Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A AVENTURA NO BARCO / Enid Blyton
A AVENTURA NO BARCO / Enid Blyton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A AVENTURA NO BARCO

 

‑ Bem, vocês partilham da nossa mãe, não é verdade? ‑ atalhou logo Filipe. ‑ Chamam‑lhe tia Lia, e ela trata‑os como se fosse vossa mãe.

‑ Sim. Eu sei. Ela é muito nossa amiga ‑ respondeu Maria da Luz e depois calou‑se. Estava preocupada por causa de Jaime.

Supondo que a tia Lia realmente mantinha a sua palavra e se recusava a falar ao Jaime por tê‑los posto em perigo? Isso seria realmente catastrófico.

Era de enlouquecer navegar para longe de todas aquelas românticas ilhotas, exactamente depois de uma aventura daquelas, sem saber o que tinha acontecido depois de eles partirem. Que teria feito o Sr. Eppy? Que lhe teria acontecido? Como teria ele saído da ilha, ou ainda lá estaria? E quanto ao tesouro, aquele fabuloso e espantoso tesouro escondido naquela câmara circular lá muito fundo, no coração de uma cidade morta?...

 

 

         UM GRANDE PLANO PARA FÉRIAS

‑ A mãe anda a preparar alguma surpresa ‑ disse Filipe Mannering. ‑ Com certeza. Tem um ar muito misterioso.

‑ Sim ‑ respondeu a irmã, Dina. ‑ Sempre que lhe pergunto o que vamos fazer nestas férias, ela diz apenas: «Espera e verás!» Como se tivéssemos ainda dez anos!

‑ Onde está o João? ‑ perguntou Filipe.‑Vamos ver se ele conhece os planos da mãe.

‑ Saiu com a Maria da Luz ‑ disse Dina. ‑ Ah! Estou a ouvir a velha Didi a guinchar. Lá vêm eles!

João e Maria da Luz entraram juntos, muito parecidos um com o outro, com os seus cabelos ruivos, os seus olhos verdes e os rostos cheios de sardas. João riu.

‑ Olá! Haviam de ter estado connosco há bocado. Um cão pôs‑se a ladrar para a Didi; ela empoleirou‑se numa grade e pôs‑se a miar como um gato. Nunca na minha vida vi um cão tão pasmado.

‑ Meteu o rabo entre as pernas e pôs‑se a fugir ‑ disse Maria da Luz, coçando a cabeça da Didi. O animal percebeu que os pequenos estavam a falar dela e começou outra vez a miar. Depois soprou e rosnou como um gato zangado. Os garotos riram‑se.

‑ Se tivesses feito isso ao cão, ele morreria de pasmo ‑ comentou João. ‑ Querida Didiinha. Ninguém poderá estar triste junto de ti.

A Didi começou a balouçar‑se de um lado para o outro e a fazer um ruído monótono. Depois soltou um dos seus tremendos cacarejos.

‑ Estás a exibir-te ‑ disse Filipe. ‑ É melhor não lhe darmos importância. Põe‑se a fazer barulho e a mãe entra por aí dentro.

‑ Isso lembrou‑me outra vez... porque será que a mãe anda tão‑ misteriosa? ‑ perguntou Dina. ‑ Maria da Luz, ainda não reparaste?

‑ Bem, a tia Lia tem o ar de quem anda a preparar uma surpresa ‑ disse Maria da Luz, pensando no caso. ‑ Exactamente como costuma fazer antes dos nossos aniversários. Eu, por mim, penso que ela já arranjou um plano para as férias grandes.

‑ Ora! Eu também arranjei um óptimo plano ‑ resmungou João. ‑ Simplesmente fantástico. E o melhor é propô‑lo antes que a tia Lia apresente o dela.

‑ Qual é o teu? ‑ perguntou Dina, muito interessada. João tinha sempre planos maravilhosos, embora muitos deles fossem irrealizáveis.

‑ Bem... penso que poderíamos partir todos juntos nas nossas bicicletas, levando connosco barracas de campanha, e acamparmos cada noite em lugar diferente ‑ respondeu João. ‑ Seria aliciante.

Os outros olharam‑no com ar de troça.

‑ Sugeriste isso nas férias passadas e nas anteriores também ‑declarou Dina. ‑ A mãe não achou bem e agora é natural que também não concorde. É um belo plano partirmos assim absolutamente sozinhos, mas como temos tido tantas aventuras a mãe nem sequer quererá ouvir falar nisso.

‑ E a tua mãe não poderia vir connosco? ‑ sugeriu Maria da Luz cheia de esperança.

‑ Ora, estás a ser palerma ‑ declarou Dina. ‑ A mãe é adorável, mas as pessoas crescidas são tão complicadas! Teríamos de vestir as nossas gabardinas logo às primeiras gotas de chuva, ou os casacos logo que o Sol encobrisse, e não me admiraria se tivéssemos de levar uma sombrinha atada ao guiador da bicicleta.

Os outros riram‑se.

‑ Então, julgo que será melhor não convidar a tia Lia ‑ lembrou Maria da Luz. ‑ Que pena!

«Que pena! Que pena!», concordou logo a Didi. «Limpem os pés e fechem a porta. Onde está o teu lenço, rapaz malcriado?».

‑ A Didi é que sabe bem como são as coisas! ‑ disse Filipe. ‑ É mesmo isso que as pessoas crescidas dizem, mesmo as mais simpáticas, não é, Didi, meu querido pássaro?

‑ O Jaime não é assim ‑ volveu logo Maria da Luz. ‑ O Jaime é estupendo.

Toda a gente concordou logo. Jaime Cunningham, ou o «Jaime Smugs», como ele primeiro lhes dissera ser o seu nome, era um amigo sincero e tinha partilhado as suas aventuras. Por vezes, os pequenos haviam‑no arrastado para elas e outras vezes dera‑se o inverso ‑ ele entrara numa aventura e as crianças tinham‑no seguido. Na verdade parecia, às vezes, como dizia a Sr.a Mannering que as aventuras surgiam onde quer que estivessem o Jaime e os pequenos.

‑ Eu também tive uma ideia para estas férias ‑ disse Filipe. ‑ Pensei que seria muito divertido acampar lá em baixo, junto do rio, e caçar lontras. Nunca domestiquei uma lontra. Como elas são encantadoras! Eu pensei...

‑ Claro que havias de pensar uma coisa desse género ‑ disse Dina, irritada. ‑ Justamente porque és louco por toda a espécie de bichos desde as pulgas até... até...

‑ Elefantes ‑ prosseguiu João amavelmente.

‑ ... desde pulgas até elefantes. Pensas que todos os outros também o são ‑ afirmou Dina. ‑ Que férias horríveis à busca de lontras molhadas e escorregadias, e com elas metidas na barraca à noite, suponho eu, e também com toda a espécie de outras coisas horríveis.

‑ Cala‑te Dina ‑ disse Filipe. ‑ As lontras não são horríveis. São encantadoras. Havias de vê‑las nadar

debaixo de água. E, a propósito, eu não sou louco por pulgas, ou por mosquitos, ou por moscardos. Acho‑os interessantes, mas não posso dizer que já alguma vez os tivesse domesticado.

‑ E aqueles tira‑olhos que tiveste uma vez e que fugiram da porcaria daquela gaiola que fizeste para eles? Ui! E aquele escaravelho que fazia habilidades? E aquele...

‑ Oh, que diabo! Acabemos com isto! ‑ atalhou João, que sentiu estar prestes a rebentar uma daquelas questões familiares entre Filipe e a impulsiva Dina. ‑ Julgo que vamos ouvir agora uma longa lista dos favoritos de Filipe. Mas olhem, lá vem a tia Lia. Podemos perguntar‑lhe o que pensa dos nossos projectos de férias. Apresenta‑lhe primeiro o teu, Filipe.

A Sr.a Mannering entrou com um livrinho na mão. Olhou a sorrir para as quatro crianças, e a Didi, deliciada, arrebitou a poupa como que a dar‑lhe as boas‑vindas.

«Limpa os pés e fecha a porta», disse ela com voz amigável. «Um, dois, três, partida!» Fez um ruído semelhante a um tiro de pistola depois da palavra «partida» e a Sr.a Mannering deu um pulo, assustada.

‑ Não se assuste, mãe, ela faz isto desde que assistiu aos nossos jogos na escola e ouviu o árbitro gritar assim para nós, e disparar a pistola ‑ explicou Filipe a rir. ‑ Uma vez imitou este estampido exactamente quando estávamos todos alinhados na linha de partida, e todos partimos antes de tempo! Havia de a ter ouvido a cacarejar. Que maldosa!

«Marota da Lena, pobre Lena, que pena, que pena», fez a Didi. João bateu‑lhe com as pontas dos dedos no bico.

‑ Está calada. As catatuas são para se verem e não para se ouvirem. ‑ Tia Luísa, estávamos aqui a falar de planos para as férias. Julgo que seria uma ideia esplêndida se nos deixasse partir nas bicicletas, seguir para onde nos apetecesse e acampar todas as noites em local diferente.

Bem sei que não concordou quando lhe propus este projecto da outra vez, mas...

‑ E continuo a não estar de acordo ‑ disse a Sr.a Mannering com firmeza.

‑ Então, mãe, poderíamos ir acampar junto do rio porque queria fazer umas investigações acerca das lontras ‑ disse Filipe, não reparando na careta da Dina. ‑ Bem vê que...

‑ Não, Filipe! ‑ cortou a mãe, tão firme como anteriormente ‑ E bem sabem a razão por que não os deixo partir para expedições dessa natureza. Julguei que já tinham desistido de pedir coisas desse género.

‑ Mas por que não nos deixa ir? ‑ choramingou Maria da Luz. ‑ Estaríamos em perfeita segurança.

‑ Olha;, Luzinha.. bem sabes que logo que os deixo sair para longe da minha vista, quando chegam as férias, vocês imediatamente, sim, imediatamente, vão meter‑se na mais horrível aventura que possa imaginar‑se.

A Sr.a Mannering parecia intransigente.

‑ E estou absolutamente resolvida a não vos deixar partir sozinhos este ano. Portanto, de nada serve insistir nesse pedido.

‑Mas, mãe, isso é ideia sua ‑ disse Filipe, desolado. ‑ Fala como se fôssemos em busca de aventuras. Não vamos.

E perguntou‑lhe: ‑ Que espécie de aventura nos poderia suceder, acampados lá em baixo, junto do rio? Podia ir até todas as noites ver‑nos, se quisesse.

‑ Sim, e logo na primeira noite em que eu lá fosse veria que tinham desaparecido e que estavam metidos com ladrões;, espiões ou maltrapilhos de qualquer espécie

‑ respondeu a mãe. ‑ Pensem nalgumas das vossas passadas férias. Uma vez perderam‑se numa mina de cobre numa ilha deserta... Outra vez meteram‑se numa masmorra de um velho castelo, e num sarilho com espiõesi...

‑ Oh, sim, e de outra vez enganámo‑nos mo avião e fomos lançados na aventura no vale ‑ corroborou Maria da Luz, recordando. ‑ Foi dessa vez que descobrimos aquelas estranhas estátuas roubadas e escondidas nas cavernas; como os seus olhos brilhavam quando as vimos! Pensei que eram pessoas vivas, mas não eram!

‑ E, depois, quando fomos com o Jaime para a ilha dos pássaros ‑ acrescentou João. ‑ Foi estupendo! Tínhamos dois mergulhões amansados, lembras‑te Filipe?

«O Bufo e o Bufão», fez logo a Didi.

‑ Muito bem, seu pássaro ‑ apoiou Filipe. ‑ Eram o Bufo e o Bufão. Eu adorava‑os.

‑ Talvez fossem à procura de pássaros, mas encontraram um antro de patifes ‑ respondeu a mãe. ‑ Contrabandistas de armas! Que perigo!

‑ Bem, mãe, e as férias do ano passado? ‑ lembrou Dina. ‑ A mãe viu‑se também quase metida naquela aventura!

‑ Que horror! ‑ recordou a Sr.a Mannering, estremecendo. ‑ Aquela horrível montanha com os seus estranhos segredos e o seu louco rei; vocês por pouco não ficavam lá. Não, digo‑lhes de uma vez para sempre que nunca mais partirão sozinhos para lado algum. Irei sempre convosco!

Todos se calaram. As quatro crianças adoravam a Sr.a Mannering, mas gostavam de estar sós nas férias.

‑ Bem, tia Lia, e se o Jaime viesse connosco, assim estaria tudo bem, não é verdade? ‑ perguntou Maria da Luz. ‑ Sinto‑me sempre perfeitamente segura com o Jaime.

‑ Nele também não pode confiar‑se para que não caia em aventuras ‑ volveu a Sr.a Mannering. ‑ Jaime é uma excelente pessoa, concordo, e confio mais nele do que em qualquer outra pessoa do mundo. Mas quando vocês e ele se juntam, nunca se sabe o que pode acontecer. Assim, para estas férias tenho um plano mais seguro; o querido Jaime não está incluído nele, e desta maneira talvez fiquemos livres de perigos e de acontecimentos extraordinários.

‑ Qual é o seu plano, mãe? ‑ perguntou Dina novamente. ‑ Não me diga que vamos para um hotel à beira‑mar ou coisa parecida. Nunca aceitariam a Didi.

‑ Partiremos todos num cruzeiro num grande navio ‑ disse a Sr.a Mannering, sorrindo. ‑ Sei que hão‑de gostar disso. É extraordinariamente divertido. Aportaremos a toda a espécie de lugares e veremos toda a sorte de coisas estranhas e emocionantes e estarão sempre debaixo da minha vista; o barco será a nossa casa durante algum tempo, e quando chegarmos aos portos sairemos em grupo. Não haverá oportunidade para qualquer aventura estranha.

As quatro crianças olharam umas para as outras. A Didi observou‑as. Foi Filipe quem falou primeiro.

‑ Parece muito aliciante, mãe! Sim, na verdade parece. Realmente nunca estivemos num navio grande. Claro que vou sentir a falta de alguns animais...

‑ Oh, Filipe! Com certeza que podes dispensar a tua eterna feira de bichos!‑gritou Dina. ‑ Devo declarar que será para mim um grande alívio saber que não trazes contigo ratos, sardões ou lagartas! Mãe, na minha opinião tudo isso é estupendo. Obrigada por ter imaginado uma coisa que me enche de entusiasmo.

‑ Sim, parece formidável ‑ concordou João. ‑ Vamos ver uma infinidade de pássaros que desconheço.

‑ Oh, o João fica contente logo que visiona qualquer coisa que lhe proporcione pássaros ‑ comentou Maria da Luz a rir. ‑ Ao pensar em Filipe, com a sua loucura por toda a espécie de bichos, e em João, com a sua paixão por pássaros, sinto‑me contente por nós, raparigas, não termos paixões por qualquer outra coisa. Tia Lia, que belo plano o seu! Quando partimos?

‑ Na próxima semana ‑ disse a Sr.a Mannering. ‑ Temos, assim, bastante tempo para aprontarmos e emalarmos tudo. Fará calor durante o cruzeiro; por isso, levaremos bastantes roupas leves.

Branco será o melhor; não concentra tanto o calor. E terão de usar sempre chapéus para o sol; portanto, não se ponham a resmungar contra a ideia de levarem chapéus.

‑ O Jaime não vem connosco? ‑ indagou Filipe.

‑ Não ‑ disse a mãe peremptoriamente. ‑ Sinto que não me fica bem resolver o caso assim, porque ele acabou agora mesmo o trabalho que andava a fazer e precisa de férias, mas, desta vez, não irá connosco. Preciso de umas férias sossegadas e sem aventuras.

‑ Pobre Jaime! ‑ lamentou Maria da Luz. ‑ No entanto, talvez ele fique também contente por passar as férias sem nós, para variar. Bem... vai ser divertido, não lhes parece?

«Divertido», fez a Didi, juntando‑se à alegria geral e soltando um guincho de entusiasmo. «Divertido, divertido.»

 

         NO «ESTRELA DOS MARES»

Na verdade, os preparativos da viagem eram divertidos: comprar fatos leves e enormes chapéus, rolos para as máquinas fotográficas, guias de viagem e mapas. Ia ser uma longa excursão e o barco devia tocar em Portugal, na Madeira, em Marrocos, na Espanha, na Itália e nas ilhas do mar Egeu. Que maravilhosa viagem!

Por fim tudo ficou incluído, com as malas fechadas e afiveladas. Foram buscar os bilhetes. Quando chegaram os passaportes, todos soltaram exclamações ao verem como tinham ficado nas fotografias.

A Didi também gritou para fazer coro. Gostava de guinchar e gritar, mas não lhe concediam muitas oportunidades e era uma rica ocasião para o fazer.

‑ Cala‑te, Didi ‑ ordenou João, sacudindo‑a do ombro. ‑ Imaginem, a gritar assim junto do meu ouvido! É o suficiente para me fazer surdo como uma porta. Tia, a Didi também precisará de passaporte?

‑ Claro que não‑respondeu a Sr.a Mannering.‑Nem sequer tenho a certeza se nos dão licença para que ela nos acompanhe.

João, desolado, olhou para ela.

‑ Mas... eu não poderei ir se a Didi não for. Não poderia deixá‑la só. Ficaria tristíssima.

‑ Bem, vou escrever a perguntar se podes levá‑la ‑ disse a Sr.a Mannering. ‑ Mas se negarem autorização não podes reclamar, João. Deu‑me imenso trabalho organizar esta viagem e não estou disposta a que inutilizes todo o meu esforço por causa da Didi.

Não me parece que obtenhamos licença para a levar... Tenho a certeza de que os passageiros reclamariam contra a presença de um pássaro tão barulhento como este.

‑ Se ela quiser, poderá ficar absolutamente silenciosa ‑ disse João.

A Didi escolheu aquele momento para ter um ataque de soluços. Imitava os soluços com muita naturalidade, o que irritava muito a Sr.a Mannering.

‑ Pára com isso, Didi ‑ ordenou‑lhe ela. A Didi obedeceu e olhou com ar de censura para a Sr.a Mannering. Começou então a tossir, uma tossezinha seca, imitando o jardineiro.

A Sr.a Mannering tentou manter‑se séria. ‑ Este pássaro é tão idiota! ‑ disfarçava ela. ‑ É mesmo parvo. Onde pus a lista do que tenho de fazer antes de partirmos?

«Um, dois, três, partida!», fez a Didi, e João conseguiu que ela se calasse a tempo de impedir que imitasse o ruído de um tiro de pistola. A Sr.a Mannering saiu do quarto e João dirigiu‑se solenemente à Didi.

‑ Didi, possivelmente terás de ficar cá, minha querida. Não poderia prejudicar tudo à última hora por causa de ti. Mas farei o que puder, portanto, alegra‑te.

«Deus salve o rei», fez a Didi, vendo, pela cara de João, que aquele devia ser um momento solene. «Pobre Lena! Marota da Lena!.»

 

Os últimos dias decorreram lentamente e Maria da Luz lamentou‑se:

‑ Por que será que o tempo passa sempre tão lentamente quando desejamos que chegue alguma coisa? É aborrecido. Parece que a sexta‑feira nunca mais vem!

João não estava tão entusiasmado como os companheiros, porque haviam recebido uma comunicação onde se dizia que não podiam levar aves palradoras para bordo. As quatro crianças ficaram bastante aborrecidas e João mostrou‑se particularmente desorientado. Mas não protestou nem incomodou a Sr.a Mannering.

Ela teve pena do rapaz e prometeu‑lhe falar a uma mulher da aldeia que se encarregaria da Didi.

‑ Ela teve também uma catatua ‑ acrescentou. ‑ Espero que goste da tua Didi.

‑ Não, obrigado, tia Lia. Eu arranjarei alguma coisa ‑ respondeu João. ‑ Não falemos mais no caso.

A Sr.a Mannering não replicou, e até mesmo quando a Didi se empoleirava na mesa do chá e depenicava todas as passas do bolo, antes que alguém desse por isso, não protestava.

Na sexta‑feira partiram os cinco no carro da Sr.a Mannering para Southampton, seguidos de outro carro com a bagagem. Estavam num estado de grande excitação. Todos ficaram encarregados de levar alguma coisa e Maria da Luz estava a olhar para a sua bagagem para se assegurar de que não houvera descaminho.

Pernoitaram num hotel para embarcar às oito e meia da manhã a fim de aproveitar a maré. Às onze horas já estariam longe;, navegando rumo a França. Que entusiasmo!

Depois de jantarem muito bem no hotel, a Sr.a Mannering teve a ideia de os convidar para irem ao cinema. Estava certa de que nenhum dos pequenos conseguiria dormir se os mandasse para a cama à hora habitual.

‑ Importa‑se se eu for procurar um amigo meu da escola, tia Lia? ‑ perguntou João. ‑ Ele vive em Southampton e eu gostava de lhe fazer uma surpresa com a minha visita.

‑ Está bem ‑ respondeu a Sr.a Mannering. ‑ Mas não venhas tarde. Também queres acompanhar João, Filipe?

‑ Quem é ele, João? ‑ perguntou Filipe, mas João já ia a sair do quarto, e resmungou, qualquer coisa lá da porta.

‑ Que disse ele? ‑ perguntou Filipe.

‑ Pareceu‑me ouvir «porquinho» ‑ atalhou Dina.

‑ Porquinho? A quem se referiria? ‑ retorquiu Filipe. ‑ Talvez a um outro louco por pássaros, penso eu. Vou ao cinema. Quero ver o filme, tem animais selvagens.

Partiram para o cinema sem voltarem a ver João. Já estava em casa, quando eles regressaram, a ler um dos guias de viagem que a Sr.a Mannering tinha comprado.

‑ Olá! Viste o Porquinho? ‑ inquiriu Filipe. João fez‑lhe uma careta e ele ficou intrigado. Que se passava com João? Mudou rapidamente de assunto e pôs‑se a falar do filme que tinham visto.

‑ Agora vão para a cama ‑ interveio a Sr.a Mannering.‑ Pára com a conversa, Filipe. Toca a andar e lembrem‑se de que têm de se levantar às sete da manhã em ponto.

Todos acordaram muito antes das sete. As pequenas falaram uma com a outra e Filipe e João também se puseram a tagarelar. Filipe perguntou o que se tinha passado na noite anterior.

‑ Porque me mandaste calar quando te perguntei se tinhas visto o Porquinho? ‑ disse ele. ‑ E, a propósito, quem é esse Porquinho?

‑ É aquele tipo que se chama Leonardo ‑ respondeu João. ‑ Tinha essa alcunha. Já saiu do colégio há tempo. Estava sempre a pedir‑me emprestada a Didi, não te lembras?

‑ Ah, sim, pois, o Porquinho! ‑ exclamou Filipe. ‑ Já quase me tinha esquecido dele. João, que se passa? Estás com ar misterioso!

‑ Não me faças perguntas porque não quero responder‑te ‑ disse João.

‑ Estás a ser muito enigmático ‑ tornou Filipe. ‑ Penso que é qualquer coisa relacionada com a Didi. Tens‑te escusado a responder sempre que falamos nela. Pensamos que te afligiria o assunto e, por isso, não quisemos insistir.

‑ Bom, então não insistas ‑ disse João. ‑ Por agora nada quero dizer.

‑ Está bem ‑ concluiu Filipe, desistindo. ‑ Eu sei que tens qualquer ideia na cabeça. Anda, vamos levantar‑nos. Ainda não são sete horas, mas não podemos continuar na cama com uma manhã tão linda!

Exactamente às oito e meia estavam todos no barco. A Sr.a Mannering tomou posse das cabinas. Eram seguidas: uma individual para ela e duas de dois lugares para os outros.

Maria da Luz ficou encantada com as cabinas.

‑ Olhem, são exactamente como quartos de dormir ‑ disse. ‑ João, a vossa cabina é como a nossa? Olhem, nós até temos torneiras de água quente e fria.

‑ Nós temos uma ventoinha eléctrica a funcionar na nossa cabina ‑ disse Filipe, aparecendo à porta. ‑ É engenhoso, encantador e fresco. Vocês também têm uma.

‑ A água chega quase à nossa vigia‑ informou Dina, olhando para fora. ‑ Se por acaso o mar se tornasse bravo a água entrava pela vigia!

‑ Era preciso que ele estivesse muito agitado para que isso acontecesse ‑disse Filipe. ‑ Estou contente por estarmos ao nível da água. Será mais fresco com este tempo quente. Digam lá, isto não é estupendo? Estou ansioso por partir.

Foram todos ver a cabina da Sr.a Mannering, idêntica às deles, mas mais pequena. Depois foram visitar o navio. Muito grande, mas não de mais, era todo branco de cima a baixo: chaminés brancas, balaustrada branca e costado branco.

O seu nome lia‑se em todos os salva‑vidas brancos da coberta: Estrela dos Mares. Maria da Luz leu‑o mais de uma dúzia de vezes.

‑ Teremos amanhã exercícios de salva‑vidas, segundo espero ‑ disse a Sr.a Mannering, acompanhando‑os nas suas explorações.

‑Há cintos de salvação nos armários das nossas cabinas ‑ informou Maria da Luz ‑, Suponho que se atam à volta do corpo.

‑ Enfiam‑se pela cabeça, de maneira que metade do cinto fica para a frente e a outra metade para trás. Depois atam‑se finalmente com as cintas ‑ disse a Sr.a Mannering. ‑ Vocês terão de os pôr amanhã para o exercício de salvamento.

Tudo parecia emocionante. Andaram por todo o barco, encantados com tudo. Havia a coberta, onde já se via gente a jogar a malha com grossos anéis de corda; dois outros passageiros praticavam o ténis.

‑ Imaginem que até podem entregar‑se a jogos destes a bordo de um navio! ‑ admirou‑se Dina.

‑ Lá em baixo há um cinema ‑ informou a Sr.a Mannering ‑, e uma sala de estar, uma biblioteca, um salão e uma enorme casa de jantar!

‑ Com a breca, olhem! Há uma piscina no próprio barco! ‑gritou João, espantado, quando chegaram a uma bela piscina situada numa extremidade do navio, cheia de água azul e transparente.

Subitamente, a sereia do barco apitou muito alto por duas vezes. Maria da Luz quase caiu na piscina com o susto. A Sr.a Mannering riu‑se.

‑ Oh, Maria da Luz, assustou‑te? A mim também!

‑ Que barulho infernal! ‑ disse Maria da Luz. ‑ Graças a Deus que a Didi não está aqui. Se ela começasse a apitar assim seria impossível resistir.

‑ Cala‑te, idiota ‑ recomendou Dina em voz baixa. ‑ Não faças lembrar a João que partimos sem ela.

Maria da Luz olhou à sua volta a ver se avistava João, mas ele não estava por ali.

‑ Aonde foi ele? ‑ perguntou Dina. Mas ninguém o sabia.

‑ Anda por aí ‑ informou Filipe. ‑ Creio que em breve estaremos a navegar. Repara, estão a retirar os portalós. Vamos já partir!

‑ Fiquemos aqui para acenar a toda a gente ‑ propôs Maria da Luz. Debruçou‑se na amurada e viu as pessoas apertadas umas contra as outras lá em baixo, no cais. Gritavam e acenavam. Subitamente, Maria da Luz deu um grito.

‑ Olhem, olhem. Está ali uma pessoa com uma catatua exactamente igual à Didi. Palavra que está! Onde está o João? Quero dizer‑lhe. Que diabo, não sei onde se meteu!

As máquinas do barco tinham começado a trabalhar e os pequenos sentiam o soalho vibrar debaixo dos pés. Maria da Luz apurou a vista para ver melhor a catatua tão parecida com a Didi!

«Adeus! Tenho a certeza de que és tu!»

A catatua estava presa por uma corrente ao pulso de

um rapaz. Se ela estava a fazer algum ruído ou não, é coisa que os pequenos não podiam saber por causa da algazarra que os cercava. Era, na verdade, extraordinariamente parecida com a Didi.

‑ Cá vamos! Já nos afastámos do cais! ‑gritou Filipe. ‑ Viva! Partimos!

Acenou delirantemente para toda a gente. Maria da Luz acenou também e observou a catatua. Tornava‑se mais pequena à medida que o barco se afastava para o mar alto. Parecia que o dono estava atrapalhado com ela. Batia as asas e picava‑o. Depois subitamente, elevou‑se no ar. A corrente quebrou‑se e o animal atravessou o espaço que separava o cais do barco, guinchando loucamente.

‑ É a Didi, é, é! ‑ gritou Maria da Luz. ‑ João, onde estás tu? João!

 

         TODOS SE ACOMODAM

Dina, Maria da Luz e Filipe precipitaram‑se para procurar João. A catatua tinha atingido o barco e haviam‑na perdido de vista. Todos estavam convencidos de que era a Didi e Filipe tinha a impressão de que João não ficaria tão surpreendido como eles.

Não se conseguia encontrar João. Era quase de desesperar. Procuraram-no por toda a parte e, finalmente, Maria da Luz lembrou‑se da cabina dele. ‑ Pode lá estar - disse ‑, embora eu não possa compreender por que foi ele fechar‑se exactamente no momento em que o barco está a partir de Southampton. E onde estará a Didi? Parece ter também desaparecido!

Desceram as escadas para as cabinas e seguiram pelo corredor em que as suas ficavam situadas Escancararam a porta da cabina de João e entraram.

‑ João! Estás cá? Que julgas que acabámos de ver?

Pararam de surpresa com o que viram. João estava sentado na sua cama, na cabina, e a Didi, empoleirada no seu ombro, fazia um ruído de motor junto dos ouvidos dele, puxando‑lhe docemente pela orelha.

‑ Bom! ‑ disse Filipe. ‑ Então, ela encontrou‑te. Suponho que é a Didi?

‑ Está claro que é, idiota ‑ explicou João. ‑ Que sorte, não foi? O Porquinho trouxe‑a com ele até ao cais para se despedir de mim, acorrentada ao pulso, e ela quebrou a corrente e voou para mim. Entrou pela vigia! Que espertalhão de animal!

‑ O Porquinho? O rapaz que conheceste na escola? Deste‑lhe a Didi para que olhasse por ela? ‑ perguntou Maria da Luz, pasmada. ‑ Mas como veio ela aqui parar?

‑ Trouxe‑a ontem no carro ‑ esclareceu João, pondo a mão na orelha para que a Didi não lha bicasse. ‑ Ela vinha no cesto do lanche que eu trouxe, quieta como um rato. Estava preocupado com a ideia de que algum de vocês me pedisse para abrir o cesto e tirar alguma coisa de comer.

‑ Mas, olha lá, o Porquinho não teria ficado aflito por vê‑la assim fugir? ‑ perguntou Dina.

‑ E como soube ela que estavas cá em baixo na cabina? ‑ admirou‑se Maria da Luz. ‑ Talvez ela me ouvisse chamar. Deve ter sido isso: ouviu‑me gritar «Didi, Didi», quebrou a corrente com o entusiasmo e voou para cá... e, por sorte, escolheu exactamente a tua vigia!

‑ Era melhor contares tudo isso à tia Lia ‑ lembrou João, fazendo uma careta. ‑ Inventa uma linda história, melhor do que a minha.

Os três olharam para ele em silêncio.

‑ És um grande velhaco, João ‑ disse por fim Filipe. ‑ Preparaste tudo isto; aposto que o fizeste! Sim, até arranjaste maneira de a corrente rebentar e de a Didi te ver ou ouvir na vigia.

João riu‑se novamente.

‑ Bem... eu penso que a ideia da Luzinha foi muito boa quando gritou pela Didi daquela maneira, o que a excitou ao ponto de ela voar para o navio.

De qualquer maneira, ela está aqui e cá fica. O melhor será conservá‑la na cabina, penso eu.

Todos fizeram uma grande ovação à encantadora Didi, que a apreciou muito. Ela não podia compreender o ruído que as máquinas faziam e pôs a cabeça de banda para ouvir. Tentou imitar, mas mal.

‑ Agora não te ponhas com ruídos estranhos ‑ avisou João. ‑ Não queres que te levem à presença do capitão, pois não?

«Lá vai a doninha aos pulos», fez a Didi, e depenicou‑lhe a orelha. Depois deu um espirro quase humano.

‑ Por favor ‑ disse João. ‑ Usa o teu lenço! Com a breca, Didi, como poderia eu vir sem ti?

Todos estavam contentes por ver que a Didi estava a salvo com eles. Deram a notícia à Sr.a Mannering o mais habilidosamente que puderam. Ela escutou‑os com ar de aborrecimento, mas nem por sombras lhe passou pela cabeça que a presença da Didi fosse mais do que um infeliz acaso. Suspirou.

‑ Está bem, se está cá, deixem‑na estar. Mas por amor de Deus, João, fecha‑a na cabina. Terás complicações se os passageiros se queixarem dela. Podem‑na mandar para o porão, metida numa gaiola, se não a mantiveres bem presa.

Desta maneira, a Didi foi fechada à chave na cabina. No primeiro dia supôs que estava tonta, ou que havia algum tremor de terra ligeiro;, mas constante. Não fazia a menor ideia do que era estar num grande navio e não podia compreender a causa da trepidação, embora já muitas vezes tivesse estado em pequenos barcos.

O primeiro dia pareceu encantador e longo. O Estrela dos Mares deslizava orgulhosamente pela calma água azul, com as máquinas a roncar suavemente, deixando atrás de si uma esteira branca que parecia não ter limite e estender‑se até ao fim do horizonte.

A Inglaterra não tardou a desaparecer. A primeira escala seria Lisboa.

Era agradável descer à grande sala de jantar para se tomar aí as refeições e escolher, de uma longa ementa, o que mais lhes apetecia. Era engraçado subir à coberta dos desportos e jogar o ténis de bordo, tentando manter o equilíbrio quando corriam para apanhar a argola de borracha. Até era engraçado o simples facto de se deitarem, porque isso correspondia a manterem‑se numa cama estreita como uma tarimba, fechar a luz e sentir a deslocação do ar produzida pela ventoinha eléctrica refrescar os seus corpos quentes e ouvir o chapinhar da água mesmo por baixo das vigias.

‑ Que encanto!‑exclamou Maria da Luz antes de adormecer. ‑ Espero que esta viagem não acabe numa aventura. Gosto dela assim. É bastante movimentada, mesmo sem aventuras.

Não foi tão agradável a travessia do golfo de Biscaia! Ali, o mar estava agitado e o barco saltava, balançava e rodava. A Sr.a Mannering estava preocupada. Ficou na sua cabina, mas as crianças estavam espertas como pardais. Compareceram na casa de jantar a todas as refeições e comeram valentemente de toda a ementa. Até mesmo teriam subido para jogar o ténis se um dos criados não os tivesse proibido expressamente de o fazer.

(Então, de um momento para o outro, tudo mudou. O mar tornou‑se assul e calmo, o Sol apareceu a fulgir, muito quente, o céu pôs‑se brilhante e todos os oficiais e os homens da tripulação apareceram impecavelmente vestidos de branco.

A Sr.a Mannering sentiu‑se outra vez bem e a Didi começou a ficar muito impaciente por estar fechada na cabina. Já se tornara grande amiga do criado e da criada de bordo que tinham a seu cargo as cabinas, a quem já tinha passado a estupefacção de vê‑la na cabina de João.

A princípio não a tinham notado.

Estava empoleirada por trás da pequena cortina que pendia ao lado da vigia, que João tinha de manter fechada com receio de que a Didi saísse. Foi a criada quem primeiro a ouviu, quando entrou para fazer as camas.

A Didi pôs-se a observá‑la por trás da cortina. Então, falou com voz firme e decidida.

«Põe a panela ao lume.»

A criada assustou‑se. Virou‑se e olhou para a porta, pensando que alguém estava a falar‑lhe dali. Mas não viu ninguém.

A Didi deu um grande soluço. «Perdão», fez ela. A criada sentiu‑se alarmada. Olhou para todos os lados. Abriu a porta do armário.

«Que pena! Que pena!», fez a Didi numa voz tão lastimosa que a criada não pôde aguentar‑se mais e fugiu a chamar o criado, um escocês severo e decidido, com pouca paciência.

Entrou na cabina e olhou à sua volta.

‑ Que foi, mulher? ‑ perguntou à criada. ‑ Que foi que te espantou? Não está aqui nada!

A Didi tossiu longamente e depois espirrou com violência.

«Perdão», fez ela. «Onde está o teu lenço?»

Desta vez foi o criado que ficou espantado. Olhou para toda a cabina e a Didi bocejou longa e realisticamente. Tinha um maravilhoso repertório de ruídos. Não pôde resistir e espreitou pelo lado da cortina para ver como decorria o espectáculo.

O criado viu‑a e avançou para a vigia.

‑ Olha para isto, é uma catatua! ‑ afirmou ele.‑ Já ouviste alguma vez uma assim? Deve ser um pássaro muito esperto para saber fazer tudo isto. Bem, és um pássaro inteligente, é o que tu és!

A Didi voou para cima do armário e olhou para o criado e para a criada, primeiro com um olho, depois com o outro. Depois imitou o som do gongo ao tocar para chamar para as refeições de bordo.

Por fim, soltou uma das suas gargalhadas.

‑ É espantoso, não é? ‑ disse, pasmado, o criado escocês, ‑ Que pássaro tão extraordinário e simpático! É Pena a Senhora que é dona dele tê‑lo sempre aqui fechado.

‑ Já me assustou e bastante ‑ declarou a criada. - Não sei se ele gostará de uvas. A minha tia‑avó tinha um animal assim, que gostava de uvas. Vou buscar‑lhe algumas.

Pouco depois, a Didi banqueteava‑se com uvas pretas. Quando João veio vê‑la, encontrou o chão da cabina cheio de grainhas de uvas e duas pessoas olhando deliciadas para a didi.

‑ Que porcalhona! ‑ censurou João severamente, olhando para as grainhas. ‑ Toca a descer desse armário e a apanhar essas grainhas.

«Grainhas», fez a Didi. «Doninhas, lá vai a doninha aos pulos.»

‑ Espero que não vos tenha incomodado ‑ disse João à criada.

‑ Oh, é maravilhosa! ‑ respondeu a mulher. ‑ Nunca vi um pássaro tão inteligente. Gostava de o levar lá acima para o mostrar a toda a gente.

Daí a algum tempo, João levou‑a para a coberta .pousada no ombro, com grande surpresa e divertimento dos passageiros. Para a Didi foi uma maravilha poder exibir‑se. A única coisa que ela não conseguia suportar era o ruído da sereia, que a assustava sempre tanto que caía do ombro de João com medo, todas as vezes que a ouvia.

Não sabia do que se tratava, ou de onde partia o ruído, e geralmente procurava refugiar‑se em qualquer sítio onde não o ouvisse.

Assistiu ao exercício de salvamento, e Maria da Luz convenceu‑se de que ela ficou preocupada por não ter um pequeno cinto de salvação para usar. Todos puseram os seus, foram para o respectivo salva‑vidas e escutaram uma curta palestra feita por um dos oficiais sobre a maneira de proceder em caso de sinistro. Maria da Luz desejou ardentemente que isso não acontecesse.

‑ Desembarcaremos em Lisboa amanhã ‑ informou a Sr.a Mannering. ‑ Mas nenhum de vocês vai passear sozinho. Não estou para que Lisboa seja o começo de mais uma aventura. Façam o favor de compreender isto: têm de andar ao pé de mim!

 

         FILIPE ARRANJA UM FAVORITO

Os dias foram decorrendo rapidamente. Depois da escala de Lisboa, Maria da Luz e Dina perderam‑lhes a conta.

Ignoravam até se o dia em que estavam era segunda‑feira, terça, ou qualquer outro.

Sabiam quando era domingo porque toda a gente ia para o salão ouvir o capitão presidir a um serviço religioso.

Durante dias não avistaram terra. Filipe ficou muito entusiasmado quando um cardume de peixes voadores saltou do mar e ficou fora de ágUa durante algum tempo. Eram encantadores.

- Que os leva a faZer aquilo? - Perguntou Maria da Luz.

‑ Estão a ser perseguidos ‑ explicou Filipe. ‑ Não saltarias também para fora de água e não voarias se um enorme peixe viesse atrás de ti, Luzinha? Com a breca! Gostava que um dos peixes voasse para a coberta. Interessava‑me imenso vê‑lo de perto.

‑ Bem... certamente que não o poderias domesticar, graças a Deus, porque morreria na tua algibeira ‑ comentou Dina. ‑ É estranho estares sem nenhum favorito, Filipe! Que bom!

 

Mas ela falou cedo de mais, pois Filipe arranjou um favorito dois dias depois! Da Madeira tinham seguido para Marrocos. Foi aí que Filipe arranjou o seu estranho pequeno favorito.

Os pequenos gostaram de Marrocos, sobretudo dos bazares locais, embora o cheiro fosse tão desagradável que a Sr.a Mannering até disse que só o suportaria se andasse com perfume dentro do nariz. As crianças habituaram‑se depressa ao cheiro, mesmo a Didi, a julgar pelas quantidades de «pfuis» que fez. «Pfui! Apre! Pfui!»

Dina praticou o seu francês com os nativos de olhos negros e ficou contente ao ver‑se compreendida. Comprou um broche de que gostou muito e Maria da Luz adquiriu uma jarra azul.

‑ Nada vês de que gostes? ‑ perguntou ela a Filipe. Este abanou a cabeça.

‑ Não quero coisas dessas. Ainda se visse alguma coisa que me entusiasmasse... digamos um velho punhal... ou, já lhes digo! Uma coisa que sempre desejei e nunca consegui.

‑E que coisa é essa? ‑ perguntou Maria da Luz, decidida a comprar‑lha se a visse.

‑ Vocês riem‑se, mas eu sempre desejei ter um navio dentro duma garrafa ‑ declarou Filipe.

‑ Nunca vi nenhum ‑ respondeu Maria da Luz admirada. ‑ Um barco dentro de uma garrafa, dizes tu? Que coisa tão estranha! Como o metem lá?

‑ Não sei ‑ confessou Filipe. ‑ É uma idiotice da minha parte querer isso, realmente... é daquelas ideias que a gente tem, sabem?

‑ Hei‑de descobrir uma, seja onde for ‑ prometeu Maria da Luz. ‑ Oh, olhem para a Didi. Está a roubar doces àqueles miúdos escuros. Vai ficar outra vez doente!

A Sr.a Mannering velava porque eles se mantivessem junto dela e andassem com o grupo do barco. Os quatro pequenos desejavam explorações à sua vontade, pois gostavam dos nativos e das suas estranhas lojecas escuras e estreitas.

‑ Não, não ‑ opunha‑se a Sr.a Mannering. ‑ O quê? Vocês não ouviram o que aconteceu ao homem que costuma ficar na mesa ao lado da nossa, no barco? Ele e a mulher saíram sozinhos num táxi para visitar uns lugares... e o condutor levou‑os para um monte deserto e recusou‑se a levá‑los outra vez para o barco sem que eles lhe dessem todo o dinheiro que possuíam.

‑ Santo Deus! ‑ exclamou Maria da Luz, assustada.

‑ Trouxe‑os precisamente quando as pranchas estavam a ser retiradas ‑ continuou a Sr.a Mannering ‑ e, assim, não tiveram tempo de se queixar. Agora já sabem porque desejo que andem com o grupo do navio. Não terão mais aventuras se eu puder evitá‑las. Sei de antemão que desapareceriam não sei para onde, correriam perigos terríveis, que me fariam nascer mais uns cabelos brancos!

‑ Ah, não tem muitos ‑ disse Maria da Luz. ‑ Só um por cada uma das nossas aventuras, ora aí está! Eu ficarei ao pé de si, tia Lia. Também não quero aventuras.

No dia seguinte devia realizar‑se uma excursão de autocarro a um lugar afamado do interior, uma velha cidade à beira do deserto.

‑ Os autocarros estarão no cais às dez e meia ‑ preveniu a Sr.a Mannering. ‑ Não se esqueçam de levar os chapéus de sol. Com certeza vai estar um calor terrível.

Foi na excursão que Filipe arranjou o seu novo favorito.

Os autocarros chegaram pontualmente e todos entraram para eles, sentindo logo imenso calor. Partiram a grande velocidade por uma estrada arenosa que durante algum tempo parecia atravessar o deserto. Estranhos cactos cresciam à beira da estrada. Maria da Luz pensou que os seus numerosos picos e os seus caules gordos eram um desafio a quem passava.

Demoraram duas horas a chegar à velha cidade. As suas estranhas arcadas e torres pareciam brotar subitamente da areia. Criancinhas muito escuras, quase nuas, corriam ao encontro dos excursionistas, de mão estendida.

«Totão, totão!», diziam elas, e a Didi imitava‑as logo. «Totão, totão!»

Todos entraram na estreita rua principal da velha cidade. O guia levou‑os a um velho edifício e começou a recitar a sua lengalenga. Depois, todo o grupo começou a subir os íngremes degraus de caracol de uma alta torre.

A meio do caminho, Filipe espreitou por uma grande janela aberta na pedra. Não tinha vidros, claro. A parede era tão grossa que ele podia sentar‑se com as pernas penduradas para fora. Agarrou‑se ao bordo da janela e inclinou‑se com a intenção de olhar para baixo.

Muito abaixo dele viu um pequeno grupo de crianças meio nuas. Estavam a apontar para cima e a tagarelar. Algumas atiravam pedras.

«Para quem estão aqueles pequenos pedintes a atirar pedras?», pensou Filipe. «Se é para algum ser vivo, esborracho‑os!»

Retirou‑se do largo peitoril da janela e desceu a correr a escada de caracol. Uma pedra zumbiu através da abertura de uma janela já a pouca altura da base da torre.

Ouviu‑se um débil gemido e, escondido num canto de uma janela, viu um pequeno monte de pêlo castanho. Dirigiu‑se para lá. Que seria?

Zás! Uma pedra caiu mesmo ao pé dele. Malditos rapazes. Debruçou‑se da janela e olhou para baixo, furioso.

Os garotos ficaram desolados com a nova aparição e desapareceram num ápice. Filipe estendeu a mão para o pequeno monte castanho. Uma facezinha esperta voltou‑se para ele com olhos tristes, castanhos. Depois cobriu‑a com duas mãozinhas.

«Olha, é um macaco, um macaquinho!», pensou Filipe. Ele sabia como os macacos são medrosos e receava assustar o pobre bichinho apedrejado. Já tinha visto muitos macacos nesta região, mas não de perto, pois eles mantinham‑se sempre a distância. Filipe dirigiu‑se ao bichinho com aquela voz a que Maria da Luz chamava «vozinha especial de bicho.» O animal descobriu o seu focinho meigo e, depois, com um salto,, empoleirou‑se no ombro do rapaz, aninhando‑se‑lhe, a tremer, junto do pescoço. Cautelosamente, Filipe levantou a mão e coçou‑lhe o pê‑lo.

Nenhum animal conseguia resistir à magia de Filipe. Cavalos, cães, gatos, cobras, insectos, pássaros, todos se lhe entregavam imediatamente cheios de confiança. Nenhum conseguia resistir‑lhe. Por causa de tal dom todos o admiravam e estimavam.

Filipe sentou‑se no largo peitoril e falou com o pobre macaquinho assustado e infeliz. Respondeu‑lhe, tagarelando numa vozinha aguda e estranha. Fixou nele timidamente os olhinhos castanhos. Os seus pequenos dedos, também castanhos, entrelaçaram‑se à volta de um dos dele. A partir daquele momento era um escravo dedicado de Filipe.

Os outros vieram, sapateando pela escada abaixo, à frente do grupo, e ficaram admirados ao verem o macaquinho abraçado a Filipe.

‑ Aí está, já sabia que mais tarde ou mais cedo ele havia de arranjar alguma coisa! ‑ comentou Dina. ‑ Ui! Um horrível macaco sujo e mal‑cheiroso, cheio de pulgas, com certeza.

‑ Bem... está sujo e mal‑cheiroso e tenho a certeza de que tem pulgas ‑ respondeu Filipe ‑, mas não é horrível.

Foi apedrejado por aqueles terríveis garotos lá de baixo. Tem as duas pernas feridas.

‑ Pobre bichinho ‑ disse Maria da Luz quase a chorar.

João deu uma palmada na cabeça do bicho, mas isso só fez com que o animal se chegasse mais para Filipe.

‑ Não vais levá‑lo para o barco ‑ continuou Dina. ‑ Se o fizeres digo à mãe. Não posso acostumar‑me à ideia de ver um macaco no nosso grupo.

‑ Ele vem comigo ‑ afirmou Filipe irritado. Dina começou a perder a paciência.

‑ Então, vou dizer à mãe que não o quero ao pé de mim. Direi...

‑ Dina, é tão pequeno e está ferido ‑ atalhou Maria da Luz, com voz trémula. ‑ Não fales assim. É uma maldade.

Dina voltou costas e afastou‑se. Estava irritada e horrorizada com a ideia de ter o macaco «pendurado neles», como ela dizia, mas não queria discutir com os outros três. Não disse mais nada e ficou calada durante todo o resto do dia.

Como conseguiu Filipe esconder o macaco até ao regresso ao navio, só ele soube. O facto é que ninguém se apercebeu dele. João e Maria da Luz ajudaram‑no imenso, pondo‑se em frente dele sempre que julgavam que alguém poderia ver o macaco. Dina não quis ajudar, mas, por outro lado, nada fez para que o segredo fosse revelado.

Novamente na cabina, os três pequenos libertaram o macaco. ‑ Nem sequer ainda é adulto ‑ disse Filipe. ‑ Como aqueles garotos tinham a coragem de apedrejar um bichinho tão pequeno. Mas creio que em todos os países há gente cruel e desumana; afinal, nós também já vimos na nossa terra rapazes atirarem pedras a um gato! Reparem, tem as pernas esfoladas e com ferimentos, mas não estão partidas. Depressa ficarão boas. Não sei se me deixará levá‑lo. Está tão sujo!

O bichinho consentiu que Filipe fizesse tudo o que lhe apeteceu. Os pequenos levaram duas horas a lavá‑lo e a secá‑lo com todo o carinho. João trouxe uma pequena escova de sapatos para lhe escovar o pêlo macio.

Ele deixou Filipe pôr‑lhe tintura de iodo nas feridas e soltou apenas um guinchinho.

‑ Ora bem! ‑disse o rapaz. ‑ Estás lindo. Como te chamas?

O macaco emitiu um som e as crianças escutaram‑no.

‑ Parece que está a dizer «Micky, micky, micky»

‑ disse Maria da Luz.

‑ Bem, se ele julga que se chama Micky, ficará Micky

‑ concluiu Filipe. ‑ Vamos a ver o que a Didi pensará deste.

‑ Não vai gostar muito dele ‑ preveniu João. ‑ Vai ficar com ciúmes. Foi bom deixá‑la na cabina das raparigas. Berraria como uma doida se nos visse a lavar e a escovar o Micky.

Naquela noite, na verdade, a Didi ficou espantada ao ver o Micky no ombro de Filipe. Olhou e, exactamente como João tinha previsto, soltou um dos seus guinchos que imitavam o apito de uma locomotiva.

A Sr.a Mannering meteu a cabeça pela porta da cabina para protestar.

De repente, viu o macaco e, surpreendida, entrou sem querer acreditar no que os seus olhos viam.

‑ Oh, Filipe! Não devias ter trazido o macaco para bordo. Que coisa tão pequenina!

‑ Mãe, uns garotos estavam a apedrejá‑lo. Tive de o trazer comigo ‑ respondeu Filipe. A mãe olhou para ele. Era exactamente o que o pai fazia em vida. Como podia ela repreendê‑lo por causa daquilo que lhe estava no sangue?

‑ Bem, não sei se vais arranjar qualquer complicação por tê‑lo no barco ‑ disse ela, acariciando a cabecita do macaco. ‑ Que diz a Dina a isto?

‑ A princípio ficou zangada, mas não se manifestou muito ‑ respondeu Maria da Luz. ‑ Julgo que está ainda na nossa cabina. Deve vir a gostar do Micky, tenho a certeza.

«Micky‑Didi, Micky‑Didi, Micky‑Didi», fez a Didi com ar de triunfo, como se tivesse subitamente descoberto uma coisa muito interessante. Gostava de palavras que tivessem sons parecidos: Micky‑Didi, Micky‑Didi.

- Cala‑te, Didi ‑ ordenou Filipe. ‑ Bem, que pena que ele se chame Micky; nunca mais conseguiremos calar a Didi com estes dois nomes. Mas ele é Micky. Não podemos alterar‑lhe agora o nome.

Assim, ficou Micky, e num ou dois dias tornou‑se amigo de todos, mesmo da Dina! Tinha uma cara tão estranha,, tão cómica, que era impossível não se gostar dele quando fitava as pessoas com aqueles doces olhos castanhos.

‑ É ainda tão novinho e, contudo, já tem uma carita tão esperta e inteligente! ‑ dizia Maria da Luz. ‑ E gosto tanto dos seus dedinhos pretos... exactamente como os nossos! Não são, Dina?

‑ Sim... ele não é tão horrível como a princípio me pareceu ‑ admitiu Dina. ‑ Não posso dizer que goste de o ter empoleirado no ombro todo o dia, como o Filipe, e estou certa de que ainda deve ter pulgas, mas realmente não é mau.

‑ Não tem pulgas, não senhora ‑ disse Filipe, aborrecido. ‑ Não continues a afirmar isso.

Micky não tardou a restabelecer‑se e deixou de ser um bichinho suave e tímido para se tornar um louco endiabrado e tagarela. Pulava pela cabina, ligeiro como um esquilo, e Dina estava sempre com medo que ele se lhe empoleirasse no ombro. Mas não. Era suficientemente esperto para não o fazer. A Didi alarmava‑se ao ver estas acrobacias e, quando os dois estavam juntos na mesma cabina, virava‑se sempre de frente para Micky para lhe dar uma bicada se ele pretendesse saltar-lhe para cima. Mas Micky deixava‑a em paz e não lhe ligava importância, o que desagradava muito à Didi.

Começou então a chamá‑lo pelo nome com a voz de Filipe, que sabia imitar perfeitamente: «Micky! Micky!»

O macaco virava‑se logo, mas não via Filipe. «Micky!», fazia outra vez a Didi e o macaco punha‑se a pular por todos os lados, tentando encontrar Filipe.

Então, a Didi largava uma gargalhada e o Micky ia‑se

embora aborrecido e empoleirava‑se na beira da vigia de costas viradas para a Didi, olhando através do vidro grosso para o mar.

A Didi levou a melhor, pois em breve descobriu que sabia fazer ruídos que aterravam o Micky. Se ladrava como um cão, o pobre bicho quase endoidecia de medo. Ficava também intrigado. Olhava fixamente para a Didi e descobria que nenhum cão ladrava quando a Didi não estava na cabina. Então, seria a Didi alguma espécie de pássaro‑cão?

Outra vez, depois de ter ladrado, emitiu um rugido feroz. Micky não pôde tolerar isso. Agarrou num sabonete que estava no lavatório e arremessou‑o à Didi, que ficou surpreendida. Acertou‑lhe em cheio no bico e ela largou um berro de medo e quase caiu do poleiro.

Depois do sabonete, uma escova de dentes e uma pasta seguiram o mesmo caminho. Tinha boa pontaria, o que obrigou a Didi a voar por toda a cabina, tentando encontrar um lugar para se abrigar dos projécteis que Micky lhe arremessava: escovas de cabelo, pentes, um rolo de películas, tudo o que apanhava a jeito.

Com a entrada de Filipe terminou a questão.

‑ Micky! Apanha já tudo ‑ disse ele severamente. ‑ Que te fez a Didi para estares com tanto mau génio? Seu mau!

«Micky mau, mau rapaz!», fez logo a Didi, e soltou uma das suas grandes gargalhadas. O Micky apanhou todas as coisas humildemente. Depois sentou‑se no ombro de Filipe como habitualmente. A Didi ficou cheia de ciúmes. Voou para o outro ombro.

O macaco guinchou. A Didi respondeu‑lhe exactamente com a mesma voz do macaco, do Micky. Este, pasmado, olhou para ela e respondeu qualquer coisa, muito excitado. Filipe ouviu‑os divertido.

‑ Bem, não sei se vocês se compreendem um ao outro ‑ disse ele ‑, mas é como se assim fosse.

Não estou disposto a encontrar a minha cabina em estado de sítio todas as vezes que entro aqui. Portanto, tratem de ser amigos! Estão a ouvir, Didi e Micky?

«Ora», fez a Didi com ar amigável, fazendo trejeitos.

‑ Ora, digo eu ‑ concluiu Filipe. ‑ E, por favor, deixa de me bicar a orelha.

 

         CHEGA LUCIANO

Para as crianças, o Estrela dos Mares era agora a sua casa ‑ uma casa flutuante que continha tudo do que necessitavam excepto o campo aberto. Passaram a conhecer todos os cantos e interstícios do barco, exploraram a casa das máquinas sob a vigilância de Rui, o maquinista‑chefe, e obtiveram mesmo licença para irem à ponte de comando falar ao primeiro‑oficial, o que foi sentido por eles como uma grande honra.

A Sr.a Mannering estabeleceu relações de amizade, no barco, com duas ou três pessoas que lhe agradaram. Havia só algumas crianças a bordo além de João e dos outros mas eram muito mais novas e tão turbulentas que ninguém queria coisa alguma com elas.

‑Gostaria que houvesse mais crianças da vossa idade ‑ confessou um dia a Sr.a Mannering. ‑ Seria mais divertido para vocês.

‑Bem, nós não precisamos de mais ninguém, obrigado ‑ disse Filipe. ‑ Estamos muito bem assim. Já é bastante aborrecido termos por aí esses miúdos malcriados, sempre a quererem meter‑se com o Micky e tentando fazer com que a Didi fale com eles.

‑ Ela é muito sensata ‑ acrescentou João. ‑ A Didi olha para eles e faz: «Calem‑se» sempre que os vê.

‑ Que má criação a dela ‑ disse a Sr.a Mannering. ‑ Conto que a mandem calar quando ela se dirigir dessa maneira às outras crianças.

‑ Bem, não tenciono fazê‑lo ‑ respondeu João. ‑ Ela diz aquilo que eu mesmo gostaria de proferir.

Diabos de garotos malcriados! Um destes dias ainda empurro aquela embirrenta rapariga de cabelos amarelos para dentro da piscina... sempre à minha volta a perguntar‑me se pode pegar na Didi. Pegar na Didi! Que julga ela que é a Didi? Uma das suas horríveis bonecas?

‑ Não deves empurrar a criança para a piscina‑preveniu a Sr.a Mannering. ‑ Concordo que ela esteja a precisar de açoites, mas não passa de uma garotinha, João.

‑ Ela é um mosquito humano ‑ redarguiu João. ‑ Só gostava de ter um mata‑moscas quando ela se aproxima de nós.

‑ Bem, todas as crianças desembarcarão no próximo porto ‑ disse Filipe, acariciando o Micky que, como de costume, estava sentado no ombro dele. Os rapazes faziam uma parelha curiosa, um com uma catatua no ombro e o outro com um macaco. Os passageiros sorriam sempre que os viam.

‑ Estou contente por saber que aquelas maçadoras crianças abandonam brevemente o barco ‑ disse Dina, que não morria de amores por crianças. ‑ Oxalá que não embarquem outras do mesmo género para as substituir.

 

Os seus votos foram atendidos, como depois se viu. Não embarcaram raparigas, apenas um rapaz. Todos os garotos malcriados saíram em Nápoles, gritando e zaragateando até à última; era sem dúvida uma desagradável colecção de crianças. João e os outros viram‑nos partir com prazer e a Didi gritou‑lhes: «Adeus, que alívio! Adeus, que alívio!»

‑ João! Ela nunca disse isto antes ‑ censurou a Sr.a Mannering. ‑ Deves ter‑lhe ensinado isso!

‑ A Didi lê os meus pensamentos, tia Lia ‑ respondeu João, rindo. ‑Olhem quem vem aí: o Zé Coelho!

Os garotos riram‑se ao ver um rapaz alto e desengonçado subir a prancha. A boca dele, na verdade, era como a dum coelho. Tinha os dentes da frente espetados e o queixo retraído. Era mais ou menos da idade de João e Filipe. Usava óculos grandes e redondos, que lhe faziam os olhos maiores e lhe davam um ar espantado.

Conservava no rosto um sorriso cordial ao subir a prancha. Parecia muito excitado e falava, uma mistura de inglês e de outra língua, para uma senhora de ar lânguido que vinha atrás dele e para um homem bastante baixo e gordo com uns óculos escuros, que lhe escondiam completamente os olhos.

‑ Tia, tia, finalmente partimos! Oh, vejam que belo navio! Tenho a certeza de que nele não enjoarei.

Depois começou com uma espécie de palavriado sem sentido, mas que era, na verdade, uma língua estrangeira. A Didi abanou a cabeça quando ouviu este discurso, que lhe parecia absolutamente disparatado.

Quando o rapaz passou por ela, dirigiu‑se‑lhe em ar de conversa, reproduzindo o mesmo palavriado que tinha ouvido. O rapaz, espantado, olhou para ela.

‑ Ora vejam! Uma ave palradora. Vejam lá! «Ora vejam», repetiu imediatamente a Didi. «Ora vejam! Ora vejam.»

‑ Cala‑te, Didi. Não sejas malcriada ‑ ordenou João. Micky debruçou‑se do ombro de Filipe e soltou uma série de tagarelices para a Didi. O rapaz olhou encantado para ele.

‑ Ora vejam! Um macaco que também fala. Que está ele a dizer?

‑ Diz que lhe parece que já o viu nalgum lado, mas que não consegue lembrar‑se onde e deseja saber se a Didi, a catatua, se recorda ‑ disse Filipe solenemente. Maria da Luz, deliciada, soltou uma risadinha. O rapaz pôs‑se a olhar de boca aberta, depois riu‑se, mostrando todos os seus grandes dentes.

‑ Oh, vocês estão a enganar‑me, não estão? Mas olhem, que engraçado! Uma catatua que fala e um macaco domesticado! Que sorte que vocês têm!

‑ Anda daí, Luciano, anda daí! ‑ disse o homem atrás dele e deu um empurrão ao rapaz.

Luciano seguiu apressadamente, virando‑se para lançar aos rapazes uma risada a pedir desculpa de os deixar de uma maneira tão brusca. O homem disse qualquer coisa com voz aborrecida à mulher que estava com ele, mas como o fez numa língua estrangeira os pequenos não perceberam uma só palavra. Deduziram imediatamente que Luciano não era muito estimado pelo tio.

‑ Bem, se o «coelho» é o único rapaz que embarca aqui, calculo que vai atrelar‑se a nós todo o dia ‑ disse Filipe. ‑ Que estopada.

«Ora vejam», fez a Didi. João resmungou.

‑ Agora a Didi vai ficar a dizer aquilo dia e noite. É bom que o Micky não saiba falar, evidentemente... nunca mais conseguíamos abrir a boca!

O navio partiu, sulcando águas mais azuis do que nunca. Era agradável ir para a proa do navio e sentir a brisa. Tanto a Didi como Micky estavam encantados.

Exactamente como João e Filipe tinham receado, o rapaz atrelava‑se‑lhes sempre que podia. As crianças sabiam sempre quando ele se aproximava porque a Didi invariavelmente avisava‑os.

«Ora vejam!», costumava ela palrar, e os quatro suspiravam. Lá está outra vez o Luciano! Aproximava‑se, sorrindo amavelmente e instalava‑se ao lado deles.

Contou‑lhes logo toda a sua vida. Não tinha pai nem mãe. O pai era inglês e a mãe grega, motivo por que tinha muitos parentes gregos. Andava numa escola em Inglaterra, mas passava a maior parte das férias com os parentes. Tinha catorze anos, quase quinze, não gostava de jogos, adorava histórias e gostaria de não se chamar Luciano.

‑ Porquê? ‑ perguntou Dina.

‑ Bem... porque os rapazes na minha escola mudam o meu nome para Luciana ‑ explicou o rapaz. ‑ Estão a ver o que significa ter um nome tão... feminino como este!

‑ É um nome bonito ‑ afirmou Maria da Luz. ‑ Eu gosto dele.

‑ Bem, é muito bonito para si‑retorquiu Luciano.‑ Mas horrível para mim. Especialmente quando o encurtam e me chamam Lúcia.

«Lúcia», palrou a Didi, encantada. «Lúcia! Ora vejam!»

Todos se riram, mesmo Luciano. A Didi gargalhou. «Lúcia, patinha Lúcia. Ora vejam!», repetiu a Didi.

‑ Oh, palavra que este vosso pássaro é realmente cómico, não é? ‑ expressou‑se Luciano com admiração. ‑ Como eu gostava que mo emprestassem para o levar para a escola. Ora digam, vocês levam‑no convosco para a escola?

‑ Eu costumava levá‑lo ‑ respondeu João com ar de quem lamenta ‑, mas ela pôs‑se a dizer ao nosso chefe de turma que limpasse os pés e fechasse a porta e quando se pôs a gritar para o professor: «Não fungues, usa o lenço», foi o fim do mundo.

‑ Lembras‑te daquela vez em que a puseste num armário da aula para a esconderes e ela começou a imitar o fogo de artifício, assobiando, saltando e explodindo? ‑ perguntou Filipe a rir. ‑ Foi no dia seguinte ao da feira. Ela lembrava‑se do barulho.

Luciano escutava com grande admiração, de boca aberta, como se com a boca ouvisse tão bem como com os ouvidos.

‑ Essa agora! E o que aconteceu?

‑ Bem, nós também explodimos!‑disse Filipe.‑ E depois foi o professor, de outra maneira, claro. Tivemos de mandar a Didi dali para fora, para casa duma pessoa na vila. Nós vamos visitá‑la todos os dias e temo‑la connosco nos feriados e nos fins‑de‑semana.

‑ E ela vai sempre aos desafios da escola e farta‑se de gritar, não é, João? ‑ interpôs‑se Maria da Luz.

‑ Ela é uma maravilha ‑ disse Luciano. ‑ Deixa‑me pegar‑lhe um momento.

‑ Toma cuidado, ela não gosta de estranhos ‑ avisou João. ‑ Mas Luciano estava já a tentar agarrar a encantadora ave, mas logo a largou, porque a Didi deu‑lhe uma valente bicada e o rapaz gemeu. Com grande surpresa, Maria da Luz viu‑lhe lágrimas nos olhos!

Voltou costas e retirou‑se sem dizer palavra, chupando o dedo, que sangrava. Os pequenos puseram‑se a olhar uns para os outros.

‑ Ele estava a chorar ‑ disse Maria da Luz admirada por ver um rapaz de catorze anos a mostrar tal fraqueza.

‑ É um piegas ‑ comentou João, tentando acalmar a Didi, que tinha eriçado terrivelmente a poupa e se apoiava, irritada, ora num pé ora noutro.

«Piegas», palrou a Didi, agarrando‑se logo à palavra. «Piegas, piegas, leeas, oh, ora essa.»

‑ És atrevida por picares assim as pessoas ‑ ralhou João. ‑ Foi uma valente bicada.

«Bicas», fez a Didi.

‑ Sim, é o que tu és, uma bicosa ‑ disse João com uma simples risada. ‑ Oh, Micky, não comeces agora tu! Para má‑criação já chega a Didi.

Micky começara um dos seus longos discursos de palavriado. Era cómico ver a solenidade com que a Didi, de cabeça de lado, o ouvia.

Respondeu gravemente ao macaquinho depois deste ter terminado o seu falatório excitado, fosse ele qual fosse.

«Riqui, liqui, aqui, pula, pula», palrou, a imitar a fala do macaco. As crianças riram.

‑ Ela pensa que está a falar a língua dele. Simpática Didi! Não podes intrujá-lo ‑ disse Filipe. ‑ Estou contente por ver que já se dá agora melhor com o Micky. É um amor!

‑ Está a tornar‑se um mariola ‑ prosseguiu Dina, que olhava agora para o macaco com melhores olhos. ‑ Foi ontem a uma dúzia de cabinas, tirou de lá todos os sabonetes e foi pô‑los numa cadeira na coberta.

‑ Santo Deus! ‑ exclamou João. ‑ Vai meter‑se em trabalhos!

‑ Queres dizer que nós é que os vamos ter ‑ rectificou Filipe. ‑ Quem me dera poder ensinar a Didi a tomar conta do Micky no nosso lugar, mas ela ainda o incita mais.

Tenho a certeza de que foi a Didi que disse ao macaco que subisse pelo mastro, até junto do homem que estava na verga, para lhe pregar um grande susto.

‑ O Micky é uma jóia ‑ asseverou Maria da Luz, e fez‑lhe festas no queixo peludo. Ele olhou para ela com olhos inteligentes e tristes. Maria da Luz sabia que ele era agora muito feliz, mas afligia‑se com a maneira triste como ele a olhava. Custava‑lhe a admitir a afirmação de Filipe de que os macacos têm sempre aquele ar triste.

‑ Lá está o gongo a chamar para o almoço ‑ preveniu Dina, muito contente. ‑ Tenho tanta fome que me parece que já é mais tarde uma hora do que de costume. Venham daí todos!

 

         A HISTÓRIA DO TESOURO DE ANDRA

O Estrela dos Mares navegava agora entre as ilhas do mar Egeu. A água era de um azul‑escuro. As crianças pensavam que este era um dos mais belos trechos da viagem ao verem as ilhas azul‑púrpura emergirem do mar.

Luciano mostrou‑se útil, pois conhecia muito bem esta região.

Contava‑lhes coisas das diferentes ilhas e conhecia imensas histórias emocionantes de velhos piratas, assaltos no mar e buscas de tesouros.

‑ Estão a ver aquela ilha onde vamos aportar?

‑ dizia ele. ‑ É Oupos. É muito pequena, mas tem lá um velho castelo com uma das maiores masmorras do mundo. Os velhos marinheiros costumavam fazer prisioneiros no mar, navegavam para Oupos e encerravam‑nos na prisão. Às vezes deixavam‑nos lá durante anos, até serem velhos.

‑ Que horror! ‑ comentou Maria da Luz. ‑ Já lá estiveste, em Oupos?

‑ Sim, uma vez ‑ afirmou Luciano. ‑ Também vi os buracos que davam entrada para a masmorra. Quase me meti por um.

‑ Que queres dizer com isso, «buracos que davam entrada para a masmorra»? ‑ perguntou Filipe.

‑ Bem... o pátio do velho castelo estava todo cheio de buracos, buracos fundos, muito fundos ‑ explicou Luciano. ‑ Quando desembarcava um prisioneiro na ilha, arrastavam‑no para o grande pátio e atiravam‑no para o buraco mais próximo. Ele caía por ali abaixo e ficava junto dos outros prisioneiros.

‑ Que horror! E não podia sair outra vez? ‑ perguntou João indignadíssimo.

‑ Não. A única saída possível era através daqueles buracos verticais e profundos ‑ afirmou Luciano. ‑ Ninguém podia trepar por eles.

‑ Mas, como alimentavam os prisioneiros? ‑ perguntou Filipe.

‑ Era muito fácil ‑ esclareceu Luciano. ‑ Os guardas iam junto dos buracos todos os dias e atiravam com a comida lá para baixo.

‑Não sei se hei‑de acreditar nisso ‑ disse João.

‑ Já lhes disse que estive na ilha e vi os buracos

‑ insistiu Luciano. ‑ Claro que a masmorra agora não é usada, o pátio está todo aterrado e mal se distinguem os buracos da prisão. Foi por isso que quase caí num deles.

‑ Ficarias lá até seres velho? ‑perguntou Maria da Luz.

‑ Claro que não. O meu tio havia de arranjar‑me uma corda para me tirar de lá ‑ disse Luciano. ‑ No entanto, poderia ter partido uma perna.

‑ Conta‑nos mais algumas histórias destas velhas ilhas ‑ rogou João. ‑ Não me importava de visitar uma ou duas!

‑ Bem, eu penso que poderíamos ir... se eu pedisse ao meu tio ‑ disse Luciano de maneira estranha.

‑ Que queres dizer? Que tem o teu tio a ver com isso? ‑ perguntou Filipe. ‑ Falas como se ele fosse o dono das ilhas.

‑ Na verdade ele é o dono de algumas ‑ disse Luciano. ‑ Eu não lhes disse? É uma das manias dele, penso eu. Compra esta, depois aquela, explora‑a totalmente, depois, talvez porque se farta dela, vende‑a outra vez.

As quatro crianças olhavam para Luciano para se certificarem se ele estava a dizer a verdade. Parecia‑lhes extraordinário que alguém comprasse e vendesse ilhas como se elas fossem prédios ou quaisquer outros artigos.

‑ Mas, porque faz ele isso? ‑ perguntou João. ‑ Quero dizer, ele está interessado em coisas antigas, anda em busca de antiguidades, ou qualquer coisa do género?

‑ Ele interessa‑se muito por História ‑ disse Luciano. ‑ Sim, e também por coisas antigas. Haviam de ver a casa dele em Atenas. Tem a colecção mais maravilhosa que pode imaginar‑se de objectos provindos destas velhas ilhas. É louco por elas. ;

As crianças ficaram a pensar na personalidade do tio de Luciano. Não podiam dizer se ele era louco ou não. Parecia‑lhes um homem vulgar, bastante rude, difícil de observar porque usava óculos escuros e não lhe podiam ver os Olhos.

‑ Nunca pode saber‑se o que as pessoas pensam se não se lhes vê os olhos ‑ disse Maria da Luz, e era verdade.

‑ Julgo que vem do meu tio este meu gosto pela História. Sou sempre o melhor da classe e o pior em tudo o resto. E odeio jogos.

‑ Sim, já nos disseste isso muitas vezes‑ notou João.

‑ Só cerca de quinze vezes ‑ disse Dina.

‑ Ora essa! ‑ admirou‑se Luciano. ‑ Desculpem. É justamente por detestá‑los tanto.

‑ Dezasseis vezes ‑ afirmou Maria da Luz. «Patinho Lúcia», palrou a Didi, muito a propósito,

pensaram as crianças. Riram‑se uns para os outros. Luciano era um patinho maçador, crédulo, trapalhão e aborrecido, um pateta, mas era absolutamente inofensivo e divertia‑os muito.

‑ Voltando ao teu tio ‑ disse João. ‑ É verdade que ele possui algumas destas extraordinárias ilhas?

‑ Oh, sim. Agora, Oupos não lhe pertence. Mas aquela por onde vamos agora passar é dele. É Hélios. Deve, porém, estar a terminar o seu entusiasmo por ela. Mandou lá homens para cavarem e explorarem, mas nada mais encontraram.

‑ E chegaram a encontrar alguma coisa? ‑ perguntou Maria da Luz interessada.

‑ Deixem ver, encontraram três magníficos vasos, mas pouco mais ‑ informou Luciano. ‑ Estavam rachados, claro. Estão quase sempre assim, parece‑me. Encontraram também uns punhais tremendamente antigos E uma quantidade de pedaços de porcelana, peças de joalharia que pouco valiam, oh, sim, e uma pequena escultura de um pato. Deu‑ma.

«Patinho Lúcia», repetiu a Didi. Parecia estar a ouvir com atenção toda esta conversata de Luciano.

‑ Cala‑te, Didi, não interrompas ‑ ordenou João. ‑ Continua, Lúcia, quero dizer, Luciano.

‑ Ora esta! Não comeces também a chamar‑me isso, João! ‑ rogou Luciano, magoado.

‑ Não sejas burro, continua com a tua história ‑ ripostou João. Perdia a paciência quando Luciano se mostrava ofendido, o que acontecia imensas vezes.

‑ Sabes mais histórias acerca das ilhas? ‑ perguntou Maria da Luz, vendo que Luciano ainda estava perturbado.

‑ Bem, há a história dos barcos do tesouro de Andra ‑ lembrou Luciano. ‑ Supõe‑se que é absolutamente verdadeira. Ouvi o meu tio contá‑la muitas vezes.

‑ Vá, conta‑nos ‑ pediu Filipe, puxando para si o Micky, que estava profundamente adormecido e aninhado nos braços do rapaz.

‑ Bem, aconteceu há centenas de anos ‑ começou Luciano. ‑ Não sou capaz de me recordar da data certa. Havia um rei chamado Paulostes, cujo reino estava situado numa destas ilhas, numa das grandes. Calculo que vocês sabem que a maior parte delas tinha os seus próprios governos. Bem, Paulostes tinha um filho.

‑ Como se chamava? ‑ perguntou Maria da Luz.

‑‑ Não sei ‑ respondeu Luciano. ‑ Seja como for, este filho teve um desastre em pequeno, perdeu um olho e magoou um pé de maneira que ficou coxo. Queria casar‑se com a filha de um rei do continente grego, uma rapariga chamada Andra.

‑ Mas ela não o queria por ele ser zarolho e coxo, calculo eu ‑ interrompeu João. ‑ E havia um outro de quem ela gostava e com quem queria casar.

‑ Bem, se tu sabes a história... ‑ disse Luciano, aborrecido.

‑ Não conheço essa, mas conheço imensas iguais! ‑ disse João. ‑ Continua.

- O pai de Andra resolveu que a rapariga casaria com o príncipe zarolho se o rei Paulostes lhe enviasse ouro, jóias e armas que valessem metade do seu reino ‑ continuou Luciano, entusiasmando‑se novamente. ‑ Então, o rei mandou aparelhar uma esquadra, e encheu os navios com riqueza de toda a espécie e, certa manhã, partiram da ilha na direcção do continente.

Maria da Luz olhava para o mar azul‑escuro, imaginando a armada de pequenos barcos com as velas enfunadas pelo vento e os cascos recheados com o rico tesouro. Ouvia as enérgicas vozes de comando, o ranger dos velhos barcos de madeira, o ruído sibilante do estalar das velas. Luciano retomou o fôlego e continuou:

‑ Bem, Andra mandou recado ao homem com quem queria casar, contando‑lhe o que se passava. Este aprontou alguns barcos e partiu para interceptar a armada que levava o tesouro.

‑ E encontrou‑a? ‑ perguntou Maria da Luz.

‑ Sim, mas quando atacou a armada e finalmente a derrotou, o tesouro não foi encontrado.

‑ Santo Deus! Para onde o tinham levado? ‑ perguntou Dina. ‑ Tinham‑no lançado ao mar?

‑ Não, o capitão da armada nunca tivera a intenção de o entregar. Planeara levá‑lo para uma ilha que ele conhecia, desembarcá‑lo ali, escondê‑lo bem e voltar a buscá-lo quando pudesse. A sua ideia era dizer a ambos os reis que tinha sido atacado e roubado quando se dirigia para o continente.

‑ E foi atacado, mas já tinha escondido o tesouro!

‑ disse João. ‑ E depois, que aconteceu?

‑ O capitão foi morto, assim como metade da guarnição da armada. O resto fugiu em barcos e espalhou‑se por todos os lados. Fizeram‑se pesquisas para se dar com o tesouro escondido, mas não foi possível encontrá‑lo.

‑ Com a breca! E nunca mais se ouviu falar dele?

‑ perguntou Filipe.

‑ Sim. Alguns homens julgaram que podiam lembrar‑se da ilha onde tinham desembarcado uma noite com o tesouro. Organizaram uma expedição secreta e foram em busca dela. Questionaram e lutaram e no fim só ficaram dois ou três homens. Um deles tinha feito um mapa tosco.

‑ Um mapa da ilha? E foi alguma vez encontrado? ‑ perguntou Dina, muito excitada.

‑Sim, anos mais tarde. Um mercador grego apanhou‑o não sei como e estudou‑o até conseguir decifrá‑lo. Chegou à conclusão de que só podia tratar‑se de cinco ilhas do mar Egeu, e há dezenas delas como sabem. Então, começou a explorá‑las uma por uma.

‑ E encontrou a que interessava? ‑ perguntou Maria da Luz com os olhos a brilhar. ‑ Eu acho esta história muito excitante.

‑ Sim. A lenda diz que ele, na verdade, encontrou a ilha e descobriu o tesouro. Mas, antes de poder apoderar‑se dele, morreu.

Houve um silêncio de desapontamento.

‑ Mas, então, quem ficou com o tesouro? ‑ inquiriu João.

‑ Ninguém ‑ disse Luciano. ‑ O velho mercador nunca o disse a ninguém. Mas conta‑se que existe algures uma cópia do mapa e do plano que ele fez. Deus sabe onde! Fê‑lo antes de morrer, dizem. Viveu há cerca de cem anos.

‑ Que história impressionante! ‑ comentou Dina. ‑ Quem me dera encontrar o mapa. Onde vivia o velho? Com certeza que o mapa deve estar escondido em casa dele.

‑ Julgo que ela foi rebuscada de cima a baixo ‑ disse Luciano. ‑ Eu conheço a ilha onde ele viveu. Chegaremos lá dentro de vinte e quatro horas. Chama‑se Amulis.

‑ Oh! Vamos desembarcar nela? ‑ gritou Maria da Luz. ‑ Gostava tanto!

‑ Sim. Normalmente os barcos param lá ‑ disse Luciano. ‑ É uma ilha muito grande, com cidades e vilas, e algumas boas lojas onde vendem antiguidades e outras coisas. Os turistas muitas vezes vão em grupos para comprar coisas.

‑ Nós havemos de ir juntos! ‑ disse Dina. ‑ Quero comprar umas coisas!, ainda não tenho que chegue. Vem connosco, Luciano. Realmente serás para nós de grande auxílio!

 

         LUCIANO TORNA‑SE MUITO ÚTIL

A Sr.a Mannering ficou contente ao saber que o barco ia escalar a romântica ilha de Amulis. Tal como as crianças, tinha ficado emocionada com as histórias daquelas ilhas de um tom de púrpura nebuloso, que brilhavam no mar azul‑escuro. Tinha estado a rever a história da Grécia e parecia‑lhe que o mar Egeu pertencia ao passado e não ao presente.

Os pequenos pediram‑lhe os livros emprestados e também os leram. Que velhas eram estas ilhas e quantas histórias encerravam! Maria da Luz sentia‑se cativada por elas. Passou todo o dia junto da amurada da coberta a olhar para elas.

‑ Porque será que há tantas? ‑ disse ela. ‑ Que nome se dá a um conjunto de tantas ilhas? É um nome comprido, eu sei.

‑ Arquipélago ‑ esclareceu a Sr.a Mannering. ‑ Sabes, Maria da Luz? Diz‑se que outrora estas ilhas estavam ligadas, constituindo um grande continente. Então qualquer coisa aconteceu e o mar penetrou no que hoje é a bacia mediterrânea, encheu‑a e submergiu uma porção deste continente. Somente as partes mais elevadas, as colinas e as montanhas, ficaram à tona da água como ilhas, as ilhas Egeias, por entre as quais estamos agora a navegar!

‑ Meu Deus! ‑ disse Maria da Luz, enquanto a sua imaginação fértil lhe representava já uma grande massa de água que se precipitava sobre uma terra onde havia cidades e vilas, engolindo‑as uma a uma, afundando‑as, e, por fim, deixando somente as partes mais elevadas à superfície das águas. ‑ Oh, tia Lia, quer dizer que lá muito no fundo, por debaixo de nós, no leito do oceano, estão os restos submersos de cidades e aldeias? Aconteceu isso há muito tempo?

‑ Há milhares e milhares de anos ‑ esclareceu a Sr.a Mannering. ‑ Não poderia encontrar‑se nenhum traço delas agora. Mas isso explica as miríades de ilhas que há neste mar. Estou contente por irmos visitar uma delas.

‑ Não receia que se nos depare agora alguma das nossas costumadas aventuras, pois não? ‑ perguntou Maria da Luz. ‑ Pensa que será seguro para nós visitar esta romântica ilhazinha?

‑ Absolutamente seguro ‑ disse a Sr.a Mannering, rindo. ‑ Estarei sempre convosco.

‑ Convidámos o Luciano a acompanhar‑nos ‑ informou Dina. ‑ Eu sei que ele é um lingrinhas, mas conhece estas ilhas a valer, mãe. Contou‑nos toda a espécie de histórias acerca delas. O tio é proprietário de algumas.

‑ Sim, já me informaram ‑corroborou a Sr.a Mannering. ‑ Eu falei com a mulher, uma senhora muito simpática. Não posso dizer que gostasse de ter um marido que não fizesse outra coisa senão comprar ilhas e cavar freneticamente durante meses, depois vendê‑las e recomeçar noutro lado. Talvez esteja um bocadinho tonto, penso. Contudo, parece que encontrou algumas coisas interessantes, coisas que fizeram dele um homem rico.

O Estrela dos Mares entrou num pequeno porto no dia seguinte. As crianças estavam debruçadas na amuorada e ficaram surpreendidas quando o barco parou e lançou a âncora sem avançar para o cais.

‑ Não podemos aproximar‑nos mais. O cais não está preparado para o nosso barco, que é excessivamente grande ‑ explicou‑lhes um dos oficiais. ‑ Os passageiros vão para terra numa lancha a motor.

Efectivamente, aproximou‑se do navio uma lancha, e cerca de uma vintena de passageiros desceu por uma escada para a coberta. Claro que as quatro crianças foram, e também Luciano, a Sr.a Mannering e alguns outros passageiros interessados. Os tios de Luciano não foram. Sabiam tanta coisa da ilha que não tinham desejo algum de visitar Amulis.

Para as crianças tudo era, na verdade, muito emocionante. A lancha largou para o cais, onde todos desembarcaram. Luciano estava absolutamente familiarizado com a ilha, que tinha visitado com o tio.

‑ Venham comigo. Vou mostrar‑lhes todas as coisas interessantes ‑ afirmou ele. ‑ E também posso falar com os habitantes e servir de intermediário se vocês quiserem comprar alguma coisa.

Luciano tornou‑se na verdade muito útil. Empurrava para o lado a garotada suja que se apinhava à volta deles, pedindo dinheiro, e lançava uma torrente tão assustadora de palavras com um som tão estranho que até a Didi ficava impressionada. Ele entendia‑se bem e explicava tudo maravilhosamente.

‑ Aqui está o mercado. As pessoas que vivem lá em cima, nos montes, trazem os seus produtos para aqui, vejam‑nas em frente das bancas, depois gastam o dinheiro que ganharam nas lojas da cidade, ou vão ao cinema.

Os nativos eram uma gente pitoresca, mas bastante suja. Usavam grandes chapéus para se protegerem do sol e uma colecção de indescritíveis fatos brancos que não se percebia o que eram, mas que lhes ficavam muito bem. As crianças eram lindas ‑ pensava Maria da Luz ‑ com os seus olhos negros, feições graciosas e espesso cabelo encaracolado. Luciano levou‑os a um velho castelo arruinado, mas os rapazes ficaram desapontados porque não havia masmorras para ver. As raparigas ficaram espantadas por ver pessoas a viver aparentemente em partes do castelo juntamente com as cabras e as galinhas.

‑ Não passam de pobres camponeses ‑ explicou Luciano.

‑ Não têm outro sítio para viver. Mais para o interior, se tivesse tempo de vos levar, haviam de ver pessoas que vivem em buracos abertos na encosta do monte. Já faziam isso também há milhares de anos. É estranho pensar que esses buracos têm abrigado gente no decorrer dos séculos.

‑Essa gente dos buracos também vai ao cinema da cidade? ‑ perguntou Dina.

‑ Sim. Gostam imenso, embora não percebam muitas coisas, claro. Nenhum deles sabe ler ou escrever ‑ disse Luciano. ‑ Vivem realmente em dois mundos: o mundo do passado, onde as pessoas viviam em cavernas e andavam misturadas com as cabras, as galinhas e os gansos, e o mundo de hoje, em que há automóveis, cinemas, etc.

‑ Estranha mistura ‑ comentou João. ‑ Eu não saberia a quantas andava!

‑ Oh, eles sabem muito bem ‑ afirmou Luciano, que parou para gritar furioso a um garoto que tentava velhacamente roubar uma fita do vestido de Maria da Luz. A Didi também começou a gritar, excitada, e o Micky pôs‑se a saltar para cima e para baixo no ombro de Filipe, guinchando. A criança fugiu aterrada e Maria da Luz ficou cheia de pena dela.

Luciano levou‑os às lojas. Algumas eram pequenas, escuras e cheias de coisas estranhas. Uma, cheia de antiguidades dignas da atenção dos visitantes, era bastante grande.

‑ Vocês podem entrar aqui, se quiserem para dar uma

olhadela e comprar alguma coisa ‑ disse Luciano. – Ora esta! Onde foi o Micky?

‑ Foi fazer apenas um pouco de ginástica no toldo que está por cima da porta da loja ‑ informou Filipe. O Micky era cómico na maneira como às vezes saltava do ombro de Filipe para se pendurar em toda a espécie de coisas que apanhava a jeito, pulando de um lado para o outro, voando para outro sítio, nunca caindo ou perdendo o equilíbrio.

Agora estava a galopar por cima do toldo, correndo para cá e para lá, parando de vez em quando para se empoleirar no peitoril duma janela que estava mais acima e depois deixar‑se cair novamente. Mas, quando viu Filipe entrar na loja, abandonou o toldo e com um pulo encontrou‑se novamente no ombro do rapaz.

‑ Não me vejo livre de ti, não é verdade? ‑ disse‑lhe Filipe. ‑ És um patifório, sempre a mexer e fazes‑me tanto calor no pescoço!

A loja deslumbrou as quatro crianças. Não conseguiam destrinçar as coisas genuinamente antigas das que não o eram. Luciano, com os conhecimentos que tinha adquirido com o tio, indicou algumas coisas realmente antigas, mas eram demasiado caras para as poderem comprar. Maria da Luz contou o dinheiro e perguntou a Luciano se haveria alguma coisa que estivesse dentro das suas possibilidades.

Luciano contou o dinheiro dela. Era dinheiro grego e Maria da Luz não fazia a menor ideia do seu valor.

‑ Sim, podes comprar uma ou duas coisas ‑ disse ele. ‑ Aqui tens esta pedra azul gravada, por exemplo.

‑ Não, não quero isso ‑ retorquiu Maria da Luz. ‑ O que quero comprar é uma prenda para o Filipe. Daqui a pouco temos o aniversário dele. Haverá por aí alguma coisa de que ele possa gostar? Não o deixes ver, é só para mostrar no dia dos anos.

‑ Bem, que dizes a este pequeno barco entalhado? ‑ propôs Luciano, pegando num barco em miniatura, exactamente igual a alguns que estavam no porto. ‑ Não é antigo, claro.

À vista do barco veio à ideia de Maria da Luz a conversa de Filipe.

‑ Ah, já sei o que vou comprar‑lhe, Luciano. Já pensei. Uma coisa que ele tem imenso desejo de possuir.

‑ Que é? ‑ perguntou Luciano.

‑ Ele quer um barco metido numa garrafa ‑ explicou Maria da Luz.

‑ Sei que isto parece um desejo estranho. Mas Filipe foi sempre assim.

‑ Bem... não me parece que haja algum por aqui

‑ respondeu Luciano. ‑ Não é o género de coisas que eles costumam vender. Espera um momento. Vou perguntar ao empregado que está ao fundo da loja. Ele deve saber.

Meteu‑se pelo meio dos montes de coisas curiosas e desapareceu atrás de um biombo onde o ouviram falar com alguém. Apareceu novamente um minuto mais tarde.

‑ Não, não vendem coisas dessas aqui ‑ informou ele. ‑ Mas o empregado diz que sabe onde há uma, embora seja uma coisa bastante suja e velha; além disso, ele julga que está rachada.

‑ Onde está? ‑ perguntou Maria da Luz. ‑ Se não estiver muito rachada, poderei limpá‑la.

‑ Ele diz que a viu numa prateleira numa casa que pertence a um velho pescador, não muito longe daqui

‑ informou Luciano. ‑ Eu levo‑te lá, se quiseres. A Sr.a Mannering não se importará?

A Sr.a Mannering andava com o grupo de bordo, mas não perdia de vista Luciano e o seu rancho. Maria da Luz pensou que seria melhor ir pedir‑lhe autorização. Saíram da loja e encontraram a Sr.a Mannering com o resto do grupo a tomar um refresco típico numa curiosa pequena esplanada, à sombra de uma enorme árvore.

‑ Tia Lia, eu queria dar ao Filipe uma garrafa com um barco dentro no dia dos seus anos e Luciano diz que me leva a um lugar onde as vendem. Posso ir? ‑ perguntou a rapariguinha.

‑ Sim, mas não te demores, Luciano ‑ autorizou a Sr.a Mannering. ‑ Não é muito longe, pois não?

‑ Ah, não, é mesmo atrás do mercado ‑ disse Luciano e partiu com Maria da Luz. Atravessaram o barulhento mercado, tropeçando em galinhas e metendo‑se no meio de uma porção de cabras. Chegaram junto de um alto muro branco e rodearam‑no.

No outro lado havia um pátio e à volta dele viam‑se alguns casinhotos de pedra.

Luciano dirigiu‑se a um deles e gritou da porta, que estava aberta. Respondeu‑lhe uma voz rouca.

‑ Queres entrar? ‑ perguntou a Maria da Luz. ‑ Calculo que deve ser bastante mal‑cheiroso.

Maria da Luz, na verdade, não estava com vontade de entrar, mas pensava que seria má educação recusar; portanto, passou por cima de uma galinha que estava agachada no degrau e entrou para uma pequena sala escura que cheirava realmente muito a roupa suja, fumo e comida.

‑ Lá está a garrafa com um barco dentro. Olha! ‑ disse Luciano, apontando para uma prateleira de pedra na extremidade da sala. Lá em cima via‑se uma jarra partida, um osso velho e... a garrafa! Maria da Luz espreitou pela garrafa para ver se lá dentro conseguia ver o barco. Estava tão suja e cheia de pó que nada se via através do vidro.

Luciano disse qualquer coisa à velha que estava sentada num banco, agarrou na garrafa e levou‑a até à porta. Limpou‑a com o lenço e levantou‑a para que Maria da Luz a pudesse ver.

‑ Aqui tens. Agora já podes ver bem o barco. Terás de lavar a garrafa com água e sabão para lhe tirares toda a sujidade. É um belo barco, lindamente entalhado. Julgo que Filipe há‑de gostar dela se realmente a deseja, embora eu não compreenda que se cobice tanto uma garrafa com um barco dentro.

‑ Ah! Eu compreendo! ‑ disse Maria da Luz, olhando para o barco. ‑ Sempre desejei coisas deste género, sabes? Absolutamente inúteis, mas bonitas e estranhas. Tive uma vez uma amiga que tinha uma bola de vidro com um boneco de neve dentro; quando se agitava a bola levantava‑se dentro dela uma grande quantidade de neve que caía sobre o boneco. Por isso, compreendo o desejo de Filipe.

‑ Bem, queres que pergunte à velhota se a quer vender? ‑ indagou Luciano. ‑ A garrafa está suja e rachada, portanto ela não deve pedir muito.

- Sim, pergunta‑lhe. Sabes quanto dinheiro tenho.

Posso gastá‑lo todo ‑ disse Maria da Luz. Luciano tornou a entrar para a casota com a garrafa e quase caiu sobre duas galinhas que estavam agachadas no caminho. Ouvia‑se uma discussão em voz alta lá dentro. Maria da Luz deixou‑se ficar ao ar livre, escutando sem perceber uma só palavra. Sabia que não podia suportar outra vez o cheiro de que a casa estava impregnada.

Luciano sorria triunfante com a garrafa na mão.

‑ Bem, aqui tens. Gastei metade do teu dinheiro. A velha não a queria vender. Dizia que o avô não havia de gostar de saber que ela vendia a garrafa com o barco dentro, que pertencia à família há imensos anos. Contudo, como o avô já morreu há muito tempo, espero que não se importe. Aqui tens.

‑ Oh, obrigada, Luciano ‑ agradeceu Maria da Luz, muito grata. ‑ Vou arranjar um pedaço de papel para a embrulhar. Espero de todo o coração que Filipe goste. É um presente estupendo;, não é?

Mas ia ser muito, muito mais estupendo do que Maria da Luz podia imaginar!

 

         A GARRAFA COM UM BARCO DENTRO

Maria da Luz tratou de arranjar papel e embrulhou a garrafa antes de Filipe a ver. Os outros estavam cheios de curiosidade por saber o que ela tinha comprado, mas ela não lhes quis dizer.

‑ É uma coisa frágil, porque tu leva-la com todo o cuidado! ‑ comentou João. Depois de regressarem ao navio, quando entrou para o beliche com Dina, desembrulhou a garrafa e mostrou‑lha.

‑ Que coisa velha e suja! ‑ disse Dina. ‑ Que é isso? Com certeza não foste gastar o teu dinheiro nisso!?

‑ Metade ‑ informou Maria da Luz. ‑ É para os anos do Filipe. Ele não disse que desejava ter uma? É uma garrafa com um barco dentro.

‑ Ah, sim? É verdade que é! ‑ confirmou Dina, interessada. ‑ Vamos limpá‑la para a vermos como deve ser. Não é grande?

Esfregaram sabão num pano e puseram‑se a lavar a garrafa. Logo que saiu a sujidade do vidro, começou a ver‑se muito bem. Era uma beleza, muito grande, artisticamente esculpido, com as velas muito bem feitas. Em contraste com a garrafa, estava limpo e sem pó. As cores com que o tinham pintado ainda se mantinham vivas.

‑ Olha para isto! ‑ disse Maria da Luz deliciada.

‑ Deve ser o modelo de um dos velhos barcos gregos. Como o puseram dentro da garrafa, é pequeno e estreito; com certeza que ninguém seria capaz de meter este encantador barquinho pelo gargalo. Seria absolutamente impossível.

‑ Não posso imaginar como lá o puseram ‑ confessou Dina, também intrigada. ‑ Mas, na verdade, está lá dentro. Não achas que o Filipe vai ficar contente? Eu também gosto muito dele!

‑ Oh, e eu também. É bruxedo.

Ela colocou‑o numa prateleira. A garrafa era plana num dos lados e podia pousar sobre ele, com o encantador barco lá dentro com todas as velas desfraldadas.

‑ Como se chama o navio? ‑ disse Dina, espreitando‑o. ‑ Não consigo decifrar‑lhe o nome. As letras que tem escritas não são como as nossas. Devem ser gregas.

 

Daí a dois dias, na altura do seu aniversário, o barco foi entregue a Filipe. Ele ficou louco de contentamento e Maria da Luz radiante ao ver a sua satisfação.

‑ Mas onde o arranjaste? Olhem, é o mais lindo que jamais vi! ‑exclamou ele. ‑ Absolutamente o mais bonito. Não imagino quantos anos terá. Estou contente também por ser tão grande. A maior parte dos barcos metidos em garrafas que tenho visto são mais pequenos do que este.

O Micky e a Didi vieram ver o barco. O Micky viu‑o através do vidro e tentou agarrá-lo. Não pôde, claro, por causa do invólucro e isso intrigou‑o.

«Natal Feliz», palrava a Didi para Filipe, de vez em quando. Tinham‑lhe ensinado a dizer «Feliz aniversário», mas ela fazia confusão com Natal Feliz, que repetia constantemente.

‑ Obrigado, minha amiga ‑ agradeceu Filipe. ‑ Feliz Ano Novo para ti.

‑ Oh, não a confundas mais ‑ rogou Dina. ‑ Vamos mostrar à mãe a garrafa com o barco dentro.

Foram para a coberta e encontraram a Sr.a Mannering. A sua cadeira estava ao lado da da tia de Luciano, circunstância que, por vezes, bastante a aborrecia porque não podia suportar o tio.

‑ Olhe, mãe, veja o que a Maria da Luz me deu pelo meu aniversário, uma coisa que eu tanto desejava ter

‑ disse Filipe.

Foi admirada e depois entregue à tia e ao tio de Luciano para que a examinassem. O Sr. Eppy olhou para ela cuidadosamente. Parecia intrigado.

‑ O barco é muito antigo, realmente muito antigo

‑ afirmou ele. ‑Mas a garrafa é moderna. A ideia de

meter um barco dentro de uma garrafa é bastante recente, claro. Mas o barco que está lá dentro é muito velho, quase uma antiguidade! Muito interessante.

- Tem um nome gravado, muito pequeno ‑ disse Maria da Luz. ‑ Não sei decifrá‑lo. E o Sr. Eppy, sabe? Ele afirmou a vista e leu‑o: ‑ Sim. Andra. Estranho nome para um barco!

Nunca ouvi falar em qualquer que se chamasse assim em grego.

‑ Eu já ouvi uma vez esse nome ‑ disse Maria da Luz, tentando lembrar‑se. ‑ Ah, sim! Não era esse o nome daquela rapariga da maravilhosa história do tesouro que Luciano contou, a rapariga que não queria casar com um zarolho?... Bem! Nós muitas vezes damos aos nossos barcos os nomes de raparigas e de mulheres; reparem nos nossos grandes transatlânticos: Queen Mary, Queen Elizabeth. Não compreendo por que um barco não havia de ter também o nome de uma princesa.

O Sr. Eppy não a ouvia. Não se interessava por criança alguma, nem mesmo por Luciano, o seu próprio sobrinho. Bocejou e adormeceu. A Sr.a Mannering fez sinal para as crianças se afastarem. Micky e Didi eram muito maçadores quando alguém queria dormir. Os guinchos da Didi e o palavriado do Micky e as suas partidas não agradavam tanto aos adultos como às crianças.

Levaram a garrafa com o barco para a cabina, desta vez para o beliche dos rapazes. Filipe resolveu pô‑la na prateleira que estava em frente da sua cama, lugar onde a podia ver. Estava, na verdade, muito contente com ela. Era bonita e estranha e desejara‑a tanto! Agora tinha‑a ali.

‑ Acautela para que esse teu macaco não lhe mexa ‑ avisou‑o João. ‑ Ele está cheio de curiosidade pelo barco que lá está dentro, anda a tentar chegar‑lhe através do vidro, e fica muito aborrecido por não lhe poder tocar.

O Estrela dos Mares navegou de ilha em ilha.

Ninguém parecia dar pelo decorrer do tempo e nenhum dos garotos fazia a mínima ideia do dia em que estava.

Tudo parecia um sonho agradável em que a comida lhes sabia muito bem. Como dizia João, se ele não tivesse bem nítida a sensação do sabor da comida, na verdade pensaria que se tratava dum sonho.

Mas rebentou uma zaragata entre o Micky e a Didi que veio quebrar a espécie de irrealidade em que viviam de uma maneira muito estranha e que tornou tudo daí em diante bem real e sério.

Numa noite em que os rapazes haviam subido para jogar o ténis de bordo com as raparigas, o Micky e a Didi tinham, por um bocado, ficado sozinhos na cabina. O Micky era muito maçador quando eles jogavam o ténis de bordo porque perseguia o ringue e, se o apanhava, trepava para um ponto alto, pondo‑se de lá de cima a guinchar.

Por isso, naquela noite de Verão, tinha ficado na cabina na companhia da Didi, que estava fula.

Não gostava que a deixassem fechada. Pousou no parapeito da vigia e pôs‑se a fazer uma horrível lamúria que irritava o Micky.

O macaco foi sentar‑se‑lhe ao lado, olhando‑a como que a interrogá‑la, estendendo a mão para lhe tocar as penas. A Didi rosnou‑lhe como um cão e o Micky fugiu para a prateleira, onde se deixou ficar com ar intrigado e triste.

Procurou novamente reconfortar a Didi, tentando escovar‑lhe as penas com a escova de dentes de João, rindo encantado. A Didi virou‑lhe as costas e, finalmente, meteu a cabeça debaixo da asa, posição que provocava sempre susto e curiosidade em Micky. Não gostava que ela não tivesse cabeça. Começou cautelosamente à procura dela, separando cuidadosa e suavemente as penas da Didi. Mas onde teria ela metido a cabeça?

A Didi falou‑lhe lá bem debaixo das penas. «Piegas, piegas, piegas, ora esta! Rrrrrr. Limpa os pés e fecha a porta. Deus salve o rei!»

Micky, desesperado, desistiu. Era seu costume esperar que o animal tirasse para fora a cabeça outra vez e voltasse a ser a linda catatua que ele conhecia.

Colocou novamente a escova de dentes na caixa e pôs‑se a olhar para a esponja que estava ao lado. Apanhou‑a e espremeu‑a. Esfregou com ela a cara, como já tinha visto fazer ao Filipe.

Depois aborreceu‑se e trepou outra vez para a prateleira.

Que havia ele de fazer? Olhou à volta. Lá estava o barco na prateleira, dentro da garrafa. O Micky estendeu cautelosamente a mão para a garrafa. Porque seria que não conseguia agarrar aquela coisinha que estava lá dentro? Porque não havia ele de a tirar e de brincar com ela? Pôs a cabeça de banda e começou a examinar o barco que a garrafa continha.

Pegou nela e pôs‑se a embalá‑la, cantarolando na sua linguagem. A Didi retirou a cabeça de debaixo da asa e olhou para o macaco. Quando o viu embalar a garrafa ficou cheia de ciúmes e zangada.

«Fecha a porta, fecha a porta, rapaz malcriado», ralhou ela. «Onde está o teu lenço, lá vai a doninha aos pulos!»

O Micky não percebeu palavra, mas isso também não interessava. Sacudiu a garrafa com força. A Didi levantou a poupa e voltou a ralhar.

«Malcriado, malcriado! Peste! Pula, pula, pula!»

O Micky deu uma gargalhada e não quis largar a garrafa. A Didi voou para a prateleira e surpreendeu o macaco com uma valente bicada. Este soltou um grito e largou a garrafa para agarrar o braço, que sangrava.

A garrafa foi parar ao chão com estrondo e quebrou‑se em duas; o barquinho soltou‑se e caiu para o lado. O Micky precipitou‑se para o apanhar. Até que enfim tinha ao seu alcance a tal coisa que estava dentro da garrafa! Apanhou‑a e fugiu com ela para debaixo da cama em silêncio.

A Didi ficou assustada com o ruído da garrafa ao quebrar‑se. Sabia que tinha sido uma maldade.

Pôs‑se a fazer o ruído de um motor e depois voltou a calar‑se. Que iria dizer Filipe?

Cinco minutos depois os dois rapazes entraram na cabina para se lavarem e mudarem de roupa.

A primeira coisa que viram foi a garrafa quebrada no chão. Filipe ficou horrorizado a olhar para ela.

‑ Olha! Está partida! E foi a Didi ou o Micky que fizeram a patifaria.

‑ Onde está o barco? ‑ disse João, olhando em volta. Não o viram. Só quando retiraram o Micky de debaixo da cama é que encontraram o barco. Ele não o tinha estragado. Apanhou três valentes açoites e a Didi três palmadas no bico.

‑ O meu rico presente! ‑ lastimou‑se Filipe, olhando para o barquinho esculpido. ‑ Olha que lindo, João! Agora fora da garrafa vê‑se melhor.

João olhou para ele e puxou um pequeno botão que tinha no lado.

‑ Que é isto? ‑ disse ele. Com grande surpresa sua o botão saiu e ele pôde olhar lá para dentro.

‑ É oco ‑ disse ele. ‑ E tem qualquer coisa dentro, Filipe; parece papel ou pergaminho. Que será?

Filipe sentiu‑se subitamente excitado.

‑ Pergaminho? Então deve ser um velho documento! Porque seria que o esconderam no barco? Com certeza que contém algum segredo! Com a breca, é estupendo! Deus sabe o que está escrito nesse documento!

‑ Deixa‑me tirá‑lo para vermos ‑ sugeriu João. ‑ Repara, esta peça do barco pode ser levantada depois de tirarmos o botão e agora já temos abertura suficiente para tirar o pergaminho.

‑ Tem cuidado! Pode desfazer‑se se é muito antigo

‑ avisou‑o Filipe. João tirou a parte móvel do barco e colocou‑a ao lado do botão. Depois, com todo o cuidado, tentou tirar o pergaminho. Mas estava excitado e as mãos tremiam‑lhe muito.

Então, soou o gongo, indicação de que eram horas de jantar.

‑ Não vemos agora, não podemos deixar de ir

‑ resmungou João. ‑ Mas temos de descobrir o que é isto.

‑ Sim, tens razão. Vamos esperar até depois do jantar ‑ concordou João com um suspiro. ‑ Arma tudo outra vez, Filipe. Não podemos correr o risco de acontecer alguma coisa ao barco e ao seu segredo!

Repuseram tudo novamente como estava e colocaram o barco dentro de um armário; depois, afogueados de entusiasmo, subiram para jantar. Que emoção! Custava‑lhes esperar para contarem tudo às raparigas!

Elas não conseguiram compreender o que tinham os rapazes durante aquele jantar. O João esteve sempre a rir‑se para elas como um idiota e Filipe tentou segredar‑lhes a notícia.

A Sr.a Mannering, surpreendida, carregou o sobrolho.

‑ Filipe, estás a exceder‑te. Por favor, diz o que tens a dizer em voz alta.

Mas era isso justamente o que Filipe não podia fazer.

‑ Aa... quem ganhou o ténis? ‑ perguntou ele com voz sem timbre.

‑ Ora, realmente, não consigo compreender porque havias de perguntar isso em segredo ‑ replicou a Sr.a Mannering. ‑ Não sejas palerma, Filipe.

‑ Desculpe, mãe ‑ disse Filipe sem parecer aborrecido, antes extraordinariamente contente. É que ele não conseguia ser senhor de si. O barco e o seu pergaminho não lhe saíam do pensamento. Era uma coisa realmente excitante, estava certo.

Assim que acabou o jantar, as quatro crianças escaparam‑se. Logo que chegaram a um canto escuro, João puxou as raparigas.

‑ Maria da Luz! Dina!

‑ Que é? ‑ perguntou Dina. ‑ Vocês pareciam dois patetas durante o jantar. ‑ Que se passa?

‑ Chiu! Escutem! Sabem? É o barco que estava na garrafa ‑ começou João, mas Filipe interrompeu‑o.

‑ Não. Deixa‑me contar. Bem... o Micky e a Didi quebraram a garrafa não sei como, os mariolas, e quando entrámos no camarote vimo‑la estilhaçada no chão, e o barco tinha desaparecido!

‑ Para onde? ‑ perguntou Maria da Luz, desolada.

‑ Era o Micky que o tinha, debaixo da cama. Tirámos‑lhe o barco, examinámo‑lo e, querem acreditar, tinha um botão, que saiu. Depois conseguimos tirar outra parte do barco, e lá dentro está um documento qualquer, um pergaminho !

‑ Não digam! ‑ gritaram as raparigas ao mesmo tempo, entusiasmadas ao ouvirem a notícia.

‑ É verdade. Venham daí para verem. No entanto, não digam coisa alguma a ninguém, especialmente ao Luciano. Este segredo é só nosso.

Foram todos a correr para o camarote dos rapazes e quase esbarraram no criado que tinha estado a armar as camas.

‑ Desculpe! ‑ disse João. ‑ O senhor já acabou?

‑ Sim, já acabei, mas porque andam assim a correr? ‑ admirou‑se o criado. Não lhe responderam. Fecharam‑lhe a porta na cara, e ele ouviu correr a lingueta na fechadura. Que andariam aqueles garotos a preparar?

Uma vez dentro do camarote, abriram a luz e o armário. Filipe tirou para fora o barquinho esculpido. Os outros apertaram‑se à volta dele.

‑ Vejam, tira‑se o botão, e, assim, solta‑se esta peça do lado, que se desprende ‑ explicou Filipe.

‑ E agora não vêem cá dentro enrolado o documento? Tenho a certeza de que é um pergaminho.

As raparigas soltaram um profundo suspiro.

‑ Com a breca, é de enlouquecer! ‑ exclamou Dina ‑, Tirem‑no depressa!

‑ Temos de ter cuidado em não o rasgar ‑ disse João. ‑ Afastem‑se um pouco, meninas. Estão a fazer‑me estremecer o braço.

Como os rapazes conseguiram tirar o papel, que estava todo dobrado, para fora do barco de madeira, foi um milagre.

Pouco a pouco, foram‑no fazendo deslizar até que saiu todo e o barco ficou vazio.

‑ Cá está! ‑exclamou João, triunfante, colocando o pergaminho amarelo sobre o toucador. ‑ Agora vamos ver o que é.

Com dedos leves e cautelosos, Filipe desdobrou o pergaminho. Era uma grande folha. Os pequenos debruçaram‑se nervosos sobre ele.

‑ É um mapa!

‑ Um plano qualquer!

‑ Não sei ler as palavras. Que maçada, devem ser gregas, ou coisa parecida!

‑ Que é isso? Parece uma ilha!

‑ Vejam, estes sinais devem representar a bússola. Olhem, isto deve ser o Norte, Sul, Este e Oeste.

‑ Mas são dois mapas. Reparem, este pedaço deve mostrar uma ilha, penso eu, e isto aqui à volta deve representar o mar. E este pedaço é um plano, um plano de uma construção, julgo eu, com corredores e outras coisas.

Toda esta conversa excitada continuou, e cada um dos pequenos pretendia ver mais de perto o mapa.

Filipe lembrou‑se de que tinha uma lupa e foi buscá‑la. Todos puderam, então, ver ainda melhor e apreender mais alguns sinais e palavras estranhas que não tinham conseguido distinguir anteriormente.

‑ Vê lá esta palavra tão esquisita, no lado esquerdo, mesmo no cimo ‑ disse subitamente Maria da Luz.

‑ Bem, é absolutamente semelhante ao nome do barco, não é? Vamos comparar para ver.

Olharam para ambas as palavras, primeiro no barco, depois no mapa. Na verdade eram as mesmas.

‑ Ora bem, o Sr. Eppy disse que o nome do barco era Andra, e se o nome do mapa é o mesmo, deve ter qualquer ligação com uma ilha ou uma pessoa chamada Andra ‑ afirmou Dina.

Houve um silêncio. Todos tinham a mesma ideia no pensamento e perguntaram a si próprios se se atreveriam a dizer o que tinham pensado. Não, não era natural. Era absolutamente impossível.

Maria da Luz foi a primeira a manifestar‑se. Fê‑lo com voz sufocada.

‑ Andra é o nome da rapariga que não queria casar com o príncipe zarolho. Podem supor que um dos barcos que tinham sido enviados com o tesouro, e se perdeu, teria o nome de Andra em sua homenagem? E pensam que poriam o nome de Andra à pesquisa feita ao tesouro, razão por que este barco e este mapa trazem o nome de Andra?

‑ Não pode ser! ‑ exclamou João, sufocado. ‑ Não é possível que fôssemos dar mesmo com o fulcro do segredo perdido, o exemplar do velhíssimo plano feito há centenas de anos! Não é possível!

‑ Talvez seja uma mistificação ‑ alvitrou Filipe, com a plena convicção de que não era.

‑ Não, não pode ser ‑continuou Dina.‑ O Sr. Eppy, que é conhecedor de coisas antigas, disse‑nos que este barco era velho, não disse? Ele estava intrigado com ele, porque afirmou que o barco era muito mais antigo do que a garrafa.

‑ Bem, vou dizer‑lhes o que penso ‑ declarou João lentamente. ‑ Penso que isto pode ser um plano e que provavelmente aquele velho mercador grego que copiou o original, e morreu, o escondeu neste barco, que talvez ele próprio tenha esculpido.

‑ Sim, e depois da sua morte a família conservou‑o como curiosidade, não sabendo o que lá estava dentro, e mais tarde alguém obteve o barco e achou‑o mesmo a calhar para o meter numa garrafa ‑ terminou Filipe.

‑ Mas como foi ele parar lá dentro? ‑ perguntou Maria da Luz. ‑ Para mim é um verdadeiro mistério.

‑ Muito fácil na verdade ‑ volveu João. - Os mastros podem dobrar‑se sobre o casco atados com cordéis. O casco do navio é metido pelo gargalo da garrafa, depois puxam‑se os fios atados aos mastros do navio e, então, levantam‑se os mastros e as velas. Os cordéis são tirados para fora, e a garrafa selada com o barco de velas todas desfraldadas lá dentro.

‑ Com a breca, que engenhoso! ‑ admirou‑se Maria da Luz. Olhou novamente para o barco e para o mapa velho e amarelecido, que estava ao lado.

‑ Pensar que estamos diante de um plano que foi traçado há séculos por um almirante grego que comandava uma armada de navios cheios de tesouros! E neste mesmo mapa está indicado o local onde esse tesouro está ainda escondido, e nós somos as únicas pessoas no mundo sabedoras desse segredo!

Era, na verdade, uma ideia extraordinária. Fez‑se silêncio entre os garotos. Olharam uns para os outros. Maria da Luz, com timidez, falou novamente.

‑ João, Filipe! Acham que vamos cair noutra aventura, não é verdade?!

Ninguém lhe respondeu. Todos estavam a pensar no estranho mapa. João exprimiu os seus pensamentos.

‑ O facto é que, como diz a Maria da Luz, somos possivelmente os únicos seres no mundo que conhecemos o segredo, mas para nós é tudo grego! Não somos capazes de ler uma palavra do mapa,, nem sequer sabemos qual é o nome da ilha que está aqui indicada. É de enlouquecer.

‑ Teremos de descobrir ‑ disse Dina.

‑ Ah, sim, chegamos junto de gregos como o Sr. Eppy, e dizemos‑lhes: por favor, não se importava de me decifrar este estranho documento? Não é uma ideia muito brilhante, Dina. Uma pessoa que não esteja nas nuvens perceberá que há alguma coisa de importante neste mapa, e ele desaparecerá num abrir e fechar de olhos!

‑ Ai, meu Deus, é verdade!‑concordou Maria da Luz. ‑ Então, temos de ter cuidado com ele.

‑ Já sei o que havemos de fazer para que ninguém o roube e o use. Cortamo‑lo em quatro pedaços, cuidadosamente, e cada um de nós fica com um! Então, se alguém nos roubasse um bocado nada ganharia com isso. Só teria uma quarta parte do plano, que de pouco lhe serviria!

‑ Sim, é uma boa ideia ‑ disse Filipe ‑ embora não possa compreender por que estamos para aqui a pensar em ladrões e salteadores!

‑ Apenas porque já tivemos experiência dessas coisas nas nossas aventuras ‑ opinou Dina. ‑ Já vamos sabendo como lidar com elas agora!

‑ E sabem? ‑ observou João, pensando ainda no seu plano. ‑ Se cortarmos o mapa em quatro pedaços poderemos muito bem pedir a quatro pessoas diferentes que nos decifrem cada quarto; dessa maneira elas nada compreenderão, enquanto nós poderemos adaptar aquilo que nos explicarem, conseguindo assim um quadro completo do significado do mapa.

‑ É, na verdade, uma ideia brilhante, João ‑ concordou Filipe. ‑ Seja como for, proponho que não mostremos ao Sr. Eppy qualquer dos bocados.

‑ Não vejo por quê ‑disse João.‑Só com um bocado ele não será capaz de o adaptar ao conjunto e certamente nós não lhe vamos dizer que temos o resto. De facto, não seria má ideia procurá‑lo; ele poderia dizer‑nos se isto é, na verdade, um documento autêntico. Se não for documento de confiança, não teremos necessidade de perder o nosso tempo à procura de mais três pessoas que nos decifrem os outros pedaços.

‑ Achas que ele poderia pensar naquilo que nós julgamos? Que este mapa é um plano do esconderijo do tesouro de Andra?‑ perguntou Filipe, ainda duvidoso da vantagem de consultar o Sr. Eppy acerca do mapa.

‑ Não lhe mostraremos o bocado que tem o nome de Andra ‑ opinou João. ‑ E não nos referiremos aos outros pedaços ou mesmo onde encontrámos esse. Apenas lhe diremos que encontrámos isto durante as nossas explorações, mas não sabemos onde. A Maria da Luz não precisa de falar.

Só ela sabe onde arranjou o barco, nós não. Portanto, podemos enfrentá‑lo e dizer‑lhe: «Não senhor, não fazemos a menor ideia de onde veio o pedaço de papel. Apareceu‑nos, nada mais.»

‑ Espero que ele nos acredite ‑ disse Dina. ‑ Ele nunca parece acreditar em coisa alguma do que diz Luciano.

‑ Ora, bem... esse piegas ‑ retorquiu João.

‑ Luciano é de facto mais simpático do que tu supões

‑ disse Maria da Luz. ‑ Foi graças a ele, não se esqueçam, que eu arranjei este barco; nunca o teria encontrado dentro da garrafa se não fosse ele.

‑ Bem, ele terá um pequeno quinhão do tesouro se nós o encontrarmos ‑ dispôs João generosamente.

‑ Ah, e nós vamos à procura dele? ‑ interrogou Maria da Luz. ‑ E a tia Lia? Que vai ela dizer? E o Estrela dos Mares não se importará se nós formos em busca da ilha do tesouro?

‑ Não sejas pateta, Maria da Luz‑retorquiu João.‑ Como podemos nós fazer planos para o futuro sem sabermos o que diz o mapa? Creio que a tia Lia vai ficar tão entusiasmada como nós quando lhe contarmos tudo.

‑ Sim? Eu suponho que não ‑ replicou Maria da Luz. ‑ Penso que ela não vai gostar e vai levar‑nos direitinhos para casa! Não consentirá que andemos por aí como loucos à procura de ilhas e de tesouros, sei‑o perfeitamente. Já está farta de nos ver metidos em coisas dessas.

‑ Então, nada lhe contaremos até estar tudo arranjado, e quando estiver mandamos chamar o velho Jaime ‑ declarou João.

Maria da Luz alegrou‑se logo. Desde que Jaime Cunningham estivesse metido no assunto, nada lhe importava. Os quatro, esgotados por uma conversa tão enervante, sentaram‑se nas duas camas. Desejavam que a ventoinha pudesse girar com o dobro da velocidade, tanto calor sentiam. Ela trabalhava, voltando‑se para um lado e para o outro e era recebida como uma benção naquela cabina tão quente.

Um ruído terrível, muito mais intenso do que produzido pela ventoinha eléctrica, chegou‑lhes aos ouvidos. Deram um pulo.

‑ É a Didi a fazer a sua imitação de um comboio expresso ‑ esclareceu João. ‑ Venham, é melhor irmos buscá‑la senão o próprio capitão é capaz de vir cá ver o que se passa. Santo Deus, lá está ela outra vez. Deixámo‑la tempo de mais no camarote das raparigas. Grande atrevida!

Os pequenos precipitaram‑se para a cabina vizinha, ansiosos por fazer calar a Didi antes que os outros passageiros reclamassem. A Didi estava pousada no toucador, em frente do espelho, berrando para si própria. Embora os espelhos normalmente não a impressionassem, havia ocasiões em que se punha furiosa ao ver outra catatua na sua frente que ela não podia bicar.

‑ Cala‑te, Didi, pássaro impossível ‑ gritou João. ‑ Hei‑de atar‑te o bico, podes ter a certeza! Pássaro terrível, desbocado animal!

«Muitos parabéns», palrou a Didi, dirigindo‑se a Filipe, fingindo não ouvir João. Imitou o som duma rolha a ser tirada da garrafa e depois o ruído de um líquido a cair num copo.

‑ Ela quer beber ‑ disse João. ‑ Desculpa, bichinha. Esqueci‑me de que terias calor aqui ‑ disse. Encheu o copo dos dentes com água e a Didi cobiçou‑a. Estava cheia de sede. Micky também veio beber.

‑ Nós somos desumanos ‑ continuou Filipe. ‑ Esquecemos tudo com este nosso entusiasmo. Há sempre água para eles na nossa cabina, mas na das raparigas nunca há. Pobre Didi! Pobre Micky!

«Piegas», fez delicadamente a Didi. Imitou um soluço muito natural. «Perdão! Micky, Didi, Micky, Didi, Micky, Didi...»

‑ Já chega ‑ interrompeu João. ‑ Não te achamos graça. Vamos todos apanhar ar fresco, pensar nos nossos planos e depois dormir.

Subiram para a coberta com a catatua e o macaco. Os outros passageiros sorriram ao vê‑los. Eles gostavam das quatro crianças e dos seus bichos. A Didi imitava um soluço todas as vezes que passava junto de alguém, e dizia logo: «Ai, credo! Perdão!» Ela sabia que aquilo fazia rir as pessoas e gostava de se exibir.

Na coberta, o ar da noite estava fresco. As crianças falavam pouco porque tinham muito em que pensar. A garrafa, o barco, o velho mapa, dividi‑lo em quatro, decifrá‑lo, procurar, procurar, procurar... o tesouro de Andra!

Lá em baixo, nas suas cabinas, todos levaram muito tempo a adormecer. Sacudiram‑se e viraram‑se, desejando refrescar‑se. O Micky e a Didi estavam ambos na vigia em busca de algum fresco. Os rapazes agora tinham‑na sempre aberta, porque nenhum dos animais mostrava sinais de querer sair pela grande abertura circular.

Maria da Luz deitou‑se e pôs‑se a pensar. Mais uma vez a assaltava aquele estranho sentimento de expectativa enervante misturado com um pouco de receio. Ela conhecia esse sentimento! Era o mesmo que sentia quando estava prestes a cair nalguma aventura. Chamou Dina em voz baixa.

‑ Dina, estás a dormir? Escuta, achas que iremos novamente embrenhar-nos numa das nossas aventuras? Diz‑me, diz‑me que não!

‑ Bem, se é assim, quem tem a culpa? ‑ respondeu‑lhe a voz de Dina, completamente acordada. ‑ Quem comprou o barco?

‑ Fui eu ‑ respondeu Maria da Luz. ‑ Sim, se desta vez nos virmos metidos numa aventura será tudo porque eu comprei esse barquinho... que nos lançará na aventura do barco.

 

         O SEGREDO DO BARCO

Quando amanheceu os rapazes começaram a compreender as dificuldades que se lhes deparavam no que dizia respeito ao estranho documento que lhes tinha vindo parar às mãos. A coisa nem de longe lhes parecia tão simples ou tão exequível como a tinham imaginado na noite anterior.

Circunstâncias que os rapazes tinham desprezado, tais como as objecções da Sr.a Mannering, subitamente pareciam‑lhes realmente de peso. De facto, todo o problema perdeu o seu tom cor-de‑rosa e parecia fazer parte do reino do impossível. Era desapontador.

Mas quando tornaram a examinar o mapa, que Filipe tinha cautelosamente metido num sobrescrito e guardado debaixo da almofada toda a noite, assaltou‑os de novo o entusiasmo da noite anterior. Fosse como fosse, eles tinham de conseguir decifrá‑lo, tinham de descobrir se ele era genuíno, e, depois, quem sabia o que poderia acontecer!

Fizeram planos. O mapa tinha de ser cuidadosamente cortado em quatro partes. Cada quarto devia ser metido num pequeno sobrescrito que, por sua vez, seria encerrado noutro maior. Cada um dos pequenos devia guardar secretamente o seu pedaço junto de si ou na cabina.

Era esta a primeira coisa a fazer. Depois, um deles devia mostrar o seu pedaço ao Sr. Eppy e observar a reacção dele. Claro, não o pedaço que continha o nome da ilha, mas sim um dos outros.

‑ E a Maria da Luz não deve acompanhar‑nos quando o formos procurar ‑ respondeu Filipe. ‑ Se ele nos perguntar directamente onde é que desencantámos o papel, poderemos dizer, sem mentir, que não sabemos, mas a Maria da Luz não pode, e já se sabe que corava logo e deitava tudo a perder.

‑ Não corava, não ‑ discordou Maria da Luz, que não queria ficar mal.

‑ Coravas. Não és capaz de mentir ‑ afirmou Filipe. ‑ Não negues, Maria da Luz, é muito bonito ser‑se assim e nós não queríamos que fosses diferente. É só porque isto é importante, e poderia ficar tudo estragado se mostrasses que sabíamos alguma coisa.

‑ Está bem ‑ admitiu Maria da Luz, com um suspiro. ‑ Talvez tenhas razão. Gostaria que, de vez em quando, o Sr. Eppy tirasse os óculos escuros; como não lhe vejo os olhos não sei o que ele sente!

‑ Acho que ele é boa pessoa, mas tem um pouco de mau génio ‑disse João. ‑ É bom para a mulher e é muito delicado para a tia Lia. É um facto que não é amável com o Luciano, mas nós, se tivéssemos por sobrinho um «coelho» daqueles, talvez não fôssemos óptimos para ele.

‑ E não o somos por vezes ‑ retorquiu Maria da Luz. ‑ Por exemplo, quando andamos continuamente à volta dele a falar‑lhe em tomar banho na piscina do barco, sabendo que ele tem um medo terrível da água.

‑ É só para ver que nova desculpa ele arranja ‑ disse João. ‑ Tem uma habilidade espantosa para arranjar desculpas.

‑ Bem, mas, voltando ao mapa, quando é que o mostramos ao Sr. Eppy? ‑ perguntou Filipe. ‑ E se ele disser que é genuíno, que faremos depois? Haverá mais alguém no barco a quem possamos mostrar os outros pedaços do mapa?

‑ Sim, há o criado da coberta ‑ respondeu Dina. ‑ É grego. Penso que o poderia decifrar muito bem. Há ainda aquela mulherzinha grega que toma conta da loja na esplanada da coberta; julgo que também poderia explicar‑nos um pouco.

‑ Sim, estamos a progredir! ‑ declarou Filipe, contente. ‑ Bem,, se começássemos a dar umas tesouradas?

‑ Tenho na minha cabina uma tesoura muito afiada ‑disse Maria da Luz. ‑ Vou buscá‑la. Ao mesmo tempo verei o que estão o Micky e a Didi por lá a fazer. Alguma maldade, com certeza!

‑ Bem, não os podemos ter aqui enquanto mexemos no mapa ‑ recomendou João. ‑ O Micky podia tirá‑lo e lançá‑lo pela vigia fora como fez ontem com o postal que eu tinha acabado de escrever!

‑Mas que lembrança horrível! ‑ exclamou Dina, imaginando o seu precioso mapa desaparecendo pela vigia. E levantou‑se para a fechar. ‑ Mais vale prevenir...

‑ disse ela, enquanto os rapazes se riam.

Maria da Luz foi buscar a tesoura. Demorou muito tempo a voltar e os outros estavam impacientes.

‑ Que estará ela a fazer? Demora‑se uma eternidade. Quando Maria da Luz voltou trazia consigo a Didi.

‑ Tive de a trazer ‑ explicou ela. ‑ Tinha levado o Micky para um canto e estava em frente dele a dançar ora num pé ora noutro, sabem, como faz quando está furiosa, e rosnava horrivelmente como um cão. O pobre Micky estava louco de pavor. Tive de conservar‑me lá um bocado para o acalmar.

‑ Queres dizer que estiveste lá um bom bocado na paródia com os dois ‑ resmungou João. ‑ E a fazer‑nos esperar todo este tempo. Onde está a tesoura?

‑ Que estupidez! Afinal acabei por me esquecer dela!

‑ disse Maria da Luz e tornou a partir à pressa, muito vermelha. Voltou logo com a tesoura na mão. A Didi estava agora muito contente empoleirada no ombro do seu querido João, cantando qualquer coisa no género dos Três Ratos Cegos, repetindo sempre numa vozinha muito doce. Sabia que tinha feito maldades.

João agarrou na tesoura e muito cuidadosa e solenemente cortou o precioso documento ao meio.

O pergaminho estalou ao ser cortado. Os outros retiveram a respiração e observaram. Depois João tornou a cortar as metades ao meio, e ali estavam, sobre o toucador dos rapazes, os quatro pedaços, quatro maravilhosos quartos de um documento raro e único, se este era o que as crianças julgavam.

‑ Agora vamos metê‑los nos sobrescritos pequenos e estes nos maiores ‑ disse Dina. Procurou nos estojos de correspondência dos rapazes de onde tirou pequenos sobrescritos bastante fortes. Cada um dos bocados do mapa foi ali metido cuidadosamente. Depois arranjaram uns maiores onde guardaram os mais pequenos. Muito bem! O primeiro passo estava dado.

‑ Podemos perfeitamente tornar a ligar os quatro bocados logo que estejam todos decifrados ‑ lembrou Filipe. ‑ Ora bem, qual será a melhor hora para entrevistar o Sr. Eppy, e como havemos de apresentar‑lhe o problema?

‑ Agora seria uma bela ocasião ‑ asseverou João. ‑ Costuma estar lá em cima na cadeira de repouso, e provavelmente estará acordado visto que não passou ainda muito tempo depois do pequeno almoço.

‑ Ouçam, parece‑lhes que devemos dizer alguma coisa ao Luciano acerca disto? ‑ perguntou Maria da Luz.

‑ Não sejas parva! Está claro que não! ‑retorquiu João. ‑ Eu não confio ao Luciano a mais pequena coisa. Bastava que o tio lhe desse dois ou três berros para que ele contasse logo tudo o que soubesse e mesmo o que não soubesse.

Ficou decidido que mostrariam ao Sr. Eppy o bocado do João. Não tinha escrito o nome Andra nem o da ilha, tanto quanto eles podiam saber. Representava uma parte da ilha, com alguns hieróglifos esquisitos.

‑ Que são hieró... não sei quê? ‑ perguntou Maria da Luz quando João empregou essa palavra. ‑ Parece o nome de um remédio ou coisa parecida!

‑ Hieróglifos? Bem, são esses gatafunhos que nós não conseguimos decifrar, ‑ informou João. ‑ Sinalefas usadas no lugar das palavras. Símbolos secretos, talvez.

‑ Símbolos secretos cheira a mistério ‑ disse Maria da Luz. ‑ E agora onde hei‑de guardar o meu pedaço?

‑ Não o guardes no teu estojo de correspondência ou noutro sítio tão fácil como esse, Maria da Luz ‑ aconselhou Filipe. ‑ Eu sei onde hei‑de guardar o meu.

‑ Onde? ‑ perguntaram os outros ao verem Filipe levantar‑se e dirigir‑se para o seu toucador. Este estava preso à parede, claro; todas as peças do mobiliário das cabinas estavam presas às paredes ou ao chão, para não se moverem no caso de o barco balouçar. Entre a parede e o toucador havia um espaço que não era mais largo do que uma frincha.

‑ Aqui! ‑ indicou. ‑ Ninguém mexerá aqui; está absolutamente escondido entre a porta do toucador e a parede. Onde vais pôr o teu, João?

‑ Guardá‑lo‑ei comigo ‑ respondeu João. ‑ Os meus calções têm um forro fininho. Digo à Maria da Luz para descoser uns pontinhos e meto lá o meu pedaço. Depois prego‑o. Mas ainda não escondo o meu porque o tenho de mostrar ao Sr. Eppy.

Dina tinha‑se lembrado de um sítio excelente. Levou os outros à cabina dela. Por trás da ventoinha eléctrica havia um painel de madeira ao qual a ventoinha estava fixada. Meteu o pedaço do mapa entre esse painel e a parede. Ficava perfeitamente escondido. Teve de desligar a ventoinha para se servir do seu esconderijo, claro; depois pô‑la outra vez a trabalhar e os outros declararam que o esconderijo dela era o melhor; ninguém se lembraria de que havia alguma coisa escondida por trás da ventoinha, que girava dia e noite sem parar.

‑ Sim, senhor, muito bem! ‑ aprovou João. ‑ E a Maria da Luz?

‑ Pensa num sítio onde o Micky não chegue ‑ preveniu Filipe. ‑ Está a observar‑te.

Não pode apanhar o pedaço da Dina porque tem medo da ventoinha. Nunca se atreveria a fazer explorações por trás dela.

‑ E se eu o metesse debaixo do tapete? ‑ lembrou Maria da Luz.

‑ Não ‑ discordou João. ‑ Quando limpasse o tapete a criada podia encontrá‑lo.

‑ Bem, já sei; e atrás do espaço da gaveta? ‑ lembrou Maria da Luz. ‑ Puxou uma das gavetas do toucador e pô‑la no chão. Depois, do seu estojo de desenho, tirou um percevejo e pregou o precioso sobrescrito nas costas da tábua que servia de fundo à gaveta.

‑ Aqui está! ‑ disse ela. ‑ Ninguém verá que está ali, a menos que tire a gaveta para fora; para que haviam de fazê‑lo?

‑ Sim. Está muito bem ‑ e os outros também aprovaram. ‑ O Micky não tem força suficiente para tirar a gaveta, mesmo que quisesse. E agora vamos falar com o Sr. Eppy?

‑ Muito bem. Maria da Luz, tu vais para o recinto de ténis de bordo com o Luciano, enquanto nós falamos com o tio dele ‑ aconselhou Filipe. ‑ Desta maneira, ambos estão afastados.

Maria da Luz partiu ao encontro de Luciano. Ele andava por ali sozinho, perguntando a si próprio onde estariam os outros. Ficou encantado ao ver Maria da Luz e concordou logo em ir jogar com ela. De todos os quatro era dela que mais gostava; provavelmente porque sentia que ela não fazia troça dele como os outros.

‑ Bom... já lá vão os dois, muito bem ‑ disse João, vendo‑os subir as escadas que levavam à coberta dos desportos. ‑ Venham daí. Vamos às cadeiras de repouso. Didi, decide lá em qual dos meus ombros desejas ficar; esta passeata dum lado para o outro é muito desagradável!

‑ Só queria que tivesses o Micky por uma hora ou duas, ‑ resmungou Filipe. ‑ Era como uma botija junto da minha orelha direita esta manhã.

Os passageiros olhavam os três garotos, passeando com a catatua e o macaco. Agora já se tinham habituado a eles e divertiam‑se com as pantominas dos dois bichos. A Sr.a Mannering observava‑os.

‑ Aonde vão? ‑ perguntou. ‑ Onde está a Maria da Luz?

‑ Está a brincar com o Luciano ‑ respondeu João, sentando‑se ao lado da Sr.a Mannering. A Sr.a Eppy e o marido estavam do outro lado. João falava alto para que a sua voz se ouvisse.

‑ Tenho aqui uma coisa estranha ‑ começou ele. ‑ Um documento velho, julgo eu. Acha que o Sr. Eppy consentirá em o examinar, tia Lia?

‑ Pergunta‑lhe! ‑ disse a Sr.a Mannering ‑, Ele está aqui.

 

         ESCONDERIJOS

Filipe e Dina estavam sentados na ponta da mesma cadeira de repouso, junto da Sr.a Mannering. João sentava‑se na extremidade da cadeira dela, com o seu pedaço de papel. Todos tinham um ar inocente e despreocupado.

‑ Na verdade, custa‑me ir agora incomodar o Sr. Eppy ‑ disse João. ‑ Está a ler.

A Sr.a Eppy ouviu. Bateu no braço do marido.

‑ Paulo ‑ disse ela. ‑ João quer perguntar‑te uma coisa.

O Sr. Eppy sabia isso perfeitamente mas fingia não ouvir. Ergueu os olhos.

‑ Muito bem ‑ disse ele de má vontade. ‑ Que é?

‑ É apenas um pedaço de papel velho que nós encontrámos ‑ disse Filipe, juntando‑se à conversa ‑, Provavelmente sem interesse. Claro que nada conseguimos compreender do que ele contém.

‑ Pode nem sequer ser antigo ‑ atalhou João, puxando o seu pedaço com o polegar.

‑ Parece antigo ‑ disse a Sr.a Mannering, sentindo‑se interessada. ‑ Onde o encontraram?

‑ Realmente não sei. Apanhei‑o numa das ilhas que visitámos ‑ disse João. ‑ Sabes onde foi, Dina?

‑ Não ‑ disse Dina sem mentir. ‑ Não faço ideia.

‑ Nem eu ‑ disse Filipe.

‑ Deixem lá ver ‑ disse o Sr. Eppy com ar aborrecido. A mulher passou‑lhe o pedaço do pergaminho. Ele pegou‑lhe e olhou‑o com a intenção de lho entregar com uma observação de troça. Que sabiam estes miúdos de coisas antigas?

Nada! Provavelmente era um pedaço de uma carta velha, trazida pelo vento, que eles tinham apanhado na rua. Ou possivelmente tinham comprado qualquer coisa e isto era uma parte do papel em que estava embrulhada. O Sr. Eppy olhou para ele e abriu a boca para brincar um pouco.

Mas não pronunciou palavra. Pôs‑se a olhar demoradamente para o papel. Finalmente tirou os óculos escuros e olhou‑o sem eles.

‑ Ah! É genuinamente antigo, senhor? ‑ perguntou João, por fim, sem poder esperar mais.

O Sr. Eppy não lhe respondeu. Estava a mexer na algibeira à procura de qualquer coisa. Tirou para fora um pequeno estojo preto e abriu‑o. O estojo continha uma lupa com armação que podia ser adaptada a um olho, semelhante à que usam os relojoeiros. O Sr. Eppy pôs a lupa no olho, como se fosse um enorme monóculo, e tornou a inclinar‑se sobre o pedaço de pergaminho de João.

Olhou para ele durante muito tempo. Os garotos esperaram de respiração suspensa. Por que não falava ele? Por que se dava aqueles ares? Era mesquinho da parte dele!

Por último, o Sr. Eppy tirou a lente da vista e olhou os pequenos. Ficaram assustados porque nunca tinham visto os olhos dele sem óculos. Não eram nada bonitos, os Olhos dele! Eram verdadeiramente estranhos. Um era azul e o outro castanho‑escuro. Dina sentiu um arrepio na espinha. Que coisa tão esquisita! Não podia deixar de olhar para ele, fitando primeiro o olho azul‑escuro e depois o olho castanho‑escuro. Seria um deles postiço? Não, que patetice, havia de ter olhos iguais se um deles fosse postiço.

‑ Bem ‑ disse o Sr. Eppy, e fez uma pausa como que a pensar naquilo que lhe convinha dizer. ‑ É... aa... muito interessante. Aa...

‑ Mas é verdadeiramente antigo, Sr. Eppy? ‑ insistiu João. ‑ É o que nós queremos saber.

‑ O pergaminho não está todo aqui ‑ disse o Sr. Eppy, e os seus olhos fitaram primeiro um dos garotos e depois o outro. ‑ Isto é apenas um fragmento. E, a julgar pelas arestas o pergaminho foi recentemente cortado. Muito estranho isto, não acham?

Isso é que os pequenos não esperavam. João respondeu logo, sentindo que o silêncio deles poderia deitar tudo a perder.

‑ Com a breca, que estranho! Bem, suponho que encontrámos, portanto, só um pedaço, senhor. Quem terá o resto?

‑ Quem será? ‑ disse o Sr. Eppy, olhando para João e balouçando a lente no dedo para um lado e para o outro. ‑ Gostaria imenso de saber.

‑ Porquê, Sr. Eppy? ‑ perguntou Filipe com ar absolutamente inocente, o que muito admirou Dina.

‑ Bem, só com este pedaço não posso dizer muito

‑ prosseguiu o Sr. Eppy. ‑ Ajudaria muito se tivéssemos o resto.

‑ E que representa, Sr. Eppy? ‑ perguntou Dina.

Ele olhou‑a com os seus estranhos olhos. ‑ Representa parte de uma ilha que tem qualquer segredo. Talvez pudesse dizer qual é o segredo se tivesse o outro pedaço do pergaminho.

‑ Que pena não o ter, Sr. Eppy ‑ disse João, estendendo a mão para pegar no seu pedaço.

‑ Onde disseram que tinham encontrado este? ‑ disse o Sr. Eppy, lançando a pergunta tão subitamente que os garotos pularam.

‑ Não dissemos porque não sabemos ‑ disse imediatamente João.

O Sr. Eppy franziu o sobrolho. Tornou a pôr os óculos escuros e voltou a ser o homem que conheciam antes com os seus olhos esquisitos completamente escondidos.

‑ Vou guardar este pergaminho durante algum tempo

‑ disse ele, tirando a carteira para o meter lá.

‑ Eu preferiria que o não fizesse, senhor, se não se importa ‑ disse João. ‑ Vou levá‑lo para Inglaterra... aa... para o museu do colégio, se na verdade é genuinamente antigo.

‑ Sim, é genuíno ‑ disse o Sr. Eppy, secamente. ‑ Posso comprar‑vo‑lo. Como sabem, interesso‑me por coisas antigas.

‑ Não o queremos vender, Sr. Eppy ‑ objectou João, começando a sentir‑se assustado. ‑ Não deve valer nada. Seja como for, queremos guardá‑lo como curiosidade.

‑ Muito bem. Mas gostaria que mo emprestassem durante algum tempo ‑ disse o Sr. Eppy, e calmamente guardou o pergaminho na carteira, que meteu no bolso. Depois agarrou no livro e pôs‑se a ler.

João, desesperado, olhou para os outros. Estava zangado e desanimado, mas que havia de fazer? Não podia sacar a carteira ao Sr. Eppy e tirar de lá o seu pedaço de pergaminho. Se fizesse uma cena, a Sr.a Mannering ficaria zangada e o Sr. Eppy suspeitaria, se porventura não estava já desconfiado!

Filipe e Dina estavam confundidos. Que descaramento, tirar-lhes o pergaminho daquela maneira! Tencionaria restituí‑lo? Estavam com pena de não o terem copiado. Se ao menos o tivessem feito! Agora talvez nunca mais recuperassem o seu pedaço de pergaminho.

Levantaram‑se e partiram, sentindo que tinham de discutir aquilo. O Sr. Eppy não reparou na partida deles. João não se atreveu a dizer-lhe mais nada, mas olhou com fúria para o tio de Luciano, como se assim pudesse tirar‑lhe a carteira.

Foram para a cabina. ‑ Bruto! ‑ desabafou João. ‑ Monstro! Que descaramento meter o nosso pergaminho na algibeira daquela maneira!

‑ Espero que o recuperaremos ‑ disse Dina, abatida.

‑ Mas já temos a certeza de uma coisa; sabemos muito bem que é genuíno e antigo e contém qualquer coisa que muito interessa ao Sr. Eppy, ‑ disse Filipe, alegrando‑se um pouco. ‑ Temos a certeza disso. Ficou absolutamente espantado logo que o viu e até o examinou com a lupa. Aposto que ele sabe que faz parte de um plano de tesouro.

‑ Eu não acho, contudo, que tivesse sido boa ideia levá‑lo ao Sr. Eppy ‑ disse Dina. ‑ Pode conter marcações que indiquem a um homem destes, que sabe tudo acerca de antiguidades, muito mais do que diriam a qualquer outra pessoa.

‑ Conto que ele não adivinhe que nós temos os outros pedaços ‑ observou João.

‑ Com certeza que adivinhou ‑ afirmou Filipe. ‑ Maria da Luz chegou ofegante à cabina.

‑ Então? ‑ perguntou ela. ‑ Como se passou tudo? Tive de deixar de jogar com o Luciano porque o tio foi lá acima chamá‑lo. Levou‑o dali não sei para onde.

‑ Levou‑o, não foi? ‑ disse João. ‑ Suponho que vai perguntar‑lhe o que ele sabe. Ainda bem que ele não sabe nada!

‑ Que aconteceu? ‑ perguntou Maria da Luz. ‑ Vocês estão todos com cara de enterro. Não era verdadeiramente antigo?

‑ Era. Mas o Sr. Eppy apoderou‑se dele e meteu‑o na carteira ‑ informou João. ‑ E aposto que já não o tornamos a apanhar!

Maria da Luz ficou horrorizada.

‑‑Mas porque o deixaste tirar, idiota?

‑ Bem, e tu, que farias? Atirava‑lo da cadeira abaixo, arrancavas‑lhe a carteira e fugias com ela? ‑ perguntou João, imitando a cena de deitar uma pessoa ao chão e de lhe tirar alguma coisa.

A Didi estava pasmada e levantou voo assustada, berrando. Pousou, alarmada, no alto do armário. João não fez caso dela. Estava realmente desanimado com o que tinha acontecido, fraco epílogo dos seus maravilhosos, cautelosos e inteligentes planos.

‑ Só temos de esperar que ele no‑lo restitua, aí está - declarou Filipe. ‑ E se o fizer, quer dizer provavelmente que arranjou uma bela cópia dele!

‑ Temos de descobrir o que disse ele ao Luciano

‑ sugeriu João. ‑ Vai com certeza convencê‑lo a tentar interrogar‑nos acerca daquele pedaço de pergaminho para descobrir se temos os outros bocados, onde e quando descobrimos a coisa, e onde está o resto do plano.

‑ Sim. E nós vamos inventar uma bela história para lhe impingir! ‑ afirmou Dina, com os olhos a brilhar. ‑ Venham, vamos arranjá‑la! Se o Sr. Eppy está a querer enganar‑nos, nós também o faremos. Que vamos dizer agora se o Luciano nos perguntar?

‑ Bem, nós dissemos que não sabíamos muita coisa a respeito disso; portanto, o melhor será fingir que é a Maria da Luz que sabe ‑ alvitrou João com ar mais alegre, pois pensava na maneira de passar uma rasteira ao Luciano e talvez também ao Sr. Eppy.

‑ Ai, meu Deus! ‑ retorquiu Maria da Luz, alarmada. ‑ Então terei de contar ao Luciano uma história de fadas completa?

‑ Não, nós fazemos isso por ti ‑ disse João. rindo. ‑ Agora vamos lá pensar. Como havemos de dizer que Maria da Luz encontrou o pergaminho?

‑ Ela encontrava‑se um dia na coberta dos desportos

‑ começou Dina ‑, e estava a dar de comer às gaivotas que vivem em redor destas ilhas...

‑ E veio uma grande gaivota com uma coisa no bico

‑ continuou Filipe. ‑ Voou em volta da cabeça da Maria da Luz...

‑ Deixou cair o papel aos pés dela quando pousava para comer o pão ‑ prosseguiu João. ‑ Ela apanhou‑o e mostrou‑nos o papel a todos. Nós pensámos... a... que só um homem muito inteligente como o querido Sr. Eppy poderia decifrar este estranho documento trazido por uma generosa gaivota...

‑ E foi por isso que lho levámos ‑ terminou Dina. Pôs‑se a rir. ‑ É estúpido de mais para se poder contar. O Luciano nunca comerá uma patranha dessas.

‑ Come, sim, mas o tio é que não! ‑ replicou o Filipe, rindo. ‑ Calha bem. Ele vai esperar conseguir informações por meio de Luciano e verificará que o intrujamos!

‑ Bem, não me façam dizer isso! ‑disse Maria da Luz. ‑ Ficaria vermelha enquanto falasse.

‑ Escutem, não é o Luciano que vem aí? ‑ perguntou João. ‑ Vai‑te embora, Luzinha. Olha, pega neste livro e diz que o vais entregar à tia Lia. Anda. Desta maneira não estarás presente. É o Luciano. Conheço os seus passinhos idiotas.

Maria da Luz agarrou num livro e dirigiu‑se para a porta. Ao chegar lá alguém a abriu e a cara de coelho de Luciano surgiu.

‑ Olá, olá! ‑ disse ele. ‑ Posso entrar?

‑ Faz favor ‑ disse Maria da Luz, passando por ele. ‑ Eu vou levar este livro à tia Lia, mas os outros estão aqui. Ficarão contentes por te verem.

 

         LUCIANO METIDO EM TRABALHOS

‑ Olá, Luciano ‑ saudou João. ‑ Entra. Queres um doce?

‑ Obrigado ‑ respondeu Luciano, e sentou‑se na cama. Tirou um grande pedaço de nógado da lata que João lhe oferecia. ‑ Palavra, que bom que isto é!

‑ Exactamente como um jogo de ténis? ‑ perguntou Filipe.

‑ Aa... bem... na verdade eu só gosto de jogar com a Maria da Luz ‑ disse Luciano, que era tão fraco a jogar que até a Luzinha o batia. ‑ Não me posso comparar com vocês, bem sabem. É verdade, o meu tio esteve a falar‑me do pedaço de pergaminho que vocês lhe mostraram.

‑ Ah, sim? Que disse ele? ‑ perguntou João .

‑ Bem... ele pensa que deve ser uma coisa autêntica, mas sem o resto nada pode concluir ‑ disse Luciano, mastigando. ‑ Olhem, vejam lá o macaco. Tirou um enorme pedaço de nógado.

‑ Sim, quase tão grande como o teu! ‑ disse Dina, que reparara que Luciano tirava sempre o bocado maior que havia na lata.

‑ Não me digam! Tirei realmente um bocado grande? ‑ exclamou Luciano. ‑ Tenho de tomar mais atenção. Vocês nunca me falaram desse pedaço de pergaminho. Por que não o fizeram? Teria gostado de o ver.

‑ Bem, consideras isso importante? ‑ respondeu Filipe. ‑ Quero dizer, nós nunca pensámos que pudesses interessar‑te por isso.

‑ Ah, mas interesso‑me, e muito! ‑ assegurou Luciano, mastigando com força. O Micky também mastigava e a Didi olhava‑o cheia de inveja. Não gostava. Não gostava de nógado mas não suportava ver o Micky a deliciar‑se com o doce. ‑ Vocês devem contar‑me tudo acerca dele. Onde o arranjaram e... tudo!

‑ O teu tio não te contou como e onde o tínhamos encontrado? ‑ perguntou Dina inocentemente. Luciano olhou surpreendido para ela.

‑ Com a breca, não ‑ respondeu ele. ‑ Vocês disseram‑lhe? Mas então por que diabo é que ele me encarregou de o descobrir?

Tinha‑se estendido ao comprido. Os outros piscaram o olho uns aos outros. ‑ Bem, talvez não lhe tivéssemos dito ‑ admitiu João solenemente. ‑ Dissemos ou não dissemos?

«Sim, não, sim, não», palrou a Didi, pensando que já era tempo de se fazer notada. Mas ninguém comentou.

‑ É uma vergonha não contar ao nosso caro Luciano ‑ disse Dina, com voz amável. Luciano entusiasmou‑se.

‑ Sim. Afinal ele é nosso amigo‑ corroborou Filipe. Luciano ficou tão perturbado com esta observação que

engoliu um pedaço de nógado e engasgou‑se. A Didi imediiatamente fingiu estar também engasgada. Ela fazia isso extraordinariamente bem. João deu uma palmada nas costas de Luciano e o Micky foi para junto da Didi e também lhe deu palmadas no lombo. Todas as crianças riram, mas a Didi ficou furiosa com o Micky e pôs‑se a correr atrás dele por toda a cabina.

‑ Ai, meu Deus! ‑ exclamou Dina, limpando as lágrimas de tanto rir. ‑ Estes bichos dão cabo de mim. Ora, de que estávamos a falar?

‑ De eu ser vosso amigo, e que, portanto, vocês deviam contar‑me tudo o que se passou acerca desse pedaço de pergaminho ‑ disse Luciano prontamente. ‑ Oh, posso realmente tirar mais um pedaço de nógado? Sim? Muitíssimo obrigado.

Tirou um pedaço, desta vez com a preocupação de não ser o maior.

‑ Ah, sim ‑ prosseguiu João. ‑ Estávamos a dizer que era uma vergonha não contarmos ao nosso caro Luciano. Bem, meu velho, o caso realmente passou‑se com a Maria da Luz. Deixa‑me ver... aa...

‑ Ela estava na coberta a dar de comer às gaivotas que voam perto das ilhas ‑ explicou João. Luciano acenou

com a cabeça. Ele tinha visto muitas vezes Maria da Luz a dar‑lhes de comer.

‑ Subitamente uma enorme gaivota voou à volta da cabeça dela com qualquer coisa no bico ‑ continuou Filipe. ‑ É assim, não é, João?

‑ Absolutamente ‑ respondeu João com ar solene.

‑ E vê lá tu bem: quando a gaivota veio comer o pão deixou cair o pergaminho aos pés de Maria da Luz! ‑ interveio Dina. ‑ Que pensas disto, Luciano? Foi assim, não foi, João?

‑ Oh, absolutamente ‑ repetiu João, com voz firme. Luciano abriu muito os olhos e escancarou a boca. ‑ Oh, não me digam! ‑ exclamou ele. ‑ Não é espantoso? Quero dizer... quem poderia ter suposto uma coisa destas?

Como todos os três tinham pensado, e muito bem, nenhum respondeu. Dina sentiu uma vontade irresistível de rir e virou a cara para o outro lado. Luciano mostrava‑se absolutamente desorientado com a história.

‑ Quer dizer... palavra, parece uma história da Carochinha, não é? ‑ comentou ele. ‑ A gaivota deixa cair isso aos pés de Maria da Luz.

Os outros concordaram que era exactamente como uma história da Carochinha. ‑Que extraordinário!‑ ‑ concluiu Luciano, levantando‑se e comendo o último bocado de nógado que tinha na mão.

‑ Bem, tenho de ir. Obrigado por me terem contado tudo isto. Ah! Digam‑me o que aconteceu à garrafa onde o barco estava metido. Têm agora o barco sem a garrafa?

‑ Sim. O Micky e a Didi partiram‑na ‑ informou João.

‑ Mariolas. Contudo, é um lindo navio e a garrafa não lhe faz falta.

Luciano saiu. Os outros riram‑se uns para os outros. Que grande barrete! Pobre Luciano... estava mesmo a pedi‑la.

‑ Estou mesmo a ouvi‑lo a despejar toda a laracha ao incrédulo tio ‑ disse João. ‑ Venham daí, que morro se não sair para apanhar ar fresco e fazer um pouco de exercício. Vamos procurar a Maria da Luz e jogar o disco ou outra coisa. Agora está muito calor para o ténis.

Jogaram toda a manhã e só desceram para almoçar quando se sentiram cheios de fome. Com grande surpresa, viram que o Luciano não apareceu ao almoço. Ficaram a pensar se estaria doente. A Sr.a Mannering perguntou por ele à tia.

‑ Não, não está doente, apenas apanhou um pouco de sol, penso eu ‑ disse a tia do rapaz. ‑ Nunca tem cuidado com o sol.

Desceram e bateram à porta suavemente. Não ouve resposta. João rodou a maçaneta da porta e entrou. Luciano estava deitado na cama com a cara mergulhada na almofada.

‑ Estás a dormir, Luciano? ‑ perguntou João baixinho. Luciano virou‑se subitamente. ‑ Ah, és tu? ‑ disse ele. João viu que a cara do rapaz estava inchada de lágrimas.

‑ Que aconteceu? ‑ perguntou ele. ‑ Os outros podem entrar? Estão lá fora.

‑ Bem, se lhes apetece ‑ respondeu Luciano, que evidentemente não estava contente com a chegada dos visitantes, mas não gostava de o confessar. A seguir os três pequenos entraram na cabina. Maria da Luz ficou desolada ao ver a cara de Luciano muito inchada.

‑ Que aconteceu? ‑ perguntou ela. ‑ É muito grave a tua queimadura do sol?

‑ Não foi queimadura do sol ‑ declarou Luciano e, com grande pena das crianças, os olhos começaram a encher‑se‑lhe de lágrimas. ‑ Foi o horrível bruto do meu tio!

Escondeu a cara na almofada outra vez para que não lhe vissem as lágrimas.

‑ Mas que se passou com ele? ‑ perguntou João, não com muita simpatia, pois achava que aquela atitude era cobarde de mais para um rapaz daquela idade.

‑ Chamou‑me toda a espécie de nomes ‑ respondeu Luciano, levantando‑se outra vez. ‑ Entre eles, piegas e imbecil...

«Becil», palrou a Didi. «Piegas!»

‑ Não comeces tu agora‑disse o pobre Luciano para a catatua. ‑ Chamou‑me idiota, inepto e estúpido...

‑ Mas porquê? ‑ perguntou Maria da Luz, admirada.

‑ Bem, eu contei‑lhe como é que a Maria da Luz tinha encontrado o diabo daquele pedaço de pergaminho ‑ confiou‑lhes Luciano. ‑ Sabem, exactamente como vocês me contaram. Pensei que ele ficaria contente por eu ter descoberto o que ele queria saber. Mas não ficou.

‑Ai, não? Mas que maçada! ‑ declarou Filipe, achando que o Luciano merecia aquele castigo por ter ido a correr contar ao tio a historieta que lhe tinham impingido; eles já esperavam isso, claro, grande mexeriqueiro que ele era!

‑ Eu contei‑lhe que uma gaivota tinha trazido o pergaminho e o havia deixado cair aos pés de Maria da Luz ‑ relatou Luciano com ar trágico. ‑ E o meu tio berrou: «O quê?», de forma que eu repeti o que vocês me tinham contado.

‑ Que disse ele depois? ‑ inquiriu João, procurando não se rir.

‑ Tudo quanto lhes contei. Insultou‑me e ofendeu‑me. ‑ respondeu Luciano. ‑ Afinal, ele costumava acreditar em todas as outras coisas que lhe contava. Não consigo compreender por que não acreditou desta vez.

‑ Que outras coisas lhe contaste tu? ‑ perguntou imediatamente João.

‑ Oh, não foi muita coisa. Só queria saber se eu tinha feito compras com alguns de vocês. Eu respondi‑lhe que tinha andado com a Maria da Luz e contei‑lhe como havíamos encontrado aquele velho barco dentro da garrafa. E ele respondeu: «Ah, claro, o Andra! O Andra!» Exactamente assim. Digo‑lhes que ele estava com ar muito estranho.

Os outros ouviam isto em silêncio. O Sr. Eppy certamente tinha apertado com o Luciano com algum fim. Sabia que tinham comprado o barco e onde: lembrava‑se de ter visto o nome quando lhe pediram para o ler ‑ o Andra. Estava a ligar as coisas. Provavelmente já calculava que o pergaminho tinha sido encontrado no barco, porque o burro do Luciano lhe devia ter dito que a garrafa se tinha quebrado e que o barco estava cá fora.

‑ Contaste ao teu tio que a garrafa se tinha partido? ‑ perguntou João.

‑ Aa... sim, julgo que sim ‑ respondeu Luciano. ‑ Digam‑me, nada fiz de mal, pois não? Quero dizer, não tem importância que eu tivesse contado tudo isto ao meu tio, pois não?

‑ Não nos importamos que lhe tivesses contado da gaivota e do bocado de papel ‑ disse João com sinceridade. ‑ Lamento que o teu tio seja tão desconfiado. Fez mal em te ter chamado nomes desses.

‑ Fez mal, não fez? ‑ lamuriou Luciano. ‑ Não tem o direito de o fazer. Também chamou a vocês uns poucos de nomes.

‑ Bem, não os repitas ‑ disse João. ‑ Devias realmente habituar‑te a respeitar as confidências de pessoas, Luciano. Quero dizer, não está certo que se ande de uns para os outros a contar o que se ouviu aqui e acolá, possivelmente em confidência.

‑ Agora também vocês estão zangados comigo! ‑ lamentou‑se Luciano. João levantou‑se aborrecido. Esta atitude para ele já ultrapassava as marcas.

Ele nem sequer sentia pena por Luciano estar metido em trabalhos por causa de uma historieta da Carochinha que tinham inventado especialmente para ele. Luciano metia‑se em trabalhos por suas próprias mãos!

Os outros levantaram‑se também. Só Maria da Luz sentia pena do Luciano. Contudo, até ela estava descontente com as lágrimas dele e a sua choradeira; realmente ele devia mostrar mais dignidade.

Saíram sem dizer palavra, deixando Luciano infelicíssimo, perturbado, zangado... e com muita fome!

‑ Venham uns instantes à minha cabina ‑ disse João. ‑ Temos de falar um pouco sobre este assunto. O Sr. Eppy está a descobrir depressa de mais todas as coisas que lhe queríamos ocultar. Que idiota é o Luciano! Para que foi ele falar tanto do barco? Temos de o pôr no seguro, para o caso de ele o pedir emprestado como fez com o pergaminho.

Foram para a cabina dos rapazes e Filipe deu um grito que fez salltar os outros. ‑ Olhem, não precisou de o pedir emprestado! Desapareceu!

 

         O SEGUNDO FRAGMENTO DO MAPA

Era verdade. O belo barquinho esculpido já não estava no seu lugar de honra, sobre a prateleira. Tinha desaparecido.

As quatro crianças olharam desesperadas umas para as outras. Maldito Sr. Eppy! Que direito tinha ele de «pedir emprestadas» coisas destas? Restituí‑lo‑ia?

‑ Para que o viria ele buscar? ‑ perguntou Dina. ‑ Mesmo que suspeite que encontrámos o pergaminho, mesmo assim não consigo compreender para que o veio tirar. Seja como for, já o tem em seu poder.

‑ Só um pedaço dele, e ele bem o sabe ‑ corrigiu João.

‑ Provavelmente imagina que o resto está ainda dentro do pequeno barco, que nós não reparámos ou que o guardámos lá. «Pediu‑o emprestado» para ver.

‑ Roubou‑o,, queres tu dizer!‑exclamou Maria da Luz indignada. ‑ Que homem horroroso! Penso que ele é um monstro.

‑ Acham que devo ir perguntar‑lhe se ele o tem? ‑ perguntou Filipe. Estava muito irritado, sentia‑se quase capaz de fazer a barba a um leão no seu covil.

Os outros puseram‑se a considerar. ‑ Suponhamos que ele não o levou ‑ opinou João. ‑ Seria muito aborrecido acusá‑lo de o ter feito.

‑ Quem o poderia ter levado a não ser ele? ‑ perguntou Filipe. ‑ Ninguém.

‑ Olhem, vamos tomar banho na piscina e esquecer isso durante um bocadinho ‑ disse Dina.

‑ Se vocês ainda continuam com vontade de fazer a barba ao leão, podem ir. Está tanto calor que eu prefiro ir nadar.

‑ Está bem ‑ anuiu Filipe de má vontade. ‑ Mas depois já não me sentirei com tanta vontade de ir procurar o Sr. Eppy.

Contudo, depois do banho ele continuava com a mesma disposição. Os outros não puderam deixar de o admirar; pensavam realmente que era um acto de coragem ir ter com o Sr. Eppy e acusá‑lo de roubo do barco. Seguiu à procura do Sr. Eppy. Não estava na cabina; não estava na cadeira da coberta. Onde poderia estar? Filipe começou a pesquisar todo o barco, decidido a encontrá‑lo. Por fim, viu-o sair do posto de rádio.

‑ Sr. Eppy ‑ disse Filipe, avançando direito a ele. ‑ Onde pôs o nosso barco?

O Sr. Eppy estacou. Filipe desejou ardentemente que ele não usasse aqueles óculos pretos que o impediam de distinguir se o Sr. Eppy estava surpreendido ou zangado.

Não demorou a sabê‑lo. O Sr. Eppy respondeu com uma voz muito cortante. ‑ Que queres dizer, rapaz? De que barco falas tu?

‑ Do barquinho de madeira que lhe mostrámos... O que estava dentro da garrafa, o Andra ‑ disse Filipe, desejando mais do que nunca poder ver os olhos do Sr. Eppy e ler neles os seus pensamentos. ‑ Onde o meteu?

‑ Julgo que estás maluco ‑ respondeu friamente o Sr. Eppy. ‑ Completamente maluco. Tanto como o Luciano, que veio ter comigo com uma história da Carochinha sobre uma rapariga, uma gaivota e um bocado de pergaminho. Que falta de senso! Agora vens tu com a história de um barco de brincar. Naturalmente pensas que o levei para divertir‑me com ele na banheira.

‑ Mas não o tirou, Sr. Eppy? ‑ insistiu Filipe.

‑ Não. E não tenhas a ousadia de me insultar com as tuas histórias da Carochinha e as tuas perguntas tolas ‑ trovejou o Sr. Eppy.

E afastou‑se com a boca contraída. Filipe ficou um pouco abalado. Bem, nada tinha conseguido tirar do Sr. Eppy. Diabo de homem! Mas Filipe tinha a convicção de ter sido ele o autor da proeza. Foi ter com os outros, que estavam à sua espera.

Abriu a porta da cabina e entrou.

‑ Bem ‑ informou ele. ‑ Nada feito. Diz que não tirou o barco, mas aposto que o tem. Tenho mesmo a certeza.

‑ Então, a tua certeza é muito débil ‑ declarou João, apontando para a prateleira na parede. ‑ Olha para ali.

Filipe olhou e ficou espantado. O bonito barquinho da aventura estava outra vez no seu lugar.

‑ Onde é que ele estava? ‑ perguntou ele. ‑ Bolas, que figura idiota fiz eu ao acusar o Sr. Eppy de o ter. Onde diabo estava ele metido?

‑ Não sabemos ‑ respondeu Dina. ‑ Entrámos todos aqui poucos minutos depois de tu nos teres deixado para ires à procura do Sr. Eppy e a primeira coisa que vimos foi o barco.

‑ Estava ali; em cima da prateleira, no mesmo sítio em que o tínhamos deixado esta manhã ‑ disse Maria da Luz.

‑ Quem o tornou a pôr lá? ‑ perguntou Filipe.

‑ Ah, se o soubéssemos também sabíamos quem o tinha tirado ‑ respondeu João. ‑ Continuo a pensar que foi o Sr. Eppy. Lembrem‑se de que ele foi almoçar depois de nós e podia ter‑se introduzido na cabina e tirado o barco. E com a mesma facilidade podia tornar a pô‑lo aqui enquanto tomávamos banho. Se ele nos viu na piscina, o que é muito provável, ficou a saber que tinha tempo suficiente para se introduzir aqui e voltar a pô‑lo no seu lugar.

‑ O botão do barco está um pouco frouxo ‑ explicou Dina. ‑ Com certeza que ele descobriu como ele trabalhava, levantou a peça de madeira e examinou pormenorizadamente o barco por dentro.

‑ Compreendo. E quando viu que ele nada tinha, tornou a pô‑lo generosamente no seu lugar ‑ disse Filipe. ‑ Não gosto desse homem. Vai andar à caça nas nossas cabinas, à procura dos outros bocados do pergaminho, se não nos acautelarmos.

Maria da Luz ficou alarmada. ‑ Ai, meu Deus, vocês acham que ele seja capaz disso?

‑ É possível ‑ admitiu Filipe. ‑ Os esconderijos parecem-me muito bons, mas são provavelmente fáceis de descobrir.

‑ Tenho uma ideia; vamos decifrar agora os outros bocados? ‑ disse subitamente Dina. ‑ Como sabem, tínhamos pensado em perguntar à grega do quiosque do barco e ao criado da coberta. Suponham que o Sr. Eppy consegue saber que mostrámos a outras pessoas mais bocados de pergaminho. Vai logo à procura deles.

‑ Sim, isso é verdade ‑ disse João ‑ Mas se não conseguirmos decifrá‑los continuamos na mesma. Um tesouro escondido para ninguém serve se não se souber pelo menos onde está. De qualquer modo, nem sequer sabemos se o mapa mostra um tesouro escondido. Só sabemos que é um mapa velho e genuíno e que o Sr. Eppy tem extraordinário interesse nele.

‑ Julgo que podemos confiar na mulherzinha do quiosque ‑ disse Maria da Luz. ‑ É boa pessoa e gosta de nós. Se lhe dissermos que é um segredo, ela não o guardará? No fim de contas temos de perguntar a alguém.

Então, discutiram se a mulher do quiosque seria ou não de confiança e decidiram por fim afirmativamente.

‑ Ela disse que havia de mostrar fotografias dos filhos ‑ continuou Maria da Luz. ‑ Tem três numa ilhazita qualquer. Deixa‑os com a avó quando anda embarcada. E se fôssemos ter com ela, ver as fotografias e fazer‑lhe perguntas sobre o pergaminho?

‑ Tenham confiança na Luzinha para saber a vida de cada um ‑ disse Filipe a rir. ‑ Faz‑me confusão como ela consegue isto!

Já sabe os nomes dos filhos do segundo-oficial e conhece tudo acerca da velha mãe da criada e das doenças de que sofre, e até sabe o número de cães que o capitão teve durante toda a sua vida!

‑ Não sei‑ objectou Maria da Luz, indignada.‑ Tinha lá coragem para lhe perguntar qualquer coisa a respeito dos cães! Além disso ele nem sequer pode ter nenhum a bordo.

‑ Estou só a arreliar‑te, Luzinha ‑ disse Filipe. ‑ De facto, penso que a tua ideia de ir ver as fotografias da mulher do quiosque e depois meter‑lhe à cara o pergaminho ou qualquer dos bocados é muito boa.

‑ Vamos lá, então ‑ disse Maria da Luz, olhando para o relógio. ‑ Está toda a gente a dormir a sesta e a esta hora nunca está ninguém na loja. Ela deve estar sozinha.

Saíram todos. Filipe teve a ideia de ver primeiro onde estava o Sr. Eppy só para o «caso» de ele andar à espreita por ali.

Voltou para trás e fez o seu relatório:

‑ Está a dormir na cadeira da coberta; tem a cabeça para trás e não está a ler nem a fazer qualquer outra coisa.

‑ Como sabes tu que ele está a dormir? Com aqueles horríveis óculos escuros ninguém pode dizer se os olhos dele estão abertos ou fechados ‑ disse João.

‑ Bem, parecia que estava a dormir ‑ respondeu Filipe. ‑ Assim meio adormecido e distendido. Venham daí, vamos ao quiosque agora.

Foram para o quiosque. A grega que o dirigia sorriu abertamente, mostrando os seus dentes brancos, quando viu os garotos com a Didi e o Micky.

‑ Ah, Didi e Micky que maldade fizeram vocês? ‑ perguntou ela, fazendo festas ao macaquinho e coçando o peito à Didi. «Um, dois, três, partida!» A Didi imitou imediatamente o ruído de um tiro de pistola, que era exactamente o que a grega queria ouvir. Conhecia muito bem as habilidades da Didi e ria com vontade sempre que o animal soluçava, tossia ou espirrava.

‑ Digam‑lhe para espirrar ‑‑pediu ela. ‑Gosto tanto de a ouvir espirrar.

Dessa maneira, a Didi presenteou-a com uma rica colecção de espirros, com grande espanto do Micky. Depois exibiram‑se as fotografias e os garotos tiveram de ouvir uma história completa de cada um dos três filhos da mulher. Dina pensou que não existiam no mundo crianças mais encantadoras do que aquelas, tão meigas, tão boas, tão religiosas, tão extraordinariamente belas... e tão tremendamente maçadoras!

Então, João achou que era a vez de eles entrarem. Fez sinal a Filipe, que imediatamente apresentou o seu pedaço de mapa. ‑ Veja ‑ disse ele à mulher do quiosque. ‑ É capaz de nos decifrar esta coisa? É um velho documento que nós encontrámos. Que está aqui escrito e que representa isto?

A grega olhou para o pergaminho atentamente com os seus brilhantes olhos negros. ‑ É um plano qualquer

‑ disse ela. ‑ Mas não está aqui todo, que pena! Mostra parte de uma ilha chamada Tamis, não consigo distinguir bem. Vejam, cá está o nome, em grego, mas vocês não podem compreender as letras, claro. O vosso alfabeto é diferente. Sim, é parte de uma ilha, mas onde ela existe é que eu não sei.

‑ Não consegue dizer‑nos mais nada do mapa?

‑ perguntou Dina.

‑ Há qualquer coisa importante na ilha ‑ disse a mulher. ‑ Será um templo? Não sei. Está aqui marcado um edifício, ou talvez uma cidade. Mas não sei bem. Podia dizer‑lhes mais alguma coisa se tivesse todo o mapa.

Os garotos estavam tão enfronhados na conversa que não ouviram os passos leves de alguém que se aproximava. Passou por eles uma sombra. Levantaram os olhos e Maria da Luz gritou. - Era o Sr. Eppy, com os seus olhos escondidos por trás dos seus óculos escuros, como de costume.

‑ Ah, é qualquer coisa interessante? Deixem‑me ver ‑ disse o Sr. Eppy friamente, e, antes que alguém o pudesse impedir, arrancou o pergaminho dos dedos da grega e pôs‑se a vê‑lo!

Filipe tentou tirar‑lho das mãos mas o Sr. Eppy precaveu‑se. Levantou‑o ao alto e fingiu que brincava.

‑ Ai ele não quer deixar o Sr. Eppy ver! Que maroto!

«Maroto, maroto», repetiu logo a Didi. O Micky, pensando que era um jogo de escondidas, deu subitamente um salto no ar e agarrou o papel. Segurou‑o com a sua patinha e foi outra vez para o ombro de Filipe, e depois, continuando com o pergaminho na mão, trepou para cima do quiosque e sentou‑se lá, fora do alcance, guinchando todo cheio de entusiasmo.

O Sr. Eppy sabia considerar‑se vencido.

‑ Que bicho tão engraçado! ‑ disse ele com uma voz amável que traía, contudo, um tom de desagrado. ‑ Bem, bem, temos de ver o pergaminho para a outra vez!

 

         ADEUS, SR. EPPY

‑ Bem! ‑ explodiu Dina, que foi a primeira a conseguir falar.‑Que velhaco! Filipe, com certeza ele não estava a dormir quando o viste na cadeira. Deve ter notado que o observavas e percebeu que preparavas alguma coisa... pôs‑se à procura até que nos encontrou).

‑ Diabo de homem ‑ murmurou Filipe. ‑ Agora já viu dois dos bocados. Também já sabe qual é a ilha porque o nome estava neste segundo bocado. Mas que pouca sorte!

Deixaram a mulherzinha do quiosque muito surpreendida e foram, tristonhos, para a proa do barco, contentes por sentirem a brisa a bater‑lhes na face. O Micky tinha descido logo que o Sr. Eppy se afastara deles e Filipe foi pôr o seu pedaço de pergaminho em segurança. Mas o prejuízo era já patente: o Sr. Epy tinha‑o visto!

‑ Se a nossa ideia tem fundamento, o Sr. Eppy já viu o suficiente para saber do que se trata ‑ disse tristemente João. ‑ Não pode dizer‑se que tivéssemos sido muito espertos neste caso. Tudo menos isso.

‑ Revelámos o nosso segredo, foi o que foi ‑ declarou Dina. ‑ Estamos a perder aos pontos.

‑ Seja como for, também não vejo bem o que poderíamos fazer ‑ disse subitamente Maria da Luz. ‑ Quer dizer, com certeza não podemos ir em busca do tesouro, mesmo que soubéssemos exactamente onde ele se encontra. Portanto, teríamos de desistir, e se o Sr. Eppy quer ir procurá‑lo, deixá‑lo ir.

‑ Bem, devo declarar que te considero muito generosa, entregando aquilo que pode ser o nosso tesouro, ao afirmares com toda a calma que o Sr. Eppy pode ficar com ele! ‑disse João exasperado. ‑ Tudo só porque não queres participar em mais nenhuma aventura.

«Ora essa!», palrou a Didi, e os pequenos deixaram logo de falar. A Didi tinha dado o costumado sinal da aproximação de Luciano. Este apareceu, sorrindo amavelmente. Parecia ter esquecido por completo o seu último encontro com eles na cabina quando do seu choro.

A cara ainda estava um pouco inchada, mas parecia alegre.

‑ Olá! ‑ gritou ele. ‑ Onde diabo têm andado vocês metidos nesta última meia hora? Tenho‑os procurado por toda a parte. Vejam lá o que o tio me deu.

Mostrou aos garotos umas moedas gregas. Parece que está arrependido de me ter tratado daquela maneira, não acham? ‑ continuou ele a tagarelar. ‑ Seja como for, está agora muito bem disposto. A tia não percebe o que se passa!

Os pequenos bem sabiam porque tinha o Sr. Eppy modificado subitamente o seu estado de espírito. Olharam uns para os outros com ar entendido. O Sr. Eppy tinha atingido o seu fim, pelo menos em parte, e estava contente com isso. Espantou João o facto de o Sr. Eppy conseguir quase sempre o que queria duma maneira ou de outra. Os seus escrúpulos não eram grandes. Recordou com mal‑estar que tinha de procurar esconderijos mais seguros para os seus pedaços de pergaminho.

Sentiu‑se acabrunhado. Mas para que servia incomodarem‑se? Eles nunca conseguiriam fazer grande coisa em relação ao tesouro. Quais as suas possibilidades? Ele bem sabia que a tia Lia nem por sombras quereria ouvir falar no caso, e teriam de contar com alguma pessoa adulta metida nisso. Se ao menos Jaime tivesse vindo com eles na viagem!

Veio‑lhe à cabeça uma ideia. ‑ Vou dar uma volta sozinho ‑ anunciou ele. ‑ Até já. ‑ Partiu com a Didi e a sua ideia.

Se ele procurasse num mapa moderno a tal ilha Tomis, ou Tamis, para ver se lá a encontrava? Seria interessante ver onde ficava. Poderia ser muito perto do local por onde navegavam!

Desceu para a pequena biblioteca de bordo com a Didi e pediu um bom mapa das ilhas.

O empregado deu‑lhe um e olhou com ar de censura para a Didi. Não gostava de ver aves trepadoras na sua pequena biblioteca.

«Assoa esse nariz», aconselhou‑o a Didi. «Limpa os pés! Quantas vezes te tenho dito para fechares a porta? Pum! Goa!»

O empregado da biblioteca não disse absolutamente nada, mas ficou fulo. Nunca na sua vida lhe tinham falado daquela maneira, sobretudo um pássaro! Estava muito irritado.

«Um, dois, três, partida!», fez a Didi, imitando o ruído do tiro de pistola. O homem quase saltou para fora do seu lugar.

‑ Desculpe ‑ rogou João aflito, com receio de que o empregado o pusesse fora. Bateu no bico da Didi. ‑ Tem propósito, Didi, juízo. Que vergonha!

«Vergonha», repetiu Didi com voz desgostosa, e começou a espirrar exactamente da mesma forma que o bibliotecário fazia.

João debroçou‑se sobre o mapa das ilhas, esquecendo os disparates da Didi, tão interessado estava. Durante um bom bocado não conseguiu ver Tamis, mas depois lá a descobriu mesmo em frente dos seus olhos! Não era uma ilha muito grande e estava marcada com uma coisa que parecia ser uma cidade ou vila, mesmo junto da costa. Um ou dois pontos pareciam indicar aldeias, mas só havia uma vila.

Fora então para aí que se dirigira a lendária esquadra de barcos carregados com o tesouro, há muitos, muitos anos! Haviam feito rumo àquela cidade marítima, entrando no porto pela calada da noite. Como teriam descarregado o tesouro?

Haveria pessoas metidas no segredo? Onde teria sido guardado? Devia ter sido extraordinariamente bem escondido, visto que ninguém o conseguira encontrar no decorrer de todos aqueles anos.

João debruçava‑se sobre o mapa e na sua imaginação passavam quadros que o estarreciam e o excitavam. Deu um profundo suspiro, que imediatamente encontrou eco na Didi. Se ele ao menos pudesse ir para Tamis, para aquela cidade junto do mar, se ao menos fosse possível dar‑lhe uma vista de olhos!

Mas havia de ser o Sr. Eppy quem havia de fazer isso, o Sr. Eppy, que conhecia todas as ilhas de cor, e que podia alugar barcos para ir de umas para outras, explorando‑as todas à sua vontade. João dobrou outra vez o mapa e deu um suspiro. Afastou de si a ideia de uma vez para sempre. Não se podia ir em busca de tesouros a menos que se fosse crescido! O seu bom senso dizia‑lhe que todos os planos que ele e os outros pudessem arquitectar não passavam de sonhos loucos; sonhos encantadores, mas absolutamente impossíveis de realizar.

João saiu da biblioteca e subiu à coberta. Dirigiam‑se para outra ilha. Chegariam muito perto dela de maneira a que os passageiros pudessem admirar a romântica linha da costa, mas não parariam lá.

Era isto o que João pensava; porém, quando se aproximaram, viu que devia estar enganado. O barco ia entrar no porto ou algumas pessoas tencionavam embarcar no gasolina que vinha ao encontro do navio. As máquinas do navio pararam nesse momento e João debruçou‑se na amurada para observar o gasolina a abordar o navio.

Daí a pouco encostou ao navio, suavemente balouçado pelas ondas. Lançaram uma escada de corda junto do costado do Estrela dos Mares. Começou a descer uma pessoa, que acenava a despedir‑se de alguém que ficava no navio e gritava numa língua estrangeira.

Ao reconhecer a pessoa, João sentiu um choque. Era o Sr. Eppy.

Estava a dizer adeus à mulher e ao sobrinho. Chegou junto do gasolina e saltou para dentro dele. A sua grande mala desceu atada a uma corda e foi colocada no barco ao lado dele.

Olhou para cima e acenou novamente, com os seus óculos escuros a brilhar muito.

João, com uma careta, olhou para baixo, furioso e desesperado. Maldito Sr. Eppy, malvado! João bem sabia porque saía ele do barco. O Sr. Eppy sabia o suficiente para procurar o grande tesouro do Andra. Ele ia para Tamis. Havia de farejar o tesouro que naquele velho mapa João e os outros tinham encontrado. Havia de ser dele e provavelmente João nunca saberia o que tinha acontecido, nunca descobriria se o tesouro fora encontrado, nunca seria informado de coisa alguma.

Era como se começasse a ler um livro invulgarmente excitante, chegasse ao meio e depois lho tirassem e ele ficasse a ignorar para sempre o resto da história.

O gasolina afastou‑se do navio. O Sr. Eppy e os seus óculos de sol desapareceram. João abandonou o parapeito da amurada e foi ter com os outros. Perguntava a si próprio se eles saberiam o que se passava com o Sr. Eppy.

Encontrou‑os na cabina. O Micky tinha comido qualquer coisa que o fizera adoecer. Estavam ansiosamente a tratar dele. Nem sequer tinham reparado que as máquinas do navio haviam parado e começavam agora a movimentar‑se.

‑ Ora bem! ‑estava a dizer Dina quando João chegou. ‑ Já estás bem agora, não estás, Micky? Não deves ser tão guloso!

João entrou com um ar tão preocupado que todos se assustaram.

‑ Que aconteceu? ‑ perguntou imediatamente Filipe.

‑ Acabou‑se tudo ‑ respondeu João, sentando‑se na cama que estava perto. ‑ Quem pensam vocês que partiu num gasolina, com mala e tudo?

‑ Quem? ‑ perguntaram todos.

‑ O Sr. Eppy! ‑ informou João. ‑ Na peugada do nosso tesouro. Ele conhece a ilha, calculou que o tesouro do Andra pode lá estar, e partiu para organizar tudo. Pelo menos é como eu interpreto o caso!

‑ Bolas! ‑ exclamou Filipe. ‑ Estragámos tudo. Com certeza que ele não deixará crescer a erva debaixo dos pés!...

‑ Bem podemos pôr de parte todos os nossos belos projectos ‑ comentou Dina. ‑ Que raiva! Sentia‑me na verdade tão entusiasmada!

‑ Aposto que ele tinha estado a dar uma ordem pela rádio para que viesse um gasolina buscá‑lo, quando o vi sair da cabina do telegrafista.

‑ Exactamente; o primeiro pedaço de pergaminho deve tê‑lo feito suspeitar. Agora viu o segundo e já não tem dúvidas.

‑ É pouca sorte ‑ disse Maria da Luz. ‑ Nós normalmente não costumamos estragar as coisas desta maneira.. Olhem, que é aquilo?

«Ora esta!», fez a Didi imediatamente, e, na verdade, a porta abriu‑se e Luciano entrou a gritar. ‑ Ora esta! Que julgam vocês que aconteceu?

‑ Viste‑te livre do teu tio ‑ disse logo Dina. Luciano riu‑se.

‑ Sim, foi‑se embora. Contou que tinha recebido um telegrama urgente de negócios e que não podia continuar a passear com a tia e comigo. Apre, estou tão contente por ele se ter ido embora!

‑ Sim, ele não é nada simpático ‑ declarou João. ‑ Ainda bem que não é meu tio. Tem umas maneiras de ser extremamente irritantes.

‑ Decerto! ‑ disse Luciano, sentindo‑se completamente à vontade para dizer mal do tio. ‑ Sabem, ele queria que eu viesse tirar o vosso barquinho sem vos dizer nada. Que dizem a isto?

‑ Nada dizemos ‑ declarou João. ‑ E tu levaste‑lho?

‑ Claro que não! ‑ reagiu Luciano com tal indignação‑ que toda a gente ficou com a certeza de que ele falava verdade. ‑ Por quem me tomam?

Ninguém lhe disse por quem o tomava. Sentiam que seria uma pena estragar‑lhe o prazer. Luciano andava radiante.

‑ Agora vamos passar uns dias estupendos sem o meu tio, não acham? ‑ disse ele.

‑ Não posso dizer que o teu tio nos perturbe desta ou daquela maneira ‑ volveu João. ‑ Não quero falar mais nele. É um assunto desagradável para conversa. Aí está o gongo a chamar‑nos para o jantar, Luciano. É melhor ires‑te embora. Não almoçaste e deves estar esfomeado.

‑ Ah, isso é que estou ‑ concordou Luciano, e foi‑se, muito encantado da vida. Os outros, contudo, não estavam na mesma disposição. De facto, estavam aborrecidíssimos.

‑ Bem, acabou‑se este belo projecto de aventura ‑ concluiu Filipe.

Mas enganava‑se. Não era o fim. Era simplesmente o começo.

 

         COMEÇAM A ACONTECER ESTRANHAS COISAS

No dia seguinte começaram a acontecer estranhas coisas. Como de costume, o barco navegava num mar azul‑púrpura e o Sol brilhava num céu puro onde vogavam pequenas nuvens dlum branco resplandecente.

As gaivotas pairavam neste céu e outros pássaros marinhos tocavam a água e voavam alto sobre o navio. Todos repousavam tranquilamente nas cadeiras, lendo ou dormindo, em qualquer caso esperando a chegada do refresco de limonada com gelo que os criados costumavam trazer a meio da manhã. Até as crianças repousavam nas suas cadeiras, cansadas do violento jogo de ténis que tinham feito de manhã na coberta.

A Didi estava empoleirada nas costas da cadeira de João, a dormitar também. Tinha andado atrás das gaivotas, chamando‑as com uma voz tão parecida com a delas que os pobres bichos ficavam desnorteados. Agora já estava farta. O Micky encontrava‑se aninhado, profundamente adormecido, à sombra de um salva‑vidas.

Apareceu então um groom que costumava fazer recados aos passageiros. Trazia na bandeja um sobrescrito comprido.

Em voz alta anunciava: «Um telegrama para a Sr.a Mannering. Um telegrama para a Sr.a Mannering.»

Filipe acotovelou a mãe e fez sinal ao rapaz.

A Sr.a Mannering, assustada, levantou os olhos ao ouvir gritar o seu nome. O rapaz dirigiu‑se a ela e entregou‑lhe o telegrama.

Ela abriu‑o, perguntando a si própria de quem seria. Leu‑o em voz alta para ser ouvida pelos garotos.

«Sua tia gravemente doente pede a sua presença. Volte de avião se puder, eu acompanho as crianças. Envie telegrama por favor. ‑ Jaime.»

 

Houve um silêncio. ‑ Oh, meu Deus! ‑ exclamou a Sr.a Mannering. ‑ Logo acontecer isto em viagem. Que hei‑de fazer? É muito fácil para o Jaime dizer que regresse de avião. Mas de onde? E como posso eu deixá‑los a vocês todos?

‑ Não se aflija, minha mãe ‑ animou‑a Filipe. ‑ Eu trato já de tudo. Estou em boas relações com o segundo‑oficial, que me dirá o que se pode fazer.

‑ Connosco não terá de preocupar‑se ‑ atalhou João. ‑ Estamos muito bem no barco. Com certeza que não quer que regressemos de avião consigo, pois não?

‑ Oh, não! Claro que não. Especialmente depois de ter pago bilhetes tão caros para esta viagem ‑ disse a Sr.a Mannering, parecendo ainda preocupada. ‑ Oh, meu Deus, detesto imprevistos como estes. Na verdade detesto.

‑ Mãezinha querida, não se preocupe ‑ disse Dina. ‑ Pode apanhar um avião no primeiro porto em que tocarmos, se houver um aeroporto. Amanhã estará em Inglaterra. E o Jaime virá para cá, como disse. Certamente encontrar‑se‑á consigo em Croydon, se o avião aterrar lá, acompanha‑a ao comboio, e depois toma um avião para vir ter connosco. Ele apreciará o resto da viagem. Talvez a mãe possa também regressar.

‑ Oh, não, não poderei se a tia Lena tiver tido um dos seus graves ataques ‑ disse a Sr.a Mannering. ‑ Ela tem sido tão boa para mim e para vocês que também terei de ficar com ela até que fique completamente restabelecida. Não gosto de deixar os quatro sozinhos.

A Sr.a Eppy não pôde deixar de ouvir a conversa, e disse para a Sr.a Mannering: ‑ Se quiser posso velar pelos quatro pequenos enquanto o seu amigo não chega.

Também tenho de olhar pelo Luciano e ele é mais ou menos da mesma idade. Terei muito prazer em fazer o que for possível.

‑ Bem, é muita amabilidade da sua parte ‑ retorquiu a Sr.a Mannering, levantando‑se da cadeira com a ajuda de Filipe. ‑ É talvez uma tolice minha preocupar‑me com eles; já são muito crescidos mas, por vezes, metem‑se em cada trabalho!

Filipe acompanhou‑a e foi‑lhe muito útil. Procurou o segundo‑oficial e dentro em pouco tudo ficou assente. O barco desviar‑se‑ia um pouco da rota e abordaria uma ilha que tivesse aeroporto. Enviar‑se‑ia uma mensagem telegráfica para que o avião esperasse. A Sr.a Mannering estaria de regresso a Inglaterra dentro de pouco tempo.

‑ Nós podemos esperar na ilha até que chegue o avião com o seu amigo ‑ disse o segundo‑oficial, depois de falar com o capitão. ‑ Só teremos de alterar um pouco o nosso itinerário, modificação que não nos prejudicará. Agora, quer enviar pela rádio algumas instruções para o Sr. Cunningham, para ele saber a que horas poderá esperar o seu avião em Croydon?

‑ Foi extraordinária a facilidade como tudo se arranjou. Fui pateta em afligir‑me e assustar‑me ‑ declarou a Sr.a Mannering aos pequenos. ‑ Graças a Filipe tudo se conciliou facilmente. Partirei amanhã e Jaime chegará mais tarde; provavelmente à noite. É maravilhoso.

As raparigas ajudaram‑na a fazer as malas. O Estrela dos Mares rumou para uma grande ilha onde havia um bom aeroporto. Os pequenos viram partir aviões quando se aproximaram porque o aeroporto ficava junto da costa.

Um gasolina veio buscar a Sr.a Mannering. Despediu‑se de todas as crianças e beijou‑as.

‑ Agora não se metam em trabalhos ‑ recomendou‑lhes. ‑ Sejam bons. Afastem‑se do perigo. Dêem saudades minhas ao Jaime e digam‑lhe que, se ele os deixar meterem‑se nalguma aventura, nunca lhe perdoarei!

Acenaram a despedir‑se enquanto o gasolina seguia para o porto. Com os binóculos viram a Sr.a Mannering tomar o caminho do aeroporto seguida de um carregador que lhe levava as malas.

‑ Entrou num táxi ‑ anunciou João.

Meia hora depois descolou um avião do aeroporto e elevou‑se no ar. Voou na direcção do navio, fez dois círculos em volta dele e dirigiu‑se para Oeste.

‑ Era o avião da mãe ‑ disse Filipe. ‑ Pareceu‑me que a vi acenar. Bem, que faça boa viagem! Agora temos de esperar o velho Jaime.

Fez‑se um estranho silêncio entre as crianças. Todos pensaram no mesmo, mas ninguém se atrevia a manifestar‑se. João afinou a garganta.

‑ Aa... sabem... agora que aconteceu isto... aa... - Calou‑se.

Todos esperaram delicadamente.

‑ Bem, continua ‑ animou‑o Dina.

‑ Aa... eu estava agora a pensar ‑ prosseguiu João ‑, estava mesmo a pensar que... bem... vindo o velho Jaime e tudo. Aa...

Paroui novamente. Dina deu uma risadinha.

‑ Eu digo por ti ‑ completou ela. ‑ É o que todos nós temos estado a pensar, bem sei. O querido velho Jaime está a chegar e poderemos contar‑lhe tudo acerca do mapa e do tesouro de Andra e do Sr. Eppy. E talvez... talvez ele consiga alguma coisa!

‑ Com a breca, sim ‑ concordou João. ‑ Não sabia como havia de falar no assunto sem que parecesse um pouco inconveniente, visto a tia Lia ter acabado de partir. Mas agora as coisas tomaram outro aspecto. O Jaime pode pensar que nós deveríamos ter feito alguma coisa.

‑ Mas... mas que estupendo! ‑ exclamou Filipe, respirando fundo. ‑ Exactamente quando tínhamos perdido toda a esperança.

‑ Na verdade não poderíamos arrastar a mãe para uma aventura, ‑ comentou Dina ‑, mas com Jaime é diferente. Quer dizer, ele não quererá que nos metamos numa aventura, bem sei, mas pode muito bem pensar que deve dar algum jeito nisso.

‑ E ao menos nós saberemos o que se passa ‑ observou João. ‑ Não acham fantástico mostrarmos‑lhe o barquinho e o mapa e contar‑lhe tudo? Querido Jaime!

Luciano surgiu com um ar muito solene.

‑ Ora esta! Lamento muito tudo isto. Espero que a vossa mãe chegue bem, Filipe, e que a tia dela melhore. Conto também que o incidente não vos vá estragar o resto da viagem. Lamento sinceramente!

‑ Obrigado ‑ disse Filipe. ‑ Cá nos havemos de arranjar.

‑ Ah, é verdade, já me esquecia de lhes entregar isto ‑ continuou Luciano. ‑ Desculpem. O meu tio deu‑mo antes de partir e recomendou‑me que lhes entregasse. Não imagino o que seja.

João pegou no que Luciano lhe dava. Calculou o que era e tinha razão. Era o pedaço do mapa que o Sr. Eppy pedira emprestado! Tinha‑o metido num sobrescrito fechado com um simples bilhete.

«Obrigado. Afinal não tem interesse. ‑ P. Eppy.»

João riu‑se. «Não tem interesse», diz ele. Aposto que deve ter feito uma cópia cuidadosa dele. Pode ser‑lhe muito útil!

Foi pô‑lo num esconderijo seguro, na bainha dos seus calções. Estava contente por o Sr. Eppy não ter visto os outros pedaços do plano. No entanto, era provável que não precisasse deles. Podia calcular onde estava o tesouro se soubesse qual era a ilha. Se assim fosse, não estaria lá muito tempo!

O dia passou lentamente. A Sr.a Eppy era bastante maçadora, pois tomava muito a sério o seu papel de vigilante dos pequenos. Perseguia‑os à hora das refeições e disse mesmo ao criado para os sentar à mesa dela.

Mas João não admitiu tal prepotência.

‑ Não, Sr.a Eppy ‑ disse ele com delicadeza, mas firmemente. ‑ Esperamos esta noite o nosso amigo Jaime Cunnigham, ou o mais tardar amanhã de manhã. Ficaremos na nossa mesa e comeremos com ele. Muito obrigado da mesma maneira.

Luciano ficou desolado e ofendido. Nem sequer sorriu quando o Micky e a Didi tiveram uma zaragata por causa de uma banana e acabaram por parti‑la em duas.

Depois de jantar os pequenos subiram à coberta, esperançados em que Jaime chegasse nessa noite. O segundo‑oficial não recebera mensagem alguma; portanto, pensava que ele havia de chegar.

‑ Se viesse amanhã, com certeza mandaria um telegrama ‑ informou ele. ‑ Sabe que temos o barco aqui parado à espera dele. Seja como for, eu iria para a cama se estivesse no vosso caso; ele pode chegar pela noite adiante!

Não queriam ouvir falar em ir para a cama. Ficaram na coberta a ver o Sol pôr‑se no horizonte dourado. Viram as nuvens tornar‑se avermelhadas, depois cair a noite sobre o mar, a Leste, a água tornar‑se cada vez mais arroxeada, até que, por fim, mal se distinguia do céu. Apareceram as estrelas muito brilhantes, espelhando o seu brilho nas águas.

Maria da Luz estava quase a dormir na sua cama quando João foi ter com ela. ‑ Acorda! Vem aí o avião. Deve ser o avião de Jaime! ‑ Ela levantou‑se logo e foi encostar‑se à amurada com os outros.

O avião aterrou. Devia ser o avião de Jaime. Cerca de meia hora depois ouviram um gasolina a roncar no porto.

‑ É o Jaime que vem aí! ‑ gritou Maria da Luz, muito entusiasmada. ‑ Querido Jaime!

O gasolina aproximava‑se cada vez mais. Acostou ao navio e, depois de lançarem uma escada, alguém começou a subir. Maria da Luz não pôde conter‑se mais tempo.

‑ Jaime! ‑ gritou ela. ‑ É o senhor, Jaime? Jaime! Chegou até eles uma voz familiar ‑ Olá! Olá! Sou eu,

Jaime!

Era ele com efeito. Trepou para a coberta e os quatro pequenos correram logo para ele. Abraçaram‑se e foram também abraçados.

‑ Querido Jaime! Meu bom amigo Jaime! Que bom vê‑lo. Agora tudo é esplêndido!

‑ Sim, tudo é óptimo! ‑ concordou ele, levantando Maria da Luz ao ar. ‑ Com a breca, que bom é vê‑los outra vez! Agora vamos divertir‑nos!

 

         JAIME OUVE A HISTÓRIA

Jaime vinha cheio de fome e de sede. Os pequenos, entusiasmados e felizes), levaram‑no para o salão e Jaime mandou vir sanduíches de galinha e presunto e uma bebida para ele e sanduíches para os pequenos.

‑ Deixem‑me dizer‑lhes, vocês esta noite vão ter pesadelos por comerem assim tão tarde ‑ avisou‑os ele. ‑ Assim, se a sonhar forem perseguidos por ursos, caírem de aviões ou naufragarem, não me acusem!

‑ Não o acusaremos ‑ retorquiu Maria da Luz. ‑ De qualquer modo, agora que sei que está aqui, nem sequer me importo de ter pesadelos; o Jaime aparecerá neles para me salvar!

O criado trouxe as coisas pedidas, e bananas para o Micky e a Didi em duas travessas separadas. A Didi ficou muito impressionada; não tinha uma travessa muitas vezes! Queria por força pôr outra vez a banana na travessa de cada vez que comia um bocadinho, o que divertia imenso as crianças.

‑ A Didi está muito feia, estou a ver ‑ disse Jaime, dando uma grande dentada na sua sanduíche. ‑ Com a breca, que bom que isto é! Há horas que não como. Então, meninos, como vai tudo por cá?

‑ Temos muito que lhe contar, Jaime ‑ disse João. ‑ Acontecimentos de muito interesse. Aconteceu‑nos uma coisa extraordinária.

‑ Claro que tinha de acontecer ‑ retorquiu Jaime. ‑ Mas, desta vez, não pensem que vão arrastar‑me para alguma aventura louca!

Estou saturado das vossas avarias! Vim para passear calma e repousadamente. A Didi deu um terrível berro e fê‑lo saltar.

‑ Micky! Tiraste a banana à Didi ‑ indignou‑se João. ‑ Filipe castiga‑o. Em breve haverá zaragata se não o fizeres. ‑ Deixa, Didi, eu dou‑te outra. Pobrezinha, isto é o resultado das tuas boas maneiras; punhas delicadamente a tua banana na travessa a seguir a cada bicada, e o Micky tirou‑a!

‑ Que lindo macaquinho! ‑ disse Jaime, coçando o Micky debaixo do queixo. ‑ Suponho que é teu, Filipe. Acho extraordinário como arranjas logo animais onde quer que vás. Deixa ver... Tiveste um raposinho... um lagarto... uma lesma... um cabrito branco como a neve... dois mergulhões... ratos brancos... e agora um macaco. Bem, enquanto não te der para coleccionar hipopótamos ou leões, não me importo!

Os garotos estavam ansiosos por lhe narrar tudo o que se havia passado a respeito do plano do tesouro, mas pensaram que era melhor deixá‑lo comer primeiro as sanduíches. Ele contou‑lhes como tinha encontrado a Sr.a Mannering no aeroporto, em Inglaterra, e a tinha acompanhado até junto da tia. Depois tinha tomado o seu avião particular e partido.

‑ Sozinho? ‑ perguntou João.

‑ Não, com um amigo meu, o Joaquim Curling. Julgo que vocês nunca o viram ‑ informou Jaime. ‑ Não queres todas as sanduíches, Maria da Luz? Muito bem, então eu sirvo‑me. Sim, o Quim também veio, e eu deixei‑o no avião. Ele vai alugar um gasolina e navegar também.

‑ Oh! Quem me dera que nós fôssemos também ‑ assegurou Dina.

‑ Ah, sim? ‑ exclamou Jaime, surpreendido. ‑ Mas eu pensei que gostassem de estar neste grande e confortável barco. É certo que vocês estão habituados a barcos de remos, à vela ou a gasolina, mas este enorme navio deve ser uma bela variante.

‑ Sim, é, mas... bem, podemos contar‑lhe as novidades, Jaime? ‑ perguntou João, ansioso.

Jaime comeu a última sanduíche e acabou de beber. Deu um grande bocejo e a Didi imediatamente o imitou. ‑ E isso não poderá ficar para amanhã? ‑ perguntou ele. Depois viu as caras de desapontamento dos pequenos e riu‑se. ‑ Ah, está bem, vamos lá a deitar isso cá para fora.

‑ Vai buscar o barquinho, Maria da Luz ‑ pediu João. ‑ Eu tenho todos os quatro pedaços do mapa. Depressa. Esperamos que voltes para começarmos.

Maria da Luz foi a correr. Voltou ofegante, com o barquinho nas mãos. Jaime pegou‑lhe. ‑ Que beleza! Isto é valioso, sabem? Onde o arranjaram?

Então, contaram‑lhe como a Maria da Luz tinha descoberto o barco na garrafa, com Luciano, e o tinha comprado para oferecer a Filipe no dia dos anos. Num tom excitado, mas em voz baixa, para que ninguém os ouvisse, os garotos contaram‑lhe como a garrafa se partira e inesperadamente encontraram o plano dentro do barco. Então, João mostrou o pergaminho, ainda cortado em quatro pedaços. Jaime olhou para ele com grande interesse e depois levantou‑se.

‑ Venham para a minha cabina ‑ convidou ele. ‑ Penso que será melhor falarmos lá. Tudo isto é bastante extraordinário.

Muito contentes com a importância que o Jaime dava à sua história, os pequenos desceram as escadas em tropel para as cabinas. Entraram todos para a de Jaime. Conheciam‑na bem porque era a que tinha pertencido à mãe. Sentaram‑se todos na cama com o Jaime no meio deles.

‑ Afasta daqui um bocadinho o Micky, sim? ‑ pediu o Jaime. ‑ Está a respirar para dentro do meu pescoço. Ora bem, o que é este mapa? É muito antigo, segundo vejo. Porque está cortado em quatro pedaços?

Contaram‑lhe toda a velha lenda do tesouro perdido de Andra. Referiram‑lhe o estranho comportamento do Sr. Eppy, a sua partida e tudo o que receavam.

Jaime escutou‑os atentamente, fazendo, de vez em quando, uma breve pergunta. Quando acabaram, pegou no cachimbo e começou muito lentamente a enchê‑lo de tabaco. Os garotos esperavam. Sabiam que Jaime caíra em profunda meditação. Os corações batiam‑lhes com força. Que pensaria Jaime da sua história? Tomá‑la‑ia a sério? Faria alguma coisa?

‑ Bem ‑ disse Jaime, levando o cachimbo à boca enquanto procurava os fósforos na algibeira. ‑ Bem, segundo parece, aqui há coisa, mas para esta impressão apoio‑me mais no comportamento do Sr. Eppy do que no vosso mapa, o qual não posso decifrar por falta de conhecimentos. Vocês foram muito espertos em tentar decifrá‑lo

e em conseguir relacionar alguns factos curiosos, como encontrar o nome de Andra no pequeno barco, e distingui‑lo no mapa.

‑ Sim, isso foi uma sorte ‑ considerou João. ‑ O Jaime pensa que o mapa é de facto genuíno? Quer dizer, haverá esperança de se descobrir realmente por ele onde está o velho tesouro?

‑ Não posso afirmar ‑ disse Jaime, chupando o cachimbo. ‑ Possivelmente não se sabe. Teria de levar o mapa a um entendido, fazer com que o decifrasse devidamente, descobrir tudo a respeito da antiga lenda de Andra (sabem que pode não passar de uma lenda), ver se na realidade há uma ilha chamada Tamis, e como é.

‑ Há ‑ disse João triunfantemente. ‑ Encontrei‑a num mapa.

Jaime pôs‑se a rir. ‑ Não sei como vocês, rapazes, vão cair sempre em aventuras extraordinárias ‑ comentou ele. ‑ Exactamente quando eu pensava que vinha para uma excursão encantadora e pacífica tenho de pôr‑me à procura de um perito de velhos documentos para que me traduza este grego tão antigo que naturalmente nem sequer se pode ler. E é capaz de haver nele alguma coisa tão importante que nos force a ver esta ilha chamada Tamis.

‑ Jaime! Parece‑lhe realmente? ‑ exclamou João, deliciado, e Filipe pôs‑se a balouçar na cama, afligindo todos. Dina abraçou Maria da Luz com os olhos a brilhar. Estavam todos radiantes por ver Jaime considerar o assunto duma forma tão importante.

‑ Era melhor agora irmos para a cama ‑ propôs João.

‑ É muito tarde. De manhã falaremos acerca de tudo isto, mas não se entusiasmem muito! Possivelmente nada mais poderemos fazer do que levar este mapa a um perito e depois dar uma saltada a Tamis, se for perto, só para lhe dar uma vista de olhos. Afinal, nós estamos em vilegiatura, como sabem.

As crianças levantaram‑se com relutância. Jaime foi com eles até às cabinas. ‑ Vou lá acima para a coberta fumar o meu cachimbo ‑ informou ele. ‑ Sonhos felizes!

De manhã cedo, João e Filipe acordaram sobressaltados. Sentaram‑se na cama. Entrava luz pela vigia e ouviam um ruído estranho debaixo deles.

‑ São as máquinas do navio ‑ explicou João, aliviado. ‑ Não percebi logo o que era. Que ruído tão estranho que se ouve! Que estará a acontecer?

‑ Pararam ‑ asseverou Filipe depois de escutar um ou dois minutos. ‑ Não. Já estão outra vez a trabalhar, clan‑clan‑clan. Não soa muito regularmente. O bater não é igual ao costumado. Oxalá não haja avaria.

‑ Agora pararam outra vez‑afirmou João.‑Bem... se houver perigo, ouviremos a sereia soar prolongadamente e o criado virá bater‑nos à porta.

‑ Sim. E os nossos cintos de salvação estão a postos no armário; portanto, não temos motivos para nos afligir ‑ comentou Filipe ainda cheio de sono.

‑ Não é nada, vamos outra vez dormir ‑ concluiu João.

Mas, de manhã, verificaram que o navio ainda estava parado. Balouçava ali no mar azul‑purpúreo, a cerca de uma milha de distância do aeroporto da ilha.

‑ Que engraçado!‑disse João, e vestiu‑se rapidamente. De passagem bateu na porta da cabina das raparigas. Os dois rapazes foram a correr para a coberta e encontraram o amigo, o segundo‑oficial.

‑ Que aconteceu? ‑ perguntaram‑lhe. ‑ Por que parámos?

‑ Há uma avaria nas máquinas ‑ respondeu o oficial. ‑ Contamos que tudo esteja em ordem dentro de pouco tempo.

Viram chegar o Jaime. Já estava levantado há algum tempo e caminhava na coberta para fazer exercício. Correram para ele a rir. ‑ Olá! Prontos para o pequeno almoço? Eu estou esfomeado. Olá, Micky, olá, Didi.

«Micky, Didi, Micky, Didi, Micky, Di...», começou a Didi. João bateu‑lhe no bico.

‑ Já chega. Vai fazer ginástica. Olha, vai correr atrás das gaivotas.

Mas a Didi não parecia disposta a isso. Estava aborrecida com as gaivotas. Além disso, queria tomar o pequeno almoço, que a bordo era óptimo, porque havia sempre uvas, de que a Didi gostava muito.

Tinha também um fraco por cerejas e as crianças satisfaziam-lhe esse gosto, dando‑lhe uma de cada vez.

Quando acabaram o pequeno almoço, mostraram a Jaime todo o barco. Não os deixaram descer à casa das máquinas por causa da avaria. O maquinista estava numa terrível disposição e tinha passado toda a noite a pé a trabalhar nelas.

No placard do barco, naquela manhã, constava a novidade:

«Devido a avaria nas máquinas, o Estrela dos Mares tem de voltar para o porto.

Dar‑se‑ão mais notícias aos passageiros às seis horas da tarde.»

Com um estranho ruído de temer, o Estrela dos Mares dirigiu‑se lentamente para a ilha onde havia o aeroporto. Vieram gasolinas ao seu encontro para saber o que se passava. Num deles encontrava‑se o amigo de Jaime, o Quim. Entrou logo para bordo e Jaime apresentou‑o aos garotos.

‑ Quim, estes são os quatro amigos de que te falei. Tem cuidado com eles senão metem‑te numa terrível aventura. Pertencem ao género de garotos que se os colocarem no meio de um iceberg hão‑de por força encontrar meio de se meter numa aventura!

Os pequenos gostaram do Quim. Era mais novo do que Jaime, tinha uma madeixa de cabelo encaracolado que o vento agitava e olhos verdes como os da Maria da Luz. Era sardento como ela e o seu riso era engraçado como o de João.

‑ Era melhor vocês virem comigo no gasolina, não acham? ‑ disse ele a Jaime. ‑ Voltem para a ilha. É muito interessante.

‑ Bem ‑ disse Jaime. ‑ Passaremos juntos o dia. Venham daí os quatro, desçam a escada.

 

         JAIME INVESTIGA

Passaram um dia maravilhoso na ilha. Quim alugou um carro e partiram em excursão. Almoçaram numa grande cidade situada no centro da ilha, uma cidade como deve ser, com lojas, autocarros e cinemas.

Depois do almoço, Jaime desapareceu. ‑ Ouvi falar num tipo velho que dizem ser um perito em velhos documentos ‑ disse ele às crianças. ‑ Um dos maiores peritos que há. É uma sorte. Vou ter com ele. Tens os quatro pedaços do mapa contigo, não, João?

João confirmou. Os pequenos tinham achado que era mais seguro trazê-los consigo do que deixá‑los no barco. Deu o sobrescrito a Jaime.

‑ Espero que o perito diga que é autêntico ‑ disse ele com toda a seriedade. ‑ Olhe lá, dizemos ao Quim?

‑ Podem confiar plenamente nele ‑ respondeu o Jaime. ‑ O Quim é uma jóia. Se ele acredita em vocês ou não é que não sei!

Assim, enquanto Jaime esteve ausente, os garotos confiaram ao Quim o seu segredo. A princípio sentiu‑se disposto a rir de tudo aquilo como se fosse uma invenção, mas eles estavam tão sérios que ele pensou que os pequenos pelo menos acreditavam naquilo e fez também por tomar o assunto a sério.

‑ Bem, isso é maravilhoso‑‑ respondeu ele. ‑Quando era pequeno também acreditava em todas essas histórias de tesouros. O Jaime é muito amável em tomar isto a sério e diligenciar decifrar‑lhes o mapa.

Os pequenos viram que, na verdade, Quim não acreditava na história deles; portanto, mudaram delicadamente de assunto, embora decepcionados. Surgiu no espírito de Maria da Luz uma pequena dúvida. Seria apenas uma historieta? Não, certamente o Sr. Eppy não teria procedido de maneira tão estranha se não houvesse alguma verdade naquilo.

Jaime demorou‑se muito. As crianças estavam já fartas de esperar e o Quim a sugerir‑lhes a ideia de darem um passeio de carro a uma colina de feitio estranho que se via à distância quando ele chegou.

‑ Desculpem ter‑me demorado tanto ‑ contou ele. ‑ Encontrei o velhote, parecia que tinha acabado de sair do século XV, tão velho e tão encarquilhado ele é, e tão lento que me dava vontade de gritar. Mas sabia do seu ofício.

‑ Que disse ele? ‑ perguntou João, tornando‑se vermelho de ansiedade.

‑ Que o documento é autêntico. Não há dúvida alguma sobre isso ‑ respondeu Jaime, enquanto todos respiravam aliviados.

‑ Ele não sabe se é uma cópia de outro mapa qualquer mais antigo ou se será mais moderno, feito por algum marinheiro grego há cerca de cem anos; provavelmente é uma mistura, diz ele. A ilha é Tamis. Está marcada claramente no mapa, e mesmo que não estivesse lá o nome facilmente se reconheceria pelo feitio; tem uma forma curiosa numa das extremidades.

‑ Sim, eu reparei nisso ‑ disse Filipe. ‑ Continue, Jaime!

‑ O mapa tem duas partes distintas ‑ prosseguiu Jaime. ‑ Uma mostra a ilha e nela está marcada uma cidade ou um porto. Ele não conhece a ilha e, portanto, não pode dizer. A outra parte mostra esta mesma cidade ou porto, e é possivelmente um guia ou uma indicação de algum lugar na cidade onde há qualquer coisa valiosa.

Ele diz que não está claramente explicado se essa coisa valiosa é um tesouro ou um templo ou mesmo um túmulo; apenas sabe que era qualquer coisa valiosa para a pessoa que fez o mapa.

As crianças eram todas olhos e ouvidos. Isto era maravilhoso!

‑ Mas ele não acha que é o tesouro de Andra? ‑ perguntou João.

‑ Ele parece não conhecer muito bem essa lenda; diz que há centenas de velhas lendas de piratas e de barcos com tesouros e de raptos, na sua maior parte fantásticos. Não tinha muita coisa a dizer a respeito disso. Sente‑se inclinado a pensar que é um templo.

‑ Eu penso que é o tesouro de Andra ‑ disse Maria da Luz com olhos brilhantes. ‑ Tenho a certeza!

‑ Pedi‑lhe que copiasse todo o mapa para nós com as palavras gregas traduzidas para inglês; ele fala inglês extraordinariamente bem ‑ disse Jaime, e abriu uma bela folha de papel branco novo, desenhada com finas linhas, e marcada com palavras. Os garotos debruçaram‑se sobre ela, enervados de mais para poderem falar.

Sim, lá estava o velho mapa copiado de novo, traduzido para inglês com os traços esbatidos agora claramente marcados.

Mas que maravilha! Até o Quim estava entusiasmado e começava quase a acreditar naquilo.

João leu algumas palavras em voz baixa: «Labirinto; catacumbas; dois dedos; deusa; pássaro; campainha».

‑ Com a breca,, que significa tudo isto? Estarão os labirintos e as catacumbas na cidade ou no porto? O tesouro teria sido lá metido?

‑ Não se sabe. Tudo o que sabemos é que está aqui indicado um caminho para certo ponto da cidade onde pode encontrar‑se qualquer coisa valiosa, se não foi já encontrada, levada ou destruída ‑ volveu Jaime. ‑ Mas devem lembrar‑se de que o original deste mapa deve ter provavelmente centenas de anos, e possivelmente o caminho indicado neste mapa já não existe. De facto, há todas as probabilidades de não existir.

‑ Oh, Jaime, acredita realmente nisso? ‑ perguntou Dina com ar de censura.

‑ Bem, para ser absolutamente honesto, acredito

‑ disse Jaime de maneira desapontadora. ‑ Penso que o mapa é autêntico, não há dúvida alguma nisto, mas também penso que como isto aconteceu há muito tempo não há esperanças de se encontrar o caminho secreto aqui indicado. Ou já construíram por cima dele, ou destruíram‑no, ou esqueceram‑no mesmo completamente, de maneira que pode não haver uma entrada para os labirintos ou catacumbas, sejam eles quais forem.

‑ Mas é evidente que o Sr. Eppy pensa que há alguma esperança ‑ disse Filipe.

‑ Ah, é verdade, o velhote que fui consultar declarou que conhece o Sr. Eppy. Diz que ele é louco por estas coisas, verdadeiramente obcecado, e mete‑se em toda a espécie de loucuras ‑ informou Jaime. ‑ Compra e vende ilhas como se fossem livros, tapetes ou quadros! Admite que o Sr. Eppy sabe muita coisa a respeito das ilhas e acerca das antiguidades que nelas se podem encontrar, mas não pensa que, pelo facto de ele acreditar no mapa, por exemplo, isso signifique que mereça a pena entusiasmar‑se. Exactamente o contrário, julgo eu!

‑ Bolas! ‑ exclamou João. ‑ Então o mapa nada vale!

‑ Talvez não, como tu dizes ‑ concordou Jaime. ‑ Seja como for, se tivéssemos a oportunidade, que não nos surgirá, eu não me importava de alugar um gasolina e ir dar uma vista de olhos a Tamis, onde quer que ela fique.

‑ Ah, se isso fosse possível! ‑ disse Maria da Luz. ‑ Seria óptimo poder vê‑la, ao menos.

‑ Eu podia levá‑los lá ‑ declarou inesperadamente Quim. ‑ Quero dizer, se não for muito longe daqui.

‑ Não há tempo ‑ disse Jaime, dobrando o mapa. ‑ Temos de estar de volta às seis, como sabem. Mas agradeço‑te da mesma maneira, Quim. Bem, agora é melhor partirmos, parece‑me.

Quando chegaram ao porto eram cinco e meia. O Estrela dos Mares tinha acostado ao cais, e ali estava, branco e lindo, mas sem que se visse nele sinal do burburinho que anuncia uma partida próxima.

Desceram as pranchas e os passageiros subiram. Entre eles vinham Luciano com a tia. Em todo o dia apenas o tinham visto de longe, e não lhe haviam dado atenção para evitar que ele se agarrasse a eles todo o dia, agora que andavam com Jaime. Ele fez‑lhes sinal e gritou:

‑ Ora esta! Onde têm estado todo o dia? A minha tia queria convidá‑los para almoçar connosco e com uns parentes meus que vivem na ilha!

‑ Que pena! Temos outros planos! ‑ respondeu‑lhe João. ‑ Fica para a outra vez.

‑ Quem é esse rapaz? ‑ perguntou Jaime. ‑ Ah, já sei, deve ser Luciano, o sobrinho do Sr. Eppy. Parece um grande maçador.

‑ Sabemos muito bem livrar‑nos dele ‑ disse Filipe ‑, Olhem, está ali o jornal de bordo. Está lá inscrita uma notícia em grandes caracteres. Que será?

A notícia estava escrita a giz sobre o grande quadro preto.

«Lamentamos informar os Srs. Passageiros de que o Estrela dos Mares terá de permanecer no porto um ou dois dias até ser reparada a avaria das máquinas.

«Os passageiros podem continuar a bordo, ou, se preferirem, instalar‑se num hotel a expensas da companhia, ou ainda aproveitar os gasolinas que pomos à disposição de todos que desejem explorar esta romântica parte do mar Egeu.

  1. Petersen, capitão.»

 

Os quatro pequenos foram assaltados imediatamente pela mesma ideia. Viraram‑se uns para os outros com os olhos a brilhar.

‑ Podíamos, não podíamos? ‑ exclamou Maria da Luz, e os outros compreenderam‑na logo. João acenou que sim com a cabeça, radiante. Enfiou o braço no de Jaime.

Jaime olhou para os pequenos. Tossiu e depois começou a rir ao ver aquelas caras viradas para ele, todas traduzindo a mesma ansiedade.

‑ Afinal, podemos ir a Tamis, se é isso o que pretendem saber, não é verdade? ‑ disse ele. ‑ Bem, não vejo inconveniente.

Parece que vamos estar aqui alguns dias, e se a companhia nos fornece um gasolina, aceitamos a sua amável oferta e partimos!

‑ Jaime! Jaime! Que maravilha! ‑ gritaram em coro, e João e Filipe começaram a dar palmadas nas costas um do outro e as raparigas puxaram pelos braços de Jaime até ele gritar. A Didi e o Micky fugiram dos ombros dos rapazes, extremamente assustados e incomodados, para cima do quadro do jornal de bordo.

‑ Vamos, deixem‑se de maluquices ‑ disse Jaime, rindo ainda ao ver o entusiasmo dos garotos. ‑ Vamos lá para cima para a coberta fazer os nossos planos antes de nos vestirmos para o jantar. Tirem dali o Micky; olhem, está a apagar a parte superior da notícia com a cauda.

Foram para um recanto preferido na coberta e instalaram‑se. ‑ É bom de mais para ser verdade ‑ disse João, encantado. ‑ Pomo‑nos a pensar que tudo corre mal e que temos de desistir; depois acontece qualquer coisa e tudo fica novamente como deve ser.

‑ Sim. Nós sabíamos que sem o Jaime nada faríamos, e ele não estava cá; depois ele veio inesperadamente ‑ disse Maria da Luz.

‑ De resto compreenderíamos, mesmo assim, que nada poderíamos fazer porque teríamos de continuar o cruzeiro no barco ‑ acrescentou Dina. ‑ Agora o barco avariou‑se e nós podemos partir sem preocupações.

‑ É extraordinário, meninos;, como vocês conseguem o que desejam ‑ comentou Jaime. ‑ Agora vamos pensar no gasolina para amanhã. Parece‑me melhor arranjarmos um apenas para nós. Se formos num fornecido pela companhia teremos de ir com outros passageiros, e eles com certeza não estarão dispostos a ir para essa tal ilha Tamis.

‑ Nós também os dispensamos ‑ concordou João. ‑ Não, arranjaremos um barco só para nós. O Quim também poderá vir?

‑ Tem outros afazeres ‑ disse Jaime. ‑ Mas podemos dizer‑lhe e é possível que queira vir. Bem... será com certeza emocionante. Esta noite vou tentar saber o lugar exacto dessa tal ilha, Tamis. Vou ter com o segundo‑oficial para lhe perguntar se há algum marinheiro a bordo que me possa dar as informações necessárias. Temos de conhecer o rumo certo senão arriscamo-nos a navegar no meio de todas estas ilhas durante semanas!

‑ Oh,, Jaime., não é tão bom?! ‑exclamou Maria da Luz. ‑ Não consigo esperar até amanhã. João, Filipe, afinal sempre vamos ver a ilha do tesouro! Vamos, pois!

 

         FINALMENTE A CAMINHO DE TAMIS

Jaime não demorou a conseguir todas as informações de que precisava. ‑ Aí está a vantagem de não ser criança ‑ disse Dina. ‑ Parece que as pessoas crescidas conseguem descobrir e inspeccionar tudo num instante.

‑ Sim, o Jaime já sabe onde fica Tamis, arranjou um mapa com todas as indicações, e até já sabe o nome de um marinheiro grego que tem um gasolina e conhece a rota para lá! ‑ confessou João, com admiração.

‑ Como teria ele descoberto tudo isso? ‑ perguntou Maria da Luz.

‑ Encontrou lá em baixo um marinheiro grego cujo irmão tem um desses gasolinas ‑ explicou Filipe.

Na manhã seguinte as crianças comeram um abundante pequeno almoço e arranjaram grandes farnéis para levar consigo, fornecidos pelo criado de mesa, que simpatizava com eles.

‑ Eu incluí uma laranja, cerejas e quatro bananas para o menino Micky e para a Didi ‑ disse ele com os olhos a brilhar. Maria da Luz riu.

‑ Oh, que cómico tratá‑lo por esses nomes! Menino Micky! Micky, estás a ouvir? Menino Micky!

«Menino Micky, Didimeniino, menino Micky», começou a Didi com grandes gargalhadas.

Desceram todos pela prancha para o cais. Encontraram lá o Quim à espera deles. Tinha ouvido as notícias.

‑ Olá, Jaime ‑ disse ele. ‑ Posso ser‑lhes útil nalguma coisa?

‑ Bem, nós vamos dar uma vista de olhos a Tamis, ‑ elucidou Jaime. ‑ Aluguei um gasolina a um grego que parece conhecer o caminho para lá. Queres vir conosco?

‑ Bem, se já fizeram os vossos planos para hoje, não irei ‑ respondeu o Quim. ‑ Há aqui um tipo que quer dar uma volta de avião. Posso servir‑me do aparelho?

‑ Claro que podes ‑ respondeu Jaime.

‑ E se passar por cima de Tamis, faça‑nos sinal ‑ atalhou João.

‑ Está bem ‑ retorquiu Quim a rir. ‑ Vou ver se sei onde está situada. Tomem atenção para ver se nos descobrem!

Despediu‑se e Jaime foi à procura dlo barco que tinha alugado. Apareceu‑lhe um pequeno grego muito escuro, de olhos brilhantes e de sorriso tímido. Cumprimentou e falou num inglês atrapalhado.

‑ Eu ser Andros, senhor, sabe? Meu irmão dizer senhor querer o meu barco. Senhor, ele estar aqui.

‑ Está bem. Obrigado, Andros ‑ respondeu Jaime, olhando para o barquinho novinho em folha que estava ali atracado.‑Que lindo barco! Conhece o caminho para Tamis, não é verdade?

‑ Tamis, sim senhor. Mas Tamis ser lugar pobre. Andros levar senhor a ilhas bonitas.

‑Não, obrigado. Nós queremos ir a Tamis ‑ disse Jaime com firmeza.

‑ Ilha pobre ‑ repetiu ele. ‑ Visitantes não irem lá, senhor. Eu levar a lugar bonito.

‑ Olhe lá, o senhor não sabe o caminho para Tamis?

‑ perguntou Jaime. ‑ Parece que não. Ah, sabe! Então vamos lá para Tamis, se faz favor e deixe‑se de coisas.

‑ Tamis, senhor ‑ concordou o pequeno Andros.

‑ Sim, sim, Tamis. Ilha velha, velha, mas não haver nada lá agora, senhor. ‑ Olhou interessado para a catatua e para o macaco:

‑ Também vêm?

‑ Claro ‑ disse João, saltando para o barco e ajudando as raparigas a entrar. ‑ Venha Jaime, senhor!

«Senhor, senhor, senhor», fez a Didi. «A pular vai a doninha! Pimiba! Pula! Pula o rei.»

Andros ficou de boca aberta a olhar para ela. Micky saltou‑lhe para o ombro e depois voltou para o de Filipe, guinchando. Estava muito excitado. Até puxou pela cauda da Didi, grande maldade, pois a Didi só esperava a ocasião para dar uma bicada na cauda do Micky‑e que grande cauda ele tinha para ser debicada.

Andros pôs o motor em andamento. O gasolina dirigiu‑se para fora do pequeno porto, deixando para trás o Estrela dos Mares, belo, mas silencioso. Em breve se encontraram no mar alto, avançando aos pulos sobre os «carneirinhos» brancos que se levantavam de vez em quando.

O sol estava quente, mas soprava um vento forte.

Os cabelos das raparigas esvoaçavam e elas riam encantadas ao sentir o vento bater‑lhes nas faces.

Era muito agradável depois do calor que tinham suportado no navio.

‑ A que distância fica Tamis? ‑ perguntou João. Andros revirou a sua cabeça encaracolada.

‑ Quatro, cinco horas ‑ disse ele.

‑ O senhor vai lá muitas vezes? ‑ perguntou Jaime.

‑ Não, não, senhor. Ilha pobre. Eu ir para Janos. a seguir, onde viver minha irmã ‑ respondeu Andros. ‑ Tamis ilha morta, senhor.

‑ Que quererá ele dizer? ‑ perguntou João em voz baixa. ‑ Uma ilha pobre e morta! Não soa lá muito bem, pois não?

‑ Bem, deve haver por lá algum porto ou alguma cidade ‑ disse Filipe. ‑ O que está marcado no mapa parecia ser muito grande. Deve haver lá gente a viver, lojas, coisas. Não pode ser completamente morta!

Foi uma viagem encantadora até Tamis. O mar estava agitado e a luz reflectia‑se nele. O barco deslizava como se tivesse vida, com o motor a roncar. Ao meio‑dia todos tomaram um almoço volante e abençoaram o criado de bordo que lhes tinha preparado coisas tão boas,

‑ Cinco espécies de sanduíches; quatro qualidades de bolos, meio quilo de biscoitos doces, pãezinhos com manteiga, queijo e tomates, e a laranja, as cerejas e as bananas para a Didi e o Micky ‑ descreveu João.

Maria da Luz sentou‑se a comer, muito contente, com a cara voltada para o vento. Parecia muito feliz. Os outros olharam para ela, trocando cotoveladas. Esperavam. Sabiam antecipadamente o que ela ia dizer. Ela abriu a boca e logo os outros disseram em coro.

«Sabem? Pensamos sempre que as coisas sabem melhor quando comidas ao ar livre!»

Maria da Luz, surpreendida olhou para eles.

‑ Que coisa estranha! Ia mesmo a dizer isso! ‑ declarou ela.

Os outros puseram‑se a rir.

‑ Já sabíamos ‑ disse Filipe. ‑ Dizes sempre isso. Luzinha. Estávamos mesmo à espera que abrisses a boca e dissemos por ti.

‑ Idiotas! ‑ replicou Maria da Luz - e riu. Andros também se riu. Gostava daqueles pequenos e dos seus estranhos animais. Não tinha aceitado a comida deles e estava a comer o seu almoço. Compunha‑se de pão muito escuro com queijo muito mal cheiroso e uma bebida qualquer contida num frasco.

A Didi e o Micky tomaram a sua refeição juntos e solenemente. Micky não estava lá muito contente; eriçava‑se‑lhe o pêlo todo ora para trás ora para a frente conforme a posição em que se colocava. A Didi também não estava satisfeita por sentir as penas arrepiadas como um guarda‑chuva ao contrário. Sentaram‑se os dois num lugar abrigado, repartindo entre si a laranja, as cerejas e as bananas. O Micky, delicadamente, descascou a banana para a Didi e entregou‑lha.

‑ Ele descasca‑a exactamente como nós ‑ comentou Maria da Luz. ‑ Acho‑o sempre tão esperto quando faz isso!

‑ Esperto‑disse Andros, apontando para o Micky.‑ Bom e esperto.

O Micky infelizmente estragou a boa opinião de Andros, atirando a casca da banana tão desastrosamente que bateu na cabeça do marinheiro, ficando ridiculamente pendurada pouco acima do seu olho direito. A Didi largou uma das suas fortes gargalhadas e preparava‑se para fazer o mesmo com a casca da sua banana quando João lha tirou.

«Senhor, senhor, senhor, senhonhor, berrou a Didi tentando apanhá‑la outra vez.

O barco avançava sempre, passando ocasionalmente por algumas ilhas, uma ou duas grandes, mas a maioria pequenas. Finalmente, Andros levantou a mão e apontou para Leste.

‑ Tamis ‑ anunciou ele. ‑ Senhor, Tamis.

Todos olharam ansiosamente para o ponto que ele indicava. Viram uma pequena ilha, roxa à distância, erguendo‑se das ondas à medida que se aproximavam. Tamis! Era realmente Tamis, a velha ilha marcada no mapa do tesouro?

Ansiosamente os garotos inclinaram‑se para a frente, vendo‑a tomar forma à medida que se aproximavam dela a toda a velocidade. A imaginação de Maria da Luz começou a trabalhar. «Há muito, muito tempo», pensava ela, «foi aqui que aportou a armada do tesouro durante a noite. Em breve veremos a cidade que está marcada no mapa, a cidade do tesouro! Talvez um dos barcos se chamasse Andra como o nosso barquinho da aventura; talvez ele tivesse navegado por estas mesmas águas. Estamos já muito perto. Em breve veremos a cidade que está marcada no mapa».

‑ Há algum porto bom? ‑ perguntou Jaime, virando‑se para Andros. O homem pareceu admirado.

‑ Oh, não, meu senhor. Agora não há porto. Só há dois lugares para desembarcar. Eu, Andros, conhecer os dois. Eu levar vocês para porto da cidade.

«Bom», pensou João. «Agora já estamos a chegar lá, à velha cidade marcada no mapa. Espero que não seja moderna de mais, como as cidades que temos visto nas outras ilhas. Ah, já estamos muito perto.»

E estavam. Podiam ver‑se praias rochosas. As ondas saltavam sobre elas. Procuraram a cidade e viram edifícios levantados acima do nível das águas. Parecia estranho não haver um porto em condições. As cidades marítimas tinham sempre porto de mar.

O barco entrou com precaução. Andros tomava muito cuidado com os rochedos, seguindo por um caminho que parecia conhecer. Navegava através de um pequeno canal que se dirigia para o interior.

Os pequenos ficaram mudos ao aproximarem‑se da ilha. Tinham os olhos fixos na cidade.

Não sabiam porquê, mas não lhes parecia bem. Havia nela qualquer coisa de estranho. «Parecia... bem... parecia morta», pensou Maria da Luz.

João lembrou‑se do seu binóculo e levou‑o aos olhos. Soltou uma exclamação. ‑ Com a breca! Custa a acreditar!

‑ O quê? ‑ perguntaram logo todos com impaciência.

‑ São tudo ruínas ‑ tornou João, baixando o binóculo e olhando para os outros. ‑ São as ruínas de uma cidade! Nunca pensei que fosse assim!

‑ Eu, Andros, dizer isso! ‑ afirmou o marinheiro. ‑ Eu dizer a vocês cidade pobre, cidade morta. Uma quinta, duas quintas talvez. Cidade desaparecida. Ninguém lá. Todos irem para outras ilhas agora.

Entraram pelo pequeno canal. Era profundo e calmo.

‑ Vocês saírem e eu esperar? ‑ perguntou Andros. ‑ Não ver muito. Tudo morto e pobre nesta ilha. Sim, senhor. Eu levar melhores lugares.

‑ Nós saímos, Andros ‑ afirmou Jaime. ‑ Traz o cesto da comida, João. Já que estamos aqui podemos examiná‑la e comemos no meio das ruínas. Devem ser muito interessantes, espero.

Não sabendo bem o que pensar, os pequenos saltaram do barco para uma plataforma. Subiram uns velhos degraus gastos e entraram no que devia ter sido a rua principal da cidade arruinada. Estava agora entulhada e era difícil caminhar no meio dela. Havia ruínas por todo o lado. Jaime observou algumas delas de perto.

‑ Estas têm centenas de anos ‑ disse ele. ‑ Não compreendo o que teria forçado o povo de Tamis a abandoná‑la e a ir para outro lado. Suponho que a ilha não lhe daria alimento suficiente. Que lugar!

‑ Dá tal sensação de isolamento que me sinto viver há centenas de anos ‑ comentou Maria da Lus. ‑ Quem me dera que a cidade pudesse reviver, encher‑se da gente de outrora, caminhando e correndo aqui por estas ruas, espreitando pelas velhas janelas esburacadas, descendo para aquela espécie de porto para ver os barcos.

‑ Bem, eu espero que a cidade não tome vida ‑ disse Dina. ‑ Ficaria aterrada. Eu já não gosto muito dela, assim como ela é!

Fora construída sobre uma colina íngreme, e os edifícios arruinados erguiam‑se uns acima dos outros, alguns deles reduzidos a uma ou duas paredes, e outros ainda com aspecto bastante habitável enquanto as crianças não espreitaram lá para dentro e viram os buracos dos telhados e das paredes.

Quase no cimo havia um templo arruinado de que restavam ainda um ou dois arcos graciosos. As suas colunas maciças formavam um arco quebrado, com uma ou duas gaivotas empoleiradas no alto. Jaime raspou alguma da erva que crescia no chão do templo e mostrou aos garotos belos mosaicos de pedra.

‑ Jaime, haverá por aqui alguma coisa que conste do mapa? ‑ perguntou João. É que era quase tudo tão diferente do que ele tinha imaginado que a ideia de um tesouro escondido parecia‑lhe agora ridícula. Jaime desdobrou o mapa copiado.

‑ Olhem, foi com certeza aqui que o barco entrou ‑ indicou Filipe, apontando. ‑ Diz cá «enseada». Bem, não podem chamar àquele canal uma enseada? E, olhem, a entrada ou o começo do caminho para o tesouro fica bastante perto da enseada.

‑ Oh, Jaime, voltemos para trás e vamos explorar por aí fora ‑ opinou Dina.

Jaime riu‑se. ‑ Bem... estávamos desconfiados disto! Muito bem. Venham. De qualquer maneira este é o caminho para o barco.

‑ Vamos só até ao alto da colina ‑ propôs Filipe. ‑ Poderíamos observar de lá o resto da ilha. Não é muito grande.

‑ Muito bem‑admitiu Jaime, e treparam até ao cimo. Podiam ver até ao outro lado da ilha, onde o mar azul‑ferrete estava semeado de «carneirinhos» brancos. Era um lugar árido e rochoso, mas aqui e além viam‑se manchas de verdura e pequenos edifícios.

‑ As quintas de que falou Andros, suponho ‑ disse Jaime. ‑ Palavra, ele tinha toda a razão quando lhe chamou pobre e morta! Nunca supus que pudesse ser esta a ilha do tesouro!

Viraram‑se para descer a colina na qual fora edificada a cidade. Caminhavam com precaução. A meio do caminho Maria da Luz parou e pôs‑se a escutar. ‑ Estou a ouvir qualquer coisa ‑ disse ela.

‑ E eu também ‑ concordou Dina. ‑ É o tilintar de uma campainha. Que significará isto?

 

         ALGUMAS SURPRESAS

Parecia tão estranho ouvir o tilintar de uma campainha naquela cidade morta e silenciosa que o grupo ficou verdadeiramente assustado...

O som aproximou‑se.

Domgue‑dongue‑dongue. A Didi também não gostou daquilo e aninhou‑se no pescoço do João. O Micky pôs‑se a resmungar baixinho:

«Dongue‑dongue‑dongue!»

‑ Está qualquer coisa a virar aquela esquina ‑ exclamou subitamente João. E era realmente assim.

Tratava‑se de um burro, um burrinho cinzento com um grande chocalho pendurado ao pescoço! Montava‑o um rapazinho, um fedelho escarranchado com cestos de ambos os lados do burro, grandes cestos cheios de qualquer coisa e cobertos com panos brancos.

‑ Santo Deus! ‑ exclamou Dina, sentando‑se numa grande pedra, muito admirada ao ver que, afinal, fora o chocalho dum burro o que os assustara. ‑ Nem sei o que supus que se aproximava!

‑ Julgo que o rapaz pertence a uma das quintas ‑ disse Jaime com ar intrigado, ‑ Mas que veio ele aqui fazer? Não vive aqui ninguém!

O que aconteceu depois ainda os surpreendeu mais. O rapaz, ao ver as cinco pessoas que olhavam para ele, riu‑se como que a dar as boas‑vindas. Saltou do burro, apontou para os cestos e pronunciou umas palavras com um som horrível que os cinco pensaram que devia ser a fala de Tamis.

Depois conduziu o burro até junto deles e começou a levantar os panos que tapavam os cestos.

‑ É comida! ‑ exclamou Jaime, espantado. ‑ Pão, queijos;, carne. Com a breca, ele está a descarregar o que traz.

O rapaz descarregou tudo, falando sempre. Evidentemente que não podia compreender porque ninguém o ajudava, e dirigiu algumas palavras rudes aos rapazes que, claro, não conseguiram entendê‑las.

‑ Olha lá, ó rapaz ‑ disse Jaime. ‑ Que vem a ser isto? ‑ Apontou para o monte de comida. O rapaz largou outra série de palavras, apontando para Jaime e depois para a comida.

‑ Qualquer pessoa seria levada a pensar que ele trouxe tudo isto para nós ‑ objectou Jaime exasperado. ‑ Não consigo perceber patavina.

O rapaz tornou a montar no burro. Estendeu a mão para Jaime, de palma para cima. O gesto era bem significativo. Queria dinheiro!

‑ Bem, bem, isto comove‑me ‑ disse Jaime, pasmado. ‑ Uma bela recepção em Tamis, devo dizer, mas muito inesperada. Ó rapazinho, nós não queremos a comida. Não a queremos. Leva‑a outra vez!

Por muito que gritassem não conseguiram fazer‑se entender pelo rapaz. Pôs‑se fulo e bateu na mão para fazer compreender a Jaime que queria dinheiro. Por fim Jaime meteu‑lhe na mão uma porção de moedas. Ele contou‑as cuidadosamente, acenou com a cabeça, riu, satisfeito, e depois, malcriadamente, deu uma palmadinha ao Micky. Este respondeu‑lhe com outra palmada e a Didi rosnou‑lhe como um cão.

O burro fugiu da Didi e pôs-se a zurrar. Zaã‑Zaã! A Didi ficou muito assustada, mas depressa se refez e zurrou também magistralmente.

O rapaz deu um grito de surpresa, bateu violentamente na barriga do burro com os seus calcanhares descalços e dobrou a esquina a galope, com o chocalho a tilintar fortemente.

Dongue‑dongue‑dongue‑dongue!

Jaime sentou‑se e coçou a cabeça, ‑ Bem, que havemos de fazer disto? ‑ disse ele. ‑ Um presente da bela comida do campo, enviado por alguém que não conhecemos que possivelmente soube que estávamos cá.

‑ É um pouco estranho ‑ comentou João. ‑ Eu não me importava de comer um daqueles pãezinhos.

Todos tiraram o seu. Eram muito bons. Sentaram‑se a mastigá‑los:, pensando no rapaz. Não conseguiam compreender a razão do seu aparecimento.

‑ Que vamos fazer desta comida? ‑ perguntou Filipe. ‑ Estraga‑se se for deixada ao sol. É um pecado deixá‑la aqui à torreira.

‑ Realmente ‑ concordou Jaime. ‑ Bem, a única coisa que podemos fazer é levá‑la para qualquer lugar fresco e esperar que o rapaz volte!

Levaram os alimentos para as ruínas dum edifício próximo. Havia um buraco no chão à sombra de um resto de parede. Guardaram lá tudo, sem saberem o que lhes iria acontecer.

‑ O melhor será dirigirmo‑nos agora para a enseada para vermos se conseguimos descobrir a entrada, ou, coisa semelhante, que vem no mapa ‑ propôs Jaime. Tirou o mapa da algibeira e olhou para ele. Os pequenos olharam também. ‑ Não a encontraremos; portanto, não pensem mais nisso!‑prosseguiu Jaime, que no íntimo pensava agora que nada havia a descobrir na pobre ilha morta.

Desceram a rua íngreme e coberta de pedras e chegaram à enseada rochosa. Avistaram o gasolina balançando com suavidade. Andros dormia profundamente no lado do barco que estava à sombra.

O pequeno grupo desceu o patamar rochoso até à embarcação. Depois olhou para cima, para a enseada. Jaime soltou uma exclamação. ‑ Claro! Lá está!

‑ O quê, Jaime? ‑ perguntaram logo os pequenos.

‑ Bem, está marcado no mapa «dois dedos», o que parece não ter razão alguma. O perito disse que essa era a significação da palavra. Pensei que isso seria um nome antigo de alguém, mas agora é que percebo o seu significado. Olhem para ali.

As crianças olharam para o ponto indicado por Jaime, e por cima das suas cabeças, um pouco para a esquerda, viram uma estranha rocha. Era como uma mão dobrada com dois dedos erguidos! Sim, dois dedos. Lá estavam eles, e no mapa estavam marcados «dois dedos».

‑ Venham. Isto é um ponto de referência ‑ disse Jaime e treparam até chegarem ao estranho rochedo dos dois dedos. Por baixo dele encontraram um buraco onde cabia perfeitamente uma pessoa. Jaime improvisou um archote e acendeu‑o.

‑ Pode haver uma passagem qualquer ‑ lembrou ele. ‑ E há! Isso é realmente extraordinário. Creio, João, que era melhor voltares ao barco e trazeres uma ou duas lanternas se as puderes encontrar. O meu archote não vai durar muito tempo.

João foi a correr ao barco. Andros continuava a dormir. João descobriu duas lanternas e trouxe‑as cuidadosamente até ao rochedo dos dois dedos, entregando‑as a Jaime, que viera ao seu encontro.

‑ Bom ‑ disse Jaime. ‑ Vamos acendê‑las. Eu levo uma e tu podes levar a outra, João. Pouparei o meu archote.

Dentro da caverna acenderam as lanternas de petróleo. Era uma caverna demasiado pequena para se lhe poder dar esse nome. Não era mais do que um grande buraco, mas no fundo havia uma coisa que parecia ser a entrada para a colina. Seria a entrada marcada no mapa?

‑ Pensa que é, Jaime? ‑ perguntou Maria da Luz ansiosamente quando, depois de acenderem as lanternas, Jaime levantou a dele para poder espreitar para o corredor estreito que se via no fundo do buraco.

‑ Não, não me parece que seja ‑ respondeu Jaime.

- Teria sido descoberto há muitos anos, pelas pessoas da cidade, quando ela era habitada. Não passa de uma coincidência.

As crianças não eram da mesma opinião. Sentiam‑se entusiasmadíssimas ao passarem pela pequena passagem escura. Uns cem metros mais adiante abria‑se um largo espaço. Jaime levantou a lanterna, que iluminou as paredes da rocha... Mas o que era aquilo lá no fundo? A parede tinha ali um aspecto diferente.

Foi até lá com a lanterna. A luz incidiu sobre grandes blocos de pedra colocados à maneira de uma enorme porta irregular. ‑ Pergunto a mim próprio porque seria que construíram isto aqui ‑ disse Jaime, surpreendido. Andou à roda com a lanterna para iluminar o resto da caverna. As paredes eram feitas de rocha macia e brilhante. Ali não se via a menor abertura. Aquela por onde eles tinham entrado era a última a seguir ao corredor estreito.

Jaime virou outra vez a lanterna para as pedras amontoadas. Depois pousou-a.

‑ Isto foi construído para topar qualquer outra abertura‑ opinou ele por fim. Os pequenos sentiram que os corações se lhes encolhiam. ‑ É imensamente forte como vocês próprios podem ver; uma porta de grandes blocos de pedra, uma porta que possivelmente não pode ser aberta ou atravessada senão com grandes recursos materiais.

‑ Jaime, acha que isto estará a vedar a passagem marcada no mapa? ‑ perguntou João desolado.

‑ Bem, sim, penso ‑ respondeu Jaime. ‑ Foi construída há muitos, muitos anos, é velha, como podem ver. A razão por que foi construída só Deus sabe! Seja como for, aqui está e nós estamos aqui parados mesmo à saída. Se é este o caminho indicado no mapa, o caminho que deve seguir‑se para se chegar ao lugar onde talvez o tesouro esteja escondido, é impossível segui‑lo. Absolutamente impossível!

‑ Oh, Jaime ‑ disse Maria da Luz quase a chorar. ‑ Que coisa! Não haverá outra passagem?

‑ Bem, mandem o Micky ver. Se houver algum buraco, pequeno que seja, o Micky acabará por descobri‑lo. Sabem como são os macacos. Manda‑o, Filipe.

Micky olhou para ele interrogativamente. Não gostava desta história de explorar passagens escuras, mas, obedientemente, pulou do ombro e foi pesquisar sozinho‑. A Didi olhou‑o e voou depois para uma saliência que havia no cimo da imensa porta de pedra.

«Mandem chamar o médico», fez ela com voz cavernosa. «A Lena apanhou uma constipação. Chamem o médico.»

Micky deu um salto para ir ter com ela. Pôs‑se a apalpar com a mãozinha, por todos os lados, as reentrâncias e as saliências. Mas era evidente que nada encontrava, pois em breve voltou a trepar para o ombro de Filipe, aninhando‑se junto do pescoço.

‑ Não há passagem ‑ concluiu Jaime. Pousou a lanterna no chão, disposto a arrumar o mapa. Quando estava a dobrá‑lo Maria da Luz soltou um grito de admiração.

‑ Que aconteceu? ‑ perguntou João, admirado.

‑ Olhem, que é aquilo além no chão? De certeza é... é uma pilha eléctrica!

Filipe viu a coisa que ela indicava e foi apanhá‑la. Aproximou‑a da luz da lanterna. ‑ Sim. é isso mesmo, uma velha pilha gasta como a de Jaime. Não deixou cair qualquer pilha, pois não, Jaime?

‑ Claro que não ‑ disse Jaime. ‑ Sim, isto é, na verdade, uma velha pilha e alguém deve tê‑la deitado fora e posto uma nova no seu lugar, fosse quem fosse! Com certeza não somos as únicas pessoas a conhecer este lugar!

Maria da Luz estremeceu. Lamentava ter encontrado aquela pilha agora. Fazia‑lhe impressão. Quem teria estado dentro desta caverna, e porquê?

‑ Vamos, Jaime ‑ propôs ela. ‑ Aqui nada podemos fazer, está tudo emparedado. Voltemos para o Andros. Não gosto disto.

‑ Está bem. Vamos embora ‑ concordou Jaime ‑ De qualquer forma tínhamos de ir. Já aqui estamos há bastante tempo, e esta noite temos de regressar ao navio. Venham daí.

Saíram da caverna, desceram o estreito corredor cavado na colina rochosa e chegaram à cavidade exterior. Treparam para circundar o rochedo dos dois dedos e dirigiram‑se para o cais.

Então, sofreram um choque terrível. O gasolina tinha partido! Ficaram a olhar como se não pudessem acreditar no que viam.

‑ Onde está o barco? ‑ exclamou Dina com voz abafada.

Olharam por toda a extensão do embarcadouro. Não se viam sinais do barco. Que coisa extraordinária! João soltou então um grito, apontando para o mar.

‑ Não é aquilo? Olhem, além!

Todos apuraram a vista e Jaime fez pesarosamente um sinal afirmativo com a cabeça. ‑ Sim, parece ele. Que terá obrigado Andros a partir sem nós? Que coisa espantosa!

‑ Estava a dormir profundamente no barco quando fui buscar as lanternas ‑ informou João. ‑ Nem se mexeu. Tudo parecia então em ordem.

‑ Macacos me mordam se percebo isto! ‑exclamou Jaime com ar desvairado. ‑ Parecia um tipo merecedor de confiança e nem sequer lhe tinha ainda pago. Que o teria feito proceder assim?

‑ O barco vai muito depressa ‑ disse Filipe. ‑Agora já está quase fora de vista. Bem, bem, aqui estamos encafuados na nossa ilha do tesouro; mais certo que dois mais três serem cinco!

Maria da Luz estava muito alarmada. Agarrou no braço de Jaime.

‑ Que vamos fazer agora? ‑ perguntou ela. ‑ Temos de ficar aqui, Jaime?

‑ Maria da Luz, não sejas idiota ‑ atalhou João antes que Jaime pudesse responder. ‑ Onde havemos de ir se não ficamos aqui? Tens algum avião por aí, nalgum lado, pronto para nos valer nesta emergência?

‑ Cala‑te, João ‑ concluiu Jaime, abraçando Maria da Luz. ‑ Estaremos muito bem, não te assustes, Luzinha. É mais uma das nossas aventuras.

 

         SUSTOS DE TODAS AS ESPÉCIES

Permaneceram uns momentos indecisos sem saber que fazer. Era tudo tão inesperado... Então, Jaime levantou‑se e riu‑se para eles.

‑ Bem, parece que teremos de passar aqui a noite, não é verdade? E de arranjar a ceia. Graças a Deus que temos aquela comida que o estranho rapaz trouxe no burro! E o João ainda tem o resto do nosso piquenique.

‑ Sim, tinha‑me esquecido disso! ‑ exclamou Dina, mais contente. ‑ Estava a pensar que nada tínhamos para comer.

‑ Podemos ir já lá buscá‑lo ‑ propôs Jaime. ‑ Havemos de arranjar algum sítio para dormir; está muito calor, portanto, não nos fará mal algum. Não estou disposto a procurar uma daquelas quintas que vimos, pois é possível que Andros volte outra vez à nossa procura,. Deve ter endoidecido.

Passaram uma estranha noite em Tamis. Foram à procura do armazém de comida e tomaram, na verdade, uma rica refeição. Guardaram muito bem o resto no sítio fresco que pela primeira vez tinha servido de despensa. Depois foram outra vez vaguear pela velha cidade arruinada. Maria da Luz descobriu uma velha bilha de gargalo quebrado com a qual ficou muito contente. João encontrou uma espécie de garfo de metal, pelo menos foi o que lhe pareceu, com dois dentes partidos.

Jaime tinha andado à procura de um lugar para dormir. O êxito não foi imediato. Finalmente encontrou uma construção, não muito longe do templo arruinado, da qual restavam ainda três paredes e o tecto. No chão crescia uma erva densa e serviria de quarto de dormir.

O Sol estava a pôr‑se. Em breve desapareceria. Jaime decidiu pôr a comida também no quarto, pois estaria mais à mão se quisessem comer alguma coisa. Ele e os rapazes meteram‑na cuidadosamente na erva espessa e fresca. Estavam contentes por haver tanta.

Quando desapareceu o Sol todos se sentiram cansados. Maria da Luz estava a cair de sono e a bocejar, assim como a Didi. O Micky explorou o pequeno quarto de ponta a ponta, achou‑o bom e imstalou‑se em cima de Filipe logo que este se acomodou conf ortavelmente numa cama de erva densa.

Os quatro pequenos adormeceram logo. A Didi empoleirou‑se suavemente na barriga de João logo que este adormeceu. O dono tinha‑a empurrado duas ou três vezes, mas desta vez não acordou, e ela deixou‑se ficar, com a cabeça metida debaixo da asa.

Jaime pôs‑se de costas a olhar para as estrelas, que conseguia ver através dos buracos do telhado. Estava zangado consigo próprio por ter trazido os garotos para Tamis. Agora estavam outra vez metidos em trabalhos, tudo por causa do lendário e imaginável tesouro que certamente não estava ali há muitos anos, se porventura alguma vez existira.

Estava intrigado com o rapaz do burro, que trouxera a comida. Intrigava‑o também a entrada bloqueada e a pilha que a Maria da Luz tinha achado e, mais do que tudo, ficara surpreendido com o súbito desaparecimento de Andros.

Prestes a adormecer, ouviu um ruído. O Micky também o devia ter percebido, pois esticou‑se e pôs‑se a olhar por todo o quarto. Jaime deixou‑se estar deitado, à escuta, contendo a respiração. Que espécie de ruído teria ele ouvido?

O som inconfundível de uma voz chegou‑lhe então aos ouvidos.

Depois outra voz, profunda e queixosa. De onde viriam?

Levantou‑se com cautela e pôs‑se novamente à escuta. Ouviram‑se outra vez as vozes, e também o ruído de passos que desciam a velha rua da cidade arruinada! Não lhe agradava isto. Quem seria que caminhava através da velha cidade morta no meio da noite?

A Didi também ouviu as vozes. Voou para fora do sítio onde estava e escondeu‑se debaixo de um arco, à espera. Os passos aproximaram‑se. As vozes também se ouviam agora melhor. Jaime colocou‑se silenciosamente ao lado duma janela e observou. Só podia ver‑se bem com o luar, mas, mesmo assim, distinguia‑se alguma coisa.

Duas figuras escuras subiam a rua. De vez em quando paravam. Parecia que olhavam para os edifícios em ruínas à procura de alguma coisa. Iriam também olhar para o lugar onde eles estavam e encontrar os pequenos? Jaime hesitava se devia sair e abordar aquelas pessoas. Quem seriam? Depois concluiu que as pessoas que andam pelas ruas de uma cidade arruinada pela calada da noite não são muito indicadas para prestarem auxílio e deixou‑se ficar onde estava.

As duas figuras escuras passaram muito perto. Ouviu novamente as suas vozes, mas numa língua estranha, provavelmente grego, que ele não compreendia. «Era óbvio que procuravam alguma coisa», pensou Jaime, e, de repente, percebeu do que se tratava.

A comida! Talvez o rapaz a tivesse trazido para eles e Jaime recebera-a, em vez deles! Agora os homens andavam à procura da comida, certos de que o rapaz a tinha encafuado nalgum lugar.

«Então, também vêm procurar aqui de certeza», pensou Jaime. Mas não. Quando chegaram à porta perto do lugar em que a catatua estava empoleirada, a Didi fez o ruído de um tiro.

Craque!

Todos os pequenos acordaram de repente e levantaram‑se. Estavam assustados de mais para poderem falar e logo que ouviram o «chiu» de Jaime puseram‑se à espera em silêncio.

Os dois homens pareciam assustadíssimos. Jaime podia vê‑los agarrados um ao outro. Trocaram rapidamente algumas palavras; com certeza perguntavam que ruído seria aquele.

A Didi olhava‑os. Não gostava deles. Começou a rir às gargalhadas e isto assustou os homens mais do que qualquer outra coisa o poderia ter feito. O riso da Didi era tão completamente idiota que os gelou até à medula dos ossos.

A Didi parou. Inchou a garganta e começou a fazer o famoso ruído do comboio rápido, apitando através de um túnel e tornando‑se cada vez mais nítido, mais alto, mais próximo; o seu esforço foi admirável e obteve resultados magníficos.

Os homens guincharam também de pânico e fugiram tão depressa quanto puderam, certos de que alguma coisa de terrível vinha atrás deles. A Didi enviou‑lhes outro tiro de pistola e depois desatou às gargalhadas.

‑ Ora com franqueza, Didi ‑ disse Jaime depois de os dois homens terem desaparecido completamente. ‑ Que espectáculo!

‑ Quem estava lá fora, Jaime? ‑ perguntou Dina.

‑ Não faço ideia ‑ respondeu Jaime. ‑ Mas penso que eram dois tipos cheios de fome que vinham à procura da comida que o rapazinho nos ofereceu hoje. O que é certo é que desapareceram a toda a pressa.

‑ A Didi foi maravilhosa, não foi? ‑ comentou João.‑Minha querida Didi. Um pássaro esperto!

A Didi soltou um enorme soluço. «Perdão! Vão chamar o médico! A doninha vai aos pulos.»

‑ Sim? Que linda! Mas agora já chega ‑ disse João. ‑ Jaime, quem pensa que seriam aqueles homens?

‑ Já lhes disse que não faço ideia ‑ respondeu Jaime. ‑ Este lugar agrada‑me. Venham, vamos dormir mais. Não me parece que aqueles tipos voltem, e se tivéssemos alguns visitantes não tenham dúvidas de que a Didi lhes trataria do pêlo!

Instalaram‑se outra vez para dormir. Jaime ficou deitado mais um bocado a pensar e depois adormeceu também. Não acordou senão de manhã.

Os outros já estavam de pé. João tinha acordado cheio de sede e partira em busca de água. Encontrou um poço em frente de um moinho ao descer a colina e viu lá dentro água. Em breve descobriu maneira de transportar a água, que era fresca e clara como cristal.

Atou um cordel à volta do gargalo quebrado da bilha que Maria da Luz tinha encontrado e mergulhou‑a no poço. Não trazia muita água porque o gargalo estava quebrado, mas era suficiente para todos matarem a sede. Comeram um pequeno almoço de pãezinhos e queijos e desejaram que o rapaz voltasse outra vez nesse dia.

‑ Desce a ver se vês algum sinal do barco, João ‑ rogou Jaime, depois de acabarem. Ele partiu e daí a pouco voltou para contar que o embarcadouro estava deserto. Não se viam sombras de barco.

‑ Bem, temos de esperar ‑ observou Jaime ‑, é o que é. Será uma questão de tempo até que nos venham buscar. O Quim vai ficar admirado com o que nos aconteceu. Ou Andros chegará à conclusão de que fez uma coisa louca e voltará!

Cerca do meio‑dia ouviram outra vez o dongue‑dongue do chocalho do burro, e, ao dobrar uma esquina, surgiu o rapazote. Desta vez Jaime já sabia o que havia a fazer. Ele e os outros descarregaram os artigos, pagaram ao rapaz, e ele partiu com o chocalho do burro a soar alto, muito contente com esta recepção. Todos olharam para ele.

‑ É realmente extraordinário ‑ disse Jaime. ‑ Vamos esconder depressa a comida antes que venham os verdadeiros destinatários.

Nós também vamos comer. Estou com fome!

Levaram‑na para o quarto onde a tinham saboreado na véspera e comeram à farta antes de esconderem o resto. Jaime pôs‑se a pensar se não seria melhor procurar uma das quintas em busca de auxílio. Mas que auxílio lhes poderiam prestar? E que espécie de recepção os esperava? Tudo poderia acontecer naquela ilha isolada.

Podiam ser roubados e feitos prisioneiros ou mesmo assassinados.

João pediu a Jaime que lhe desse o mapa para o estudar e desenhar outro. ‑ Não é que isso tenha muita utilidade ‑ objectou João, rindo. ‑ Agora que estou em Tamis já não me preocupo tanto com ele como antes. E é difícil pensar‑se em tesouros no meio de tantas ruínas.

Jaime deu‑lhe o mapa. João levou‑o para o lugar outrora ocupado pelo templo e sentou‑se num canto. Maria da Luz veio sentar‑se junto dele. A Didi acomodou‑se no meio, murmurando, como que a fazer‑lhes companhia.

As duas cabeças ruivas inclinaram‑se sobre o mapa. ‑ Há aqui tanta coisa inexplicável para mim ‑ disse João. ‑ «Dois dedos», bem, sabemos muito bem o que isto significa, e agora olha para aqui mais adiante, diz «Sino». Bem, que quererá isto dizer? Sino. Que é isso? Um buraco, claro... e as escolas têm sinos... e...

‑ As igrejas ‑ lembrou Maria da Luz. ‑ Julgo que esta velha igreja deve ter possuído um sino em tempos. Onde estará ele?

Pôs‑se a olhar para todos os lados, mas não conseguiu descobrir onde poderia ter estado pendurado um sino.

João olhou subitamente para ela. ‑ Claro Luzinha, um templo tinha de ter um sino. O templo pode ser um dos pontos‑chave, um dos guias que conduzem ao tesouro.

‑ Achas que sim? ‑ inquiriu Maria da Luz, duvidando. ‑ Mas com certeza que o tesouro havia de estar escondido muito fundo debaixo da terra e não além, no templo.

Sabemos que a entrada para o corredor secreto era lá muito em baixo na colina, por cima do embarcadouro.

‑ Talvez esteja escondido debaixo do templo ‑ lembrou João. ‑ Ou perto dele? Talvez o templo tivesse subterrâneos. Olha... é uma ideia. Se este tivesse tido subterrâneos em tempos, ainda devem existir. Os subterrâneos não se arruinam como os edifícios. Não estão expostos ao vento, à chuva e ao sol. Subterrâneos! Sim, que passassem por baixo do monte com acesso por uma passagem subterrânea que partisse do embarcadouro;, uma passagem que fosse acessível do lado do mar. Poderia ser usada pelos marinheiros que queriam esconder carregamentos. Maria da Luz, deve haver subterrâneos! Anda daí, vamos procurá‑los.

Maria da Luz, meio entusiasmada meio incrédula, levantou‑se e seguiu João. Começou a procurar por todos os lados a ver se encontrava aquilo que devia ter sido antigamente o claustro.

Estava tudo demasiado destruído para poder encontrar‑se algum caminho subterrâneo.

Encostaram‑se a um grande pedaço de coluna para descansar. Outro grande pedaço de coluna ficava mesmo por cima deles e a Didi voou a empoleirar‑se lá. Nesse momento, o Micky veio para o claustro aos pulinhos seguido dos outros. Viu a Didi e foi pôr‑se ao lado dela.

Esta não o esperava, assustou‑se e ficou zangada. Deu‑lhe uma bicada tão grande que ele perdeu o equilíbrio e caiu de costas dentro da enorme coluna.

Berrou de medo ao cair e a Didi meteu a cabeça no buraco para ver o que lhe tinha acontecido.

«Tudo perdido», gritou com voz cavernosa. «Tudo perdido. Dingue, dongue.»

‑ Idiota Didi ‑ berrou Filipe. ‑ Eh lá, Micky, Micky. Vem daí para fora!

Mas não se ouvia o Micky. Apenas um gritinho abafado.

‑ Está ferido ‑ comentou Filipe. ‑ Eh, João, dá‑me aqui uma ajuda para subir. A queda não deve ter sido de muito alto.

João deu‑lhe uma ajuda. Chegou ao cimo da coluna partida, meteu lá dentro as pernas e ia mesmo para saltar quando se lembrou de olhar lá para dentro.

‑ Oh, Jaime! ‑ gritou ele. ‑ Empreste‑me a sua lanterna. Será melhor eu ver antes de saltar. Parece‑me que há aqui qualquer coisa de estranho.

Jaime entregou‑lhe a lanterna. Filipe acendeu‑a e, olhou depois para os outros.

‑ Palavra que é muito estranho. Parece que há degraus no fundo desta coluna! Que dizem a isto?

 

         A EXPLORAÇÃO DO CAMINHO DO TESOURO

Todos estavam pasmados. Degraus! Degraus que desciam no fundo do interior da coluna de pedra! João deu um grande berro.

‑ Aposto que eles conduzem aos subterrâneos!

‑ Quais subterrâneos? ‑ perguntou Dina admirada. Mas João estava entusiasmado de mais para poder responder‑lhe.

‑ Jaime, vamos descer. Venha daí. Estamos na pista do tesouro. O mapa não dizia «Sino»? Bem, o templo deve ter possuído um sino. Aposto que o tesouro está lá em baixo em qualquer lado!

‑ Estás a dizer disparates ‑ respondeu Jaime, não dando importância às palavras do rapaz. ‑ Filipe, desce daí. Não penses em fazer explorações loucas sem termos as lanternas e antes que eu próprio faça uma investigação. Estás a ouvir‑me?

‑ Sim, está bem, Jaime ‑ disse Filipe de má vontade, e saltou cá para baixo. ‑ O Micky caiu para lá, pode ter‑se ferido nos degraus e ter rebolado por eles. Ainda o ouço gemer.

‑ Espero que seja só do susto‑ disse Jaime.‑ Vocês, rapazes, vão buscar as lanternas e a comida também. Se vamos para baixo do chão acho melhor irmos preparados!

Antes que os rapazes voltassem, Micky tinha já reaparecido. Um Micky muito assustado e lamentoso, na verdade. Procurou o seu querido Filipe, mas ele não estava ali; por isso, foi ter com Maria da Luz e deixou que ela o embalasse como a um bebé.

Gemeu e a pequena estava muito penalizada.

‑ Vá lá, vá lá, na verdade não te magoaste ‑ disse ela para o consolar. ‑ Só uma pancada ou duas, segundo julgo. A Didi foi mazona. Contudo fizeste uma grande descoberta. Micky, realmente maravilhosa!

A Didi estava toda envergonhada. Foi para um canto e meteu a cabeça debaixo da asa, mas ninguém reparou sequer nela.

Os rapazes regressaram. Jaime tinha estado a inspeccionar o interior da coluna com a lanterna. Intrigava‑o como aquele povo antigo que devia ter utilizado a coluna como uma entrada para o subterrâneo encontrava acesso para ela. Não via processo de lá entrar, a não ser, claro, através do grande buraco aberto na coluna.

‑ É uma estreita escada de caracol ‑ disse às raparigas. ‑ O João deve ter razão. Deve levar aos subterrâneos do templo, um caminho verdadeiramente secreto para eles, possivelmente só conhecido pelo sumo sacerdote. Venham), rapazes, ajudem as raparigas a subir. Eu desço primeiro.

Deixou‑se cair para os primeiros degraus da escada. Virou a lanterna para baixo. Sim, era uma escada de caracol, como tinha pensado. Aqui era muito estreita mas provavelmente alargava mais em baixo. Nos primeiros doze degraus quase teve de caminhar de gatas, e por duas ou três vezes ia escorregando, porque os degraus eram muito estreitos e íngremes.

As raparigas seguiram‑no", ajudadas pelos rapazes.

Dina pegou numa lanterna mas achou que não lhe era possível levá‑la e teve por fim de passá‑la para baixo, para Jaime, pois precisava das duas mãos no cimo da escada. Maria da Luz desceu com a luz da segunda lanterna, que João segurava para a alumiar.

A comida veio atrás delas. ‑ Deixamo‑la aí ‑ disse Jaime.

‑ Podemos vir buscá‑la se precisarmos dela, e é um esconderijo tão bom como qualquer outro.

Assim, deixaram a comida no cimo da escada, num degrau de pedra, e dentro de pouco tempo já todos os cinco estavam muito em baixo. Como Jaime tinha pensado, pouco depois os degraus tornaram‑se mais largos e fáceis, o

Micky estava agora outra vez empoleirado no ombro de Filipe. A Didi, muito sossegada e humilde, tinha seguido o João para dentro da coluna. Foram sempre descendo até chegarem ao fim da escada. Terminava numa vasta caverna ou subterrâneo, que se estendia sem fim no rochedo do monte. As lanternas somente iluminavam uma parte.

‑ Sim, cá estão os subterrâneos ‑ disse João. ‑ O caminho que seguimos, segundo penso, deve ter sido muito secreto. Olhe, há ali outro caminho para cima, Jaime, além; mais degraus de pedra, desta vez a direito e não em espiral, subindo muito íngremes.

‑ Sim. Julgo que este, sim, era o caminho habitual para descer para os subterrâneos ‑ respondeu Jaime. ‑ O caminho por que entrámos está muito bem disfarçado. Olhem, daqui nem sequer se vê, tapado por aquela enorme pedra.

Virou a lanterna para o largo lanço de escadas onde tinham agora chegado. ‑ Vou ver aonde conduzem ‑ disse Jaime, subindo. Ouviram os passos dele sempre a subir, e depois pararem. Enfim, ouviram‑no outra vez descer.

‑ Chega a um tecto de pedra! ‑ afirmou ele. ‑ Provavelmente havia aí uma saída, fechada por algum alçapão de pedra, tapado agora por ervas e plantas. É natural que esse fosse o processo usual de entrada e saída. Bem, agora para onde seguimos?

‑ Jaime, vamos olhar outra vez para o mapa ‑ propôs João. ‑ Tenho a certeza de que devemos estar no lugar marcado com o «Sino». Sino quer dizer templo, como sabe.

Olharam todos novamente para o mapa, iluminado pela lanterna de Jaime. Este seguiu o caminho para o tesouro com o dedo.

‑ «Rochedo dos Dois Dedos» disse ele ‑ Estivemos lá e fomos impedidos de passar pela parede.

‑ Depois, o que se segue é «Deusa» ‑ disse Filipe. ‑ Não percebo o que isto significa!

‑ Qualquer coisa que está no caminho que vem do «Rochedo dos Dois Dedos» para aqui, talvez ‑ lembrou João. ‑ Podíamos ir ver. Depois, olhem, está aqui: «Túmulos». Suponho que é onde se enterravam pessoas.

‑ Sim, numa câmara de pedra, suponho eu ‑ prosseguiu Jaime. ‑ Depois chegamos ao «Pássaro», que parece muito estranho.

‑ Depois ao «Sino» ‑ disse triunfantemente. ‑ E é aí que nós estamos, aposto!

‑ Sim, mas onde está o tesouro? ‑ interrogou Jaime. ‑ Olhem, depois vai‑se para aqui, onde está indicado «Labirinto». Não me agrada tanto isto.

‑ Que quer dizer propriamente «Labirinto?» ‑ perguntou Maria da Luz.

‑ Charada, um caminho tão tortuoso e intrincado que uma pessoa facilmente se perde nele ‑ explicou Dina. À Maria da Luz não agradou a ideia!

‑ «Labirinto» ‑ disse ela. ‑ Bem, e o que se segue?

‑ «Catacumba» ‑ respondeu Jaime. ‑ Parece que é aí que está escondido o tesouro! Que caminho para o transportar!

‑ Vamos procurá‑lo! ‑ disse João alegremente. Dobrou o mapa e meteu‑o na algibeira. ‑ Vamos, não temos outra coisa a fazer. Devo dizer que está aqui fresquinho depois do calor lá de cima!

‑ A questão é a seguinte: por onde vamos? ‑ perguntou Jaime. ‑ Um caminho segue para a «Catacumba», o outro para o «Túmulo». Mas, embora os pontos cardeais estejam marcados no mapa para facilitar as coisas, nós não podemos ver o Sol, portanto, não fazemos nenhuma ideia da direcção. Algum de vocês traz uma bússola?

Ninguém trazia.

‑ Bem, temos de nos deitar a adivinhar ‑ continuou Jaime. ‑ Parece haver só dois caminhos a seguir: um para a direita, outro para a esquerda. Vamos para a direita.

Seguiram então para a direita do subterrâneo, levando Jaime o archote e cada um dos rapazes a sua lanterna. As sombras eram alongadas e o eco vago dos seus passos estranho e assustador.

Didi e o Micky não gostaram disso e ambos se mantiveram silenciosos nos ombros dos rapazes.

Andaram durante algum tempo até que chegaram a um corredor largo que descia para um espaço de chão liso. Isto prolongou‑se por um bom bocado e terminou de repente numa coisa que lhes pareceu uma porta. Era, de facto, uma porta de madeira, que outrora devia ter sido muito forte. Ainda era boa, mas um dos gonzos tinha caído e quando os garotos a deslocaram para cá e para lá o outro gonzo cedeu também e a porta caiu para dentro, quase em cima de Jaime, que saltou para o lado mesmo a tempo.

Jaime iluminou‑a com a lanterna. Incrustado na porta estava um grande pássaro. ‑ Cá está: «Pássaro» ‑ disse João todo contente. ‑ Era esse um dos marcos, não era Jaime? E é uma águia, muito bem entalhada.

‑ Agora já sabemos que caminho estamos a seguir; o caminho errado! ‑ afirmou Jaime. ‑ Contudo, podemos continuar, já agora... isto é espantoso!

Deixando atrás de si a porta de madeira entalhada, passaram pela abertura; olhando para trás viram que o corredor por onde seguiam se dividia em dois junto da porta. Certamente havia dois caminhos para lá chegar, e o certo era o da porta do pássaro; daí estar lá marcado «Pássaro».

Seguiram por uma passagem muito estreita. Descia exactamente como o outro caminho até se abrir numa pequena câmara. Num dos lados havia uma balaustrada de pedra maciça. De ambos os lados viam‑se gravados símbolos estranhos.

O pequeno grupo parou para olhar para eles.

‑ Isto deve ter sido um túmulo ‑ disse Jaime. ‑ Possivelmente de algum sacerdote. Há muitos túmulos antigos como este.

‑ Os marinheiros que transportaram o tesouro devem‑no ter trazido guiados por este túmulo ‑ disse Filipe. ‑ Talvez eles conhecessem este caminho porque roubavam túmulos.

Não havia porta para a câmara do túmulo, mas o lugar dela estava cortado pela base. Possivelmente tinha existido em tempos uma porta. Para além dela começava outra vez o corredor, ainda mais íngreme.

‑ Agora falta a «Deusa» ‑ disse João. ‑ Palavra, que belo guia é este mapa, não é, Jaime? Se tivéssemos podido passar pelo «Rochedo dos Dois Dedos», onde estava o buraco, como sabem, poderíamos ter utilizado o mapa como um guia de confiança absoluta.

‑ Cuidado, há agora aqui uns degraus ‑ avisou Jaime. ‑ Estão cortados na rocha. Isto aqui agora já é muito profundo.

Desceram cuidadosamente os degraus. No fundo via‑se um belo arco. Era de mármore, encravado no arco natural da rocha. Para lá do arco havia um pavimento de mármore, ainda liso e brilhante, pois debaixo do chão não se viam poeiras.

As paredes também estavam gravadas e a polida rocha marcada com números e símbolos. Águias, pombas, raposas;, lobos; desenhos curiosos e figuras decoravam toda aquela estranha câmara.

‑ Isto deve ser a «Deusa» ‑ opinou Jaime. ‑ Lugar para adorar alguma deusa pouco conhecida, imagino eu, escondida debaixo do chão, para ser apenas adorada em segredo.

‑ Sim, deve ser isso ‑ concordou Filipe. ‑ Não é estranho?

Suponho que estas gravações devem ter centenas de anos!

‑ E agora vamos ao último marco, ou primeiro, como lhe quiserem chamar ‑ disse Jaime. ‑ «Dois Dedos». Bem, já sabemos o que isso é. Mas não tenho dúvida de que vamos chegar ao outro lado da porta de pedra. Cá vamos. Com a breca, que fundo que isto é agora, não é? E não há degraus. Tenham cuidado, meninas!

Seguiram aos tropeções por um corredor muito inclinado e, exactamente como Jaime tinha dito, foram dar ao outro lado da porta que tinham visto quando da sua permanência na caverna dos «Dois Dedos». Pararam a pensar.

‑ Sim, encontrámos a pista do tesouro ‑ comentou Jaime. ‑ Agora vamos partir outra vez daqui; «Dois Dedos», repousamos, passamos pela «Deusa», pelo «Túmulo» e pelo «Pássaro» até chegarmos ao «Sino», o subterrâneo do templo.

 

         A MAÇADORA DA DIDI

Passaram outra vez pela pequena sala de mármore que devia ter sido antigamente um templo subterrâneo dedicado a uma estranha deusa, pelo velho túmulo e por cima da porta caída com um pássaro entalhado e dentro em pouco estavam de regresso aos subterrâneos do templo.

‑ Agora vamos seguir noutra direcção, para a esquerda ‑ disse Jaime, que estava agora já quase tão excitado como os quatro pequenos. ‑ Venham daí, por este corredor abaixo. Levanta a tua lanterna, Filipe. O meu archote não ilumina muito.

‑ Este corredor conduz ao «Labirinto», onde as pessoas se perdem? ‑ perguntou Maria da Luz, um pouco receosa. ‑ Nós também nos vamos perder?

‑ Não. Havemos de arranjar maneira de não nos perdermos ‑ sossegou‑a Jaime. Ele e João olharam atentamente para o mapa. ‑ Embora esta parte esteja marcada «Labirinto», mostra apenas um caminho ou corredor, mas, de vez em quando, a letra «D» aparece a indicar a direita, penso eu. Parece que temos de virar para a direita seis vezes. Bem, se chegarmos a uma bifurcação já sabemos o que havemos de fazer; sempre para a direita! Venham! Guarda o mapa outra vez na algibeira, João.

Seguiam pelo corredor de tecto baixo e serpenteado quando João gritou para os outros: ‑ Olhem lá, onde está a Didi?

Todos pararam. ‑ Eu não a tenho ‑ gritou Maria da Luz. ‑ Nem a Dina.

Jaime declarou que também não a tinha, e quanto a Filipe só tinha o Micky no ombro.

‑ Voou do meu ombro quando entrámos para o subterrâneo ‑ disse João, recordando. ‑ Didi! Didi! Onde estás tu?

Não se ouviu nem palrar nem guinchar como resposta. ‑ Bolas! ‑ disse João. ‑ Tenho de voltar atrás a procurá‑la.

Correu para trás. Os outros continuaram. João tinha uma lanterna e podia facilmente apanhá‑los.

Chegaram em breve a uma bifurcação. ‑ Tomamos o caminho da direita ‑ alvitrou Jaime. ‑ Por aqui!

O caminho dobrava‑se com extraordinária frequência, e era impossível saber se iam para a frente ou se, depois de tanto virar e tornar a virar, seguiam na direcção oposta.

‑ Uma volta para a direita, duas, e esta é a terceira ‑ disse Filipe. ‑ Mais três voltas para a direita e estaremos na «Catacumba»!

‑ Hum! ‑ disse Maria da Luz. ‑ Oxalá não falte muito! Estou farta destes corredores escuros. Este é pedregoso;, estou sempre a dar topadas com os dedos dos pés nas pedras.

‑ Quem me dera que o João nos apanhe ‑ disse Filipe, que era o último. ‑ Está sempre a parecer‑me que o ouço atrás de mim, mas, quando me volto, não o vejo. Não seria melhor esperarmos por ele, Jaime?

‑ Sim, talvez seja melhor ‑ concordou Jaime, e pararam. Mas o João não aparecia. Santo Deus, que lhe teria acontecido? Maria da Luz começou a sentir‑se aflita.

‑ João ‑ chamou ela. ‑ João! Onde estás?

‑ É melhor voltarmos à procura dele ‑ disse Jaime, intrigado. ‑ Oxalá que ele não se tenha enganado no caminho. Sabia que tínhamos de virar sempre à direita.

Voltaram um bom pedaço para trás, e,, então, Jaime parou. ‑ Suponho que nos enganámos ‑ disse ele. ‑ Não me lembro deste corredor. Tem um tecto tão baixo! Já bati com a cabeça nele; quando vim para cá isto não me aconteceu!

‑ Ai, meu Deus, não me digam que nos perdemos; parecia tão fácil virar sempre à esquerda ao regressarmos ‑ gemeu Dina. ‑ Deve estar certo, Jaime.

Jaime estava preocupado. Tinha a certeza de não se lembrar daquele corredor com um tecto tão baixo e decidiu:

‑ Vamos voltar ‑ disse. ‑ Penso que devemos ter ‑nos enganado na última volta à esquerda.

Voltaram para trás, mas chegaram então a um lugar sem saída! O corredor tornava‑se cada vez mais estreito e por fim ninguém podia passar por ele. Aquilo não era o caminho com certeza!

‑ Enganámo‑nos outra vez ‑ declarou Jaime com um ar muito mais descontraído do que na verdade sentia.

Lá no fundo estava assustado, horrorizado. Que saída teria o labirinto? Quanto é que ele desceria? No mapa parecia um caminho curto mas o labirinto em si podia estender‑se por milhas e milhas, cortado por muitos e emaranhados corredores e cruzamentos.

«É um verdadeiro labirinto», pensou Jaime. «E provavelmente só há um ou dois caminhos direitos através dele e perdemos aquele que devíamos ter seguido. Deus sabe quanto tempo teremos de andar por aqui!»

‑ Onde estará o João? ‑ perguntou Maria da Luz ansiosamente enquanto percorriam os curiosos corredores coleantes do labirinto. ‑ Oxalá que ele esteja bem.

 

Onde estava o João? Tinha ido à procura da Didi, ouvira‑a a lamuriar no subterrâneo do templo, pousada na escada de caracol de pedra que conduzia à coluna quebrada. Ele chamou‑a imperiosamente.

‑ Didi! Que estás aí a fazer? Porque não vieste connosco, idiota! Tive de andar todo este caminho para te procurar!

A Didi estava farta de estar debaixo do chão. Queria

voltar para a luz do Sol. Queria também beber e parecia não haver água naqueles subterrâneos.

- Didi. Anda daí. Quero voltar para junto dos outros ‑ disse João.

«Chama o médico», fez a Didi, abrindo as asas. «A Lena constipou‑se, chama o médico.»

‑ Não sejas maçadora ‑ disse João, exasperado, e foi buscar a Didi. Ela voou para cima e pôs a cabeça de banda. Podia vê‑la com a luz da lanterna e estava furiosa.

‑ Estás a portar‑te muito mal ‑ ralhou o rapaz. - Desce daí e põe‑te no meu ombro, peste!

«Lena má, chama o médico», palrou a Didi, que parecia não se lembrar de outra coisa senão do médico. Subiu mais alguns degraus. João teve de a seguir. Maldita Didi! Logo havia de se portar assim exactamente quando ele queria ir ter com os outros.

Foi atrás do animal e ele sempre a subir. Finalmente desapareceu.

João berrou pelos degraus de pedra, furioso. ‑ Espera que eu já te apanho, minha peste! A brincar comigo desta maneira! Pela última vez, anda daí para baixo!

Chegou‑lhe aos ouvidos uma voz trocista: «Limpa os pés, não espirres, o doutor vai aos pulinhos!»

Isto era demais para o pobre João! Subiu a toda a pressa os degraus da escada em espiral, sentindo imensa dificuldade no cimo, ao chegar ao topo da coluna partida. Por fim encontrou‑se no interior da coluna. Agora podia ver muito bem, pois o sol entrava pela coluna partida. A Didi estava empoleirada no extremo da coluna, pavoneando‑se ao sol e atenta a João, sabendo que o dono estava muito zangado.

«Ora esta!», palrou ela alto. «Ora esta!» Voou para fora do buraco e desapareceu da vista de João. Contudo, podia ainda ouvi‑la gritar; «Ora esta! Ora esta!»

Chamando intimamente os piores nomes à Didi, João conseguiu encontrar uma saliência no interior da coluna.

Passou pela abertura e saltou para o ar livre, procurando a Didi.

Não muito longe, lá estava ela, empoleirada numa árvore, olhando pelo monte abaixo. «Ora esta!», gritou ela com voz aguda, e depois começou a dar gargalhadas. João correu furioso, para a árvore, mas repentinamente parou. Vinha alguém a subir a colina, alguém que lhe era familiar, espantosamente familiar! Alguém com os dentes muito espetados para a frente e com um queixo que mal se via!

‑ Luciano! ‑ exclamou João, demasiado admirado para poder mover‑se. Era Luciano. Não admirava que a Didi tivesse começado com aquela série de «Ora esta». Luciano parou a olhar para João como se não pudesse acreditar no que via.

‑ Ora esta! ‑ exclamou ele. ‑ Ora esta!

‑ Olá! ‑ disse João com voz quase sumida. ‑ Aa... que diabo andas aqui a fazer?

‑ Bem, pergunto‑te o mesmo‑respondeu Luciano.‑ Que coisa extraordinária! Palavra! Até custa a acreditar! Vim só hoje. Está cá o meu tio, sabe Deus por quê! Não sei bem quando é que ele veio. Seja como for, ele veio para cá e mandou buscar outro gasolina, os homens e os mantimentos de que precisava, e eu pensei vir também. O Estrela dos Mares está imobilizado, como sabes, e eu estava maçadíssimo. Suponho que ele anda por aí à procura de algumas antiguidades, ou coisa parecida.

João ouviu tudo isto em silêncio. Olá! Então o Sr. Eppy também por ali andava, não é verdade? Afinal também estava interessado na pista. João pensou rapidamente. Que pena ter encontrado o Luciano! Agora o rapaz ia dizer ao Sr. Eppy.

‑ João, que estás aqui a fazer? Realmente deves dizer‑me!‑continuou Luciano insistentemente.‑ É extraordinário de mais. E a Didi também! Onde estão os outros?

‑ Por que haviam eles de cá estar? ‑ respondeu João. Ele nada queria contar a Luciano, nada a respeito dos companheiros, ou onde eles estavam, ou como chegar até eles. Isso não podia ser. Pensou muito, mas não lhe surgiu qualquer ideia que lhe parecesse boa.. A única coisa que lhe interessava era meter‑se pela coluna dentro, descer a escada de caracol até aos subterrâneos e avisar Jaime, que havia de saber qual o melhor caminho a tomar.

Como havia de livrar‑se de Luciano? Este não parecia disposto a largá‑lo. Bolas, bolas, bolas! Agora lá vinha o Sr. Eppy a subir a colina, com mais três homens!

O Sr. Eppy ficou sem fala, de surpresa, quando avistou João com a Didi. Estacou a olhá‑lo através dos seus óculos escuros. Tirou‑os, limpou‑os, e estava para os pôr outra vez quando Luciano começou com uma das suas habituais séries de exclamações.

‑ Oh, meu Deus! Ora esta! Nem pode acreditar, não é verdade, tio? Nem eu. É mesmo o João e a Didi, a catatua, também.

Durante um breve momento João pensou em correr atrás do pássaro, fugir dos homens surpreendidos e esconder‑se em qualquer lado até conseguir chegar junto de Jaime e avisá‑lo.

Mas não houve tempo. A um gesto do Sr. Eppy os três homens que o acompanhavam colocaram‑se atrás de João. Depois o Sr. Eppy aproximou‑se e ficou em frente dele.

‑ Que diabo andas aqui a fazer, não és capaz de me dizer? ‑ perguntou ele num tom tão especial e ameaçador que deixou João espantado e aterrado. ‑ Onde estão os outros?

‑ Viemos fazer umas explorações ‑ disse por fim João. ‑ Aí está. Toda a gente pode vir explorar estas ilhas. As máquinas do Estrela dos Mares avariaram‑se e disseram aos passageiros que podiam alugar gasolinas para passear nas ilhas.

‑ Mas porque vieram para esta? ‑ perguntou o Sr. Eppy, com voz ainda feroz. Luciano respondeu por ele inesperadamente.

‑ Oh, tio! Julgo que devem ter vindo à procura do tesouro de que o tio me falou.

‑ Cala a boca, idiota ‑ vociferou o Sr. Eppy quase a bater no pobre Luciano. ‑ E quanto a ti ‑ disse, voltando‑se novamente para João ‑ como te atreves a passear pela minha ilha?

‑ Não é sua ‑ retorquiu João.

‑ É sim. Acabei de a comprar! ‑ disse o Sr. Eppy. ‑Ah, não sabias isso, mas ficas agora a sabê‑lo.

 

         NOUTRA VEZ O SR. EPPY

Sim, João sabia porque tinha o Sr. Eppy comprado a ilha. Olhou para o homem com ar infeliz, desolado. Se a ilha era do Sr. Eppy, então o tesouro também lhe devia pertencer. Parecia que a aventura tinha chegado ao fim.

‑ Sabes por que a comprei? ‑ repetiu o Sr. Eppy. ‑ Diz‑^me, rapaz.

‑Bem... suponho que o senhor queria procurar o tesouro ‑ disse João em tom abafado. ‑ Mas não o encontrará. Só viu dois pedaços do mapa, lembre‑se!

‑ Então, tu vais dizer‑me o que estava nos outros dois pedaços ‑ disse o Sr. Eppy em tom ameaçador.

Luciano estava agora com ar apavorado. ‑ Olhe, ora esta, tio ‑ começou ele. ‑ Eu acho que não devia falar dessa maneira ao meu amigo João, sabe? Quero dizer...

O Sr. Eppy deu um passo atrás e deu uma valente bofetada na boca de Luciano. A mão dele fez um ruído semelhante ao de uma matraca e a Didi imitou‑o logo. Depois ralhou com o Sr. Eppy. «Patife, maroto, piegas, meu senhor!»

Luciano começou a soluçar. Levou a mão à boca e foi a cambalear para um canto. Os três homens não se moviam.

‑ É como eu trato os garotos idiotas ‑ disse o Sr. Eppy, virando‑se para João. ‑ Também vais ser idiota?

João não pronunciou palavra. O Sr. Eppy, com a cara mesmo junto da dele, assobiou‑lhe com tanta força que João deu um passo súbito para trás e tropeçou no pé de um dos três homens.

‑ Onde estão os outros? ‑ perguntou o Sr. Eppy, mesmo junto da cara de João. ‑ Também cá devem estar. Ontem mandei embora o vosso barco. Ameacei o homem de o prender por desembarcar gente na minha ilha!

‑ Oh! Então foi por isso que o Andros se foi embora! ‑ exclamou João, desolado. ‑ Que coisa estúpida o senhor fez! Não pensou que ele pode voltar com auxílio?

‑ Não volta ‑disse o Sr. Eppy. ‑ Ele sabe que o meto na cadeia se abrir a boca. Não, não, sei bem o que estava a fazer. Quando vi ali o vosso barco, calculei logo que vocês e esse camarada estavam aqui a meter o nariz. Já ouvi falar nele! Mas esta ilha é minha! Tudo o que há nela é meu!

‑ Está bem, está bem ‑ respondeu João. ‑ Mas para que mandou embora o barco sem nós? Porque não nos mandou a nós também? Se nos tivesse dito que a ilha era sua, eu sei que o senhor está sempre a comprar e a vender ilhas, nós não teríamos desembarcado sem licença.

‑ Eu queria‑os cá ‑ disse o Sr. Eppy. ‑ Vocês têm o plano, não têm? Não ficou no barco, pois não? Ah. vocês não podiam deixar de trazer uma coisa tão preciosa convosco!

João calava‑se. Claro, era por isso que o Sr. Eppy tinha mandado o barco embora sem eles; ele pretendia apanhar o plano. E, ao pensar nisso, João pensou noutra coisa de endoidecer.

Trazia o plano consigo, a cópia. Tinha‑o examinado com o Jaime, debaixo do chão, e não o havia entregado! Supondo que o Sr. Eppy o revistava! Com certeza que o encontrava. Como havia de o destruir antes de ser revistado?

‑ Foste tu, segundo julgo, que encontraste ontem o rapazito da quinta, e hoje também, e ficaste com a comida que eu tinha encomendado ‑ disse o Sr. Eppy. ‑ Uma coisa muito extraordinária para se fazer. Não me agradam coisas dessas, aborrecem‑me.

‑ Bem, santo Deus, como havíamos nós de adivinhar que a comida era para o senhor quando não sabíamos que estava aqui e não podíamos compreender uma palavra do que o rapaz dizia? ‑ gritou João. ‑ O vosso barco não estava no embarcadouro. Não sabíamos que estava mais alguém a visitar a ilha.

‑ Vim pelo outro embarcadouro‑disse o Sr. Eppy.‑ Mas não lhes digo onde é. Não, pelo menos sem que me indiques onde estão os outros, e depois, quando eu tiver o plano, talvez eu diga, talvez vos liberte desta ilha, a vocês todos que vieram meter o nariz naquilo que me pertence.

‑ VOcê está doido ‑ disse João, espavorido. ‑ Nós não viemos meter o nariz. O Jaime seria o primeiro a dizer para nos irmos embora se soubesse que o senhor tinha comprado a ilha.

‑ Onde estão os outros? ‑ berrou subitamente o Sr. Eppy.

‑ Andam por aí ‑ disse João indiferente. ‑ Porque não os procura? E não me grite dessa maneira. Eu não sou o Luciano.

‑ Esse tal Jaime tem o plano? ‑ perguntou o Sr. Eppy, com voz cada vez mais irritada.

‑ Porque não o procura e não lhe pergunta? ‑ disse João. ‑ Chame‑o! Veja se ele lhe responde! Se eu estou aqui, porque não há‑de ele também estar?

O Sr. Eppy deu de repente um tal murro no ouvido de João que o rapaz nem mesmo teve tempo de recuar. A Didi por pouco que também foi atingida pelo soco, mas levantou voo mesmo a tempo.

Caiu sobre o homem e deu‑lhe uma tal bicada que ele gritou de dor.

João disfarçou um sorriso. Foi bem feito! Querida Didi! A catatua fugiu então para uma árvore alta e empoleirou‑se num ramo, descompondo o homem.

«Patife, Maroto! Grrrrr! Vai para a cama, vai ao médico, vai para a doninha!»

O Sr. Eppy deu uma ordem seca aos homens que permaneciam silenciosos por trás de João. Num abrir e fechar de olhos agarraram‑no pelos braços e deitaram‑no no chão. Depois, com mão hábil, um dos homens revistou‑o. Tirou logo o plano.

O Sr. Eppy agarrou‑o. João podia bem imaginar como os seus olhos brilhavam por trás dos óculos escuros!

‑ Ora então! Eras tu quem o tinha!‑disse o Sr. Eppy, desdobrando‑o e vendo que este não era o original. Olhou para ele atentamente. ‑ Que é isto? Está desenhado por alguém que viu o outro. Foi desenhado para vocês? Foi decifrado e traduzido?

‑ Veja lá se descobre ‑ disse João ainda estendido no chão. Esperava apanhar um pontapé ou um murro, mas o Sr. Eppy estudava tão atentamente o plano copiado que não se manifestou. João lembrou‑se de que o homem tinha apenas visto duas partes do mapa, o suficiente para saber para que ilha devia ir, e que havia lá um tesouro; agora devia estar a estudar as outras partes ansiosamente.

‑ Dois Dedos ‑ murmurou ele. Depois olhou para João. ‑ Dois Dedos ‑ repetiu. ‑ Isto estava no pedaço que eu vi, e eu encontrei o Rochedo dos Dois Dedos, mas não achei qualquer passagem.

‑ Ah, então a pilha velha que encontrámos na caverna era sua, suponho ‑ disse o João, levantando‑se. ‑ Ficámos a pensar de quem seria.

O Sr. Eppy não respondeu nem parecia sequer ouvi‑lo. Estudava novamente o mapa. Murmurava qualquer coisa para consigo. «Dois Dedos, Deusa, Túmulo, Pássaro, Sino, Labirinto, Catacumba, foi este o caminho que eles seguiram. Todo inteiro!» Depois começou a falar grego, em voz baixa, e o João já não o podia compreender.

Luciano tinha ainda a mão na boca, com a cara cheia de lágrimas. A Didi estava no chão ao lado dele a desatar‑lhe os atacadores dos sapatos com o bico. «Ora esta!»

‑ Chegaram a descobrir o caminho? ‑ perguntou o Sr. Eppy.

‑ Qual caminho? ‑ perguntou João inocentemente.

‑ Bolas! O caminho para a câmara do tesouro! ‑ exclamou o Sr. Eppy.

«Bolas!», berrou logo a Didi. «Bolas!»

‑ Eu torço o pescoço àquele pássaro ‑ ameaçou o Sr. Eppy. ‑ Responde à minha pergunta, rapaz.

‑ Não. Não encontrámos o caminho ‑ disse João, sentindo‑se muito contente por terem seguido pelo caminho errado quando procuravam a pista! Contudo, perguntava a si próprio se o Jaime e os outros teriam na sua ausência descoberto o verdadeiro caminho. Deviam estar a pensar no que lhe teria acontecido. Desejou do fundo do coração que não se lembrassem de vir pela coluna e de sair cá para fora. Se o fizessem seriam aprisionados pelo Sr. Eppy e pelos seus homens, e o Jaime teria grande dificuldade em manter segredo.

De facto, agora que o Sr. Eppy tinha o plano, não servia de muito mantê‑lo.

«Uma vez que ele descubra o caminho pela coluna quebrada, o tesouro está-lhe nas mãos!», pensou João. Ainda bem que o Luciano não me viu sair dela. A minha esperança é que os outros não apareçam subitamente. Mas tenho a certeza de que em breve o farão!

Mas não, e pela simples razão de que se tinham perdido no labirinto! Andavam ainda a vaguear pelos corredores, cada vez mais ansiosos. Tinham‑se perdido de João e eles próprios tinham‑se desnorteado.

‑ Este horrível labirinto! ‑ exclamou Dina, desesperada. ‑ Olhe, Jaime. Tenho a certeza de que já estivemos antes neste corredor. Lembro‑me da maneira como esta horrível pedra está saída; bati com o cotovelo da última vez, e desta vez também. Tenho a certeza de que é a mesma.

‑ Andamos sempre à roda e para trás e para diante e Deus sabe se estaremos próximo do subterrâneo ou da catacumba! ‑ resmungou Filipe.

Jaime estava aflitíssimo. Parou para pensar um momento, tentando em vão encontrar a direcção. Era difícil debaixo da terra! Partiram novamente e em breve chegaram a uma bifurcação.

‑ Bem ‑ disse ele. ‑ Acho que devemos seguir agora pela direita. Pode ser um daqueles lugares, em que tínhamos de virar à direita. Portanto, confiem! Venham!

Seguiram‑no; Maria da Luz ia apavorada. Atingiram outra bifurcação e viraram também à direita, DepoiS chegaram a um ponto em que o corredor se abria em quatro. Tornaram outra vez pela direita. Jaime sentia‑se mais contente. Talvez agora estivessem no bom caminho. Não encontraram mais becos sem saída que os obrigasse a voltar para trás como anteriormente.

‑ Ah! Cá está a bifurcação. Bem, vamos outra vez para a direita!

O corredor acabava amplamente num lanço de escadas que descia. Jaime levantou bem alto a lanterna e espreitou para os degraus.

‑ Finalmente encontrámos o caminho! ‑ exclamou.‑ Isto devem ser as catacumbas, as cavernas e os corredores subterrâneos todos juntos que, outrora, eram usados como esconderijos, sepulturas e sabe Deus que mais!

‑ Oh, Jaime, realmente já chegámos? ‑ interrogou Maria da Luz toda contente. ‑ Pensei que estávamos perdidos para sempre. Temos de descer as escadas?

‑ Temos ‑ disse Jaime. ‑ Eu vou primeiro. Venham. Desceu e os outros seguiram‑no cuidadosamente. Havia

cerca de trinta degraus e parecia aos garotos que iam descer até às profundezas da Terra. No fundo viram um espaço estranho que se estendia na escuridão. Havia filas de prateleiras nas paredes, nichos abertos nas rochas, lugares vazios que parecia terem sido usados para armazenar coisas ou para as pessoas se acomodarem e dormirem.

Chegaram a um ponto onde havia um buraco no chão. Jaime aproximou o archote para o iluminar. Era um alçapão e havia degraus abertos na rocha. ‑ Eu vou descer ‑disse Jaime. ‑ Tenho cá um palpite que é este o lugar!

Desapareceu no alçapão com o seu archote e pouco depois ouviram a voz dele, entusiasmada e forte.

‑ Cá está! É a câmara do tesouro, e ele ainda cá se encontra!

 

         TESOURO E IMPOSTURA

As três crianças e o macaco quase caíram no alçapão com a pressa. Passaram a lanterna a Jaime, e com a luz dela e a do archote, olharam surpreendidos por toda a câmara do tesouro.

Era perfeitamente circular, como se tivesse sido cavada à máquina na rocha, embora realmente, claro, tivesse sido feita à mão. Aos montes, talvez empilhados à pressa, estavam barris, caixotes, alguns deles abertos, com o conteúdo espalhado, e arcas com fechos de bronze.

Saíam deles, misturadas, as coisas mais estranhas: correntes de qualquer metal cravejadas de pedras preciosas, broches, braceletes, jóias, pentes para o cabelo feitos possivelmente de ouro e cravejados de pequenas pedras, belos vasos de metal, talvez ouro, talvez bronze, mas sujos de mais para se poder distinguir.

Punhais maravilhosamente cinzelados estavam num canto, e uma espécie de armaduras no outro; tinham caído das arcas e dos caixotes tombados, ou possivelmente saltado deles quando atirados pelo alçapão há muito, muito tempo.

Havia estátuas quebradas e objectos que pareciam copos e taças e outras coisas cuja utilidade as crianças desconheciam.

‑ Bem, bem, bem ‑ disse Jaime tão emocionado como os pequenos. ‑ Mas que tesouro! Deve ser o tesouro de Andra; nunca o saberemos na realidade. Mas quer seja, quer não, vale com certeza metade de um reino por causa da sua provecta idade. Olhem para este punhal, deve ter centenas de anos, e está perfeitamente conservado aqui em baixo, nesta atmosfera seca. Julgo que só nos museus é que podem agora encontrar‑se coisas destas.

‑ Jaime! É estupendo! ‑ exclamou Filipe com os olhos a brilhar à luz da lanterna, enquanto apanhava um objecto precioso, depois outro, tudo maravilhosamente modelado e esculpido.

‑ Suponho que coisas como vestidos, casacos e sapatos se desfizeram ‑ disse Dina, cheia de pena. ‑ Gostaria de me vestir com eles. ‑ Oh, Jaime, encontrámo‑lo, na verdade!

‑ Quem me dera que o João cá estivesse ‑ exclamou Maria da Luz com voz chorosa. ‑ Gostaria tanto! Onde estará ele, Jaime?

‑ Penso que lhe custou muito a encontrar a Didi e depois não se atreveu a vir ter connosco sozinho ‑ explicou Jaime.

‑ Eu já lhes digo o que havemos de fazer: vamos buscá‑lo para ele ver o maior tesouro do mundo!

‑ Mas saberemos voltar para aqui? ‑ duvidou Filipe. Jaime também tinha muitas dúvidas. O seu archote estava a apagar‑se e ele estava certo de que o petróleo da lanterna também não havia de durar muito mais tempo. Era necessário iniciar o caminho de regresso, encontrar o João e também comer qualquer coisa! A excitação tinha‑os impelido a todos, mas agora sentiam‑se cheios de fome.

‑ Se conseguirmos sair daqui depressa e encontrar o João, comeremos ‑ observou Jaime. ‑ Depois, se a lanterna dele estiver em condições, podemos utilizá‑la para voltar aqui. Mas, desta vez, havemos de ter o juízo de marcar as paredes por onde vamos seguindo. Realmente acho que podíamos encontrar o nosso caminho se fôssemos sempre pela direita. Devemos ter‑nos enganado numa das bifurcações.

Tornaram a sair do alçapão, deixando atrás de si o extraordinário esconderijo que era a estranha câmara do tesouro! Que idade teria? Alguém mais teria visto aquelas preciosidades desde que as tinham posto ali?

Encontraram‑se outra vez nas catacumbas. Era fácil regressar ao íngreme lanço das escadas. Subiram para o labirinto e começaram a caminhar pelos corredores. ‑ Agora temos de seguir sempre pela esquerda, sempre pela esquerda ‑ aconselhou Jaime. ‑ Se assim fizermos iremos perfeitamente.

Mas não; mais uma vez se perderam e começaram outra vez a andar à roda sem nunca mais acabar, para trás e para diante naquele labirinto subterrâneo, de endoidecer. Maria da Luz quase chorava de cansaço.

Durante todo este tempo, o Micky tinha‑se conservado sossegadamente no ombro do Filipe, metendo a cabeça nos sítios escuros. Também estava cansado daquela estranha caminhada nas trevas. Queria apanhar‑se ao ar livre, queria comer e, mais do que isso, queria beber.

Subitamente saltou do ombro de Filipe para o chão do corredor. Começou a caminhar sozinho. Filipe chamou‑o.

‑ Eh, lá, ó Micky, Micky! Anda cá! Não queremos que te percas também!

Micky começou a correr pelo chão fora com Filipe atrás dele. Jaime chamou Filipe.

‑ Deixa‑o, Filipe! Julgo que ele deve saber por onde é a saída. Os animais têm um estranho sentido de orientação, sabes? Uma espécie de faro. Pode ser que ele nos conduza mesmo à coluna quebrada!

Micky não sabia o que Jaime dizia, mas parecia que adivinhava. Claro que sabia o caminho! Com certeza que o seu instinto lhe indicava claramente qual a direcção a seguir, para a esquerda, para a esquerda sem nenhum engano idiota como faziam os seres humanos. Bem... ele, Micky, saberia muito bem conduzi‑los até aos subterrâneos em qualquer altura se eles lhe tivessem dito que queriam lá ir!

‑ Bem, cá estamos outra vez no subterrâneo! ‑ exclamou Filipe com ar reconhecido, quando, num breve espaço de tempo, na verdade, eles encontraram o enorme subterrâneo do templo. Maria da Luz ficou tão emocionada que começou a chorar baixinho.

Ninguém a podia ver. Limpou as lágrimas), depois dei xou de chorar, sentindo‑se bastante envergonhada. Agarrou na mão de Jaime. Ele fez‑lhe uma festinha como a reconfortá‑la.

‑ Agora já estamos a salvo ‑ disse ele. ‑ Achámos o tesouro e encontrámos o caminho de regresso; vamos procurar o João. Como não o ouvimos nem vimos julgo que deve estar lá fora à nossa espera!

 

João estava ainda no claustro com o Sr. Eppy, Luciano e os três homens. Algum tempo mais se passara bastante desagradável para o rapaz. O Sr. Eppy estivera às voltas com ele, tentando descobrir onde estavam os outros ou se João conhecia o caminho para o tesouro.

Ameaçara João, esbofeteara‑o várias vezes, e Luciano também, quando este tentara ir em auxílio de João. O facto surpreendera João, pois tinha sempre considerado que ele era um pobre palerma. Olhou para Luciano com gratidão.

‑ Obrigado, Luciano ‑ disse ele. ‑Mas não te metas, meu caro, senão dão cabo de ti. Eu cá me arranjo. O teu tio receberá a recompensa dos maus tratos que me está a dar, não tenhas dúvidas e não te aflijas!

João começara a sentir muita fome. Os outros também com certeza, porque o Sr. Eppy mudou subitamente de assunto e começou a perguntar a João onde tinham metido a comida que lhes tinha trazido o garoto da quinta. João lembrava‑se perfeitamente do lugar onde ela estava, dentro da coluna partida, no último degrau, onde começava a escada de pedra... mas, como havia de dizer‑lhe isso? Assim descobriria todo o segredo!

Portanto, calou‑se, abanando a cabeça às perguntas exasperadas do Sr. Eppy, sentindo cada vez mais fome, e agora já bastante em cuidado por causa dos outros. Onde diabo estariam eles? O Sol já estava a pôr‑se e dentro em pouco seria noite.

Nessa altura a Didi começou a palrar com grande excitação. Afastou‑se de João e voou para a borda do buraco da coluna partida, espreitando lá para baixo. João mordeu os lábios. «Oh, Didi, Didi, não deites tudo a perder!» ‑ pensou.

Didi tinha dado pela aproximação dos outros, ouvido a voz grossa de Jaime, enquanto ele subia a escada de caracol, e também a voz aguda de Maria da Luz, atrás dele. Tinha ido recebê‑los.

‑ Didi! ‑ gritou João. ‑ Anda cá.

«Fecha a porta, fecha a porta, limpa os pés, pede perdão», berrou a Didi, toda excitada, com a cabeça metida na coluna.

Depois ouviu‑se lá dentro também uma voz que a chamava.

‑ Olá, Didi, minha velha! Então, estás aí! Onde está o João?

Era a alegre voz de Jaime.

O Sr. Eppy prestou logo atenção. Deu uma ordem rápida aos seus três homens e eles correram para a coluna, esperando. João deu um grito.

‑ Cuidado, Jaime! Perigo! Cuidado!

Houve silêncio dentro da coluna. Depois ouviu‑se outra vez a voz de Jaime.

‑ Que aconteceu?

‑ O Sr. Epp... ‑ começou João, mas imediatamente a pesada e rude mão do Sr. Eppy tapou‑lhe a boca.

Jaime gritou novamente:

‑ Que aconteceu?

Como não obtivesse resposta, apareceu no buraco da coluna e içou‑se para a sua beira. Os homens estavam do outro lado, escondidos, à espera de saltar.

Jaime viu que o Sr. Eppy estava agarrado ao João e saltou para fora da coluna quebrada. Imediatamente os três homens se lançaram sobre ele e atiraram‑no ao chão.

Um sentou‑se‑lhe em cima da cabeça para que não gritasse. João guinchava debaixo da mão do Sr. Eppy, dando pontapés e tentando mordê‑lo, mas o homem era na verdade muito forte.

Depois apareceu Filipe no extremo da coluna sem perceber o que tinha acontecido a Jaime; quando o viu assim maltratado saltou para o defender. O Sr. Eppy deu uma ordem e os homens soltaram Jaime. Ele levantou‑se logo, apalpando o nariz e sem saber se lhe tinham partido algum dente!

‑ Que diabo quer dizer tudo isto? ‑ começou ele. Mas, antes que pudesse continuar, ouviu‑se dentro da coluna um grito. Era Maria da Luz.

‑ Jaime, Jaime! Que aconteceu? Podemos sair?

Jaime pôs‑se a pensar. ‑ Vou ajudar as garotas a sair ‑ disse ele ao Sr. Eppy, que fez um sinal de concordância, e em breve as duas raparigas e o Micky, todo espavorido, estavam no claustro com Filipe, João e Jaime .

‑ Que aconteceu? ‑ perguntou Maria da Luz. ‑ Oh, estou tão contente por te ver, João! Estava terrivelmente preocupada por tua causa. Santo Deus, está ali o Luciano!

‑ Ora esta! ‑ disse Luciano, tentando dar naturalidade às coisas. ‑ Imaginem, encontrá‑los aqui!

O Sr. Eppy disse qualquer coisa irritada em grego e o pobre Luciano perdeu outra vez a coragem. Então, o Sr. Eppy virou‑se para Jaime, que o olhava de revés, com ar sinistro. Jaime estava furioso com o nariz ferido a inchar‑lhe imenso.

‑ Olhe lá, Eppy, ou lá como diabo se chama você ‑ explodiu ele. ‑ Você vai meter‑se em grandes trabalhos. Você não pode andar para aí a passear com uma quadrilha de malandrins como estes, a proceder como gangsters. Que diabo estão aqui a fazer?

‑ Esta ilha é minha‑‑disse o Sr. Eppy, com tom de triunfo na voz. ‑ Comprei‑a. Têm de pôr‑se a andar logo que eu tenha descoberto o caminho para o tesouro com a vossa ajuda. De outro modo, mandá-los‑ei prender por entrarem na minha propriedade e tentarem roubar aquilo que me pertence.

‑ Você está doido ‑ disse Jaime, com ar de troça. ‑ Absolutamente louco. Não acredito sequer numa palavra! Só ouviu falar na ilha há um ou dois dias, e não teve tempo para a comprar. É uma história muito engraçada, mas a mim não me convence. Agora faça favor de tirar as mãos de cima de nós todos, e de ter maneiras, ou você é que vai parar à cadeia e bem depressa.

O Sr. Eppy deu uma ordem e novamente Jaime foi derrubado pelos três homens. Num instante o estenderam no chão e um dos homens atou‑lhe os pulsos e os tornozelos. Jaime era forte, mas a sua força não chegava para os três.

O Sr. Eppy segurava João pelos pulsos, de maneira que ele não podia ir em socorro de Jaime, e logo que Filipe veio a correr para o auxiliar apanhou um soco de um dos homens e rebolou pelo chão. Maria da Luz começou a chorar com medo. Luciano não fez nada. Estava num canto a chorar. A Didi e o Micky ficaram no alto de uma árvore, espantados, a observar. Que queria dizer tudo aquilo? A Didi desceu e veio dar outra bicada na orelha do Sr. Eppy, que quase deixou fugir o João, tão forte foi a dor.

Depois de atarem o Jaime, manietaram também os rapazes. ‑Não toquem nas pequenas» ‑ disse Jaime, ameaçador. ‑ Se o fizerem pagarão a vossa proeza a dobrar quando daqui sairmos.

Mas de nada valeu a ameaça. Ataram também Maria da Luz e Dina, embora não tão fortemente como os rapazes. Dina estava furiosa e Maria da Luz aterrada.

‑ E agora ‑ disse o Sr. Eppy ‑, agora vamos procurar o tesouro de Andra. O meu tesouro! Vocês só tinham o plano; eu tenho a ilha, e em breve o tesouro será meu! Muito obrigado por me mostrarem o caminho lá para baixo!

Entrou para a coluna, e os três homens seguiram‑no. Chamaram pelo Luciano e obrigaram‑no a descer mesmo atrás do tio. Ele estava assustadíssimo.

‑ Bem! ‑ disse Jaime. ‑ Que patifes! Poderemos libertar‑nos enquanto eles estão lá em baixo? É a nossa única possibilidade.

 

         PRISIONEIROS

Depois de desaparecer o último homem dentro da coluna Jaime falou então.

‑ Bem, diabos me levem se tornar a olhar para outro mapa de tesouros ou se lhes der a vocês, rapazes, mais alguma vez ouvidos! É fatal. Metemo‑nos logo em trabalhos. João, Filipe, vejam lá se conseguem soltar as cordas.

‑ Tenho tentado ‑ disse Filipe, e João disse o mesmo.

‑ Aqueles animais sabem muito bem fazer nós. A corda está a comer‑me os punhos de tal maneira que mal posso mexer as mãos.

Todos tinham as mãos atadas atrás das costas e era realmente impossível libertá‑las. Jaime foi rolando até chegar junto das pequenas. Estava cheio de pena da pobre Maria da Luz. Dina era mais corajosa, mais arrapazada, mas Maria da Luz não conseguia vencer o pavor.

‑ Maria da Luz não estejas aflita ‑ animou‑a Jaime, chegando ao pé dela. ‑ Vamos pensar em descobrir um processo maravilhoso de nos livrarmos destes patifes.

‑ Oxalá se percam no labirinto ‑ disse João, furioso, lutando ainda com a corda que lhe atava os pulsos.

‑ Talvez se percam ‑ disse Jaime. ‑ Seja como for, estarão muito tempo ausentes. Poderemos soltar‑nos antes que regressem.

‑ Logo que me vir livre, a primeira coisa que faço é saltar para dentro da coluna e tirar alguma comida que lá pusemos ‑ afirmou João. ‑ Isto é, se aqueles brutos nos tiverem deixado alguma! Aposto que levaram a maior parte consigo!

Jaime pensava lá para consigo que a deveriam ter levado, mas não o disse. Desistiu de tentar soltar a corda que lhe atava os pulsos. Só servia para lhe cortar a carne implacavelmente.

Olhou à volta para ver se encontrava alguma rocha afiada em que pudesse esfregar as cordas. Viu uma e rebolou‑se para lá. Mas como tinha as mãos atrás das costas não conseguiu ver o que estava a fazer e cortou os dedos até fazer sangue. Desistiu.

A Didi estava em cima da árvore, macambúzia. Todo aquele gritar e lutar tinha‑a assustado. Baixou a cabeça para olhar para João e achou que era seguro ir para junto dele. Desceu e foi pôr‑se‑lhe em cima da barriga.

«Chamem o médico», disse ela, com a cabeça de lado. «Chame o médico, meu senhor.»

‑ Boa ideia, Didi ‑ disse João, tentando rir. ‑ Diz‑lhe que venha depressa! Vai já telefonar‑lhe!

A Didi imitou imediatamente a campainha de um telefone. Era um som estranho naquele velho claustro arruinado! Até Maria da Luz deu uma gargalhadinha.

«Está lá! Está lá?», fez a Didi, contente com a atenção que lhe davam. «Está lá?»

‑ Agora está a telefonar ‑ disse João, rindo. ‑ Querida Didi. Já apanhaste o médico? Diz‑lhe que estamos todos com um grande ataque de eppyite.

Micky saltou da árvore para se juntar à brincadeira. Também ele se tinha assustado imenso, mas agora que todos estavam a rir e a conversar, e que os homens barulhentos tinham desaparecido, sentia‑se mais seguro. Foi para cima de Filipe e tentou acomodar‑se no seu ombro. Filipe estava direito com as mãos atadas atrás das costas.

‑ Que pena não te poder pegar, meu velho, e acarinhar‑te depois do teu medo! ‑ disse o rapaz. ‑ Mas as minhas mãos estão atadas. Sim, está bem, eu ainda as tenho. Vai procurá‑las. Estão cá atrás.

Micky estava ansioso por ser embalado mas não via braços que lhe pegassem!

Foi para trás de Filipe investigar. Que tinha o rapaz feito aos seus braços e às suas mãos? Ah, estavam ali atrás. Micky puxou pelas mãos de Filipe com as suas patinhas. Queria ser embalado e acarinhado.

‑ Tenho muita pena, Micky, mas nada há a fazer ‑ disse Filipe. Olhou para os outros e riu. ‑ O Micky não pode compreender porque não uso eu as minhas mãos para o amimar. Está a puxar por elas.

Micky tinha descoberto a corda que atava os pulsos de Filipe. Estava intrigado. Que tinha Filipe feito com esta corda? Porque estava tão apertada à roda dos pulsos do rapaz? Micky agarrou na corda e puxou pelo nó.

Filipe pôs‑se muito quieto. ‑ Muito bem, Micky ‑ disse ele com voz carinhosa. ‑ Muito bem! Desmancha esses nós. Depois poder‑te‑ei pegar!

Toda a gente se pôs à escuta. Olharam ansiosamente Para Filipe...

‑ Então... o Micky... ele pode... fazer alguma coisa?

‑ Não sei ‑ respondeu Filipe. ‑ Ele está para aqui a esgatanhar. Vá lá, Micky. Desmancha esses nós!

Mas Micky não conseguia. As suas patinhas não tinham força suficiente para desmanchar os nós da corda atados com tanta força. Desistiu! Mas uma ideia ocorreu.

Levou a boca à corda e tentou cortá‑la com os dentes.

‑ Que estás a fazer, Micky? ‑ gritou Filipe, sentindo a boquinha molhada contra os pulsos. ‑ Bolas, Jaime, agora este diabinho está a tentar roer a corda!

Todos observavam atentamente Filipe. A sua cara mostrava tudo quanto pensava. ‑ Muito bem, Micky, morde! ‑ disse ele ‑ Querido macaquinho! Não, vai‑te embora, Didi, não te metas com o Micky!

A Didi tinha ido para junto de Filipe e estava agora atrás dele para ver o que Micky fazia. Observava‑o.

‑ Vem daí, Didi. Deixa o Micky sozinho com o seu trabalho, ‑ ordenou‑lhe João, e a Didi aproximou‑se obediente.

‑ Que tal está a portar‑se o Micky? ‑ perguntou Jaime.

‑Optimamente, penso eu ‑ respondeu Filipe, experimentando mover as mãos para ver se já estavam mais livres. ‑ Parece‑me que a corda já não está tão apertada. Vá lá, Micky.

Foi um longo trabalho, mas Micky era paciente e perseverante. Sabendo agora que estava a fazer o que o Filipe queria, continuava sempre. Jaime maravilhava‑se com a maneira como Filipe e os animais se compreendiam. Qualquer animal faria tudo por Filipe.

‑ Estão a soltar‑se ‑ exclamou Filipe. ‑ Vá lá, Micky, só mais uma ou duas mordidelas.

Na verdade, depois de mais umas tantas dentadas, a corda soltou‑se quando Filipe a puxou. Pôs as mãos já livres para a frente, gemendo.

‑ Meu Deus, como me doem! Obrigado, Micky, meu velho, fizeste um belo trabalho. Espera que as minhas mãos estejam melhores e eu faço‑te festas da cabeça até aos pés!

A corda estava ainda pendurada num dos pulsos com nós apertadíssimos. Filipe tirou‑a com a outra mão, abriu e fechou as mãos entorpecidas, e depois começou a fazer festas ao macaquinho, que, encantado por ser amimado, se instalou nos braços de Filipe com guinchinhos de satisfação.

Ninguém deu pressa a Filipe. Ninguém lhe pediu que se apressasse a desmanchar‑lhe os nós. Todos achavam que o Micky bem merecia a recompensa.

‑ Agora já chega, meu caro ‑ disse por fim Filipe. ‑ Tenho de olhar pelos outros. Vem ajudar‑me!

Filipe pôs o Micky no seu lugar usual no ombro. Procurou uma navalha na algibeira. Ainda sentia as mãos rígidas e entorpecidas, mas a circulação estava a normalizar‑se. Tirou a navalha e abriu‑a.

Cortou as cordas que estavam à volta dos tornozelos e depois pôde andar firmemente. Foi direito às raparigas.

Cortou‑lhes as cordas com a navalha. Maria da Luz agradeceu‑lhe com um murmúrio.

‑ Oh, Filipe, obrigada! Que bom! Dina, como sentes as tuas mãos?

‑ Um bocadinho duras e dormentes ‑ respondeu Dina, esfregando‑as uma na outra. ‑ Só gostava de atar o Sr. Eppy! E havia de lhe apertar as cordas com toda a força. Grande bruto! Deve ser doido!

Dentro de pouco tempo estavam todos soltos. Ao Jaime custou mais do que aos outros pôr‑se de pé porque as pernas dele tinham sido atadas ainda com mais força, assim como as mãos. Levou algum tempo a restabelecer a circulação e a princípio foi bastante doloroso.

Toda a gente festejou o Micky, e o macaquinho ficou todo contente com isso e pôs‑se a guinchar. João não tirava os olhos da Didi. Estava cheia de ciúmes e andava à espera de ocasião para dar uma valente bicada na longa cauda do Micky.

‑ Eu ato‑te se te pões com maldades, Didi ‑ avisou João e bateu‑lhe ao de leve no bico. Ela meteu a cabeça debaixo da asa e resmungou.

«Pobre Lena, pobre Lena, não espirres, assoa‑te!»

‑ É incorrigível! ‑ disse Jaime, esfregando ainda os pulsos. ‑ Bem, agora já me sinto melhor. E quanto à comida, rapaz? Vamos a ver se ainda lá está, claro.

João já ia a meio caminho da coluna. Tinha de agarrar‑se a Filipe para o ajudar a subir, porque ainda tinha os tornozelos enfraquecidos. Subiu e deixou‑se cair lá para dentro. Procurou a comida. Lá dentro agora estava escuro, pois o Sol já se tinha posto. Tacteou à sua volta e com grande contentamento encontrou pão e uma coisa que lhe Pareceu queijo. Chamou Filipe.

‑ Cuidado, Filipe. Vou atirar a comida lá para fora. Filipe esperou. Saiu o pão, queijo e um embrulho com

um género de enchido. ‑ Espera um bocadinho, parece que está aqui mais pão ‑ gritou João, e atirou‑o também.

João voltou a trepar, sorrindo. ‑ Estavam com tanta pressa de chegar ao tesouro que nem sequer pararam para comer! ‑ disse ele. ‑ Devem ter visto a comida.

‑ Jaime, acha que não é perigoso estar aqui sentado a comer ‑ perguntou Maria da Luz, ansiosa.

‑ Nada perigoso ‑ respondeu Jaime. ‑ Vou sentar‑me aqui junto da coluna e vou ter muita pena, muita, de quem sair enquanto eu aqui estiver.

 

         O QUE ACONTECEU DE NOITE

Estava a escurecer muito. O Sol já se pusera e os garotos mal se viam uns aos outros ali sentados no claustro, comendo com imensa fome.

‑ Nunca o pão com queijo me soube tão bem ‑ dizia Dina. ‑ Realmente, não me pareceu que este queijo fosse especialmente bom ontem, era um pouco adocicado, mas hoje acho‑o divino.

‑ Só porque estás com fome ‑ comentou João, dando algum do seu à Didi. ‑ É queijo cabreiro, não é, Jaime? Olhem para o Micky a devorá‑lo.

«Micky vai aos pulinhos», observou a Didi, entrando mesmo a propósito como de costume. «Um, dois, três, pula!»

‑ Idiota ‑ comentou João. ‑ Bem, Jaime, em que está a pensar?

‑ Em muitas coisas ‑ disse Jaime laconicamente. ‑ Tivemos um dia extraordinário, e estou aqui a pensar o que hei‑de fazer a tudo isto.

‑ O tesouro não era maravilhoso? ‑ observou Maria da Luz com os olhos brilhantes.

João tinha sido posto ao corrente de todas aquelas aventuras debaixo do chão, e estava muito triste por ser o único que não vira a câmara do tesouro com a sua notável colecção de riquezas. Escutara com espanto e ficara cheio de pena por não estar com eles.

‑ Quais são os seus planos, Jaime? ‑ perguntou Filipe, pensando que já podia raciocinar convenientemente outra vez, agora que estava livre e já tinha o estômago refeito.

‑ Suponho que não se pode fazer muita coisa esta noite.

‑ Não, não podemos ‑ disse Jaime. Isso é verdade. Para aventuras já chegam as de hoje. Além disso as pobres raparigas já estão quase a dormir!

E estavam. A excitação e o exercício tinham‑nas esgotado completamente.

Maria da Luz estava encostada a Dina com os olhos fechados.

‑ Bem, eu por mim estou também cheio de sono ‑ disse João. Bocejou em voz alta. ‑ Não me importava de dormir uma boa soneca!

‑ De qualquer maneira, Jaime, como havíamos de proceder mesmo que quiséssemos fazer alguma coisa esta noite? ‑ perguntou Filipe, começando também a bocejar. ‑ Não conseguiremos fugir! Andros não voltará, claro, se o Sr. Eppy o ameaçou com a prisão. Afinal não passa de um simples barqueiro! Calculo que o Sr. Eppy lhe tenha dado também bastante dinheiro para o compensar de não ter recebido dinheiro de nós.

‑ Sim, dinheiro e ameaças foi a maneira como conseguiu expulsar o Andros ‑ disse Jaime. ‑ Em todo o caso, com certeza que Andros havia de saber que o Sr. Eppy tinha aqui outro barco, talvez dois barcos, quando mandou buscar mais homens e comida. Por isso, não estaríamos totalmente desterrados pois o Sr. Eppy poder‑nos‑ia levar de regresso.

‑ Ah, pois é, os barcos dele devem estar nalgum sítio, não devem? ‑ disse Filipe, acordando. ‑ Só temos de os descobrir, Jaime, e está tudo arranjado. Não seria melhor darmos uma busca antes que os outros regressassem do subterrâneo?

‑ Não. Nada mais esta noite ‑ disse Jaime com firmeza. ‑ Já planeei fazer isso amanhã. Quando encontrarmos o barco ou os barcos do Sr. Eppy estaremos salvos, espero. Agora escutem: vou fazer sentinela nas primeiras quatro horas, e depois tu, João, depois tu, Filipe, farão sentinela de duas horas, e nessa altura já será de manhã.

‑ Mas que vamos vigiar? Vamos esperar que o querido Sr. Eppy deite a cabecinha de fora e diga «Olé!»? ‑ replicou João, rindo.

‑ Exactamente ‑ confirmou Jaime. Neste momento tinha já acendido uma das lanternas que dava uma luz baça à cena. ‑ Vocês dois, rapazes, estão cansados, não farão boa sentinela enquanto não dormirem. Podem velar por vossa vez quando eu os acordar.

‑ Está bem ‑ concordou João, encostando‑se a Filipe. ‑ Vamos deixar o passarão velho vigiar primeiro. Na verdade, parece‑me que até já estou a dormir.

‑ Que vai fazer se os outros aparecerem? ‑ perguntou Filipe, interessado. ‑ Dar‑lhes cacetadas na cabeça à medida que vão saindo?

‑ Provavelmente ‑ respondeu Jaime, acendendo o cachimbo. ‑ Não têm de preocupar‑se com isso. Boa noite! Daqui a quatro horas acordo‑te.

Os dois rapazes adormeceram antes de Jaime ter acabado a frase. O cheiro do tabaco de Jaime flutuava pelo claustro. Micky cheirou‑o a dormir e aconchegou‑se mais ao ombro de Filipe. Não gostava nada do cheiro do tabaco. A Didi estava em cima do João, com a cabeça debaixo da asa. As raparigas conservavam-se absolutamente quietas, dormindo profundamente embora num leito tão desconfortável.

Jaime apagou a lanterna. Só o seu cachimbo lançava um lampejo de vez em quando no claustro. Estava mergulhado em profundos pensamentos. Recordou todos os acontecimentos dos últimos dois dias. Meditou na afirmação que fizera o Sr. Eppy de que a ilha era dele. Pensou na outra parte da ilha onde estava o barco ou os barcos do Sr. Eppy. Imaginou como se estaria entendendo o grupo que andava lá debaixo do chão. Desejava ardentemente que estivesse absolutamente perdido no labirinto.

Fez planos para o dia seguinte. Haviam de encontrar os barcos. Seria a primeira coisa. Onde estaria situado o outro embarcadouro de que Andros tinha falado? Talvez ele fosse...

Um ruído suspendeu‑Lhe de repente os pensamentos. Pousou o cachimbo e levantou‑se silenciosamente, mesmo junto da coluna quebrada. Escutou. O ruído vinha debaixo do chão, tinha a certeza.

Bem, se era o grupo que lá vinha, tinha ali para toda a noite! Jaime pegou num grande pedaço de madeira para o qual tinha estado a olhar desde há muito, resto, possivelmente, de uma porta ou de um caixilho de janela; agora era uma bela arma!

Ficou de pé junto da coluna, escutando atentamente. Chegou‑lhe um ruído de raspar: alguém trepava a última parte da escada de pedra em espiral. O ruído parou. A pessoa estava agora evidentemente na coluna, Que estaria a fazer? Parecia que estava à procura de alguma coisa.

«A comida!», pensou Jaime, e sorriu. «Bem, desapareceu!»

Chegou‑lhes aos ouvidos um pequeno gemido, depois uma voz trémula disse muito baixo: ‑ João! Filipe! Estão aí?

«O quê? É Luciano!», pensou Jaime, pasmado. «Bem, não deve estar só!»

Escutou novamente. O gemido começou outra vez como se fosse de um cão desgraçado. Não se ouvia mais nenhuma voz, ou mais alguém a subir a escada. Jaime resolveu‑se. Trepou para a beira do buraco da coluna, acendeu a lanterna e olhou para baixo.

Luciano estava lá em baixo, com uma cara aterrorizada a olhar para cima, as faces cobertas de lágrimas. Levantou a mão como se esperasse que o Jaime lhe atirasse um soco.

‑ Luciano ‑ chamou Jaime. ‑ Que estás aí a fazer? Onde estão os outros?

‑ Não sei ‑ chorou o pobre Luciano. ‑ Só me levaram até àquele subterrâneo que fica na base destas escadas. Não quiseram que eu continuasse com eles. Disseram‑me que ficasse ali e não me mexesse até eles voltarem. Meu tio afirmou que dava cabo de mim se não me encontrasse ali à espera deles quando voltasse.

‑ E não voltaram, então? ‑ perguntou Jaime, mantendo a lanterna apontada para a cara de Luciano.

‑ Não. E já passaram algumas horas ‑ lastimava‑se Luciano. ‑ Não sei o que lhes aconteceu e tenho tanto frio e fome, e estou tão cansado e cheio de medo aqui em baixo... Não me atrevi a ter a minha pilha acesa todo o tempo com medo de gastar a carga.

Jaime acreditou no amedrontado rapaz.

‑ Anda cá para cima ‑ disse ele. ‑ Vá, dá cá a mão e pula. Vamos, Luciano, pula! Com certeza que podes pular daí!

Mas o pobre Luciano não podia. Por fim Jaime teve de entrar para a coluna e empurrá‑lo pelo buraco. Mesmo assim Luciano quase caiu. Estava num terrível estado de nervos.

Por fim, encontrou‑se a salvo no claustro e Jaime deu‑lhe pão com queijo. Caiu‑lhe em cima como se já não comesse há um mês.

De repente, ocorreu-lhe um pensamento. ‑ Mas... como se desprenderam? Quero dizer, vocês não estavam atados?

‑ Sim ‑ disse Jaime com ar soturno. ‑ Estávamos. Mas felizmente para ti libertámo‑nos, sim, todos nós; os rapazes estão além a dormir e as raparigas ao pé. Se estivéssemos ainda todos atados tu estarias ali naquela coluna toda a noite. É um pensamento nada agradável, Luciano!

‑ Não ‑ disse Luciano, estremecendo. ‑ Quem me dera nunca ter vindo para esta horrível ilha. Que vai acontecer? O senhor vai lá abaixo procurar o meu tio? Deve estar absolutamente perdido, sabe?

‑ Quanto a mim, pode continuar perdido ‑ observou Jaime. ‑ De facto até lhe vai fazer bem. Neste momento o teu tio não é homem por quem eu tenha qualquer espécie de consideração.

‑ Não. Ele é horrível ‑ concordou Luciano. ‑ Ele tinha planeado que, uma vez encontrado o tesouro, havia de deixá‑los aqui abandonados, todos vocês, e ir sozinho à procura de mais homens para virem em busca do tesouro.

‑ Lindo! Que tipo encantador! ‑ Disse Jaime. ‑ Bem, meu rapaz, é melhor dormires. E amanhã vais ajudar‑nos a remediar as patifarias do teu tio.

‑ Oh, ficaria muito, muito contente se os pudesse ajudar ‑ disse logo Luciano. ‑ Gostava na verdade. Estou do vosso lado, sabem?

‑ Sim, espero que estejas ‑ admitiu Jaime. ‑ De qualquer modo, de agora em diante terás de estar!

‑ Como poderei ajudá‑los amanhã? ‑perguntou Luciano.

‑ Levando‑nos ao ancoradouro onde estão os barcos do teu tio ‑ disse logo Jaime.

‑ Ah, está claro, se eu ao menos me lembrar onde é

‑ disse Luciano aflito. ‑ Não sou bom para fixar caminhos, sabe? Mas parece‑me que me hei‑de lembrar desse.

‑ Terás de lembrar‑te ‑ observou Jaime zangado. ‑ E agora vai dormir. Não irás para junto dos rapazes. Deixa‑te estar onde estás. E repara, se o teu precioso tio chegar durante a noite não o podes avisar. Se assim não fizeres, acontecer‑te‑á alguma coisa desagradável.

‑ Oh, eu disse‑lhe que estou agora do vosso lado ‑ protestou Luciano e instalou‑se o mais confortavelmente que pôde. ‑ Boa noite, senhor. Até amanhã!

 

         NA MANHÃ SEGUINTE

Daí a quatro horas Jaime acordou João. Em poucas palavras pô‑lo ao corrente dos pormenores da chegada de Luciano. ‑ Está sempre a dizer que está do nosso lado, mas não pode confiar‑se num piegas destes ‑ declarou ele a João. ‑ Portanto, trata de o ter debaixo de olho. Se ouvires o mais pequeno ruído debaixo do chão acorda‑me imediatamente, João!

‑ Está bem, Jaime ‑ disse João, fresco da sua bela soneca. ‑ Olhe lá, eles já há muito tempo que estão lá em baixo, não estão? Devem ter‑se perdido!

‑ Sinceramente, espero que sim!‑retorquiu Jaime.‑ Acho que não hão‑de perder‑se para sempre, por muito que isso fosse de desejar; aquele labirinto não é dos piores. Bem, vou dormir, João. Põe‑te alerta!

João ainda estava ensonado. Receava ter dificuldade em manter‑se acordado; por isso, acendeu a lanterna e pôs‑se a andar pelo claustro. Apontou a luz para Luciano. Estava a dormir tão profundamente que nem se mexeu. Filipe também dormia a sono solto e quanto às raparigas nem se lhes via um bocadinho da cara, tão abraçadas estavam uma à outra.

A Didi acompanhou João nos seus passeios pelo claustro. Sabia que tinha de estar calada, por isso andava sempre a sussurrar. Não sabia muito bem sussurrar e pôs‑se a assobiar ao ouvido de João de modo que ele não podia suportar. Tirou‑a do ombro e pousou-a num dos braços.

As suas duas horas passaram sem que nada de anormal acontecesse. Acordou Filipe. Ainda levou tempo porque o rapaz estava profundamente adormecido. Quando João o abanava para o acordar, ele virava‑se outra vez, com os olhos fechados.

João tirou um dos sapatos de Filipe e fez‑lhe cócegas na planta do pé. Isto acordou o rapaz. Sentou‑se, deu um salto e pôs‑se a olhar para a lanterna que João segurava.

‑ Quem é você... ‑ começou ele, em voz alta, e João mandou‑o logo calar.

‑ Chiu, idiota! Vais acordar os outros! Desculpa fazer‑te cócegas no pé, mas não conseguia acordar‑te. É agora a tua vez de velares.

Filipe calçou o sapato, dizendo qualquer coisa desagradável a João em voz baixa. Micky também acordou e pôs‑se a olhar muito admirado para o claustro. Tinha‑se esquecido do lugar onde estava.

João contou em voz baixa a Filipe o que se passara com Luciano. Filipe achou graça.

‑ Então, agora o Luciano está do nosso lado!‑observou ele. ‑Bem, não é mau tipo... mas é um piegas! Pobre Luciano, aposto que estava louco de pavor! Está bem, vou tomar cuidado com ele, embora na verdade ele não seja capaz de fazer coisa alguma como deve ser. E se o nosso querido Sr. Eppy passar a cabeça pelo buraco terei todo o prazer em dar‑lhe uma valente mocada.

João riu‑se. ‑ Bem, vou dormir outra vez ‑ disse ele. ‑ Boa caça, Filipe.

Os olhos de Filipe teimavam em fechar-se enquanto ali estava sentado a velar. Levantou‑se e pôs‑se a passear como tinha feito João. Seria imperdoável. Começou a pensar que horas seriam e olhou para o relógio.

Os ponteiros eram fosforecentes e mostravam‑lhe as horas. Cinco horas ou coisa parecida. Olhou para o céu a Nascente. Estava já a tingir‑se dos tons da madrugada.

Foi quase no fim das duas horas de vela de Filipe que aconteceu qualquer coisa. Nesta altura já tinha nascido o Sol e a sua luz cobria tudo, límpida, nova e bela.

Filipe estava a gozar o calor dos primeiros raios oblíquos quando ouviu um ruído.

Apurou o ouvido e o Micky começou a guinchar baixinho. ‑ Chiu! ‑ recomendou Filipe. ‑ Quero ouvir ‑ disse, e Micky calou-se logo.

O ruído repetiu‑se, um raspar de solas na pedra. «Vêm aí», pensou Filipe e correu para Jaime, que estava a dormir de cara virada para baixo sobre a erva que crescia no claustro! ‑ Jaime! Acorde! Vêm aí!

Jaime acordou logo. Deu um salto e o sono desapareceu‑lhe num instante. João também acordou, tal como as raparigas. Só Luciano continuava a dormir, mas ninguém o acordou.

Jaime correu para a coluna. Pegou na grande tranca de madeira que Filipe tinha. ‑ Afastem‑se ‑ disse ele às raparigas. ‑ Não conto ter muito trabalho, mas nunca se sabe. Não espero disparates do Sr. Eppy e companhia.

Postou‑se mesmo por baixo da coluna partida e escutou. Vozes chegaram até ele. Havia evidentemente alguém na coluna que tinha chegado ao cimo da escada em espiral. Jaime ouviu qualquer coisa mas não pôde compreender.

Contudo, reconheceu a voz do Sr. Eppy e segurou no pedaço de madeira com firmeza. O Sr. Eppy parou durante um bocado a ouvir alguém que o chamava do fundo da escada. Depois chamou para cima em voz baixa.

‑ Luciano! Estás aí, Luciano?

Luciano estava ali mas dormia a sono solto; por isso, claro, não respondia.

O Sr. Eppy tornou a chamar baixinho: ‑ Luciano! Jaime respondeu com voz medonha:

‑ Estou aqui eu, Jaime Cunningham, à sua espera, Sr. Eppy! No momento em que tentar sair daí dou‑lhe uma cacetada com esta arma!

Jaime bateu com a tranca de madeira na coluna com tal ruído que todos pularam violentamente e Luciano acordou.

Houve um silêncio de morte dentro da coluna. Depois ouviu‑se um ruído de raspar como se outra pessoa viesse a subir a escada. Vozes falavam muito baixo.

‑ Como se soltaram? ‑ ouviu‑se novamente a voz do Sr. Eppy. ‑ Foi o Luciano quem os soltou? Ele não está aqui.

‑ Não, não foi ‑ respondeu Jaime.

As vozes trocaram‑se outra vez. Então, o Sr. Eppy

disse, muito aflito:

‑ Sr. Cunningham, os meus homens acabam de contar‑me que encontraram o pobre do Luciano aqui em baixo gravemente ferido. Precisa de socorro. Deixe‑nos subir já!

Espantosa notícia, especialmente para Luciano, que abriu a boca de estupfacção.

Ia falar quando João lhe fez sinal para estar calado. Jaime estava a manejar a coisa!

‑ Lamento saber isso, Sr. Eppy ‑ retorquiu Jaime. ‑ Passe‑mo cá para cima, que nós trataremos dele. Mas deixe‑se estar lá em baixo. Doutra maneira não!

Realizou‑se outra conferência em voz baixa. Então, o Sr. Eppy voltou a falar.

‑ Tenho de pedir‑lhe que nos permita subir com o rapaz. Está seriamente ferido. Estou muito preocupado com ele.

‑ Nada feito. Ninguém poderá subir a não ser... o... Luciano. Passem‑no cá para cima.

Como o Luciano estava ali sentado na relva, no claustro, era completamente impossível o Sr. Eppy passá‑lo cá para cima. Maria da Luz murmurou para Dina:‑Que grande mentiroso!

Jaime começou a bater cadenciadamente com o cacete na coluna. ‑ Parece que não querem separar‑se do Luciano. ‑ gritou ele. ‑ Agora aviso‑os: se aparecer alguém no buraco da coluna está bem servido!

Bangue, bangue! Era o cacete de Jaime outra vez a Bater na coluna. O ruído não devia ser muito consolador para o Sr. Eppy.

A coragem não constituía o seu forte e era fácil calcular quais seriam os seus sentimentos lá em baixo, na escada!

‑ Poderá dar‑nos alguma coisa de comer? ‑ gritou ele, por fim.

‑ Não ‑ respondeu Jaime cruelmente. ‑ Mal chega para o nosso pequeno almoço.

A julgar pelos ruídos de raspar que podiam ouvir‑se, o Sr. Eppy e os outros tinham decidido descer outra vez a escada para conferenciar. Jaime fez um sinal a João.

‑ Distribui a comida que resta por todos. Eu fico aqui no caso destes tipos tentarem fazer alguma gracinha. Tenho a intuição de que há um ou dois revólveres entre eles, portanto, aconteça o que acontecer não os posso deixar aparecer cá em cima.

João e Filipe repartiram o resto da comida. Jaime engoliu o seu quinhão, mantendo os olhos e ouvidos alerta para qualquer movimento ou som que viesse da coluna quebrada. Mas não veio nenhum.

No fim daquela fraca refeição fez sinal aos outros para que viessem ter com ele. ‑ Escutem ‑ disse ele em voz baixa. ‑ Como vêem tenho de ficar aqui. O que têm a fazer é ir com o Luciano ver se encontram o embarcadouro onde devem encontrar‑se os barcos do Sr. Eppy. Tenham cuidado, devem lá estar homens dentro.

‑ Há dois homens com dois barcos ‑ informou Luciano. Foram notícias desapontadoras. Jaime ficou pensativo.

‑ Bem, a primeira coisa a fazer é encontrar os barcos ‑ disse Jaime. ‑Não se deixem ver. Procurem só o embarcadouro para aprendermos o caminho. Depois voltem aqui. Esperemos que esse rapaz da quinta volte com mais comida ao meio‑dia, como tem feito.

‑ Nós podíamos arranjar ‑ disse João.

‑ O nosso querido Sr. Eppy e os seus amigos também, ‑ disse Filipe a rir. ‑ Que vamos fazer depois de encontrar o cais e os barcos e voltarmos para aqui?

‑ Mandamos lá abaixo o Luciano com um recado como se fosse do tio para dizer aos homens que venham cá ‑ então escapamo‑nos e partimos nos barcos!

‑ Mas, ora esta! Vocês vão embater nas rochas!

‑ protestou logo Luciano. ‑ Vocês não podem vir a esta ilha sem um barqueiro que as conheça, Naufragarão!

Era um problema a estudar. Jaime pôs‑se outra vez a pensar.

‑ Bem, quando chegar a ocasião resolveremos. Entretanto, vão lá. Luciano, encaminha‑os.

Luciano, com ar hesitante, dirigiu‑se à rua da velha cidade destruída. Começou a descê‑la e virou para a esquerda quando chegou a meio.

‑ Parece que conheces bem o caminho ‑ disse João com ar satisfeito.

Luciano olhou para ele aflito.

‑ Não sei nada ‑ disse ele. ‑ Não tenho jeito algum para este género de coisas. Nunca consigo encontrar o caminho. Não tenho sentido de orientação. Nunca conseguirei encontrar os barcos!

 

         VISITANTES INESPERADOS

Luciano tinha toda a razão. Não sabia o caminho e não conseguia encontrar os barcos. Estava desesperado. Andava para um lado e para o outro, dirigindo‑se ao mar, mas chegando a baías rochosas onde de maneira nenhuma os barcos podiam atracar.

‑ És um monstro ‑ disse João, desgostoso. «Monstro!», imitou a Didi, contente com a palavra,

«Monstro! Chama o médico!»

Ninguém se ria nem mesmo com isto. Estavam todos terrivelmente desapontados e furiosos com o pobre Luciano. Este parecia prestes a chorar.

‑ Não tenho a culpa ‑ disse com um soluço. ‑ Se eu soubesse que isto havia de ser tão importante tinha tomado toda a atenção no caminho. Mas não sabia.

‑ Olha lá, se te pões com lamúrias meto‑te por uma toca de coelho e tapo‑a com mato ‑ cortou João, muito aborrecido. Luciano estava apavorado.

‑ Se eu pudesse lembrar‑me ‑ disse ele desoladamente.‑Mas posso dizer‑lhes isto: ninguém pode entrar ou sair destas ilhas sem um barqueiro que conheça o caminho. Há centenas de rochas mesmo por baixo de água. Mesmo um marítimo experimentado acha isto difícil. Eu sei porque muitas vezes a visitei com o meu tio.

João olhou para ele.

‑ Bem, nesse ponto acredito em ti ‑ disse ele. ‑ Eu não me importava de dirigir um barco sem um marinheiro que conhecesse o caminho. Bolas, agora estamos realmente perdidos; sem barcos, e mesmo que os tivéssemos provavelmente naufragávamos.

Uma fraca perspectiva, na verdade! Maria da Luz imaginou‑se logo e ao Sr. Eppy e aos seus amigos permanecendo anos e anos em Tamis! Deu um suspiro.

‑ Antes nunca tivesse comprado a garrafa com o barco para Filipe ‑ observou ela. ‑ Se soubesse que nos conduziria a uma aventura destas, tinha‑a deitado fora!

Regressaram à cidade. No caminho João parou e olhou para o céu.

‑ Que ruído é este? ‑ exclamou. ‑ Parece um avião. Todos pararam à procura do avião. Em breve estava

à vista, um pequeno ponto que vinha do Norte.

‑ É pena que não vejam qualquer sinal que fizéssemos ‑ disse Dina. ‑ Mesmo assim vou acenar com o meu lenço!

Tirou um pequeno lenço, com grande divertimento dos outros, e começou a agitá‑lo loucamente no ar.

‑ Pensas realmente que do avião podem ver o teu lencinho sujo e que desceriam se o vissem? ‑ perguntou Filipe.

‑ Nunca se sabe ‑ disse Dina, acenando ainda mais vigorosamente.

‑ És parva ‑ disse Filipe, e Dina deu‑lhe uma das suas mais sonoras bofetadas. Deixando‑a a acenar loucamente, os outros continuaram, não perdendo de vista o avião, que voava agora sobre a ilha. Sobrevoou‑a e depois fez um largo círculo e foi‑se embora!

‑ Viu o meu lenço! ‑ berrou Dina. ‑ Vai voltar!

‑ Não sejas tola ‑ disse Filipe. Mas, na verdade, o avião voltava e, mais, estava a descer lentamente descrevendo outro círculo sobre a ilha enquanto voava.

‑ Há além uma superfície plana. Olhem! Olhem! ‑ gritou Dina para o avião como se pensasse que a pudessem ouvir: ‑ Desçam aqui! Oh, não se vão embora!

O avião desceu ainda mais e tornou a descrever círculos. Os tripulantes deviam ter visto o planalto que Dina indicara. O avião continuou a descer. As rodas tocaram no solo, e durante uns momentos terríveis parecia que o aparelho ia afocinhar. Conseguiu, porém endireitar‑se e depois parou.

Dina olhou para os outros vermelha de excitação.

‑ Ora aí têm! Viu o meu lenço e ouviu‑me gritar! Os outros olharam encantados para o avião.

‑ Não podem ser amigos do Sr. Eppy! ‑ gritou Filipe. ‑ Deve ser alguém que mandaram à nossa procura. Venham!

Os pés voavam-lhes sobre os caminhos pedregosos. Viram sair dois homens do avião. Fizeram sinal aos pequenos e foram ter com eles.

Foram os olhos de lince de Maria da Luz que primeiro os reconheceram.

‑ É o Quim! ‑ gritou ela. ‑Quim, o amigo de Jaime. E o outro que vem com ele não é Andros, o barqueiro?

Tinha razão. Era Quim, e ao lado dele estava Andros com ar envergonhado. Quim chamou‑os.

‑ Eh lá! Eh lá! Onde está o Jaime? Estão todos salvos? Andros veio ter comigo com uma história tão aterradora que tive de vir cá para investigar!

‑ Sim, Jaime está bem ‑ gritou João, e sacudiu o braço do Quim para cima e para baixo com satisfação de o tornar a ver. ‑ Palavra que estou contente de o ver. Realmente o Andros foi‑lhe contar coisas a nosso respeito?

‑ Contou‑me uma história muito extraordinária ‑ disse Quim. ‑ Parece que esteve a escondê‑la durante um ou dois dias e depois decidiu: que era melhor contar a alguém. Quando me viu lá em baixo no cais, tentando encontrá‑los, reconheceu-me e veio ao meu encontro. Disse‑me que os tinha trazido a Tamis e os tinha aqui deixado. Depois, enquanto esperava, adormeceu.

‑ Está tudo certo ‑ disse João.

‑ Depois veio uma pessoa que o acordou de repente e disse‑lhe que não tinha o direito de estar ali e ameaçou‑o com a prisão ‑ explicou Quim. ‑ Andros respondeu que fora lá deixar um grupo de passageiros, um homem e quatro crianças, uma catatua e um macaco, e o homem enfureceu‑se com ele, disse que a ilha lhe pertencia, e que se Andros se não safasse imediatamente o mandaria prender.

‑ O Sr. Eppy, furioso, evidentemente ‑ disse João.

‑ Andros disse então que não lhe tinham pago e o tal homem meteu‑lhe dinheiro nas mãos e depois apontou‑lhe um revólver. Por isso, Andros fugiu, pensando que, como o homem devia ter um barco em qualquer parte, poderia trazer nele vocês todos. Não é isso, Andros?

‑ Eu não perceber tudo, senhor ‑ disse Andros. ‑ Homem mau aqui. Muito mau. Andros ter muita pena, senhor.

‑ Bem, agora conta lá tu ‑ disse Quim ao João. As crianças contaram a história, e ela era tão extraordinária que Quim a ouvia de boca aberta. Santo Deus, mas que história! Nunca tinha ouvido contar uma coisa destas na vida!

Em breve percebeu tudo e riu‑se ao pensar no velho Jaime pacientemente de pé junto da coluna quebrada, esperando que o Sr. Eppy ou os homens saíssem para lhes tratar da saúde.

‑ Eu não me importava de me haver com eles ‑ disse o jovem alegremente. ‑ Zás, trás, pás... óptimo.

‑ Oh, Quim, faz‑me rir!‑observou Maria da Luz, com uma gargalhada. ‑ Pergunto a mim própria se o Jaime terá estado a dar‑lhes sopa de pau.

‑ Bem, pelo menos, tenho esperança de que seja o Sr. Eppy quem tenha comido a sopa, para não falar no arroz ‑ comentou Quim, rindo. ‑ Bem... então, agora que vamos fazer?

‑ Temos de encontrar o outro cais e os barcos ‑ alvitrou João. ‑ É a primeira coisa a fazer. Depois temos de livrar‑nos dos dois homens, os que estão a bordo, e de conseguir partir com os barcos a salvo sem embater com eles nas rochas.

‑ Bem, o Andros deve saber onde é o cais e de resto eu também sei ‑ disse Quim. ‑ Vi‑o do avião, e vi também lá os barcos. O Andros e eu cá nos arranjamos com os homens.

‑ Não, nós pensámos numa maneira melhor de nos livrarmos deles ‑ disse Filipe, e contou‑lhe o seu plano de lhes enviar o Luciano com um recado falso. Quim concordou.

‑ Sim, isso é realmente melhor. Poupa‑nos muito trabalho. Não é que eu me importasse mas não tenho muita confiança neste nosso amigo. Não tem a têmpera que deveria ter.

‑ Eu acho que deveríamos ir ter com o Jaime antes de fazermos qualquer coisa ‑ disse João ‑ e não precisamos por enquanto de correr com os dois barqueiros e de os mandar ter com o velho Jaime. Não seria um plano muito bom. Venham, vamos ter com o Jaime.

Então, partiram todos, a Didi a palrar alegremente, percebendo que as crianças se sentiam agora muito mais alegres. «Senhor», fez ela para Andros: «Senhor, senhor!»

Voltaram para o claustro do templo e Jaime ficou espantado ao ver Quim.

‑ Olá! ‑ saudou ele. ‑ Bem, bem, bem, então foi o meu avião que eu vi aparecer sobre a ilha. Daqui não o pude ver descer, mas fiquei esperançado que fosses tu. Foi uma sorte encontrares os pequenos. Suponho que já te contaram todas as novidades.

‑ Sim, já ‑ volveu Quim. ‑ São uma malta de aventureiros, vocês, não são? Passou‑se alguma coisa com esses tipos que estão aí em baixo metidos na coluna?

‑ Tive apenas de dar uma cacetadazinha ou duas há pouco ‑ disse Jaime. ‑ Não na cabeça do Sr. Eppy, infelizmente, mas na de um dos companheiros, creio eu. Desde então nada mais ouvi, nem sequer um pio.

Começou a ecoar pela rua da cidade deserta acima o som de um chocalho: Dongue, dongue, dongue!

«O gato caiu no poço», gritou a Didi, lembrando‑se de repente de uma velha canção.

‑ Que diabo de chocalho é aquele? ‑ perguntou Quim, assustado. ‑ Estamos atrasados para a escola ou quê?

‑ Não seja tonto! ‑ disse Maria da Luz, rindo. ‑ É a nossa comida. Vem todos os dias regularmente a esta hora. E eu estou contente porque fiquei com fome depois do nosso pequeno almoço, tão fraquinho.

Quim ficou espantado ao ver um garoto magricela aparecer num burro com cangalhas. Jaime não largou o seu posto da coluna, mas entregou dinheiro a João para que pagasse a comida. O rapaz despejou os cestos, piscou os olhos para Quim e deu palmadinhas desajeitadas no Micky. O macaco deu‑lhe também palmadinhas, mas acertando muito melhor do que o garoto.

‑ Apre! ‑ disse o garoto, aborrecido.

«Apre», imitou a Didi. «Apre! Dongue, dongue, dongue. Aos pulos vai o apre!»

O rapaz olhou espantado para ela e trepou para o dorso do burro. Lançou à Didi uma série de imprecações que ela imitou logo, acabamdo com um dos seus tiros de pistola. O burro fugiu com medo e depois partiu a galope com o rapaz.

‑ Tu um dia dás cabo de mim, Didi ‑ disse Jaime, cansado de rir. ‑ Ora bem, passa‑nos a comida, João. Suponho que seria melhor deitarmos alguma lá para baixo, pela coluna, senão os nossos amigos morrem de fome!

Felizmente o rapaz tinha trazido uma grande quantidade de comida e, por isso, havia que chegasse para toda a gente. Jaime gritou pela coluna abaixo com voz estentórea.

‑ Se querem comer, aí vai alguma comida. Mas não tentem fazer‑se engraçadinhos, senão não recebem mais nenhuma!

Veio evidentemente alguém cá acima receber o pão, queijo e carne que Jaime lhes atirou. Também lhes deu fruta, pensando que os homens deviam estar com tanta sede como ele.

Nem se ouviu um obrigado lá de dentro da coluna, nem som algum depois de terem recebido a comida. ‑ Teriam encontrado o tesouro? ‑ disse João, mastigando com força. ‑ Quem me dera tê-lo visto! Aposto que já não o verei; se não o puder ver será a maior desilusão da minha vida.

 

         SALVAÇÃO

Enquanto comiam fizeram planos.

‑ Quim, preciso que levem as duas pequenas no avião ‑ disse Jaime. ‑ Não quero que continuem mais tempo aqui expostas ao perigo sem ser necessário. Andros, logo que nos tenhamos visto livre dos dois homens que lá estão em baixo nos dois barcos, tens de encarregar‑te do melhor barco e levar‑nos a todos!

‑O quê, Jaime? Então acha que vamos deixar um barco para que aqueles patifes fujam nele? ‑ gritou João indignado.

‑ Não, vou pedir ao Andros que tire qualquer peça do motor do outro barco, de maneira que não possa partir quando os homens quiserem ‑ disse Jaime, rindo. ‑ Penso que seria uma grande ideia deixá‑los aqui prisioneiros!, até conseguirmos fazer queixa deles e descobrirmos se o Sr. Eppy comprou a ilha ou não. Se comprou, está bem colocado, claro, e nada daquilo que dissermos será escutado com muita atenção.

‑ Está sempre a comprar e a vender ilhas ‑ afirmou Luciano. ‑ Penso que deve realmente ter comprado esta. É bem conhecido por isso.

‑ Deves ter razão ‑ admitiu Jaime. ‑ Queres vir connosco, Luciano, ou ficas para dares as boas‑vindas ao tio quando ele sair da coluna?

Não havia duas opiniões acerca do que Luciano desejava fazer. Queria ir com Jaime e com os outros. Depois de comerem sentiram‑se bastante melhor.

Quim seguiu para o avião com as duas pequenas, que se despediram de Jaime e lhe pediram que tivesse cuidado consigo.

‑ Não levantarei voo senão quando ouvir o vosso gasolina começar a andar para partir ‑ disse Quim. ‑ Adeus. Até à vista. Venham daí, meninas. O que as pessoas vão dizer quando eu aterrar convosco no aeroporto nem posso imaginar. Vocês estão sujíssimas, parecem pedintes!

Andros, Luciano, João e Filipe partiram na direcção dos barcos. Ficou decidido que só o Luciano é que iria lá, para dar o recado falso. Ele devia dizer que o tio precisava dos homens lá em cima no claustro do templo e devia também ensinar‑lhes a irem até lá. Logo que Jaime os visse aproximar, devia abandonar a coluna partida onde tinha estado de guarda e seguir para os barcos, evitando ser visto pelos dois homens.

‑ Metemo‑nos num dos barcos num abrir e fechar de olhos e pomo‑nos a andar! ‑disse João alegremente. ‑ Que arrelia para o Sr. Eppy!

Andros conduziu‑os até lá. Conhecia bem o outro cais, embora não o considerasse tão bom como aquele em que tinham ancorado. Quando chegaram perto dos barcos, Luciano avançou sozinho enquanto os outros ficavam escondidos atrás dos arbustos.

Luciano tinha medo, mas fez por disfarçar.

Dirigiu‑se para os barcos e gritou: ‑ Eh lá, onde estão vocês?

Os dois homens apareceram, Luciano começou a falar‑lhes em grego e os dois homens concordaram com um aceno afirmativo da cabeça. Saltaram para a praia e começaram a subir o monte. Luciano começou a ensinar‑lhes onde deviam ir, indicando‑lhes o caminho.

«Bem, espero que lhes indiques correctamente», pensou João, lembrando‑se como Luciano estava desorientado quando de manhã tentara encontrar o caminho para os barcos. «Esperemos que desta vez tenha tido mais cuidado ao marcar o caminho.»

Em breve os homens desapareceram. Andros correu para os barcos, escolheu o mais pequeno dos dois por lhe parecer melhor, dirigiu‑se ao outro e mexeu no motor. Tirou‑lhe uma peça, atirou‑a para o outro barco e ela caiu com um ruído seco.

Olhou para os rapazes, rindo:

‑ O barco agora não serve ‑ disse ele. ‑ Motor morto. Nós ir daqui depressa.

Todos entraram para o barco escolhido, Andros pôs o motor a trabalhar, para o experimentar.

Os rapazes pensavam se Jaime se estaria a sair bem; se teria visto os dois homens e conseguido descer até ao barco sem ser visto. Esperavam que sim.

De repente ouviram gritos e todos se levantaram no barco. Que seria?

Jaime vinha a correr para a praia a toda a velocidade. Os dois homens vinham atrás dele,, correndo também velozmente. Andros agiu com rapidez. Pôs o motor a trabalhar e disse aos dois rapazes que estendessem as mãos a Jaime logo que ele chegasse.

Muito vermelho e ofegante, Jaime chegou ao barco. Mãos ansiosas puxaram‑no para dentro e logo que ele tocou na coberta o barco partiu, com um barulho terrível do motor na baía tranquila!

Os dois homens, furiosos, saltaram logo para o outro barco a gritar. Andros riu‑se a troçar; Jaime viu esse riso e sabia o que ele significava: o outro barco estava provisoriamente incapaz.

Nem por nada o outro barco poderia andar. O motor estava morto. Os homens viram que o deviam ter avariado e levantaram‑se sacudindo as mãos ameaçadoras e berrando ininteligivelmente. João e Filipe estavam divertidíssimos, mas o pobre Luciano estava branco como a cal. ‑ Bem, cá vamos! ‑ disse Jaime, recobrando o fôlego. ‑ Bolas, escapei por pouco. Distraí‑me um pouco e os homens chegaram ao pé de mim sem eu os ver. Devem ter desconfiado de alguma ratoeira, porque, de repente, deram uma corrida para mim! Ainda bem que eu tinha perguntado ao Andros onde era o cais. Mesmo assim, quase me perdi no caminho.

‑ Nem rumores do Sr. Eppy e companhia? ‑ perguntou João. Jaime abanou a cabeça.

‑ Não, mas devem ter ouvido os gritos e espero que a esta hora já tenham saído da coluna e estejam a conferenciar. Juntar‑se‑ão aos dois homens e, então, o Sr. Eppy há‑de ter uma bela colecção de insultos para lançar aos homens que abandonaram os barcos, dando‑nos assim oportunidade de fugir. Julgo que também deve estar a pensar em muitas coisas que há‑de dizer ao Luciano por lhes ter dado aquele falso recado.

Luciano esboçou um sorriso amarelo. Ainda estava pálido.

‑ Vou apanhar uma sova mestra ‑ disse ele.

‑ Não hás‑de apanhar ‑ disse Jaime. ‑ Vou tratar disso. Vou preparar ao teu tio qualquer coisa para se entreter quando eu voltar para a ilha do aeroporto. Dentro de pouco vai ver‑se em palpos de aranha. Não me importo que ele tenha comprado a ilha ou não. É um bandido.

O som do motor de um avião atraiu‑lhes a atenção.

‑ É o avião do Quim! ‑ gritou João, pondo‑se de pé no barco e acenando. ‑ Olá, ó Quim!

O avião desceu muito baixo e a Didi deu um berro de terror. Micky escondeu a cabeça debaixo do braço de Filipe. Os rapazes alegraram‑se e gritaram.

‑ Adeus, boa sorte, Quim! Olá, meninas!

 

Cerca das seis da tarde o gasolina chegou à ilha do aeroporto. A primeira coisa que viram foi o Estrela dos Mares na doca, ainda parado e silencioso. A segunda coisa foi Quim no cais e as duas pequenas com ele! Já tinham aterrado havia muito, tinham comido e vindo depois para o cais esperar pelos outros.

‑ Fui à Polícia ‑ disse Quim. ‑ Disse ao chefe que vocês tinham uma queixa a apresentar e que fizesse o favor de não ir para casa sem falar contigo. Está enervado e aborrecido. Não acontecem coisas aqui com muita frequência!

Jaime riu-se.

‑ Bem, espero que o relatório tenha de ir para o continente para ser tratado lá... mas como o Andros é de cá e o Sr. Eppy alugou aqui os gasolinas, e possivelmente consultou aqui advogado no caso de ter comprado a ilha, é melhor falar com o chefe da Polícia desta ilha.

O chefe parecia um pássaro, embora a cara fosse inteligente e os olhos vivos e brilhantes. Falava muito bem inglês. Estava excitado com a ideia de ir receber novidades importantes.

Ouviu atentamente a espantosa história de Jaime. De vez em quando fazia algumas perguntas. Os pequenos, por sua vez, acrescentaram pormenores. Quando o funcionário ouviu falar do tesouro quase caiu da cadeira abaixo.

‑ Temos de descobrir se esse tal Sr. Eppy comprou a ilha ‑ disse ele. ‑ Eu conheço‑o; está sempre a comprar e a vender ilhas. Não gosto dele; é louco.

Depois fizeram‑se muitos telefonemas, acompanhados de muitos «Está lá?» maçadores da Didi e alguns «Meu senhor» e «um, dois, três, pular.»

Por último o homenzinho virou‑se para Jaime, com a face radiante. ‑ Paulo Eppy, na verdade, tentou comprar a ilha, mas ela não está à venda. Não é dele. Pertence ao nosso governo.

‑ Óptimo!‑disseram todos os pequenos ao mesmo tempo.

‑ Mas que sensaboria para o Sr. Eppy! ‑ disse Dina.

‑ Espero que não desapareça com parte desse tesouro único ‑ disse o chefe da polícia. ‑ Não é uma pessoa honesta!

‑ Não poderá sair de lá ‑ disse Jaime, rindo. ‑ Andros inutilizou o único gasolina que lá havia e ele não o poderá usar.

Está prisioneiro, assim como os homens que o acompanham.

‑ Bem. Penso que isto é muito bom ‑ disse o homem de cara de pássaro, com ar radiante. E, virando‑se para Jaime: ‑ Se quiser ter a amabilidade de fazer um relatório, senhor, bem pormenorizado, para eu enviar para o continente, eu ficar‑lhe‑ei muito agradecido. As crianças também devem lê‑lo e assiná‑lo. E o Andros também deve assinar a parte que se relacione com a sua actuação.

‑ Muito bem ‑ disse Jaime, levantando‑se para sair. ‑ Bem, é isso mesmo. Eu tenho tido algumas aventuras com estes quatro pequenos, mas esta bate o record. Só gostava de ter uma parte daquele tesouro!

‑Mas terá, senhor! ‑ disse o chefe, falando a sério. ‑ Tratei pessoalmente disso. ‑ O meu governo ficará muito honrado se se dignar escolher o que quiser.

‑ Eu quero um punhal trabalhado! ‑ declarou Filipe. ‑ Caramba! O que irão dizer aqueles tipos lá da escola!

‑ Anda daí ‑ disse Jaime. ‑ Vamos para bordo do Estrela dos Mares e convidamos o Quim para jantar connosco. Preciso de tomar banho, barbear‑me, comer e dormir numa cama confortável.

E lá foram todos para bordo do Estrela dos Mares, felizes e entusiasmados, falando pelos cotovelos!

 

         FINALMENTE TUDO ACABA BEM

À noite o Estrela dos Mares voltou a partir. Nem Jaime nem qualquer dos pequenos ouviu as máquinas começarem a trabalhar. A Didi acordou, retirou a cabeça de debaixo da asa e voltou a encolher‑se.

Era espantoso sentirem‑se outra vez no mar.

Dirigiram‑se a Itália.

‑ Ai, meu Deus, já lá está bem longe a ilha do tesouro! ‑exclamou Maria da Luz com saudade.

‑ Não sejas fingida ‑ respondeu João. ‑ Sabes bem que ficaste muito contente por escapares dela.

‑ Sim, eu sei isso ‑ retorquiu Maria da Luz. ‑ Mas irrita‑me ter deixado lá todo esse tesouro.

‑ E eu que nem sequer cheguei a vê‑lo ‑ lembrou‑lhe João. ‑ Sinto que fui roubado. Tudo por causa da idiota da Didi, que resolveu voar do meu ombro exactamente no momento em que estávamos prestes a dar com o tesouro. Parva.

«Parva!», repetiu a Didi toda contente. «Parva!» Deu um salto e pôs‑se a olhar para um prato com uvas.

‑ Não, não comes ‑ proibiu João, tirando‑lhas da frente! ‑ Parvos não comem petiscos! E, além disso, já deves ter comido mais de cem uvas. És uma lambareira, Didi.

‑ Suponho que o resto da viagem vai ser absolutamente insípido ‑ tornou Filipe. Olhou para o barquinho que estava em cima do toucador da sua cabina. ‑Caramba, como ficámos entusiasmados quando descobrimos o mapa do tesouro lá dentro! Jaime diz que devíamos entregá‑lo ao museu grego, mas podemos ficar com o mapa copiado, aquele que nós usámos, se o Sr. Eppy no‑lo der outra vez!

‑ E que irá a mãe dizer de tudo isto? ‑ lembrou Dina subitamente. ‑ Não vai ficar contente com o Jaime, pois não? Nunca mais lhe falará!

‑ Bem, isso significaria que nunca mais o poderíamos ver ‑ retorquiu Maria da Luz, horrorizada com a ideia. ‑ Eu adoro o Jaime. Gostaria que ele fosse meu pai. É horrível não ter pai nem mãe. Vocês são felizes, Filipe e Dina, que têm mãe, embora não tenham pai.

‑ Bem, vocês partilham da nossa mãe, não é verdade? ‑ atalhou logo Filipe. ‑‑Chamam‑lhe tia Lia, e ela trata‑os como se fosse vossa mãe.

‑ Sim. Eu sei. Ela é muito nossa amiga ‑ respondeu Maria da Luz e depois calou‑se. Estava preocupada por causa de Jaime.

Supondo que a tia Lia realmente mantinha a sua palavra e se recusava a falar ao Jaime por tê‑los posto em perigo? Isso seria realmente catastrófico.

Era de enlouquecer navegar para longe de todas aquelas românticas ilhotas, exactamente depois de uma aventura daquelas, sem saber o que tinha acontecido depois de eles partirem. Que teria feito o Sr. Eppy? Que lhe teria acontecido? Como teria ele saído da ilha, ou ainda lá estaria? E quanto ao tesouro, aquele fabuloso e espantoso tesouro escondido naquela câmara circular lá muito fundo, no coração de uma cidade morta?

Jaime prometeu‑lhes contar tudo o que soubesse; ele próprio estava tão curioso como os pequenos. O Estrela dos Mares aportou a Nápoles e depois rumou para Espanha. Foi ali que Jaime recebeu as primeiras notícias. Foi logo comunicá‑las aos garotos.

‑ Bem, vocês vão ficar contentes ao saber que Eppy e companhia não puderam sair da ilha e quase endoideceram de raiva. Depois, aquele chefe da Polícia mandou lá um barco, e, ainda mais, embarcou nele, e mandou logo prender aquela malta. Que choque para o Sr. Eppy!

‑ E o tesouro? ‑ perguntou Dina, ansiosa.

‑ Foi todo retirado da câmara circular da rocha e vai ser mandado para o continente para ser examinado e avaliado. Vão enviar‑nos uma lista das coisas e cada um de nós poderá escolher uma recordação!

‑ Caramba! ‑ exclamou João. ‑ Então eu quero um punhal como o de Filipe. Calculo que as raparigas hão‑de querer jóias.

‑ É o tesouro de Andra? ‑ perguntou Maria da Luz.

‑ Supõem que sim ‑‑respondeu Jaime. Todos os olhos se voltaram para o pequeno barco que estava sobre o toucador. Lá estava ele, de velas desfraldadas, com o nome grego escrito ao lado: Andra. Que aventura lhes tinha proporcionado!

‑ Que vai acontecer ao Luciano? ‑ perguntou Dina. O Luciano ainda estava no Estrela dos Mares, mas

com eles, e não com o tio e a tia desta vez. A tia, chorando como louca, tinha ficado na ilha do aeroporto, esperando pelo marido. Jaime tinha‑se oferecido para levar Luciano para Inglaterra e deixá‑lo com um camarada de escola até voltar para o colégio.

‑ Luciano, para o futuro, irá passar as férias com outros parentes ‑informou Jaime. ‑ Isto é, a não ser que nós possamos ficar com ele ocasionalmente. Tenho pena do garoto.

Houve um silêncio.

‑ É horrível quando se sente que se é obrigado a fazer qualquer coisa de que não se gosta só porque se tem pena de alguém ‑ respondeu Maria da Luz, suspirando. ‑ Além disso, não sei se a tia Lia gostará de ficar com ele. E, ó Jaime, acha que ela vai ficar muito zangada consigo por causa de tudo isto? Desta aventura, quero dizer?

‑ Sim. Acho que sim ‑ respondeu Jaime. ‑ Telefonei‑lhe de Itália e contei‑lhe alguma coisa,

Talvez devesse ter esperado até chegarmos ao pé dela. Ela não ficou nada satisfeita.

‑ Ai, meu Deus, que desagradável vai ser o resto das férias ‑ replicou Maria da Luz. ‑ Não gosto de ver a tia Lia nervosa ou zangada. Além disso, deve estar cansada depois de ter tratado da tia Lena. Como eu gostava que esta aventura tivesse um bom fim e não um epílogo desagradável!

 

Todos ficaram contentes quando o Estrela dos Mares chegou a Southampton no fim do seu longo cruzeiro. Depois da excitante aventura que tinham vivido, o restante tinha parecido suave e monótono. Era agradável estar outra vez em terra firme e a caminho de casa. A Sr.a Mannering não iria ao encontro deles. Tinha deixado a tia no dia anterior e ido para casa preparar tudo para receber a família. Luciano devia ficar com um camarada de colégio no caminho. Iam todos para casa no carro de Jaime.

O rapaz ficou triste quando chegou o momento da despedida. Gaguejou e titubeou ao estender a mão a cada um deles por sua vez.

‑ Adeus, aa... espero tornar a vê‑los. Passei... a... a... um belo tempo a a... lamento muito tudo aquilo que fiz e que não lhes agradou a... a...

«Aa... aa... aa», fez a Didi, deliciada. «Pá, chama o médico. Aa... aa, aa... aa.»

‑ Cala‑te, Didi, e porta‑te como deve ser ‑ ralhou João, vexado. Mas Luciano não se importou.

‑ Vou sentir a falta desta Didi ‑ prosseguiu ele. ‑ E do Micky também. Adeus, Micky, aa... oh, pensem em mim de vez em quando, vocês todos.

Quase fugiu deles, e Maria da Luz, desolada, ficou a olhar para ele.

‑ Pobre Luciano, estava quase a chorar‑ lamentou‑o ela. ‑Ele é um belo, aa... um belo...

‑ Piegas ‑ disse toda a gente e a Didi berrou: «Piegas! Chamem o médico!»

‑ Bem... então ele é óptimo para piegas... ‑ prosseguiu Maria da Luz. Instalou‑se outra vez no carro.‑ Agora para casa... e para a querida tia Lia. Tenho um grande, um grande abraço reservado para lhe dar!

A Sr.a Mannering ficou encantada de os ver, embora estivesse bastante fria com Jaime. Tinha um lanche excelente preparado para eles e a Didi guinchou de alegria ao ver um prato posto para ele e outro para o Micky com uma tentadora salada de frutas.

«Um, dois, três, partida!», palrou ela e instalou‑se para comer não perdendo de vista o prato do Micky, esperando aproveitar ainda alguma coisinha do dele. Depois do lanche todos se sentaram na confortável sala de estar e o Jaime acendeu o cachimbo. Os garotos acharam que ele parecia bastante tristonho.

‑ Bem, minha senhora ‑ começou ele. ‑ Suponho que quer ouvir contar tudo, a busca do tesouro de Andra e tudo o que aconteceu.

‑ Houve algumas vezes em que escapámos por pouco ‑ disse João, acariciando a Didi ‑ e a mãe vai ficar contente ao saber que ela deu duas valentes bicadas na orelha do Sr. Eppy.

Começaram com a história. A Sr.a Mannering escutava‑os espantada. Os olhos desviavam‑se‑lhe constantemente para o barquinho que estava sobre o fogão, que Filipe lá tinha posto orgulhosamente ao chegar a casa.

‑ Ora bem! ‑ disse Filipe quando acabaram a narrativa. ‑ Que pensa disto?

A Sr.a Mannering não respondeu e olhou para Jaime. Este desviou os olhos dos dela e pôs‑se a bater com força com o cachimbo na grelha do fogão.

‑ Oh, Jaime‑disse tristemente a Sr.a Mannering‑, o senhor prometeu‑me e quebrou a sua promessa. Nunca mais confiarei em si. Prometeu‑me solenemente não meter as crianças em qualquer espécie de aventura. Não lhe teria pedido que olhasse por eles se não confiasse em si. Agora já não confio mais!

‑ Tia Lia! Que quer dizer com isso de nunca mais confiar no Jaime? ‑ objectou, indignada, Maria da Luz,

dirigindo‑se para Jaime e lançando‑lhe os braços à volta do pescoço. ‑ Não vê que ele é a pessoa mais digna de confiança que existe no mundo?

A Sr.a Mannering não pôde deixar de rir.

‑ Oh, Maria da Luz, tu és uma pessoa de impulsos.

É sempre assim: logo que os deixo sozinhos com o Jaime caem em perigos terríveis. Sabem muito bem que é verdade!

‑ Bem... por que não estamos sempre todos juntos, consigo também? ‑ perguntou Maria da Luz. ‑ Não percebo porque razão vocês não se casam; então teríamos sempre o Jaime connosco e a tia podia vigiá‑lo para que ele não nos metesse em aventuras.

Jaime deu sonoras gargalhadas. A Sr.a Mannering mostrou um alegre sorriso. Os outros olharam uns para os outros.

‑ É verdade ‑ disse Filipe, ansioso. ‑ Que grande ideia teve a Luzinha! Então todos teríamos pai, todos nós! Com a breca, imaginem, o Jaime nosso pai. Então é que os outros rapazes nos haviam de invejar!

Jaime deixou de rir e pôs‑se a olhar para os quatro garotos sombriamente. Depois levantou os olhos para a Sr.a Mannering e ergueu as sobrancelhas interrogativamente.

‑ Bem, Lia? ‑ disse ele com uma voz curiosamente serena. ‑ Também pensa que é uma boa ideia?

Ela olhou para Jaime e depois sorriu para todas as crianças, que estavam ansiosas. Baixou a cabeça.

‑ Sim, Jaime, é realmente uma boa ideia. Estou surpreendida por nunca nos termos lembrado disso antes.

‑ Então, está combinado! ‑ disse Jaime. ‑ Eu olho por estes quatro pequenos e a Lia impede que eu os leve para mais aventuras. Está combinado?

‑ Bem! Afinal de contas esta aventura teve um lindo fim! ‑ disse Maria da Luz, dando um grande suspiro. Os olhos brilhavam‑lhe como estrelas! ‑ Querido Jaime. Ai, estou tão feliz agora!

«Deus salve o rei», fez a Didi, excitada. «Lena, veste o médico, manda chamar o médico, manda chamar a chaleira. Aos pulinhos vai o Jaime!»

 

 

                                                                                Enid Blyton  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

           Voltar à Página do Autor