O que quer que fosse. E havia um bocado de canos e fios cobertos por plástico transparente e também um bocado de terra crua. Engraçado pensar em terra dessa maneira, quem é que já ouviu falar em cozinhar terra, mas era isso o que parecia. Simplesmente crua. Brincamos de esconde-esconde por ali, minha mãe chegou, tirou a gente de lá e nos passou aquela espinafração. Disse que menininhas podem se meter em sérios problemas em canteiros de obras. Minha irmãzinha tinha apenas quatro anos de idade e chorou feito uma desesperada. Engraçado lembrar de tudo isso. Podemos voltar para o carro agora? Está frio aqui.

 

— Claro — concordou ele, e voltaram.

 

Com o carro já em movimento, ela continuou:

 

— Nunca pensei que fizessem alguma coisa daquela bagunça toda. Mas, logo depois, o shopping center estava ali, pronto. Lembro-me do dia em que asfaltaram o pátio de estacionamento. Alguns dias depois, chegaram uns homens com uma pequena carroça de empurrar e riscaram no chão todas as linhas amarelas das vagas. Depois, deram uma grande festa e algum babaca cortou uma fita e todo mundo começou a usar ó shopping center e pareceu que ele sempre estivera ali. O nome da grande loja de departamentos era Mammoth Mart e mamãe ia lá um bocado. Às vezes, quando Angie e eu íamos com ela, cu me lembrava de todas aquelas colunas amarelas saindo do cimento lá no porão. Aquilo era uma espécie de pensamento secreto.

 

Ele inclinou a cabeça. Conhecia esses pensamentos secretos.

 

— O que é que aquilo significa para você? — perguntou ela.

 

— Ainda estou tentando descobrir — respondeu ele.

 

Ele ia preparar uma refeição de quentinhas mas ela olhou no freezer, viu o assado e disse que ia prepará-lo, se ele não se importasse em esperar até ficar pronto.

 

— Claro que não — concordou ele. — Eu não sabia por quanto tempo assá-lo nem em que temperatura.

 

— Sente falta de sua mulher?

 

— E como.

 

— Porque não sabe como assar o rosbife? — perguntou ela.

 

Ele não respondeu a essa pergunta. Ela fritou batatas e fez pipocas. Comeram no canto onde ele tomava o desjejum na cozinha e ela comeu grossas fatias do rosbife, duas batatas, e duas porções de pipoca.

 

— Não como assim há um ano — disse ela, acendendo um cigarro e olhando para o prato vazio. — Provavelmente, vou ter dor de barriga.

 

— O que é que você vem comendo?

 

— Biscoitos de cachorro.

 

— O quê?

 

— Biscoitos de cachorro.

 

— Pensei que era isso mesmo que tinha ouvido.

 

— São baratos — explicou ela. — E deixam a gente farta. E têm também um bocado de nutrientes e fibras. É o que diz na caixa.

 

— Nutrientes uma ova. Você está ficando com espinhas, menina. É velha demais para elas. Venha aqui.

 

Levou-a até a sala de jantar e abriu o armário onde Mary guardava as porcelanas. Puxou uma tigela de prata e dela extraiu um grosso maço de notas. Os olhos dela se esbugalharam.

 

— Quem foi que você assaltou, moço?

 

— Resgatei minha apólice de seguro. Tome. Tome duzentos paus. Coma com isso. Ela, porém, recusou-se a tocar no dinheiro.

 

— Você está pirado — disse. — O que é que pensa que vou fazer pra você por duzentos dólares?

 

— Nada. Ela riu.

 

— Tudo bem. — Ele colocou o dinheiro em cima do aparador e recolocou a tigela no armário. — Se não levá-lo pela manhã, vou colocá-lo na latrina e dar descarga.

 

Mas na verdade não achava que fosse fazer isso. Ela fitou-o bem no rosto.

 

— Sabe de uma coisa, acho que você faria isso. Ele conservou-se calado.

 

— Veremos — disse ela —, pela manhã.

 

— Pela manhã — repetiu ele.

 

Nesse momento ele assistia ao programa “To Tell the Truth” na televisão. Duas participantes estavam dizendo que eram a campeã mundial feminina de montada em cavalo xucro e uma dizia a verdade. O júri, que incluía Soupy Sales, Bill Cullen, Arlene Dahl e Kitty Carlisle tinha que descobrir quem estava dizendo a verdade. Gary Moore, o único apresentador de programa de televisão que tinha trezentos anos de idade, sorria, dizia piadas e tocava uma campainha quando se esgotava o tempo de cada jurado.

 

A moça olhava pela janela.

 

— Hei — disse ela —, quem é, afinal de contas, que mora nesta rua? Todas essas casas estão às escuras.

 

— Eu e os Dankmans — respondeu ele. — E os Dankmans vão mudar-se daqui no dia 5 de janeiro.

 

— Por quê?

 

— Por causa da estrada — explicou ele. — Quer um drinque?

 

— Que história é essa de estrada?

 

— Vai passar por aqui — continuou ele. — Esta casa vai ficar em algum lugar no meio da faixa central, tanto quanto pude descobrir.

 

— Foi por isso que me mostrou o canteiro de obras?

 

— Acho que foi. Eu trabalhava numa lavanderia que fica a uns três quilômetros daqui. A Blue Ribbon. Vai passar por lá, também.

 

— Foi por isso que perdeu o emprego? Por que a lavanderia vai fechar?

 

— Não, exatamente. Eu devia assinar uma opção de compra de um novo local em um subúrbio chamado Waterford, e não fiz isso.

 

— Por que não?

 

— Não pude agüentar fazer isso — retrucou ele, com simplicidade. — Quer um drinque?

 

— Você não vai ter que me embebedar — respondeu ela.

 

— Oh, Cristo! — exclamou ele, rolando os olhos para cima. — Sua mente só funciona em um único sulco, não é?

 

Caiu um momento de embaraçoso silêncio.

 

— Chave-de-fenda é o único drinque de que gosto. Tem vodca e suco de limão?

 

— Tenho.

 

— Maconha, não, acho.

 

— Não, nunca usei.

 

Foi até a cozinha e preparou um chave-de-fenda para ela. Misturou para si mesmo um Comfort com Seven-Up e levou as duas bebidas para a sala de estar. Ela mexia com o aparelho do Comando Espacial e a TV mudava de canal para canal, mostrando os programas das 7:30h: “To Tell de Truth”, “Whafs My Line”, “I Dream of Jeannie”, Gilligan’s Island”, “I Love Lucy”, Julia Child fazendo alguma coisa com abacates que parecia bosta de cachorrinho, “The New Price is Right”, e de volta a Gary Moore, que nesse momento desafiava o júri a descobrir qual das três participantes era a verdadeira autora de um livro sobre o que provavelmente ficaria perdido durante um mês nas florestas de Saskatchewan.

 

Entregou-lhe a bebida.

 

— Você comeu insetos, número dois? — perguntou Kitty Carlisle.

 

— O que é que há com vocês, caras? — perguntou a moça. — Nada de “Jornada nas Estrelas”, vocês são pagãos?

 

— Passam esse programa às 4h no canal 8 — informou ele.

 

— Você assiste?

 

— Às vezes. Minha mulher sempre assiste ao programa de Merv Griffin.

 

— Não vi inseto nenhum — respondeu a número dois. — Se tivesse visto, eu o teria comido.

 

A platéia riu gostosamente.

 

— Por que foi que ela saiu de casa? Você não tem que me dizer, se não quiser. Fitou-o cautelosa, como se o preço da confissão dele pudesse ser cansadamente alto.

 

— Pela mesma razão por que fui demitido do emprego — respondeu ele, sentando-se.

 

— Por que não comprou a tal instalação?

 

— Não. Porque não comprei uma nova casa.

 

— Votei no número dois — disse Soupy Sales — porque parece que comeria insetos se os visse.

 

A platéia riu deliciada.

 

— Você não... uau. Oh, uau. — Fitou-o por cima da borda do corpo, sem piscar. A expressão daqueles olhos pareciam uma mistura de respeito, admiração e terror. — Para onde vai você?

 

— Não sei.

 

— Não está trabalhando?

 

— Não.

 

— O que é que você faz o dia inteiro?

 

— Ando de carro pela via expressa.

 

— E assiste TV à noite?

 

— E bebo. Às vezes faço pipoca. Mais tarde vou fazer pipoca.

 

— Não gosto de pipoca.

 

— Neste caso, eu como.

 

Ela apertou um botão do aparelhinho Comando Espacial (ele, às vezes, pensava na coisa como “módulo” porque, nos dias que corriam, as pessoas eram encorajadas a considerar como “módulo” tudo que se podia ligar e desligar com um aperto de botões) e a imagem na Zenith reduziu-se a um ponto brilhante e depois piscou, desaparecendo.

 

— Deixe ver se entendi bem isso — sugeriu a moça. — Você enfiou esposa e emprego pela tubulação...

 

— Mas não necessariamente nessa ordem.

 

— Qualquer que seja. Jogou-os fora por causa dessa estrada, certo?

 

Ele olhou contrafeito para a televisão. Embora raramente acompanhasse com muita atenção o que acontecia na tela, ficava contrafeito ao vê-la desligada.

 

— Não sei se foi por isso ou não — respondeu. — A gente nem sempre pode compreender uma coisa simplesmente porque a fez.

 

— Em sinal de protesto?

 

— Não sei. Se a gente protesta contra alguma coisa isso acontece porque pensamos que outra coisa seria melhor. Todas aquelas pessoas protestaram contra a guerra porque pensavam que a paz seria melhor. Pessoas protestaram contra leis sobre drogas porque pensam que outras leis seriam mais justas, mais divertidas, menos prejudiciais ou... Não sei. Por que não liga a TV?

 

— Logo, logo. — Ele notou mais uma vez como os olhos dela eram verdes, atentos, felinos. — Por que odeia a estrada? A sociedade tecnológica que ela representa? O efeito desumanizador da...

 

— Não — interrompeu-o ele. Era tão difícil ser honesto. Perguntou por que estava se dando mesmo ao trabalho de discutir quando uma mentira encerraria muito mais rápido e elegantemente a conversa. Ela era igual ao resto das crianças, igual a Vinnie, igual às pessoas que endeusavam a verdade: ela queria propaganda, completa com gráficos, não uma resposta: — Durante toda minha vida estive vendo construírem estradas e prédios. Nunca cheguei sequer a pensar nisso, exceto que era um saco ter que usar um desvio ou passar para o outro lado da rua porque a calçada estava esburacada ou porque a companhia construtora estava usando uma bola demolidora.

 

— Mas quando ela chegou a sua casa... a sua casa e seu emprego, você disse não.

 

— Disse não, certo. — Mas não tinha certeza de que dissera não. Ou dissera sim? Sim, finalmente sim a algum impulso destrutivo que fora parte dele o tempo todo, um mecanismo de autodestruição tão inerente como o tumor de Charlie? Descobriu-se desejando que Fred aparecesse. Freddy poderia dizer-lhe o que ela queria ouvir. Mas Fred estivera se mantendo muito discreto.

 

— Você ou é louco ou é uma pessoa realmente notável — decidiu ela.

 

— Pessoas são notáveis apenas em livros — observou ele. — Vamos assistir a um pouco de TV.

 

Ela ligou o aparelho. Ele deixou que escolhesse o programa.

 

— O que é que você está bebendo?

 

Faltava um quarto para as 9h. Ele estava alto, mas não bêbado, como teria acontecido se estivesse sozinho ali. Nesse momento, fazia pipoca na cozinha. Gostava de ver o milho saltar na pipoqueira de vidro temperado, subindo, subindo, como se fosse neve que saía do chão em vez de descer do céu.

 

— Southern Comfort e Seven-up — respondeu.

 

— O quê?

 

Ele soltou um risinho, embaraçado.

 

— Posso experimentar um? — Mostrou-lhe o copo vazio e sorriu. Era a primeira expressão inteiramente desinibida que demonstrava desde que a apanhara na estrada. — Você faz uma péssima chave-de-fenda.

 

— Eu sei — reconheceu ele. — Comfort e Seven-Up é a minha bebida particular. Em público, tomo uísque escocês. E odeio.

 

Pronta a pipoca, derramou-a em uma grande tigela plástica.

 

— Posso experimentar um?

 

— Claro.

 

Preparou lhe um Comfort e Seven-Up e em seguida derramou um pouco de manteiga derretida sobre a pipoca.

 

— Isso vai botar um bocado de colesterol em sua corrente sangüínea — disse a moça, encostando-se no umbral da porta que separava a cozinha da sala de jantar. Provou o drinque. — Hei, gostei disso.

 

— Claro que ia gostar. Mantenha isso em segredo e ficará sempre um passo na frente dos outros.

 

Pôs sal na pipoca.

 

— O colesterol entope o coração — recomeçou a moça. — O calibre das veias torna-se cada vez mais estreito e, um dia... graaag!

 

Apertou dramaticamente o peito e derramou um pouco de bebida na suéter.

 

— Eu metabolizo isso direto — garantiu-lhe ele e passou pela porta.

 

Roçou os seios dela (bem empinados, pelo toque) ao sair. Produzia uma impressão que sentira nos seios de Mary durante anos. Talvez não fosse muito leal pensar assim.

 

Ela comeu quase toda a pipoca.

 

A moça começou a bocejar por volta do noticiário de 11h, que tratou principalmente da crise de energia e das fitas da Casa Branca.

 

— Suba — disse ele. — Vá dormir. Ela fitou-o.

 

— Nós vamos nos dar bem — disse ele — se você deixar de parecer uma pessoa que foi fodida todas as vezes que a palavra “cama” surgiu numa conversa. A finalidade principal da Grande Cama Americana é dormir, não meter.

 

Essas palavras fizeram-na sorrir.

 

— Você não quer nem mesmo baixar os lençóis?

 

— Você já é uma menina crescida. Ela fitou-o calmamente.

 

— Pode subir comigo, se quiser — disse. — Resolvi isso há uma hora.

 

— Não... mas você não tem idéia de como o convite é atraente. Só dormi com três mulheres em toda minha vida e as duas primeiras foram há tanto tempo que mal consigo me lembrar delas. Antes de eu casar.

 

— Você está brincando?

 

— Absolutamente.

 

— Escute, não seria apenas porque me deu carona, arranjou um lugar para eu dormir, ou coisa assim. Ou por causa do dinheiro que me ofereceu.

 

— É uma bondade sua dizer isso — respondeu ele, e levantou-se. É melhor você subir agora.

 

Ela, porém, não se moveu.

 

— Você devia saber por que não está fazendo isso.

 

— Devia?

 

— Devia. Se faz coisas e não pode explicá-las — como você mesmo disse — isso pode ser legal porque ainda assim elas serão feitas. Mas se decide não fazer, deve saber por quê.

 

— Muito bem — concordou ele. Inclinou a cabeça na direção da sala de jantar, onde o dinheiro continuava no prato de prata. — É o dinheiro. Você é jovem demais para viver de prostituição.

 

— Eu não vou aceitá-lo — respondeu ela imediatamente.

 

— Eu sei que não vai. É por isso que eu não quero. Quero que você o aceite.

 

— Por que nem todo mundo é tão bacana como você?

 

— Isso mesmo.

 

E fitou-a, desafiador.

 

Ela sacudiu a cabeça, exasperada, e levantou-se.

 

— Tudo bem. Mas você é um burguês, sabia?

 

— Sabia.

 

Ela aproximou-se e beijou-o na boca. Excitante. Sentiu o cheiro dela e o cheiro era bom. Quase instantaneamente teve uma ereção.

 

— Continue — disse ele.

 

— Se você reconsiderar durante a noite...

 

— Não vou reconsiderar. — Observou-a subir a escada, de pés descalços. — Hei! Ela virou-se, sobrancelhas erguidas.

 

— Qual é o seu nome?

 

— Olívia, se isso importar. Estúpido, não? Como Olívia De Haviland.

 

— Não, é bonito. Gosto dele. Boa noite, Olívia.

 

— Boa noite.

 

Ela subiu. Ouviu o leve clique, como sempre ouvira quando Mary subia antes dele. Se escutasse com atenção, poderia talvez ouvir o som silenciosamente enlou-quecedor da suéter roçando a pele quando a puxasse por cima da cabeça ou o estalido do fecho que segurava o jeans em volta da cintura.

 

Usando o módulo Comando Espacial, ligou a TV.

 

O pênis continuava inteiramente ereto, produzindo uma sensação desagradável, enchendo a entreperna da calça, aquilo que Mary às vezes chamava de rocha das idades e também a serpente transformada em pedra, nos dias mais jovens de ambos, quando a cama nada mais era que outro campo de recreio. Puxou as dobras da cueca e, permanecendo o membro ereto, levantou-se. Após algum tempo, a ereção murchou, e voltou a sentar-se.

 

Um filme substituiu o noticiário — John Agar, em O Cérebro do Planeta Arous. Adormeceu em frente da TV, com o módulo Comando Espacial frouxamente seguro numa das mãos. Momentos depois, ocorreu um movimento embaixo da braguilha da calça e a ereção voltou, sorrateira, como um assassino que visita o local de um crime antigo.

 

 

 

7 de dezembro de 1973

 

Mas foi de fato procurá-la durante a noite.

 

Voltou-lhe o sonho com o cachorro do sr. Piazzi e desta vez teve certeza, antes que o animal atacasse, que a criança que se aproximava era Charlie. Isso piorou a situação e quando a cachorra do sr. Piazzi saltou, lutou no sonho como um homem que com as unhas abre um caminho para sair de uma cova rasa, arenosa.

 

Agadanhou o ar, não acordado mas também não dormindo e perdeu o senso do equilíbrio no sofá quando finalmente se fechou em posição fetal. Oscilou dolorosamente à beira do equilíbrio por um momento, desorientado, apavorado pelo filho morto que repetidamente morria em seus sonhos.

 

Caiu no chão, batendo com a cabeça e machucando o ombro e acordou para descobrir que estava em sua própria sala de estar e que o sonho acabara. A realidade era insuportável, mas não ativamente apavorante.

 

O que estava fazendo? Uma espécie de realidade gestalt do que estivera fazendo com sua vida apossou-se dele, uma horrenda visão global. Rompera a vida no meio, de alto a baixo, como se fosse um pedaço barato de pano. Nada mais estava certo. O corpo doía. Sentiu o gosto velho de Southern Comfort no fundo da garganta, arrotou um pouca de coisa azeda, com gosto ácido, e voltou a engoli-la.

 

Começou a tremer e agarrou os joelhos num esforço inútil para acabar com aquilo. A noite, tudo ficava estranho. O que estaria fazendo, sentado no chão da sala de estar, segurando os joelhos e tremendo como um velho bêbado num beco? Ou como um psico catatônico safado, o que era mais provável. O que era? Seria um psico? Nada mais ou menos engraçado como um bicha, um caralhão, mas um psico completo? O pensamento provocou-lhe um novo terror. Fora mesmo procurar um bandido para comprar explosivos? Estava realmente escondendo duas armas de fogo na garagem, uma delas poderosa o bastante para matar um elefante? Um pequeno gemido escapou-lhe da garganta e levantou-se, aos poucos, os ossos estalando como os de um velho.

 

Subiu a escada sem se permitir pensar e entrou no quarto.

 

— Olívia? — disse baixinho. Isso era absurdo, até parecia um velho filme de Rodolfo Valentino. — Você está acordada?

 

— Estou— respondeu ela. Não parecia nem mesmo sonolenta. — O relógio estava me mantendo acordada. Aquele relógio digital. Continuava a fazer clique. Desliguei a tomada.

 

— Tudo bem — disse ele. Era uma coisa absurda de dizer: — Tive um pesadelo. Som de lençóis sendo afastados.

 

— Venha. Deite-se aqui comigo.

 

— Eu...

 

— Você quer calar a boca?

 

Deitou-se na cama com ela, que estava nua. Fizeram amor. Dormiram. Pela manhã, a temperatura era de — 10°C. Ela perguntou se ele recebia jornal em casa.

 

— Recebia, antes — respondeu ele. — Kenny Upslinger fazia a entrega. A família dele mudou-se para Iowa.

 

— Iowa — repetiu ela, e ligou o rádio.

 

Um locutor dava o estado do tempo. Claro e frio.

 

— Gostaria de uns ovos fritos?

 

— Dois, se tiver em casa.

 

— Claro que tem. Escute, a respeito da noite passada...

 

— Esqueça a noite passada. Eu gozei. Isso é muito raro em mim. Gostei.

 

Ele sentiu um pouco de orgulho, talvez o que ela quisesse que ele sentisse. Fritou os ovos. Dois para ela, dois para ele. Torradas e café. Ela tomou três xícaras com creme e açúcar.

 

— Bem, o que é que você vai fazer? — perguntou ela, quando os dois terminaram.

 

— Vou levá-la à estrada — respondeu imediatamente ele. Ela teve um gesto impaciente.

 

— Isso, não. A respeito de sua vida, Ele sorriu.

 

— Isso parece sério.

 

— Não para mim — retrucou ela. — Para você.

 

— Não pensei nisso — confessou ele. Você sabe, antes — acentuou o antes levemente para indicar toda sua vida e todas as partes dela que jogara pela borda do mundo —, antes que o machado caísse, devia ter sentido tudo que um homem condenado sente na casa da morte. Nada me parecia real. Parecia que eu estava vivendo um sonho que continuaria para todo o sempre. Agora, tudo parece real. Na noite passada... aquilo foi muito real.

 

— Estou contente — disse ela, e parecia. — Mas o que é que vai fazer agora?

 

— Realmente, não sei.

 

— Acho isso triste — opinou ela.

 

— É? — perguntou ele. Uma pergunta autêntica.

 

Estavam no carro outra vez, correndo pela Estrada 7 na direção de Landy. O tráfego nas proximidades da cidade parava e continuava. Pessoas indo para o trabalho. Ao passarem pelo canteiro de obras do prolongamento da 784, as operações do dia já haviam começado. Homens usando capacetes de segurança amarelos e botas verdes subiam para suas máquinas, hálito congelado subindo da boca. O motor de um dos caminhões da municipalidade produziu um sinal de arranque, continuou, tossiu com um som de explosão de morteiro, novo som de arranque e depois entrou em um ponto morto irregular. O motorista acelerou o motor a intervalos, como se aquilo fosse um som de tiros numa guerra.

 

— Daqui de cima eles parecem crianças brincando com caminhões em uma caixa de areia — observou ela.

 

Fora da cidade, o tráfego passou a correr mais solto. Ela pegara os duzentos dólares sem embaraço ou relutância — e também não com qualquer ganância especial. Cortara um pouco do forro do casaco e guardara ali o dinheiro e depois recosturara tudo com agulha e linha azul que tirara da cesta de costura de Mary. Recusara o oferecimento dele de levá-la até a estação de ônibus, dizendo que o dinheiro duraria mais se viajasse de carona.

 

— O que é que uma garota direita como você está fazendo num carro como este? — perguntou ele.

 

— Ahn?

 

Ela fitou-o, arrancada de seus próprios pensamentos. Ele sorriu.

 

— Por que você? Por que Las Vegas? Você está vivendo no limite, igual a mim. Conte alguma coisa a seu respeito.

 

Ela deu de ombros.

 

— Não há muito a contar. Eu estava estudando na Faculdade, na Universidade de New Hampshire, em Durham. Esse lugar fica perto de Portsmouth. Estava no primeiro ano. Morando fora do campus. Com um cara. Estávamos metidos num caso grave de drogas.

 

— Você quer dizer, droga como heroína? A moça riu alegremente.

 

— Não, nunca conheci ninguém que tomasse heroína. Nós viciados decentes de classe média, ficávamos com os alucinógenos. Ácido lisérgico. Mescalina. Peyote umas duas vezes, STP também umas duas vezes. Produtos químicos. Fiz 16 ou 18 viagens entre setembro e novembro.

 

— Como foi? — perguntou ele.

 

— Você quer dizer, se tive umas “viagens ruins”?

 

— Não, quero dizer, como é tudo — retrucou ele, defensivamente.

 

— Houve algumas viagens ruins, mas todas tiveram partes boas. E um bocado de viagens boas teve partes ruins. Certa vez, cheguei à conclusão de que estava com leucemia. Isso foi de assustar. Mas, na maior parte, elas eram simplesmente estranhas. Nunca vi Deus. Não quis nunca cometer suicídio. Nunca tentei matar ninguém.

 

Ela pensou por um momento.

 

— Todos haviam abandonado esses produtos químicos, que a gente tomava com seringa de injeção. Os quadrados, gente como Art Linklclter, diziam que eles iam nos matar. Já os viciados diziam que eles abririam as portas que a gente precisava abrir, como se a gente descobrisse um túnel dentro de nós, como se a alma da gente fosse como um tesouro em um romance de H. Rider Haggard. Já leu alguma coisa dele?

 

— Li Ela, quando era menino. Não foi ele quem escreveu isso?

 

— Foi. Você acha que sua alma é como uma esmeralda no centro da testa de um ídolo?

 

— Nunca pensei nisso.

 

— Não acho que seja — afirmou ela. — Vou-lhe contar o melhor e o pior que me aconteceu com alucinógenos químicos. O melhor foi me ligar uma vez, no apartamento, e ficar olhando para o papel de parede. No papel havia um bocado de pontinhos redondos e eles se transformaram em neve para mim. Sentada na sala de estar observei a nevasca na parede durante mais de uma hora. Depois de algum tempo, vi uma menininha andando com grande dificuldade pela neve. Trazia um lenço em volta da cabeça, de um material muito grosseiro, como estopa, e segurava-o assim... — Apertou um punho sob o queixo. — Achei que ela ia para casa e, bangue!, vi ali uma rua inteira, toda coberta de neve. Ela subiu a rua e depois uns degraus para uma casa. Isso foi o melhor. Sentada no apartamento assistindo “paredevisão”. Exceto que Jeff disse que aquilo era “cabeçavisão”.

 

— Jeff era o cara com quem você estava vivendo?

 

— Era. A pior foi uma vez que resolvi desentupir a pia. Não sei por quê. Às vezes, numa viagem, as gente tem umas idéias esquisitas, exceto que elas parecem perfeitamente normais. Parecia que eu tinha que desentupir a pia. De modo que peguei o desentupidor e comecei... e do cano saiu aquela merda toda. Não sei quanto daquilo era merda real e quanto pura imaginação. Pó de café. Um pedaço de camisa velha. Grandes pedaços de sebo congelado. Coisas vermelhas que pareciam sangue. E depois a mão. A mão de um cara.

 

— O quê?

 

— Uma mão. Chamei Jeff e disse: Hei, alguém enfiou alguém na tubulação. Mas ele tinha ido para algum lugar e eu estava sozinha. Usei o desentupidor como uma doida e finalmente tirei o antebraço. A mão estava na bacia da pia, toda manchada de pó de café, e o antebraço, descendo pelo cano. Fui por um momento até a sala de estar, a fim de ver se Jeff havia voltado, e quando voltei novamente à cozinha a mão c o braço haviam desaparecido. Aquilo me preocupou. Às vezes sonho com aquilo.

 

— Isso é loucura — disse ele, reduzindo a marcha ao cruzarem uma ponte de reparos.

 

— Alucinógenos químicos enlouquecem a gente — concordou ela. — Às vezes, isso é uma boa coisa. Na maioria das vezes, não. De qualquer modo, a gente se meteu nesse negócio pesado de drogas. Já.viu um desses desenhos mostrando como é um átomo, com os prótons, nêutrons e elétrons girando?

 

— Já.

 

— Bem, era como se nosso apartamento fosse o núcleo e todas as pessoas que entravam e saíam fossem os prótons e elétrons. Gente chegando e indo embora, aparecendo e desaparecendo, todos desligados, igualzinho ao Manhattan Transfer.

 

— Esse eu não li.

 

— Pois devia ler. Jeff sempre disse que Dos Passos foi o primeiro jornalista biruta. Livro biruta. De qualquer modo, em algumas coisas ficava assistindo TV com o som desligado e um disco no estéreo, todo mundo ligado numa boa, gente trepando no quarto, talvez, e a gente nunca sabia mesmo quem estava fodendo quem. Entende o que eu quero dizer?

 

Pensando em algumas festas de que, bêbado, participara, tão confuso como Alice no País das Maravilhas, disse que sabia.

 

— Uma noite houve um programa especial com Bob Hope. Todo mundo estava sentado ali, ligadão, rindo feito doidos daquelas velhas piadas, todas as mesmas expressões estereotipadas, todas aquelas brincadeiras bem-humoradas com os figurões de Washington doidos pelo poder. Justamente sentado em volta do aparelho como todas as mamães e papais em casa, e então eu pensei, bem, foi para isso que a gente se meteu no Vietnã, para que Bob Hope pudesse fechar o hiato de gerações. É apenas uma questão de como a gente fica ligadona.

 

— Mas você era pura demais para tudo isso?

 

— Pura? Não, não foi isso. Mas comecei a pensar nos últimos 15 anos, mais ou menos, como se numa espécie de grotesco jogo de Monopólio. Francis Gary Powers é abatido em seu U-2. Perde uma volta. Negros dispersados por mangueiras de apagar incêndios em Selma. Vão diretos para a cadeia. Pessoas da Ku-Klux-KIan mortas a tiros no Mississípi, marchas, comícios, Lester Maddox com seu cabo de machado, Kennedy assassinado em Dallas, Vietnã, mais marchas, o Kent State, greves de estudantes, movimento de liberação, e tudo isso para o quê? Para que um bando de viciados possa sentar-se, drogado, até a alma, em um apartamento ordinário, assistindo a um programa de Bob Hope? Isso que se fodesse. De modo que resolvi dar no pé.

 

— E o Jeff?

 

Ela encolheu os ombros.

 

— Ele tem uma bolsa-de-estudos. Está indo bem. Diz que vai abandonar a droga no próximo verão, mas não vou procurá-lo até que tire isso a limpo.

 

Apareceu no rosto da moça uma expressão peculiar de desilusão que provavelmente tinha uma contrapartida de valente paciência interna.

 

— Sente falta dele?

 

— Todas as noites.

 

— Por que Vegas? Conhece alguém lá?

 

— Não.

 

— Esse lugar me parece muito esquisito para uma idealista.

 

— É isso o que você pensa que sou? — Riu e acendeu um cigarro. — Talvez. Mas não acho que um ideal precise de qualquer ambiente particular. Quero conhecer a cidade. É tão diferente do resto do país que tem que ser boa. Mas não vou jogar. Vou apenas arranjar um emprego.

 

— E depois?

 

Eia soprou a fumaça e encolheu os ombros. Passavam nesse momento por uma tabuleta que dizia:

 

LANDY 8km

 

— Tente entender uma coisa — continuou ela. — Não vou tomar drogas por muito tempo e vou acabar com isto. — Gesticulou com o cigarro no ar. O cigarro traçou um círculo no ar, como se conhecesse uma verdade diferente. — Vou deixar de fingir que minha vida não começou ainda. Começou. Já ultrapassou 20%. Já lambi a cobertura do bolo.

 

— Olhe. A entrada da via expressa fica ali. Puxou o carro para o acostamento.

 

— E você, homem? O que é que vai lhe acontecer? Pesando as palavras, ele respondeu:

 

— Vou ver o que acontece. Manter abertas minhas opções.

 

— Você não está em tão boa forma assim, se não se importa que eu diga isso.

 

— Não, não me importo.

 

— Olhe aqui, tome isto.

 

Segurava um pequeno embrulho de papel de alumínio entre o primeiro e segundo dedos da mão direita.

 

Ele pegou-o e o examinou. O papel captou os raios do brilhante sol matutino e heliografou raios de luz para seus olhos.

 

— O que é isto?

 

— Produto quatro, mescalina sintética. O produto químico mais forte, mais puro, jamais produzido. — Hesitou. — Talvez você deva botar isso na latrina e dar descarga quando chegar em casa. Pode deixar você ainda pior do que já está. Mas poderia ajudar. Ouvi dizer que ajuda.

 

— Já viu algum caso? Ela sorriu amargamente.

 

— Não.

 

— Você faria uma coisa por mim? Se puder?

 

— Se puder.

 

— Telefone-me no Dia de Natal.

 

— Por quê?

 

— Você é um livro que não terminei. Quero saber como se desenvolve ele, pouco mais. Telefone a cobrar. Vou escrever meu número.

 

Ia tirando a caneta do bolso quando ela disse:

 

— Não.

 

Ele fitou-a, confuso e magoado.

 

— Não?

 

— Posso conseguir o número com a ajuda ao cliente, se precisar. Mas talvez seja melhor eu não telefonar.

 

— Por quê?

 

— Não sei. Gosto de você, mas é como se alguém lhe tivesse rogado uma praga. Não posso explicar isso. É como se você fosse fazer alguma coisa realmente louca.

 

— Você pensa que eu sou bicha — ele se ouviu dizendo. — Foda-se. Ela desceu do carro. Ele inclinou-se para ela.

 

— Olívia...

 

— Talvez esse não seja meu nome.

 

— Talvez seja. Por favor, telefone.

 

— Cuidado com esse material — disse ela, apontando para o embrulho de papel de alumínio. — Você também está na corda bamba.

 

— Adeus. Cuide-se.

 

— Cuide-se? O que é isso? — O sorriso amargo novamente. — Adeus, sr. Dawes. Obrigado. O senhor é bom de cama, importa-se se eu disser isso? É. Adeus.

 

Fechou com força a porta, cruzou a Estrada 7 e postou-se ao pé da rampa de entrada, Observou-a erguer um polegar para uns dois carros. Nenhum dos dois parou. Depois, a estrada ficou desimpedida, fez uma curva em U, buzinando uma vez. No retrovisor viu um pequeno fac-símile do aceno dela.

 

Seu débil mental idiota, pensou, todo prosa consigo mesmo. Ainda assim, quando estendeu a mão para ligai o rádio, os dedos tremeram.

 

Voltou para a cidade, entrou na via expressa e guiou uns trezentos quilômetros, desenvolvendo 110km/h. Em um momento, quase jogou pela janela o embrulho de papel de alumínio. Em outra ocasião, quase tomou o comprimido que havia ali dentro. Finalmente, guardou-o no bolso do paletó.

 

Ao chegar em casa sentiu-se esgotado, esvaziado de toda emoção. O prolongamento da 784 progredira durante o dia; em umas duas semanas, a lavanderia estaria pronta para receber a bola demolidora. Já haviam tirado de lá o equipamento pesado. Tom Granger lhe dissera isso em uma conversa estranha, forçada, há três noites no telefone. Quando fossem derrubar o prédio, passaria o dia ali, observando. Levaria mesmo um saco com o almoço.

 

Encontrou uma carta para Mary, enviada pelo irmão dela que morava em Jackson-ville. Ele não sabia da separação, portanto. Juntou-a a outras coisas para Mary que continuava a esquecer-se de encaminhar a ela.

 

Pôs um jantar congelado no forno e pensou em preparar um drinque. Mas resolveu que não. Queria pensar em sua experiência sexual com aquela moça, na noite anterior, saboreá-la, explorar as nuanças. Uns poucos drinques e tudo adquiriria a cor antinatural, febril, de um mau filme pornô — Estudantes Inquietas, Identidade Necessária — e não queria pensar nela nessas condições.

 

Mas não aconteceu, não da maneira que queria. Não conseguiu lembrar-se da sensação de firmeza dos seios ou do gosto secreto dos bicos. Sabia que o atrito da relação sexual fora mais agradável com ela do que com Mary. Olívia era apertada e uma vez seu pênis escapulira da vagina dela com um som audível, como uma rolha de champanha. Mas não podia realmente lembrar-se do que fora o prazer. Em vez de poder sentir isso, sentiu vontade de masturbar se. O que o enojou. Além do mais, o nojo enojou-o. Ela não era nenhuma santa, garantiu a si mesmo, sentando-se para comer a comida pronta. Apenas uma vagabunda na estrada. E ainda mais indo para Las Vegas. Descobriu-se desejando poder encarar todo o incidente com o olho deformado de Magliore e isso enojou-o mais que tudo.

 

Mais tarde na noite embebedou-se, a despeito de todas as boas intenções, e por volta de l0h da noite a ânsia sentimental de ligar para Mary retomou. Em vez disso, masturbou-se em frente à TV e gozou no momento em o locutor demonstrava, incontrovertivelmente, que Anacin atingira e mantivera o nível mais alto que qualquer outra marca de analgésico.

 

 

 

8 de dezembro de 1973

 

Não saiu de carro no sábado. Vagueou sem propósito pela casa, adiando coisas que tinham que ser feitas. Finalmente, telefonou para a casa dos sogros, Lester e Jean Calloway, os pais de Mary, que estavam se aproximando dos setenta anos. Nos telefonemas anteriores, Jean (que Charlie sempre chamara de “mamãe Jean”) atendera e sua voz se transformara em lascas de gelo quando reconhecera a voz. Para ela, e para Lester, indubitavelmente, ele era um animal que enlouquecera e que mordera a filha. Nesse momento, o animal continuava a telefonar, obviamente bêbado, implorando que a filha deles voltasse, para que pudesse mordê-la novamente.

 

Mas ouviu, com grande alívio, a própria Mary dizer “Alô”, de modo que pôde falar novamente.

 

— Sou eu, Mary.

 

— Oh, Bart, como vai? Impossível interpretar-lhe a voz.

 

— Mais ou menos.

 

— Como é que vai indo o estoque de Southern Comfort?

 

— Mary, eu não estou bebendo.

 

— E isso é uma vitória?

 

Ela parecia fria e ele sentiu uma pontada de pânico, principalmente porque pensou que sua capacidade de julgamento se revelara incrivelmente falha. Poderia alguém que conhecera por tanto tempo e que pensava que conhecia tão bem estar se afastando dele assim tão facilmente?

 

— Acho que é — respondeu, desajeitado.

 

— Eu soube que a lavanderia fechou — disse ela.

 

— Provavelmente, apenas por pouco tempo.

 

Sentiu uma sensação esquisita, como se estivesse em um elevador conversando embaraçado com alguém que o julgava um chato.

 

— Não foi isso o que disse a mulher de Tom Granger.

 

Ali estava a acusação, finalmente. Mas uma acusação era melhor do que nada.

 

— Tom não vai ter problema nenhum. Os concorrentes na zona norte têm tentado contratá-lo há anos. O pessoal da Brite-Kleen.

 

Achou que a ouvia suspirar.

 

— Por que telefonou, Bart?

 

— Acho que precisamos nos reunir — disse ele, pesando as palavras. — Temos que conversar sobre isto, Mary.

 

— Você quer dizer, divórcio?

 

Disse isso calmamente, mas ele pensou que era na voz dela que identificava pânico nesse momento.

 

— Você quer o divórcio?

 

— Eu não sei o que quero. — A calma rachou e ela pareceu zangada e medrosa. — Eu pensava que tudo estava bem, eu me sentia feliz e pensava que você era feliz, também. Agora, de repente, tudo isso mudou.

 

— Você pensou que tudo estava bem — repetiu ele. Subitamente, ficou furioso com ela. — Pois deve ter sido muito estúpida, se pensava isso. Você acha que joguei fora meu emprego para fazer uma brincadeira de mau gosto, como um garoto de escola secundária que joga um buscapé no toalete?

 

— Então, o que foi, Bart? O que foi que aconteceu?

 

A raiva dele esvaiu-se como um bocado de neve amarelado e podre e descobriu que havia lágrimas por baixo. Lutou resolutamente contra elas, sentindo-se traído. Isso não devia acontecer, estando sóbrio. Quando sóbrio, o cara devia manter uma droga de controle sobre si mesmo. E ali estava ele, querendo contar tudo e soluçar no colo dela como um garoto com um skate quebrado e um joelho ralado. Mas não podia dizer a ela o que estava errado porque ele mesmo não sabia com certeza e chorar sem saber o motivo era coisa própria de pessoas maduras para o manicômio.

 

— Não sei — respondeu, finalmente.

 

— Charlie?

 

Desesperançado, ele disse:

 

— Se isso fosse parte da situação, como poderia você ser tão cega para o resto?

 

— Eu também sinto falta dele, Bart. Ainda. Todos os dias.

 

Ressentimento, outra vez. Mas você tem uma maneira muito esquisita de demonstrá-lo.

 

— Isso não adianta — disse ele, por fim. Lágrimas escorriam-lhe pelo rosto mas conseguiu mantê-las afastadas da voz. Cavalheiros, acho que resolvemos o problema, pensou, e quase riu.

 

— A que horas?

 

— A hora não importa. Posso largar o trabalho.

 

A brincadeira caiu no chão e ali morreu, exangue.

 

— Uma hora? — perguntou ela.

 

— Está bem. Vou reservar uma mesa para nós.

 

— Reserve. Simplesmente, não chegue lá às 11h e comece a beber.

 

— Não vou beber — respondeu humilde, sabendo que provavelmente ia. Houve uma pausa. Aparentemente, nada mais havia a dizer. Baixinho, quase perdido no zumbido da linha ainda aberta, outras vozes fantasmagóricas discutiam outras coisas fantasmagóricas. Mas nesse momento ela disse algo que o deixou inteiramente surpreso.

 

— Bart, você precisa consultar um psiquiatra.

 

— Eu preciso o quê?

 

— Psiquiatra. Sei a impressão que isso causa, dito assim de supetão. Mas quero que saiba que o que quer que a gente decida, não vou voltar a viver com você a menos que você concorde com isso.

 

— Adeus, Mary — disse ele, vagarosamente. — A gente se vê na segunda-feira.

 

— Bart, você precisa de uma ajuda que eu não posso dar.

 

Com todo cuidado, enfiando a faca com toda .perfeição que pôde em uma distância de uns três quilômetros de fio cego, ele disse:

 

— Afinal de contas, eu já sabia disso. Adeus, Mary.

 

Desligou antes de ouvir o resultado e surpreendeu-se descobrindo que estava satisfeito. Bem na mosca. Jogou uma jarra plástica de leite no outro lado do quarto e voltou a sentir-se satisfeito porque não atirara alguma coisa quebrável. Abriu o armário em cima da pia, puxou os dois primeiros copos em que tocou e lançou-os no chão. Despedaçaram-se.

 

Sua ordinária! gritou para si mesmo. Por que simplesmente não toma uma respiração e prende-a até ficar AZUL?

 

Lançou com toda força o punho direito contra a parede, a fim de calar aquela voz e gritou de dor. Segurou a mão direita machucada com a esquerda e ficou ali, tremendo. Quando conseguiu se controlar, pegou uma pá de lixo e uma vassoura e varreu os cacos, sentindo-se amedrontado, mal-humorado e de ressaca.

 

 

 

9 de Dezembro de 1973

 

ENTROU NA AUTO-ESTRADA, guiou 230km e refez o caminho de volta. Não ousou ir mais adiante. Aquele era o primeiro domingo sem gasolina e todos os postos da estrada estavam fechados. E não queria andar. Está vendo? disse a si mesmo. É assim que agarram merdinhas como você, Georgie.

 

Fred? É você, mesmo? Ao que devo a honra desta visita, Freddy?

 

Vá tomar naquele lugar, cara.

 

A caminho de casa, ouviu no rádio uma notícia do plantão do dia: “De modo que você está preocupado com a escassez de gasolina e quer ter certeza de que nem você nem sua família ficam desabastecidos neste inverno. De modo que está indo agora para a bomba das vizinhanças, levando uma dezena de latas de cinco galões. Mas se está realmente preocupado com sua família, é melhor dar a volta e tomar o caminho de casa. O armazenamento incorreto de gasolina é perigoso. E também ilegal, mas, por um minuto, esqueça isso. Pense no seguinte: Quando os vapores da gasolina se misturam com o ar, eles se tornam explosivos. E um galão de gás tem o potencial explosivo de 12 bananas de dinamite. Pense nisso antes de encher essas latas. E depois pense em sua família. Entendeu? Nós queremos que você continue a viver.

 

“Esta foi uma mensagem de serviço público da WLDM. A Gente da Música lembra-lhe para deixar o armazenamento de gasolina a pessoas equipadas para fazerem isso corretamente.”

 

Baixou o volume do rádio, reduziu a velocidade para 80km/h e entrou numa faixa de velocidade de cruzeiro.

 

— Doze bananas de dinamite — disse em voz alta. — Poxa, isso é espantoso. Se tivesse olhando no retrovisor, teria visto que estava rindo alegre.

 

 

 

10 de dezembro de 1973

 

Chegou ao Handy Andy’s pouco depois de 11:30h e o maitre lhe deu uma mesa em uma das alas estilizadas que desembocavam na sala de espera — não uma boa mesa, mas uma das poucas vazias no local, nesse momento lotado para o almoço. O Handy Andy’s especializava-se em bifes, costeletas e numa coisa denominada Andyburger, que parecia um pouco com uma salada de carne dentro de um enorme pão de gergelim, usando um palito para manter juntas as duas metades do troço. Como todos os grandes restaurantes da cidade, situado a uma distância conveniente de ida-e-volta a pé de executivos, o estabelecimento passava por ciclos indefiníveis de popularidade e abandono. Há dois meses, poderia ter chegado ali ao meio-dia e obtido a mesa de sua escolha — e dentro de três meses, quem sabe, poderia fazer o mesmo. Para ele, aquilo sempre fora um dos pequenos mistérios da vida, tais como os incidentes nos livros de Charles Fort ou o instinto que sempre trazia as andorinhas de volta a Capistrano.

 

Rapidamente olhou em volta, receoso de ver Vinnie Mason, Steve Ordner ou algum outro executivo da lavanderia. O local, porém, estava cheio apenas de estranhos. À sua esquerda, um rapaz tentava convencer uma moça que podiam com a despesa de três dias em Sun Valley, no próximo fevereiro. O resto da conversa na sala era apenas blablablá — tranqüilizador.

 

— Bebida, senhor? Era o garçom, ao lado.

 

— Uísque com gelo, por favor — respondeu

 

— Pois não, senhor — disse o garçom.

 

Conseguiu que o primeiro durasse até meio-dia, liquidou mais dois outros até as 12:30h e em seguida, obstinadamente, pediu um duplo. Estava justamente terminando-o quando viu Mary entrar e parar à porta entre a sala de recepção e o salão de jantar, e olhar em volta à sua procura. Cabeças viraram-se para ela e ele pensou: Mary, você devia me agradecer. Você é bela. Ergueu a mão e acenou.

 

Ela fez o mesmo e veio para a mesa. Usava um vestido de lã pelo joelho, cinza estampado, os cabelos arrumados em uma trança única, grossa, que caía pelas costas, de uma maneira que não conseguia lembrar-se de tê-la visto usar (e talvez usasse assim apenas por essa razão). O penteado tornava-a mais jovem e, de repente, lembrou-se com arrependimento de Olivia rebolando-se debaixo dele na cama que ele e Mary haviam compartilhado juntos por tanto tempo.

 

— Alô, Bart — disse ela.

 

— Oi. Você está bonita.

 

— Obrigada.

 

— Quer uma bebida?

 

— Não... apenas um Andyburger. Há quanto tempo está aqui?

 

— Oh, não faz muito tempo.

 

A (urina do almoço rareara e o garçom apareceu quase imediatamente.

 

— Gostaria de fazer o pedido agora, senhor?

 

— Dois Andyburgers. Leite para a senhora. Outro duplo para mim.

 

Olhou para Mary mas o rosto dela nada demonstrava. Isso era ruim. Se houvesse (alado, teria suspendido o pedido do duplo. Tomara que não precisasse ir ao banheiro, porque não tinha certeza se poderia andar em linha reta. Isso seria uma fofoca maravilhosa para ela contar aos pais em casa. Levem-me de volta para a velha Virgínia. Quase soltava uma risada.

 

— Bem, você não está bêbado, mas está bem adiantado — disse ela e desdobrou o guardanapo sobre o colo.

 

— Isso foi muito bom — observou ele — Ensaiou isso?

 

— Bart, não vamos brigar.

 

— Não, não vamos — concordou ele.

 

Ela brincou com o copo d’água; ele fez o mesmo com o descanso do copo de uísque.

 

— Bem? — disse ela, finalmente.

 

— Bem o quê?

 

— Você parecia ter alguma coisa para me dizer, quando telefonou. Agora que está cheio de coragem de álcool, o que é?

 

— Você melhorou do resfriado — respondeu ele, idiotamente, e abriu um buraco no descanso de cortiça, sem querer.

 

Não podia dizer-lhe o que vinha em primeiro lugar em seus pensamentos: que ela parecia ter mudado, que parecia, de repente, sofisticada e perigosa, como uma secretária à caça que trocara uma hora tardia de almoço por certos favores e que recusaria qualquer oferecimento de um drinque a menos que vindo de um homem vestido com um terno de quatrocentos dólares. E que sabia disso apenas olhando de relance para o corte da roupa.

 

— Bart, o que é que nós vamos fazer?

 

— Eu vou consultar um psiquiatra, se você quiser — respondeu ele, baixando a voz.

 

— Quando?

 

— Logo.

 

— Você pode marcar uma hora esta tarde, se quiser.

 

— Não conheço nenhum mer... nenhum.

 

— Eles estão nas Páginas Amarelas.

 

— Isso me parece uma maneira meio idiota de escolher um médico de doido. Ela apenas fitou-o e ele desviou a vista, embaraçado.

 

— Você está zangado comigo, não está? — perguntou ela.

 

— Estou. Bem, eu não estou trabalhando. Cinqüenta dólares a hora me parece um bocado caro para um sujeito desempregado.

 

— E do que é que você pensa que estou vivendo? — perguntou ela secamente. — Da caridade de meus pais. E, como você sabe, ambos são aposentados.

 

— E segundo me lembro, seu pai tem ações bastantes da SOI e da Beechcraft para manter vocês fora da rua da amargura até o próximo século.

 

— Bart, isso não é verdade.

 

Ela pareceu surpresa e magoada.

 

— Uma ova que não é. No inverno passado foram passar as férias na Jamaica, Miami no ano anterior, e no Fontainebleau, nada menos que isso, e em Honolulu no ano anterior a esse. Ninguém faz isso com a pensão de um engenheiro aposentado. De modo que não me venha com essa lengalenga de pobreza, Mary...

 

— Pare com isso, Bart. Está dando na vista.

 

— Para nada dizer de um Cadillac Gran De Ville e uma perua Bonneville. Nada mau. Qual é o que usam quando vão apanhar os cupões para trocar por comida?

 

— Pare! — silvou ela, os lábios um pouco arreganhados sobre os pequenos dentes brancos, os dedos agarrando a borda da mesa.

 

— Desculpe — murmurou ele.

 

— O almoço está chegando.

 

A temperatura entre eles esfriou um pouco quando o garçom pôs na mesa os Andyburgers e as batatas fritas, acrescentou pratos minúsculos de ervilhas verdes e cebolinhas e em seguida retirou-se. Comeram sem falar durante algum tempo, ambos concentrando-se para que a comida não escorresse pelos cantos da boca ou pingasse no colo. Quantos casamentos teriam sido salvos por Andyburgers? — pensou ele. Simplesmente por causa de seu único atributo providencial — quando se come um deles não se pode falar.

 

Ela pôs de lado o sanduíche pela metade, enxugou a boca com o guardanapo e disse:

 

— Estão tão bons como sempre. Bart, você tem alguma idéia sensata, absolutamente, sobre o que fazer?

 

— Claro que tenho — respondeu ele, ofendido.

 

Mas não sabia que idéia era. Se tivesse tomado outro duplo, talvez soubesse.

 

— Quer o divórcio?

 

— Não — retrucou ele.

 

Alguma coisa positiva parecia ser apropriada.

 

— Quer que eu volte?

 

— Você quer voltar?

 

— Não sei — confessou ela. — Quer que eu lhe diga uma coisa, Bart? Pela primeira vez em vinte anos estou preocupada comigo mesma. Estou me defendendo sozinha.

 

— Começou uma dentada no Andyburger, desistiu e colocou-o novamente no prato.

 

— Sabia que eu quase não me casei com você? Você jamais pensou nisso?

 

A surpresa que viu no rosto do marido pareceu agradá-la.

 

— Eu achava que não. Eu estava grávida, de modo que queria casar com você. Mas parte de mim não queria. Alguma coisa continuava a me dizer no ouvido que seria o pior erro de minha vida. Assim, assei em fogo lento durante três dias, vomitando todas as manhãs quando acordava, odiando você por isso, pensando nisto, nisso, naquilo. Fugir. Fazer um aborto. Ter o bebê e oferecê-lo para adoção. Ter um bebê e conservá-lo. Mas, finalmente, resolvi fazer a coisa sensata. A coisa sensata. — Riu. — E depois perdi o bebê, de qualquer maneira.

 

— Sim, perdeu — murmurou ele, desejando que a conversa se desviasse desse assunto. Aquilo se parecia demais com entrar num sanitário e pisar em vômito.

 

— Mas fui feliz com você, Bart.

 

— Foi? — perguntou ele, automaticamente.

 

Descobriu que queria ir embora dali. Aquilo não estava funcionando, não para ele, de qualquer maneira.

 

— Fui. Mas, no casamento, acontece uma coisa com a mulher que não acontece Com o homem. Lembra-se que, quando era criança, nunca se preocupou com seus pais? Você esperava simplesmente que eles estivessem ali, à mão, da mesma maneira que acontecia com a comida, o aquecimento, as roupas.

 

— Acho que sim. Isso mesmo.

 

— E a boba que eu era engravidou. E durante três dias um mundo inteiramente novo se abriu em volta de mim.

 

Ela falava inclinada para a frente, os olhos brilhantes e ansiosos e ele deu conta, com um choque inesperado, que essa confissão era importante para ela, que era mais que reunir-se com as amigas sem filhos, chegar a uma conclusão sobre que calça comprida comprar na Banberry’s ou adivinhar com que celebridade Merv bateria um papo às 4h da tarde. Isso era importante para ela e teria, realmente, levado vinte anos de casamento com esse único pensamento importante? Teria? Ela mesma quase dissera isso. Vinte anos, meu Deus. Sentiu de repente um enjôo no estômago. Gostava muito mais da imagem dela apanhado garrafas vazias à beira da estrada e acenando para ele, do outro lado.

 

— Eu me vi como uma pessoa independente — dizia ela nesse momento. — Como uma pessoa independente, com ninguém a me explicar ou me subordinar. Ninguém em volta tentando me mudar, porque eu sabia que podia mudar. Sempre fui fraca assim. Mas também sem ninguém em quem me apoiar quando adoecia, tinha medo, ou talvez estava quebrada. De modo que fiz a coisa sensata. Tal como minha mãe e a mãe dela. Como minhas amigas. Estava cansada de ser dama de honra, tentando agarrar o buquê. De modo que disse sim, que era o que você esperava, e as coisas continuaram. Não houve preocupações e quando o bebê morreu, e Charlie morreu, havia você. E você sempre foi bom para mim. Sei disso, reconheço isso. Mas era um ambiente fechado. Deixei de pensar. Pensava que estava pensando, mas não estava. E agora dói pensar. Dói. — Durante um minuto, fitou-o com um vivo ressentimento, mas que finalmente desapareceu. — De modo que estou lhe pedindo que pense por mim, Bart. O que é que vamos fazer agora?

 

— Vou arranjar um emprego — mentiu ele.

 

— Um emprego.

 

— E consultar um psiquiatra. Mary, as coisas vão melhorar. Honestamente. Eu estava um pouco perturbado, mas vou voltar a ser o que era antes. Eu vou...

 

— Você quer que eu volte para casa?

 

— Dentro de umas duas semanas, com certeza. Eu simplesmente preciso arrumar as coisas um pouco e...

 

— Casa? Do que é que estou falando? Vão derrubá-la. Do que é que estou falando? Casa? Jesus — gemeu —, que confusão mais horrorosa. Por que foi que você teve que me arrastar para esta sujeira toda?

 

Ele não podia suportá-la, não dessa maneira. Ela não se parecia com a Mary que conhecera, não, absolutamente. — Talvez não façam isso — disse, segurando-lhe a mão em cima da mesa. — Talvez não derrubem a casa, Mary, podem mudar de idéia, se for procurá-los, conversar com eles, explicar a situação, eles poderiam...

 

Ela soltou-se com um repelão. Olhava-o horrorizada.

 

— Bart... — murmurou.

 

— O que...

 

Interrompeu-se, hesitante. O que estivera dizendo? O que poderia ter dito para fazer com que ela parecesse tão aterrorizada assim?

 

— Você sabe que vão derrubar a casa. Sabe disso há muito tempo. E estamos sentados aqui, repisando as mesmas coisas...

 

— Não, não estamos — cortou-a ele. — Não estamos. Realmente. Não estamos. Nós... nós...

 

Mas o que era que estavam fazendo? Sentiu-se como se não fosse ele mesmo.

 

— Bart, acho que é melhor eu ir agora...

 

— Eu vou conseguir um emprego...

 

— Falo depois com você.

 

Levantou-se bruscamente, a coxa batendo na borda da mesa e provocando ruídos na louça.

 

— O psiquiatra, Mary, eu prometo...

 

— Mamãe pediu que eu fosse até a loja...

 

— Então, vá! — berrou ele e cabeças viraram nas mesas em volta. — Vá embora daqui, sua puta! Tirou de mim o melhor e o que foi que ganhei? Uma casa que a municipalidade vai derrubar! Saia de minha vista!

 

Ela fugiu dali. A sala ficou horrivelmente silenciosa durante o que pareceu uma eternidade. Depois, as conversas recomeçaram. Ele olhou para o gotejante Andyburger comido pela metade, tremendo, com medo de vomitar. Quando teve certeza de que não ia, pagou a conta e saiu sem olhar em volta.

 

 

 

12 de dezembro de 1973

 

Preparara uma lista de presentes de Natal na noite anterior (antes de ficar bêbado) e estava nesse momento no centro ticando os nomes de uma lista resumida. A lista completa fora assustadora — mais de 120 nomes, incluindo todos os parentes, próximos e distantes, dele e de Mary, e um sem-número de amigos e conhecidos, e, no fim — Deus guarde a Rainha — Steve Ordner, a esposa, dele e, pelo amor de Deus, a empregada.

 

Podara da lista a maioria dos nomes, rindo confuso sobre alguns deles. Nesse momento, andava vagarosamente em frente a vitrinas cheias de artigos de Natal, todos para serem dados a alguém em nome daquele ladrão holandês de antanho que costumava descer pelas chaminés das pessoas e roubar tudo o que possuíam. Uma mão enluvada acariciou no bolso um maço de quinhentos dólares, em notas de dez dólares.

 

Estava vivendo do dinheiro do seguro e os primeiros mil dólares haviam se derretido com espantosa rapidez. Estimava que, a essa taxa, estaria quebrado em meados de março, possivelmente antes, mas descobriu também que esse pensamento não o incomodava, absolutamente. O pensamento sobre onde estaria ou o que andaria fazendo em março era-lhe tão incompreensível como cálculo infinitesimal.

 

Entrou numa joalheria e comprou brincos de prata batida para Mary, imitando corujas. As corujas tinham como olhos frias e fulgurosas lascas de brilhantes. Custou-lhe 150 dólares, mais imposto. A vendedora mostrou-se efusiva. Tinha certeza de que a esposa dele ia adorar. Bart sorriu. Lá se vão três consultas com o médico de doidos, Freddy. O que é que você acha disso?

 

Freddy não estava conversando.

 

Entrou numa grande loja de departamentos e tomou a escada rolante para a seção de brinquedos, que era dominada por um grande display de trem elétrico — colinas verdes de plástico perfuradas por túneis, estações de plástico, passagens de nível, passagens subterrâneas, pontos de mudança de linha e uma locomotiva Lionel que corria por tudo aquilo, exalando baforadas de fumaça sintética pela chaminé e puxando um longo comboio de vagões de carga — b&o, soo, une, great northern, great western, warner brothers (warner brothers?), diamond internatioNAL, southern pacific. Meninos e seus pais observavam por trás da cerca de taliscas de madeira que cercava o display e sentiu por eles uma quente sensação de amor que não era maculada por inveja. Achou que podia aproximar-se deles, dizer-lhe de seu amor por eles, sua gratidão por existirem e pela estação do Natal. E teria insistido também com eles para que tivessem cuidado.

 

Desceu pelo corredor das bonecas e escolheu uma para cada uma das três sobrinhas: Chatty Cathy para Tina, Maisie, a Acrobata, para Cindy, e uma Barbie para Sylvia, que já tinha 11 anos. No corredor seguinte comprou um GI Joe para Bill e, após pensar um pouco, um jogo de xadrez para Andy. Com 12 anos de idade, Andy era motivo de algumas preocupações na família. A velha Bea, de Baltimore, confidenciara a Mary que continuava a encontrar pontos empastados nos lençóis de Andy. Isso poderia ser possível? Tão cedo assim? Mary respondera a Bea que os meninos estavam ficando mais precoces a cada ano. Bea dissera que achava que era todo aquele leite que eles bebiam, e as vitaminas, mas que de fato desejava que Andy gostasse mais de esportes coletivos. Ou de acampamentos de verão. Ou de andar a cavalo. Ou de qualquer coisa.

 

Não dê bola, Andy, pensou, pondo o jogo de xadrez sob o braço. Pratique o gambito do Cavalo e o roque da Rainha e toque uma bronha por baixo da mesa, se quiser.

 

Viu um grande trono de Papai Noel em frente ao departamento de brinquedos. O trono estava vazio e havia um aviso em cima de um cavalete em frente. A tabuleta dizia:

 

Papai Noel está almoçando em nosso famoso “mid-town grill”

 

Por que não vai fazer companhia a ele?

 

Viu um jovem usando jaqueta e calças jeans olhando para o trono, os braços cheios de embrulhos. Quando o rapaz se voltou, reconheceu Vinnie Mason.

 

— Vinnie! — disse ele.

 

Vinnie sorriu e enrubesceu um pouco, como se houvesse sido flagrado fazendo alguma coisa que não se faz.

 

— Alô, Bart — respondeu ele, e aproximou-se.

 

Houve algum embaraço no aperto de mão, tão cheios de embrulhos estavam os braços de ambos.

 

— Gastando por conta do Natal? — perguntou a Vinnie.

 

— É isso aí. — Soltou uma risadinha. — Trouxe Sharon e Bobbie — este é o apelido de minha filha, Roberta — até aqui no sábado. Bobbie está com três anos agora. Queríamos o retrato dela com Papai Noel. Você sabe, tiram fotos assim nos sábados. Um dólar, apenas. Mas ela não quis. Chorou feito uma desesperada. Sharon ficou um pouco nervosa.

 

— Bem, ele é um desconhecido, com uma grande barba. Às vezes, crianças pequenas ficam com medo. Talvez, no próximo ano, ela tire a foto com ele.

 

— Talvez — disse Vinnie, com um rápido sorriso.

 

Bart retribuiu o sorriso, pensando que as coisas haviam se tornado nesse momento muito fáceis com Vinnie. Queria dizer a Vinnie que não o odiasse tanto. Queria” dizer-lhe que sentia muito ter-lhe bagunçado a vida.

 

— O que é que você anda fazendo nestes dias, Vinnie? Vinnie, positivamente, irradiou felicidade.

 

— Você não acreditaria nisso, tão bom que é. Estou dirigindo um cinema. E, no próximo verão, vou dirigir mais três.

 

— Media Associates?

 

Era uma das companhias do conglomerado.

 

— Exatamente. Somos parte do circuito Cinemate Releasing. Enviam-nos todos os filmes que são sucesso certo de bilheteria. Estou dirigindo sozinho o Westfall Cinema.

 

— Vão ampliá-lo?

 

— Vão, o Cinema II e o III, no próximo verão. E o Beacon Drive-In. Vou dirigir esse, também.

 

Bart hesitou antes de falar:

 

— Vinnie, diga se eu estou saindo da linha, mas, se esse grupo Cinemate escolhe os filmes e os programas, o que é exatamente que você faz?

 

— Bem, cuidamos do dinheiro, naturalmente. E encomendamos coisas. Isso é importante. Você sabia que apenas o balcão de balas pode, sozinho, pagar quase todas as despesas de aluguel do filme por uma noite, se for dirigido eficientemente? Há também a questão da conservação e... — inchou visivelmente — a questão de contratação e dispensa de pessoal. O negócio vai me manter muito ocupado. Sharon gosta porque é maníaca por cinema, especialmente por Paul Newman e Clint Eastwood. Eu gosto porque, de repente, passei de nove mil para 11 mil.

 

Embotadamente, Bart olhou para Vinnie por um momento, perguntando a si mesmo se devia falar. Esse era o prêmio dado por Ordner, então. Bom cachorrinho, tome seu osso.

 

— Saia disso, Vinnie — aconselhou. — Saia disso o mais depressa que puder.

 

— O que, Bart?

 

A testa de Vinnie enrugou-se em honesta confusão.

 

— Você sabe o que significa “baba-ovo”, Vinnie?

 

— Baba-ovo? Claro. É uma cobra não venenosa que sobe em árvores e...

 

— Não, baba-ovo. BABA-OVO.

 

— Acho que não conheço essa. O que quer dizer?

 

— É um termo de burocracia. Refere-se a um moço de recados. Um mensageiro enfeitado. Vá buscar café, vá comprar pão-doce, vá dar um passeio pela quadra com o cachorrinho do patrão. Baba-ovo.

 

— Do que é que você está falando, Bart? Quero dizer...

 

— Quero dizer que Steve Ordner falou no seu caso especial com outros membros da diretoria — pelo menos com os importantes — e disse: Escutem, caras, temos que fazer alguma coisa a respeito de Vincent Mason, e é um caso meio delicado. Ele nos avisou que Bart Dawes estava roendo a corda e mesmo que Mason não tivesse influência suficiente para nos permitir deter Dawes antes que ele botasse fogo no coreto, nós devemos alguma coisa a esse Mason. Mas, claro, não podemos dar muita responsabilidade a ele. E sabe por quê, Vinnie?

 

Vinnie fitava-o, ressentido.

 

— Eu sei que não tenho que agüentar essa sua merda, Bart. Isso eu sei. Bart fitou-o com seriedade.

 

— Não estou tentando jogar merda nenhuma em você. O que você faz não significa mais coisa nenhuma para mim. Mas, pelo amor de Deus, Vinnie, você é moço. Não quero ver você estragar sua vida dessa maneira. O emprego que arranjou é uma ameixa a curto prazo e um limão a longo prazo. As decisões mais difíceis que vai ter que tomar vão ser quando pedir novos saquinhos para pipoca e copos plásticos para refrigerantes. E Ordner vai providenciar para que continue assim enquanto você estiver trabalhando para a empresa.

 

O espírito de Natal, se fora isso, coalhou nos olhos de Vinnie. Apertava os embrulhos com força suficiente para fazer o papel de embrulho crepitar e seus olhos estavam cinzentos de ressentimento. Imagine-se só um rapaz que sai de casa asso-viando, pronto para um programa de bolinha pesada e vê que foram cortados a faca todos os quatro pneus de seu novo carro esporte. E ele não está escutando. Eu poderia botar tapes para ele ver e ele nem assim acreditaria.

 

— Da forma que acabou a coisa, você fez a coisa responsável — continuou ele. — Não sei o que as pessoas estão dizendo a meu respeito agora...

 

— Estão dizendo que você ficou doido, Bart — respondeu Vinnie em voz débil e hostil.

 

— Essa palavra é tão boa como qualquer outra. De modo que você teve razão. Mas enganou-se, também. Deixou escapar segredos. Eles não dão posições de responsabilidade a pessoas que deixam escapar segredos, nem mesmo quando têm razão a esse respeito, nem mesmo quando a empresa sofre com o silêncio delas. Esses caras no 40o andar, Vinnie, eles são como médicos. E não gostam mais de boquirrotos do que médicos gostam de internos que saem por aí falando de um médico que operou errado porque tomou muitos drinques no almoço.

 

— Você está realmente decidido a esculhambar minha vida, não é? — perguntou Vinnie. — Mas eu não sou mais seu subordinado, Bart. Vá desperdiçar seu veneno com alguma outra pessoa.

 

Papai Noel estava voltando, com um saco enorme pendurado de um ombro, soltando sonoras gargalhadas, acompanhado por crianças pequenas que formavam uma esteira multicolorida.

 

— Vinnie, Vinnie, não seja cego. Eles estão dourando a pílula. Claro, você está ganhando 11 mil este ano e, no próximo ano, quando você passar a dirigir os outros cinemas, vão aumentá-lo para talvez 14 mil. E aí você estará, dentro de 12 anos a partir de agora, quando não poderá comprar uma Cola-Cola nojenta por trinta centavos. Vá buscar aqueles novos.carpetes para as coxias, vá buscar aquela encomenda de poltronas, vá buscar aqueles rolos de filme que foram mandados por engano para o outro lado da cidade. Você vai querer estar fazendo essa merda quando tiver quarenta anos, Vinnie, sem nada para esperar da vida, a não ser um relógio de ouro quando se aposentar?

 

— Melhor isso do que o que você está fazendo.

 

Vinnie virou-se bruscamente, quase se chocando com Papai Noel, que disse alguma coisa muito parecida com Merda, veja onde está pisando!

 

Ele foi atrás de Vinnie. Alguma coisa na expressão do rapaz convencera-o de que ele estava conseguindo penetrar, a despeito da postura defensiva. Deus, Deus, pensou, que seja assim.

 

— Deixe-me em paz, Bart. Suma.

 

— Caia fora disso — repetiu ele. — Se esperar mesmo até o próximo verão pode ser tarde demais. A faixa de empregos disponíveis vai estar mais apertada do que um cinto de castidade de virgem se esta crise de energia se prolongar até o fim do ano, Vinnie. Esta talvez seja sua última oportunidade. Ela...

 

— Estou lhe avisando pela última vez, Bart — disse Vinnie, virando-se para ele.

 

— Você está botando seu futuro na latrina e dando descarga, Vinnie. A vida é curta demais para isso. O que é que você vai dizer à sua filha quando.,.

 

Vinnie socou-o no olho. Um raio de dor branca relampejou em sua cabeça e ele cambaleou para trás, abrindo os braços. As crianças que vinham seguindo Papai Noel dispersaram-se quando seus embrulhos — bonecas, GI Joe, jogo de xadrez — voaram por toda parte. Bateu na prateleira de telefones de brinquedo, que se espalharam pelo chão. Em algum lugar, uma menininha gritou como um animal ferido e ele pensou: Não chore, queridinha, isto é apenas o velho e estúpido Georgie caindo no chão. Nestes dias, faço isso freqüentemente pela casa, e alguém mais — talvez o velho e jovial Papai Noel — estava dizendo palavrões e gritando pelo detetive da loja. Continuou no chão entre os telefones de brinquedo, todos eles equipados com um tape acionado a bateria, e um deles dizia repetidamente em seu ouvido: “Você quer ir ao circo? Você quer ir ao circo? Você quer...

 

 

 

17 de dezembro de 1973

 

A campainha estridente do telefone tirou-o de um sono leve e inquieto durante a tarde. Estivera sonhando que um jovem cientista descobrira que, mudando apenas um pouco a composição atômica do amendoim, a América poderia produzir quantidades iluminadas de gasolina pouco poluidora. Aparentemente, a descoberta consertava tudo, pessoa! e nacionalmente, e o tom do sonho era de júbilo crescente. O telefone foi um contraponto sinistro que cresceu, fendeu o sonho e deixou entrar a indesejável realidade.

 

Levantou-se do sofá, foi até o aparelho e levou-o atabalhoado ao ouvido. O olho não doía mais, embora, no espelho do corredor ele ainda se apresentasse colorido.

 

— Alô?

 

— Oi, Bart. Tom.

 

— Oi, Tom. Como está você?

 

— Ótimo. Escute, Bart, pensei que você gostaria de saber. Vão demolir amanhã a Blue Ribbon.

 

Os olhos dele esbugalharam-se de estalo.

 

— Amanhã Não pode ser. Eles... diabo, estamos quase no Natal.

 

— É esse o motivo.

 

— Mas não chegaram lá ainda.

 

— Mas é o único prédio industrial ainda no caminho — explicou Tom. — Vão nivelá-lo antes de suspenderem as obras pelo Natal.

 

— Tem certeza?

 

— Tenho. Deram uma notícia naquele programa matutino, “O Dia da Cidade”.

 

— Você vai lá?

 

— Vou — disse Tom. — Passei uma parte grande demais de minha vida naquele lugar para deixar de ir.

 

— Neste caso, acho que vou encontrá-lo lá.

 

— Acho que sim.

 

Ele hesitou por um momento.

 

— Escute, Tom. Quero me desculpar com você. Não acho que vão reabrir a Blue Ribbon, em Waterford ou em qualquer outro lugar. Se esculhambei sua vida...

 

— Não, eu não estou sofrendo nada. Trabalho agora na Brite-Kleen, fazendo manutenção. Expediente mais curto, salário melhor. Acho que achei a rosa no monte de merda.

 

— Que tal o emprego?

 

Ouviu o suspiro de Tom pelo fio.

 

— Não é lá grande coisa — disse ele. — Mas já passei dos cinqüenta. É difícil mudar, teria sido a mesma coisa em Waterford.

 

— Tom, a respeito do que eu fiz...

 

— Não quero ouvir nada sobre isso, Bart. — Tom parecia contrafeito. — Isso é uma questão entre você e Mary. Mesmo.

 

— Tudo bem.

 

— Ah... e você? Está indo bem?

 

— Claro. Tenho umas duas coisas em perspectiva.

 

— Fico contente em ouvir isso.—Tom interrompeu-se e ficou calado durante tanto tempo que a linha tornou-se cheia demais de silêncio e ele ia justamente lhe agradecer por ter telefonado e desligar quando Tom acrescentou: — Steve Ordner telefonou, a seu respeito. Ligou aqui mesmo pra minha casa.

 

— Ligou? Quando?

 

— Na semana passada. Está uma fera com você, Bart. Continuou a perguntar o tempo todo se algum de nós sabia que você estava sabotando o projeto de Waterford. Mas foi mais do que isso. Fez todo tipo de perguntas.

 

— Tais como?

 

— Tais como se você jamais levou material para casa, material de escritório e coisas assim. Se jamais fez saque no caixa pequeno sem deixar um vale. Ou se mandou lavar sua roupa por conta da companhia. Perguntou mesmo se você ganhava alguma comissão nos nossos negócios com os motéis.

 

— Aquele filho da puta — disse ele, espantado.

 

— Como eu disse, ele anda procurando uma boa espiga de milho para enfiar no seu traseiro, Bart. Acho que ele gostaria de arranjar uma acusação criminal que pudesse pegar, contra você.

 

— Ele não pode. Está tudo em família. E a família se desfez agora.

 

— Ela se desfez há muito tempo — disse calmo Tom. — Quando Ray Tarkington morreu. Não conheço ninguém que tenha raiva de você, com exceção de Ordner. Aqueles caras lá no centro... para eles tudo é uma questão de dólares e centavos. Não sabem nada sobre o negócio de lavanderia nem querem saber.

 

Ele não conseguiu pensar em coisa alguma para dizer.

 

— Bem... — Tom exalou um suspiro — cu pensei que você devia saber. E acho que você soube a respeito do irmão de Johnny Walker.

 

— Arnie? Não. O que foi que aconteceu com ele?

 

— Suicidou-se.

 

— O quê?

 

Tom falou como se estivesse sugando escarro através do palato superior:

 

— Ligou uma mangueira do cano de escape do carro dele até uma janela dos fundos e fechou tudo. Quem descobriu a coisa foi o entregador de jornal.

 

— Deus do céu — murmurou ele. Lembrou-se de Arnie Walker sentado em uma cadeira na sala do hospital, parecendo já candidato a defunto. — Isso é horrível.

 

— É... — Aquele som de sugamento outra vez. — Escute, a gente se vê, Bart.

 

— Claro. Obrigado por telefonar.

 

— Foi um prazer. Tchau.

 

Desligou devagar, ainda pensando em Arnie Walker e naquele arquejo esquisito, chiado, que Arnie exalara quando o padre entrara apressadamente. Jesus, ele trouxe o cibório. Viu aquilo?

 

— Que pena — disse para a sala vazia.

 

As palavras caíram, mortas, quando as pronunciou. Foi até a cozinha preparar um drinque. Suicídio.

 

A palavra continha um som sibilante, aprisionado, como se fosse uma serpente esgueirando-se por uma pequena fenda. Passou entre a língua e o céu da boca como um presidiário em fuga.

 

Suicídio.

 

A mão tremeu ao verter o Southern Comfort e o pescoço da garrafa bateu na horda do copo. Por que ele fez isso, Freddie? Eles eram apenas uma dupla de babacas que moravam juntos. Jesus Cristo, por que alguém faz isso? Mas achou que sabia por quê.

 

 

 

18-19 de dezembro de 1973

 

Chegou À lavanderia por volta das 811 da manhã e os operários só começaram a derrubá-la pelas 9h. Mas já às 8h havia uma platéia considerável ali no frio, mãos nos bolsos dos casacos, hálito gelado saindo pela boca como balões cômicos: Tom Granger, Ron Stone, Ethel Diment, a moça das camisas que em geral ficava bêbada na hora do lanche e em seguida queimava confiantes colarinhos durante toda a tarde, Gracie Floyd e a prima Maureen, ambas as quais haviam trabalhado na passadeira c mais uns dez ou 15 empregados.

 

O departamento de estradas de rodagem havia instalado cavaletes amarelos, emissoras de fumaças e grandes tabuletas em grandes caracteres pretos e alaranjados que diziam:

 

DESVIO

 

As tabuletas encaminhariam o tráfego por um percurso em volta da quadra. A calçada que dava frente para a lavanderia fora também interditada.

 

Tom Granger chamou-o com um aceno de dedo, mas ele não se aproximou. Os outros ex-empregados olharam-no curiosos e depois se reuniram, conversando em voz baixa.

 

Um sonho de paranóico, Freddy. Quem será o primeiro a aproximar-se e gritar j’accuse em minha cara?

 

Fred, porém, não estava falando.

 

Por volta de um quarto para as 9h, parou um Toyota Corolla modelo 74, novinho em folha, com a placa provisória de dez dias ainda pregada na janela traseira e dele desceu Vinnie Mason, resplandecente e um pouco embaraçado em um sobretudo novo de pêlo de camelo e luvas de couro. Vinnie lançou-lhe um azedo olhar de relance que teria encurvado pregos numa tábua e dirigiu-se para o lugar onde Ron Stone se encontrava em companhia de Dave e Pollack.

 

Às 8:50h os operários trouxeram uma grua rua acima, a bola demolidora pendurada do alto da lança como se fosse uma desencantada teta etíope. O guindaste vinha bem devagar sobre suas dez rodas, que ficavam à altura do peito de um homem, lançando o zumbido do motor no frio da manhã como se fosse o malho de um artesão modelando uma escultura de importância desconhecida.

 

Um homem usando capacete amarelo dirigiu-se por cima do meio-fio e através do pátio de estacionamento. Observou o homem bem alto na cabine, mudando marchas e pisando na embreagem com um pé que parecia um tronco de árvore. Fumaça marrom escapava da chaminé alta do guindaste motorizado.

 

Uma sensação estranha, diáfana, estivera obcecando-o desde que estacionara a perua a umas três quadras de distância e viera a pé até ali, uma símile que não queria fazer ligação. Naquele momento, observando o guindaste parar embaixo do longo prédio de tijolos, exatamente à esquerda do que haviam sido as portas de carga e descarga, o sentido lhe ocorreu. Era como se tivesse iniciado o último capítulo de uma novela de mistério de Ellery Queen, com todos os participantes reunidos, de modo a que a mecânica do crime possa ser explicada e desmascarado o culpado. Antes de muito tempo, alguém — Steve Ordner, com toda probabilidade — sairia da multidão, apontaria para ele e gritaria: Foi ele! Bart Dawes! Ele matou a Blue Ribbon! Ao que ele sacaria sua pistola para silenciar sua nêmese, mas apenas para ser esburacado pelas balas da polícia.

 

A ilusão perturbou-o. Olhou para a rua a fim de tranqüilizar-se e sentiu no ventre a sensação de uma descida brusca de elevador quando viu o Delta 88 verde-garrafa de Ordner estacionado imediatamente atrás dos cavaletes amarelos, fumaça saindo dos canos de escape duplos.

 

Steve Ordner fitava-o por trás do vidro polarizado.

 

Nesse momento, a bola demolidora terminou o arco com um baixo e chiado som de catraca e a pequena multidão suspirou quando ela bateu no muro de tijolo e atravessou-o trovejante e oco como tiro de canhão.

 

As 4h daquela tarde nada mais restava da Blue Ribbon, exceto um monte de tijolos e vidros partidos, através dos quais se projetavam as pilastras despedaçadas como se fosse o esqueleto de algum monstro exumado.

 

Nenhum pensamento consciente sobre o futuro ou conseqüências entrou no que fez depois. Agiu mais ou menos no mesmo estado de espírito com que comprara as duas armas na Casa Harvey, um mês antes. Apenas não houve necessidade de usar o disjuntor de circuito porque Freddy estava de bico calado.

 

Foi até um posto de gasolina e encheu o tanque do LTD com gasolina de alta octanagem. Nuvens haviam acobertado a cidade durante o dia e o rádio previa tempestade — de 12cm a 20çm de neve. Voltou para casa, guardou a perua na garagem e desceu para o porão.

 

Sob a escada havia duas grandes caixas de garrafas de soda e cerveja retornáveis, a camada superior coberta com uma grossa patina de poeira. Algumas garrafas eram velhas de cinco anos. A própria Mary se esquecera delas no último ano e deixara de importuná-lo pedindo que as levasse ao armazém para obter a devolução do depósito. Atualmente, a maioria doa armazéns nem mesmo as aceitavam mais. Use uma vez,’ jogue fora. Que diabo!

 

Empilhou as duas caixas uma em cima da outra e levou-as para a garagem. Quando voltou à cozinha para pegar uma faca, um funil e o balde de lavar o chão usado por Mary, começara a nevar, em respingos.

 

Acendeu a luz da garagem e tirou do prego a mangueira de plástico verde do jardim, onde estivera enrolada desde a terceira semana de setembro. Cortou o bocal, que caiu sobre o chão de cimento com um estalo. Desenrolou-a no comprimento de um metro e cortou a novamente. Chutou o resto para longe e por um momento olhou pensativo para o pedaço de mangueira. Em seguida, desatarraxou a tampa do tanque do carro e enfiou suavemente a mangueira, como se fosse um amante delicado.

 

Vira antes líquido ser extraído por meio de sifão, conhecia o princípio, mas nunca fizera aquilo. Preparou-se para agüentar o gosto de gasolina e sugou na extremidade da mangueira. Durante um momento nada notou, salvo uma resistência invisível, viscosa, mas em seguida a boca se encheu com um líquido tão frio e estranho que teve que esforçar-se para não arquejar, e assim deixar um pouco passar garganta abaixo. Cuspiu com uma careta, ainda sentindo o gosto na boca, como se fosse uma morte peculiar. Inclinou a mangueira do balde e um jato de gasolina rosada caiu no fundo do recipiente. O fluxo diminuiu e transformou-se em gotas, e pensou se teria que passar novamente por todo aquele ritual. Mas logo em seguida o fluxo se firmou e permaneceu constante. A gasolina caiu no balde com um som que lembrava o que se ouve quando se urina num mictório público.

 

Cuspiu no chão, lavou o interior da boca com saliva e cuspiu novamente. Melhor. Ocorreu-lhe que embora estivesse usando gasolina quase todos os dias de sua vida adulta, nunca estivera em termos tão íntimos com ela. A única outra ocasião em que a tocara fora quando enchera até esborrar o pequeno tanque de seu cortador de grama Briggs & Stratton. Subitamente, ficou satisfeito porque isso acontecera. Até mesmo o gosto residual na boca pareceu-lhe okay.

 

Voltou para casa enquanto o balde enchia (nevava mais forte nessa ocasião) e pegou alguns trapos no armário sob a pia. levou-os de volta para a garagem e cortou-os em longas tiras, que colocou sobre o capo do LTD.

 

Quando o balde de limpar o chão ficou pela metade, virou a mangueira para o balde de aço galvanizado que geralmente enchia de cinzas e carvão queimado que espalhava pela entrada de automóvel nas ocasiões em que a superfície congelava, Enquanto esperava que o segundo balde enchesse, alinhou vinte garrafas de cerveja e soda em quatro fileiras bem arrumadas e encheu cada uma até três quartos da capacidade, usando o funil. Terminado esse serviço, tirou a mangueira de dentro do tanque de gasolina e derramou o conteúdo do balde de aço no balde de cozinha, enchendo-o quase até a borda.

 

Vedou fortemente os gargalos com as fitas de trapos. Voltou para a casa, levando o funil. A neve enchia a terra em linhas inclinadas, sopradas pelo vento. A entrada de carros já estava branca. Guardou o funil sob a pia e pegou no armário a tampa do balde de limpeza. Levou-a para a garagem e colocou-a com cuidado em cima do balde de gasolina. Abriu a porta traseira do LTD c guardou ali o balde cheio. Colocou seus coquetéis Molotov em uma das caixas, bem juntos um do outro, como se estivessem em posição de sentido, como bons soldados. Finalmente, levou a caixa para o assento do passageiro, na frente, ao alcance fácil da mão. Voltou para a casa, sentou-se cm sua cadeira habitual e ligou a TV Zenith com o módulo de Comando Espacial. O “Cinema às Terças-Feiras” estava no ar, um filme de faroeste estrelando David Janssen. Achou que David Janssen era um caubói de merda.

 

Terminado o filme, observou Marcus Welby tratar de epilepsia um adolescente perturbado. Esse perturbado jovem vivia caindo em lugares públicos. Welby deu um jeito nele. Depois de Marcus, o logotipo da estação e dois comerciais, um do Picador Miraculoso e outro de um álbum contendo 41 cantos religiosos favoritos de negros do Sul dos Estados Unidos e finalmente o noticiário. O meteorologista disse que ia nevar a noite toda, com mais pela manhã. Aconselhava as pessoas a que ficassem em casa. As estradas estavam traiçoeiras e a maior parte do equipamento de remoção de neve só poderia sair depois de 2h da manhã. Os ventos formavam brancos de neve e, de modo geral, insinuou o homem da previsão, as coisas iam ficar pretas nos próximos um ou dois dias.

 

Depois do noticiário chegou a vez de Dick Cavett. Assistiu ao programa durante meia hora e em seguida desligou o aparelho. De modo que Ordner queria enquadrá-lo em alguma coisa criminosa, não? Se o LTD atolasse depois de ele fazer aquilo, Ordner poderia ter a satisfação de seu desejo. Ainda assim, achava que suas chances eram boas. O LTD era um carro pesado e tinha cravos nos pneus traseiros.

 

Na entrada da cozinha, vestiu casaco, chapéu e luvas e parou por um momento. Voltou e percorreu a casa hospitaleira e iluminada e examinou-a — a mesa da cozinha, o fogão, o aparador da sala de jantar com xícaras penduradas na prateleira em cima, a violeta africana na cornija da lareira da sala de estar—e foi envolvido por uma súbita onda de amor por ela, um aumento de protetividade. Pensou na bola rompedora rugindo por ali, reduzindo as paredes a escombros, estilhaçando janelas, vomitando destroços pelo chão. Não ia deixar que isso acontecesse. Charlie gatinhara por aqueles pisos, dera seus primeiros passos na sala de estar, caíra uma vez dos primeiros degraus e quase matara de medo os pais desajeitados. O quarto de Charlie era nesse momento um gabinete no primeiro andar, mas fora lá que seu filho sentira a primeira dor de cabeça, experimentara a visão dupla, fora assaltado por aqueles estranhos cheiros, às vezes de carne de porco assando, as vezes de grama queimando, às vezes como aparas de lápis. Depois da morte de Charlie, quase cem pessoas tinham vindo visitá-los e Mary lhes servira bolo e torta na sala de estar.

 

Não, Charlie, pensou. Não, se eu puder evitar isso.

 

Levantou a porta da garagem e já havia uns dez centímetros de neve na estrada, pulverulenta e leve. Entrou no LTD c deu partida ao carro. Tinha ainda três quartos do tanque. Deixou o carro esquentar, sentado atrás do volante, ao brilho místico verde das luzes do painel, e pensou em Arnie Walker. Apenas um pedaço de mangueira de borracha, nada mau. Era como se o cara fosse dormir. Lera em alguma parte que o envenenamento por monóxido de carbono era assim. Levava mesmo cor ao rosto e o morto parecia rosado e sadio, explodindo de vida e vitalidade. O envenenamento...

 

Começou a tremer novamente, tomado de premonições sinistras, e ligou o aquecedor. Logo que o carro ficou quente como uma torrada e passou o tremor, engrenou uma marcha à ré e saiu de costas para a neve. Podia ouvir o som da gasolina oscilando no balde de Mary, lembrando-lhe de que esquecera alguma coisa.

 

Estacionou novamente e voltou à casa. Da gaveta de um birô tirou uma caixa de carteirinhas de fósforo e encheu os bolsos com talvez uma dúzia delas. E voltou a sair de casa.

 

As ruas estavam muito escorregadias.

 

Em alguns lugares havia gelo sólido sob a neve recém-caída e em uma ocasião, quando freou num sinal na esquina da Crestallen e Garner, o LTD rabeou ficando quase atravessando na rua. Ao conseguir controlar a derrapagem o coração lhe batia com força contra as costelas. Era uma coisa maluca o que ia fazer, certo. Se fosse abalroado pela traseira, com toda aquela gasolina ali atrás, teriam que recolhê-lo com uma colher e enterrá-lo em uma caixa de comida para cachorro.

 

É melhor do que o suicídio. O suicídio é um pecado mortal.

 

Bem, era isso o que diziam os católicos. Mas não achava que fosse sofrer qualquer acidente. O tráfego rareara quase até o ponto de desaparecer e nem mesmo viu guardas pelas ruas. Provavelmente, estavam todos bem protegidos em becos.

 

Virou cauteloso para a Kennedy Promenade, que para ele sempre seria a Dumont Street, o que fora até que uma sessão especial da Câmara de Vereadores lhe mudara o nome em janeiro de 1964. A Dumont Kennedy Prom corria da Westside, cruzava o centro da cidade, aproximadamente paralela ao canteiro de obras da 784 por quase três quilômetros. Seguiria por ela numa distância de quilômetro e meio e em seguida viraria à esquerda para a Grand Street. Uns oitocentos metros adiante a Grande Street acabava, se extinguia, exatamente como acontecera com o velho Grand Theater, que descansasse em paz. No verão seguinte, a Grand Street ressuscitaria sob a forma de uma passagem de nível (um dos três que mencionara na conversa com Magliore), mas não seria mais a mesma rua. Em vez de ver o teatro à direita, a pessoa veria apenas seis — ou eram oito? — faixas de trânsito de alta velocidade embaixo. Absorvera grande parte dos detalhes do prolongamento ouvindo rádio, assistindo TV e lendo o jornal diário, não fazendo qualquer esforço consciente real, mas quase por osmose. Talvez tivesse armazenado instintivamente esse material, da mesma maneira que esquilos fazem com nozes. Sabia que as empresas que vinham construindo o prolongamento haviam quase encerrado as obras físicas no leito da estrada enquanto durasse o inverno, mas sabia também que esperavam completar quase todas as demolições necessárias (demolições, veja se gosta dessa palavra, Freddy — mas Fred não pegou a luva) dentro dos limites da cidade até fins de fevereiro. Essa programação incluía a Crestallen Street West. De certa maneira, isso era irônico. Se ele e Mary morassem a quilômetro e meio mais distante, não ficariam sujeitos à demolição até fins da primavera — maio ou princípios de junho de 1974. Mas se desejos fossem cavalos, mendigos andariam montados em palominos dourados. Sabia também, mas resultado de observação consciente, que a maioria das máquinas rodoviárias ficava estacionada abaixo do ponto em que a Grand Street fora assassinada.

 

Virou para a Grand Street nesse momento, a traseira do carro tentando sair de baixo dele. Manobrou o volante, lutando com o carro, engabelando-o com as mãos, até que ele obedeceu e ronronou através de neve quase virgem — os rastros do último carro que passara por ali mal podiam ser vistos, de tão indistintos. A vista de tanta neve nova fê-lo sentir-se melhor. Era bom estar em movimento, estar fazendo alguma coisa.

 

Subindo a Grand a uns regulares e tranqüilos 40km/h, seus pensamentos voltaram a Mary e ao conceito de pecado, mortal e venial. Ela fora educada como católica, freqüentara uma escola primária paroquial, e embora houvesse esquecido a maioria dos conceitos religiosos — intelectualmente, pelo menos —, quando se conheceram parte dos ensinamentos básicos continuavam com ela, aqueles que são ensinados sub-repticiamente através de clichês. Conforme dizia a própria Mary, as freiras lhe haviam dado seis mãos de verniz e três de cera. Após o aborto, a mãe enviara um padre ao hospital para que ela pudesse fazer uma boa confissão, e Mary chorara ao vê-lo. Estivera com ela quando o padre entrara, trazendo o cibório, e o som do choro da esposa lhe partira o coração, como uma única outra coisa conseguira fazer entre aquela ocasião e agora.

 

Uma vez, a pedido dele, Mary recitara toda a lista de pecados mortais e veniais. Embora os houvesse aprendido em classes de catecismo há vinte, vinte e cinco ou mesmo trinta anos antes, a lista pareceu (pelo menos para ele) completa e impecável. Mas houve uma questão de interpretação que não conseguiu esclarecer. As vezes um ato era pecado mortal; em outras, apenas venial. Aparentemente, tudo dependia do estado de espírito do pecador. A vontade consciente de praticar o mal. Teria sido isso alguma coisa que ela dissera naquelas velhas conversas ou Freddy lhe sussurrara isso no ouvido nesse exato momento? A dúvida deixou-o perplexo, preocupou-o. A vontade consciente de praticar o mal.

 

No fim, pensara que isolara os dois maiores, os dois imperdoáveis e inapagáveis pecados mortais: o suicídio e o assassinato. Uma conversa posterior — com Ron Stone? Sim, achava que sim — borrara metade disso. Às vezes, segundo Ron (bebendo os dois em um bar há, ao que parecia, uns dez anos), o próprio assassinato era apenas um pecado venial. Ou talvez nem fosse pecado. Se o cara pensava a sangue-frio em acabar com alguém que lhe estuprara a esposa, o ato poderia ser apenas um pecado venial. E se o cara matasse alguém numa guerra justa — tais foram as palavras exatas de Ron, podia quase ouvi-lo pronunciando-as em algum boteco mental — então não era pecado, absolutamente. Segundo Ron, todos os GIs americanos que haviam matado nazistas e japoneses iam ficar numa boa quando soasse a trombeta do Juízo Final.

 

Isso deixava o suicídio, essa palavra sibilante.

 

Estava chegando ao canteiro de obras. Viu cavaletes pretos e brancos com luzes refletoras giratórias e tabuletas alaranjadas que se acendiam curtas e brilhantes à luz de seus faróis. Uma delas dizia:

 

término provisório da estrada

 

Outra acrescentava:

 

desvio — siga as indicações

 

E a terceira finalizava:

 

área de explosão desligue rádios transmissores-receptores

 

Parou, colocou a alavanca de marcha em ponto morto, ligou os quatro sinaleiros de estacionamento e desceu do carro. Dirigiu-se para os cavaletes pintados de preto e branco. Os lampejadores intermitentes faziam com que a neve que caía parecesse ainda mais densa, de uma cor absurda.

 

Lembrou-se também que ficara confuso com a questão da absolvição. No princípio, pensara que era muito simples. Se a pessoa cometia um pecado mortal, machucava-se mortalmente, era condenada às penas eternas. O cara podia rezar Ave-Marias até a língua cair e ainda iria para o inferno. Mary, porém, dissera que nem sempre era assim. Havia a confissão, a expiação, a reconsagração, e assim por diante. Tudo muito confuso. Cristo dissera que não haveria vida eterna para o assassino, mas também que aquele que crê em mim não perecerá. Quem quer que fosse. Parecia que havia tantos buracos na doutrina bíblica como num contrato de compra redigido por um advogado chicanista. Exceto no caso do suicídio, claro. Ninguém podia confessar suicídio, arrepender-se de suicídio ou expiar por ele porque o ato cortava o cordão de prata e jogava o cara, de cabeça, em quaisquer que fossem os mundos existentes lá embaixo. E...

 

E, por falar nisso, por que estava pensando nesse assunto? Não tinha a intenção de matar ninguém e certamente não de cometer suicídio. Jamais pensara em suicídio. Pelo menos, não até tempos muito recentes.

 

Olhou fixamente para os cavaletes pretos e brancos, sentindo um frio por dentro.

 

As máquinas estavam ali embaixo, envelopadas pela neve, apoucadas pelo guindaste de demolição. Em sua imobilidade, o guindaste adquirira uma dimensão de hediondez. Com sua armação esquelética penetrando na escuridão nevoenta, o guindaste lembrou-lhe um louva-a-deus que mergulhara em algum período desconhecido de contemplação invernosa.

 

Afastou para o lado um dos cavaletes. Muito leve. Voltou ao carro, entrou, e puxou a alavanca de transmissão para baixo, para primeira. Deixou o carro deslizar por cima da borda e pela encosta abaixo, que fora amaciada pelas subidas e descidas das grandes máquinas. Havendo terra por baixo, foi reduzida a tendência do pesado carro para rabear. Ao chegar ao fundo, empurrou a alavanca para ponto morto e desligou todas as luzes. Voltou a subir a encosta, bufando, e recolocou o cavalete no lugar. Desceu novamente a encosta.

 

Abriu a porta traseira do LTD e tirou o balde de Mary. Deu a volta até o lado do passageiro e colocou o balde no chão, embaixo da caixa de bombas incendiárias. Tirou a tampa branca do balde e, cantarolando baixinho, embebeu cada pavio em gasolina. Feito isso, levou o balde até o guindaste e subiu para a cabine, que não estava fechada a chave, tendo todo cuidado para não escorregar. Estava agitado nesse momento, o coração em disparada, a garganta apertada e tensa com uma amarga exultação.

 

Derramou gasolina em cima do assento, sobre os controles, sobre a caixa de marchas. Saiu e deu volta pelo estreito passadiço rebitado que circundava o motor do guindaste c derramou o resto da gasolina dentro do capô. O cheiro de hidrocarboneto encheu o ar. As luvas estavam empapadas, molhando-lhe as mãos e tornando-as dormentes quase imediatamente. Saltou para o chão, tirou as luvas e colocou-as no bolso do sobretudo. A primeira carteira de fósforos escorreu-lhe dos dedos, que sentia tão estranhos como se fossem feitos de madeira. Segurou com força a segunda carteira mas o vento apagou os dois primeiros fósforos que conseguiu acender. Deu as costas para o vento, encurvou-se protetoramente sobre o fósforo e conseguiu que um permanecesse aceso. Com ele tocou o resto e eles silvaram e se transformaram em chamas. Jogou-os dentro da cabine.

 

No início, pensou que haviam se apagado porque nada aconteceu. Depois, ouviu um baixo som explosivo — flump! — e o fogo escapou da cabine numa rajada furiosa, lançando-o para trás uns dois passos. Protegeu os olhos contra o ofuscamento da brilhante flor alaranjada que se abria lá em cima.

 

Um braço de fogo estendeu-se para fora da cabine, alcançou o capo, parou por um momento, como se pensando, e depois esgueirou-se para dentro. Dessa vez a explosão não teve nada de baixa, kaploom! De repente, o capo subiu no ar, quase desaparecendo da vista, oscilando e virando. Alguma coisa passou com um zumbido ao lado de sua cabeça.

 

Ele está queimando, pensou. Está realmente queimando!

 

Iniciou uma dança arrastada na ígnea escuridão, o rosto contorcido em um êxtase tão grande que pareceu que suas feições iam despedaçar-se e cair em um milhão de pedaços sorridentes. As mãos se fecharam em punhos ondulantes acima da cabeça.

 

— Hurrrah! — gritou para o vento e o vento gritou em resposta. Hurrah, diabos o levem, hurrah!

 

Correu para o carro, escorregou na neve e caiu e isso pode ter-lhe salvo a vida porque foi nesse momento que o tanque de gasolina do guindaste explodiu lançando estilhaços num circulo de uns l0m. Uma peça quente de metal através da janela direita do LTD, abrindo um buraco estrelado no vidro de segurança e espalhando uma teia bêbada de rachaduras.

 

Levantou-se, toda a frente da roupa coberta de neve e enfiou-se atrás do volante. Calçou novamente as luvas — impressões digitais — mas depois disso mandou às favas todos os pensamentos de cautela.

 

Deu partida ao carro com dedos que mal conseguiam sentir a chave de ignição e em seguida pisou fundo no acelerador, “pra cantar pneu”, como diziam quando eram garotos e o mundo era jovem, e a traseira do carro rabeou para a esquerda e a direita. O guindaste queimava furiosamente, muito melhor do que jamais imaginara, transformada a cabine num verdadeiro inferno, já desaparecendo o grande pára-brisa.

 

— Poxa vida! — gritou. — Oh, Freddy, poxa vida!

 

Passou com o LTD pela frente do guindaste como se fosse um skate, a luz do incêndio desenhando-lhe o rosto como se fosse com as cores do Dia das Feiticeiras. Enfiou o indicador direito no painel, acertando no acendedor de cigarros na terceira tentativa. As máquinas rodoviárias estavam paradas nesse momento à sua esquerda. Baixou a janela. O balde de Mary rolava de um lado para o outro no chão e as garrafas de cerveja e soda batiam freneticamente uma contra a outra enquanto a perua saracoteava pela terra rasgada e congelada.

 

O acendedor saltou e ele pisou com ambos os pés no freio servo-assistido. A perua deu uma volta sobre si mesma e parou. Tirou o acendedor do encaixe, pegou uma garrafa na caixa e encostou a bobina em brasa no pavio. O pavio acendeu, e ele jogou a garrafa, que se quebrou contra a esteira enlameada de um buldôzer. Chamas se espalharam em cores berrantes. Voltou a encaixar o acendedor, guiou mais uns sete metros e jogou mais três garrafas contra a massa escura de uma jamanta. Uma errou, outra bateu no lado e derramou inocuamente gasolina em chamas pela neve e a terceira descreveu um arco e caiu dentro da cabine.

 

— Bem na merda da mosca! — gritou.

 

Outro buldôzer. Uma jamanta menor. Depois chegou a uma casa-reboque nesse momento em cima de macacos hidráulicos. Uma tabuleta na porta informava:

 

LANE CONSTRUCTION CO.

 

Escritório de Campo

 

não fazemos contratações aqui

 

Por favor, limpe os pés

 

Levou o LTD até o ponto em que podia fazer um lançamento direto, à queima-roupa, e lançou quatro garrafas em chamas contra a grande janela ao lado da porta. Todas entraram, a primeira estilhaçando o vidro da janela e a garrafa, puxando para dentro a cortina que já pegava fogo.

 

Voltou ao carro e notou que só restavam três ou quatro garrafas. Continuou a guiar, tremendo de frio, muco escorrendo do nariz, fedendo a gasolina, sorrindo alegremente.

 

Uma pá a vapor. Atirou nela o resto das garrafas, sem ocasionar dano até que a última acertou em cheio na esteira de um trator, soltando-a da engrenagem.

 

Tenteou novamente dentro da caixa, lembrou-se que estava vazia e olhou pelo retrovisor.

 

— Filho da puta — gritou. — Oh, filho da puta santa, Freddie, seu chupador de pau! Atrás dele, uma linha de fogueiras separadas destacava-se na escuridão sufocada pela neve como luzes de pouso num campo de aviação. Chamas arrotavam furiosas de dentro das janelas do trailer-escritório. A pickup a que estava atrelado era uma bola de fogo. A cabine da jamanta era um caldeirão alaranjado. Mas o guindaste era realmente a obra-prima porque se transformara num farol amarelo, uma tocha chiante em meio ao canteiro de obras.

 

— Demolimerdação! — gritou.

 

Uma espécie de sanidade começou a voltar à sua mente. Não ousava voltar pelo mesmo caminho pelo qual viera. A polícia chegaria logo, talvez já estivesse vindo. E o corpo de bombeiros. Poderia escapar dali ou estava bloqueado?

 

Heron Place. Poderia chegar à Heron Place. Seria um gradiente de 25° pela encosta, talvez 30°, e teria que romper com a perua a barreira de cavaletes do departamento de estradas de rodagem. Achou que talvez conseguisse. Sim. Poderia conseguir. Naquela noite poderia fazer qualquer coisa.

 

Subiu com o LTD o leito inacabado da estrada, derrapando e deslizando, usando apenas as luzes de estacionamento. Ao ver à direita e acima as luzes da Heron Place, acelerou cada vez mais e observou o ponteiro do velocímetro passar dos 45km/h quando apontou o carro para o obra de terraplenagem, o que era na verdade a encosta. Chegara aos 65km/h ao atingir a ladeira e começar a subir. Mais ou menos na metade do caminho as rodas traseiras começaram a perder tração e reduziu para uma primeira. O motor baixou uma nota e o carro arrancou em marcha de força. Estava quase chegando à borda quando as rodas começaram a patinar novamente, jogando como se fossem metralhadoras pedras e terra congelada para trás. Durante um momento a parada ficou em dúvida, mas logo em seguida a simples inércia para a frente do LTD — juntamente com força de vontade, talvez — levou-o para terreno plano.

 

O nariz do carro jogou para o lado o cavalete preto e branco, que caiu para trás em um banco de neve, levantando uma baforada cor de açúcar. Prosseguiu com as rodas pelo meio-fio e ficou quase chocado ao se dar conta de que se encontrava novamente numa rua comum, como se nada houvesse acontecido. Mudou a marcha para terceira e prosseguiu tranqüilo no limite normal de velocidade.

 

Estava pronto para virar na direção de casa quando se lembrou que ia deixando rastros que as pás de neve ou uma nova nevasca talvez não obliterassem ainda por uma duas horas. Em vez dc subir a Crestallen Street, continuou, passando pela Heron Place na direção da River Street e desta para a Estrada 7. O tráfego rareara ali desde que a neve começara a cair com força, mas houvera o suficiente para mastigar a que havia na estrada, transformando-a numa massa frouxa e remexida. Misturou seu rastro com o de todos os outros carros que estavam se dirigindo para leste e aumentou a velocidade para 65km/h.

 

Seguiu pela Estrada 7 por uma distância de quase 15km, depois voltou para a cidade e tomou a direção da Crestallen Street. Algumas pás motorizadas de limpeza de neve já estavam em ação nesse momento, movendo-se pela noite como gigantescos rnastins alaranjados de ofuscantes olhos amarelos. Várias vezes olhou na direção do canteiro de obras da 784 mas no meio daquela nevasca nada conseguiu ver.

 

A meio-caminho de casa, deu-se conta de que embora todas as janelas estivessem abaixadas e o aquecedor funcionando ao máximo, o carro continuava frio. Olhou para trás e descobriu um buraco denteado na janela atrás do assento do passageiro. No assento de trás viu estilhaços de vidro e neve.

 

Agora, como foi que isso aconteceu? perguntou confuso a si mesmo. Honestamente, não tinha a menor lembrança daquilo.

 

Entrou na rua pelo lado norte e dirigiu-se diretamente para casa. Encontrou-a como a deixara, a luz única da cozinha como único ponto de iluminação nesse trecho inteiramente escuro da rua. Não viu carros da polícia estacionados mas a porta da garagem estava aberta e isso era simplesmente estúpido. Você sempre fecha a porta da garagem quando cai neve. É por isso que você tem uma garagem, para manter os elementos longe de suas coisas. Era o que seu pai costumava dizer. O pai morrera numa garagem, exatamente como o irmão de Johnny, mas não cometera suicídio. Sofrerá uma espécie de derrame. Um vizinho encontrara-o com a tesoura de podar na mão que endurecia e uma pedra de amolar na outra. Uma morte suburbana. Oh, Deus, envia a alma pura de meu pai para um céu onde não haja capim-sanguinário e os crioulos conheçam sempre seu lugar.

 

Parou o carro, abaixou a porta da garagem e entrou na casa. Tremia de exaustão e reação. Faltava um quarto para as 3h da manhã. Pendurou o sobretudo e o chapéu no armário do vestíbulo e ia fechando a porta quando sentiu uma quente sensação de terror, tão violenta como um gole de uísque escocês puro. Freneticamente, procurou nos bolsos do sobretudo e soltou um suspiro assoviado quando tocou as luvas, ainda empapadas de gasolina, amassadas sob a forma de pequenas bolas úmidas.

 

Pensou em fazer café mas mudou de idéia. Sentia uma dor de cabeça enjoativa, latejante, provavelmente causada pelos vapores de gasolina e agravada pela corrida medrosa pela escuridão nevada. No quarto, tirou as roupas e jogou-as em cima da cadeira, sem se dar ao trabalho de dobrá-las. Achou que pegaria no sono logo que a cabeça tocasse o travesseiro, mas isso não aconteceu. Nesse momento em casa, presumivelmente em segurança, foi assaltado por uma insônia que o deixou de olhos fixos. Cheio de medo. Iam prendê-lo e jogá-lo na prisão. Seu retrato apareceria nos jornais. Pessoas que o conheciam sacudiriam perplexas a cabeça e comentariam o assunto em lanchonetes e restaurantes. Vinnie Mason diria à mulher que soubera o tempo todo que Dawes estava pirando. Os pais de Mary a mandariam de avião para o Reno, onde ela inicialmente estabeleceria residência e depois pediria divórcio. Talvez encontrasse alguém para fodê-la. Não ficaria surpreso se isso acontecesse.

 

Permaneceu deitado, acordado, dizendo a si mesmo que não iam pegá-lo. Usara luvas. Não deixara impressões digitais. Trouxera de volta o balde de limpeza de Mary e a respectiva tampa. Cobrira seu rastro, afastara toda possibilidade de perseguição da mesma maneira que um fugitivo desorienta os cães farejadores andando dentro de um riacho. Mas nenhum desses pensamentos lhe trouxe sono ou consolo. Iam pegá-lo. Talvez alguém na Heron Place houvesse visto seu carro e julgado suspeito que um veículo qualquer estivesse na estrada tão tarde assim numa noite chuvosa. Talvez alguém houvesse anotado, sua placa e nesse exato momento recebesse congratulações da polícia. Talvez tivessem obtido raspas de pintura do carro nos cavaletes que formavam a barreira da Construtora na Heron Place e nesse momento estivessem tirando seu nome de algum registro de carros em computador. Talvez...

 

Rolou e debateu-se na cama, esperando que as sombras azuis dançantes aparecessem em sua janela, esperando a batida forte na porta, esperando que alguma voz desencarnada, kafkiana, bradasse: Muito bem, abra! Quando finalmente adormeceu, fez isso sem saber, porque os pensamentos continuaram sem interrupção, mudando da ruminação consciente para o mundo torto dos sonhos sem praticamente nenhuma pausa, como um carro que muda de prise para primeira. Mesmo no sonho pensou que estava acordado e nele cometia repetidamente suicídio, queimava-se, esmagava-se ficando embaixo de uma bigorna e puxando uma corda, enforcava-se, apagava as luzes-piloto do fogão c abria em seguida o forno e todos os quatro queimadores, dava um tiro em si mesmo, jogava-se de uma janela, lançava-se em frente a um ônibus da Greyhound, tomava comprimidos, engolia desinfetante, enfiava na boca uma lata de aerossol, apertava o botão e inalava até que a cabeça flutuava para o céu como um balão de criança, cometia haraquiri ajoelhado em um confessionário na igreja, contava o suicídio a um aturdido jovem padre enquanto as tripas estiravam-se como uma sanfona sobre o banco como se fosse um guisado de carne, praticando o ato de contrição em voz confusa e sumida enquanto jazia numa poça do próprio sangue e de salsichas fumegantes dos intestinos. Mais vividamente que tudo, porém, via-se atrás do volante do LTD, acelerando na garagem fechada, tomando respirações profundas e folheando um exemplar da National Geographic, examinando a vida do Tahití e Aukland, do Carnaval em Nova Orleans, virando as páginas cada vez mais devagar, até que o som do motor se transformava em um doce murmúrio e as águas verdes do Pacífico Sul inundavam-no com um calor gostoso e o levavam para as profundezas prateadas.

 

 

 

19 de dezembro de 1973

 

O relógio marcava 12:30H da tarde quando acordou c saltou da cama, sentindo-se como se houvesse feito uma grande farra. A cabeça doía-lhe horrivelmente, a bexiga cheia desenvolvera uma câimbra. Na boca, um gosto de cabo de guarda-chuva. Andar acelerava-lhe o coração como se fosse um tarol. Nem mesmo lhe era concedido o luxo de acreditar (pelo momento mais curto que fosse) que sonhara tudo de que se lembrava da noite anterior porque o cheiro de gasolina parecia impregnado na carne e subia, com um odor sufocante, da pilha de roupas. A nevasca passara, o céu clareara e a luz forte do sol obrigava-lhe os olhos a pedir piedade.

 

Entrou no banheiro, sentou-se no vaso e defecou num jorro de diarréia como se fosse um trem postal passando a toda por uma estação deserta. As fezes caíram na água em uma série repugnante de jatos e sólidos que o fizeram gemer e apertar a cabeça com as mãos. Urinou sem se levantar, o intenso e desagradável cheiro do produto da digestão subindo forte em volta.

 

Deu descarga e desceu, as pernas bambas, levando consigo roupas limpas. Esperaria até que aquele cheiro horrível desaparecesse do banheiro e então tomaria um banho de chuveiro, talvez durante a tarde toda.

 

Engoliu três comprimidos de Excedrin que tirou de um vidro verde na prateleira em cima da pia da cozinha e rebateu-os com dois grandes goles de Pepto-Bismol. Pôs a água do café para ferver e quebrou a xícara favorita ao tirá-la de mau jeito do gancho. Chorou por causa disso, tirou outra, colocou nela café solúvel Maxwell House e dirigiu-se para a sala de estar.

 

Ligou o rádio e girou o botão, procurando noticiários, que, como a polícia, nunca aparece quando a gente precisa dela. Música pop. Boletins sobre forragens e cereais. Um programa de telefonema aos ouvintes. Um programa de trocas de objetos patrocinado por uma emissora. Paul Harvey vendendo Banker’s Life Insurance. Mais música pop. Nada de noticiário.

 

A água do café ferveu. Sintonizou para uma das estações de música pop e levou o café de volta à mesa e bebeu-o puro. Sentiu vontade de vomitar ao tomar os dois primeiros goles, mas depois melhorou.

 

Começou o noticiário, primeiro o nacional e em seguida o local.

 

Quanto às notícias da cidade, um incêndio foi provocado no canteiro de obras do prolongamento da Estrada 784, situado nas proximidades da Grand Street, nas primeiras horas desta manhã. O tenente Henry King, da polícia local, disse que vândalos aparentemente usaram coquetéis Molotov para incendiar uma grua, duas jamantas, dois buldôzeres, uma camioneta e o escritório de campo da Lane Construction Company, que foi inteiramente destruído.

 

Uma exultação tão amarga e preta como o gosto de seu café sem açúcar fechou-lhe a garganta ao ouvir as palavras inteiramente destruído.

 

O dano infligido às jamantas e aos buldôzeres foi pequeno, de acordo com Francis Lane, cuja companhia ganhou um substancial contrato de subempreitada para construir o prolongamento através da cidade. A grua de demolição, porém, avaliada em US$60.000, deverá ficar em reparos durante pelo menos duas semanas.

 

Duas semanas. Só isso?

 

Mais grave, ainda de acordo com Lane, foi o incêndio do escritório da obra, que continha horários, medições de trabalho executado e 90% dos registros de controle de custos da companhia. “Vai ser um trabalho danado para recompor tudo”, disse Lane, “e as obras poderão sofrer um atraso até de um mês.”

 

Talvez isso fosse boa notícia. Talvez um mês extra justificasse tudo aquilo que fizera.

 

Segundo o tenente King, os vândalos fugiram do canteiro de obras usando uma perua, possivelmente uma Chevrolet de último modelo, Fie solicita a todas as pessoas que possam porventura ter visto o carro deixando o canteiro de obras, nas proximidades da Heron Place, que se apresentem. Francis Lane estimou os prejuízos totais ocasionados na área em volta de US$100.000.

 

Ainda no noticiário local, o deputado estadual Muriel Reston apelou novamente para que...

 

Desligou o rádio.

 

Nesse momento em que ouvira, e ouvira à clara luz do dia, as coisas pareciam um pouco melhores. Era possível encará-las racionalmente. Claro, a polícia não tinha que divulgar todas as suas pistas, mas se estivesse realmente procurando um Chevy, e não um Ford, e se estava reduzida a apelar para possíveis testemunhas, então ele talvez estivesse em segurança, pelo menos por ora. E se houve testemunha de vista, nenhum volume de preocupação iria mudar isso.

 

Jogaria fora o balde de Mary e abriria a garagem para dissipar o cheiro de gasolina. E inventaria uma história para explicar a janela traseira quebrada, se alguém perguntasse. E, mais importante, tentaria preparar-se mentalmente para uma visita da polícia. Como último morador da Crestallen Street West, seria perfeitamente lógico que a polícia o investigasse. E não teria que farejar até muito longe seu rastro para descobrir que ele estivera comportando-se de modo estranho. Botara a perder a compra da nova instalação. A mulher abandonara-o. Um ex-colega acertara-lhe um soco em uma loja de departamentos. E, claro, possuía uma caminhonete, Chevrolet ou não. Tudo ruim. Mas nada disso uma prova.

 

E se achasse provas, então, provavelmente, iria para a prisão. Mas havia coisas piores do que a cadeia. A cadeia não era o fim do mundo. Dar-lhe-iam um trabalho, dar-lhe-iam comida. Não teria que preocupar-se com o que iria acontecer quando acabasse o dinheiro do seguro. Certo, havia um bocado de coisas piores do que a cadeia. O suicídio, por exemplo. Isso era pior. Subiu a escada e foi tomar um banho de chuveiro.

 

Em fins da tarde ligou para Mary. A mãe dela atendeu e, fungando, foi chamá-la. Mas quando a própria Mary atendeu, ela lhe pareceu quase alegre.

 

— Oi, Bart. Um feliz Natal adiantado.

 

— Pra você, também.

 

— Obrigada. O que é, Bart?

 

— Bem, eu comprei alguns presentes... apenas umas coisinhas... para você e os sobrinhos e sobrinhas. Será que podemos nos encontrar? Eu lhe entrego os presentes para eles. Mas não embrulhei ainda os presentes das crianças...

 

— Eu farei isso como todo o prazer. Mas não devia ter feito essa despesa. Você não está trabalhando.

 

— Mas estou trabalhando naquilo — disse ele.

 

— Bart, você... você fez alguma coisa sobre aquilo em que falamos?

 

— O psiquiatra?

 

— Isso mesmo.

 

— Liguei para dois. Um não tem hora até quase junho. O outro cara vai ficar nas Bahamas até o fim de março. Disse que nessa ocasião poderia me atender.

 

— Quais eram os nomes deles?

 

— Nomes? Bem, querida, eu terei que checar novamente para lhe dizer. Adams, acho que é o nome do primeiro. Nicholas Adams...

 

— Bart... — disse ela, triste.

 

— Pode ser Aarons — continuou ele, freneticamente.

 

— Bart... — repetiu ela.

 

— Tudo bem — retrucou ele. — Acredite no que quiser. É o que vai fazer, de qualquer maneira.

 

— Bart, se você apenas...

 

— O que é que me diz dos presentes? Eu liguei para falar de presentes, não de uma droga de médicos de doidos.

 

Ela suspirou.

 

— Traga-os na sexta-feira, certo? Eu posso...

 

— O quê? De modo que seu pai e sua mãe possam contratar Charles Manson para me receber à porta? Vamos nos encontrar em terreno neutro, certo?

 

— Eles não vão estar aqui — explicou ela. — Vão passar o Natal com Joanna. Joanna era Joanna St. Claire, prima de Jean Calloway, que morava em Minnesota.

 

Haviam sido amigas íntimas na adolescência (no agradável intervalo entre a Guerra de 1812 e o advento da Confederação, pensava ele às vezes) e Joanna tivera um derrame cerebral em julho. Tentava ainda recuperar-se, mas Jean dissera a ele e a Mary que os médicos diziam que ela podia morrer a qualquer momento. Isso deve ser bom, pensou ele, ter uma bomba de tempo dentro da cabeça. Hei, bomba,„vai ser hoje? Por favor, hoje não. Não terminei de ler ainda o novo romance de Victoria flolt.

 

— Bart? Você ainda está aí?

 

— Claro, estava apenas um pouco distraído.

 

— Uma da tarde está bem?

 

— Para mim está ótimo.

 

— Mais alguma coisa?

 

— Não.

 

— Bem...

 

— Cuide-se, Mary.

 

— Vou me cuidar. Adeus, Bart.

 

— Adeus.

 

Os dois desligaram ao mesmo tempo. Dirigiu-se para a cozinha e preparou um drinque. A mulher com quem acabara de falar ao telefone não era a mesma que se sentara lacrimosamente na sala de estar há menos de um mês e implorara por uma razão que ajudasse a explicar o maremoto que acabara de varrer sua vida bem organizada, destruindo o trabalho de vinte anos e deixando apenas alguns galhos projetando-se do lamaçal. Era espantoso. Sacudiu a cabeça pensando nisso da mesma maneira que teria feito se tivesse ouvido a notícia de que Jesus descera do céu e levara Richard Nixon lá para cima sobre rodas de fogo. Ela voltara a ser ela mesma. Mais do que isso. Reassumira uma pessoa que ele mal conhecia, uma menina-mulher de que mal conseguia lembrar-se. Tal como uma arqueóloga ela escavara aquela pessoa, que estava um pouco dura nas juntas por causa do longo período de armazenamento, mas continuava ainda perfeitamente usável. As juntas ficariam mais macias e a pessoa nova-velha seria uma mulher inteira, talvez marcada por aquela sublevação mas não gravemente ferida. Conhecia-a, talvez, melhor do que ela pensava, e soubera com certeza, apenas pelo tom de voz, que ela aceitava cada vez mais a idéia de um divórcio, a idéia de um rompimento completo com o passado... um rompimento que sararia bem e não deixaria nenhum aleijão. Tinha 38 anos de idade e metade da vida à frente. Não havia filhos que pudessem ser casualmente machucados no acidente automobilístico daquele casamento. Ele não sugeriria o divórcio, mas se ela o fizesse, concordaria. Invejava-lhe a nova pessoa e a nova beleza. E se dentro de dez anos ela se lembrasse daquele casamento como um longo e escuro corredor que a levara para a luz do sol, poderia ficar triste se ela pensasse assim, mas não culpá-la. Não, não poderia culpá-la.

 

 

 

21 de dezembro de 1973

 

Entregara-lhe os presentes na sala de estar decorada com almofadas de tecido riscadinho e dourado de gosto duvidoso de Jean Calloway e a conversa fora forçada e desajeitada. Nunca estivera sozinho com Mary nessa sala e continuava a pensar que deviam bolinar. Isso era uma reação automática enferrujada que o fazia sentir-se com uma má dupla exposição do que fora nos seus tempos de estudante.

 

— Você clareou os cabelos? — perguntou.

 

— Apenas um pouquinho.

 

Mary encolheu de leve os ombros.

 

— Ficaram bonitos. Faz você parecer mais moça.

 

— Você está ficando um pouco grisalho nas têmporas, Bart. E isso lhe dá uma aparência distinta.

 

— Conversa fiada. Faz é que eu pareça sujo.

 

Ela riu — um pouco estridente demais — e olhou para os presentes na pequena mesa lateral. Ele embrulhara os brincos de coruja e deixara os brinquedos e o jogo de xadrez para ela embrulhar. As bonecas olhavam vazias para o teto, esperando que as mãos de alguma menininha lhes insulassem vida.

 

Olhou para Mary. Seus olhos se encadearam sérios por um momento e ele pensou que ela iria pronunciar palavras irretratáveis e sentiu medo. Mas logo o cuco saltou do relógio, anunciando 1:30h, os dois se sobressaltaram e riram. O momento passara. Ele se levantou, para que aquilo não acontecesse novamente. Salvo por um cuco, pensou. Bem a propósito.

 

— Vou ter que me mandar — disse ele.

 

— Algum encontro?

 

— Entrevista para um emprego.

 

— É mesmo? — Ela pareceu satisfeita. — Onde? Quem? Quanto? Ele riu e sacudiu a cabeça.

 

— Há dezenas de outros candidatos com possibilidades tão boas quanto as minhas. Eu lhe digo, quando conseguir o emprego.

 

— Presunçoso.

 

— Sou mesmo.

 

— Bart, o que é que você vai fazer no Natal?

 

Parecia preocupada e solene e, de repente, ocorreu-lhe que um convite para um jantar de Natal, e não para comparecimento a uma vara de família para acertarem o divórcio no Ano-Novo, fora o que ela quisera dizer. Deus! Riu.

 

— Vou jantar em casa.

 

— Você pode vir para aqui — disse ela. — Seríamos apenas nós dois.

 

— Não — disse ele, pensativo e, em seguida, mais firme: — Não. As emoções têm o costume de se descontrolarem nos feriados. Em outra ocasião.

 

Ela inclinou a cabeça, também pensativa.

 

— Vai cear sozinha? — perguntou ele.

 

— Eu talvez vá à casa de Bob e Janet. Você tem mesmo certeza de que não quer?

 

— Tenho.

 

— Bem...

 

Mas ela pareceu aliviada.

 

Foram juntos até a porta e dividiram um beijo exangue.

 

— Eu ligo pra você — prometeu ele.

 

— Não se esqueça.

 

— E minhas recomendações a Bobby.

 

— Dou.

 

Ele já estava a meio-caminho até o carro quando ela chamou:

 

— Bart, Bart, espere um minuto! Ele virou-se, quase medrosamente.

 

— Quase esqueci. Wally Hamner telefonou e convidou-nos para sua festa de Ano-Novo. Aceitei por nós dois. Mas se não quiser...

 

— Wally? — franziu a testa. Walter Hamner era praticamente o único amigo que tinha no outro lado da cidade. Trabalhava para uma agência de publicidade local. — Ele não sabe que nós, você sabe, estamos separados?

 

— Sabe, mas você conhece Walt. Coisas assim não o perturbam muito.

 

Realmente não perturbavam. Simplesmente pensar em Walter fê-lo sorrir. Sempre ameaçando trocar a publicidade pelo desenho de fundas avançadas para hérnia. Compositor de versos populares obscenos e de paródias ainda mais obscenas de músicas populares. Divorciado duas vezes e ferrado com força no bolso nas duas vezes. Impotente nesse momento, se fosse dar crédito às bisbilhotices, e no caso dele achava que a fofoca provavelmente era verdade. Desde quando vira Walt pela última vez? Quatro meses? Um tempo enorme.

 

— Isso poderia ser divertido — respondeu, mas nesse momento lhe ocorreu um pensamento.

 

Lembrando os velhos tempos, ela notou pela sua expressão.

 

— Não vai haver lá ninguém da lavanderia.

 

— Ele e Steve Ordner se conhecem.

 

— Bem, sim, ele.

 

Encolheu os ombros para mostrar como julgava improvável que ele fosse comparecer à festa, e o encolhimento se transformou em um abraço nos cotovelos para combater um arrepio. A temperatura estava nos 4°C.

 

— Hei, entre — disse ele. — Você vai congelar, sua boba.

 

— Você quer ir?

 

— Não sei. Vou ter que pensar.

 

Beijou-a novamente, desta vez com um pouco mais de firmeza e ela retribuiu. Num momento como esse, ele podia arrepender-se de tudo — mas era um arrependimento distante, quase impessoal.

 

— Feliz Natal, Bart — disse e ele notou que ela chorava um pouco.

 

— No próximo ano será melhor — respondeu ele, a frase confortante mas sem qualquer profundidade. — Entre antes de pegar uma pneumonia.

 

 

 

24 de dezembro de 1973

 

Descobriu em Norton uma pequena oficina que substituiria a janela quebrada traseira por noventa dólares. Quando perguntou ao mecânico se iria trabalhar na véspera do Natal, o homem respondeu:

 

— Diabo, vou, pra mim é um dia igual aos outros.

 

Parou no caminho em uma lavanderia em Norton e colocou as roupas em duas máquinas de lavar. Automaticamente, ligou os agitadores a fim de ver em que tipo de forma estava a unidade espremedora e em seguida carregou-as com todo o cuidado, de modo que cada máquina extraísse a água (apenas, na laundromal chamavam aquilo de “giro-seco”) sem pifar por sobrecarga. Interrompeu-se, sorrindo de leve. Pode-se tirar o menino de dentro da lavadora, Fred, mas não se pode tirar a lavadora de dentro do menino. Certo, Fred? Fred? Oh, foda-se.

 

— Isso aí é um buraco e tanto — comentou o mecânico, examinando o vidro quebrado e que lembrava uma teia de aranha.

 

— Um garoto com uma bola de neve — explicou ele. — Com uma pedra dentro.

 

— Foi mesmo — disse o homem —, foi mesmo.

 

Substituída a janela, voltou à lavanderia, colocou as roupas na secadora, ajustou-a para quente-médio, e introduziu trinta centavos na ranhura. Sentou-se e pegou o jornal deixado ali por alguém. A única outra cliente da lavanderia era uma mulher jovem de aparência cansada usando óculos de armação de arame e estrias louras nos cabelos compridos e castanho-avermelhados. Tinha em sua companhia uma menininha que estava fazendo uma cena.

 

— Eu quero minha mamadeira!

 

— Droga, Rachel...

 

— MAMADEIRA!

 

— Papai vai dar uma surra em você quando a gente voltar pra casa — prometeu sombriamente a moça. — E nada de guloseimas antes de dormir.

 

— MAMADEIRA!

 

Agora, por que uma moça assim manda pintar uma faixa nos cabelos? perguntou ele a si mesmo, e olhou para o jornal. As manchetes diziam:

 

PEQUENAS MULTIDÕES EM BELÉM

 

PEREGRINOS TEMEM TERRORISMO NO FERIADO

 

Ao pé da primeira página, uma reportagem curta, que leu com grande atenção:

 

WINTERBURGER DIZ QUE ATOS DE

 

VANDALISMO NÃO SERÃO TOLERADOS

 

(Local) Victor Winterburger, candidato democrata à vaga do falecido Donald P. Naish, que morreu em um acidente de carro no mês passado, disse ontem que atos de vandalismo, como o que ocasionou prejuízos avaliados em quase cem mil dólares no canteiro de obras da Estrada 784 em começos da última quarta-feira, não podem ser tolerados “em uma cidade americana civilizada”. Winterburger fez suas observações em um jantar da Legião Americana e recebeu uma ovação de pé.

 

“Vimos o que aconteceu em outras cidades”, prosseguiu ele —, “aos ônibus apedrejados, aos vagões do metrô e aos prédios de Nova York, as janelas estilhaçadas e escolas insensatamente depredadas de Detroit e San Francisco, a destruição de equipamentos públicos, museus públicos, galerias de arte públicas. Não podemos permitir que o maior país do mundo seja assolado pelos hunos e bárbaros.”

 

A polícia foi chamada para o canteiro de obras da Grand Street quando certo número de incêndios e explosões foram vistos por

 

(Continua na página 5, col. 2)

 

Dobrou o jornal e colocou-o em cima de uma pilha de revistas rasgadas. A lavadora zumbia, e zumbia, em um som baixo e soporífico. Hunos. Bárbaros. Eles é que eram os hunos. Eles é que eram os destruidores, demolidores, niveladores, arrancando pessoas de suas casas, destruindo vidas a pontapés como um menininho pode destruir um formigueiro...

 

A moça arrastou a filha, ainda pedindo a mamadeira aos berros, e saiu da lavanderia. Ele fechou os olhos e cochilou, esperando que a secadora terminasse. Minutos depois, acordou bruscamente, pensando que ouvia sinetas de incêndio, mas era apenas um Papai Noel do Exército da Salvação que havia tomado posição na esquina em frente. Quando saiu da lavanderia com a cesta de roupas, jogou todos os seus trocados na panela do Papai Noel.

 

— Deus o abençoe — agradeceu o simpático velhinho.

 

 

 

25 de dezembro de 1973

 

O telefone acordou-o por volta das 10H da manhã. Puxou sonolento a extensão da mesinha-de-cabeceira, levou-a ao ouvido, e ouviu a telefonista perguntar secamente:

 

— O senhor aceita uma chamada a cobrar de Olivia Brenner? Sem saber quem era, só pôde mesmo dizer:

 

— Quem? Quem? Eu estava dormindo.

 

Uma voz distante, vagamente conhecida, disse:

 

— Oh, pelo amor de Deus — e ele soube quem era.

 

— Sim — respondeu. — Aceito.—Teria ela desligado? Apoiou-se num cotovelo para ver. — Olívia? Você ainda está aí?

 

— Prossiga, por favor — cortou-o a telefonista, não querendo mudar sua cantilena.

 

— Olívia, você está aí?

 

— Estou aqui.

 

A voz soava crepitante e distante.

 

— Que bom que você telefonou.

 

— Eu pensava que você não ia aceitar a chamada.

 

— Eu acabei de acordar. Você está aí? Em Las Vegas?

 

— Estou — respondeu ela secamente.

 

A palavra foi pronunciada com um tom de autoridade curiosamente surdo, como uma tábua que cai num chão de cimento.

 

— Bem, como é a coisa? Como vai indo você?

 

O suspiro foi tão amargo que parecia mais um soluço sem lágrima.

 

— Não muito bem.

 

— Não?

 

— Conheci um cara na minha segunda... não, terceira... noite aqui. Fui a uma festa e fui tão...

 

— Droga? — perguntou ele, cauteloso, muito consciente de que aquilo era uma chamada de longa distância e que o governo estava em toda parte.

 

— Droga? — respondeu ela azedamente. — Claro que foi droga. Droga ordinária, cheia de dexdrina ou outra coisa... Acho que fui estuprada.

 

A última palavra foi pronunciada tão indistintamente que ele teve que perguntar:

 

— O quê?

 

— Estuprada! — gritou ela, tão alto que o telefone entortou o som. — É isso o que acontece quando algum cara ordinário banca o hippie de sexta-feira à noite e brinca de esconder o salame com a gente enquanto o cérebro da gente ficou em algum lugar lá atrás, gotejando da parede! Estupro, curra, sabe o que é?

 

— Sei — respondeu ele

 

— Uma ova que você sabe.

 

— Precisa de dinheiro?

 

— Por que é que está me perguntando isso? Não posso foder pelo telefone. Não posso nem bater uma punheta em você.

 

— Eu tenho algum dinheiro — continuou ele. — Poderia mandar para você. Só isso. É esse o motivo.

 

Instintivamente, descobriu que estava falando não em tom tranqüilizador, mas baixo, de modo que ela teria que se acalmar para escutar.

 

— Sim, sim.

 

— Tem algum endereço?

 

— Posta-restante, é esse o meu endereço.

 

— Não tem apartamento?

 

— Tenho, eu e essa outra pobre coitada temos um lugar. As caixas do correio estão quebradas. Esqueça. Guarde seu dinheiro. Arranjei um emprego. Acho que vou cair fora e voltar. Feliz Natal para mim.

 

— Que emprego?

 

— Servir hambúrgueres numa lanchonete. Ela tem máquinas caça-níqueis e o pessoal joga e come hambúrgueres a noite toda, você pode acreditar numa coisa dessas? A última coisa que a gente tem que fazer quando termina o turno é limpar as alavancas dos caça-níqueis. Todas meladas de mostarda, ketchup e molho caipira. E você devia conhecer as pessoas que há por aqui. Todas são gordas. Todas bronzeadas ou queimadas de sol. E se não querem foder a gente, são apenas parte da mobília. Tive casos com ambos os sexos. Graças a Deus minha colega de quarto é tão experiente em sexo como uma moita de junípero. Eu... Oh, Cristo, por que estou lhe contando tudo isso? Nem mesmo sei por que lhe telefonei. No fim de semana, quando receber meu salário, vou sair daqui e pedir carona até o fim do mundo.

 

Ele se ouviu dizendo:

 

— Agüente um mês.

 

— O quê?

 

— Não se apavore. Se sair daí agora mesmo vai sempre se perguntar o que foi buscar aí.

 

— Você jogou futebol na escola secundária? Aposto que jogou.

 

— Não fui nem mesmo o garoto que levava água para os jogadores.

 

— Então você não sabe nada de nada, não é?

 

— Estou pensando em me matar.

 

— Você nem mesmo... o que foi que você disse?

 

— Estou pensando em me matar. — Disse isso calmamente. Não estava pensando mais em longa distância e em caras que poderiam monitorar chamadas de longa distância simplesmente para se divertir — tais como Mamãe Bell, a Casa Branca, a CIA, o Efe Bê Ai. — Continuo tentando fazer coisas e elas continuam a não dar certo. Acho que sou um pouco velho demais para que elas funcionem. Alguma coisa deu errada há alguns anos, eu sabia que era uma coisa ruim, mas não que era ruim para mim. Pensei que simplesmente havia acontecido e que eu ia superar aquilo. Mas as coisas continuaram a despencar dentro de mim. Estou doente delas. Continuo a fazer coisas.

 

— Você tem câncer? — perguntou ela baixinho.

 

— Acho que tenho.

 

— Você devia procurar um hospital, ser...

 

— É câncer da alma.

 

— Você está fazendo uma “viagem” do ego, homem.

 

— Talvez esteja — concordou ele. — Não importa. De uma maneira ou de outra as coisas estão programadas e vão acontecer assim. Só há uma coisa que me incomoda e é a impressão que me ocorre às vezes de que sou um personagem no livro de algum mau escritor e que ele já resolveu como as coisas vão acabar e por quê. E mais fácil ver as coisas assim dessa maneira do que botar a culpa em Deus — o que foi que Ele jamais fez por mim, de um jeito ou de outro? Não, é esse escritor ordinário, é culpa dele. Matou meu filho escrevendo que ele tinha um tumor cerebral. Isso foi no Capítulo 1. Suicídio ou não, isso acontece pouco antes do epílogo. E uma história estúpida.

 

— Escute aqui — respondeu ela, e havia ansiedade em sua voz —, se aí na sua cidade não têm esse troço de Peça Ajuda pelo Telefone, você deveria...

 

— Eles não poderiam fazer coisa alguma por mim — retrucou ele —, e, de qualquer maneira, isso não importa. Eu quero ajudar você. Pelo amor de Deus, olhe bem em volta antes de se apavorar. Livre-se da droga, você disse que ia fazer isso. Na próxima vez em que olhar em volta terá quarenta anos de idade e a maioria de suas opções terá desaparecido.

 

— Não, não posso agüentar isto aqui. Em algum outro lugar...

 

— Todos os lugares são os mesmos, a menos que sua mente mude. Não há lugar mágico para endireitar sua mente. Se você se sente como uma merda, tudo que olha parece merda. Eu sei disso. As manchetes de jornais, até as tabuletas que vejo, todas elas dizem, é isso aí, Georgie, puxe o fio da tomada. Isso acaba com tudo.

 

— Ouça...

 

— Não, não, você ouve. Limpe os ouvidos. Envelhecer é como dirigir em neve que fica cada vez mais profunda. Quando ela finalmente chega ao cubo de suas rodas, você simplesmente gira e gira. Isso é a vida. Nenhuma pá de neve vai chegar e tirá-la do atoleiro. Seu barco não vai chegar, mocinha. Não há barcos para todo mundo. Você não vai nunca vencer um concurso. Não há uma câmara seguindo-a nem pessoas acompanhando sua luta. A vida é assim. Toda ela. Tudo.

 

— Você não sabe como as coisas são aqui! — gritou ela.

 

— Não, mas sei como é aqui.

 

— Você não manda em minha vida.

 

— Vou lhe mandar quinhentos dólares — Olivia Brenner, a/c da Posta-Restante, Las Vegas.

 

— Eu não vou estar aqui. Vão devolver o dinheiro.

 

— Não vão. E não vão porque não vou incluir endereço de resposta.

 

— Jogue-o fora, então.

 

— Use-o para arranjar um emprego melhor.

 

— Não.

 

— Então use-o como papel higiênico — disse ele secamente, e desligou, as mãos tremendo.

 

O telefone tocou cinco minutos depois. A telefonista perguntou:

 

— O senhor aceita uma chamada a...

 

— Não — respondeu ele, e desligou.

 

O telefone tocou mais duas vezes naquele dia, mas não foi Olivia em nenhuma delas.

 

Por volta de 2h da tarde, Mary ligou da casa de Bob e Janet Preston — Bob e Janet, que sempre lhe lembravam, gostassem ou não, de Barney e Wilma Flintstone. Como estava ele? Bem. Uma mentira. O que era que ia cear na noite de Natal? Ia a Old Customhouse naquela noite comer peru, com todos os babados. Mentira. Não gostaria, em vez disso, de ir para a casa de Bob e Janet? Janet estava cheia de todos os tipos possíveis de restos de comida e ficaria feliz em se livrar de alguns. Não, não estava realmente com muita fome naquele momento. Verdade. Estava realmente baratinado e, numa inspiração do momento, disse que iria à festa de Walter. Ela pareceu satisfeita. Sabia que era uma festa do tipo “traga sua bebida”? Quando Wally Hamner dera uma festa que não fora assim? Desligaram os dois ao mesmo tempo e ele foi sentar-se em frente à TV acompanhado por um drinque.

 

O telefone tocou novamente às 7:30h e nessa ocasião nem estava impolido nem irritado — estava bêbado de cair.

 

— Lô?

 

— Dawes?

 

— Dozz fa..lando. Quem é?

 

— Magliore, Dawes. Sal Magliore.

 

Ele piscou e olhou para dentro do copo. Olhou para a TV colorida Zenith, que estava apresentando um filme intitulado Férias Mortais. Era uma família que se reunira na véspera do Natal na casa do patriarca moribundo e alguém os estava matando, um após outro. Em um espírito muito natalino.

 

— Sr. Magliore — respondeu, pronunciando o nome com todo o cuidado. — Feliz Natal, senhor! E tudo de bom no novo ano!

 

— Oh, se você apenas soubesse como estou com medo de 74 — respondeu melancolicamente Magliore. — Esse vai ser o ano em que os barões do petróleo tomarão o país, Dawes. Vai ver se não vão fazer isso. Olhe só minhas vendas em dezembro, se não acredita em mim. Vendi um Chevy Impala 1971 um dia desses, o carro estava 100%, e vendi por mil dólares. Mil paus! Você acredita numa coisa dessas? Uma queda de 45% no valor em um único ano. Mas posso vender todos os Vegas 71 que puder arranjar por 1.500, 1.600 dólares. E o que é que eles são, é o que lhe pergunto.

 

— Carros pequenos? — perguntou cauteloso Dawes.

 

— São umas merdas de latas de café da Maxwell House, é isso o que são — berrou Magliore. — Ou caixas de biscoitos salgados sobre rodas! Cada vez que a gente olha atravessado para a droga desse carro, ou chama um nome a ele, o motor desregula, o sistema de escape cai no chão, ou quebra o mecanismo do volante. Pintos, Vegas, Gremlins, são todos a mesma coisa, pequenas caixas para cometer suicídio. De modo que estou vendendo-os com toda a rapidez que posso e não posso colocar um Chevy Impala bacano a menos que o dê quase de graça. E você me deseja feliz Ano-Novo. Jesus! Maria! José o carpinteiro!

 

— Isso é sazonal — lembrou ele.

 

— Eu não dou esse nome ao que está acontecendo — respondeu Magliore. — Telefonei para lhe dar parabéns.

 

— Para... bens?

 

Ele estava honestamente confuso.

 

— Você sabe. Bum-buuuum.

 

— Oh, o senhor quer dizer...

 

— Psiu. Não ao telefone. Fique frio, Dawes.

 

— Claro. Bum-buuuum. Isso foi bom. E soltou uma risadinha.

 

— Foi você, não, Dawes?

 

— Para o senhor eu não diria meu nome intermediário. Magliore estourou na gargalhada.

 

— Essa é boa. Você é bom, Dawes. Você é um veado, mas um veado inteligente. Eu admiro isso.

 

— Obrigado — disse ele e, inteligentemente, emborcou o resto do drinque.

 

— Quero lhe dizer também que tudo está seguindo de acordo com a programação lá no canteiro de obras.

 

— O quê?

 

— Tinham máquinas de reserva para tudo aquilo, Dawes. E reservas das reservas da maioria. Estão pagando à vista até conseguir acertar a escrita, mas tudo mais está nos eixos.

 

— O senhor está louco.

 

— Não, não estou, mas achei que você devia saber. Eu lhe disse, Dawes. Há algumas coisas das quais você não pode se livrar.

 

— O senhor é um safado. Está mentindo. Por que telefona para um homem na noite de Natal para lhe contar mentiras?

 

— Não estou mentindo. Mais uma vez, o jogo é seu, Dawes. Neste jogo, ele será sempre seu.

 

— Não acredito no senhor.

 

— Seu pobre filho da puta — disse Magliore. Parecia realmente pesaroso e isso era a pior parte. — Eu também acho que você não vai ter um Ano-Novo muito feliz.

 

E desligou.

 

E esse foi o Natal.

 

 

 

26 de dezembro de 1973

 

Eles lhe haviam enviado uma carta pelo correio (começara a referir-se dessa maneira àquelas pessoas anônimas lá do centro, o pronome pessoal em itálico e impresso em letras sinistras, gotejantes, tal como a impressão de um pôster de filme de terror), como se para confirmar o que Magliore lhe dissera.

 

Com a carta na mão ficou olhando para o envelope oficial novinho em folha, branco, sua mente cheia de quase todas as más emoções que a mente humana pode conceber: desespero, ódio, medo, raiva, perda. Quase a rasgou em pedacinhos e jogou-os na neve no lado de fora da casa, mas depois teve certeza de que não faria isso. Abriu-a, quase rasgando o envelope pela metade e reconheceu que o que mais sentia era ter sido ludibriado. Havia sido trambicado. Havia sido passado para trás. Destruíra-lhes as máquinas e a escrituração e eles haviam simplesmente comprado novo equipamento. Era a mesma coisa que tentar lutar com as mãos limpas contra o exército chinês.

 

Mais uma vez, o jogo é seu. Neste jogo, ele será sempre seu.

 

As cartas anteriores haviam sido enviadas pelo Departamento de Estradas de Rodagem. Querido Amigo, um senhor guindaste vai chegar muito cedo a sua casa. Aguarde esse fato emocionante, enquanto MELHORAMOS SUA CIDADE.

 

Esta era da Câmara dos Vereadores e pessoal. Dizia:

 

20 de dezembro de 1973

 

Sr. Barton G. Dawes

 

1241 Crestallen Street West

 

M__W_

 

Prezado sr. Dawes:

 

Chegou ao nosso conhecimento que o senhor é o último morador da Crestallen Street West que ainda não se mudou. Temos a esperança de que não esteja enfrentando qualquer grande problema neste assunto. Embora tenhamos em mãos o formulário 19642-A (acusação de recebimento de informação a respeito do Projeto Rodoviário da Cidade 6983-426-73-74-HQ, não temos ainda seu formulário de relocalização (6983-426-73-74-HC-9004, capa azul). Conforme é do conhecimento de V. Sa., não poderemos iniciar o processamento de seu cheque de indenização até que recebamos esse formulário. Segundo nosso lançamento de imposto predial de 1973, a propriedade situada no número 1241 da Crestallen Street West foi avaliada em US$63.500, e assim temos certeza de que está tão a par da urgência da situação como nós. De acordo com a lei, o senhor deve mudar-se até o dia 20 de janeiro de 1974, data em que as obras de demolição devem começar na Crestallen Street West.

 

Cumpre-nos ainda observar que, de acordo com a Lei Estadual de Domínio Eminente (S.L. 19452-36), o senhor a violaria se permanecesse em sua atual localização depois da meia-noite de 19 de janeiro de 1974. Temos certeza de que V. Sa. compreende a situação, mas estamos reiterando a notificação para que conste dos registros.

 

Se estiver tendo algum problema com a mudança para outro local, espero que me telefone durante o horário normal de expediente ou, melhor ainda, passe por aqui para discutirmos a situação. Tenho certeza de que uma solução poderá ser encontrada. Estamos mais do que ansiosos para que assim aconteça, mais do que ansiosos para cooperar no que for possível para a solução do assunto. Entrementes, desejo um feliz Natal e um próspero Ano Novo.

 

Sinceramente,

 

 

Pela Câmara dos Vereadores

 

JTG/tk

 

— Não — murmurou ele. — Você não pode desejar isso. Você não pode. Picou a carta em pedacinhos e jogou-a na cesta de papéis usados.

 

Naquela noite, sentado diante da TV Zenith, lembrou-se de como ele e Mary haviam descoberto, há quase 42 meses agora, que Deus resolvera fazer uma pequena obra rodoviária no cérebro do filho Charlie.

 

O nome do médico era Younger. Uma série de letras seguia-lhe o nome nos diplomas emoldurados pendurados nas paredes de seu gabinete particular no consultório, mas tudo o que sabia com certeza era que Younger era neurologista, um tipo competente no caso de boas doenças cerebrais.

 

Ele e Mary tinham-no procurado, a convite do próprio médico, em uma quente tarde de junho, dezenove dias depois de Charlie ter sido internado no Doctors Hospital. Ele era um homem bonitão, talvez para lá da metade da casa dos quarenta, fisicamente apto com um bocado de golfe jogado sem ajuda de carrinho elétrico. Era de um moreno tisnado. As mãos dele fascinaram-no. Eram enormes, de aparência desajeitada, mas moviam-se pela escrivaninha — pegando uma caneta, consultando a agenda de consultas, ou brincando preguiçosamente com um peso de papel marchetado de prata — com uma graça elástica que era quase repulsiva.

 

— Seu filho tem um tumor no cérebro — disse.

 

Falou em voz calma, sem inflexões, embora os olhos dele os observassem atentamente, como se ele houvesse acabado de armar um explosivo muito temperamental.

 

— Tumor — repetiu Mary baixinho, a voz sem emoção.

 

— Qual é a gravidade? — perguntara ele a Younger.

 

Os sintomas haviam se desenvolvido no espaço de oito meses. Inicialmente, as dores de cabeça, raras no começo e depois mais comuns. Em seguida, visão dupla que aparecia e desaparecia, especialmente após exercício físico. Depois disso, o que foi mais vergonhoso para Charlie, alguns casos de xixi na cama. Mas só o haviam levado ao médico da família após uma apavorante cegueira temporária no olho esquerdo, que ficara tão vermelho como o pôr-do-sol, obscurecendo o azul lindo de Charlie. O médico da família mandara interná-lo para a realização de exames e os demais sintomas haviam se seguido a isso: aromas fantásticos de laranja e aparas de lápis, dormência ocasional na mão esquerda, uma ou outra queda em palavras absurdas ou obscenidade infantil.

 

— Séria — disse Younger. — Vocês têm que se preparar para o pior. O tumor é inoperável.

 

Inoperável.

 

A palavra voltou-lhe, ecoando ao longo dos anos. Nunca pensara que palavras tinham gosto, mas aquela tinha. Um gosto mim, mas, ao mesmo tempo, suculento, como um hambúrguer podre malpassado.

 

Inoperável.

 

Em algum lugar, dissera Younger, bem no fundo do cérebro de Charlie, havia um conjunto de células doentes do tamanho de uma noz. Se a pessoa botasse aquele conjunto de células em cima de uma mesa, ela poderia esmagá-las com uma palmada. Mas elas não estavam em cima de uma mesa. Estavam incrustadas profundamente na carne do cérebro de Charlie, crescendo ainda, contentes, enchendo-o de uma estranheza aleatória.

 

Certo dia, não muito depois do internamento, visitara o filho aproveitando a folga do almoço. Conversaram sobre beisebol, discutindo, na verdade, se poderiam assistir às partidas da Liga Americana, se a equipe da cidade se classificasse.

 

Charlie dissera:

 

— Acho que o lançamento deles htimmmmmmm hummmmm hummmmmm lançamento agüentar hummmmmmmmmmm mm hummmmm lançamento...

 

Ele se inclinara para a frente.

 

— O que, Fred? Não entendi o que você disse.

 

Os olhos de Charlie rolaram absurdamente para cima.

 

— Fred? — murmurou. — Freddy...?

 

— Porra, filho da puta chupa pau cu da mãe! — gritara o filho ali daquela limpa e branca cama de hospital. — Chupa boceta chupa pau cu cagado filho da puta...

 

— Enfermeira! — gritara ele, ao ver Charlie desmaiar. — 011, deus, enfermeira! Eram as células, entendam, que o faziam falar assim. Um pequeno aglomerado de células malignas, entendam, não maior do que uma noz comum. Uma vez, contara a enfermeira da noite, ele gritara a palavra sinecura repetidamente durante quase cinco minutos. Apenas as células malignas, entendam. Não maior do que a noz comum, fazendo com que o filho delirasse como um monstro, fazendo com que molhasse a cama, dando-lhe dores de cabeça, tirando-lhe — na primeira quente semana de julho — toda capacidade de mover a mão esquerda.

 

— Olhem — dissera o dr. Younger naquele dia claro e ideal para o golfe em junho. Desenrolara sobre a mesa uma grande fita de papel, com o traçado das ondas cerebrais do filho. Em comparação, ele produzia ondas sadias, mas não precisava disso. Olhou para o que estivera acontecendo na cabeça do filho e mais uma vez sentiu aquele gosto podre e suculento na boca. O papel mostrava uma serie de montanhas denteadas e vales, como se fosse uma série de adagas mal desenhadas.

 

Inoperável.

 

Entendam, se aquela coleção de células malignas, não maior do que uma noz, tivesse decidido crescer fora do cérebro de Charlie, uma pequena cirurgia teria resolvido tudo. Sem suor, sem esforço, sem dor no cérebro, como haviam dito ao tempo de meninos. Mas, em vez disso, crescera bem no fundo e estava ficando maior a cada dia. Se tentassem o bisturi, o laser, ou a criocirurgia, ficariam com uma bonita, saudável, respirante peça de carne. Se não tentassem nada disso, antes de muito tempo estariam botando seu filho num caixão.

 

O dr. Younger dissera todas essas coisas falando em generalidades, cobrindo-lhes a falta de opções com uma tranqüilizante espuma de jargão técnico que logo esqueceriam. Mary continuara a mexer a cabeça cm uma mansa confusão, mas ele compreendera tudo, exata e completamente. Seu primeiro pensamento, claro e imediato, e que nunca se perdoaria, fora: Graças a Deus não sou eu. Mas o gosto esquisito voltou e começou a sofrer pelo filho.

 

Hoje uma noz, amanhã o mundo. O sorrateiro desconhecido. O inacreditável filho moribundo. O que havia para compreender?

 

Charlie faleceu em outubro. Não houvera dramáticas últimas palavras. Ele estivera em coma durante três semanas.

 

Suspirou, foi até a cozinha e preparou um drinque. A noite escura entrava uniformemente por todas as janelas. A casa ficara tão vazia com a saída de Mary. Por toda parte, continuava a tropeçar em pequenas partes de si mesmo — instantâneos fotográficos, seu velho uniforme de malha para ginástica no armário do primeiro andar, um velho par de chinelas sob a escrivaninha. Era ruim, muito ruim, continuar a fazer isso.

 

Jamais chorara por causa de Charlie após a morte do filho. E nem mesmo no enterro. Mary chorara muito. Durante semanas, ao que parecia. Andara mesmo com um caso perpétuo de olhos vermelhos. Mas, no fim, fora ela quem sarara.

 

Charlie deixara cicatrizes nela, isso era inegável. Por fora, exibia todas elas. Mary antes-e-depois. Antes, ela não tomava um drinque a menos que o considerasse socialmente útil para o futuro dele. Aceitava um chave-de-fenda fraco numa festa e fazia-o render a noite toda. Um toddy quente com rum antes de dormir quando estava com os pulmões cheios de catarro. Só isso. Depois, tomava um coquetel com ele em fins de tarde, quando ele voltava para casa e sempre um outro antes de dormir. Nada de vício pelo padrão de quem quer que fosse, não o tipo de sentir-se mal e vomitar no banheiro, mas também mais do que antes. Um pouco daquela espuma protetora. Indubitavelmente, apenas o que o médico teria receitado. Antes, raramente chorava por causa de pequenas coisas. Depois, freqüentemente chorava por elas, sempre sozinha. Se o jantar queimava. Se esvaziara um pneu. Na ocasião em que a água inundou o portão, a bomba congelou e a fornalha entrou em curto. Antes fora uma fã vidrada em música caipira — cantores brancos e blues, Van Ronk, Gary Davis, Tom Rush, Tom Paxton, Spiderjohn Koerner. Depois, o interesse simplesmente murchara. Cantava seus próprios blues e lamentos em algum circuito interno. Começara a fazer o cabelo em casa e a vista dela usando rolos em frente à TV tornara-se comum. Era dela que os amigos tinham pena — e com razão, achava. Ele queria sentir pena de si mesmo, e sentia, mas conservava isso em segredo. Ela pudera necessitar, e usar o que lhe era dado por causa de sua necessidade e, no fim, isso a salvara. Havia-lhe poupado a terrível contemplação que o mantinha acordado tantas noites depois que o drinque de fim da noite a tranqüilizara e botara para dormir. E enquanto ela dormia, ele pensava no fato de que neste mundo uma pequena coleção de células não maior do que uma noz podia tirar a vida de seu filho e mandá-lo embora para sempre.

 

Nunca a odiara por ter sarado nem a deferência com que as outras mulheres a tratavam, como um direito. Olhavam-na da maneira que um jovem petroleiro poderia olhar para um velho veterano cujas mãos, costas ou rosto brilhavam com tecido rosado de queimaduras — com o respeito que o nunca machucado olha para o outrora machucado mas hoje recuperado. Ela cumprira sua pena no inferno por causa de Charlie e essas outras mulheres sabiam disso. Mas saíra de lá. Houvera Antes, houvera Inferno, houvera Depois e sempre houvera o Depois-do-Depois, quando voltara de dois de seus quatro clubes sociais, começara a fazer macramê (ele tinha um cinto que ela fizera há um ano — uma bela criação de corda torcida com uma pesada fivela de prata e o monograma BGD), a assistir os programas vespertinos da TV — novelas e Merv Griffin conversando com celebridades.

 

E agora, o quê? interrogou a si mesmo, voltando para a sala de estar. Depois-do-Depois-do-Depois? Era o que parecia. Uma nova mulher, uma mulher completa, erguendo-se das velhas cinzas que ele tão brutalmente agitara. O velho petroleiro, com enxertos de pêlo sobre as queimaduras, retendo a velha experiência mas ganhando uma nova aparência. Uma beleza apenas tão superficial como a pele? Não. A beleza está no olho de quem olha. Ela poderia continuar por quilômetros.

 

No seu caso, todas as cicatrizes eram internas. Examinara os cortes uni após outro nas longas noites que se seguiram à morte de Charlie, catalogando-os com a fascinação mórbida de um homem que examina as fezes procurando sinais de sangue. Quisera ver Charlie jogando beisebol em uma equipe da Pequena Liga. Quisera receber cadernetas de notas escolares e ficar uma fera com elas. Quisera dizer-lhe, repetidamente, que arrumasse o quarto. Quisera preocupar-se com as pequenas com quem ele saísse, com os amigos que escolhesse, com o tempo interno do garoto. Quisera ver no que o filho se tornaria e se poderiam ainda se amar como até o momento em que as células malignas, não maiores do que uma noz, haviam se interposto entre ambos como alguma mulher escura e rapace.

 

Mary dissera: ele era seu.

 

Uma verdade. Os dois haviam se combinado tão bem que nomes eram ridículos, e até os pronomes eram um pouco obscenos. E assim eles se transformaram em George e Fred, uma espécie de dupla de teatro de variedades, os dois contra o mundo.

 

E se uma aglomeração de células malignas não maiores do que uma noz podia destruir todas essas coisas, coisas tão pessoais que nunca podem ser corretamente articuladas, tão pessoais que mal ousamos admitir-lhes a existência para nós mesmos, o que era que sobrava disso? De que modo poderia um cara jamais voltar a confiar novamente na vida? De que maneira podia considerá-la como algo mais significativo do que uma prova de abalroamento e destruição de carros num sábado à noite?

 

Tudo aquilo estava dentro dele, mas, honestamente, ignorara que seus pensamentos o estavam mudando tão profunda e irrecuperavelmente. E nesse momento tudo estava às claras, como alguma sujeira obscena vomitada na mesa do café, fedendo a sucos estomacais, cheia de bolos não digeridos, e se o mundo era apenas uma prova de demolição, o cara não teria justificação em abandonar seu carro? Mas o quê, depois disso? A vida parecia apenas uma preparação para o inferno.

 

Notou que esvaziara o drinque na cozinha e que voltara para a sala com um copo vazio.

 

 

 

31 de dezembro de 1973

 

Encontrava-se a apenas duas quadras da casa de Wally Hamner quando enfiou a mão no bolso do sobretudo para ver se ainda havia ali alguma pastilha de hortelã. Não as encontrou, mas achou um pequeno embrulho quadrado de papel de alumínio, que brilhou obscuramente à luz verde do painel do carro. Lançou ao pacotinho um olhar confuso, distraído e ia jogá-lo no cinzeiro quando se lembrou do que era.

 

Mentalmente, ouviu a voz de Olivia: Mescalina sintética. Produto quatro, é assim que chamam isso., Troço muito forte. Esquecera de tudo a esse respeito.

 

Voltou a colocar no bolso o pequeno embrulho e entrou na rua de Walter, que encontrou cheia de carros estacionados nos dois lados e até a metade do quarteirão. Aquilo era coisa de Walter, certo — que nunca fora homem de oferecer uma coisa tão simples como uma festa quando poderia haver possibilidade de um grande ajuntamento. Era o Princípio do Empurrão do Prazer, como o denominava Wally. Alegava que, algum dia, iria patentear essa idéia e em seguida publicar manuais sobre a arte de usá-lo. Sustentava ele que o indivíduo era forçado a divertir-se — empurrado para o prazer. Certa vez, numa ocasião em que Wally expunha sua teoria num bar, ele mencionara as multidões de linchadores.

 

— Aí está — disse Walter cinicamente —, Bart acaba de provar meu argumento.

 

O que estaria Olívia fazendo nesse momento? Ela não tentara ligar de novo, embora, se houvesse feito isso, ele provavelmente tivesse cedido e aceito a chamada a cobrar. Talvez tenha permanecido em Vegas apenas o tempo suficiente para esperar o dia do pagamento e em seguida tomado um ônibus para... onde? Maine? Alguém deixaria Las Vegas para o Maine no meio do inverno?

 

Produto quatro, é assim que chamam isso. Troço muito forte.

 

Subiu com a camioneta por cima do meio-fio e parou atrás de um GTX vermelho esportivo, com uma listra preta de carro de corrida, e desceu. A véspera do Ano-Novo estava clara mas cortantemente fria. Uma fatia frígida de lua pendurava-se no céu cm cima como se fosse uma figura de papel recortada por criança. Estrelas borrifavam o Armamento com generosa profusão. O muco em seu nariz congelou em forma de vidro, que se partiu quando forçou a abertura das narinas. A respiração formou uma pluma no ar escuro.

 

A três casas de distância ouviu a linha de baixos no estéreo. A turma havia realmente aumentado o volume. Havia algo nas festas de Wally, pensou ele, fosse ou não o Princípio do Prazer. Os mais bem-intencionados a-gente-pensou-em-dar-apenas-uma-passadinha-por-aqui acabavam ficando e bebendo até que suas cabeças ficavam cheias de campainhas de prata que se transformavam em sinos de chumbo de catedral no dia seguinte. Os mais acérrimos inimigos do rock acabavam saracoteando na sala de estar ao som dos discos intermináveis que Wally continuava a botar no estéreo quando todos se embriagavam o suficiente para se lembrarem dos fins da década de 50 e princípios da de 60 como os pontos altos de suas vidas. Bebiam e dançavam, dançavam e bebiam, até que arquejavam como cachorrinhos amarelos no 4 de julho. Havia mais beijos na cozinha por metades de todos diferentes, mais apalpações por centímetro quadrado, mais moças tomando chá de cadeira arrancadas subitamente das paredes, mais pessoas normalmente abstêmias que acordariam no dia de Ano-Novo com ressacas pavorosas e recordações horrivelmente claras de terem feito cabrioladas com a cabeça dentro de cúpulas de abajures ou finalmente resolvido dizer ao chefe umas poucas simples verdades. Wally aparentemente inspirava essas coisas não por qualquer esforço consciente, mas por ser simplesmente Wally — e, claro, não havia festa igual a uma festa de véspera do Ano-Novo.

 

Quando deu por si, estava procurando entre os carros estacionados o Delta 88 verde-garrafa de Ordner, mas não o viu em parte nenhuma.

 

Mais perto da casa, o resto da banda de rock aglutinou-se em torno da marcação do baixo e do berro de Mick Jagger:

 

Ooooh, crianças... Está a apenas um beijo de distância, Um beijo de distância, um beijo de distância...

 

Todas as luzes estavam acesas — a crise de energia que se foda —, exceto, naturalmente, a sala de estar, onde esfregamentos de pipis aconteceriam durante os números lentos. Abafando o estridor da música, pôde ainda assim ouvir o som de centenas de vozes erguidas em cinqüenta diferentes conversas, como se a Torre de Babel houvesse despencado segundos antes.

 

Pensou que, se fosse verão (ou mesmo outono) teria sido mais divertido ficar no lado de fora, ouvindo o ruído do circo, acompanhando-lhe mentalmente o desenrolar de seus números até o zênite e depois a queda gradual. Teve uma visão súbita — espantosa, assustadora — de si mesmo no gramado da casa de Wally Hamner segurando um rolo de papel de eletroencefalograma nas mãos, coberto com picos e fossas irregulares de função mental desarranjada: o registro monitorado de um gigantesco Cérebro de Festa, minado por um tumor. Arrepiou-se um pouco e enfiou as mãos nos bolsos do sobretudo para aquecê-las.

 

A mão direita encontrou o pequeno embrulho em papel de alumínio e tirou-o dali. Curioso, abriu-o, sem dar importância ao frio, que lhe mordia as pontas dos dedos com dentes rombudos. Dentro do papel encontrou um pequeno comprimido de cor púrpura, suficientemente pequeno para caber na unha do dedo mínimo sem lhe tocar nas bordas. Muito menor, digamos, do que uma noz. Poderia alguma coisa tão pequena como aquela torná-lo clinicamente louco, levá-lo a ver coisas que não existiam, pensar de uma maneira como nunca pensara? Poderia, em resumo, imitar todas as condições da doença mortal do filho?

 

Casualmente, quase distraidamente, pôs o comprimido na boca. Não tinha gosto. Engoliu-o.

 

— BART! — gritou a mulher. — BART DA WES!

 

A mulher usava um longo preto sem alças e trazia um martíni na mão. Tinha cabelos escuros, arrumados altos para a ocasião e presos por uma corda luzidia, constelada de imitações de brilhantes.

 

Ele entrara pela porta da cozinha. A cozinha estava cheia, entupida de gente. Eram apenas 8:30h e o Efeito Maremoto não se fizera sentir ainda. O Efeito Maremoto era outra parte da teoria de Walter: à medida que a festa continuava, alegava, as pessoas emigravam para os quatro cantos da casa.

 

— O centro não se agüenta — dizia Wally, piscando como quem sabe das coisas. — Foi T. S. Eliot que disse isso.

 

Certa vez, segundo Wally, ele encontrara um cara perambulando pelo sótão 18 horas depois do fim da festa.

 

A mulher de vestido preto beijou-lhe ardentemente os lábios, os seios generosos apertando-se contra seu peito. Um pouco de martíni derramou no chão entre eles.

 

— Oi — disse ele. — Quem é você?

 

— Tina Howard, Bart. Não se lembra da viagem da classe. — Sacudiu sob o nariz dele uma unha em forma de pá. — MENINO LEVADO!

 

— Aquela Tina! Deus do céu, é você mesma.

 

Um sorriso alvar distendeu-lhe os lábios. Essa era outra coisa a respeito das festinhas de Walter: gente do passado continuava a reaparecer como velhas fotos. Seu melhor amigo de trinta anos passados; a garota com quem quase meteu na faculdade; um cara com que trabalhou num emprego de verão há 18 anos.

 

— Exceto que eu agora sou Tina Howard Wallace — explicou a mulher de vestido preto. — Meu marido está por aí... em algum lugar. — Olhou vagamente em volta, derramou mais um pouco de bebida e engoliu o resto antes que acabasse. — Isto não é HORRÍVEL?— parece que o perdi.

 

Fitou-o carinhosa, especulativamente, e Bart mal pôde acreditar que aquela mulher lhe dera sua primeira prova de carne feminina — a viagem dos segundanistas da Grover Cleveland High School, há 109 anos. E além disso esfregando nele os seios através da blusa branca de algodão de marinheira...

 

— No riacho Cotter — disse ele em voz alta. Ela enrubesceu e soltou uma risadinha.

 

— Você se lembra, não há dúvida.

 

Os olhos dele desceram em um reflexo perfeito, involuntário, para a frente do vestido dela e ela riu agudamente. Ele sorriu novamente aquele sorriso alvar.

 

— Acho que o tempo passa mais rapidamente do que nós...

 

— Bart! — berrou Wally Hamner, abafando o blablablá geral da festa. — Hei, cara, estou realmente contente porque você pôde vir.

 

Wally cruzou a sala na direção deles no também a ser patenteado Ziguezague de Festa Walter Hamner. Ele era um homem magro, nesse momento quase calvo, usando uma impecável camisa listrada estilo 1962 e óculos de aros de osso. Apertou a mão de Walter, cuja empunhadura continuava tão forte quanto se lembrava.

 

— Estou vendo que conheceu Tina Wallace — disse Walter.

 

— Bem, nós nos conhecemos há muito tempo, desde,.. — disse, e sorriu embaraçado para Tina.

 

— Não conte aquilo a meu marido, seu menino levado. — Tina soltou um risinho. — Com licença, por favor. A gente se vê depois, Bart?

 

— Claro.

 

Ela desapareceu em volta de um grupo de pessoas reunidas em tomo de uma mesa cheia de comes-e-bebes e entrou na sala de estar. Inclinou a cabeça na direção das costas dela e disse:

 

— Onde é que você as encontra, Walter? Aquela garota foi minha primeira ereção. Lembra o programa “Isso É Sua Vida”.

 

Walter encolheu modestamente os ombros.

 

— Tudo faz parte do Empurrão do Prazer, Barton, meu velho. — Inclinou a cabeça na direção do saco de papel que ele trazia sob o braço. — O que é que há aí nesse saco?

 

— Southern Comfort. Você tem ginger ale aqui, não tem?

 

— Claro — respondeu Walter, mas fez uma careta. — Você vai realmente beber esse troço “descendo o rio Swanee”? Sempre pensei que você fosse um homem do uísque escocês.

 

— Sempre fui um homem que, em particular, bebia Comfort e ginger ale. Saí do armário onde estava escondido.

 

Walter sorriu.

 

— Mary está por aqui, cm algum lugar. Tem andado mais ou menos à sua procura. Pegue um drinque e vamos ver se a achamos.

 

— Ótimo.

 

Cruzou a cozinha dizendo oi a pessoas que conhecia vagamente e que davam a impressão de que não o conheciam absolutamente, e respondendo oi, como vai?, a pessoas que não se lembrava que o cumprimentaram primeiro. Fumaça de cigarro rolava majestosamente pela cozinha. A conversa reaparecia e desaparecia como estações de

 

...Freddy e fim não tinham suas folhas de ponto de modo que eu

 

...disse que a mãe dele morreu há muito pouco tempo e é provável que ele continue numa farra de choro se beber demais

 

...de modo que quando mandou raspar a pintura descobriu que era realmente uma peça muito boa, talvez pré-Revolução

 

...aquele marginalzinho veio até a porta, vendendo enciclopédias...

 

...um vestido lindíssimo

 

...bebeu tanto que quando foi pagar a conta vomitou em cima da recepcionista

 

Uma longa mesa com tampo de fórmica fora instalada em frente ao fogão da pia e já estava cheia de garrafas de bebida abertas e de copos em variados tamanhos e altura de líquido. Os cinzeiros já transbordavam com pontas de cigarros de filtro. Três baldes cheios de cubos de gelo haviam sido colocados na pia. Sobre o fogão, um grande pôster mostrando Richard Nixon usando um par de fones de ouvido. O fio dos fones desaparecia no reto de um jumento que aparecia na borda do desenho. A legenda dizia:

 

ASSIM OUVIMOS MELHOR!

 

À esquerda, um homem vestido com calças frouxonas e uma bebida em cada mão (um copo comum cheio do que parecia ser uísque e uma grande caneca cheia de cerveja) distraía com uma piada um grupo misto. “Aquele cara entrou no bar e lá estava aquele macaco sentado no tamborete ao lado dele. O cara pediu uma cerveja e quando o garçom a trouxe ele perguntou: ‘De quem é esse macaco? Bichinho bonitinho’. E o garçom disse: ‘Oh, é o macaco do pianista.’ De modo que o cara se virou...”

 

Preparou um drinque e olhou em volta à procura de Walt, mas ele fora até a porta cumprimentar mais alguns convidados — um jovem casal. O homem usava enorme boné de motorista, óculos contra vento e um velho guarda-pó de motorista antigo. Na frente do guarda-pó estava escrito:

 

CONTINUO A TENTAR!

 

Várias pessoas riam às gargalhadas c Walter uivava de prazer. Qualquer que fosse a piada, parecia que ela retroagia a muito tempo.

 

— ...e o cara foi até onde estava o pianista e disse: “Sabe que seu macaco mijou na minha cerveja?” E o pianista respondeu: “Não, mas cante uns compassos e eu improviso a partir daí”.

 

Explosão calculada de risos. O homem de calça frouxona deu um gole no uísque e esfriou-o com um gole de cerveja.

 

Bebida na mão, entrou vagarosamente na sala de estar penumbrenta, esgueirando-se por trás das costas de Tina Howard Wallace antes que ela pudesse vê-lo e atraí-lo para um longo jogo de Onde Estarão Eles Agora. Ela parecia, pensou, o tipo de pessoa que podia contar com detalhes a vida de colegas de escola que haviam se dado mal na vida — divórcio, problemas nervosos e transgressões das leis seriam o forte dela — e teria transformado em não-pessoas aquelas que haviam obtido sucesso.

 

Alguém pusera no estéreo o inevitável álbum de rock and roll da década de 50 e talvez 15 casais estavam dançando, mal e risonhamente. Viu Mary dançando com um homem alto e magro que conhecia mas que não conseguiu identificar. Jack? John? Jason? Sacudiu a cabeça. O nome não queria vir. Mary usava um vestido de festa que ele nunca vira antes. Era abotoado de lado e ela deixara desabotoados botões suficientes para mostrar uma fresta sexy um pouco acima do joelho. Esperou que surgisse algum sentimento forte — ciúme ou perda, até mesmo o desejo habitual — mas nenhum apareceu. Tomou um gole da bebida.

 

Ela virou a cabeça e viu-o. Ele ergueu um dedo imparcial numa saudação: Continue e termine a dança — mas ela interrompeu-a e aproximou-se, trazendo consigo o par.

 

— Que bom que você veio, Bart — disse ela, erguendo a voz para ser ouvida acima dos risos, conversas e música do estéreo. — Lembra-se de Dick Jackson?

 

Bart estendeu a mão e o homem magro apertou-a.

 

— Você e sua esposa moraram em nossa rua há cinco... não, sete anos. Não foi isso?

 

Jackson inclinou a cabeça, confirmando.

 

— Nós agora estamos morando em Willowood.

 

Um conjunto residência, pensou ele. Tornara-se muito sensível à geografia e estratificação das habitações.

 

— Ótimo. Continua trabalhando para a Pieis?

 

— Não. Agora tenho meu próprio negócio. Dois caminhões. Transportadora Tri-Estadual. Hei, se aquela sua lavanderia precisar algum dia de transporte durante o dia... produtos químicos ou qualquer outro tipo de material...

 

— Eu não trabalho mais para a lavanderia — disse ele, e viu Mary encolher-se ligeiramente, como se alguém houvesse tocado em um velho ferimento.

 

— Não? O que é que você está fazendo agora?

 

— Autônomo — respondeu ele, e sorriu. — Tomou parte naquela greve dos transportadores independentes?

 

O rosto de Jackson, já sombrio por efeito do álcool, escureceu ainda mais.

 

— Ora se tomei. E surrei pessoalmente um cara que não quis entrar na linha. Você sabe o que aqueles calhordas do Ohio estão cobrando pelo diesel? Nada menos que 31,9! Isso reduz minha margem de lucro de 12% para 9%. E toda a despesa de manutenção dos caminhões tem que sair desses 9%. Para nada dizer daquele limite besta de velocidade...

 

E continuou discorrendo sobre os perigos que o transportador independente corria em um país que, de repente, ficara com um caso grave de eólicas de energia. Bart escutava, inclinava a cabeça nas ocasiões certas e tomava pequenos goles. Mary pediu licença c foi até a cozinha pegar um copo de ponche. O homem vestido com guarda-pó de automobilista de antanho estava fazendo uma exibição exagerada de Charleston imitando os Irmãos Everly e as pessoas riam e aplaudiam.

 

A esposa de Jackson, uma moça seiúda, de aparência musculosa, cabelos cor-de-cenoura, aproximou-se e foi apresentada. Estava bem perto do ponto de cambaleio. Os olhos dela pareciam sinais luminosos numa máquina de fliperama. Apertou-lhe a mão. sorriu amarelo, e disse para Dick Jackson:

 

— Amor, acho que vou vomitar. Onde é que fica o banheiro?

 

Jackson levou-a dali. Bart deu a volta em tomo da pista de dança e sentou-se em uma cadeira num dos lados. Terminou o drinque. Mary estava demorando para voltar. Alguém devia tê-la encurralado numa conversa.

 

Enfiou a mão num bolso interno, tirou um maço de cigarros e acendeu um. Nesse momento, só fumava em festas. Aquilo era uma grande vitória cm comparação com a situação de anos atrás, quando fizera parte da brigada do câncer, de três maços por dia.

 

Estava na metade do cigarro e olhando ainda para a porta da cozinha, à espera de Mary, quando olhou por acaso para os dedos e notou como eles eram interessantes. Era interessante como o indicador e o médio da mão direita sabiam exatamente como segurar o cigarro, como se tivessem fumado durante toda a vida.

 

O pensamento pareceu-lhe tão engraçado que teve que sorrir.

 

Aparentemente, estivera examinando os dedos já há muito tempo quando notou um gosto diferente na boca. Não ruim, apenas diferente. A saliva parecia ter engrossado. E as pernas... as pernas pareciam um pouco irrequietas, como se quisessem sapatear com a música, como se sapatear com a música as aliviasse, as fizesse sentir calmas e apenas pernas novamente...

 

Sentiu um pouco de medo com a maneira como o pensamento, que começara de maneira tão comum, ziguezagueara numa direção inteiramente nova, como um homem perdido em uma grande casa e que subia uma alta escada de criiiistal...

 

Ali estava aquela coisa outra vez e era efeito, com toda probabilidade, do comprimido que tomara, do comprimido de Olivia, sim, isso mesmo. E essa não era uma maneira interessante de dizer cristal? Criiistal emprestava um som de lantejoulas tilintando, como se fosse um costume de artista de striptease...

 

Sorriu astuciosamente e olhou para o cigarro, que lhe pareceu espantosamente branco, espantosamente redondo, espantosamente simbólico de todo o conforto e riqueza da América. Só na América os cigarros tinham um gosto tão bom. Tirou uma baforada. Maravilhoso. Pensou em todos os cigarros da América que saíam das linhas de produção de Winston-Salem, uma plelora de cigarros, uma cornucópia interminavelmente pura e branca deles. Era a mescalina, sem dúvida. Estava iniciando a viagem. E se as pessoas soubessem o que estivera pensando sobre a palavra cristal (conhecida também pela alcunha de criiiistal), elas inclinariam a cabeça e bateriam com o dedo nela: Isso mesmo, ele está biruta, isso mesmo. Doido de pedra. De repente, teve vontade de que Sal Magliore estivesse ali. Juntos, ele e Sally Zarolho discutiriam todas as facetas dos negócios da Organização. Discutiriam velhas putas e assassinatos. Mentalmente, viu-se em companhia de Sally Zarolho comendo linguini em um pequeno ristoranle italiano, de paredes de tom escuro e mesas de madeira riscadas de cicatrizes, a trilha sonora de fundo tocando os acordes de O Poderoso Chefão.

 

— Criiiistal — disse baixinho, e sorriu largamente.

 

Achou que estivera sentado ali, pensando numa coisa e noutra, durante muito tempo, mas nenhuma cinza, absolutamente, se formara no cigarro. Ficou atônito. Tirou outra baforada.

 

— Bart?

 

Ergueu a vista. Mary, e trazia um canapé pari ele. Sorriu-lhe.

 

— Sente aí. Isso é para mim?

 

— É...

 

Entregou-lhe o canapé, um sanduíche triangular com alguma coisa rosada no meio. De repente, ocorreu-lhe que Mary ficaria assustada, horripilada, se soubesse que ele estava numa viagem. Poderia chamar uma equipe de socorro, a polícia, só Deus sabe quem mais. Tinha que se comportar normalmente. Mas o pensamento de comportar-se normalmente fê-lo sentir-se mais estranho do que nunca.

 

— Como isso depois — disse, e guardou o sanduíche no bolso da camisa.

 

— Bart, você está bêbado?

 

— Apenas um pouquinho — respondeu ele.

 

Podia ver-lhe os poros no rosto. Não conseguia lembrar-se de tê-los visto antes com tanta clareza. Todos aqueles pequeninos buracos, como se Deus fosse um cozinheiro e ela uma cobertura de bolo. Soltou uma risadinha e a carranca cada vez maior dela fê-lo dizer:

 

— Ouça, não fale.

 

— Falar?

 

A carranca adquiriu uma expressão confusa.

 

— Sobre o Produto Quatro.

 

— Mas o quê, em nome de Deus, você está...

 

— Vou ter que ir ao banheiro — disse ele. — Volto logo.

 

Afastou-se sem olhá-la, mas sentiu a carranca irradiando-se do rosto dela em ondas, como o calor de um forno de microondas. Ainda assim, se não a olhasse, era possível que ela não adivinhasse. Neste, o melhor de todos os mundos possíveis, tudo era possível, até mesmo escadas de cristal. Sorriu carinhosamente. A palavra tornara-se uma velha amiga.

 

A viagem até o banheiro transformou-se, de alguma maneira, em uma odisséia, em um safári. O barulho da festa parecia ter adquirido um ritmo cíclico. PARECIA surgir gradualmente e DESAPARECER gradualmente em palavras DE QUATRO SÍLABAS E ATÉ MESMO O ESTÉREO VINHA e IA. Murmurou palavras para pessoas que pensava que conhecia mas recusou-se a aceitar qualquer gambito de conversa. Simplesmente apontou para a entrepema, sorriu e continuou a andar. E deixou para trás um bocado de rostos perplexos. Por que é que nunca há uma festa só de desconhecidos quando a gente precisa de uma? disse a si mesmo.

 

O banheiro estava ocupado. Esperou do lado de fora pelo que lhe pareceram horas e quando finalmente entrou não conseguiu urinar, embora parecesse querer. Olhou para a parede acima do vaso e ela estava se abaulando e afundando em um ritmo cíclico de quatro compassos. Deu descarga, mesmo que não tivesse urinado, tendo em vista a possibilidade de alguém estar escutando e observou a água girar e desaparecer do vaso. Notou nela uma sinistra coloração rosada, como se a última pessoa a usar o vaso tivesse urinado sangue. Perturbador.

 

Deixou o banheiro e a festa engolfou-o novamente. Rostos surgiram e sumiram como se fossem balões flutuantes. Mas a música era boa. O bom velho Elvis. Continue a cantar seu rock, Elvis, continue a cantar.

 

O rosto de Mary apareceu à sua frente e ficou parado, parecendo preocupado.

 

— Bart, o que é que está havendo com você?

 

— Havendo? Não está havendo nada. — Estava espantado, atônito. Suas palavras haviam saído da boca como uma série visual de notas musicais. — Estou tendo uma alucinação.

 

Disse isso em voz alta, mas falando apenas para si mesmo.

 

— Bart, o que foi que você tomou?

 

Nesse momento ela parecia realmente assustada.

 

— Mescalina — disse ele.

 

— Oh, Deus, Bart. Drogas? Por quê?

 

— Por que não? — respondeu, não para ser insolente mas porque foi a única resposta em que conseguiu pensar rapidamente. As palavras saíram novamente sob a forma de notas musicais, mas, desta vez, algumas delas traziam bandeirolas.

 

— Quer que eu o leve a um médico?

 

Fitou-a, surpreso, e começou a pensar seriamente na pergunta a fim de verificar se ela possuía quaisquer conotações ocultas, ecos freudianos de asilos de alienados. Soltou outra risadinha e o riso escorreu musicalmente da boca e ficou em frente aos seus olhos, notas de criiiistal em linhas e espaços, interrompidas por travessões e pausas.

 

— Por que é que eu quereria um médico? — perguntou ele, escolhendo cada palavra. A pergunta foi uma semínima aguda. — É exatamente como ela disse. Não tão boa, não tão ruim. Mas interessante.

 

— Quem? — perguntou ela. — Quem lhe disse? Onde foi que você conseguiu isso? O rosto dela estava mudando, parecendo tornar-se encapuçado e reptiliano.

 

Mary, como um detetive de polícia em um filme de mistério barato, lançando a luz nos olhos do suspeito — Vamos, McGonigal, como quer que você queira, numa boa ou na bruta — e em seguida, pior ainda, começou a lembrar-lhe desagradavelmente os contos de FI.P. Lovecraft que lera em criança, Os Mitos de Cthulu, em que seres humanos inteiramente normais se transformavam em coisas piscosas, rastejantes, por insistência dos Antigos. O rosto de Mary começou a parecer escamoso, vagamente semelhante a uma enguia.

 

— Esqueça — disse ele, assustado. — Por que você não me deixa em paz? Deixe de me encher o saco. Eu não a estou incomodando.

 

O rosto dela recuou, tornou-se Mary novamente, um rosto magoado e desconfiado, e ele arrependeu-se. A festa vibrava e rodopiava em tomo dele.

 

— Tudo bem, Bart — respondeu ela baixinho. — Prejudique-se da maneira como quiser. Mas, por favor, não me embarace. Posso lhe pedir isso?

 

— Claro que você po...

 

Mas ela não esperou a resposta. Deixou-o, entrando rapidamente na cozinha, sem olhar para trás. Ele sentiu pena, mas ficou também aliviado. Mas, suponhamos que uma outra pessoa quisesse conversar? Ela saberia, também. Não poderia conversar normalmente, não nesse estado. Aparentemente, não podia nem mesmo enganar as pessoas, levando-as a pensar que estava bêbado.

 

— Corrrrreto — disse, arrastando ligeiramente os erres no céu da boca.

 

Desta vez as notas musicais saíram em linha reta, todas elas notas apressadas com bandeirolas. Poderia criar notas a noite inteira e sentir-se inteiramente feliz e não se importaria. Mas não ali, onde qualquer pessoa poderia aproximar-se e puxar uma conversa. Precisava de um lugar privado, onde pudesse ouvir-se pensar. A festa dava-lhe a impressão de estar atrás de uma enorme queda d’água. Era difícil pensar com todo aquele som em volta. Era melhor procurar um remanso. Levando, talvez, um rádio para escutar. Achou que ouvir música lhe ajudaria os pensamentos e um bocado de coisas em que pensar. Montes de coisas.

 

Além do mais, estava perfeitamente convencido de que pessoas haviam começado a olhar em sua direção. Mary dera o serviço. Estou preocupada. Bart anda tomando mescalina. O pessoal continuaria a fingir que estava dançando, a fingir que bebia e conversava, mas estaria na realidade observando-o por trás das mãos, comentando-o em voz baixa. Tinha certeza. Isso era claro como criiistal.

 

Um homem passou por ele, levando um drinque num copo comum e cambaleando ligeiramente. Puxou o paletó-esporte do homem e perguntou cm voz rouca:

 

— O que é que estão dizendo de mim?

 

O homem lançou-lhe um sorriso desligado, soprou-lhe na cara um quente bafo de uísque e disse:

 

— Vou anotar isso — e continuou seu caminho.

 

Chegou finalmente ao gabinete de Walter Hamner (não podia dizer quanto tempo depois) e quando fechou a porta, os sons da festa tornaram-se, graças a Deus, abafados. Estava ficando com medo. O troço que tomara não chegara ao auge ainda, continuava simplesmente a produzir efeitos cada vez mais fortes. Achou que cruzara a sala de estar num piscar de olhos, em outra piscadela passara pelo quarto de dormir, onde haviam sido guardados casacos e chapéus, e descera o corredor numa terceira. O colar da existência normal, atenta, soltara-se, espalhando contas de realidade em todas as direções. A continuidade fora quebrada. Seu senso de tempo estava destruído. E se ele nunca descesse? E se ficasse assim para sempre? Pensou em enroscar e dormir até aquilo passar, mas não sabia se poderia fazer isso. E se pudesse, só Deus sabia que sonhos teria. Nesse momento, apavorava-o a maneira leviana, como de quem obedece a um capricho, como tomara o comprimido. Aquilo não era como ficar bêbado, não havia um núcleo pequeno de sobriedade pestanejando e piscando no seu centro profundo, aquela parte que nunca se embebe-dava. Estava embriagado até a alma.

 

Mas era melhor ali. Talvez pudesse, sozinho, ali, controlar aquilo. Pelo menos, se fizesse alguma bobagem ele não...

 

— Oi, você aí.

 

Saltou, sobressaltado, e olhou para um canto. Viu um homem sentado em uma das poltronas de espaldar alto, junto às estantes. Na verdade, havia um livro aberto no colo daquele homem. Ou não era um homem? A única luz da sala, um abajur sobre uma mesinha redonda, estava à esquerda da pessoa que falara, sua luz lançando longas sombras em seu rosto, sombras tão compridas que os olhos deie eram cavernas escuras, o rosto desenhado em linhas sardônicas e maléficas. Por um momento, pensou que dera de cara com Satanás, sentado no gabinete de Wally Hamner. Mas logo em seguida a figura se levantou e viu que era um homem, apenas um homem. Era um tipo alto, talvez de um sessenta anos de idade, olhos azuis e um nariz que fora repetidamente socado em lutas perdidas com a garrafa. Mas não tinha um drinque na mão nem havia nenhum na mesinha.

 

— Outro peregrino, pelo que vejo — disse o homem, estendendo a mão. — Phil Drake.

 

— Barton Dawes — respondeu, ainda atordoado de medo.

 

Trocaram um aperto de mãos. A mão de Drake era torcida e mostrava cicatrizes de algum velho ferimento — uma queimadura, talvez. Mas não se importou em apertá-la. Drake. O nome era conhecido, mas não conseguia lembrar-se de onde o ouvira antes.

 

— Você está bem? — perguntou Drake. — Parece um pouco...

 

— Estou baratinado — respondeu. — Tomei um pouco de mescalina e, poxa, estou doidão.

 

Olhou de relance para a estante e viu os livros entrando e saindo das prateleiras. Não gostou. Aquilo lembrava demais a pulsação de um coração gigante. Não queria mais ver coisas como aquela.

 

— Entendo — disse Drake. — Sente-se. Fale-me sobre isso.

 

Olhou para Drake, ligeiramente espantado e depois sentiu um imenso alívio. Sentou-se.

 

— Sabe alguma coisa sobre mescalina? — perguntou.

 

— Um pouco. Um pouco. Eu tenho um café no centro. A garotada entra, vindo da rua, viajando no embalo de alguma coisa... Está tendo uma boa viagem? — perguntou polidamente.

 

— Boa e má — retrucou ele. — Coisa... da pesada. Uma boa palavra, é assim que a usam.

 

— Sim, é assim.

 

— Eu estava ficando com um pouco de medo. — Olhou pela janela e viu uma longa estrada celestial estendendo-se pelo domo preto do céu. Desviou casualmente a vista, mas não pôde evitar passar a língua pelos lábios. — Diga-me uma coisa... quanto tempo isso dura geralmente?

 

— Há quanto tempo você deixou cair?

 

— Cair?

 

A palavra caiu-lhe da boca em forma de letras, tombou no carpete e dissolveu-se.

 

— Quando foi que tomou a bolinha?

 

— Oh... mais ou menos às 8:30h.

 

— E agora são... — consultou o relógio — um quarto para as l0h...

 

— Um quarto para as 10h? Só isso?

 

Drake sorriu.

 

— O senso de tempo se transforma em borracha, não é? Acho que você vai voltar ao normal por volta de l:30h.

 

— É mesmo?

 

— Acho que sim. Você provavelmente atingiu o pico agora. É uma experiência muito visual?

 

— É... Um pouco visual demais.

 

— Mais coisas a ver do que o olho do homem foi feito para contemplar — disse Drake com um sorriso peculiar, torto.

 

— Sim, é isso. Exatamente isso. — O senso de alívio que sentia na presença desse homem era intenso. Sentiu-se salvo. — O que é que o senhor faz, além de conversar com homens de meia-idade que caíram no buraco do coelho?

 

Drake sorriu.

 

— Gostei dessa. Geralmente, pessoas que estão em um barato de mescalina ou ácido ficam confusas, às vezes incoerentes. Passo a maior parte de minhas noites no Disque Ajuda. Nas tardes dos dias úteis, fico no café de que falei, um lugar chamado Drop Down Mamma. A maior parte de minha clientela é composta de viciados das ruas e mendigos alcoólatras. Pela manhã, simplesmente ando pelas ruas, conversando com meus paroquianos, se estão acordados. Nos intervalos, levo e trago recados da cadeia da cidade.

 

— O senhor é pastor?

 

— Chamam-me de padre das ruas. Muito romântico. Malcolm Boyd, cuidado. Em certa ocasião, fui mesmo padre autêntico.

 

— Não é mais?

 

— Deixei a madre igreja — respondeu Drake.

 

Disse isso tranqüilamente, mas com uma espécie de moral finalidade nas palavras. Ele quase pôde ouvir o estridor de portas de ferro cerrando-se para sempre.

 

— Por que fez isso? Drake deu de ombros.

 

— Não tem importância. E você? Como foi que conseguiu a mescalina?

 

— De uma moça que ia para Las Vegas. Uma boa moça, acho. Ela me ligou no dia de Natal.

 

— Pedindo ajuda?

 

— Acho que sim.

 

— Ajudou-a?

 

— Não sei. — Sorriu manhosamente. — Pai, fale-me sobre minha alma imortal. Drake contorceu-se.

 

— Eu não sou seu pai.

 

— Esqueça, então.

 

— O que é que você quer saber a respeito de sua “alma”?

 

Ele olhou para os dedos. Quando queria, podia emitir raios de luz pelas pontas. O fato deu-lhe uma embriagante sensação de poder.

 

— Quero saber o que acontecerá se eu cometer suicídio. Drake mexeu-se, contrafeito.

 

— Você não quer falar em matar-se enquanto está viajando. É a droga que fala, não você.

 

— Eu falo — disse ele. — Responda.

 

— Não posso. Não sei o que acontecerá com sua “alma”, se você cometer suicídio. Sei, porém, o que acontecerá com seu corpo. Ele apodrecerá.

 

Atordoado com essa idéia, voltou a olhar novamente para as mãos. Obedientemente, elas pareceram rachar e se desfazerem em pó, lembrando-lhe aquele conto de Poe, “O Estranho Caso do sr. Valdemar”. Que noite! Poe e Lovecraft. A. Gordon Pym, mais alguém? E Abdul Allhazred, o Árabe Louco? Ergueu a vista, um pouco desconcertado, não realmente amedrontado.

 

— O que é que seu corpo está fazendo? — perguntou Drake.

 

— Alin?

 

Franziu as sobrancelhas, tentando extrair sentido da pergunta.

 

— Há duas viagens — explicou Drake. — Uma viagem mental e outra corporal. Sente náuseas? Dor? Doente de qualquer maneira?

 

Ele consultou o corpo.

 

— Não — disse. — Eu me sinto simplesmente... ocupado.

 

Riu um pouco ao pronunciar a palavra. Drake sorriu. Era uma boa maneira de descrever como se sentia. O corpo parecia-lhe muito ativo, mesmo parado. Muito leve, mas não etéreo. Na verdade, nunca se sentira tão carnudo, tão consciente da maneira como se entrelaçavam seus processos mentais e o corpo físico. Nada havia separando-os. Não se podia descascar um de cima do outro. A gente ficava entalado com isso, cara. Integração. Entropia. A idéia explodiu sobre ele como se fosse um rápido amanhecer no trópico. Ficou pensando nisso à luz de sua atual situação, tentando distinguir o padrão, se havia. Mas...

 

— Mas há a alma — disse em voz alta.

 

— O que é que tem a alma? — perguntou em tom cordial Drake.

 

— Se a gente mata o cérebro, mata o corpo — disse ele lentamente. — E vice-versa. Mas o que é que acontece com a alma? Essa é a carta desconhecida, pa... sr. Drake.

 

Drake observou:

 

— Nesse sono de morte, que sonhos podem ocorrer? Hamlet, sr. Dawes.

 

— O senhor acha que a alma continua a viver? Há sobrevivência? Os olhos de Drake tornaram-se sombrios.

 

— Sim — disse — acho que há sobrevivência... de alguma forma,

 

— E o senhor acha que o suicídio é um pecado mortal que condena a alma ao inferno?

 

Drake ficou calado durante muito tempo. Finalmente, respondeu:

 

— O suicídio é errado. Acredito nisso de todo o coração.

 

— Isso não responde à minha pergunta. Drake levantou-se.

 

— Não tenho a menor intenção de respondê-la. Não trato mais de metafísica. Sou um civil. Quer voltar para a festa?

 

Pensando no barulho e na confusão, ele sacudiu a cabeça.

 

— Quer ir para casa?

 

— Eu não poderia guiar. Teria medo de guiar.

 

— Eu guio para o senhor.

 

— Guia? De que maneira voltaria para aqui?

 

— Telefono de sua casa pedindo um táxi. A véspera de Ano-Novo é uma noite muito boa para táxis.

 

— Isso seria bom — respondeu ele, agradecido. — Acho que gostaria de ficar sozinho. Gosto de assistir à TV.

 

— Fica em segurança sozinho? — perguntou sombriamente Drake.

 

— Ninguém fica — respondeu ele com igual gravidade, e ambos riram.

 

— Tudo bem. Quer despedir-se de alguma pessoa?

 

— Não. Há por aqui uma porta dos fundos?

 

— Acho que podemos encontrar uma.

 

Não falou muito no caminho para casa. Observar as luzes da rua passarem era quase toda a excitação que podia agüentar. Quando passaram pelas obras da estrada, pediu a opinião de Drake.

 

— Estão construindo novas estradas para monstros sugadores de gasolina, enquanto nesta cidade crianças morrem de fome — disse secamente Drake. — O que é que eu penso? Penso que é um crime horrível.

 

Não se lembrou com muita clareza do resto da noite. Deu a Drake seu endereço. Drake comentou que todos os moradores daquela rua deviam estar em alguma feita ou haviam ido dormir cedo. Ele não comentou. Drake chamou um táxi. Assistiram TV durante algum tempo, sem conversar — Guy Lombardo no Waldorf Astorifl, tocando a música mais doce deste lado de cá do céu. Guy Lombardo, pensou, eslava parecendo iniludivelmente francês.

 

O táxi chegou um quarto para meia-noite. Drake perguntou-lhe novamente se ele ia ficar bem.

 

— Vou, acho que o efeito está passando.

 

Estava, realmente. As alucinações começavam a escorrer para o fundo da mente. Drake abriu a porta da frente e levantou a gola do casaco.

 

— Deixe de pensar em suicídio. Isso é covardia.

 

Ele sorriu, inclinou a cabeça, mas nem aceitou nem rejeitou o conselho de Drake. Tal como tudo mais naqueles dias, simplesmente reservou-o para exame futuro.

 

— Feliz Ano-Novo — disse.

 

— O mesmo para o senhor, sr. Dawes. O táxi buzinou impacientemente.

 

Drake desceu a calçada, o táxi afastou-se, as luzes amarelas brilhando na capota.

 

Voltou à sala de estar e sentou-se em frente ao aparelho de TV. A estação mudara de Guy Lombardo para a Times Square, onde a bola luminosa se encontrava equilibrada no alto do Edifício Allis-Chalmers, pronta para iniciar a descida em 1974. Sentiu-se cansado, drenado, finalmente sonolento. A bola desceria logo e ele entraria no ano novo em meio a uma viagem imbecil. Em algum lugar no país um bebê de Ano-Novo estava empurrando a cabeça melada, coberta pela placenta, para fora do útero da mãe e entrando neste que era o melhor dos mundos possíveis. Na festa de Walter Hamner as pessoas estariam fazendo a contagem regressiva, copos na mão. Resoluções de Ano-Novo iam logo ser testadas. A maioria se revelaria tão inúteis como toalhas de papel molhadas. Obedecendo a um impulso do momento, tomou uma resolução e levantou-se, a despeito do cansaço. O corpo lhe doía e a espinha parecia vidro. Devia ser alguma espécie de ressaca. Entrou na cozinha e tirou o martelo da prateleira. Quando voltou à sala, a bolha brilhante descia pelo mastro. A tela se dividiu, mostrando a bola à direita e os festeiros no Waldorf Astória, à esquerda, contando:

 

— Oito... sete... seis... cinco...

 

Uma gorda dama da sociedade viu-se de relance num monitor, pareceu surpresa e em seguida acenou para o país.

 

A bola chegou ao fundo e um letreiro iluminou-se no alto do Edifício Allis-Chalmers. O letreiro dizia:

 

1974

 

No mesmo instante, lançou o martelo e a tela da IV explodiu, vomitando vidro no carpete. Seguiu-se um chiado de fios quentes, mas nenhum fogo. Simplesmente para ter certeza de que a TV, por vingança, não o assaria durante a noite, puxou a tomada com o pé.

 

— Feliz Ano-Novo — disse baixinho e deixou o martelo cair no tapete.

 

Deitou-se no sofá e dormiu quase no mesmo instante. Dormiu com todas as luzes acesas e não sonhou.

 

 

 

PARTE TRÊS

 

 

 

JANEIRO

 

Se não encontrar um lugar pra morar, Oh, eu vou sumir...

 

— roixing stones

 

 

 

5 de janeiro de 1974

 

O que aconteceu no supermercado Shop’n’Save naquele dia foi a única coisa que lhe ocorrera em toda a vida que, na verdade, parecia planejada e senciente, e não aleatória. Era como se um dedo invisível houvesse escrito uma mensagem em um semelhante expressamente para que ele a lesse.

 

Gostava de fazer compras. Era uma atividade muito tranqüilizadora, muito sensata. Apreciava muito fazer coisas sensatas após sua experiência com a mescalina. No dia do Ano-Novo só acordara à tarde e passara o resto do dia vagueando sem destino pela casa, sentindo-se aturdido e estranho. Pegara coisas e as examinara, sentindo-se como lago examinando o crânio de Yorick. Em menor grau, a sensação durara até o dia seguinte e mesmo um dia depois disso.

 

Mas, outro dia passado, o efeito se dissipara para sempre. Sentia a mente espanada e limpa, como se a houvesse virado de cabeça para baixo, esfregado e polido por alguma faxineira interna maniacamente ativa. Não se embebedou e por isso não chorou. Quando Mary lhe telefonara, cheia de dedos, por volta de 7h da noite do primeiro dia, conversara com ela calma e normalmente e lhes pareceu que a situação de ambos não mudara muito. Estavam brincando de estátuas, cada um esperando que o outro se movesse primeiro. Mas ela se mexera um pouco e falara em divórcio. Apenas a possibilidade, o tremor mais leve de um dedo, mas movimento apesar disso. Não, a única coisa que realmente o perturbou após a mescalina foi o cinescópio quebrado do aparelho Zenith em cores. Não podia compreender por que fizera aquilo. Quisera aquela TV durante anos, mesmo que seus programas fossem antigos que haviam sido filmados em preto e branco. Mas não era tanto o ato que o perturbava como a prova persistente do mesmo — o vidro quebrado, a fiação exposta. Por que você fez isso? Eu lhe servi fielmente e você me quebrou. Nunca lhe fiz mal e você me esmagou. Eu estava indefeso. E era também um terrível lembrete do que queriam fazer com sua casa. Finalmente, pegou uma velha colcha e cobriu-a. Isso tornou as coisas melhores e piores. Melhor porque não podia vê-la, pior porque era como ter um cadáver amortalhado em casa. Jogou fora o martelo como se fosse a arma de um assassino.

 

Mas ir ao supermercado era uma coisa boa, tal como tomar café no Benjy’s Grill ou levar o LTD à lavagem automática, ou ainda ir à banca de Henry no centro comprar seu exemplar do Time. O Shop’n’Save era muito grande, iluminado com barras fluorescentes embutidas no teto e cheio de senhoras que empurravam carrinhos, ralhavam com crianças e fechavam a cara para tomates embrulhados em plástico transparente que não permitiam um bom aperto. Música ambiental descia, discreta, das grelhas dos alto-falantes, penetrando suavemente nos ouvidos, a ponto de quase não ser ouvida.

 

Naquele dia, um sábado, o S&S estava cheio de clientes de fim-de-semana e havia por ali mais homens do que o costume, acompanhando as esposas e aborrecendo-as com sugestões tolas de primeiranistas. Com olhos benignos observou os maridos, as esposas, e a questão de suas várias ligações. A luz clara do dia entrava pelas grandes vitrines fronteiras, espalhando berrantes quadrados de luz junto às caixas registradoras, ocasionalmente tocando os cabelos de uma mulher e transformando-os em um halo. As coisas não pareciam tão graves quando se desenvolviam assim, mas ficavam sempre piores à noite.

 

Encheu o carrinho com as compras habituais de um homem lançado bruscamente na função de dono-de casa solitário: espaguete, molho de carne em uma jarra de vidro, 14 pratos de comida congelada, uma dúzia de ovos, manteiga, e um saco de laranjas de umbigo para protegê-lo contra o escorbuto.

 

Ia descendo o corredor do meio cm direção às caixas quando, talvez, Deus lhe falou. A sua frente seguia uma mulher usando calça comprida azul-clara e uma suéter azul-marinho tecida em ponto de corda. Possuía cabelos muito louros. Tinha talvez 35 anos de idade, era bonitona de uma maneira franca, alerta. Nesse momento, produziu um som esquisito de gorgulho, um grasnado no fundo da garganta e cambaleou. A garrafa plástica de mostarda que estivera segurando caiu no chão e rolou, mostrando repetidamente uma bandeira vermelha e a palavra FRENCHS.

 

— Moça? — disse. — A senhora está se sentindo mal?

 

A mulher caiu para trás e a mão esquerda, que estendera para se firmar, varreu uma prateleira e jogou no chão uma dezena de latas de café, cada uma das quais dizia:

 

MAXWELL HOUSE

 

Bom Até a Última Cota

 

A coisa aconteceu com tal rapidez que não ficou realmente assustado — não por si mesmo, de qualquer modo — mas viu uma coisa que não esqueceu e que mais tarde lhe obcecou os sonhos. Os olhos dela haviam rolado para cima, exatamente como fizera Charlie em suas crises.

 

A mulher tombou no chão, arquejando fracamente. Os pés, calçados de botas de couro, tamborilaram no chão. A mulher que vinha imediatamente atrás dele soltou um grito baixo. Um empregado que estivera marcando preços em latas de sopa subiu correndo o corredor, deixando de lado a maquininha. Duas das caixas vieram até o começo do corredor c olharam para a cena, olhos esbugalhados.

 

Ouviu suas próprias palavras, dizendo:

 

— Acho que ela está tendo um ataque epiléptico.

 

Mas não era. Era algum tipo de hemorragia cerebral e um médico que estivera por ali fazendo compras com a esposa disse que ela estava morta. O jovem médico parecia amedrontado, como se houvesse acabado de compreender que sua profissão o perseguiria até a cova, tal como algum vingativo monstro de filme de horror. Ao terminar o exame, uma multidão de tamanho médio já se formara em torno da jovem mulher caída entre as latas de café, que fora a última parte do mundo sobre a qual exercera sua prerrogativa humana de rearramar. Nesse momento, ela se tornara parte do outro mundo e seria rearrumada por outros seres humanos. C) carrinho que ela usara estava cheio pela metade com as provisões de uma semana, e ao ver as latas, caixas e carnes embrulhadas ele sentiu um agudo e profundo terror.

 

Olhando para o carrinho da mulher, perguntou a si mesmo o que fariam com aqueles produtos. Voltariam às prateleiras? Seriam guardados junto ao escritório do gerente até que fossem pagos, numa prova de que a dona da casa morrera no cumprimento do dever?

 

Alguém chamara um policial, que vinha abrindo caminho pelo meio da multidão, reunida perto das caixas.

 

— Atenção — disse o policial, em tom importante. — Dêem um pouco de ar à mulher.

 

Como se ela pudesse usá-lo.

 

Virou-se e rompeu novamente a multidão, usando os ombros. Sua calma dos últimos cinco dias fora despedaçada e, provavelmente, para sempre. Houvera jamais um aviso mais claro? Seguramente, não. Mas o que isto significava? O quê?

 

Ao chegar à casa, guardou os pratos prontos no freezer e preparou um drinque forte, o coração batendo forte no peito. Durante toda a volta para casa estivera tentando lembrar-se do que haviam feito com as roupas de Charlie.

 

Haviam dado seus brinquedos à Goodwill Shop, em Norton, transferido a conta corrente dele, que tinha um saldo de mil dólares (dinheiro para a faculdade — metade de tudo que Charlie recebera de parentes em aniversários e Natais e fora depositado naquela conta, a despeito de seus uivos de protesto) para a conta conjunta deles. Haviam queimado as roupas de cama dele seguindo conselho de Mamma Jean — ele mesmo não compreendera aquilo mas não tivera coragem de protestar, seu mundo caíra e ia discutir para salvar o colchão de molas da cama? Mas as roupas eram uma coisa inteiramente diferente. O que haviam eles feito com as roupas de Charlie?

 

A questão perseguiu-o a tarde toda, deixando-o agitado e uma vez quase telefonou para Mary a fim de perguntar. Mas aquilo seria a última palha, não? Depois disso, ela não teria que alimentar mais dúvidas sobre seu estado de sanidade mental.

 

Pouco antes do anoitecer, subiu para o pequeno meio-sótão, que era alcançado através de um alçapão no teto do armário embutido do closet do quarto do casal. Tivera que subir numa cadeira, antes de se esgueirar para cima. Fazia muito, muito tempo, que não estivera ali, mas a única lâmpada de 100W sem globo ainda funcionava. Coberta de poeira e teias de aranha, mas ainda acendia.

 

Abriu ao acaso uma caixa empoeirada e descobriu todas os seus livros da escola secundária e faculdade, arrumados com capricho. Gravadas nas capas de cada anuário da escola secundária, leu as palavras:

 

THE CENTURION

 

Bay High School...

 

Nas capas dos anuários da faculdade (mais pesados, encadernação mais luxuosa) reviu aquelas palavras:

 

O PRISMA

 

Para Não Esquecer.

 

Abriu em primeiro lugar os anuários da escola secundária, folheando as páginas assinadas finais (“Norte, sul, por toda parte? / Sou a garota que bagunçou seu anuário / Escrevendo de cabeça para baixo — A.F.A., Connie”), e em seguida as fotografias de professores há muito desaparecidos, imóveis atrás de suas escrivaninhas ou ao lado dos quadros-negros, sorrindo vagamente, e depois de colegas que mal recordava e suas notas (FHA 1,2; Conselho de Classe 2,3,4; Sociedade Poe, 4) listadas embaixo, juntamente com seus apelidos e um pequeno slogan. Conhecia o destino de alguns (Exército, morto em um acidente de carro, gerente-assistente de banco), mas a maioria desaparecera, desconhecido dele o futuro de cada um.

 

No anuário do último ano da escola secundária reviu um jovem Barton George Dawes, olhando sonhadoramente para ele de uma fotografia retocada que fora tirada nos Cressey Studios. Ficou espantado ao dar-se conta do quão pouco aquele rapaz sabia do futuro e quanto aquele garotão parecia-se com o filho daquele homem que subira para ali em busca de traços de sua existência. O garotão da foto não havia nem mesmo manufaturado ainda o esperma que se transformaria em metade daquele menino. Embaixo da foto, leu:

 

BARTON G. DAWES “Roncador”

 

(Clube de Excursões, 1,2,3,4 Sociedade Poe, 3,4)

 

Eay High School Bart, o Palhaço da Classe,

 

Ajudou-nos a Carregar o Fardo

 

Guardou de qualquer jeito os anuários na caixa e continuou a cavoucar. Encontrou cortinas que Mary aposentara cinco anos antes. Uma velha espreguiçadeira com um braço quebrado. Um radiorrelógio que não funcionava. Um álbum de fotografias de casamento que teve medo de olhar. Pilhas de revistas — vou ter que jogar isso fora, disse a si mesmo. No verão podem ser um foco de incêndio. Um motor de máquina de lavar que certa vez trouxera da lavanderia para casa e que tentara sem sucesso consertar. E as roupas de Charlie.

 

Estavam em três caixas de papelão, cheirando a naftalina. As camisas, calças, suéteres e mesmo as cuecas de Charlie. Tirou-as da caixa e examinou-as cuidadosamente, tentando imaginar Charlie usando-as, movendo-se dentro delas, rearrumando nelas pequenas partes do mundo. No fim, foi o cheiro da naftalina que o fez deixar o sótão, tremendo, fazendo careta, precisando de uma bebida. O cheiro de coisas que haviam permanecido imóveis e inúteis durante anos, coisas que não tinham outra finalidade que não magoar. Pensou nelas durante a maior parte da tarde, até que a bebida apagou a capacidade de pensar.

 

 

 

7 de janeiro de 1974

 

A campainha da porta tocou um quarto para as 10H. Viu um homem usando capa e sobretudo, um quadril mais alto do que o outro, jeitão displicente e cordial. Bem escanhoado e cabelos bem cortados, trazia uma pasta de documentos delgada na mão. No início, pensou que era um vendedor com uma bolsa cheia de amostras — de Amway, assinatura de revistas ou, possivelmente, até mesmo da desonesta Swipe — e se dispôs a recebê-lo bem, escutar atento sua cantada de venda, fazer perguntas e até mesmo comprar alguma coisa. Excetuada Olívia, ele era a primeira pessoa que vinha até a casa desde a partida de Mary há quase cinco semanas.

 

O homem, porém, não era nenhum vendedor. Era um advogado, chamado Philip T. Fenner, e trabalhava para a Câmara dos Vereadores. Anunciou esses fatos com um sorriso tímido e um caloroso aperto de mão.

 

— Entre, por favor — disse ele com um suspiro.

 

Achou que, de uma maneira meio marota, esse cara era um vendedor. Podia-se mesmo dizer que vendia a Swipe. Fenner falava, descansadamente:

 

— Bela casa a que o senhor tem aqui. Simplesmente, bela. A propriedade cuidadosa sempre aparece, é o que digo. Não vou tomar muito de seu tempo, sr. Dawes. Sei que o senhor é um homem ocupado, mas Jack Gordon pensou que eu podia passar por aqui, desde que é meu caminho, e deixar com o senhor este formulário de relocalização. Acho que mandou um pelo correio, mas com essa sobrecarga de Natal e tudo mais, a correspondência se extravia às vezes. E, naturalmente, terei todo prazer em responder a qualquer pergunta que o senhor porventura queira fazer.

 

— Eu tenho uma — disse ele, fisionomia séria.

 

A aparência jovial do visitante fraquejou um pouco e ele viu o Fenner real que havia por trás dela, tão frio e mecanizado como um relógio Pulsar.

 

— E qual seria, sr. Dawes? Ele sorriu.

 

— Gostaria de tomar um caie?

 

De volta ao sorridente Fenner, alegre moço de recados da Câmara dos Vereadores.

 

— Poxa, isso seria ótimo, se não for muito trabalho. Está um pouco frio aqui fora, — 8°C. Acho que os invernos estão ficando mais frios, não?

 

— Certamente que sim. — Continuava quente a água que usara para fazer o café da manhã. — Espero que não se importe por ser café solúvel. Minha mulher está de visita a parentes e eu me viro como posso.

 

Fenner riu bem-humorado e teve certeza de que ele sabia exatamente qual a situação de Mary e, provavelmente, também a situação com outras dadas pessoas ou instituições: Steve Ordner, Vinnie Mason, a empresa, Deus.

 

— Em absoluto, café solúvel é ótimo. Sempre tomo café solúvel. Não distingo um do outro. Posso colocar alguns papéis nesta mesa?

 

— À vontade. Creme?

 

— Não, preto. Preto ficará ótimo.

 

Fenner desabotoou o sobretudo mas não o tirou. Passou as mãos por trás ao sentar-se, como uma mulher faz com a saia, para não machucá-la. Em um homem, o gesto era quase irritantemente delicado. Abriu a pasta e tirou um formulário grampeado que parecia com um de imposto de renda.

 

Encheu a xícara e passou-a a Fenner.

 

— Obrigado. Muito obrigado. Vai me fazer companhia?

 

— Acho que vou tomar um drinque — respondeu ele.

 

— Ah-ahnn — disse Fenner e sorriu de modo encantador. Tomou um pequeno gole. — Bom, muito bom. No gosto certo.

 

Ele preparou um drinque num copo alto e disse:

 

— Com licença por um minuto, sr. Fenner. Vou ter que dar um telefonema.

 

— À vontade.

 

Bebericou o café e estalou os lábios.

 

Foi até o telefone no corredor, deixando a porta aberta. Ligou para a casa Calloway. Jean atendeu.

 

— Sou eu, Bart — disse. — Mary está, Jean?

 

— Está dormindo — respondeu Jean, voz gelada.

 

— Por favor, acorde-a. É muito importante.

 

— Duvido. Simplesmente duvido. Ontem à noite falei com Lester e disse: Lester, está na hora de a gente pedir um telefone privado. E ele concordou comigo. Nós dois pensamos que você enlouqueceu de todo, Barton Dawes, e essa é a pura verdade, sem disfarce.

 

— Lamento muito ouvir isso. Mas, realmente, tenho que... Mary levantou a extensão no primeiro andar e disse:

 

— Bart?

 

— Eu. Mary, um advogado chamado Fenner procurou-a? Um cara de fala mansa que tenta bancar o Jimmy Stewart?

 

— Não — respondeu ela. Um par. Ela em seguida acrescentou: — Mas ele ligou para aqui.

 

Duas senas! Fenner estava nesse momento à soleira do corredor, segurando a xícara de café e bebendo-o tranqüilamente. Mas a expressão meio tímida, inteiramente alegre, desaparecera e ele parecia estar sofrendo.

 

— Mamãe, sai da extensão — disse Mary e Jean Calloway desligou com uma amarga fungadela.

 

— Fez perguntas a meu respeito? — perguntou.

 

— Fez.

 

— Falou com você depois da festa?

 

— Foi, mas... Eu não contei a ele nada a esse respeito.

 

— Você pode ter contado a ele mais do que pensa. Chega aqui como um cachorro mole por causa de carrapatos mas é um cortador de colhões da Câmara de Vereadores. — Sorriu para Fenner, que sorriu debilmente em resposta. — Você tem hora marcada com ele?

 

— Bem... tenho. — Ela parecia surpresa. — Mas ele só quer falar a respeito da casa. Bart...

 

— Não. Isso é o que ele lhe contou. Ele quer realmente falar a meu respeito. Acho que esses caras gostariam de me arrastar para um processo a fim de determinar minha capacidade mental.

 

— Um processo sobre... o quê? Ela parecia inteiramente confusa.

 

— Não aceitei ainda o dinheiro da prefeitura e, portanto, devo estar louco. Mary, lembra-se do que conversamos no Flandy Andy’s?

 

— Bart, esse sr. Fenner está aí?

 

— Está.

 

— Sobre um psiquiatra — respondeu ela, embotadamente. — Eu disse que você ia consultar um... oh, Bart, sinto muito.

 

— Não sinta — disse ele baixinho e falava sério. — Tudo isto vai correr bem, Mary. Juro. Talvez nada mais, mas isto vai correr bem.

 

Desligou e virou-se para Fenner.

 

— Quer que eu chame Stephan Ordner? — perguntou. — Vinnie Mason? Não vou incomodar Ron Stone e Tom Granger. Eles reconheceriam um ordinário como o senhor antes mesmo de o senhor abrir sua pasta. Vinnie, porém, não reconheceria e Ordner o receberia de braços abertos. Ele anda se cocando para me pegar.

 

— Não precisa chamar — retrucou Fenner. — O senhor me entendeu mal, sr. Dawes. E, aparentemente, é mal interpretado pelos meus clientes. Não há nada de pessoal nisto. E ninguém quer pegá-lo. Mas de fato sabe-se há algum tempo que o senhor não gosta do prolongamento da 784. O senhor escreveu uma carta ao jornal em agosto último...

 

— Agosto último — maravilhou-se ele. — Vocês, caras, também têm um serviço de recortes?

 

— Claro.

 

Ele caiu num agachamento aflito, rolando medrosamente os olhos.

 

— Mais recortes! Mais advogados! Ron, vá lá fora e enxote esses repórteres! Temos inimigos por toda parte. Mavis, traga-me meus comprimidos. — Endireitou-se. — Paranóia? Cristo, eu pensava que era ruim.

 

— Nós temos também um quadro de relações-públicas — respondeu secamente Fenner. — Não estamos conversando aqui sobre ninharias, sr. Dawes. Estamos falando sobre um projeto de dez milhões de dólares.

 

Ele sacudiu a cabeça, enojado.

 

— Quem eles deviam submeter a um exame de sanidade mental eram vocês, caras da estrada, não eu.

 

— Vou botar todas as minhas cartas na mesa, sr. Dawes — disse Fenner.

 

— Sabe de uma coisa, segundo minha experiência quando uma pessoa diz isso ela está pronta para acabar com todas as mentirinhas e dizer o que realmente quer.

 

Fenner corou, enfurecendo-se finalmente.

 

— O senhor escreveu ao jornal. Procrastinou o encontro de uma nova localização para a Lavanderia Blue Ribbon e foi finalmente demitido...

 

— Não fui. Pedi demissão pelo menos meia hora antes de eles poderem me chutar.

 

—... e ignorou todas as nossas comunicações a respeito desta casa. O consenso é que o senhor possa estar planejando alguma exibição pública no dia 20 desde mês. Chamar os jornais e as estações de TV, reunir todos eles aqui. O heróico dono-de-casa arrastado esperneando e aos gritos de seu lar pelos agentes da Gestapo da municipalidade.

 

— Isso preocupa os senhores, não?

 

— Claro que preocupa! A opinião pública é caprichosa, vira como um cata-vento...

 

— E seus clientes são servidores eleitos. Fenner fitou-o, a fisionomia sem expressão.

 

— E agora? — perguntou ele. — Vai fazer uma oferta que não posso recusar. Fenner suspirou.

 

— Não entendo o que é que estamos discutindo, sr. Dawes. A municipalidade oferece-lhe 60 mil dólares para...

 

— Sessenta e três mil e quinhentos.

 

— Sim, muito bom. Oferece-lhe essa importância pela casa e o terreno. Algumas pessoas estão recebendo muito menos. E o que é que o senhor consegue por esse dinheiro? Nada de perseguição, nada de problema, nada de pressão. O dinheiro está praticamente isento de impostos porque o senhor já pagou ao Tio Sam os impostos sobre o dinheiro que gastou para comprar a casa. O senhor só deve o imposto sobre a valorização. Ou não acha que a avaliação tenha sido justa?

 

— Muito justa — respondeu ele, pensando em Charlie. — No que interessa a dólares e centavos, ela foi justa. Provavelmente, mais do que eu obteria se quisesse vendê-la, estando o preço dos empréstimos como está.

 

— Neste caso, sobre o que é que estamos discutindo?

 

— Não estamos — corrigiu-o ele, e tomou um gole do drinque. — Sim, estava com um vendedor em casa, quanto a isso não havia dúvida. O senhor possui uma casa, sr. Fenner?

 

— Possuo — respondeu prontamente Fenner. — Uma casa muito boa em Green-wood. E se vai me perguntar o que eu faria ou corno me sentiria se nossas situações fossem inversas, vou ser muito franco. Torceria os mamilos da municipalidade para arrancar tudo o que pudesse e depois iria rindo o caminho todo até o banco.

 

— Sim, claro que o senhor faria isso. — Riu e pensou em Don e Ray Tarkington, que teriam torcido os mamilos e de quebra, enfiado o mastro do tribunal no olho do cu da municipalidade. — Vocês, caras, pensam realmente que eu perdi o juízo?

 

Ponderadamente, Fenner respondeu:

 

— Não sabemos. A solução que deu ao problema de relocalização da lavanderia dificilmente pode ser considerada como normal.

 

— Bem, vou lhe dizer o seguinte. Tenho juízo suficiente para saber que poderia arranjar um advogado que não gosta da lei de domínio eminente — que ainda acredita naquele velho e elegante adágio que diz que a casa de um homem é seu castelo. Ele poderia obter um mandado liminar e poderíamos bloqueá-lo durante um mês, talvez dois. Com sorte e a agenda certa de juizes, poderíamos manter a coisa em andamento até setembro.

 

Fenner pareceu mais satisfeito do que desconcertado, como achava que isso aconteceria. Finalmente, Fenner estava pensando. Este é o anzol, Freddy, está gostando disso? Sim, George, tenho que reconhecer que estou.

 

— O que é que o senhor quer? — perguntou Fenner.

 

— Quanto o senhor está disposto a oferecer?

 

— Subiremos a avaliação em mais 5 mil dólares. Nem um centavo a mais. E ninguém saberá nada a respeito daquela mocinha.

 

Tudo parou. Parou de estalo.

 

— O quê? — perguntou ele baixinho.

 

— A mocinha, sr. Dawes. A que andou fodendo. Manteve-a aqui consigo nos dias 6 e 7 de dezembro.

 

Em um período de segundos, grande número de pensamentos espiralaram em sua mente, alguns extremamente sensatos, mas a maioria coberta e tornada indigna de confiança por uma leve patina amarela de medo. Mas acima do medo e dos pensamentos sensatos havia uma imensa raiva vermelha que o fazia querer saltar sobre a mesa e estrangular esse carrapato até que o sangue lhe esguichasse pelas orelhas. E de maneira nenhuma deveria fazer isso. De maneira nenhuma.

 

— Dê-me um número — disse.

 

— Número...?

 

— Número de telefone. Ligo esta tarde, dizendo qual a minha decisão.

 

— Seria muito melhor se pudéssemos resolver isso agora mesmo.

 

Você gostaria disso, não? Árbitro, vamos prorrogar este assalto por mais trinta segundos? Esse homem está no papo.

 

— Não, não acho. Por favor, saia de minha casa. Fenner encolheu indiferentemente os ombros.

 

— Tome meu cartão. O número está nele. Esperarei seu telefonema entre 2:30h e 4h.

 

— Eu ligo.

 

Fenner saiu. Observou-o pela janela ao lado da porta enquanto ele descia o caminho, tomava o Buick azul-escuro e se afastava. Depois, esmurrou a parede, com força.

 

Preparou outro drinque e sentou-se à mesa da cozinha para pensar na situação. Eles sabiam a respeito de Olívia. Estavam dispostos a usar isso como forma de pressão. Como alavanca para movê-lo não era lá grande coisa. Poderiam, sem dúvida, acabar com isso seu casamento, mas o casamento já estava em sérias dificuldades. Mas haviam-no espionado.

 

A questão era: como?

 

Se havia gente vigiando-o, eles indubitavelmente teriam sabido a respeito de seu mundialmente famoso bum-buuummmm. Se assim, teriam usado isso contra ele. Por que se incomodarem com algo tão banal como uma pequena farra extramalrimonial quando se pode meter na cadeia o dono recalcitrante de uma casa sob acusação de incêndio criminoso? De modo que haviam lhe grampeado 0 telefone, Quando pensou que, bêbado, contara a Magliore seu crime ao telefone, pequenas gotas de suor irromperam-lhe pela pele. Graças a Deus, Magliore fizera-o caiar a boca. Bum-buuummm já era ruim pra caramba.

 

De modo que estava morando numa casa grampeada e a questão permanecia: o que fazer sobre a oferta de Fenner e os métodos dos clientes deles?

 

Colocou uma refeição pronta no forno para o almoço e sentou-se armado com outro drinque enquanto esperava que esquentasse. Haviam-no espionado, tentando suborná-lo. Quanto mais pensava, mais furioso ficava.

 

Tirou a comida do forno e comeu-a. Andou pela casa, olhando para as coisas. Começou a formular uma idéia.

 

Às 3h da tarde telefonou para Fenner e disse-lhe para enviar o formulário. Assinaria, se Fenner cuidasse dos dois itens que haviam discutido. Fenner pareceu muito satisfeito, até mesmo aliviado. Disse que teria todo o prazer em cuidar de tudo e mandaria o formulário no dia seguinte. E também que estava contente porque ele resolvera ser sensato.

 

— Há umas duas condições — disse ele.

 

— Condições — repetiu Fenner e imediatamente pareceu cauteloso.

 

— Não fique nervoso. Não é nada que o senhor não possa resolver.

 

— Vamos ver quais são — retrucou Fenner. — Mas estou-lhe avisando, Dawes, você já nos espremeu por tudo que podíamos dar.

 

— O senhor receberá amanhã o formulário sobre a casa — prometeu ele. — Levá-lo-ei pessoalmente ao seu escritório na quarta-feira. Quero que tenha um cheque de 68,500 dólares à minha espera. Um cheque visado. Troco o formulário pelo cheque.

 

— Sr. Dawes, nós não podemos fazer negócio dessa maneira...

 

— Talvez não se esperava que fizesse, mas pode. Da mesma maneira que não se esperava que mandasse grampear meu telefone e fazer só Deus sabe mais o quê. Sem cheque, nada de formulário. Em vez disso, vou procurar um advogado.

 

Fenner ficou calado durante algum tempo. Ele quase que podia ouvi-lo pensando.

 

— Muito bem. O que mais?

 

— Não quero ser mais incomodado depois da quarta-feira. No dia 20, a casa é sua. Até então, minha.

 

— Ótimo — disse imediatamente Fenner, porque, claro, aquilo não era absolutamente uma condição. A lei dizia que a casa era sua até a meia-noite do dia 19 e controversamente propriedade da cidade um minuto depois. Se assinasse a transferência para a cidade e recebesse o dinheiro da municipalidade, poderia esbravejar para tudo o que era jornal e estação de televisão da cidade e não teria a menor simpatia.

 

— Só isso — finalizou ele.

 

— Ótimo. — Fenner parecia extraordinariamente feliz. — Estou contente porque, finalmente, pudemos resolver este caso de uma maneira racional, sr.....

 

— Foda-se — disse ele, e desligou.

 

 

 

8 de janeiro de 1974

 

Não estava em casa quando o mensageiro enfiou o grosso envelope de papel pardo contendo o formulário 6983-426-73-74 (capa azul) pela fresta da caixa do correio. Tinha ido à parte mais violenta de Norton para uma conversa com Sal Magliore. Embora não ficasse doido de alegria ao vê-lo, Magliore, à medida que ele falava, tornava-se mais pensativo.

 

O almoço veio de fora—espaguete e vitela, acompanhado de uma garrafa de Gallo tinto. Uma refeição maravilhosa. Magliore levantou a mão para detê-lo quando ele chegou à parte referente ao suborno de 5 mil dólares e o conhecimento por Fenner da presença de Olívia em sua casa. Deu um telefonema e falou rapidamente com o homem que atendeu no outro lado. Deu-lhe o endereço da Crestallen Street.

 

— Use a camioneta — disse, e desligou.

 

Enrolou mais espaguete no garfo e inclinou a cabeça no outro lado da mesa, mandando-o continuar.

 

Quando terminou, Magliore disse:

 

— Você teve sorte por eles não o estarem seguindo. Neste momento você estaria no xilindró.

 

Ele estava quase arrebentando, incapaz de comer outra garfada. Não comera assim nos últimos cinco anos. Cumprimentou Magliore, que sorriu, pela excelência da refeição.

 

— Alguns amigos meus, eles não comem mais pasta. Têm uma imagem a zelar. De modo que almoçam ou jantam em churrascarias ou lugares que oferecem comida francesa, suíça, coisas assim. E têm úlceras para provar isso. Por que úlceras? Porque o cara não pode mudar o que é.

 

Estava retirando o molho do espaguete da caixa de papelão em que viera a refeição. Começou a enxugá-lo com pão de alho, parou, olhou para o outro lado da mesa com aqueles olhos estranhos, ampliados e disse:

 

— Você está me pedindo que o ajude a cometer um pecado mortal. Ele olhou diretamente para Magliore, incapaz de esconder a surpresa. Magliore riu, mal-humorado.

 

— Sei no que é que você está pensando. Um homem no meu ramo de negócios é o cara errado para falar em pecado. Eu já lhe disse que mandei matar um cara. Mais de um, também. Mas nunca matei ninguém que não mereceu ser morto. E eu entendo esse assunto da seguinte maneira: um cara que morre antes do dia que Deus planejou que ele morresse é como um toró na hora de um jogo de beisebol. Os pecados que o cara cometeu não contam. Deus tem que deixar que entrem no céu porque o cara não teve tempo de arrepender-se. Queria que tivesse. De modo que matar um cara é realmente poupá-lo da dor do inferno. De modo que, de certa maneira, fiz mais por esses caras do que o próprio papa poderia ter feito. Acho que Deus sabe disso. Mas isso não é de minha conta. Eu gosto um bocado de você. Você tem colhões. Fazer aquilo que você fez com aqueles coquetéis Molotov, só quem tem colhões. Isso, porém. Isso é uma coisa diferente.

 

— Não estou lhe pedindo que faça coisa alguma. É uma livre opção minha. Magliore virou os olhos para cima.

 

— Jesus! Maria! José, o carpinteiro! Por que é que você, simplesmente, não me deixa em paz?

 

— Porque o senhor tem o que preciso.

 

— Juro por Deus que desejaria não ter.

 

— Vai me ajudar?

 

— Não sei.

 

— Tenho o dinheiro, agora. Ou vou ter, logo.

 

— Não é uma questão de dinheiro. É uma questão de princípio. Nunca antes tive negócios com um bicha como você. Vou ter que pensar nisso. Eu ligo pra você.

 

Preenchia o formulário no momento em que chegaram os homens de Magliore. Guiavam uma camioneta Econoline branca com o letreiro RAY’S. VENDAS E CONSERTOS DE APARELHOS DE TV de cada lado, embaixo de uma TV dançarina com um grande sorriso no cinescópio. Eram dois, usavam uniformes de serviço verdes e carregavam volumosas caixas de aparelhos. As caixas continham cinescópios e ferramentas autênticas para conserto, mas também um bocado de outras coisas. Fizeram uma “varredura” na casa, levando uma hora e meia no trabalho. Encontraram grampos em ambos os telefones, um em seu quarto, outro na sala de jantar. Nenhum na garagem, o que o fez respirar aliviado.

 

— Os filhos da puta — disse, segurando na mão os lustrosos grampos. Deixou-os cair no chão e pisou-os com o calcanhar.

 

À saída, um dos homem disse, não sem um laivo de admiração:

 

— Moço, o senhor realmente escangalhou aquela TV. Quantas vezes teve que bater nela?

 

— Só uma vez — respondeu.

 

Quando foram embora ainda ao sol do frio fim de tarde, varreu os grampos para dentro de uma pá de lixo e jogou seus restos amassados, brilhantes, na cesta de lixo da cozinha. Em seguida, preparou um drinque.

 

 

 

9 de janeiro de 1974

 

Eram poucas pessoas no banco às 2:30h da tarde e dirigiu-se diretamente a uma das mesas no centro do salão, levando o cheque visado da municipalidade. Tirou um tíquete de depósito do fim de seu talão de cheques e preencheu-o no valor de US$34.250. Foi até a janela da caixa e entregou-lhe o tíquete e o cheque.

 

A caixa, uma mulher jovem com cabelos pretos como o pecado, vestido curto púrpura, pernas envolvidas em meias de náilon transparente que teriam feito os olhos do papa apresentar armas, olhou do tíquete para o cheque e vice-versa, confusa.

 

— Algum problema com o cheque? — perguntou ele em voz agradável. Tinha que reconhecer que estava gostando daquilo.

 

— Nããão, mas... o senhor quer depositar $34,250 e quer $34.250 em dinheiro?

 

Ele confirmou com um aceno de cabeça.

 

— Apenas um momento, senhor, por favor.

 

Ele sorriu, voltou a inclinar a cabeça, acompanhando-lhe as pernas com os olhos enquanto ela ia até a mesa do gerente, que se encontrava por trás de um corrimão de separação, mas não engaiolado em vidro, como se para dizer que ele era tão humano como você ou eu... ou quase, pelo menos. O gerente era um homem de meia-idade enfiado em roupas de rapaz. Seu rosto era tão estreito como o portão do céu e quando olhou para o caixa (a caixa) de vestido púrpura fê-lo arqueando as sobrancelhas.

 

Os dois discutiram o cheque, o talão de depósito, suas implicações para o banco e, possivelmente, para todo o Sistema Federal de Reserva. A mocinha curvou-se sobre a mesa, a saia subindo atrás, revelando uma calcinha cor malva com renda na bainha. Amor ó amor ó descuidado amor, pensou ele. Venha comigo e vamos meter até o fim dos tempos ou até que derrubem minha casa, o que quer que aconteça primeiro. O pensamento provocou-lhe um sorriso. Teve uma ereção... uma semi, pelo menos. Desviou a vista de cima da moça e olhou em volta do banco. Havia ali um guarda, provavelmente um policial aposentado, em postura impassível entre o cofre e as portas de entrada da agência. Uma velha senhora assinava dificultosamente seu cheque azul da Previdência Social. À esquerda, na parede, um enorme pôster mostrando uma vista da Terra fotografada do espaço sideral, uma grande jóia azul-esverdeada contra um campo preto. Sobre o planeta, em grandes letras, estava escrito:

 

VIAJE .

 

Embaixo do planeta, em letras ligeiramente menores:

 

COM UM EMPRÉSTIMO DE VIAGEM DO FIRST BANK

 

A bonita caixa voltou.

 

— Vou ter que lhe entregar o dinheiro em notas de 500 e de 100 — disse.

 

— Tudo bem.

 

Entregou-lhe um recibo do depósito e em seguida entrou no cofre-forte do banco. Ao sair, trazia uma pequena pasta. Falou com o guarda, que a acompanhou. O guarda fitou-o, desconfiado.

 

Ela contou quatro pilhas somando dez mil dólares, 25 notas de 100 dólares em cada pilha. Fechou cada um deles com elástico e acrescentou uma notação de máquina de somar entre o elástico e a nota superior de cada pilha. Em todos os casos, o slip da máquina de somar dizia: $10.000

 

Contou 42 notas de 100, passando-as rapidamente pela polpa do indicador tia mão direita. Em cima deles colocou cinco notas de dez dólares. Prendeu a pilha com um elástico e introduziu outro slip de máquina de somar que dizia: $4.250

 

As cinco pilhas foram alinhadas lado a lado e olharam-nos desconfiados por um momento, dinheiro suficiente ali para comprar uma casa, cinco Cadillacs, um avião Piper Cub ou quase cem mil pacotes de cigarro.

 

Depois, ela disse, um pouco em dúvida:

 

— Posso lhe arranjar uma sacola com fecho ecler...

 

— Não, assim está bem. — Pegou os maços de dinheiro e distribuiu-os pelos bolsos do sobretudo. Com impassível desprezo o guarda observou esse tratamento arrogante de sua raison d’être. A bonita caixa parecia fascinada (seu salário em cinco anos estava desaparecendo casualmente nos bolsos do sobretudo comum e barato desse homem e quase não fazendo volume). O gerente fitava-o com indisfarçada antipatia porque um banco é onde se supõe que dinheiro seja iguala Deus, invisível e considerado com reverência.

 

— Tudo bem — disse ele, pondo o talão de cheques em cima dos maços de dez mil dólares. — Vão com calma.

 

Saiu e todos o acompanharam com os olhos. Em seguida, a velhinha foi, arrastando os pés, até a janela da caixa bonitinha e apresentou-lhe seu cheque da Previdência Social, devidamente assinado, para ser descontado. A bonita caixa entregou-lhe 235 dólares e 63 centavos.

 

Ao chegar a casa, guardou o dinheiro em um empoeirado caneco de cerveja, na prateleira mais alta do armário da cozinha. Mary lhe dera aquele caneco como um presente de brincadeira no seu aniversário, há cinco anos. Nunca apreciara muito o caneco, preferindo tomar sua cerveja diretamente na garrafa. O caneco era decorado com um emblema mostrando a tocha olímpica e as palavras:

 

EQUIPES DE PAUS-D’ÁGUA DOS E.U.A.

 

Repôs o caneco em seu lugar, nesse momento cheio de uma beberagem mais embriagante, e subiu para o quarto de Charlie, onde ficava sua escrivaninha. Mexeu na gaveta mais baixa e encontrou um pequeno envelope de papel pardo. Sentou-se à escrivaninha e atualizou o novo saldo da conta corrente, verificando que chegava nesse momento a US$35.053,49— Endereçou o envelope a Mary, a/c dos pais dela. Colocou dentro o talão de cheques, fechou o envelope e mexeu novamente na escrivaninha. Encontrou uma carteia pela metade de selos e pregou cinco de 8 centavos no envelope. Olhou-o por um momento e, embaixo do endereço, escreveu

 

CORRESPONDÊNCIA PARTICULAR

 

Deixou o envelope aprumado em pé em cima da escrivaninha e voltou à cozinha para preparar um drinque.

 

 

 

10 de janeiro de 1974

 

Já era tarde da noite, nevava, e Magliore não telefona/a. Sentado na sala de estar com um drinque, escutava o estéreo porque a TV continuava hors de combat. Saíra antes, levando duas notas de dez dólares que tirara do caneco e comprara álbuns de rock and roll, um deles o Let It Bleed, com os Rolling Stones. A música desse conjunto fora tocada na festa e gostava mais dela do que a de outros que comprara, que lhe pareciam meio piegas. Um deles, um álbum de um grupo intitulado Crosby, Stills, Nash e Young era tão sentimental que o quebrara em cima do joelho. Let It Bleed, porém, transbordava de música alta, zombeteira, vibrante. Batia e tilintava. Gostou muito. Lembrou-se de “Let’s Make a Deal”, que fora cantado por Monte Hall. Nesse momento, Mick Jagger cantava

 

Bem, todos precisamos de alguém para derrotar, E se você quiser, me derrote.

 

Estivera pensando no pôster do banco, mostrando toda a Terra, diferente e nova, com a legenda que convidava o espectador a VIAJAR. Pensou na viagem que fizera na véspera do Ano-Novo. Tinha viajado, certo. Para muito longe.

 

Gostara ou não?

 

O pensamento fê-lo parar bruscamente.

 

Estivera marcando passo nos dois últimos meses como um cachorro que tivera os colhões presos numa porta de vaivém. Mas não houvera compensações ao longo do caminho?

 

Fizera coisas que, de outra maneira, jamais teria realizado. Os passeios pela via expressa, tão irracionais e livres como uma migração. A moça e o sexo, o toque de seus seios, tão diferentes dos de Mary. As conversas com um homem que era um criminoso. A aceitação final por esse homem como sendo uma pessoa séria. O divertimento ilegal de lançamento dos coquetéis Molotov e o terror onírico, como um afogamento, quando pareceu que o carro não conseguiria subir a ladeira, levando-o dali. As emoções profundas que escavara em sua alma seca de executivo de médio escalão, como se fossem relíquias de uma sombria religião descobertas em um sítio arqueológico. Sabia o que era estar vivo.

 

Claro que houvera coisas ruins, como a maneira como se descontrolara no Handy Andy’s, gritando com Mary. A solidão persistente daquelas duas primeiras semanas sozinho, sozinho pela primeira vez em vinte anos, tendo por companhia apenas a pavorosa e mortal batida do coração. O soco que recebera de Vinnie — logo de quem, Vinnie Mason! — na loja de departamentos. A terrível ressaca de medo na manhã seguinte ao lançamento de bombas no canteiro de obras. Essa sensação durara mais do que todas as outras.

 

Mas mesmo essas coisas, ruins como pudessem ter sido, haviam sido novas e, de alguma forma, estimulantes, como o pensamento de que pudesse estar louco ou enlouquecendo. As trilhas pela paisagem anterior por onde estivera passeando (ou se arrastando) nesses dois últimos meses eram as únicas. Fizera uma exploração em si’ mesmo e se o que estivera descobrindo fora muitas vezes banal, fora também ocasionalmente pavoroso e belo.

 

Voltou a lembrar-se de Olívia, de como a vira pela última vez, ao lado da rampa de acesso à auto-estrada com aquela sua tabuleta, LAS VEGAS... OU A MORTE!, exibida desafiadoramente à fria indiferença das coisas. Lembrou-se do pôster do banco: VIAJE Por que não? Nada havia para prendê-lo ali, salvo uma suja obsessão. Nenhuma esposa e apenas o fantasma de um filho, nenhum emprego e uma casa que seria uma não-casa em uma semana e meia. Possuía dinheiro vivo e um carro pago e desimpedido. Por que simplesmente não pegava essas coisas e dava no pé?

 

Sentiu-se empolgado por uma louca excitação. Mentalmente, viu-se apagando as luzes, entrando no LTD e seguindo para Las Vegas, os bolsos cheios de dinheiro, encontrando Olívia, dizendo-lhe VAMOS VIAJAR, continuando até a Califórnia, vendendo o carro, comprando passagem para os Mares do Sul. De lá, para Hong Kong, de Hong Kong para Saigon, Bombaim, Atenas, Madri, Paris, Londres, Nova York. E de lá para...

 

Para aqui?

 

O mundo era redondo, tal a terrível verdade a seu respeito. Tal como Olívia, indo para Nevada, resolvendo jogar a merda no ventilador. Fica drogada e é currada na primeira vez em que se aventura pelo novo caminho porque o novo caminho é exatamente igual ao velho, na verdade é o velho caminho, andando em círculos até que o gasta de tanto pisar e fica fundo demais para sair dali de dentro e chega a ocasião de fechar a porta da garagem, ligar a ignição e simplesmente esperar... esperar...

 

A noite se encompridou e seus pensamentos revolveram em círculos, tal como um gato tentando pegar e engolir a própria cauda. Finalmente, adormeceu no sofá e sonhou com Charlie.

 

 

 

11 de janeiro de 1974

 

Magliore telefonou-lhe às 4:15 H da tarde.

 

— Tudo certo — disse. — Vamos fazer negócio, nós dois. Vai lhe custar nove mil dólares. Acho que isso não vai mudar suas idéias.

 

— Em dinheiro?

 

— O que é que você quer dizer com “em dinheiro”? Você acha que vou aceitar um cheque pessoal seu?

 

— Tudo bem. Desculpe.

 

— Apareça amanhã à noite no Revel Lanes Bowladrome, às l0h. Sabe onde fica?

 

— Sei, na Estrada 7. Logo depois do Skyview Shopping Mall.

 

— Isso mesmo. Você encontrará dois caras na Pista 16, usando camisas verdes com a inscrição Marlin Avenue Firestone nas costas, em fios dourados. Aproxime-se deles. Um deles lhe explicará tudo que você precisa saber. Isso enquanto vocês jogam boliche. Você faz duas ou três séries de jogadas, depois sai e pega a estrada até a Town Line Tavern. Sabe onde fica isso?

 

— Não.

 

— Siga simplesmente pela 7. Fica a uns 3km da pista de boliche, no mesmo lado. Estacione nos fundos. Meus amigos estacionarão ao seu lado. Estarão dirigindo uma pickup Dodge Custom Cab. Tirarão da camioneta e passarão para sua perua um engradado. Você entrega a eles o envelope com o dinheiro. Eu devo estar louco, sabia? Pirado. Provavelmente, vou acabar na prisão por isso. Depois, terei um bom e longo tempo para pensar por que, diabo, fiz isso.

 

— Eu gostaria de lhe falar na próxima semana. Pessoalmente.

 

— Não, absolutamente não. Eu não sou seu padre confessor. Nunca mais quero vê-lo. Nem mesmo falar com você. Para dizer a verdade, Dawes, não quero nem ler a seu respeito nos jornais.

 

— Trata-se de uma simples questão de investimento. Magliore fez uma pausa.

 

— Não — disse finalmente.

 

— Trata-se de uma coisa que ninguém jamais poderá atribuir ao senhor— disse ele. — Eu quero estabelecer... um fundo beneficente para uma pessoa.

 

— Sua esposa?

 

— Não.

 

— Passe aqui na terça-feira — resolveu finalmente Magliore. — Talvez eu fale com você. Ou talvez eu tenha recuperado o juízo.

 

Desligou.

 

De volta à sala de estar, pensou em Olívia e em viver — os dois pareciam estar constantemente entrelaçados. Pensou em VIAJAR. Pensou em Charlie e mal conseguiu lembrar-se mais de seu rosto, exceto como se estivesse olhando para um instantâneo. Como era que isso podia estar acontecendo?

 

Tomando uma súbita resolução, levantou-se, foi até o telefone e procurou nas páginas amarelas AGÊNCIAS DE VIAGENS. Discou um número. Mas quando uma cordial voz feminina no outro lado disse ‘Agência de Viagens Arnold, às suas ordens”, desligou e afastou-se rapidamente do telefone, esfregando as mãos.

 

 

 

12 de janeiro de 1974

 

O revel Lanes Bowladrome era um prédio comprimido, iluminado por lâmpadas fluorescentes, que ressoava a música ambiental, vitrola automática, berros e conversas, sinetas de aviso das máquinas que arrumavam as garrafas, tinido de moedas introduzidas em jogos automáticos e, acima de tudo, a concatenação das garrafas de madeira arrumadas mecanicamente e, mais acima ainda, o trovejante zumbido das grandes bolas pretas de boliche.

 

Foi até o balcão, alugou um par de sapatos de boliche preto e vermelho (que o empregado borrifou cerimoniosamente com aerossol para desinfetá-los antes de entregá-los) e dirigiu-se para a Pista 16. Os dois homens mencionados por Magliore já estavam lá. Observou que o que se encontrava em pé pronto para lançar a bola era o mecânico que estivera conservando o sistema de silenciador na sua primeira visita à Revenda Magliore de Carros Usados. O cara sentado à mesa de marcação de escore era um dos que tinham ido a sua casa na camioneta de reparos de TV. Nesse momento, bebia cerveja em um copo de papel encerado. Os dois ergueram a vista quando ele se aproximou.

 

— Eu sou o Bart — disse.

 

— E, eu, o Ray — apresentou-se o homem à mesa. — E esse cara — o mecânico lançava a bola nesse instante — é o Alan.

 

A bola deixou a mão de Alan e seguiu trovejando pela pista. As garrafinhas espalharam-se por toda parte e Alan emitiu um ruído de nojo. Deixara em pé as garrafas de números sete e dez. Tentou a segunda bola pela calha direita, pensando em derrubar ambas. A bola caiu na calha e ele emitiu outro som de nojo quando a máquina repôs as garrafas no lugar.

 

— Procure acertar numa só — repreendeu-o Ray. — Sempre um. Quem é que você pensa que é, Billy Welu?

 

— Eu não dei efeito suficiente na bola — justificou-se o homem. — Um pouco mais e, kazatn. Oi, Bart.

 

— Alô.

 

Trocaram apertos de mão.

 

— Prazer em revê-lo — disse Alan. Em seguida, para Ray: — Vamos jogar outra, incluindo o Bart. De qualquer modo, você já me venceu nesta.

 

— Certo.

 

— Você primeiro, Bart — convidou Alan.

 

Ele não jogava boliche há talvez uns cinco anos. Escolheu uma bola de 12 libras que lhe pareceu ajustar-se bem aos dedos e imediatamente lançou-a pela calha esquerda. Observou-a rolar, sentindo-se como um idiota. Teve mais cuidado na bola seguinte, mas só conseguiu derrubar três garrafas. Alan derrubou quatro e Ray conseguiu acertar em nove.

 

Ao fim de cinco partidas o escore era Ray, 89, Alan, 76, e Bart, 40. Mas ele estava gostando da sensação de suor nas costas e do emprego desacostumado de certos músculos que raramente tinham oportunidade de se exibirem.

 

Ficou tão absorvido no jogo que por um momento não entendeu o que era mencionado quando Ray disse:

 

— O nome da coisa é malglinita.

 

Ele olhou, franzindo um pouco as sobrancelhas ao ouvir a palavra nova, mas depois compreendeu. Alan estava à frente, segurando a bola, olhando sério para as peças arrumadas no fim da pista.

 

— Tudo bem — disse.

 

— Ela vem em forma de bananas de 20cm de comprimento. Há aqui quarenta bananas. Cada uma delas tem mais ou menos uma força explosiva sessenta vezes maior do que uma banana de dinamite.

 

— Oh — disse ele, e subitamente sentiu um enjôo no estômago.

 

Alan jogou a bola e saltou no ar quando conseguiu derrubar as duas garrafas restantes.

 

Jogou mais uma vez, derrubou sete e voltou a sentar-se. Ray tomou-lhe a vez. Alan foi até o depósito de bolas, segurou uma delas sob o queixo enquanto olhava para as garrafas pela pista polida.

 

— Trouxemos quatrocentos pés de pavio. É preciso uma descarga elétrica para explodir o troço. Se encostar nele um maçarico, ele simplesmente derrete. O explosivo... Oh, bom tiro!Bom tiro, Al!

 

Al derrubara todas as garrafas.

 

Levantou-se, lançou duas bolas e voltou a sentar-se. Ray esperou. Aproximando-se Alan da linha, Ray continuou::

 

— É preciso eletricidade. Uma bateria potente. Você tem isso? — Tenho — respondeu. Olhou para seu escore: 47. Sete mais que sua idade.

 

— Você pode cortar pedaços do pavio, colá-los e conseguir explosões simultâneas, entendeu?

 

— Entendi.

 

Alan conseguiu, mais uma vez, derrubar todas as garrafas. Quando voltou, sorrindo, Ray disse:

 

— A gente não pode confiar nessas jogadas de sorte, rapaz. Meta isso na cabeça.

 

— E você meta seu conselho no cu. Estou apenas oito pontos abaixo de você. Ele jogou a bola, derrubou seis, sentou-se e Ray voltou a lançar, conseguindo 116 ao fim das sete tentativas.

 

Quando voltou a sentar-se, Ray perguntou:

 

— Tem alguma pergunta a fazer?

 

— Não. Podemos ir embora ao fim desta série?

 

— Claro. Mas você não seria tão ruim se tirasse um pouco da ferrugem. Você continua a torcer a mão quando arremessa. Esse é o seu problema.

 

Alan acertou em cheio, exatamente como nas duas vezes anteriores, mas deixou de pé as garrafas sete e dez e voltou de cara feia. Ele pensou: Foi nessa que entrei bem.

 

— Eu lhe disse para não confiar naquela jogada — observou Ray, sorrindo.

 

— Foda-se — rosnou Alan. Pegou a bola de reserva e lançou-a novamente na calha.

 

— Alguns caras — disse Ray, rindo —, Deus é testemunha, alguns caras nunca aprendem, sabia? Nunca.

 

O botequim Town Line tinha um letreiro luminoso em neon que nada sabia da crise de energia. Apagava e acendia com uma confiança estúpida, eterna. Sob o letreiro, uma marquise branca anunciava:

 

HOJE À NOITE OS FABULOSOS OSTRAS

 

DIRETAMENTE DE BOSTON

 

Havia um pátio de estacionamento de terra à direita do botequim, já congestionado com os carros dos clientes dos sábados à noite. Enquanto rodava, notou que o pátio dava a volta em torno do prédio, assumindo uma forma de L. Viu ali várias vagas. Dirigiu-se para a mais próxima, desligou a ignição e desceu do carro.

 

A noite estava impiedosamente fria, o tipo de noite que não parece tão fria assim até que o cara nota que não sente mais as orelhas 15 minutos depois de sair de casa. No alto, milhões de estrelas luziam com um brilho magnífico. Através da parede dos fundos, ele podia ouvir os Fabulosos Ostras tocando “After Midnight”. J.J. Cale escrevera aquela música, pensou, e se perguntou onde recolhera essa peça inútil de informação. Era espantosa a maneira como o cérebro humano se enchia de lixo. Conseguia lembrar-se de quem escrevera “After Midnight”, mas não do rosto do filho morto. Isso lhe pareceu muito cruel.

 

A pickup Custom Cab parou ao lado de sua perua. Ray e Alan desceram. Nesse momento eram apenas homens de negócios, usando ambos grossas luvas e casacos excedentes do exército, com capuz.

 

— Você tem dinheiro para nós — disse Ray.

 

Ele tirou o envelope do bolso do casaco e entregou-o. Ray abriu-o e folheou as notas, mais estimando do que contando.

 

— Tudo bem. Abra a perua.

 

Ele abriu a porta traseira (que, nas brochuras da Ford, era chamada de Porta Mágica) e os dois empurraram por ali um pesado engradado que tiraram da pickup.

 

— O pavio está no fundo — explicou Ray, jatos brancos de respiração saindo de seu nariz. — Lembre-se, você vai precisar de eletricidade. À parte isso, pode usar esse troço aí como velinhas de aniversário.

 

— Vou me lembrar.

 

— Você devia jogar mais boliche. Tem um arremesso forte.

 

Voltaram para a pickup e foram embora. Momentos depois, ele se afastou também deixando os Ostras Fabulosos entregues à sua própria sorte. As orelhas frias formigaram quando ligou o aquecedor do carro.

 

Ao chegar em casa, levou o engradado para dentro e abriu-o com uma chave de fenda. A coisa parecia exatamente o que Ray dissera, como velas de cera cinzentas. Embaixo das bananas e de uma camada de jornais encontrou dois gordos rolos de pavio. Os rolos haviam sido fechados com nós plásticos que pareciam idênticos àqueles com que fechava os sacos de lixo 1 Hefty.

 

Guardou o engradado no armário embutido da sala de estar e esqueceu-o, mas ele parecia desprender emanações malignas que se espalharam de lá e cobriram toda a casa, como se algo maléfico houvesse acontecido ali há anos, algo que lenta e inexoravelmente contaminara tudo.

 

 

 

13 de janeiro de 1974

 

Foi até a Landing Strip e subiu e desceu vagarosamente as ruas, procurando o local de trabalho de Drake. Viu casas de cômodo transbordando de gente, coladas umas às outras, de aparência tão exausta que parecia que desmoronariam se fossem removidos os prédios que as flanqueavam. Uma floresta de antenas de TV subia do alto de cada uma delas, desenhando-se contra o céu como cabelos arrepiados de medo. Bares, fechados até o meio. Um carro depenado no meio de uma rua lateral, sem pneus, sem faróis, sem cromados, parecia um esqueleto descorado de vaca em meio ao Vale da Morte. Vidro brilhava nos esgotos nos lados da rua. Todas as lojas de penhores e bebidas exibiam grades em frente às vitrines. Pensou: foi isso o que aprendemos com os distúrbios raciais há oito anos. Como impedir pilhagem em emergências. A meio caminho da Venner Street, viu uma pequena fachada de loja, com uma tabuleta em velhos caracteres ingleses. A tabuleta dizia:

 

DROP DOWN MAMMA COFFEEHOUSE

 

Parou o carro, fechou-o e entrou no estabelecimento. Viu apenas dois fregueses, um jovem negro usando casaco azul da Marinha e que parecia estar cochilando, e um velho pau-d’água branco, que tomava café numa grossa caneca de porcelana branca. As mãos tremiam-lhe violentamente toda vez que aproximava a caneca da boca. A pele do alcoólatra era amarela e, quando ele ergueu a vista, seus olhos ficaram ofuscados pela luz, como se todo ele estivesse encurralado dentro daquela prisão malcheirosa, profunda demais para que pudesse escapar.

 

Drake estava sentado atrás do balcão nos fundos, ao lado de uma chapa quente, de dois queimadores. Num deles havia água quente, no outro, café. Numa caixa de charutos em cima do balcão havia moedas de pequeno valor. Notou dois avisos em papel vegetal. Um deles dizia:

 

MENU

 

Café 15c

 

Chá 15c

 

Soda 25c

 

Salsichão 30c

 

PB&J 25c

 

Cachorro-quente 35c

 

O outro dizia:

 

ESPERE PARA SER SERVIDO!

 

Todos os que ajudam no balcão são VOLUNTÁRIOS e quando você se serve pessoalmente faz com que eles se sintam inúteis e estúpidos. Por favor, espere para ser servido e lembre-se de que DEUS AMA VOCÊ!

 

Drake levantou a vista da revista que lia, um exemplar rasgado do The National Lampoon. Durante um momento, seus olhos assumiram aquele ofuscamento peculiar de um homem que estala os dedos mentais à procura do nome certo e depois disse:

 

— Sr. Dawes, como está o senhor?

 

— Ótimo. Posso tomar uma xícara de café?

 

— Claro que sim. — Tirou uma das grossas canecas da segunda camada da pirâmide às suas costas e serviu. — Leite?

 

— Preto. — Entregou a Drake uma moeda de 25 centavos e recebeu 10 centavos de troco, tirada da caixa de charutos. — Eu queria lhe agradecer pelo que fez naquela noite e também dar uma contribuição.

 

— O senhor não tem coisa alguma a me agradecer.

 

— Mas tenho. Naquela festa eu fiz o que chamam de um papelão.

 

— Drogas químicas podem fazer isso. Nem sempre, mas às vezes. Uns rapazes trouxeram aqui no último verão um amigo deles que havia tomado ácido num parque da cidade. O garoto estava tendo um acesso de gritos porque pensava que pombos estavam perseguindo-o para comê-lo. Parece uma história de horror do Reader’s Digest, não?

 

— A moça que me deu a mescalina contou que certa vez tirou a mão de um homem de dentro do cano da pia. Depois, não sabia se aquilo havia realmente acontecido ou não.

 

— Quem era ela?

 

— Realmente, não sei — respondeu ele, dizendo a verdade. — De qualquer modo, tome.

 

Colocou um maço de notas sobre o balcão, junto à caixa de charutos. O maço era preso com um elástico.

 

Drake olhou-o, sobrancelhas franzidas, sem tocá-lo.

 

— Na verdade, é para ajudar este local — disse.

 

Tinha certeza de que Drake sabia disso, mas precisava romper-lhe o silêncio. Drake soltou o elástico, segurou as notas com a esquerda e contou devagar as notas com aquela direita estranhamente marcada de cicatrizes.

 

— São cinco mil dólares — disse.

 

— De fato.

 

— O senhor se ofenderia se eu lhe perguntasse onde...

 

— Onde os arranjei? Não, não ficaria. Da venda de minha casa à municipalidade desta cidade. Vão passar uma estrada por cima dela.

 

— Sua esposa concorda com isso?

 

— Minha mulher nada tem a ver com este assunto. Estamos separados. Divórcio breve. Recebeu a metade dela na venda, para gastar como julgar melhor.

 

— Compreendo.

 

Atrás deles, o velho bêbado começou a cantarolar. Não era música, apenas um zumbido baixinho.

 

Drake cutucou pensativo o maço de notas com o indicador da mão direita. Os cantos das notas estavam revirados para cima, de tanto manuseio.

 

— Não posso aceitar isso — disse finalmente.

 

— Por que não?

 

— Não se lembra do que falamos? — perguntou Drake. Lembrava-se.

 

— Não tenho planos nesse particular.

 

— Acho que tem. Um homem com os pés bem plantados neste mundo não joga dinheiro fora atendendo a um capricho.

 

— Isto não é um capricho — protestou ele, firme. Drake fitou-o vivamente.

 

— O que é que chama a isso? Um conhecimento por acaso?

 

— Droga, eu já dei dinheiro a pessoas que nunca vi. Pesquisadores de câncer. Uma Fundação Ajude a Criança. A um hospital que trata da distrofia muscular em Boston. Eu nunca estive em Boston.

 

— Somas tão grandes assim?

 

— Não.

 

— E dinheiro vivo, sr. Dawes. Um homem que ainda tem o que fazer com dinheiro nunca o vê. Desconta cheques, assina papéis. Mesmo jogando pôquer a dinheiro ele usa fichas. Torna o dinheiro simbólico. E em nossa sociedade um homem que não tem o que fazer com dinheiro tampouco tem muito por que viver.

 

— Essa atitude é materialista pra burro para um...

 

— Padre? Mas não sou mais isso. Não, desde que isto aconteceu. — Mostrou a mão machucada, coberta de cicatrizes. — Quer que eu lhe conte como arranjo dinheiro para manter este local em funcionamento? Nós chegamos tarde demais para essas caridades de fachada, tipo Fundo Unido ou Fundo Municipal de Ajuda. Todas as pessoas que trabalham aqui são aposentadas, velhos que não compreendem os garotos que vêm aqui, mas que querem ser alguma coisa, além de um rosto olhando para a rua de uma janela de terceiro o andar. Tenho alguns garotos em liberdade condicional que organizam bandas para tocar gratuitamente nas noites de sexta-feira e sábados, bandas que estão justamente começando e precisam ser vistas pelo público. Nós passamos o chapéu. Mas, na maior parte, o dinheiro vem dos ricos, da alta classe. Eu viajo. Falo em chás de senhoras. Falo-lhes de garotos viciados e de viciados que dormem embaixo de viadutos e fazem fogueiras com jornais para não congelarem durante o inverno. Falo-lhes da mocinha de 15 anos que está na vida desde 1971 e que chegou aqui com piolhos por toda a cabeça e nos pêlos pubianos. Falo-lhes de todos os tipos de doenças venéreas que existem em Norton. Falo-lhes dos caftens, caras que fazem ponto nos terminais de ônibus, à procura de garotos fujões, oferecendo-lhes emprego como prostitutos. Falo-lhes como esses meninos acabam chupando o pau de algum cara no banheiro de um cinema para ganhar dez dólares, 15 se ele promete engolir o esperma. Cinqüenta por cento para ele c 50% para o rufião. E essas mulheres, os olhos delas se esbugalham de horror e depois elas mais ou menos se derretem e ficam ternas e, provavelmente, suas coxas ficam todas meladas, mas elas comparecem com o dinheiro e isso é que é importante, Às vezes, a gente consegue impressionar muito uma delas e obter mais do que uma contribuição de dez dólares. Ela leva a gente para jantar em sua casa em Crescente, apresenta-nos à família e pede que a gente dê graças antes que a empregada traga o primeiro prato. E a gente diz, por pior que seja o gosto das palavras na boca e desmancha brincalhão os cabelos do garoto da casa — aliás, sempre há um deles, Dawes, apenas um, nada igual aos coelhos sujos nesta parte da cidade que procriam uma casa de cômodos inteira deles — e a gente diz que excelente jovem a senhora tem aqui, ou que linda moça, e se a gente tem muita sorte, a tal senhora convidou algumas das amigas do bridge ou do clube de campo para conhecer esse padre de rua esquisito, que é provavelmente um radical e contrabandeia armas para os Panteras ou para a Liga de Libertação da Argélia, e a gente banca um pouco o velho padre Brown e acrescenta um pouco do velho Blarney, e sorri até o rosto doer. Tudo isso é conhecido como balançar a árvore do dinheiro e é feito no mais elegante dos ambientes, mas voltando para casa a gente se sente como se tivesse estado de joelhos em algum sanitário do Cinema 41 chupando o pau de um homem de negócios AC/DC. Mas que diabo, esse é o meu jogo, parte de minha “expiação”, se me perdoa a palavra. Mas minha expiação não inclui necrofilia. E isso, sr. Dawes, é o que sinto que está me oferecendo. E é por isso que vou ter que dizer que não.

 

— Expiação pelo quê?

 

— Isso — respondeu Drake com um sorriso — fica entre mim e Deus.

 

— Mas por que escolher esse método de financiamento, se ele lhe é tão repugnante? Por que o senhor simplesmente não...

 

— Faço isso porque é a única maneira. Estou de mãos tolhidas.

 

Com um súbito, horrível, profundo desespero, compreendeu que Drake acabara de explicar por que ele fora até ali, por que fizera tudo.

 

— O senhor está bem, sr. Dawes? O senhor parece...

 

— Estou. Quero lhe desejar toda a boa sorte possível. Mesmo que o senhor não esteja conseguindo coisa alguma.

 

— Eu não tenho ilusões — respondeu Drake, e sorriu. — O senhor deveria reconsiderar... qualquer coisa drástica. Há alternativas.

 

— Há? — Retribuiu o sorriso. — Feche este lugar agora. Saia comigo e nos estabeleceremos juntos. Estou fazendo uma proposta séria.

 

— O senhor está zombando de mim.

 

— Não — negou ele. — Talvez alguém esteja zombando de nós dois.

 

Virou-se e saiu, enrolando as notas novamente em um curto e apertado cilindro. O garoto continuava dormindo. O velho pusera a xícara vazia pela metade na mesa e olhava-a com expressão vazia. Ainda cantarolando baixinho. Saindo, enfiou o rolo de notas na xícara do velho, derramando café lamacento sobre a mesa. Saiu rapidamente, abriu o carro parado junto ao meio-fio, esperando que Drake o seguisse e reclamasse, que talvez o salvasse. Drake, porém, não fez isso, esperando que ele voltasse e ele mesmo se salvasse.

 

Em vez disso, tomou o carro e afastou-se dali.

 

 

 

14 de janeiro de 1974

 

Foi até a loja da Sears no centro da cidade e comprou uma bateria de automóvel e uma de cabos de ligação direta. Nos lados da bateria, as palavras seguintes, impressas em plástico ressaltado:

 

TEIMA EM NÃO MORRER

 

Voltou para casa e colocou as compras em frente ao armário onde estava guardado o engradado. Pensou no que aconteceria se a polícia chegasse ali com um mandado de busca. Armas de fogo na garagem, explosivos na sala de estar, um bocado de dinheiro vivo na cozinha. B.G. Dawes, revolucionário perigoso. Agente secreto X-9 a soldo de um cartel estrangeiro horrendo demais para ser mencionado. Tinha uma assinatura do Reader’s Digest, que vivia cheio dessas histórias de espionagem, juntamente com uma série interminável de cruzadas, contra o fumo, contra a pornografia, contra o crime. E a coisa era sempre mais assustadora quando o suposto espião era branco, anglo-saxão, protestante, um de nós, agentes da KGB em Willmette ou Des Moines, passando mensagens em micropontos na biblioteca circulante da farmácia, planejando derrubadas violentas da república em drive-ins, comendo Big Macs com um dente oco que continha um comprimido de cianureto.

 

Sim, um mandado de busca e o crucificariam. Mas não estava mais com medo, realmente. As coisas pareciam ter ido além desse ponto.

 

 

 

15 de janeiro de 1974

 

— Diga o que quer — pediu cansadamente Magliore.

 

Caía granizo no lado de fora, a tarde estava cinzenta e triste, um dia em que todo ônibus urbano saindo das condições atmosféricas esbranquiçadas e membranosas, espalhando lama em todas as direções com seus enormes pneus, parecia uma criatura das fantasias de um maníaco-depressivo, quando o próprio ato de viver parecia ligeiramente psico.

 

— Minha casa? Meu carro? Minha mulher? Qualquer coisa, Dawes. Simplesmente me deixe em paz nos meus anos de declínio.

 

— Escute — respondeu ele, embaraçado —, sei que estou sendo uma praga.

 

— Ele sabe que está sendo uma praga — informou Magliore às paredes. Ergueu as mãos para os céus e deixou-as em seguida cair nas coxas carnudas. — Então, por quê, em nome de Cristo, você não pára?

 

— Esta é a última coisa. Magliore virou os olhos para cima.

 

— Essa deve ser uma coisa linda — voltou a dizer às paredes. — O que é? Ele tirou do bolso algumas notas e disse:

 

— Há aqui 18 mil dólares. Três mil serão seus. O pagamento para localização de uma pessoa.

 

— Quem é que você quer que seja encontrado?

 

— Uma moça em Las Vegas.

 

— Os 15 mil são para ela?

 

— São. Gostaria que os aceitasse e os investisse em quaisquer negócios que você tem e que são bons para investir. E que pagasse os dividendos a ela.

 

— Negócios legítimos.

 

— O que quer que pague os melhores dividendos. Confio em sua capacidade de julgamento.

 

— Ele confia em meu julgamento — voltou Magliore a dizer às paredes. — Vegas é uma cidade grande, sr. Dawes. Uma cidade de trânsito.

 

— O senhor não tem ligações lá?

 

— Para dizer a verdade, tenho. Mas se estamos falando de alguma garota hippie meio crua que já pode ter dado no pé para San Francisco ou Denver...

 

— Ela usa o nome de Olívia Brenner. E acho que está ainda em Las Vegas. Ultimamente, estava trabalhando em uma lanchonete...

 

— Das quais há pelo menos dois milhões em Vegas — replicou Magliore. — Jesus! Maria! José, o carpinteiro!

 

— Mora num apartamento com outra pequena, ou pelo menos morava na última vez em que falei com ela. Não sei onde. Tem 1,68m de altura, mais ou menos, cabelos escuros, olhos verdes. Bom corpo. Vinte e um anos de idade. Ou é isso o que diz.

 

— E suponhamos que eu não consiga localizar essa maravilhosa xoxota?

 

— Invista o dinheiro e fique com os dividendos para si mesmo. Chame a isso de indenização por aborrecimentos.

 

— Como é que você sabe que eu, afinal de contas, não vou fazer isso?

 

Ele levantou-se, deixando as notas em cima da mesa de Magliore:

 

— Acho que não sei. Mas o senhor tem uma cara honesta.

 

— Escute aqui — retrucou Magliore. — Não quero dar uma mordida no seu rabo. Acho que você é um homem que já está sendo mordido nesse lugar. Mas não gosto disto. É como se você estivesse me fazendo executor de seu testamento.

 

— Diga que não é, se for perguntado.

 

— Não, não, não, você não compreendeu. Se ela estiver ainda em Las Vegas e usando o nome Olívia Brenner, acho que posso achá-la e três mil são pagamento mais do que suficiente por isso. Não prejudica de nenhuma maneira. Mas você me assusta, Dawes. Está realmente fechado num curso de ação.

 

— Estou.

 

Magliore olhou carrancudo para as fotos de si mesmo, esposa e filhos sob o vidro da escrivaninha.

 

— Muito bem — concordou, finalmente. — Esta última vez. Mas nunca mais, Dawes. Absolutamente, não. Se jamais vê-lo novamente ou ouvi-lo ao telefone, bem, esqueça. Estou falando sério. Já tenho problemas demais sem ter que assumir ainda os seus.

 

— Concordo com essa condição.

 

Estendeu a mão, sem saber se Magliore ia apertá-la, mas ele apertou.

 

— Você não faz sentido para mim — queixou-se Magliore. — Por que devo gostar de um cara que não faz sentido para mim?

 

— Este mundo não faz sentido — retrucou ele. — Se duvida, simplesmente pense na cachorra do sr. Piazzi.

 

— Eu penso nela um bocado — disse Magliore.

 

 

 

16 de janeiro de 1974

 

Levou até a caixa do correio da esquina o envelope de papel pardo que continha o talão de cheques. Naquela noite foi assistir a um filme intitulado O Exorcista porque nele trabalhava Max von Sidow e ele sempre o admirara muito. Em uma cena do filme, uma menina vomitava na cara de um padre católico. Alguém no fundo do cinema aplaudiu.

 

 

 

17 de janeiro de 1974

 

Mary ligou. Parecia absurdamente aliviada, alegre e isso tornou tudo mais fácil.

 

— Você vendeu a casa — disse ela.

 

— Vendi.

 

— Mas ainda está aí.

 

— Só até sábado. Aluguei uma grande casa de fazenda no campo. Vou tentar botar minha vida em ordem.

 

— Oh, Bart, mas isso é maravilhoso. Fico tão feliz. — Ele compreendeu por que aquilo estava parecendo também falso. Ela estava sendo insincera. Ela nem estava contente nem não-contente. Simplesmente, desistira. — A respeito do talão de cheque...

 

— Sim?

 

— Você dividiu o dinheiro exatamente pela metade, não?

 

— Foi, dividi. Se quiser descontar o cheque, pode ligar para o sr. Fenner.

 

— Não, oh, não, eu não quis dizer isso. — Quase que pôde vê-la fazendo gestos de quem empurra alguma coisa, ou alguém, para longe. — O que eu queria dizer era... você dividindo o dinheiro dessa maneira... será que isso significa...

 

Ela interrompeu-se teatralmente e ele pensou: Uau, sua puta, você me pegou. No alvo.

 

— Sim, acho que significa — confirmou ele. — Divórcio.

 

— Você já pensou bem nisso? — perguntou ela, séria, falsa. — Você, realmente...

 

— Pensei muito nisso.

 

— Eu, também. Parece que é a única coisa a fazer. Mas eu não guardo mágoa de você, Bart. Não estou zangada com você.

 

Meu Deus, ela andou lendo esses romances de brochura. Em seguida, vai dizer que está pensando em voltar a estudar.

 

— O que é que você vai fazer?

 

— Vou voltar a estudar — disse ela, e nesse momento não havia insinceridade na voz, que estava emocionada, brilhando. — Desencavei minha velha ficha escolar, estava ainda no sótão de mamãe com todas as minhas roupas velhas e, sabe que eu só preciso de 24 créditos para me formar? Bart, isso é pouco mais de um ano!

 

Mentalmente, viu Mary agachada procurando coisas no sótão da mamãe e a imagem fundiu-se com outra, de si mesmo, sentado, confuso, numa pilha de roupas de Charlie. Apagou-a.

 

— Bart? Você ainda está aí?

 

— Estou. Estou contente porque ficar solteira novamente vai realizá-la tão perfeitamente.

 

— Bart... — disse ela em tom de censura.

 

Mas não havia necessidade de gritar com ela nesse momento, provocá-la e fazê-la sentir-se mal. As coisas haviam ultrapassado esse ponto. A cachorra do sr. Piazzi, tendo abocanhado, vai em frente. A idéia lhe pareceu engraçada e soltou uma risadinha.

 

— Bart, você está chorando? Parecia terna. Falsa, mas terna.

 

— Não — respondeu ele bravamente.

 

— Bart, há alguma coisa que eu possa fazer? Se houver, quero fazer.

 

— Não. Acho que tudo vai correr bem comigo. E estou contente porque você vai voltar a estudar. Escute, quanto ao divórcio... quem o pede? Você ou eu?

 

— Acho que pareceria melhor se eu pedisse — respondeu ela, timidamente.

 

— Tudo bem. Perfeito.

 

Houve uma pausa e, de repente, ela explodiu, como se as palavras lhe escapassem sem seu conhecimento ou aprovação:

 

— Você dormiu com alguém desde que eu saí de casa?

 

— Não — respondeu ele, vagarosamente, e acrescentou: — E você?

 

— Claro que não — disse ela, conseguindo parecer chocada e satisfeita ao mesmo tempo. — Eu não faria uma coisa dessas.

 

— Fará, eventualmente.

 

— Bart, por favor, nada de falar sobre sexo.

 

— Tudo bem — respondeu ele, bastante calmo, embora fosse ela que tivesse provocado o assunto.

 

Continuava a procurar alguma coisa bonita para lhe dizer, alguma coisa de que ela se lembrasse. Não conseguiu pensar em coisa nenhuma e, além do mais, não sabia por que, afinal de contas, quereria que ela se lembrasse dele, pelo menos neste estágio das coisas. Haviam desfrutado juntos bons anos antes. Tinha certeza de que deviam ter sido bons porque não conseguia lembrar-se de muitas coisas que neles havia acontecido, exceto aquela aposta maluca para a compra da TV. Ouviu sua voz dizendo:

 

— Você se lembra quando levamos Charlie ao jardim-de-infância pela primeira vez?

 

— Lembro-me. Chorou e você quis levá-lo de volta conosco. Você não queria soltá-lo, Bart.

 

— E você deixou-o ficar.

 

Ela dizia nesse momento alguma coisa, justificando-se, em tom ligeiramente magoado, mas ele estava lembrando-se da cena. A dona do jardim-de-infância chamava-se sra. Ricker. Possuía licença do estado e dava a todas as crianças uma boa refeição quente antes de enviá-las para casa à lh da tarde. A escola ficava num porão reformado e quando levaram Charlie entre eles para baixo, sentiu-se como um traidor, como um fazendeiro acariciando a vaca que leva para o matadouro. Ele fora um menino lindo, o seu Charlie, cabelos louros que haviam escurecido depois, olhos azuis, vigilantes, mãos hábeis mesmo no tempo de neném. Ele se postara entre os dois ao pé da escada, absolutamente imóvel, observando as crianças que berravam e corriam, coloriam e cortavam papel colorido com tesouras rombudas, tantos, e Charlie nunca parecera tão vulnerável como naquele instante, simplesmente olhando para as outras crianças. ‘Não havia alegria ou medo em seus olhos, apenas vigilância, uma espécie de estranheza, e nunca se sentira tanto pai de seu filho como naquele instante, nunca tão perto dos pensamentos que lhe passavam pela mente. A sra. Ricker se aproximara, sorrindo como uma barracuda, e dissera: A gente vai se divertir um bocado, Chuck, levando-o a querer gritar: Esse não é o nome dele! E quando estendeu a mão, Charlie não a tomou, ficou apenas olhando para ela, e assim ela pegou a mão dele e começou a puxá-lo na direção das outras crianças, ele foi de boa vontade dois passos e depois parou, olhou para eles, e a sra. Ricker disse em voz baixa: Podem ir. Ele vai ficar bem. Mary, finalmente, teve que cutucá-lo, dizendo: Vamos, Bart, porque ele ficara imobilizado olhando para o filho, os olhos do filho dizendo: Você vai deixar que façam isso comigo, George? E os seus próprios dizendo: Sim, acho que vou, e Freddy, ele e Mary começaram a subir a escada, dando as costas a Charlie, a coisa mais pavorosa que uma criancinha pode ver, e Charlie começara a chorar. Os passos de Mary, porém, nunca hesitaram porque o amor de mulher é estranho e cruel e quase sempre perspicaz, o amor que vê é sempre amor horrível, ela sabia que ir embora dali era o certo e assim continuara a andar, ignorando os gritos como apenas outra parte do desenvolvimento do menino, como sorrisos provocados por traques ou joelhos arranhados. Ele sentira uma dor no peito tão forte, tão física, que se perguntara se não estava tendo um enfarte, mas depois a dor passara, deixando-o abalado e incapaz de interpretá-la, mas nesse momento pensava que a dor fora um velho, simples e prosaico adeus. As costas de pais não são as coisas mais pavorosas. A mais pavorosa é a rapidez com que crianças esquecem essas mesmas costas e passam a cuidar de seus próprios interesses — o jogo, o enigma, o novo amigo e, eventualmente, a morte. Eram essas as coisas terríveis que conhecia agora. Charlie começara a morrer muito antes de adoecer e não houvera maneira de pôr cobro àquilo.

 

— Bart? — dizia ela nesse momento. — Você ainda está aí, Bart?

 

— Estou.

 

— Que bem você está fazendo a si mesmo pensando em Charlie o tempo todo? Isso está corroendo você. Você é prisioneiro dele.

 

— Mas você está livre — respondeu ele. — Sim.

 

— Posso procurar o advogado na próxima semana?

 

— Pode. Ótimo.

 

— O divórcio não tem que ser litigioso, tem, Bart?

 

— Não. Vai ser muito civilizado.

 

— Você não vai mudar de idéia e contestá-lo?

 

— Não.

 

— Eu... eu falarei com você nessa ocasião.

 

— Você sabia que era tempo de deixá-lo, e deixou. Eu só desejaria ter sido tão instintivo assim.

 

— O quê?

 

— Nada. Adeus, Mary. Eu amo você.

 

Deu-se conta de que dissera o que quisera depois de desligar. Dissera isso automaticamente, sem sentimento — uma mera construção verbal. Mas não fora um final tão ruim assim. Em absoluto.

 

 

 

18 de janeiro de 1974

 

A secretária perguntou:

 

— Quem é que digo que está ligando?

 

— Bart Dawes.

 

— O senhor pode esperar por um momento?

 

— Claro.

 

Ela colocou-o no limbo e ele ficou com o telefone mudo no ouvido, batendo com o pé no chão e olhando pela janela para a cidade fantasma em que se transformara a Crestallen Street West. Fazia um dia claro, mas muito frio, a temperatura em — 12°C, com um fator enregelante que a reduzia para, talvez, — 15°C. O vento soprava agudos flocos de neve para o outro lado da rua, onde a casa que fora dos Hobarts ainda se erguia em pensativo silêncio, como uma casca à espera da bola demolidora. Haviam retirado até mesmo as venezianas.

 

Ouviu um clique e em seguida a voz de Steve Ordner.

 

— Bart, como vai você?

 

— Ótimo.

 

— No que é que posso lhe ser útil?

 

— Eu lhe telefonei para saber da lavanderia — respondeu. — Estou curioso em saber o que foi que a empresa resolveu fazer sobre a relocalização.

 

Ordner suspirou e disse com bem-humorada reserva.

 

— É um pouco tarde para isso, não acha?

 

— Não telefonei para ser espinafrado por isso, Steve.

 

— Por que não? Você certamente esculhambou todo mundo mais com isso. Bem, não importa. A diretoria resolveu sair do negócio de lavagem industrial, Bart. As laundromats vieram para ficar. Todas elas estão funcionando bem. Mas vamos mudar o nome da cadeia de lojas. Para Handi-Wash. O que é que você acha do nome?

 

— Horrível — respondeu ele, voz distante. — Por que não despede Vinnie Mason?

 

— Vinnie? — Ordner pareceu surpreso. — Vinnie está fazendo um trabalho maravilhoso para nós. Transformando-se num homem de negócios e tanto. Mas devo dizer que não esperava tanta amargura...

 

— Ora, vamos, Steve. Aquele emprego não tem mais futuro do que o poço de ventilação de uma casa de cômodos. Dê a ele uma coisa que valha a pena ou mande-o embora.

 

— Eu não acho que isso seja assunto seu, Bart.

 

— Você amarrou uma galinha morta no pescoço dele e ele ainda não sabe porque ela não começou a cheirar mal. Ele ainda pensa que é um jantar.

 

— Pelo que soube, ele lhe deu uns socos antes do Natal.

 

— Disse a ele a verdade e ele não gostou.

 

— Verdade é uma palavra escorregadia, Bart. Eu achava que você compreenderia isso melhor do que ninguém, depois de todas as mentiras que me contou.

 

— Isso ainda o incomoda, não?

 

— Quando a gente descobre que um homem que considerava legal é um saco de merda, a coisa tende a incomodar, sim.

 

— Incomoda — repetiu ele. — Sabe de uma coisa, Steve? Você é a única pessoa que já conheci na vida que diria isso. Incomoda. Parece uma coisa que vem numa droga de lata de aerossol.

 

— Há mais alguma coisa, Bart?

 

— Não, não, realmente. Eu gostaria que você deixasse de massacrar Vinnie, só isso. Ele é um bom homem. Você está acabando com ele. E sabe muito bem que está fazendo isso.

 

— Repito: por que eu quereria “acabar” com Vinnie?

 

— Porque não pôde acabar comigo.

 

— Você está ficando paranóico, Bart. Não tenho o menor desejo de fazer qualquer coisa com você, a não ser esquecê-lo.

 

— Foi por isso que andou investigando se eu mandava lavar gratuitamente minhas roupas? Ou recebia comissões dos motéis? Sei que andou examinando também os vales do caixa-pequeno nos últimos cinco anos.

 

— Quem lhe disse isso? — perguntou secamente Ordner. Parecia aturdido, tomado de surpresa, desequilibrado.

 

— Uma pessoa de sua empresa mentiu ele alegremente. — Uma pessoa que não morre de amores por você. Alguém que pensou que eu poderia fazer alguma coisa antes da próxima reunião da diretoria.

 

— Quem?

 

— Adeus, Steve. Pense em Vinnie Mason e vou pensar no cara com quem posso ou não falar.

 

— Não desligue! Não...

 

Ele desligou, sorrindo. Até mesmo Steve Ordner possuía os proverbiais pés de barro. De quem era que Steve lhe lembrava? Rolamentos. Sorvete de morango roubado da geladeira. Herman Wouk. O capitão Queeg, era isso. Humphrey Bogart representa o capitão Queeg no cinema.

 

“Todos nós precisamos de alguém para Queeg em cima, E se quiser, por que você não Queeg em cima de mim?”

 

Estou doido, certo, pensou ele, ainda rindo. Mas de fato parece que há certas vantagens nisso. Ocorreu-lhe que um dos sintomas mais seguros de insanidade mental era um homem sozinho, rindo no meio do silêncio, em uma rua vazia de casas vazias. O pensamento, porém, não conseguiu silenciar-lhe o humor e ele riu mais alto, de pé junto ao telefone, sacudindo a cabeça.

 

 

 

19 de janeiro de 1974

 

Após o anoitecer, dirigiu-se até a garagem e transferiu as armas para a casa. Com todo cuidado, carregou o Magnum, de acordo com o livreto de instruções, depois de fazer vários disparos secos. No estéreo, os Rolling Stones cantavam sobre o Vagabundo da Meia-Noite. Não conseguia pensar em um melhor álbum do que esse. Via-se como Barton George Dawes, o Vagabundo da Meia-Noite. Consultas Apenas com Hora Marcada.

 

A capacidade do .460 Weatherbee era de oito cartuchos, que lhe pareceram suficientemente grandes para caber na câmara de um howitxer de calibre médio. Municiado o fuzil, olhou-o curioso, perguntando a si mesmo se era tão potente como alegara Dirty Harry Swinnerton. Resolveu levá-lo para trás da casa e experimentá-lo. Quem havia na Crestallen Street para avisar à polícia que havia tiros por ali?

 

Vestiu a jaqueta e dirigiu-se para a porta dos fundos, passando pela cozinha, mas voltou em seguida à sala de estar e pegou uma das pequenas almofadas do sofá. Saiu, parando apenas para acender a lâmpada de 200W que ele e Mary haviam usado no verão para fazer churrasco no quintal. Ali a neve estava como a imaginara há pouco mais de uma semana — intocada, pura, inteiramente virgem. Ninguém havia deflorado essa neve com os pés. Em outros anos, o filho de Don Usplinger, Kenny, usava às vezes a via expressa do quintal para ir até a casa de seu amigo Ronnie. Ou Mary usava a corda que ele estendera entre a casa e a garagem para pendurar algumas pecinhas (impublicáveis) em dias que estava quente demais para que congelassem. Mas ele sempre ia para a garagem passando pela passagem coberta e naquele momento o local pareceu-lhe quase maravilhoso — ninguém estivera em seu quintal desde a primeira neve, em fins de novembro. Nem mesmo um cachorro, pela aparência.

 

Foi tomado por uma súbita ânsia dc ir até o meio do quintal, mais ou menos onde instalava a churrasqueira portátil todos os verões, e fazer um boneco de neve.

 

Em vez disso, prendeu a almofada sob o queixo e em seguida apoiou nela a coronha do Weatherbee. Olhou pelo aparelho de pontaria com o olho esquerdo fechado e tentou lembrar-se dos conselhos que atores sempre dão uns aos outros antes de os fuzileiros navais chegarem à praia nos filmes de guerra das madrugadas Em geral, era algum veterano curtido como Richard Widmark, falando com um fuzileiro bisonho — Martin Milner, talvez: Não puxe bruscamente o gatilho, filho... ESPREMA devagar.

 

Okay, Fred. Vamos ver se consigo acertar em minha própria garagem.

 

Espremeu o gatilho.

 

0 fuzil não produziu uma detonação. Produziu uma explosão. No começo, teve medo de lhe ter arrancado as mãos. Soube que estava vivo quando o coice jogou-o contra a porta de inverno da cozinha. O estrondo espalhou-se em todas as direções com um curioso som rolante, como se fosse o escape de um avião a jato. A almofada caiu na neve. O ombro latejou.

 

— Jesus, Fred! — arquejou.

 

Olhou para a garagem e mal conseguiu acreditar. Viu na parede um buraco estilhaçado de tamanho suficiente para caber nele uma xícara de chá.

 

Encostou o fuzil na porta da cozinha e cruzou o tapete de neve, sem se importar com o fato de que nesse momento usava sapatos comuns, baixos. Examinou o orifício durante um minuto, confusamente soltando estilhaços com o indicador. Depois, deu a volta na garagem e entrou.

 

Examinou a camioneta. Descobriu um buraco de bala na porta do motorista, cuja tinta fora queimada e nesse momento mostrava o metal puro em volta de um orifício côncavo, de tamanho suficiente para enfiar nele as pontas de dois dedos. Abriu a porta e olhou pelo assento para a porta do passageiro. Sim, a bala perfurara-a também, passando pouco abaixo da maçaneta da porta.

 

Deu a volta ao carro até o lado do passageiro e viu onde a bala saíra, deixando outro grande buraco, desta vez com dentes de metal projetando-se sinistramente. Virou-se, olhou para a parede da garagem oposta ao ponto onde a bala entrara. Atravessara-a também. Pelo que sabia, podia estar ainda voando.

 

Ouviu Harry, o armeiro, dizer: Então seu primo gosta de caça grossa... Este bebê aqui espalha as tripas de um caribu por mais de sete metros. E o que faria com um homem? Provavelmente, a mesma coisa. Sentiu vontade de vomitar.

 

Voltou à porta da cozinha, abaixou-se para pegar a almofada e entrou na casa, parando automaticamente para bater os pés e não deixar marcas de umidade na cozinha de Mary. Na sala de estar, tirou a camisa. A despeito do travesseiro, havia no ombro um vergão vermelho com a forma da placa da coronha do fuzil.

 

Dirigiu-se à cozinha, ainda sem camisa, e preparou um bule de café e uma refeição congelada. Quando terminou, entrou na sala de estar, deitou-se no sofá e começou a chorar, um choro que aumentou e se transformou em histeria entrecortada de soluços, dilacerante, que temeu não poder controlar. Finalmente, ela começou a diminuir e ele caiu em um sono pesado, a respiração áspera. No sono, ele era um velho e parte da barba já se tingira de branco.

 

 

 

20 de janeiro de 1974

 

Acordou com um sobressalto, sentindo-se culpado, receoso de que já fosse manhã c tarde demais. O sono fora tão úmido e escuro como café velho, o tipo de sono que terminava sentindo-se estúpido e tonto. Olhou para o relógio e verificou que marcava 2:15h. O fuzil estava no lugar onde o deixara, encostado indiferentemente numa espreguiçadeira. O Magnum continuava na mesinha lateral.

 

Levantou-se, foi à cozinha e lavou o rosto com água fria. Subiu para o primeiro andar e vestiu uma camisa limpa. Desceu a escada enquanto a enfiava pela calça. Fechou todas as portas do térreo e por razões que não queria examinar demais, o coração lhe pareceu um pouco mais leve ao estalo de cada fechadura. Pela primeira vez desde que aquela mulher detestável caíra a seus pés no supermercado, começou a se reencontrar. Pôs o Weatherbee no chão, ao lado da janela panorâmica da sala de estar e colocou ao lado os cartuchos, abrindo cada um ao dispô-los por ali. Puxou a espreguiçadeira e virou-a sobre um lado.

 

Foi à cozinha e fechou as janelas. Pegou uma das cadeiras da sala de jantar e com ela escorou a maçaneta da porta. Serviu-se de uma xícara de café frio, bebeu-o distraído, fez uma careta e jogou-o na pia. Preparou um drinque.

 

Voltou à sala de estar e tirou do armário a bateria de automóvel. Colocou-a atrás da espreguiçadeira virada, pegou os cabos de ligação direta c enrodilhou-os ao lado da bateria.

 

Grunhindo e bufando levou a caixa de explosivos para o primeiro andar. Ao chegar ao passadiço, arriou-a no chão com um som surdo e soltou a respiração. Estava ficando velho demais para esse tipo de merda, embora ainda possuísse um bocado de músculos de lavanderia, dos dias cm que ele e um colega haviam colocado pacotes de lençóis passados de uns 200 kg nos caminhões de entrega. Mas, músculos ou não, quando um homem chegava aos quarenta anos, algumas coisas eram um desafio ao destino. Os quarenta anos eram a época dos ataques cardíacos.

 

Andou de quarto em quarto no primeiro andar, acendendo todas as luzes. O quarto de hóspedes, o banheiro de hóspedes, o quarto do dono da casa, o gabinete que outrora fora o quarto de Charlie. Colocou uma cadeira sob o alçapão do sótão, subiu e girou a lâmpada empoeirada. Voltou à cozinha, pegou um rolo de fita isolante, uma tesoura e uma faca amolada de cortar carne.

 

Tirou duas bananas de explosivo do engradado (era mole e, se apertada com força revelava impressões digitais) e levou-as para o sótão. Cortou dois pedaços de pavio e com a faca de cozinha desencapou o fio até aparecer o núcleo de cobre. Enfiou o fio nu em cada uma das bananas. No armário que ficava embaixo do alçapão, despelou o isolamento das duas outras extremidades do pavio e com todo o cuidado ligou-o a duas outras bananas, prendendo-o firmemente com fita isolante dc modo a que o fio não pudesse soltar-se.

 

Cantarolando nesse momento, desenrolou mais pavio, do sótão para o quarto principal e colocou uma banana em cima de cada uma das camas gêmeas. Puxou mais pavio dali para o corredor e deixou uma banana no banheiro de hóspedes e mais duas no quarto do próprio. Apagou as luzes ao sair. No velho quarto de Charlie deixou quatro bananas, coladas juntas num molho. Arrastou o pavio pela porta e jogou o rolo escada abaixo. Depois, desceu.

 

Quatro bananas na bancada da cozinha, ao lado da garrafa de Southern Comfort; quatro na sala de estar; quatro na sala de jantar; quatro no vestíbulo.

 

Puxou o pavio de volta para a sala de estar, um pouco sem fôlego de tanto subir e descer escada. Mas havia mais uma viagem a fazer. Foi buscar o engradado lá em cima e achou-o muito mais leve. Pestavam ali apenas 11 bananas de explosivo. O engradado, observou, fora usado antes para guardar laranjas. Escrita no lado, em letras desmaiadas, leu uma palavra:

 

POMONA

 

Ao lado da palavra havia o desenho de uma laranja com uma folha presa ao talo.

 

Levou o engradado para a garagem, usando dessa vez a passagem coberta e colocou a caixa no assento traseiro do carro. Ligou cada banana de malglinita com um pavio curto e em seguida prendeu todos os onze a um pedaço comprido, usando fita isolante, e arrastou o longo pavio para a casa, tomando cuidado para passá-lo pela fresta embaixo da porta que se abria para a passagem coberta e finalmente fechando-a.

 

Na sala de estar, acoplou o pavio mestre com o que puxara da garagem. Trabalhando com cuidado, ainda cantarolando, cortou outro pedaço e ligou-o aos outros dois com fita isolante. Desenrolou esse pavio final até a bateria e com a faca de cozinha desencapou-o.

 

Separou os fios do núcleo de cobre e torceu cada pedaço, formando um pequeno rabicho. Pegou os fios de ligação direta e ligou um clipe-jacaré preto a um rabicho, e um clipe-jacaré vermelho ao outro. Pegou a bateria e ligou o clipe-jacaré preto ao terminal marcado

 

POS

 

Deixou o clipe vermelho solto, ao lado do terminal marcado

 

NEG

 

Ligou o estéreo e ficou ouvindo música dos Rolling Stones. O relógio marcava 4:05h. Foi à cozinha, preparou outro drinque e voltou à sala de estar, subitamente sem ter mais nada a fazer. Havia um exemplar da Good Housekeeping na mesinha de café. Havia uma matéria na revista sobre a família Kennedy e seus problemas. Leu o artigo. Em seguida, leu outro, intitulado “Mulheres e Câncer do Seio”. Escrito por uma médica.

 

Eles chegaram um pouco depois das l0h, pouco depois de os sinos da Igreja

 

Congregacional a cinco quadras dali badalar as horas, chamando os fiéis para as matinas, ou o que diabo que os congregacionalistas as chamassem.

 

Viu um sedã verde e um carro da polícia, preto-e-branco. Pararam junto ao meio-fio e três homens desceram do sedã verde, um deles, Fenner. Não conhecia os dois outros. Todos eles traziam pastas nas mãos.

 

Dois policiais desceram do preto-e-branco e se encostaram nele. Era óbvio pela atitude deles que não esperavam problemas. Conversavam sobre alguma coisa encostados no capo do carro e as palavras lhes saíam da boca sob a forma de baforadas brancas visíveis.

 

O mundo parou.

 

 

 

Tempo final, 20 de janeiro de 1974

 

bem fred é isso aí acho agüentar o fechar o bico oh eu sei que em certo sentido é tarde demais para fechar o bico tenho explosivos por toda a casa como se fossem decorações de aniversário uma anua na mão e outra nos cinco como um john dillinger safado bem o que é que você diz esta é a última decisão tal como subir numa árvore pego esta forquilha depois aquela agora esta agora àquela (os homens se imobilizaram na passagem externa entre segundos fenner usando terno verde um pé a 12cm da calça quando leva o pé à frente bons sapatos calçados em galochas elegantes se há essa tal coisa de galocha elegante o sobretudo verde aberto e voando como o de um promotor público em cruzada contra o crime no anúncio de um filme de tv a cabeça ligeiramente virada e inclinada o homem que vem atrás dele fez algum comentário e fenner inclina a cabeça para ouvir melhor o homem que falou tem uma pluma branca saindo a metade pela boca esse segundo homem está usando um blazer azul e calça marrom-escura seu sobretudo também está aberto e o tempo pegou-o o tempo final pegou seu sobretudo na metade do abano e o terceiro está justamente se afastando do carro e os dois policiais estão encostados em seu preto-e-branco as cabeças viradas uma para a outra poderiam estar conversando sobre casamento um caso difícil a temporada de merda do time de beisebol ou o estado de seus colhões e o sol apareceu através de uma fresta no alto apenas o suficiente para dar uma piscadela sobre uma única cápsula de cartucho no equipamento padrão do policial a dita cápsula aparecente através de muitas pequenas bainhas de couro no cinto do dito policial o outro policial está usando óculos escuros e o sol marcou um ponto de bússola em cima da lente direita e seus lábios são grossos e sensuais colhidos no início de um sorrio: esta é a fotografia) eu vou em frente freddy meu rapaz você tem alguma coisa que queira dizer neste auspicioso momento nesta altura dos acontecimentos sim diz fred você vai agüentar até a chegada do pessoal da imprensa não vai claro que vou diz george as palavras as imagens os noticiários sobre demolição que eu conheço têm apenas o ponto de visibilidade mas freddy você não se impressiona como isto é solitário como por toda esta cidade e pelo mundo pessoas estão comendo cagando fodendo cocando seu eczema todas as coisas que escrevem em livros enquanto temos que fazer isto sozinhos eu pensei nisso george na verdade temei lhe dizer alguma coisa sobre isso se você se lembra e se serve de algum consolo para você isso parece certo agora parece okay porque quando você não pode se mudar pode dar a eles sua auto-estrada mas por favor George não mate ninguém de propósito fred mas você vê a posição em que me encontro sim vejo e acho que compreendo por deus george estou com medo agora estou com tanto medo que o medo passou vou resolver isso e estou no perfeito controle de mim mesmo bote pra quebrar

 

 

 

20 de janeiro de 1974

 

— Bote pra quebrar — disse ele em voz alta e tudo começou a se mover.

 

Levou o fuzil ao ombro, apontou para a roda direita fronteira do carro da polícia e puxou o gatilho.

 

A arma escoiceou violentamente em seu ombro e a boca do cano subiu depois de disparado o projétil. A grande janela panorâmica da sala de estar explodiu para fora, deixando apenas pedaços denteados projetando-se da moldura como flechas de vidro impressionistas. O pneu dianteiro da radiopatrulha não esvaziou; explodiu com um grande estouro e o carro todo tremeu sobre as molas como um cachorro chutado enquanto dorme. A calota voou para longe e foi rodando sem destino pela superfície congelada de concreto da Crestallen Street West.

 

Fenner parou e olhou incrédulo para a casa, o rosto transformado numa máscara de choque. O cara vestido de blazer azul deixou cair a pasta. O outro tinha reflexos melhores, ou talvez um senso de autoconservação mais desenvolvido. Girou sobre si mesmo, correu em volta do seda verde, agachou-se bem baixo e desapareceu de vista.

 

Os policiais correram para a direita e esquerda da radiopatrulha. Um momento depois, o que usava óculos de sol apareceu rapidamente atrás do capo, o revólver seguro nas duas mãos, e disparou três vezes. A arma produziu um som inócuo de espingarda de rolha em comparação com o estrondo maciço do Weatherbee. Ele escondeu-se atrás da espreguiçadeira e ouviu as balas passarem por cima da cabeça — podia realmente ouvi-las e o barulho que faziam no ar era zzizzzz!— e se cravarem no reboco em cima do sofá. O som que produziram ao penetrarem no reboco lembrou-lhe o som de punhos atingindo um saco pesado de areia num ginásio. Pensou: é esse o som que vão produzir quando penetrarem em mim.

 

O policial de óculos de sol gritava nesse momento com Fenner e o homem de blazer azul:

 

— Abaixem-se! Merda, abaixem-se! Ele tem um howitzer lá dentro! Levantou a cabeça um pouco mais para ver melhor, o policial de óculos notou o movimento e atirou mais duas vezes. As balas entraram com um som surdo na parede e desta vez o quadro predileto de Mary. “Os Pescadores de Lagosta”, de Winslow Homer, caiu, bateu no sofá e deslizou para o chão. Estilhaçou-se o vidro que o protegia.

 

Ergueu novamente a cabeça porque tinha que saber o que estava acontecendo (por que não pensara em comprar um periscópio de criança?), tinha que ver se iam flanqueá-lo, o que era a maneira como Richard Widmark e Marty Milner sempre tomavam as casamatas japonesas nos últimos filmes, e se estivessem tentando fazer isso, teria que tentar acertar num deles, mas os policiais continuavam ainda atrás da radiopatrulha e Fenner e o cara de blazer azul corriam nesse momento para o carro verde. A pasta de documentos de Blazer Azul estava caída na calçada como se fosse um pequeno animal morto. Apontou para a pasta, contorcendo-se para receber o coice da arma antes mesmo de acontecer, e atirou.

 

CRRRACKK! e a pasta explodiu em dois pedaços e saltou loucamente para o ar, abrindo e despejando uma chuva de papéis que o vento remexeu com um dedo invisível.

 

Atirou outra vez, desta vez na roda direita dianteira do seda verde e o pneu explodiu. Um dos homens que estava atrás do carro gritou com um terror de soprano.

 

Olhou para o carro da polícia e notou que estava aberta a porta do motorista. Deitado pela metade no assento, o policial de óculos usava o rádio nesse momento. Antes de muito tempo, todos os convidados à festa estariam ali. Iam entregá-lo, um pedacinho para quem quisesse uma lembrança e aquilo não seria mais um assunto pessoal. Sentiu um alívio que era tão amargo como aloés. O que quer que tivesse sido, qualquer que fosse a lamentável doença que o levara àquele ponto, a última forquilha de uma alta árvore, ela não era mais apenas sua, sussurrando e chorando em segredo. Antes de muito tempo, poderiam reduzi-lo a uma manchete segura — CESSAR-FOGO DUVIDOSO NA CRESTALLEN STREET.

 

Pôs o fuzil de lado e rastejou sobre as mãos e joelhos pela sala de estar, tendo todo o cuidado para não se cortar com o vidro da estilhaçada janela panorâmica. Pegou a pequena almofada e voltou do mesmo jeito para a posição anterior. O policial não estava mais no carro.

 

Pegou o Magnum e disparou dois tiros de advertência. O revólver escoiceou violento na mão, mas o recuo foi suportável. Já o ombro latejava como um dente podre.

 

Um dos policiais, o que não usava óculos, levantou a cabeça atrás da mala do carro a fim de responder ao fogo e ele disparou dois tiros na janela traseira da radiopatrulha, empurrando-a para dentro em um labirinto de rachaduras. O policial abaixou-se sem atirar.

 

— Parem aí! — berrou Fenner. — Deixem-me falar com ele!

 

— Vá em frente — disse um dos policiais.

 

— Dawes! — gritou Fenner, em voz dura, como um detetive no último rolo de um filme de James Cagney. (Os holofotes da polícia varrem incessantemente de um lado para o outro a fachada da arruinada casa de cômodos onde “Cachorro Louco” Dawes se entrincheirou com uma .45 fumegante cm cada mão. “Cachorro Louco” está agachado atrás de uma espreguiçadeira virada, usando uma camisa-de-meia em tiras, e rosnando.) — Dawes, você pode me ouvir aí?

 

(E “Cachorro Louco”, o rosto contorcido num desafio — embora tenha a testa coberta de suor — grita:)

 

— Venham me pegar, seus tiras ordinários!

 

Saltou por cima da espreguiçadeira e esvaziou o Magnum no seda verde, deixando nele uma fileira irregular de buracos.

 

— Dawes! — gritou Fenner.

 

— Vocês nunca me pegarão vivo! — uivou ele, delirante de alegria. — Vocês são os ratos nojentos que mataram meu irmão menor! Verei alguns de vocês no inferno, antes que me peguem!

 

Com dedos trêmulos, recarregou o Magnum e em seguida encheu o magazine do Weatherbee.

 

— Dawes! — berrou novamente Fenner. — Que tal um acordo.’’

 

— Que tal um pouco de chumbo quente, seu advogado safado! — gritou ele para Fenner.

 

Mas estava olhando para o carro da polícia e quando o tira que usava óculos de sol levantou sorrateiro a cabeça por cima do capo, com dois tiros obrigou-o a mergulhar. Um deles atravessou a janela panorâmica da casa dos Quinns, no outro lado da rua.

 

— Dawes! — voltou a berrar Fenner, cm tom importante. Um dos policiais observou:

 

— Oh, cale essa boca. O senhor está apenas dando coragem a ele.

 

Seguiu-se um silêncio embaraçado e nele o som de sirenes, ainda distante, começou a subir nos ares. Pôs o Magnum de lado e levantou o fuzil. O delírio jubiloso acabara, deixando-o cansado, dolorido, e com vontade de defecar.

 

Por favor, Deus, rezou, fazei com que o pessoal das estações de TV chegue logo. Rápidos, com suas câmeras.

 

Quando o primeiro carro da polícia guinchou em volta da esquina em uma derrapagem calculada de corrida de automóveis, como numa cena de Operação França, ele estava pronto. Disparou dois obuses do hoivitzer por cima da radiopatrulha parada para obrigar os policiais que se encontravam ali a permanecerem agachados, apontou com todo o cuidado para a grelha do radiador do carro que avançava e apertou o gatilho, como um experimentado veterano tipo Richard Widmark, a grelha como que explodiu e o capo subiu para as alturas. O carro passou roncando por cima do meio-fio a uns 40cm de distância e chocou-se com uma árvore. As portas foram abertas e quatro policiais saltaram, armas nas mãos, parecendo aturdidos. Dois deles se chocaram. Nessa ocasião, os policiais que se encontravam atrás da primeira radiopatrulha (seus policiais, era como pensava neles, com um ar de proprietário) abriram fogo e ele submergiu atrás da espreguiçadeira, enquanto as balas zuniam acima de sua cabeça. Faltavam 17 minutos para as 11h. Nesse momento, pensou que eles tentariam flanqueá-lo.

 

Levantou a cabeça, porque tinha que olhar, e uma bala zuniu passando por sua orelha direita. Mais duas radiopatrulhas vinham subindo a Crestallen Street, procedentes de outra direção, sirenes uivando, luzes azuis relampejando. Dois policiais do carro que se chocara com a árvore estão tentando passar por cima da cerca de taliscas que separa a calçada do quintal dos Upslingers. Usou o fuzil três vezes contra, atirando não para acertar ou errar, mas apenas para obrigá-los a voltar para o carro. O que fizeram. Madeira da cerca de Wilbur Upslinger (que se cobria de hera na primavera e no verão) espalhou-se por todos os lados e parte caiu na neve.

 

As duas novas radiopatrulhas haviam parado em um V que bloqueava a ma em frente à casa de Jack Hobart. A polícia se agachou no vértice do V. Um dos policiais, usando um walkie-talkie, falava com os colegas no carro amassado. Um momento depois, os recém-chegados iniciaram uma pesada barreira de fogo de cobertura, obrigando-o a abaixar-se novamente. O espelho no saguão explodiu numa chuva de diamantes misturados. Uma bala furou a colcha que cobria o TV Zenith e a colcha por um momento dançou ali.

 

Rastejou sobre mãos e joelhos pela sala de estar e levantou-se junto à pequena janela que ficava ao lado da TV. Dali podia olhar diretamente para o quintal dos Upslingers. Dois policiais tentavam novamente uma manobra de flanco. Um deles tinha um ferimento no nariz.

 

Freddy, talvez eu tenha que matar um deles, para fazê-los parar.

 

Não faça isso, George. Por favor, não faça isso.

 

Quebrou a janela com a coronha do Magnum, cortando a mão. Os policiais olharam para a direção do ruído, viram-no e começaram a atirar. Respondeu ao fogo e viu duas de suas balas abrirem buracos no novo telheiro de alumínio de Wilbur (teria a municipalidade o indenizado por aquilo?). Ouviu balas cravando-se em sua própria casa, pouco abaixo da janela e nos dois lados. Uma delas reboteou do peitoril e estilhas de madeira bateram em seu rosto. Esperava que uma bala, a qualquer momento, arrancasse o topo de sua cabeça. Não soube quanto tempo durou aquela troca de tiros. De repente, um dos policiais agarrou o próprio antebraço e gritou. Deixou cair a arma como uma criança que se cansou de uma brincadeira estúpida. Correu num pequeno círculo. O companheiro agarrou-o e os dois começaram a correr de volta à radiopatrulha acidentada, o que estava ileso com o braço passado em torno da cintura do colega.

 

Caiu de novo sobre as mãos e joelhos e rastejou de volta para a espreguiçadeira virada. Espiou para fora. Mais duas radiopatrulhas haviam chegado à ma, uma de cada extremidade. Pararam no lado da rua onde ficava a casa dos Quinns, e oito policiais desceram e correram para se abrigar atrás do carro de pneus arriados e do seda verde.

 

Abaixou novamente a cabeça e coleou na direção do vestíbulo. A casa estava sendo nesse momento submetida a uma nutrida fuzilaria. Sabia que devia levar o fuzil para o andar superior, de onde teria um ângulo de visão melhor e talvez pudesse expulsá-los daquele lugar atrás dos carros e obrigá-los a procurar proteção nas casas do outro lado da ma. Mas não ousava ficar tão longe assim do pavio mestre e da bateria. O pessoal da TV poderia chegar a qualquer momento.

 

A porta da frente se transformara numa peneira, tantos eram os buracos de balas, o verniz marrom-escuro estilhaçado para trás e mostrando a madeira bruta. Rastejou até a cozinha. Todas as janelas estavam quebradas e vidro partido cobria o linóleo. Um tiro perdido derrubara o bule que estivera em cima do fogão que nesse momento descansava numa poça de lama marrom. Agachou-se embaixo da janela por um momento, depois levantou-se de chofre e esvaziou o Magnum nos carros estacionados em forma de V. Imediatamente, o fogo inimigo intensificou-se na direção da cozinha. Dois buracos de bala apareceram no esmalte branco do refrigerador e outro acertou a garrafa de Southern Comfort que se encontrava em cima da bancada, explodiu-a e espalhou vidro e hospitalidade sulista por todos os lados.

 

Engatinhando, voltou à sala de estar e sentiu alguma coisa parecida com uma picada de abelha na parte carnuda da coxa direita imediatamente abaixo das nádegas e, quando levou a mão ao local, retirou-a com os dedos melados de sangue.

 

Deitado atrás da espreguiçadeira, recarregou o Magnum. E também o Weatherbee. Levantou a cabeça e baixou-a imediatamente, contorcendo-se, com a ferocidade do fogo despejado contra ele, balas atingindo o sofá, a parede e a TV, fazendo a colcha saracotear. Levantou a cabeça e atirou nos carros parados no outro lado da rua. E viu...

 

No alto da rua, uma camioneta e um caminhão coberto, branco, Ford. Em letras azuis nos lados de ambos os veículos, leu:

 

WHLM — REPORTAGEM CANAI9

 

Arquejando, rastejou de volta para a janela que dava para o pátio lateral da casa dos Upslingers. Os novos veículos desciam lenta e hesitantemente a Crestallen Street. De repente, um novo carro de polícia ultrapassou-os e bloqueou-os, os pneus soltando fumaça. Um braço vestido de azul saltou da janela da radiopatrulha e começou á acenar para os veículos da reportagem, mandando que se afastassem.

 

Uma bala atingiu o peitoril da janela e saltou enviesada para dentro da sala.

 

Engatinhou de volta para a espreguiçadeira, segurando o Magnum na sanguinolenta mão direita e gritou:

 

— Fenner!

 

O tiroteio amainou um pouco.

 

— Fenner! — voltou a gritar.

 

— Suspendam o fogo!— berrou Fenner. — Parem! Parem por um minuto! Alguns tiros isolados foram disparados mas depois houve silêncio.

 

— O que é que você quer? — perguntou em voz alta Fenner.

 

— A imprensa! Atrás desses carros, no outro lado da rua! Quero falar com a imprensa!

 

Seguiu-se uma pausa longa, de deliberação.

 

— Não! — berrou Fenner.

 

— Eu suspendo o fogo se puder falar com a imprensa! Essa parte era verdade, pensou, olhando para a bateria.

 

— Não! — voltou a gritar Fenner.

 

Filho da puta, pensou, impotente. Isso é assim tão importante para você? Para você, Ordner e todo o resto de vocês, seus burocratas safados?

 

O tiroteio recomeçou, experimental no início, mas depois ganhando volume. Nesse momento, inacreditavelmente, um homem usando camisa quadriculada e blue jeans começou a descer correndo a calçada, trazendo na mão uma câmera portátil.

 

— Eu ouvi isso! — gritou o homem de camisa quadriculada. — Ouvi cada palavra! Vou descobrir seu nome, cara. Ele ofereceu suspender o fogo e você...

 

Um policial atingiu-o com um mergulho voador, à altura da cintura, e o homem de camisa quadriculada desabou na calçada. A câmera de vídeo voou para a sarjeta e um momento depois três balas reduziram-na a pedaços piscantes. Um carretel de filme virgem desenrolou-se preguiçosamente nos restos da câmera. Mas nesse momento o fogo diminuiu, tomou-se esporádico.

 

— Fenner, deixe que eles instalem o equipamento! — rugiu ele.

 

Sentia a garganta em carne viva, dolorida, como aliás o resto do corpo. A mão doía e uma dor forte e latejante começava a irradiar-se da coxa.

 

— Saia daí primeiro! — berrou Fenner em resposta. — Nós deixaremos que você conte sua versão da história!

 

Uma fúria envolveu-o como se fosse uma onda vermelha ao ouvir essa deslavada mentira.

 

— MERDA! TENHO UMA ARMA DE GROSSO CALIBRE AQUI E VOU COMEÇAR A ATIRAR NOS TANQUES DE GASOLINA DOS CARROS, SEUS MERDAS, E VAI HA VER UM CHURRASCO E TANTO QUANDO EU ACABAR!

 

Um silêncio de choque.

 

Em seguida, cauteloso, Fenner perguntou:

 

— O que é que você quer?

 

— Mandem aqui esse cara que vocês derrubaram! Deixem o pessoal instalar o equipamento de vídeo!

 

— Absolutamente não! Não vamos lhe dar um refém para usar o dia inteiro!

 

Um policial correu agachado para o seda verde e abaixou-se atrás dele. Houve uma consulta ali.

 

Uma nova voz bradou:

 

— Há trinta homens atrás de sua casa agora, cara! Estão armados com escopetas! Saia ou mando que entrem!

 

Chegara a hora de jogar seu trunfo decisivo:

 

— É melhor que não façam isso! A casa toda está minada com explosivos. Olhe para isto!

 

Mostrou à janela o clipe-jacaré.

 

— Você está blefando! — respondeu confiante a voz.

 

— Se eu ligar isso à bateria de carro aqui ao meu lado no chão, a casa toda explode!

 

Silêncio. Mais consultas.

 

— Hei! — gritou alguém. — Peguem esse homem!

 

Levantou rápido a cabeça para olhar e lá vinha o homem de camisa quadriculada e jeans, bem ao meio da rua, sem nenhuma proteção, ou heroicamente seguro de sua profissão ou inteiramente louco. Os cabelos pretos compridos caíam-lhe até quase a gola da camisa e ele usava bigode fino, escuro.

 

Dois policiais iniciaram uma carga para pegar o jornalista mas mudaram de idéia quando disparou dois tiros sobre a cabeça deles.

 

-Jesus Cristo, que bagunça dos diabos! — exclamou alguém em agudo desgosto.

 

O homem de camisa quadriculada estava nesse momento no gramado de sua casa, levantando com os pés borrifos de neve. Alguma coisa buzinou ao lado de seu ouvido, seguida de um estrondo, e deu-se conta de que continuava olhando por cima da espreguiçadeira. Ouviu o som que o homem fazia tentando abrir a porta da frente e, depois, batidas de punhos.

 

Rastejou pelo chão, nesse momento pontilhado aqui e ali por pedaços de tijolo e reboco caídos das paredes. A perna direita doía como o diabo e quando olhou para baixo viu que a perna da calça estava suja de sangue até o joelho. Virou a chave na porta semidestruída e tirou a corrente do encaixe.

 

— Okay! — disse, e o homem de camisa quadriculada entrou num arranco.

 

Não parecia assustado, embora respirasse com dificuldade. Tinha um arranhão no rosto, uma lembrança do mergulho do policial, e estava rasgada a manga esquerda da camisa. Logo que ele entrou, voltou engatinhando para a sala de estar, pegou o fuzil e disparou cegamente duas vezes por cima da espreguiçadeira. Depois, virou-se. O homem de camisa quadriculada, em pé junto à soleira da porta, parecia inacreditavelmente calmo. Tirara do bolso traseiro da calça um grande bloco de notas.

 

— Muito bem, homem — disse. — Que merda é esta que está acontecendo aqui?

 

— Qual é o seu nome?

 

— Dave Albert.

 

— Aquele caminhão branco tem mais equipamento de filmagem?

 

— Tem.

 

— Vá até a janela. Diga à polícia para deixar uma equipe de vídeo instalar o equipamento no gramado da casa dos Quinns. É a casa que fica do outro lado da rua. Diga que se isso não for feito em cinco minutos, você vai ter problemas.

 

— Vou?

 

— Pode apostar. Albert riu.

 

— Você não dá a impressão de que me mataria, cara.

 

— Diga o que eu disse à polícia.

 

Albert foi até a janela estilhaçada e ficou nela emoldurado durante um segundo, obviamente saboreando aquele momento.

 

— Ele disse que minha equipe instalasse o equipamento no outro lado da rua! — berrou. — Disse que vai me matar se não fizerem isso.

 

— Não! — respondeu furioso Fenner. — Não, não, n... Alguém tapou-lhe a boca. Silêncio por um momento.

 

— Tudo bem! — Era a voz que o acusara de estar blefando sobre os explosivos. — Você deixará que dois de nossos homens vão lá buscar o material?

 

Ele pensou um pouco e inclinou a cabeça na direção do repórter.

 

— Ele deixa! — gritou Albert.

 

Houve Uma pausa e em seguida dois policiais uniformizados foram trotando desajeitados na direção do carro de reportagem, cujo motor girava preguiçosamente em ponto morto. Entrementes, mais duas radiopatrulhas haviam chegado. Inclinando-se bem para a direita, ele viu que o fim ladeiroso da Crestallen Street West fora bloqueado. Uma grande multidão se formara atrás de cavaletes amarelos de isolamento.

 

— Okay — disse Albert, sentando. — Temos um minuto? O que é que você quer? Um avião?

 

— Avião? — repetiu ele, estupidamente.

 

Albert bateu os braços, imitando asas, ainda segurando o bloco.

 

— Para voar para longe, homem. Simplesmente, voaaaaar.

 

— Oh. — Inclinou a cabeça, para mostrar que compreendera. — Não, não quero avião.

 

— Neste caso, o que é que quer?

 

— Eu quero — disse ele, pesando as palavras — ter apenas vinte anos novamente, com um bocado de decisões para tomar outra vez. — Notou a expressão nos olhos de Albert e acrescentou: — Sei que não posso. Não sou tão doido assim.

 

— Você está bêbado.

 

— Estou.

 

— E isso aí o que disse que era?

 

Apontava nesse momento para o pavio e a bateria.

 

— É. O pavio principal se distribui por todos os cômodos da casa. E também pela garagem.

 

— Onde foi que você arranjou os explosivos?

 

Albert falava em voz cordial, mas os olhos estavam alertas.

 

— Encontrei-os na minha meia de Natal. O repórter riu.

 

— Hei, isso não é nada mau. Vou usar isso em minha matéria.

 

— Ótimo. Quando sair daqui, é melhor que diga aos policiais para se afastarem.

 

— Você vai se explodir, juntamente com a casa? — perguntou Albert. Parecia interessado, nada mais.

 

— Estou pensando nisso.

 

— Quer saber de uma coisa, cara? Você viu filmes demais.

 

— Eu não vou mais ao cinema. De fato, vi O Exorcista, embora preferisse não ter visto. Onde é que seus cinegrafistas estão indo?

 

Albert olhou pela janela.

 

— Muito bem. Temos mais uni minuto. Seu nome é Dawes?

 

— Disseram-lhe isso? Albert riu, desdenhoso.

 

— Eles não me diriam se eu tivesse câncer. Li o nome na maçaneta da porta. Você se importaria em me dizer por que está fazendo tudo isso?

 

— Em absoluto. É a auto-estrada.

 

— O prolongamento?

 

Os olhos de Albert tornaram-se mais brilhantes. Começou a rabiscar o bloco.

 

— Ela mesma.

 

— Tomaram sua casa?

 

— Tentaram. Eu é que vou tomá-la.

 

Albert anotou isso, fechou com um estalido o bloco e enfiou-o no bolso traseiro da calça.

 

— Isso é muito estúpido, sr. Dawes. Importa-se se eu disser isso? Por que simplesmente não sai daqui comigo?

 

— Você conseguiu uma matéria exclusiva — respondeu ele, cansadamente. — O que é que está tentando conseguir, o Prêmio Pulitzer?

 

— Eu o aceitaria, se me fosse oferecido. — Sorriu alegre e em seguida ficou sério. — Vamos, sr. Dawes. Vamos sair daqui. Eu providencio para que seu lado da história seja conhecido. Eu providencio...

 

— Não há lado nenhum. Albert franziu as sobrancelhas.

 

— O que foi que o senhor disse?

 

— Eu não tenho lado. É esse o motivo por que estou agindo assim. — Olhou por cima da espreguiçadeira e encarou uma lente de telefoto montada sobre um tripé armado na neve do gramado dos Quinns. — Vá, agora. Diga a eles para se afastarem daqui.

 

— O senhor está mesmo pronto para puxar o fio?

 

— Não sei, realmente.

 

Albert foi até a porta da sala de estar, parou, virou-se.

 

— Será que eu o conheço de algum lugar? Por que continuo a pensar que o conheço?

 

Ele sacudiu a cabeça. Achava que nunca vira Albert antes em toda a sua vida.

 

Observando o jornalista cruzar de volta seu gramado, em um leve ângulo para que a câmera no outro lado pegasse seu lado mais fotogênico, perguntou a si mesmo o que Olívia estaria fazendo nesse exato momento.

 

Esperou 15 minutos. O fogo da polícia aumentara mas ninguém tentara invadir a casa pelos fundos. O principal objetivo da fuzilaria parecia ser o de cobrir-lhe a retirada para as casas no outro lado da rua. A equipe de cinegrafistas ficou onde estava durante algum tempo, trabalhando impassivelmente. Em seguida a Econoline branca foi levada para o gramado lateral dos Quinns. O homem atrás do tripé desmontou-o, levou-o para trás do caminhão e voltou a filmar.

 

Alguma coisa preta e tubular zumbiu pelo ar, aterrou no seu gramado, a meia distância entre a casa e a calçada e começou a espirrargás. O vento pegou-o e levou-o rua abaixo em marolas rasgadas. O segundo obus caiu mais distante e em seguida ouviu o terceiro bater no telhado com um baque surdo. Sentiu o cheiro daquele quando caiu na neve, cobrindo as begônias de Mary. Seu nariz e olhos encheram-se de lágrimas de crocodilo.

 

Novamente, correu pela sala de estar sobre os pés e as mãos, rezando para que não houvesse dito àquele jornalista, Albert, coisa alguma que pudesse ser mal interpretada como profunda. Não havia um bom lugar no mundo onde tomar uma posição. Veja só o caso de Johnny Walker, morrendo num acidente de carro em uma esquina comum. Pelo que morrera ele? Para que os lençóis continuassem a chegar? Ou aquela mulher no supermercado? A merda que se conseguia nunca valia a força que se fazia.

 

Virou-se para o estéreo e descobriu que ainda funcionava. O disco dos Rolling Stones continuava no prato e colocou a última faixa, errando o sulco certo na primeira vez quando uma bala atingiu com um som surdo a colcha que cobria o aparelho de tevê.

 

“Você não pode ter sempre o que quer”, cantava o estéreo, e ele sabia que isso era um fato. Mas isso não impedia o cara de continuar a querer. Uma granada de gil lacrimogêneo entrou em arco pela janela, bateu na parede acima do sofá e explodiu em fumaça branca.

 

“Mas se tentar alguma coisa, talvez encontre, Talvez consiga o que precisa.”

 

Bem, vejamos, Fred. Pegou o clipe-jacaré. Vamos ver se consigo o que preciso.

 

— Okay — murmurou e tocou com o clipe vermelho no pólo negativo da bateria.

 

Fechou os olhos e seu último pensamento foi que o mundo não estava explodindo em volta dele, mas dentro, e embora a explosão fosse cataclísmica, foi maior, digamos, do que uma noz de bom tamanho.

 

Em seguida, o branco.

 

 

 

Epílogo

 

A equipe de jornalismo da WHLM ganhou o Prêmio Pulitzer pela cobertura do que chamou de “A Última Trincheira de Dawes” no noticiário daquela noite e por um documentário de meia hora apresentado três semanas depois. O documentário, intitulado “A Auto-Estrada”, examinava a necessidade — ou dispensabilidade — da 784. O documentário observava que a única razão pela qual a estrada estava sendo construída nada tinha a ver com a organização do tráfego, a conveniência dos usuários ou qualquer coisa de tipo prático assim. A municipalidade tinha que construir certo número de quilômetros de estrada por ano ou perderia verbas federais destinadas à construção de estradas interestaduais. Em vista disso, a prefeitura resolvera construir. O documentário observava também que a municipalidade estava discretamente iniciando uma ação contra a viúva de Barton George Dawes para recuperar quanto pudesse do dinheiro que pagara. Dada a celeuma provocada, a municipalidade desistira da ação.

 

Fetos dos escombros foram transmitidas pela AP e publicadas pela maioria dos jornais do país: Em Las Vegas, uma mocinha, que recentemente se matriculara numa escola de administração de empresas, viu as fotos na hora do almoço e desmaiou.

 

A despeito das fotos, matérias e legendas, a obra do prolongamento da estrada continuou e foi completada 18 meses depois, antes do prazo previsto. Por essa altura, a maioria dos moradores da cidade esquecera o documentário “A Auto-Estrada”, e a brigada jornalística da cidade, incluindo o laureado Pulitzer, David Albert, passara a ocupar-se de outras matérias e cruzadas. Algumas pessoas que assistiram à reportagem ao vivo no noticiário daquela noite nunca o esqueceram, lembravam-se dele mesmo depois que se desvaneceram em suas mentes os contornos dos fatos que cercaram o acontecimento.

 

A reportagem mostrou uma casa suburbana simples, uma espécie de casa de fazenda com uma entrada asfaltada à direita para a garagem com capacidade de um único carro. Uma casa simpática, mas inteiramente comum. Não uma casa que a gente espicharia o pescoço para ver se estivesse dando um passeio de carro no domingo. No noticiário, porém, a janela aparecia despedaçada. Duas armas, um fuzil e ura revólver, são lançadas por ela e caem na neve. Durante um segundo, vê-se a mão que os jogou, os dedos frouxamente erguidos como a mão de um homem que se afoga. Fumaça branca cerca a casa, gás paralisante, gás lacrimogêneo ou qualquer outra coisa. Em seguida, um arroto imenso de chamas alaranjadas e as paredes da casa se envergam para fora em uma convexidade impossível de desenho animado, uma imensa detonação e a câmera treme um pouco, como se horrorizada. Perifericamente, o espectador toma conhecimento de que a garagem foi destruída em um único e devastador furacão. Durante um segundo, parece (e o replay em câmera lenta prova que a impressão de fração de segundo do olho estava correta) que o telhado da casa ergueu-se dos beirais como se fosse um foguete Saturno. Em seguida, toda a casa explode, para fora e para cima, telhas voando, pedaços de madeira arremessados no ar e caindo de volta à terra, uma coisa que parece uma colcha contorcendo-se preguiçosamente no ar como um tapete mágico, enquanto detritos caem como metralha no chão, servindo de contraponto à batida do tambor surdo.

 

Silêncio.

 

E depois, o rosto chocado, estriado de lágrimas de Mary Dawes enche a tela. Com uma confusão horrorizada de pessoa sedada, ela olha para a floresta de microfones enfiados em seu rosto, e, mais uma vez, voltamos em segurança às coisas humanas.

 

                                                                                            Stephen king  

 

                      

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