Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A AVENTURA NO CASTELO / Enid Blyton
A AVENTURA NO CASTELO / Enid Blyton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A AVENTURA NO CASTELO

 

«Que me teria acordado?», reflectiu João, e pôs-se a olhar à roda do terreiro cheio de sombras. A Lua descobriu-se novamente, e ele viu alguns coelhos, que por ali ainda saltavam, destacando-se do fundo do escuro da muralha. Tinha a certeza de que alguma coisa, ou alguém, o acordara. Seria um barulho? Algum coelho que passasse por cima dele? Escutou atentamente mas não ouviu mais do que o pio de um mocho, vindo das bandas do monte, Uúúúú! Uúúú!, e depois o chiar agudo de um morcego que andaria à caça de carochas. Levantou os olhos para a torre de onde acenara e ficou petrificado! Sem a mínima dúvida, uma luz projectava-se lá de cima! Uma luz de lanterna, ao que lhe pareceu. Mas, por mais que apurasse o olhar, não tornou a vê-la.

«Bolorento, bafiento, poeirento!», palrou de lá a Didi, e fez novo voo até perto dos homens que, como ela, estavam em plenas trevas. Depois a Didi rosnou fortemente, como um cão, e os homens deram um salto no ar, porque o rosnado vinha precisamente por trás deles!

«E há também um cão! Cuidado! Anda, atira!»

O homem, de cabeça perdida, carregou no gatilho do revólver e um tiro atroou a noite...

 

 

         CHEGARAM AS FÉRIAS.

Sentadas no vão da janela, no seu quarto de estudantes, duas raparigas conversavam. Uma delas, ruiva, de cabelos ondulados, era tão sardenta que seria impossível contar-lhe as sardas. A outra, morena, usava os cabelos curtos e revoltos, a formarem-lhe sobre a testa uma poupa engraçada.

- Só falta um dia para começarem as férias! - disse Maria da Luz, a ruiva, fitando Dina com os seus belos olhos verdes.

- Estou cheia de saudades do João! Custa muito passar sem ele um período inteiro!

- Cá por mim, não sinto falta alguma do meu irmão! - respondeu Dina com uma gargalhada. - O Filipe não é mau rapaz, mas enfurece-me com a mania de estar sempre a trazer para casa toda a casta de bicharia e de insectos nojentos.

- Ainda bem que as férias deles começam um dia depois das nossas. Podemos chegar a casa antes deles e meter o nariz em todos os cantos; no dia seguinte vamos esperá-los - que bom!

- Como será a casa que a mãe alugou para as férias? Vou reler a carta dela.

Dina meteu a mão na algibeira à procura da carta, abriu-a e começou a percorrê-la com os olhos.

- Diz pouca coisa! Apenas que alugou uma vivenda na serra e que assim aproveita estas semanas para mandar pintar e arranjar a nossa casa. Toma lá a carta, lê.

Maria da Luz pôs-se a ler, muito interessada.

- Pois é, e diz que a casa se chama Vivenda da Nascente e que fica para os lados do serro do Castelo. Diz que é um sítio ermo, mas que abundam lá os pássaros. O João vai ficar radiante!

- Não consigo compreender essa loucura que ele tem pelos pássaros! É tão doido por eles como o Filipe por insectos e animais.

- Eu então acho que o Filipe tem um jeitão para os animais! - respondeu Maria da Luz, que admirava profundamente o irmão da amiga. -Lembras-te do rato que ele treinou a ir tirar migalhas dos dentes?

Dina estremeceu toda:

- Ui! Não me fales desses horrores!

Era incapaz de sentir uma aranha ao pé dela e dava guinchos só de ver ratos ou morcegos. Maria da Luz não compreendia como ela, com um irmão tão apaixonado pelos bichos, podia ter-lhes assim tanto medo.

- Ele realmente gosta muito de arreliar-te - voltou ela ao lembrar-se das vezes em que o Filipe metia bichas-cadelas debaixo da almofada da irmã, ou lhe enfiava baratas dentro dos sapatos.

A verdade é que o Filipe era um arreliador insuportável, se lhe dava para isso, e não admirava que Dina se irritasse tanto!

- Que terá acontecido à Didi durante este período?

Didi era a catatua do João, uma ave espertíssima, que imitava vozes e ruídos na perfeição. O João tinha-lhe ensinado várias frases, e a Didi aprendera outras tantas, por sua conta e risco, sobretudo com um tio velho e rabujento com quem a Luzinha e o irmão tinham vivido em tempos.

- A Didi não teve desta vez autorização para voltar para o colégio com o João - respondeu, com tristeza, a Maria da Luz. - Coitada! O que lhe vale é que há um amigo do João que a vai visitar todos os dias, e toma conta dela. Em todo o caso acho que lá no colégio bem podiam tê-la deixado continuar a acompanhar o dono!

- Pois sim, mas se pensarmos que ela passava a vida a gritar ao director que não fungasse, e ao contínuo que limpasse os pés, e que acordava toda a gente, durante a noite, quando lhe dava para fazer de locomotiva, aos apitos, não é muito para admirar que a tivessem proibido de lá se conservar! Ela agora acompanha-nos nas férias, e vai ser bem bom! Eu gosto da Didi, parece-se tanto com uma pessoa que nem me lembro que é um bicho.

A Didi era de facto uma óptima companheira. Apesar de não ser capaz de conversar com acerto, falava pelos cotovelos, quando estava para aí virada, e dizia coisas tão disparatadas que os garotos rebolavam-se a rir. Adorava João e era capaz de lhe ficar empoleirada no ombro, se ele deixasse, durante horas inteiras, sem se mexer.

As raparigas sentiam-se radiantes com a proximidade das férias e com as distracções que anteviam. Maria da Luz, essa suspirava especialmente por tornar a estar com a mãe de Dina, tão bonita e tão alegre!

João e Maria da Luz Trent não tinham pai nem mãe, e haviam ficado a cargo de um tio, velho e rabugento, até ao dia em que, por acaso, travaram conhecimento com Filipe e Dina Mannering. Estes, por sua vez, eram órfãos de pai, e era a mãe quem sustentava a casa com o seu trabalho. Labutava tanto que se viu obrigada a internar os filhos em colégios, mandando-os nas férias para casa de uns tios, por não ter tempo para os atender nem um lar capaz para os receber.

Mas as coisas haviam mudado. A mãe de Dina tinha agora dinheiro bastante para manter uma casinha para eles e permitia que lá se instalassem também os seus grandes amigos João e Maria da Luz.

Assim, em tempo de aulas, as duas raparigas e os dois rapazes regressavam aos respectivos colégios e quando vinham as férias juntavam-se todos em casa da Sr.a Mannering.

- Acabaram-se os tios e as tias! - dissera Dina alegremente. Ela própria não apreciara os tempos em que passava as férias com o velho distraído que era o seu tio Renato. - Agora temos uma linda casa e a minha mãe!

O ponto de reunião durante as férias que se avizinhavam seria a vivenda que a Sr.a Mannering descobrira. E Dina, apesar de um pouco desconsolada por não poder voltar para a sua casa, antegozava já as férias na serra, as passeatas e os piqueniques que iriam fazer.

- Lembras-te da aventura maravilhosa que tivemos no ano passado? - perguntou ela a Maria da Luz, que olhava distraidamente para a janela a sonhar com o prazer que iria ter, daí a dois dias, ao abraçar o irmão. Maria da Luz franziu o narizito sardento:

- Lembro-me sim. Foi a aventura mais espantosa que podia imaginar-se. Mas meu Deus! Que medo tive! Aquela ilha das Trevas, lembras-te?

- Se me lembro! E aquela mina que parecia enfiar até ao fundo da Terra, e nós perdidos nela, sem darmos com a saída! Safa! Aquilo é que foi uma aventura! Não me importava de me ver noutra...

- Tu és fantástica! Tremes toda e arrepias-te só de ver uma aranha e divertes-te com aventuras que me põem os cabelos de pé!

- De qualquer maneira, acabou-se! - suspirou Dina com pena.

- Aventuras como aquela acontecem uma vez na vida! Aposto que os rapazes ainda hão-de falar nela vezes sem conta. Lembras-te do Natal? Não conseguíamos fazê-los calar! Maria da Luz, impaciente, levantou-se.

- Ai, quem me dera já nas férias! Não sei porquê, mas estes últimos dias muito custam a passar!

O dia seguinte chegou, finalmente, e as duas amigas meteram-se no comboio, com um grupo de companheiras, a tagarelar e a rir, com as bagagens despachadas, os bilhetes nas bolsinhas e os corações a bater de contentamento! A caminho de férias!

Tiveram de mudar de comboio duas vezes, mas Dina nunca se atrapalhava. Maria da Luz era tímida e envergonhada diante de estranhos, mas os doze anos de Dina não a impediam de se governar sozinha. Era uma rapariga desembaraçada e enérgica, capaz de enfrentar qualquer situação. Maria da Luz parecia mais nova uns dois ou três anos, embora houvesse apenas um ano de diferença entre as duas.

Chegaram, enfim, à estação onde deviam apear-se. Saltaram da carruagem e Dina chamou o único carregador que estava no cais. O homem apressou-se a pegar-lhes na bagagem.

--Olha a mãe! - gritou Dina, e correu para uma senhora bonita, de olhos brilhantes, que vinha ao encontro delas. A Dina era pouco beijoqueira, mas Maria da Luz era-o por duas! Enquanto Dina beijava apressadamente a mãe, Maria da Luz deitava os braços ao pescoço da Sr.a Mannering e encostava docemente a cabeça à cara dela.

- Que bom que é tornar a vê-la! - dizia, e ia pensando, pela centésima vez, na sorte da Dina em ter mãe! Estava muito grata à amiga por assim a deixar compartilhar dessa felicidade. Era bem triste não ter pai nem mãe que lhe escrevessem ou a esperassem em casa. A Sr.a Mannering, contudo, manifestava-lhe sempre que não só a amava mas também a escolhera para si.

- Tenho o carro lá fora à vossa espera. Venham daí. O carregador vai trazer as vossas malas.

Saíram da estação, um apeadeirozinho.

Lá fora abria-se um caminho orlado de flores primaveris. O céu azul e um ar tépido e macio encheram Maria da Luz de felicidade. Era o primeiro dia de férias, estava com a linda mãe da Dina e os rapazes chegavam no dia seguinte!

Meteram-se no carrito e o carregador arrumou as malas no porta-bagagens. A Sr.a Mannering sentou-se ao volante.

- Ainda é um bom bocado daqui até à vivenda. É aqui, na aldeia, que fazemos as nossas compras, à excepção dos ovos, da manteiga e do leite, que vamos comprar a uma quinta lá perto. Os campos são lindíssimos aqui à volta e há passeios maravilhosos que vocês podem dar. Quanto a passarada - o João nem sabe o que o espera!

- E estamos no tempo da criação! - notou Maria da Luz. -- O João em nada mais vai pensar senão em ninhos e em ovos.

Sentia-se um pouco despeitada pelo tempo que o irmão iria roubar-lhe para se entregar todo à sua paixão.

As raparigas olhavam à medida que o carro avançava. Aquilo era, de facto, uma beleza! Havia montes e montes, que vistos assim a distância pareciam azulados. Iam agora por uma estrada que bordejava o vale, toda em curvas, com um riozito a serpentear lá no fundo, e começavam a subir a encosta íngreme.

- Mãe, a nossa casa é deste lado do monte? Que vista estupenda deve ter!

- E tem; vêem-se de lá o vale e os montes todos, uns atrás dos outros!

O carro abrandara a marcha porque o caminho era cada vez mais íngreme. À medida que iam subindo o panorama tornava-se mais vasto. Maria da Luz deu um grito inesperado quando espreitou a ver em que altura estavam:

- Olhem! Olhem para aquele castelo, ali no cimo do monte! Dina olhou. O castelo era realmente imponentíssimo e

façanhudo, com uma torre de cada lado e grossas muralhas a toda a volta. As janelas eram frestas, mas..., coisa curiosa, havia algumas janelas largas, que destoavam.

- É um castelo antigo de verdade? - perguntou Maria da Luz.

- Não, só uma parte é que é verdadeiramente antiga. O resto tem sido restaurado e reconstruído de modo que o conjunto é uma mistura. Ninguém lá vive actualmente. Nem sei a quem pertence - ninguém sabe, ou ninguém quer saber. Está fechado e tem má fama.

- Porquê? Aconteceu lá alguma coisa má? - inquiriu logo Dina, muito excitada.

- Creio que sim, mas ao certo nada sei. Seja como for, o melhor é vocês não irem até lá, porque a estrada abateu por causa de um desprendimento de terras, ou coisa que o valha, e é muito perigosa. Dizem até que uma parte do castelo não tardará a cair em bocados pelo monte abaixo.

- Senhores! Contanto que não caia em cima da nossa casa! - assustou-se Maria da Luz.

A Sr.a Mannering riu-se.

- Está claro que não! Estamos muito longe dele! Olhem! Lá está a nossa casa, escondida no meio daquelas árvores!

A vivendazinha era encantadora, com o telhado de colmo e os vidros das janelas em caixilhos de chumbo. As raparigas ficaram logo conquistadas.

- Faz lembrar a casa que nos compraste, mãe, e também é bonita! Oh, mãe, que belo tempo vamos aqui passar! Os rapazes vão ficar malucos!

A Sr.a Mannering arrumou o carro debaixo de um alpendre bastante vasto e toda a gente se apeou.

- Deixem aí as malas, o homem da quinta vem depois buscá-las. E agora - bem-vindas sejam à Vivenda da Nascente!

 

         CHEGAM OS RAPAZES... E A «DIDI»!

As duas raparigas passaram o resto do dia e a manhã do dia seguinte a meter o nariz em todos os cantos da casa. A vivenda era pequenina, mas havia espaço bastante para os albergar a todos. Tinha uma grande cozinha, à antiga, e uma salinha minúscula. No andar de cima ficavam os três quartos de cama, todos pequenos.

Dina destinava:

- Um é para a mãe, o outro para nós duas e o terceiro para os rapazes. A mãe faz a cozinha, e nós ajudamo-la a tratar da casa, o que não deve dar muito trabalho! O nosso quarto é um amor, não achas?

No quartito, muito aconchegado, rasgava-se uma janela que o telhado de colmo sombreava, o tecto e as paredes eram esconsos e o chão muito desigual. As portas eram tão baixinhas que Dina, que começava a espigar, tinha de curvar-se ao transpô-las para não bater com a cabeça.

- Vivenda da Nascente! - disse ela. - É um lindo nome. especialmente na Primavera!

- O nome vem-lhe da nascente que brota nas traseiras da casa - explicou a mãe. - A água vem de uma mina que há lá em cima, no castelo, suponho que no terreiro, e rompe aqui no jardim para tornar a sumir-se pela terra dentro no resto da encosta.

As raparigas foram ver a nascente e Dina provou a água cristalina e muito fria, encantando-se com o ruído alegre que ela fazia e que tão bem soava no jardinzito rústico. Toda a noite aquele ruído da água a saltar a embalou deliciosamente.

A vivenda tinha uma vista esplendorosa, que abrangia todo o vale, ao longo do qual serpenteava a estrada, e muito ao longe via-se a estação de caminho de ferro, tão pequenina que mais parecia um brinquedo, como brinquedo parecia o comboiozito que nela parava duas vezes por dia.

- Parece mesmo o comboio que o João tinha quando era pequeno! - dizia Maria da Luz. - Ui, que danado ficava o tio Alfredo quando púnhamos o comboio a andar! Dizia logo que o brinquedo fazia mais barulho do que uma trovoada! Uf! Ainda nem acredito que estejamos livres do tio Alfredo!

Dina consultou o relógio.

- Estamos na hora de ir andando para a estação. Faço ideia do entusiasmo dos rapazes! Devem vir em pulgas! Anda, vamos chamar a mãe.

A Sr.a Mannering já estava com o carro a trabalhar e as raparigas sentaram-se ao lado dela. Maria da Luz estava excitadíssima. Tardava-lhe o momento de abraçar o irmão, estava radiante por ir ver Filipe e encantava-a a ideia de que iam novamente estar juntos. Só pedia aos Céus que Dina não começasse já a pegar com Filipe e a enfurecer-se com ele. Bulhavam tanto um com o outro que chegava a ser maçador.

Quando chegaram à estação ainda não havia sinais do comboio. Maria da Luz começou a passear no cais, de um lado para o outro, impaciente com a demora, até que se ouviu o sinal e, numa curva, apareceu primeiro um penacho de fumo, depois o comboio, ofegante com a subida até à estação.

Os dois rapazes, debruçados na janela, agitavam os braços e davam gritos de alegria. Por sua vez, as raparigas acenavam freneticamente e respondiam com outros gritos de boas-vindas.

- Olha a Didi! - gritou Maria da Luz. - Didi! Querida Didi! Didi abandonou o ombro de João e veio pousar na Maria da Luz. Parecia encantada de a ver e esfregava o bico nas faces da rapariguinha, emitindo uns estranhos ruídos guturais. Os rapazes saltaram em terra e João correu a abraçar Maria da Luz, cujos olhos brilhavam extraordinariamente. A Didi deu outro gritinho e regressou ao ombro de João, ordenando daí ao carregador boquiaberto:

«Limpa os pés! Onde meteste o lenço?»

Filipe esboçou um meio sorriso para a irmã:

- Olá velhinha! Cresceste bastante! Ainda bem que eu também cresci, senão estarias da minha altura! Viva, Luzinha! Tu é que estás do mesmo tamanho! E que tal vamos de estudos?

Dina impacientou-se:

- Não comeces a armar! Anda, a mãe está ali no carro; vem vê-la.

O carregador pôs as malas no carrinho de mão e seguiu atrás deles enquanto a Didi, empoleirada no carro, se pôs a mirá-lo com os seus olhitos muito vivos:

«Quantas vezes te tenho dito que feches a porta?» O carregador, assustado, largou os varais, sem saber se devia ou não responder àquele pássaro tão extraorDinário. Didi deu uma gargalhada igual às de João e voou até ao automóvel; aí tentou instalar-se no ombro da Sr.a Mannering, que parecia ser a sua preferida, e continuou a palrar:

«Atenção, meninos! Abram os livros na página seis!» Toda a gente desatou a rir, e João explicou:

- Aprendeu isto com um dos professores lá da escola. Tia Lia, não calcula o que ela fez durante a viagem! Em todas as estações a Didi deitava a cabeça de fora da janela e gritava: «Partiiiida!» Só queria que vissem a cara do maquinista!

- Que bom ver-vos cá outra vez! - exclamou Maria da Luz encostando-se carinhosamente ao irmão. Adorava-o, mas ele é que parecia não lhe dar grande atenção.

Meteram-se então todos no carro e o carregador enfiou apressadamente as malas, sempre com um olho desconfiado na Didi. A catatua ordenou-lhe:

«Feche a porta, faça favor», e deu outra das suas intermináveis gargalhadas. João, vendo o ar espavorido do homenzinho, repreendeu o animal:

«Didi, cala o bico. Tem juízo, senão voltas para a escola!»

«És mau, mau, mau! És mau, mau, mau!»

«Nem pio! Se não te calas fecho-te o bico com um elástico! Não vês que estou a falar com a tia Lia?»

João e Maria da Luz chamavam tia à Sr.a Mannering por acharem o tratamento de «minha senhora» cerimonioso de mais, Esta, por sua vez, estimava profundamente os dois irmãos, tinha uma preferência especial pela Maria da Luz, mais meiga e mais expansiva do que Dina.

- Estes campos parecem formidáveis, ó Pintinhas! - exclamou Filipe, que ia debruçado à janela. - Deve haver por aqui] bandos de pássaros para ti e muita bicharia para mim!

- Onde pára aquele rato castanho que tinhas lá na escola

neste último período? - e João deitou um olhar a Dina, que deu logo um guincho.

Filipe desatou a apalpar e a remexer as algibeiras, uma por uma, perante o olhar esgazeado de Dina, que esperava a cada momento ver aparecer o rato, até que suplicou:

- Mãe! Pare o carro e deixe-me ir a pé! O Filipe trás aqui um rato.

- Cá está ele! Não, meteu-se-me no lenço! Ah, que é isto? Não, não é ele. Agora, agora, ah! cá está...

E Filipe fingia tirar qualquer coisa de um bolso com muito cuidado.

- Querias morder, hem?

Dina continuou a guinchar até que a mãe parou o carro: já estava agarrada ao fecho da porta quando a mãe recomendou:

- Está quieta, Dina, tu não sais. Quem sai e vai a pé é o Filipe e mais o rato. A Dina tem razão; eu não quero aqui ratos. Portanto, tu sais e vais a pé.

Filipe fez uma careta:

- Bom, para dizer a verdade... o rato ficou no colégio! Eu estava apenas a meter medo à Dina!

- Estúpido! - comentou esta. E a mãe acrescentou:

- Bem me quis parecer que era isso. Em todo o caso, tem juízo e lembra-te de que ias sendo obrigado a fazer o caminho a pé. Não me importo com os teus bichos desde que não sejam ratos nem cobras. E agora, que dizem vocês à casa?

Os rapazes gostavam dela tanto como as raparigas, mas o que lhes despertava a curiosidade era o velho castelo. Dina, esquecendo o amuo, apontou para lá, chamando a atenção deles.

- Havemos de lá ir - afirmou logo João.

- Não - volveu a Sr.a Mannering -, eu já expliquei às vossas irmãs que aquilo lá em cima é perigoso.

- Oh! E porquê? - perguntou João desapontado.

- Porque a estrada abateu e ninguém se atreve a ir lá. Disseram-me que o próprio castelo está a desmoronar-se, havendo o perigo de ruir se a estrada continuar a abater.

- Isso está a interessar-me! - e os olhos do Filipe brilhavam de curiosidade.

Quando chegaram a casa as duas raparigas foram mostrar aos recém-chegados o quartinho do sótão. Maria da Luz não largava o irmão. Este parecia-se imenso com ela, de cabelos ruivos, olhos verdes e muitas sardas. A sua índole bondosa e simples fazia com que toda a gente simpatizasse imediatamente com ele.

Filipe, a quem João chamava o Trunfa, parecia-se bastante com Dina, e tinha, como ela e a mãe, a mesma cabeleira rebelde, com a mesma mecha encaracolada sobre a testa. Apenas o ar travesso de Dina era nele muito mais acentuado. João costumava referir-se aos Mannering como os Três Trunfas. Os dois rapazes eram mais velhos do que as raparigas e davam-se muito bem.

- Até que enfim estamos em férias! - exclamou Filipe enquanto desfazia a mala; a irmã observava-o a uma prudente distância.

- Trazes aí bicharia?

- Só um ouriço pequenino; mas não te aflijas porque ele não tem pulgas!

- Se calhar não me estás a enganar! - e Dina recuou um passo. - Nunca me esquecerei do ouriço que trouxeste no ano passado.

- Já te disse, este é pequenino, é ainda bebé, e não tem pulgas. Polvilhei-o com um pó que um farmacêutico me indicou e está limpinho que é uma beleza. Os picos ainda nem sequer estão castanhos!

As raparigas foram espreitar, muito interessadas, a bolinha eriçada de espinhos que Filipe desenrolou de dentro de uma camisola.

A bolinha abriu-se e mostrou um focinhito.

- Que engraçado! - comentou Maria da Luz, e até Didi esqueceu o medo.

- O que vai ser o diabo é trazê-lo comigo, por causa dos picos - acrescentou Filipe metendo o animalzinho dentro do bolso dos calções.

- Tu deixarás de o trazer no bolso quando te sentares alguma vez em cima dele! - comentou Dina.

- Sou bem capaz disso! E vê lá não me maces muito Di, porque lembra-te que este é o bicho ideal para meter na tua cama!

- Parem com isso e vamos lá para fora - interveio João. A Maria da Luz diz que há uma nascente no jardim e que a água vem lá de cima, do castelo.

«Eu sou a rainha do castelo!», fez a Didi, que se balouçava em cima do toucador. «Lá se vai tudo por água abaixo!»

«Estás a baralhar as coisas!», riu-se João. - Vamos, toca a andar lá para fora!

 

         INSTALADOS NA VIVENDA.

Os dois primeiros dias foram realmente uns dias felizes. As quatro crianças e Didi passeavam à vontade e maravilhavam-se perante centos de ninhos que João encontrava. Perdia a cabeça com os pássaros; se o deixassem seria capaz de passar horas a observá-los. Um dia apareceu esbaforido a contar que tinha visto uma águia real.

- Uma águia real?! - exclamou Dina, incrédula. - Sempre pensei que já não houvesse águias reais e que fosse tão impossível encontrá-las como o famoso corvo marinho gigante de que estavas sempre a falar.

- Não, ainda existem águias! - respondeu João com ar de troça. - Só provas com isso a tua ignorância! Tenho a certeza de que era uma águia real; pairava no ar exactamente como pairam as águias, e estou convencido de que era uma águia dourada.

- E são perigosas? - perguntou Dina.

- Hum... devem atacar quem se lhes aproxime do ninho. Santo Deus! Quem me dera saber se esta tem ninho aqui perto!

- Quem não vai em busca de ninhos de águias sei eu! - afirmou Dina em tom categórico. - Afinal, João, se tu já descobriste mais de um cento de ninhos, com certeza que não precisas de ir descobrir ninhos de águia.

João nunca roubava os ovos dos ninhos nem tocava nos que tivessem criação, e os pássaros não tinham medo dele, tal como os outros bichos não fugiam de Filipe. Se qualquer das raparigas fosse espreitar um ninho onde estivesse um pássaro era certo e sabido que este logo se assustava e batia as asas. Mas o mesmo pássaro consentia a João uma carícia sem sequer agitar uma pena. Era curioso!...

Didi fazia parte de todas as excursões, sempre empoleirada no ombro de João. Este tinha-a ensinado a não fazer bulha quando estava a espreitar os pássaros, mas a Didi tinha uma especial embirração aos corvos. Havia um bosquezito onde um bando deles se tinham instalado, e Didi ia para lá empoleirar-se num ramo para dirigir-lhes impropérios, que eles ouviam, pasmados.

- É uma pena que eles não possam responder - dizia Filipe - mas só sabem dizer «Có, có, có».

- Sim, e a Didi já os imita. É capaz de ficar a repetir «Có, có, có» horas a fio se eu não a mandar calar - respondeu João.

«Não é, Didi!»

A Didi deu uma bicadinha terna na orelha de João; gostava imenso que falassem com ela. E ficou-se a repetir, enlevada: «Có, có, có, có...»

«Pronto, já chega!», ordenou-lhe João. «Vai escutar os rouxinóis, e vê lá se os imitas, que esse "canto" dos corvos não tem graça. Pára, Didi!»

Didi calou-se e deu um valente espirro.

«Onde meteste o lenço?», rematou.

João deu-lhe um lenço, para gáudio de Maria da Luz, e Didi gastou mais de um minuto a tentar segurá-lo com uma das patas, fingindo que se assoava, fungando sempre.

- Aprendeu mais uma habilidade - explicou João a rir. - E fá-la bem, não acham?

Havia passeios maravilhosos à volta da vivenda. De lá à aldeia seriam talvez cinco quilómetros e, à excepção de umas raras casitas e de uma venda, não se encontravam senão uma ou duas herdades e uma vivendazita perdida entre os montes.

- Isto não é sítio onde possamos ter aventuras - lastimava-se Filipe. - É tudo tão pacato, a gente da aldeia quase não fala, ou o mais que diz é: «Sim, senhor», ou «Pois é».

- Têm medo da Didi - explicou Dina.

- Sim, senhor, pois é! - troçou João. A Didi repetiu logo, e João continuou:

- Vocês lembram-se daquela vez em que a Didi foi encafuar-se num compartimento da mina e do homem que a fechou lá dentro quando a ouviu falar? Julgou que era eu quem ele tinha fechado! Palavra, isso é que foi uma cena!

- Quem me dera que nos tornassem a acontecer coisas esquisitas, mas desconfio de que nunca mais na nossa vida teremos aventuras - comentou Filipe.

- Ora, as aventuras acontecem aos aventureiros - respondeu João - e nós somos bastante aventureiros, vamos lá! Não vejo porque não havemos de ter mais aventuras das boas.

- O que eu gostava era de ir explorar o castelo - suspirou Dina olhando para longe, na direcção do morro onde se destacava o perfil da velha construção. - Tem um aspecto tão estranho, para ali abandonado e solitário, a olhar o vale com ar carrancudo! A mãe diz que aconteceu lá não sei o quê de horrível, mas não é capaz de explicar o que foi.

- Iremos investigar - volveu João, que gostava de aterrar o auditório. - Se calhar mataram lá alguém.

- Credo! Que horror! Assim já lá não vou - respondeu Maria da Luz.

- De toda a maneira não poderemos ir porque a mãe não deixa-declarou Dina.

- Mas talvez nos deixe ir à procura dos ninhos das águias - sugeriu Filipe - e, se os houver lá perto do castelo, acabamos por lá ir, assim ou assado.

- Em todo o caso é melhor pedir-lhe licença. Eu peço-lhe. Isto dizia João, que estimava demasiadamente a mãe de

Filipe para lhe desobedecer ou a enganar. E assim fez nessa mesma noite.

- Tia Lia, parece-me que há um ninho de águias nas redondezas lá para o cimo do monte. O monte é bastante alto, é quase da altura de uma serra, e é nessas alturas que as águias costumam fazer os ninhos, como sabe. A tia não se importa que eu vá procurar esse ninho?

- Não me importo desde que tenhas cuidado e não te aproximes muito do castelo. Ou fazes tenção de ir para esses lados?

- Para falar francamente, sim, é possível que tenha de procurar por lá perto.

Mas a tia pode ter confiança em nós, teremos cautela com as terras que abateram e não seríamos capazes de meter as raparigas em complicações ou em perigos.

- Parece que há anos passou uma tromba de água pelo castelo e que o dilúvio foi tal que atingiu os alicerces do edifício, aluindo-os; parece que foi devido a isso que uma grande parte da estrada abateu e está a deslizar pelo monte abaixo. Como vês, é uma zona muitíssimo perigosa para explorações.

- Prometo-lhe que teremos muita cautela, tia - garantiu João, radiante pelo facto de a Sr.a Mannering não ter proibido formalmente qualquer aproximação do castelo, e foi dar parte aos outros, que ficaram entusiasmados.

--Vamos lá amanhã, sim? A sério! Eu quero encontrar o ninho, ou ver se há rasto de águias por esta região.

Nessa tarde, quando passeavam perto de casa, tiveram a impressão de que estavam a ser seguidos. Por uma vez ou duas João voltou-se bruscamente, desconfiado de que alguém seguia atrás deles, mas ninguém viu.

- É esquisito! - e João falou baixinho. - Tive a impressão de que vinham atrás de nós, pareceu-me mesmo ouvir o estalar de um ramo, como se alguém o tivesse pisado ou partido!

- Também a mim me pareceu - respondeu Filipe, intrigado. - Ouve lá, João: quando chegarmos ali ao bosquezito, eu agacho-me atrás de um arbusto e vocês continuam a andar. Se houver alguém a seguir-nos, eu vejo quem é.

Disseram isto às raparigas, que tinham também desconfiado de que alguém lhes ia no encalço. Meteram todos na direcção do bosque, e Filipe, assim que viu um arbusto que lhe pareceu suficientemente alto e espesso para o ocultar, acocorou-se, enquanto os outros continuavam a andar, falando muito alto. Filipe, imóvel, pôs-se à escuta, até que ouviu um ruído que lhe fez bater o coração com força. Quem andaria a espiá-los, e porquê? Não encontrava o motivo. Até que alguém lhe passou rente sem dar pela sua presença. Filipe ficou tão pasmado com o aspecto desse alguém que não conteve uma exclamação:

- Oh!

Uma rapariguinha esfarrapada e descalça, de caracóis desgrenhados, pulou de susto e virou-se de repente. Num momento, Filipe tinha-a agarrado pelos pulsos e, embora sem a magoar, segurava-a firmemente, não a deixando escapar, apesar das desesperadas tentativas que ela fazia para o morder e lhe dar pontapés,

- Anda, tem juízo e está quieta. Eu largo-te se me disseres porque vens atrás de nós e quem és tu.

A rapariga calou-se e limitou-se a não despregar os seus grandes olhos pretos de Filipe. Os outros três, ouvindo a voz de Filipe, vieram a correr.

- Cá está a pessoa que nos vinha a seguir, mas parece que não tem língua!

- É uma cigana - informou Dina.

A estas palavras a rapariguinha resmungou qualquer coisa, mas ficou de boca aberta a olhar para a Didi, que vinha no ombro do João.

- Ela é capaz de vir atrás de nós só por causa da catatua - riu-se Filipe. - É isto ou não, é ciganita?

A rapariguinha fez um movimento afirmativo com a cabeça.

- Sim senhor, pois é!

«Sim senhor, pois é», repetiu logo a Didi. A cigana abriu mais os olhos e desatou a rir, estampando-se-lhe no rosto uma expressão alegre e travessa.

- Como te chamas? - perguntou Filipe, largando-lhe os pulsos.

- Sara. Eu vi o pássaro e vim atrás de vocês, mas não vinha por mal. Vivo ali no morro, com minha mãe, e sei quem vocês são e onde vivem.

- Ah, ah! Com que então andavas a espiar-nos? - comentou João. - E conheces bem este lado do morro, não?

Sara voltou a acenar com a cabeça afirmativamente, mas o seu olhar brilhante não desfitava a Didi, que parecia fasciná-la.

«Lá se vai tudo por água abaixo», e a Didi voltou-se para ela, com ar solene: «Abram o livro na página seis!»

- Olha lá! Tu sabes se há algum ninho de águias aqui neste lado do monte? - perguntou João de repente.

Pensou que uma rapariguinha selvagem como esta, devia saber dessas coisas.

- Uma águia? Que é isso?

- É um pássaro muito grande, com o bico curvo e...

- Como este? - e apontou para a Didi.

- Não, não! Bom, deixa lá. Se não sabes o que é uma águia,, ainda menos deves saber o que seja um ninho de águias.

- Temos de ir para casa, são horas - avisou Filipe. - Tenho fome! Sara, anda, mostra-nos o atalho mais curto que nos ponha em casa em menos tempo. - Com grande surpresa de Filipe, Sara deu meia volta e deitou pelo monte abaixo, aos pinotes como uma cabrita. Os outros seguiram-na e todos ficaram admirados quando, em poucos minutos, se viram em frente da vivenda.

- Obrigado, Sara, obrigadinho! -agradeceu Filipe, enquanto a Didi, como um eco, repetia: «Obrigadinho!»

Sara sorriu, e o seu ar sombrio desapareceu - Até à vista! - e voltou costas.

- Dissestes que moravas naquela casita velha, no monte? - gritou-lhe João a distância.

- Sim senhor, pois é! -gritou a criança, e desapareceu por trás da sebe.

 

         SARA E O «BOTÃO»

Após as primeiras explorações, os quatro amigos verificaram que o serro do Castelo era, de facto, um local muito solitário. Além da vivenda e do pardieiro onde morava Sara existia apenas uma quinta distante, onde iam comprar ovos e leite. A aldeia ficava longe, no fundo do vale. Porém, a falta de habitantes humanos era compensada pela abundância de vida animal. Havia pássaros para João, bichos de todas as espécies para Filipe, esquilos que corriam por toda a parte, coelhos que surgiam a cada passo e raposas que passavam, sorrateiras, mas que não se mostravam assustadas nem ariscas.

- Ai, se eu conseguisse apanhar um raposito! Há que tempos que sonho com isso! São tão patuscos, tão vivos! - dizia Filipe.

Sara ouviu estas palavras de Filipe. Fazia agora parte do grupo, e a sua companhia era preciosa como guia das excursões. Conhecia o monte como as mãos dela e, quando os quatro se imaginavam perdidos, ela indicava-lhes logo o atalho mais curto, o caminho certo do regresso. Era uma rapariguinha estranha. Por vezes não se aproximava e ficava-se à distância, a mirar a Didi, fascinada. Outras vezes juntava-se ao grupo, prestava atenção às conversas, mas não tomava parte nelas. Os vestidos simples de Dina e da Maria de Luz despertavam-lhe olhares cobiçosos, e às vezes tocava-lhes, a apalpar o tecido. Vestia sempre os mesmos farrapos, que mais pareciam terem sido cortados de algum saco velho, e a sua cabeleira, encaracolada e suja, nunca vira pente.

- Eu não me importava que ela andasse suja se não cheirasse tão mal, às vezes! Desconfio de que ela não sabe o que seja um banho! - dizia Maria da Luz para Dina.

- É bem possível que não! Mas que ar saudável tem, não achas? Nunca vi olhos tão brilhantes, nem faces tão rosadas e dentes tão brancos como os dela! E, no entanto, apostava em como ela nunca lavou os dentes!

De pergunta em pergunta veio a saber-se que Sara ignorava, realmente, o que fosse um banho. Dina levou-a à vivenda e mostrou-lhe a banheira. A Sr.a Mannering, que estava em casa quando as três raparigas entraram, teve um olhar admirado e interrogou Maria da Luz em voz baixa:

- Quem é esta rapariguinha tão suja? O que ela precisava era de um banho.

Maria da Luz já esperava por isso, sabendo como as mães se preocupam com a limpeza e com a higiene. Mas quando Dina explicou a Sara o que era tomar banho, a pequena, espavorida, encolheu-se toda, aterrada só com a ideia de ter de entrar na água.

- Escuta! - disse a Sr.a Mannering em tom firme.- Se deixares que eu te lave, dou-te um vestido da Dina e uma fita nova para o cabelo.

A perspectiva de tão grandes luxos seduziu Sara por tal forma que imediatamente acedeu a tomar banho. Levaram a banheira de zinco para a cozinha, encheram-na de água quente, e a Sr.a Mannering, de sabão em punho, deitou-se à tarefa de lavar Sara, enquanto as crianças esperavam no jardim o fim da operação. Daí a pouco começaram a ouvir gritos aflitivos e a voz enérgica da Sr.a Mannering:

- Senta-te como deve ser e molha-te, Sara, não te faças tola. Lembra-te do vestido azul, tão bonito, que está ali, à tua espera.

Mais gritos. Sara devia ter-se sentado, mas não estava a gostar. Depois ouvia-se esfregar. O João fez uma careta:

- A tua mãe está a desencardi-la a valer! Puf! Que cheiro a desinfectante!

Meia hora depois apareceu Sara, que parecia outra. A cara e os braços viam-se agora que eram morenos, queimados do sol, mas não escurecidos pela porcaria; no cabelo lavado e escovado trazia uma fita azul, como azul era o vestido que fora de Dina, e até vinha calçada, umas sapatilhas velhas, de borracha!

- Sara! Que linda estás! - exclamou Maria da Luz. Sara sorriu de contente. Gostava tanto de se ver tão bem ataviada que afagava o vestido como se ele fosse um gato.

- E cheiro bem! - o que mostrava que o intenso cheiro do desinfectante lhe agradava bem mais do que aos seus amigos. - Mas esse tal banho é uma coisa horrível! Quantas vezes tomam vocês banho? Uma vez por ano?

Sara era de uma ignorância incrível. Não sabia ler nem escrever; no entanto, como se fosse um pele-vermelha, era capaz de decifrar sinais nos bosques e nos campos como nenhum dos seus companheiros. Parecia-se mais com um animal muito esperto do que com uma rapariguinha. Os seus favoritos eram Filipe e Didi, e mostrava abertamente essa sua preferência.

No dia seguinte ao do banho Sara veio à vivenda e espreitou pela janela. Trazia ao colo qualquer coisa, o que intrigou a comunidade.

- Olha a Sara - avisou Maria da Luz -, traz o vestido novo, mas está outra vez toda desgrenhada! E que diabo trás ela ao pescoço?

- São os sapatos! - disse Filipe a rir. - Estava cá a parecer-me que ela não seria capaz de os usar por muito tempo! Está tão habituada a andar descalça que os sapatos magoam-na. Mas como está encantada com eles pendurou-os ao pescoço!

- E que trará ela ao colo? - perguntou Dina, curiosa.- Sara, entra e mostra-nos o que trazes aí.

Sara sorriu, mostrando os dentes brancos e pontiagudos, e dirigiu-se à porta da cozinha. Entrou, e Filipe deu um berro:

- Um raposinho! Ai, que lindeza! Sara, onde o apanhaste?

- Apanhei-o na toca. Conhecia o sítio e sabia que havia lá raposas.

Filipe pegou no raposinho ao colo. Era a coisa mais linda que possa imaginar-se, com o focinhito afilado, o rabito tufado e o pêlo abundante e encarniçado. Tremia todo, nos braços de Filipe, a olhar para ele, mas não passavam muitos segundos sem que o poder de encanto que Filipe tinha sobre os animais fizesse efeito: o raposinho trepou ao pescoço do rapaz, começou a lambê-lo e tornou a anichar-se-lhe nos braços, mostrando claramente que gostava dele.

- Tens realmente um dom especial para lidar com bichos! - comentou a mãe. - Herdaste-o de teu pai, que também era assim. Que encanto de raposinho, meu filho! Onde vais guardá-lo? Se não o metes numa gaiola, ele foge-te.

- Não, mãe! - e Filipe teve um gesto de desdém. - Vou treiná-lo a andar atrás de mim como um cãozinho. Vai ver que aprende depressa.

- Tu lá sabes, mas olha que as raposas são animais bravios, - foi o comentário da mãe, cheia de dúvidas.

Mas com Filipe nenhum animal era bravio. Ainda não tinham passado duas horas e já o raposito trotava atrás dos calcanhares do rapaz, pedindo colo sempre que o via parar.

A simpatia de Filipe pela ciganita tornou-se em afeição depois deste presente e logo percebeu que ela conhecia a fundo os bichos e os seus costumes.

- A Sara armou em cão de Filipe, sempre atrás dele para toda a parte! Gabo-lhe o gosto! - dizia, despeitada, Dina.

Dina andava de mau humor com o irmão porque ele andava a treinar quatro baratas - declarava ele - para obedecerem a certas vozes de comando. É certo que Filipe guardava as baratas no quarto, mas elas escapuliam-se e Dina passava aflições.

A Didi antipatizava fortemente com o raposito e ralhava-lhe sempre que o via. Da Sara é que ela gostava; voava-lhe para o ombro, mal a via, e bichanava-lhe ao ouvido coisas sem sentido. Sara delirava com isto e toda se ufanava quando a Didi ia ter com ela.

- Se pensas que podes contar com a afeição da Sara, estás muito enganado - troçava Dina para o irmão. - O seu amor número um é a Didi, não és tu!

- Eu queria que a Didi deixasse o Botão em paz - respondia Filipe. Tinha dado ao raposito o nome de Botão, e este formava, com Sara, o par que o seguia por toda a parte. - A Didi porta-se indecentemente com o Botão; suponho que tem ciúmes.

«Quantas vezes te tenho dito que limpes os pés?», ralhava a Didi com o Botão. «Onde puseste o lenço? Deus salve o Botão! O rei deu um estouro!»

As crianças rebolavam-se a rir quando a Didi baralhava as frases do seu repertório e a Didi mirava-os, de cabeça à banda.

«Atenção! Abram os livros na página seis!»

«Cala o bico, Didi! Fazes lembrar-me o colégio!», ripostou João.- Ouçam lá: tornei a ver hoje a águia. Pairava sobre o monte, e é de um tamanho fantástico. Tenho a certeza de que o ninho é lá por perto.

- Está bem, vamos à procura - respondeu Dina. - Cá por mim, estou morta por ir dar uma espreitadela ao castelo. Mesmo que não possamos ir pela estrada, por causa do desprendimento - ou é desprendidela? - das terras, podemos ir o mais perto possível, para ver como é.

- Isso, isso, vamos descobrir coisas novas! - apoiou Maria da Luz. - Levamos merenda e subimos o monte até o mais longe possível. Tu procuras os ninhos das águias, João, e nós vamos ver o castelo. Tem um ar tão estranho, tão misterioso, como se carregasse o sobrolho quando olha para o vale, ou como se tivesse um segredo que quer esconder!

- Está vazio e abandonado, bem sabes - retorquiu Filipe. - Não deve ter senão ratos, aranhas e morcegos; disso é que deve estar cheio.

- Ui! Então não entramos lá - atalhou logo Dina. - Antes quero encontrar um ninho com águias do que ver-me no meio de morcegos dentro de um castelo velho!

 

         O CAMINHO PARA O CASTELO

- Mãe, vamos até ao cimo do monte, à procura do ninho de águias, para fazer a vontade ao João. Ele tornou a ver a águia. Mas não vamos pela estrada - pela estrada do castelo, claro - por isso não se aflija - participou Filipe.

- Levem merenda. E até tenho muito gosto em ver-me livre de vocês durante toda a tarde. É a maneira de poder ler um bocado.

A mãe e Dina arranjaram pãezinhos com queijo e presunto e meteram-nos num saco, juntamente com um bolo, fruta e leite. O Filipe encarregou-se de levar tudo e assobiou ao Botão, que já dava pelo nome e acorria ao chamamento como um cão. O raposito apareceu, a correr, com uns alegres latidos fininhos. Todos gostavam dele, incluindo a Sr.a Mannering, que só se queixava do cheiro que às vezes se desprendia dele. Havia grandes discussões entre ela e Filipe, porque o Botão estava proibido de dormir na cama do rapaz.

- O teu quarto já tem bicharia que chegue. É o ouriço, que passa a vida a entrar e a sair do quarto, e ainda ontem havia lá não sei o quê que saltava por toda a parte...

Dina estremeceu. Fugia de ir ao quarto do irmão, e só o fazia quando de todo em todo não podia evitá-lo.

- Era o sapo, o Terêncio - respondeu Filipe. - Mas ele já não torna a andar aos saltos lá no quarto, porque agora anda aqui comigo. Quer ver? Tem os olhos mais lindos que...

- Não, Filipe - disse a Sr.a Mannering, muito séria. - Não quero vê-lo, escusas de o incomodar.

Filipe tirou as mãos dos bolsos e mostrou-se ofendido.

- Nunca alguém...

Mas ficou a meio da frase porque o Botão fazia tentativas para lhe trepar pelas pernas acima, em busca do colo.

«Que foi, Botão! Foi a Didi que te arreliou? Puxou-te o rabo?»

O raposito deu uns latidinhos e lá conseguiu instalar-se por cima do saco das vitualhas que Filipe tinha posto ao ombro.

- Onde estão os outros? - perguntou o Filipe. - Ah! Lá vêm. Eh lá, está tudo pronto para marchar?

Começaram a trepar pelo carreiro do monte, que subia todo em curvas e tinha a largura bastante para nele passar um carro. Sara não tardou a surgir, sempre de vestido azul, mas agora já todo sujo e roto, e com as sapatilhas de borracha penduradas ao pescoço, coisa que muito divertia as outras crianças.

- Deve ter os pés mais duros do que as pedras! - comentou João. - Nunca se magoa, seja qual for o piso!

Sara juntou-se logo a Filipe e ao Botão, e a Didi, depois de lhe ter dado as boas-vindas com algumas das suas frases amáveis, voou na direcção do bosque dos corvos, a assustá-los com as suas perfeitas imitações dos grasnados. Os corvos ficavam sempre embasbacados diante dela, e só levantavam voo, aborrecidos, quando ela começava a falar como um ser humano.

As crianças continuavam na subida, e como a tarde estivesse quente trepavam ofegantes e a arfar. Filipe protestou:

- Por que diabo escolhemos nós uma tarde como esta para vir ao castelo?

- Ao castelo? - Sara parou de repente. - Mas não por este caminho, porque a estrada está interrompida lá em cima. Por aqui só vamos dar às traseiras do castelo.

- Ora, nós queremos ver seja o que for - respondeu Filipe. - Eu, por exemplo, gostava de ver as terras que abateram; não posso, porque prometi que não iria até lá, mas lá gostar de ver, isso gostava.

- E eu gostava de entrar no castelo - acrescentou João.

- Não, não, isso não! - Sara arregalou os olhos com uma expressão de pavor. Os outros olharam para ela muito interessados.

- E porque não? - tornou João. - Está vazio, não tem ninguém, não é assim?

- Não! Não está vazio! Ouvem-se lá vozes, choros e barulho de passos. Não se deve lá ir.

- Isso são histórias da gentinha da aldeia, e tu deste-lhes ouvidos - disse João, desdenhoso. - Quem queres tu que lá viva? Não se vê vivalma, ninguém entra nem sai! O que vocês ouvem são apenas os pios dos mochos ou o chiar dos morcegos!...

- Qual é a história, ou a lenda, do castelo? Sabes, Sara? - perguntou Dina.

- Dizem que em tempos que já lá vão vivia lá um homem mau, e que esse homem convidava pessoas para irem visitá-lo, mas as pessoas nunca mais voltavam, nem nunca mais se sabia delas.

Sara falava baixinho, como se tivesse medo de que o "homem mau" a pudesse ouvir.

- Ouviam-se gritos e gemidos e o tinir de espadas, e dizem que ele fechava os convidados em quartos secretos e os deixava morrer à fome.

- Que velhote tão simpático! - exclamou Filipe, dando uma gargalhada. - Sabes, eu não acredito patavina dessa história. Contam sempre coisas dessas a respeito de casas velhas. O que deve ter acontecido é algum velhote meio maluco ter-se lembrado um dia de comprar um castelo arruinado, feito lá umas obras e ido viver para lá, a fingir que era um velho fidalgo dos tempos antigos. E devia ser mesmo maluco, para vir viver numa solidão destas.

- Tinha muitos cavalos, dizem, e todos os dias passava nesta estrada - continuou Sara. - Vocês não repararam que nas ladeiras mais íngremes a estrada está empedrada? Era para facilitar a subida aos cavalos.

- Sim - disse Filipe -, vi agora mesmo um pedaço de calçada.

Os outros calaram-se. Afinal, quem sabe se Sara teria razão? A verdade é que a estrada tinha bocados empedrados. Alguma coisa de verdade haveria nas histórias de Sara.

- Pois sim, mas tudo isso aconteceu há muitos anos, e o velhote já morreu, por isso já lá não pode haver ninguém - continuou Filipe - e eu gostava imenso de fazer explorações no castelo. E tu, João, não gostavas também?

- Bastante!

A Didi concordou.

«Bastante, bastante, tante, tante, ante...!»

«Didi, sai do meu ombro! Tu pesas, por este monte acima!», disse João a deitar os bofes pela boca.

«Anda para mim, Didi, eu levo-te!», ofereceu-se logo Sara, e a Didi não se fez rogada, empoleirando-se-lhe no ombro e recomendando-lhe que abrisse o livro na página seis. Sara não se cansava como os outros. Parecia um cabrito montês na facilidade com que trepava as ladeiras mais íngremes, sem mostras de esforço.

- Safa! Já temos subido bastante! Olhem para a estrada, como ela está! - Filipe enxugava o suor da testa.

De facto, a estrada já não podia classificar-se como tal. Era um amontoado de pedregulhos e de terra, vendo-se ainda as raízes das árvores arrastadas pelo desabar do monte. As crianças ficaram-se a olhar e Maria da Luz comentou:

- Parece que houve aqui um tremor de terra!

Para lá dos montões de pedras e de terra solta erguia-se o castelo, agora enorme, de construção pesada, com quatro torres quadradas e a sua fieira de ameias.

- O que eu queria era subir a uma das torres - suspirou Filipe. - Deve ter uma vista maravilhosa!

- Afinal o castelo não fica mesmo no cimo do morro, como nos parecia de lá de baixo - observou João. - E que aspecto feroz ele tem, não acham?

E tinha. Nenhum dos garotos achou bonito nem convidativo o castelo carrancudo e sinistro especado naquele local estranho e solitário.

- Como se entra pelas traseiras, Sara? - perguntou Filipe voltando-se para a ciganita. - Nós podíamos trepar por este lado... se bem que prometemos não o fazer. E, não há dúvida, alguns daqueles pedregulhos estão num equilíbrio tão instável que parece estarem só à espera de um empurrãozito para rolarem pelo monte abaixo!

- Olha a minha águia! Lá está ela! - gritou João, muito excitado, a apontar para uma ave enorme que pairava mesmo por cima do castelo. - Vêem-na, vêem-na? É uma águia real, está visto. E que grande! Aposto que tem ninho aqui perto. Oh, Céus! E lá está outra, olhem!

Efectivamente duas águias magníficas elevavam-se nos ares, voando cada vez mais alto, perante os olhares fascinados dos garotos.

- Como pairam elas assim, sem mexer as asas? - perguntou Maria da Luz. - Eu percebia se elas descessem, a planar, mas assim, sempre a subir, a subir, até parecerem dois pontinhos!

- Devem ser as correntes atmosféricas que as ajudam

- explicou João. - Este cimo do monte deve estar cheio de correntes e de diferentes camadas de ar. Duas águias, e juntas! Pronto, não tenho dúvidas: o ninho é por aqui.

- Tu não tens intenção de domesticar uma águia, pois não?

- perguntou Dina, alarmada.

- Não te rales, a Didi nunca deixaria o João domesticar uma águia! - respondeu Maria da Luz.

Dina sabia que isto era verdade e, aliviada, respirou.

- Elas levantaram voo lá por trás do castelo, ao que me pareceu - disse João. - Vamos de volta a ver se encontramos o ninho. Venham!

Saíram dali e, guiados por Sara, seguiram na direcção do oriente por um carreirito estreito, mas seguro.

- Quem teria aberto este caminho? - perguntou Dina intrigada.

- É um carreiro de coelhos, que os há aqui aos milhares. E abrem caminhos por todos os lados.

- Eu não posso mais! - gemeu Maria da Luz, arquejante. - Não tenho mais fôlego! Proponho que merendemos aqui. O ninho das águias não foge!

Todos concordaram e deitaram-se na relva, estafados. Filipe pousou o saco que trazia às costas, desatou-o, tirou para fora a merenda e tornou a deitar-se ao comprido. Imediatamente o Botão começou a lamber-lhe a cara.

As bebidas souberam a pouco, e ninguém tinha muita fome, o que permitiu à Didi e ao Botão encarregarem-se dos pãezinhos. Sara comeu também porque era de todos a menos estafada. Sentou-se a coçar a cabeça à Didi, enquanto os outros descansavam, deitados no chão. Mas depressa recuperaram forças; levantavam-se para continuar quando Filipe ouviu um ruído de água a correr. Partiu a investigar, porque a sede apertava, e quase de seguida chamou os outros:

- Cá está a água da nossa nascente! É fria e deliciosa, quem quer beber?

Todos queriam. A água saía em borbotões de um buraquinho na rocha, e corria e saltava por um leito de pedrinhas, tornava a desaparecer na terra, para surgir mais abaixo. Os garotos mergulharam os pés cansados na água fria, até que João deu com os olhos nas suas preciosas águias.

- Venham, venham! Agora é que vamos ver onde é que elas descem. Ai, não ter eu trazido a minha máquina fotográfica! Quem me dera poder fotografar o ninho!

 

        COMO ENTRAR LÁ DENTRO?

Estavam agora perto do castelo, e as muralhas, grandes e espessas, levantavam-se mesmo por cima deles, lisas e sem brechas até à altura em que começavam as seteiras.

- Construíram-no com os pedregulhos que abundam aí no monte - disse Filipe - e não deve ter sido tarefa fácil acarretar até aqui tanta pedra e blocos tão grandes. Olha! Ali há janelas em vez de seteiras! É capaz de ter sido o "homem mau" da história de Sara, que queria ter a casa bem iluminada! Que estranho tudo isto! Vê-se perfeitamente que foi restaurado e que levou remendos!

- Lá estão as águias outra vez! - gritou João. - Vêm a descer, a planar, e descem, descem! Olhem todos!

O grupinho ficou-se a olhar para aquelas aves de tão colossal envergadura.

- Desceram no pátio do castelo - declarou João. - É aí que devem ter o ninho. Tenho de o encontrar!

- Mas é impossível entrar lá dentro! - refutou Filipe.

- Onde é a porta de entrada? - perguntou João à Sara.

- É do lado da terra caída. Não podes lá ir, é muito perigoso. E também de nada te serviria porque a porta está fechada. Há outra porta, mais para aquele lado, mas está fechada também. Desiste, não se pode entrar no castelo.

- Onde é a tal outra porta? - teimou João.

Andaram mais um bocado, voltaram uma esquina e deparou-se-lhes uma grossa porta, de madeira de carvalho, encaixada na parede. João espreitou pelo buraco da fechadura, mas nada adiantou.

- Queres convencer-me de que não há outra entrada para o castelo?

- disse ele para Sara. - Que sítio tão estapafúrdio! Parece uma prisão!

- E era isso mesmo! - disse Maria da Luz, estremecendo com a recordação das histórias de Sara. - Uma prisão onde vinham morrer os desgraçados de quem nunca mais se ouvia falar!

João não se conformava. Pensar que duas águias raras tinham feito ninho no pátio, e que uma muralha o separava desse ninho, era-lhe insuportável.

- Temos de lá entrar, não podemos desistir - e deleitava os olhos para as janelas altíssimas. Mas não se via maneira de entrar; a muralha era lisa, não havia hera, nem nada que ajudasse a trepar. O castelo era inexpugnável.

- Se houvesse maneira de entrar lá dentro não seríamos nós os primeiros a fazê-lo - raciocinou Filipe. - Se ninguém cá vem é porque ninguém é capaz de entrar.

- E tu, Sara, não sabes de qualquer entrada? - insistiu João. Sara ficou calada por momentos, e tomou um ar solene. Depois abanou a cabeça:

- Talvez saiba. Nunca lá fui, mas talvez encontre um caminho.

- Mostra-nos, mostra-nos depressa! - suplicou o João. Sara guiou-os à volta do castelo, na direcção das traseiras,

onde a muralha parecia assentar directamente na rocha, e aí uma espécie de túnel, estreito e escuro, ligava uma ravina à muralha. Sara parou e apontou lá para cima, mas os outros não viram mais do que as seteiras. Olharam para Sara sem compreenderem onde estava a entrada.

- Não vêem? O penedo onde começa o túnel é quase da mesma altura da janela. Mas ao rochedo pode subir-se porque está coberto de trepadeiras. Depois basta lançar uma tábua entre o penedo e a janela.

- Já percebi! - afirmou Filipe. - Se conseguirmos pôr uma prancha, ou um tronco, de modo a ficar com as extremidades bem assentes no penedo e no parapeito da janela, podemos atravessar por cima dessa "ponte" e entrar no castelo. É uma ideia!

O resto da companhia encarou a hipótese de pontos de vista diversos.

Dina começava já a ter medo dos morcegos e do escuro do túnel e por sua vontade voltaria imediatamente para o monte e para o sol. Maria da Luz não gostava da ideia de ter de trepar ao rochedo e fazer uma travessia perigosa, para acabar por entrar no castelo deserto e misterioso. João, por outro lado, achava que valia a pena tentar, e estava pronto a começar a escalada.

«Acendam a luz, acendam a luz», ordenou a Didi, lá do fundo do corredorzinho escuro e estreito.

Todos riram. Tinha graça a maneira como a Didi, às vezes, parecia saber o que estava a dizer, saindo-se com frases a propósito.

- Vamos ver se encontramos um ramo, ou um tronco - alvitrou João. - Saíram da passagem escura e bafienta e puseram-se à cata de qualquer coisa que servisse de ponte para entrar pela janela. Mas nada encontravam, a não ser um ramo seco que Filipe descobriu, tão seco que se partiria mal se pusessem um pé em cima, e partir um ramo verde de qualquer árvore suficientemente comprido para cobrir a distância era impossível.

- Bolas! - exclamou João. - Em todo o caso, tentemos outra coisa: vamos ver se é possível escalar o penedo e se ficamos depois à altura da janela, como lembrou Sara. Se assim for, amanhã voltaremos cá e traremos uma prancha.

- Sim, é melhor deixar isso para amanhã. - Dina tentou ver as horas no relógio de pulso. - Está a fazer-se tarde, e amanhã até podes trazer a máquina fotográfica, João.

- Está bem. Mas primeiro temos de ver se é possível chegar à altura da janela - teimou João. Tentou escalar o penedo mas este era muito íngreme, João não fazia senão escorregar. Depois foi a vez de Filipe, que, agarrando-se com força às trepadeiras mais rijas, conseguiu subir um pouco. Mas a planta partiu-se e ele veio a rebolar até ao chão, não se magoando por sorte, e safando-se da queda só com leves arranhões.

- Agora eu! - disse Sara. E ei-la que desata a subir como um macaco. Nenhum dos rapazes seria capaz de trepar como ela, sabendo exactamente onde pôr os pés e quais as plantas a que se agarrar. Não tardou a ficar mesmo em frente da janela.

Lá no alto a vegetação era mais forte e mais tufada, Sara, agarrada a folhas e ramos, debruçou-se para espreitar pela seteira.

- Até me parece que era capaz de saltar daqui para o parapeito! - gritou ela lá de cima.

- Não penses nisso! És tola! Partias as pernas se caísses cá abaixo - berrou Filipe. - Que vês tu?

- Pouca coisa! - respondeu Sara, que parecia ainda hesitante em dar ou não o salto para o parapeito da janela. - Cá está a seteira muito estreitinha, claro. Nem sei se nós seremos capazes de passar por ela. Lá dentro distingo uma sala, mas está tão escura que nem vejo se é grande ou pequena. Tem um aspecto esquisito.

- Acredito! - disse João. - Mas agora desce, Sara.

- Eu dou só um salto, a ver se caibo na seteira! - e Sara preparava-se para saltar quando um berro de Filipe a imobilizou:

- Se fizeres semelhante coisa nunca mais te deixaremos andar connosco, ouviste? Queres partir as pernas?

Sara reconsiderou. A ameaça de ser expulsa do grupo assustou-a. Limitou-se então a espreitar, uma vez mais, pela fresta, e começou a descer, com os seus modos de cabrita, «aterrando» suavemente ao pé dos quatro amigos.

- Ainda bem que resolveste obedecer - disse-lhe Filipe num tom azedo. - Mesmo que tivesses chegado ao parapeito e ainda que coubesses pela fresta, não podias sair e ficavas presa no castelo.

Sara não respondeu. Tinha grande confiança nas suas capacidades de trepadora e de saltadora e no seu entender Filipe estava a fazer barulho de mais por uma coisa tão insignificante. A Didi, ouvindo a voz zangada de Filipe, desatou a ralhar também.

«Quantas vezes te tenho dito que feches a porta?»

E foi encarrapitar-se no ombro de Sara, que se pôs a rir e lhe fez festas.

«Já mo dissestes mais de cem vezes!»

E foi uma gargalhada geral que a resposta de Sara provocou. Meteram novamente pelo tunelzito e todos se alegraram quando voltaram a ver o sol.

- Bem, pelo menos já sabemos o que temos a fazer - declarou João. - Temos de encontrar uma prancha e trazê-la para cá amanhã, e quem vai colocá-la lá em cima é Sara. Damos-lhe uma corda bem forte, ela ata-a a um tronco grosso das trepadeiras, e assim poderemos subir agarrados à corda. Nós não temos todos a agilidade que ela tem!

- Lá nisso Sara é formidável!- apoiou Maria da Luz, e Sara resplandeceu de prazer. Desceram o monte, o que lhes custou menos do que a subida, especialmente porque Sara escolheu um bom atalho.

- É já tão tarde! - comentou João. - Oxalá a vossa mãe não esteja em cuidado.

- Não está, não - respondeu Filipe. - Ela bem sabe que em caso de qualquer coisa sair torta um de nós iria sempre buscar socorros a casa.

Apesar disso a Sr.a Mannering começava a inquietar-se com a ausência das crianças e ficou bem contente de as ver de volta. O jantar estava pronto e Sara foi convidada a compartilhar da refeição. Encantada, espiava os outros, a ver como comiam e bebiam, ela que não sabia estar à mesa: a Didi, do ombro do João, ia petiscando um pouco de todo o lado e dava sentenças sobre catatuas e lenços de assoar. O Botão, enroscado no colo de Filipe, adormeceu, estafado com a longa caminhada, muito embora Filipe o tivesse levado ao colo grande parte do tempo.

- Não sei se sabem que cheguei a ter medo de que o Botão fugisse quando se apanhasse no monte, que ele conheceu tão bem. Mas não, nem deu mostras de pensar em tal.

- Ele é uma jóia! - e Maria da Luz contemplou o raposito adormecido, todo enroscado e com o focinhito a tocar no rabo felpudo. - Só é pena que cheire mal.

- E ainda há-de cheirar pior - sentenciou Filipe. - Portanto, o melhor que vocês têm a fazer é habituar-se. Todas as raposas cheiram mal, e este há-de cheirar como elas.

«Só se for a Sara que se habitue, nós não», pensou Maria da Luz. «Ai, que sono tenho!»

Tinham todos sono nessa noite, cansados do sol e da subida ao monte.

- Cama! - bocejou Filipe com tanta força que o Botão acordou num estremeção. - Amanhã teremos um dia cheio, com mais subidas. João! Não te esqueças da máquina fotográfica!

- Não esqueço, não! Não posso perder uma oportunidade de fotografar aquelas águias. Eia, que rico dia vamos passar amanhã!

Foram todos para a cama no meio de grandes bocejos. A Didi era a que bocejava mais alto - não porque tivesse sono, ou estivesse cansada, mas porque descobrira um novo som para imitar, e estava radiante com a descoberta.

 

         A AVENTURA NO CASTELO

No dia seguinte o Botão acordou Filipe lambendo-lhe as plantas dos pés, que o rapaz tinha descobertas. Filipe acordou com um berro, coceguento como era.

- Está quieto, João! - tornou a berrar, e ficou a olhar, muito admirado, para a cama onde João estava deitado fitando-o com olhos espantados. «Ah, está bem, está bem, é o Botão. Botão! Ficas proibido de me lamber as plantas dos pés!»

João sentou-se na cama e riu-se. Esfregou os olhos e espreguiçou-se. Depois deu com a máquina fotográfica, que já tinha preparado para a excursão desse dia, e lembrou-se de tudo quanto tinham planeado na véspera.

- Anda, levanta-te! - e saltou da cama. - Está um dia estupendo e estou morto por voltar ao castelo. Que ricas fotografias vou fazer!

Filipe estava quase tão apaixonado pelos pássaros como o próprio João. Enquanto se vestiam começaram ambos a conversar sobre águias. Bateram à porta do quarto das raparigas quando por lá passaram e desceram. Encontraram a Sr.a Mannering, que era madrugadora; havia no ar um cheirinho a presunto frito.

- Que bom! - João fungou. «Didi, não me arranhes o ombro! O sol de ontem queimou-me, e isso faz-me doer».

«Que pena, que pena!», lastimou a Didi, e os rapazes desataram a rir.

- Até parece que ela percebe o que se lhe diz! - comentou Filipe.

- E percebe! - afirmou João. - Olha lá, e se fôssemos ver onde haverá uma prancha enquanto esperamos pelo almoço?

- Vamos a isso.

Saíram e puseram-se à procura, sempre de nariz no ar, a farejar o bom cheiro a presunto, ao qual se juntava agora o aroma do café. O Botão trotava atrás de Filipe, dando-lhe dentadinhas nos calcanhares todas as vezes que o rapaz parava. Não se atrevia a aproximar-se de João, pois se o fizesse a Didi, furiosa, dar-lhe-ia bicadas. Entraram no alpendre que servia de garagem e aí encontraram o que queriam: uma tábua, forte e larga, bastante comprida para ir do penedo à janela do castelo.

- Ui! O pior vai ser carregar com ela! Pesa... - disse João. - Teremos de nos revezar no seu transporte. Mas uma mais pequena não serve, é capaz de não ter comprimento bastante!

Nessa altura apareceram as raparigas e eles foram mostrar-lhes a tábua. Maria da Luz tinha decidido durante a noite não ir em mais escaladas, nem em mais explorações, mas agora, ao calor do sol radioso, mudou de ideias e sentiu que não aceitaria ser excluída de uma aventura em comum por mais insignificante que fosse.

- Mãe, deixa-nos passar hoje o dia todo fora? - pediu Filipe. - João tem a máquina carregada, e já sabemos onde estão as águias. Talvez possamos tirar umas boas fotografias.

- Pois sim, está um dia tão bonito que até vos faz bem comer ao ar livre. Oh! João, tira-me daí a Didi que está a comer a marmelada toda! Francamente! Eu não quero mais animais à mesa, pelo menos aqueles que não sabem portar-se decentemente. Ontem, ao chá, comeu metade de um boião de doce!

«Tira daí o nariz, Didi», ralhou João. A Didi voltou para o seu pouso, no ombro, e mostrou-se melindrada. Começou a imitar o barulho que a Sr.a Mannering fazia a mastigar a torrada, arregalando os olhitos redondos e sem a desfitar, de tal maneira que ela não pôde deixar de rir.

- Vocês não vão para o lado das terras, não? - perguntou, e todos abanaram as cabeças.

- Não, mãe. Sara mostrou-nos outro caminho. Olá! Cá está ela! Já almoçaste, Sara?

Sara, cujos olhos brilhavam sobre a massa revolta dos cabelos, estava a espreitar pela janela da cozinha. A Sr.a Mannering suspirou:- Valeu a pena estar a dar-lhe banho, está tão suja como anteriormente! E eu a pensar que ela iria sentir-se bem com a limpeza...

- Não se sente, não - respondeu Dina. - Do que ela mais gostou foi daquele horrível cheiro a desinfectante. Se a mãe quiser que ela se lave é dar-lhe um sabão desinfectante!

Afinal a Sara já tinha almoçado e, encavalitada na janela, limitou-se a aceitar uma torrada com marmelada, e logo a Didi, que gostava do petisco, se aproximou dela, na esperança de apanhar algum bocadito. A Sara dividiu a torrada com ela.

Acabado o almoço, os cinco garotos puseram-se a caminho. Dina levava os mantimentos, Maria da Luz a máquina de João e Sara, muito desvanecida, transportava ao ombro a Didi. Os dois rapazes levavam a prancha. João suplicou:

- Ensina-nos o caminho mais curto, Sara, que a tábua é um grande frete. É verdade, Filipe, trouxeste a corda? Eu esqueci-me.

- Trago-a atada à cintura. Acho que tem comprimento bastante. «Botão! Tira-te do meu caminho e não estejas para aí a pedinchar colo quando eu tenho de carregar com esta estúpida tábua!»

A subida ao monte foi interrompida por várias paragens para descanso. João, sempre com o sentido nas águias, nenhuma conseguia descortinar. A Didi largou o ombro da Sara para ir descompor uns corvos, mas voltou depressa para o seu posto, para dar bicadas nos atacadores das sapatilhas de Sara, tentando desatá-los. Aqueles sapatos pendurados ao pescoço da rapariga faziam-lhe grande confusão.

Chegaram ao castelo e tomaram o caminho da muralha das traseiras, a que ficava ao mesmo nível do cimo do monte.

- Uf! Cá estamos! - exclamou João ofegante ao pôr a prancha no chão, com grande alívio. - Meninas! Vocês vêm ver-nos colocar a prancha ou não?

- Vamos - respondeu Dina. E entraram todos no tunelzinho, que cheirava ainda mais a bafio, pelo contraste com o fresco perfume de urzes de que eles eram portadores. Lá estava o penedo.

- Sara, tu vais à frente e atas a corda, bem segura, ao ramo mais forte que encontrares, nas trepadeiras lá de cima - ordenou Filipe à medida que desenrolava a corda da cintura. - Depois todos poderemos subir, agarrados à corda, sem perigo de queda.

Sara marinhou pelo penedo acima, todo revestido de plantas rasteiras, até chegar à altura da seteira; amarrou a corda a um tronco grosso e forte e experimentou-lhe a resistência pendurando-se, com todo o seu peso, sobre o fosso que separava o penedo da parede.

- Cuidado, idiota! - berrou Filipe. - Se a corda parte, tu cais-nos em cima!

Mas a corda era forte e não partiu. Sara fez-lhes lá de cima uma careta e deixou-se escorregar pela corda abaixo, pousando nos bicos dos pés.

- No circo é que devias estar! - observou João, mas o dito não teve efeito porque Sara não sabia o que fosse um circo.

Filipe, com mais um pedaço de corda na mão, afirmou:

- Este bocado é para amarrar a prancha de modo a podermos arrastá-la até lá acima. Eu subo e vou puxando.

Agarrou-se com uma das mãos à corda que pendia do cimo do penedo, com a outra puxou a tábua, e tentou a escalada. Mas as mãos faziam-lhe falta para se agarrar às trepadeiras, e lá veio ele a escorregar até ao chão.

- João: ata-me a corda da prancha à cintura, para eu ficar com as duas mãos livres para me segurar.

João assim fez, e Filipe tentou novamente subir arrastando a prancha atrás de si. A tábua era pesada, os pés escorregavam-lhe mas, com o auxílio das plantas rasteiras, lá conseguiu marinhar até ao topo. Debruçou-se um pouco para espreitar pela seteira que ficava em frente, mas a escuridão nada lhe permitiu ver. Começou à procura de uma boa base para assentar a prancha.

- Espera, vou ajudar-te! - gritou João lá de baixo, e começou a trepar, segurando-se à corda. Uma vez lá em cima, os dois rapazes esforçaram-se por assentar a prancha no parapeito da fresta.

- Iça! Mais um bocado! Assim! Agora mais à direita! - indicou João, ofegante, até que por fim a prancha bateu no parapeito e ficou bem assente desse lado.

O outro extremo, o do rochedo, assentou em cima de um molho de raízes e de fortes pernadas de hera. João primeiro, depois Filipe, experimentaram a segurança da ponte improvisada e pareceu-lhes que estava firme.

- Então, conseguiram? - gritou Dina, muito excitada. - Formidável! Olhem, lá vai a Didi!

A Didi, que tinha seguido as manobras com ar muito admirado, levantou voo e foi aterrar na prancha, onde se empoleirou, de poupa eriçada e a cacarejar. A seguir deu uns passinhos pela ponte fora e foi meter o nariz na seteira, que claro, não tinha vidraça.

- Muito gosta a Didi de meter o nariz em toda a parte! - asseverou Maria da Luz, e gritou para Filipe: - E agora, já podemos subir?

- Estamos só a arranjar aqui uma plataforma para vocês se aguentarem enquanto vos ajudamos a atravessar a prancha - respondeu Filipe, que ia calcando a pés a vegetação. - O pior é o mato, porque aqui há espaço que chega até para vocês se sentarem.

- Eu vou atravessar - disse João, mas um grito da irmã fê-lo parar.

- Não, João, deixa-me subir primeiro! Eu quero ver-te passar, e daqui não vejo senão as tuas pernas!

Com a ajuda da corda as raparigas não tardaram a chegar lá acima e puderam então assistir à travessia de João. A prancha estava bem firme e o rapaz, seguro do seu equilíbrio, andou até ao parapeito da seteira. De pé sobre a prancha, agarrou-se ao recordo da fresta e gritou para os outros, que, de respiração suspensa, lhe seguiam os movimentos:

- Diabo! Isto é muito estreito! Não acredito que seja capaz de enfiar por aqui!

Experimentou comprimir-se o bastante para caber na fresta, encolheu a barriga, conteve a respiração, e lá se foi esgueirando até que acabou por saltar para a sala. Uma vez lá dentro gritou para os companheiros:

- Vitória! Já cá estou! Agora venham vocês. Isto está escuro como breu! Para a outra vez temos de trazer lanternas.

Amparada por Filipe, Dina atravessou a prancha, e João ajudou-a a entrar pela fresta, o que ela fez sem dificuldade. A seguir vieram Sara, Maria da Luz e finalmente, Filipe, o qual, como acontecera com João, teve de encolher-se muito para caber na estreita abertura.

- Pronto, cá estamos todos em plena aventura no castelo!

 

         NA TORRE

- A aventura no castelo? - repetiu, numa interrogação, Maria da Luz. - Porque dizem vocês isso? Parece-lhes que vamos ter aqui alguma aventura?

- Sabe-se lá! - retorquiu Filipe. - Isto digo eu... Mas que estranho que isto é! E que escuridão!...

Lá fora chegou-lhes um uivo lamentoso; era o Botão, que tinha ficado sozinho. Filipe deitou a cabeça de fora:

- Espera um bocadinho, Botão, já lá vamos!

A Didi esticou o pescoço para fora da fresta e apitou como uma locomotiva.

- Está a fazer ferro ao Botão por ter vindo connosco enquanto ele ficou lá fora! - notou Dina. «Gostas de arreliar o pobre do Botão, não gostas, Didi?»

À medida que os olhos se iam habituando à escuridão da sala começaram a lobrigar-lhe os contornos e João mostrou-se desapontado:

- Não passa de um casarão vazio - disse ele, como se tivesse esperado outra coisa. - Se calhar o resto do castelo é só isto: casarões vazios e gelados. Vamos, toca a investigar.

A porta dava para um corredor comprido, e por ele foram até uma outra sala, mais clara, iluminada por uma fresta e por uma janela larga, esta de construção muito mais recente. Num grande fogão de sala havia cinzas de um lume há muito apagado, o que levou Dina a dizer:

- Que esquisito pensar que houve um tempo em que pessoas se sentaram aqui em frente do lume!

A sala contígua, esta novamente muito escura, tinha só uma fresta, e Dina, que tinha ido dar uma espreitadela lá para fora, deu um grito que os fez pular a todos.

- Que foi, Dina? - interrogou Filipe.

Dina correu para ele tão precipitadamente que lhe deu um encontrão:

- Há aqui qualquer coisa que me tocou no cabelo! Eu bem senti! Vamos embora; depressa!

- Não sejas tola! - Mas Filipe calou-se bruscamente: também ele sentiu nos cabelos um roçar estranho. Virou-se de repente e nada viu. O coração começou a saltar-lhe do peito. Haveria de facto qualquer coisa misteriosa, invisível, nesta sala? Um raio de luz mais forte entrou pela fresta e João pôs-se a rir:

- Somos uns bons idiotas! São teias de aranha! Olhem para elas, o tecto está cheio delas! E devem existir há que anos!

Respiraram fundo, mas Dina, mesmo assim, queria ver-se dali para fora. Se já estava com medo, a ideia das teias de aranha ainda mais a apavorou, e estremecia só de pensar que lhe podia cair em cima alguma aranha.

- Vamos para onde haja luz do sol! - suplicou. Entraram numa galeria cheia de janelas por onde o sol entrava a jorros. Sara, de olhos esbugalhados, encostava-se a Filipe, sempre à espera de ver aparecer o tal homem mau, de que falavam as lendas, que os iria prender a todos. Mas, apesar do medo, estava disposta a seguir Filipe até ao fim.

- Olhem! Por aqui vamos ter à muralha que leva à torre oriental. Vamos à torre, deve ter uma vista soberba - propôs João.

- Sinto-me um soldado antigo a fazer a ronda do castelo - ia dizendo Filipe enquanto marchavam pela muralha recortada de ameias. - Eia! Que grande é a torre! E tem uma sala lá em baixo que comunica com o cimo da torre por uma escada de caracol, toda de pedra! Subimos?

Subiram a escada decididos a não olhar para fora enquanto não chegassem ao cimo da torre. A escada dava para uma nova sala, e desta partia outra escada, mais pequena e mais estreita, que terminava no terraço da torre. Aí, circundados de ameias, ficaram-se em silêncio a olhar. Era a primeira vez que se encontravam a uma altura tão grande e que tinham na sua frente uma vista tão vasta e tão maravilhosa.

Parecia-lhes que viam à sua volta, e a seus pés, todo o mundo, a brilhar ao sol. Lá muito ao longe via-se o vale, e o riozinho prateado era como uma serpente luminosa todo às curvas e voltinhas. As poucas construções que dis tinguiam tinham o aspecto de casas de bonecas.

- Olhem para aqueles montes ali em frente - aconselhou João. - Por trás deles há outros montes, e por trás desses montes mais montes!

Sara estava embasbacada. Nunca tinha pensado que o mundo fosse tão grande. Aquela paisagem assim vista do alto da torre abria-se como um mapa vivo, e era tão bela que, sem saber porquê, Maria da Luz teve vontade de chorar.

- Isto era um sítio estupendo para vigia! - lembrou Filipe. - As sentinelas podiam ver os inimigos a milhas de distância! Olha! Aquilo não é a nossa casa ali no meio daquelas árvores!

Era verdade. Lá estava a vivenda do tamanho de uma casinha de bonecas lá longe, a meio da encosta. Dina asseverou:

- Quem me dera trazer aqui a mãe! Ela havia de achar esta vista admirável.

- Olhem! Olhem! Lá estão as águias! - João apontou para o ar, onde pairavam as duas enormes águias. - Se nós almoçássemos aqui mesmo, para não perder esta vista e para eu ir vigiando as águias?

Todos responderam afirmativamente em uníssono, incluindo a Didi que gostava de fazer parte de qualquer coro.

- Pobre Botão - lamentou Filipe. - Que pena não o termos trazido! Era um bocado arriscado atravessar a prancha com ele. Mas ele deve estar tão triste! Oxalá não se lembre de fugir!

- Bem sabes que não foge - explicou Dina. - Nenhum animal foge de ti, e é pena! Filipe, não me digas que trouxeste esse horrível sapo. Trouxeste, sim, que eu bem estou a vê-lo, a espreitar, aí no teu pescoço! Eu não fico aqui com o sapo ao pé de mim.

- Mau! Não desatem agora à bulha aqui, no cimo da torre! - protestou João, sinceramente aflito. - As ameias não são bastante altas para impedir um trambulhão lá para baixo! Senta-te, Dina!

- Não dês ordens! - resmungou Dina, que começava a perder a cabeça.

Maria da Luz tentou mudar de assunto, e perguntou:

- Onde está o almoço? És tu quem o traz, Dina. Dá-o cá depressa, que estou a morrer com fome!

Dina foi buscar as provisões, afastando-se o mais possível do irmão. Havia dois pacotes, um com a indicação de "Almoço", outro que dizia "Merenda".

- Guarda o da merenda, senão comemos já os dois! Com a fome que tenho!...

Dina fez a distribuição dos pães com queijo, presunto e outras coisas, e dos bolos, bolachas, fruta e chocolate. Depois entregou a cada um o respectivo copo de papel, para a limonada que vinha numa garrafa.

- Já fizemos muitos piqueniques na nossa vida - Filipe deu uma dentada num pão com presunto e ovos - mas nunca num sítio tão fantástico como este. Até fico tonto só de olhar à volta!

- É uma maravilha estar aqui sentada a comer e ver estes montes e as sinuosidades do rio, lá em baixo, no vale! - comentou radiante Maria da Luz. - Tenho a certeza de que o tal velhote, de que fala a Sara, comprou o castelo só por causa desta vista! Eu, pelo menos, se tivesse dinheiro e o comprasse, era só por

isso.

Comeram e beberam com grande prazer, e a Didi, que se pelava por pãezinhos, compartilhou da refeição. De vez em quando dava uns pulinhos até ao extremo da torre, trepava a uma ameia e punha-se de cabeça para baixo. De súbito deu um grito medonho, desequilibrou-se e desapareceu no abismo. As crianças, horrorizadas, levantaram-se dum salto, mas tornaram a sentar-se, a rir da sua própria ingenuidade: a Didi tinha asas, claro, e lá estava ela a voar, ao pé da torre.

«És uma idiota, Didi! Pregaste-me um bom susto!», dirigiu-se-lhe Dina. - Bem, já toda a gente comeu? Então vou levantar os restos e arrumar a papelada no cesto.

João observava as águias, que durante todo o almoço tinham pairado por cima deles, lá no alto, como dois pontos escuros.

Desciam agora planando em círculos largos, com as enormes abertas, para aproveitarem todas as correntes atmosféricas.

A ventania, que no cimo do monte era forte, lá no alto da torre mais se fazia sentir, despenteando os garotos, que estavam atentos ao voo das águias, cada vez mais baixo. Inferior a eles, e por trás, ficava o terreiro do castelo, cheio de ervas, tufos de urze, de tojo e de arbustos. O monte tinha-se assenhoreado do castelo e a vegetação cobria o que restava de pavimento, empurrava e deslocava as pedras que um dia tinham lajeado o pátio.

- O ninho das águias deve ser ali, naquele canto do terreiro, onde os arbustos são mais cerrados - afirmou João, muito nervoso. - É desses recantos bravios que elas devem gostar. Vamos ver?

- Tens a certeza de que não há perigo? De que elas não nos atacarão? - exclamou Filipe. - Elas são enormes, e já ouvi histórias em que elas atacam as pessoas.

- Sim - respondeu João. - Tens razão; esperemos que elas levantem voo outra vez e depois iremos então lá espreitar. Mas, de qualquer maneira podemos ir andando e deitando uma vista de olhos por ali perto. «Didi, vem cá!»

A Didi veio pousar-lhe no ombro, dando-lhe as costumadas bicadinhas na orelha e bichanando-lhe as habituais patetices ao ouvido. Desceram todos as escadas de pedra e viram as duas salas da torre, completamente nuas, com enormes teias de aranha pendentes do tecto até ao chão, só desfeitas nos sítios em que o vento vindo das frestas, as sacudia.

- Como se passa para o pátio? - interrogou Filipe.- Somos capazes de ter de voltar à muralha e de entrar no castelo. Talvez haja uma escada que leve às salas do rés-do-chão.

Assim fizeram e voltaram ao corpo principal do edifício. Percorreram sala por sala, todas elas nuas, e deparou-se-lhes uma outra escadaria, muito larga, que descia até uma enorme sala, escuríssima. Aí um corpo estranho arremessou-se de encontro às pernas de Filipe, que deu um pulo acompanhado de um berro. Pararam todos, imóveis. Maria da Luz sussurrou:

- Que foi?

Era o Botão! Filipe pô-lo ao colo:

- Como diabo chegou ele até aqui? Deve ter encontrado algum buraco para vir ter connosco. Botão! Tu és um génio! Mas, palavra, pregaste-me um susto!...

O Botão deu um ganidinho e enroscou-se no colo do dono. A Didi dirigiu-lhe uns reparos azedos sobre fechar portas e foi a única a demonstrar desagrado com a vinda do raposito.

-Vamos ao pátio investigar o que por lá haverá - alvitrou João. - E acautelem-se com as águias.

 

         O NINHO DAS ÁGUIAS

As crianças abriram caminho através do mato que invadia o vasto terreiro. Apesar do aspecto bravio que apresentava agora, podia imaginar-se como teria sido nos tempos antigos: um largo recinto, todo lajeado, aberto no monte e limitado nas extremidades por umas fragas abruptas.

- Num daqueles pedregulhos é que as águias devem ter feito o ninho - deduziu João, enquanto avançavam pelo terreiro fora, debaixo de sol. - Sara, fazes o favor de tomar conta da Didi e de não a deixar vir meter-se nisto, sim?

A Sara, orgulhosa, ficou com a Didi enquanto os outros se encaminhavam para o monte de pedras, meio revestido de urze, que se erguia num dos cantos do terreiro. Maria da Luz não estava muito interessada em aproximar-se das águias, mas não queria largar o irmão.

- Vocês, pequenas, sentem-se aqui, enquanto eu e Filipe trepamos até lá acima - recomendou João. - Aposto que as águias não nos atacam; no entanto, tenham cautela e estejam atentas.

Mal os rapazes começaram a trepar, um berro estridente imobilizou-os e, de medo, agarraram-se um ao outro, enquanto as raparigas davam um pulo e o Botão corria a enfiar-se na primeira lura que encontrou. Só a Didi não se mostrou assustada. Pela cabeça de Sara passou rápida a ideia de que o berro teria sido dado por algum prisioneiro do homem mau, desse malvado que talvez não tivesse morrido e ainda andasse por ali a rondar. Os outros garotos, embora não acreditando em semelhantes tolices, sentiram gelar-lhes o sangue nas veias.

- Que foi, João? - perguntou Maria da Luz, muito baixinho. - Volta para trás, não subas mais. Olha que o grito veio daí!

Novamente se ouviu o mesmo grito, agora mais forte, um grito estranho, quase latido. A Didi preparou-se para o repetir, contente por poder imitar um ruído tão lindo, e fez uma imitação tão feliz que toda a gente pulou de susto outra vez. A Sara, então, quase ia caindo, porque a Didi estava-lhe empoleirada no ombro.

«Pássaro estúpido, idiota»!, rosnou João, furioso. A Didi mirou-o e repetiu o berro, e quase simultaneamente uma águia enorme, que devia ter estado escondida entre as fragas, levantou voo por cima das cabeças atónitas da criançada, que só então percebeu a origem do berro ao ouvir a águia dar novo grito.

- Ora bolas! Era a águia a gritar, mais nada! - e João sentiu-se muito aliviado. - E nós que não vimos logo que era só isso! A verdade é que eu nunca tinha ouvido uma águia... Isto prova que o ninho deve estar por aqui.

A águia não picou sobre os garotos, mas conservou-se pairando por cima deles, sem deixar de olhar para baixo, e a sua atenção concentrava-se na Didi, a qual, satisfeita com a descoberta, tornou a gritar. A águia respondeu e voou mais abaixo, e a Didi partiu ao encontro dela, parecendo ainda mais pequena à vista da enorme ave. As crianças viam-lhe agora nitidamente as penas compridas e amareladas do pescoço, que brilhavam ao sol como ouro.

- É de facto uma águia real! - corroborou Maria da Luz. - João dizia bem. Olhem para as penas douradas! Ai, oxalá ela não desça mais!

As cinco crianças não despregavam os olhos da Didi e da águia. Geralmente os pássaros ou tinham medo da Didi, ou se mostravam admirados, ou se enfureciam com ela, mas a águia não mostrava nada disso. O que mais parecia intrigá-la era o facto de uma ave tão pequena e tão estapafúrdia ser capaz de gritar como ela. A Didi estava divertidíssima: voava à roda da águia, gritando e latindo todo o tempo, até que, de repente, mudou de ideias e resolveu mandá-la assoar-se! Nesta altura a águia, ainda intrigada pelo aspecto da Didi, teve um movimento de reacção ao que lhe pareceu ser uma voz humana, mas acabou por mostrar-se desinteressada e, sem sequer reparar nos garotos, voou até ao cimo dos pedregulhos e ficou de lá a olhar, com ares de rainha.

- É magnífica, não é? - disse João, no cúmulo do entusiasmo -, Imaginem! Ver assim uma águia mesmo ao pé! Olhem para aqueles sobrolhos carregados e para os olhos que parecem brasas a fitar-nos! Não admira que lhe chamem a rainha das aves!

Realmente a águia estava esplendorosa, assim empoleirada com ares soberanos. Era de um castanho-escuro, excepto na nuca, onde o colorido se apresentava dourado, e as penas cobriam-lhe as pernas quase até às garras. Não desfitava a Didi.

- Lá vem a outra! - disse, baixinho, Maria da Luz. E viram então a segunda águia aparecer no ar, vinda lá de trás do penedo curiosa de ver o que se passava. Pairava, com as grandes asas abertas e franjadas como dedos, e a primeira, como se se fartasse da Didi, deu um impulso às asas e foi juntar-se-lhe.

- A primeira águia é o macho e a outra é a fêmea - explicou João excitadíssimo.

- Como sabes? - perguntou Dina, incrédula. Não via diferença alguma entre as duas aves.

- Porque a segunda é maior do que a primeira - explicou o rapaz. - Nas águias douradas a fêmea é sempre mais corpulenta do que o macho e tem maior envergadura. Ena, até estou nervoso!

- Devias ter fotografado a que esteve pousada no penedo!

- lembrou Filipe, e João exclamou contrariado:

- Ora bolas! Nunca mais me lembrei da máquina! Estava tão embasbacado que nem pensei nisso! E que ricas fotografias podia ter feito!

As duas aves, neste momento muito no alto, eram apenas dois pontos escuros no azul do céu. - Agora é que calhava mesmo ir em busca do ninho, enquanto elas andam lá por cima

- alvitrou João. - Tem graça! Elas não tiveram medo de nós! Será porque nem sabem da existência dos homens, habituadas à solidão deste monte?

- Que terá acontecido ao Botão! Encafuou-se naquela lura e nunca mais apareceu! - lembrou-se Filipe de repente, muito preocupado.

- Anda para aí a meter medo a alguma família de coelhos!

- respondeu João. - Ele volta, descansa. E eu compreendo muito bem que ele se tivesse enfiado no primeiro buraco que encontrou quando ouviu os gritos! Cá por mim teria feito o mesmo se pudesse. Que barulho medonho!

Novamente os rapazes se dispuseram a marinhar pelas fragas, que eram altíssimas, quase da altura da torre, e cheias de lajes escorregadias. A escalada foi dura, mas João encontrou, lá em cima, num nicho abrigado e bem escondido, do lado do poente, o que tanto queria contemplar: o ninho das águias reais!

- Olha para isto, Filipe! Já viste o tamanho dele?

- Tem pelo menos uns dois metros de largura! Ficaram-se a admirar o enorme ninho, aconchegado num vão

espaçoso dum penedo. Tinha seguramente uns setenta centímetros de altura, e era feito de pequenos troncos e pauzinhos, entretecidos com urze; o fundo, que não mediria menos de meio metro de largura, era muito bem forrado de musgo, erva e bocadinhos de urze.

- Está lá uma águiazinha! - descobriu João, encantado. - E que tamanho tem! Já deve ir nos seus três meses e não tardará a voar.

A águiazinha, ao ouvir a voz de João, encolheu-se toda dentro do ninho. Era já tão grande que Filipe não teria sido capaz de a distinguir de uma adulta. Mas os olhos conhecedores de João souberam distinguir imediatamente que as penas eram brancas na raiz, sinal de que se tratava de uma águia ainda não completamente formada. A Didi foi bisbilhotar o ninho e pôs-se a gritar como tinha ouvido à águia. A águia-bebé arregalou os olhitos, intrigada com aquele chamado, que ela conhecia tão bem mas que não percebia de onde vinha.

- A máquina, depressa! - sussurrou Filipe, e João, com gestos rápidos, começou a prepará-la.

- Trata disso depressa - insistiu Filipe-, que vêm lá as outras duas!

João levantou os olhos e viu aproximarem-se as águias que, ao descobrirem os rapazes, se lembraram do filho e vinham defender o ninho. João só teve tempo de disparar a máquina, pois logo a seguir a Didi partiu ao encontro das aves, recebendo-as aos gritos. Como lhes achasse um ar pouco tranquilizador, Filipe propôs:

- Vamos embora! Mas, palavra, só tenho pena de não poder fotografar o primeiro voo da águiazinha! Dá a impressão de que está pronta para começar a voar!

Com as duas águias cada vez mais perto deles, os rapazes desceram precipitadamente. - Tiraste fotografias? - perguntou Maria da Luz, e João acenou com a cabeça. Estava delirante!

- Tenho de voltar cá - asseverou ele. - Poderei fazer fotografias de águias como nunca ninguém fez! Vocês estão a ver? E o dinheiro que eu poderei arranjar com a sua publicação em revistas ilustradas!

- Ó João, então tira mais fotografias - exclamou Maria da Luz com os olhos a brilhar.

- Para tirar boas fotografias teria de passar a vida cá em cima - respondeu-lhe o irmão. - Isto de trepar até cá só de longe em longe não chega. Só se eu pudesse acampar aqui por uns dias.

- Ora, se tu quisesses podias fazê-lo - garantiu Filipe.

- A mãe deixava-te se soubesse para o que era. Aqui não há perigo de qualquer espécie, e nós trazíamos-te cá a comida.

- E se acampássemos todos aqui? - foi dizendo Maria da Luz, que não queria separar-se do irmão. - Porque não havemos de poder?

- Porque era indecente deixar a minha mãe sozinha, e ela não devia gostar muito disso! - objectou Filipe. Maria da Luz corou: - Tens razão! Nem pensei em tal; que estúpida!

- Mas eu posso vir, nenhuma razão há para que não possa! - e João entusiasmava-se cada vez mais com a ideia. Arranjava um esconderijo ...

- Que é um esconderijo? - perguntou a Sara, que nessa manhã era a primeira vez que falava.

- Um esconderijo? É uma espécie de toca, onde eu me pudesse esconder, com a minha máquina - explicou João, impaciente. - E então, à medida que as águias se fossem habituando à minha presença, podia fotografá-las à vontade sem ter de me mostrar nem de me expor muito. Era questão de procurar um canto bastante abrigado, bem secreto, aqui entre os penedos, mas de onde se visse bem o ninho. Caramba! Então é que eu podia fotografar todos os ensaios da águiazita para o seu primeiro voo!

- Bem! Pede à mãe que te deixe vir para cá - disse Filipe -, e eu venho contigo. Se bem que um de nós faz falta lá em casa para ajudar a acarretar lenha para o fogão e outras coisas assim...

- Eu encarregava-me disso - atalhou Dina, a quem sorria a ideia de se ver livre do sapo durante alguns dias. Mantinha-se a distância do irmão e tencionava não se aproximar dele enquanto ele andasse com semelhante companheiro.

- Não, não podes - respondeu-lhe o irmão. - Mas não faz mal: a Didi virá fazer companhia ao João e eu venho cá vê-lo todos os dias. E agora toca a andar, que ainda temos de ir explorar a parte mais baixa do castelo.

Encaminharam-se novamente para o edifício, atravessando o terreiro, na esperança de encontrar mais salas como as que tinham visto nos pisos superiores. Mas que surpresa os aguardava!

 

         UMA COISA CURIOSA

Entraram por uma grande porta e caminharam ao longo de um salão escuríssimo, onde os passos deles ressoavam estranhamente. Lá de fora vinham os gritos das águias, o que fez João dizer:

- Afinal os tais gritos que os aldeões ouviam das bandas do castelo eram as águias. - E abriu uma larga porta, à saída do salão, quando estacou surpreendido: a nova dependência que se lhe apresentava não estava vazia! Tinha sido, no seu tempo, uma sala de estar e, sem que se percebesse ao certo porquê, conservava o seu mobiliário a cair de velho. Isto intrigou os pequenos, que se imobilizaram, calados, a olhar para aquele quarto esquecido. Sentiam-se impressionados com aquele cheiro a bafio, pelo silêncio da velha sala, que recebia a luz do dia por quatro seteiras e por uma janela. Essa luz incidia nas camadas de pó que se acumulavam nos sofás e numa mesa grande e nas enormes teias que, ao longo de muitos anos, gerações e gerações de aranhas haviam tecido. Dina estremeceu, e quando os outros avançaram pela sala em bicos de pés e falando baixinho, ela nem se moveu. Maria da Luz passou a mão por uma das cadeiras e logo uma nuvem de poeira a sufocou. Filipe puxou por um pano que cobria um dos sofás, que, de podre, lhe ficou nas mãos, em farrapos.

- Que sala tão esquisita! Tenho a impressão de estar a viver cem anos atrás! Parece que o tempo parou aqui. Porque seria que deixaram este aposento assim?

Passaram à divisão contígua, e esta estava vazia. Mas a seguinte, mais pequena do que as anteriores, estava também mobilada e devia ter sido sala de jantar. Lá estavam as teias de aranha, pendendo de todos os cantos e do tecto muito alto, em longos fios cinzentos.

Os garotos experimentaram abrir as portas de um grande armário louceiro, e deram com os restos de uma baixela, de porcelana e de prata, ou que prata lhes pareceu, pois que as molheiras e os galheteiros estavam tão oxidados que já não se poderia distinguir o metal de que teriam sido feitos.

- Cada vez mais esquisitíssimo! - disse Maria da Luz, citando Alice no País das Maravilhas. - Porque teriam abandonado estas dependências assim mobiladas?

- Provavelmente o tal velhote de que fala a Sara habitava só meia dúzia de aposentos, em todo o castelo, e nós estamos precisamente nesses aposentos - explicou João. - Se calhar, quando se foi embora, tinha intenção de voltar. E como jamais se atreveu a vir ao castelo, não se soube que tinha cá ficado isto tudo. É um mistério!

O raposito, entretanto, farejava por todos os cantos e levantava nuvens de poeira que o faziam engasgar-se. A Didi parecia não gostar daquela habitação e, muito calada, não largava o ombro de João. Chegaram à cozinha, que era vastíssima, e onde, em enormes prateleiras, ainda se viam tachos e chaleiras de ferro. Filipe tentou pegar num, mas era pesadíssimo.

- As cozinheiras deviam ser valentes nesse tempo! - comentou. - E olha, está aqui uma bomba de água, no lava-loiça, ou não é? Tinham de dar à bomba para terem água na cozinha.

Foram ver e era realmente uma bomba, com um manípulo, que devia trazer a água de algum poço nos subterrâneos. Mas Filipe ficou-se a olhar, muito atento, para uma poça de água no chão, mesmo por baixo da bomba.

- Que foi? - perguntou João.

- Nada, nada... Mas, olha lá! De onde veio esta água? Não está aqui há mais de um ou dois dias, de contrário já teria secado há que tempos!

João levantou os olhos para o tecto velho e escuro, à procura de alguma goteira, mas nada viu. Tornou a olhar para a poça de água; por sua vez sentiu-se intrigado e sugeriu: - Vamos dar uma bombada, a ver se ainda vem água ou se esta coisa já não funciona. - Antes que ele deitasse a mão ao manípulo, Filipe fê-lo parar com um safanão. João olhou-o, pasmado, e Filipe, de testa franzida, como quem se esforça por compreender, exclamou:

- Olha lá! Já reparaste que o manípulo não tem pó, ao contrário do resto dos móveis? Está tão limpo como se tivesses acabado agora mesmo de dar à bomba!

Dina sentiu um calafrio pela espinha. Que queria Filipe dizer? Quem poderia dar à bomba num castelo abandonado? Todos miravam a bomba, verificando que Filipe tinha razão. O Botão, que estava com sede, pôs-se a beber a água que estava no chão.

«Espera lá, Botão, que eu dou-te água limpa». E Filipe desatou a dar à bomba, com grande energia, e a água, límpida, brotou em jorro, para dentro do velho lava-louça, salpicando o chão.

- Ora cá está a origem da poça de água - observou João, que estava todo atento. - São os salpicos que caem da pia do lava-loiça. O que quer dizer que alguém deitou aqui água há muito poucos dias!

Sara abriu uns grandes olhos apavorados: - O velho mau ainda cá está! - disse ela, espreitando a medo à sua volta, não fosse o velhote entrar por ali dentro.

- Não sejas tola, Sara! - impacientou-se Filipe. - O teu velho já morreu há muito tempo. Sabes se alguém lá da aldeia vem até aqui alguma vez?

- Ai não, não! Todos têm medo do castelo e dizem que andam coisas por cá.

Os cinco garotos começaram a sentir-se pouco à vontade, e a pensar, que seria muito bom voltar para o ar livre, quando a Didi deu um gemido que os fez pular todos.

«Está quieta, Didi, não faças isso», zangou-se João. - Que pensas disto tudo, Filipe? Achas que há gente no castelo?

- Até aqui não tínhamos observado quaisquer sinais. E quem havia de cá estar? Não há comida, não há nada! O que acho é que algum vagabundo passou por aqui, meteu o nariz, teve sede e experimentou dar à bomba para poder beber.

Esta explicação era razoável, mas Dina ficou a pensar, e daí a instantes perguntou:

- E como entrou ele?

Ninguém encontrou resposta para dar até que João alvitrou:

- Talvez haja outra entrada.

- Não há - afirmou Sara. - Eu conheço o castelo a toda a volta e sei que não há. Não há outra entrada.

- E eu digo que tem de haver! - Com esta afirmação categórica Filipe pretendeu encerrar o assunto para que todos voltassem lá para fora, merendar. - Pronto, procuremos um sítio bonito, no terreiro, para comer, que estou cheio de fome.

Saíram para o pátio, quente e cheio de sol, onde mal se sentia uma aragem, protegido como estava pelas altas muralhas, e sentaram-se enquanto Dina desfazia o pacote da merenda. Havia comida, mas a limonada tinha-se esgotado ao almoço.

- Eu tenho tanta sede que hei-de beber, seja lá o que for, para ser capaz de comer - disse Maria da Luz. - Daqui a pouco estou com a língua de fora, como um cão!

Todos estavam na mesma, mas ninguém se sentia disposto a voltar à cozinha, tão grande e tão só, para ir buscar água.

- Já sei! Vamos ver se encontramos a mina da nascente lá de casa - lembrou Filipe. - Dizem que a água parte aqui, deste terreiro; isso sei eu. E deve estar aí a aparecer num lado qualquer.

Ele e o Botão foram em busca da mina, e foi o Botão que deu com ela. A água borbulhava perto de uma das muralhas, quase ao pé da torre onde tinham almoçado; corria ainda num fio delgadinho, mas já vinha fresca e transparente. O Botão, radiante, começou a bebê-la. Filipe encheu dois copos de papel e chamou por João para que trouxesse mais copos. Vieram João e Sara, e João ficou a admirar as bolinhas da água que surgia de um buraco na rocha e desaparecia debaixo de um silvado, passando por baixo da torre por uma espécie de tunelzinho.

«Deve correr por baixo da torre para tornar a brotar mais abaixo, no monte - pensou ele, - e vai-se juntando a outros veios, engrossando o caudal que lá na vivenda dá aquela nascente abundante e o regato do jardim.»

A água, fria como gelo, regalou-os, e quando acabaram de comer deitaram-se de papo para o ar, a admirar as águias, sempre a pairar lá no alto.

- Isto é que foi um dia! - comentou Filipe, cheio de preguiça. - Então, João, ainda te apetece passar cá uns dias ou achas isto muito solitário?

- Terei a companhia da Didi e das águias sem falar nos coelhos todos que andam por aí!

- Agora é que eu não ficava aqui sozinha, pelo menos enquanto não soubesse quem deu à bomba! - protestava Dina. - Passava o tempo todo arrepiada!

- Olha a novidade! - respondeu-lhe o irmão. - Como se não te arrepiasses só de ver a pontinha de uma lagarta a sair de um buraquito! Deves passar a vida em permanentes arrepios, nem fazes outra coisa! Experimenta habituar-te a um sapo que trepe por ti acima, ou a trazer um ouriço na algibeira, ou umas tantas baratas, e vais ver como te passam os arrepios!

- Cala-te! - gritou ela, tremendo só com a ideia das baratas a marinharem por si acima. - És um malvado! João, tu não vens para cá sozinho, não?

- E porque não? - riu-se o rapaz. - Eu não tenho medo e acho que Filipe tem razão em pensar que foi um vagabundo qualquer que fez trabalhar a bomba. Assim como nós viemos até aqui outros o poderão ter feito.

- Sim, mas como? - e a Dina não desistia.

- Pelo processo do Botão, por exemplo - disse Filipe. Dina ficou a olhar para ele, e volveu: - E como entrou o Botão? Se descobrires como foi não precisamos mais da prancha!

- Ora, o Botão entrou por alguma lura de coelho, julgo eu - respondeu o rapaz a troçar. Mas Dina zangou-se: - Não digas asneiras! Um homem não passa por uma lura de coelho, como o Botão, ou não sabes isso?

Filipe, com ar ainda mais trocista, respondeu:

- Ah! E eu que não tinha pensado nisso! - e desviou-se para não apanhar com o punhado de terra que a irmã lhe atirou.

- Eh lá! Eu é que apanhei com a terra nos olhos! - exclamou João, sentando-se. - Acalma-te, Dina. Eu proponho uma experiência: deixamos o Botão aqui no terreiro, quando tornarmos a atravessar a prancha, e vamos ver por onde é que ele sai. Só depois saberemos se é possível utilizarmos o caminho dele para quando cá voltarmos!

- Boa ideia! - aprovou Maria da Luz, e Sara fez também um gesto de assentimento. O que lhe fazia confusão era o facto de o Botão ter entrado no castelo, certa como estava de que não havia senão as duas portas fechadas e a seteira por onde eles próprios se tinham esgueirado.

- Vamos embora, são horas de voltar para casa - lembrou João, e todos se levantaram. - Espero voltar cá amanhã.

 

         UM ENCONTRO INESPERADO

Subiram a escadaria de pedra para tornar a entrar no castelo, e Dina, pouco à vontade, encostava-se aos seus companheiros, bem como a Sara. Meteram pela galeria, refazendo o caminho através das salas até darem com aquela onde estaria a prancha.

- Oh diabo! Não me digam que não damos com ela! - estranhou João, depois de terem percorrido seis dependências. - Isto é estranho! Eu jurava que o salão por onde entrámos não ficava assim tão longe!

Mas lá estava a prancha, pousada no parapeito da fresta, no salão seguinte. Precipitaram-se todos para a janelita, suspirando por uma lanterna que lhes iluminasse a escuridão da sala. Para a próxima vez não se esqueceriam de trazer lanternas e velas! O primeiro a fazer a travessia foi João com a Didi fincada no ombro a resmungar qualquer coisa sobre fechar a porta. Assim que chegou ao outro lado da prancha, João segurou-se à corda e ajudou as três raparigas a passar. Maria da Luz e Dina precipitaram-se para a plataforma do rochedo, e Sara, sem precisar de auxílio da corda, deu um pincho de cabrita. O último foi Filipe, e o pobre do Botão ficou do outro lado, a ganir desesperadamente.

«Anda, volta por onde entraste, que nós esperamos-te cá fora!», ordenou-lhe Filipe do lado de fora. O Botão pôs-se aos saltos, na ânsia de chegar ao parapeito, mas este era alto de mais para ele e o raposito caía antes de o atingir. Os pequenos iam descendo na direcção do túnel, que abria para a luz do sol, e durante todo esse tempo o bichinho ficou a regougar lá dentro do castelo.

- Naturalmente ainda terei de o ir buscar se ele não conseguir sair por outro lado - concluiu Filipe. - Não posso lá deixá-lo, coitado! Mas não me admiro que ele não tarde a aparecer por aí a correr ... As raposas são tão espertas!

- O que é preciso é estar com muita atenção para observar por onde ele sai, e ver se poderemos servir-nos dessa saída - respondeu João. Mas, palavras não eram ditas, já o Botão lhes surgia por baixo dos pés, com grandes manifestações de alegria por ver Filipe. Ninguém o tinha visto sair do castelo!

«Que maçada! Botão, por onde saíste?», e João não pôde deixar de rir. Mas o Botão não respondeu, e durante todo o resto do caminho marchou tão agarrado aos calcanhares do Filipe que mais parecia uma sombra, a sombra do dono!

Quando chegaram a casa iam todos tão estafados que mal podiam falar para narrar as aventuras do dia. Quando Filipe contou da poça de água, na cozinha do castelo, a Sr.a Mannering pôs-se a rir.

- Se vocês não haviam logo de inventar hipóteses de meter medo! O mais provável é que a torneira da bomba pingue naturalmente. Essa história das salas mobiladas tem graça, e prova o receio que os aldeões têm de ir ao castelo. Pelos vistos, nem os ladrões se atrevem a lá entrar!

A Sr.a Mannering mostrou-se muito interessada a respeito das águias e das fotografias que João poderia fazer do filhote com os pais. Ela e os dois rapazes conversaram longamente até cair a noite.

- Era óptimo que tu, João, conseguisses arranjar um bom esconderijo, e que as aves se fossem habituando à tua presença para poderes fotografá-las à vontade! O pai de Filipe fazia coisas desse género.

- E eu, tia Lia, também posso ir com o João? - perguntou Maria da Luz, que nem por um ou dois dias queria ver-se longe do irmão.

- Não, Maria da Luz, não podes - respondeu João, categórico. - Eu preciso de estar sozinho, senão vocês põem-se para lá a fazer barulho e assustam as águias, e depois é que eu nenhuma fotografia consigo fazer. Eu não fico lá muito tempo, e tu também não podes passar as férias todas agarrada a mim!

Maria da Luz calou-se. Se o irmão não queria que ela fosse, não iria. Mas João, vendo-a desapontada, acrescentou:

- Podes ir lá levar-me a comida todos os dias. E eu faço-te sinal lá da torre. Lembras-te como vimos esta casa do cimo da torre? Do mesmo modo tu a verás aqui.

- Está bem! Tu acenas-nos de lá as boas-noites - e Maria da Luz novamente se alegrou. - Isso tinha graça! De qual dos nossos quartos se verá melhor a torre?

Era do quarto de Maria da Luz que se avistava bem a torre, e assim ela poderia avistar de lá as boas-noites do irmão antes de deitar-se.

- E tu dormes na torre? Então eu tornarei a olhar para lá quando acordar de manhã, e também corresponderei com um lenço branco quando tu me acenares.

- Sei lá onde dormirei! - rematou João. - Na torre é capaz de haver muito vento. Hei-de procurar um canto abrigado para estender a manta, ou talvez durma num dos sofás se conseguir limpá-lo do pó.

Sara, que não concebia que alguém ousasse dormir, sozinho, no castelo, pensou que João deveria ser o rapaz mais corajoso do mundo.

- São horas de ir para casa, Sara - preveniu a Sr.a Mannering. - Anda, vai, e volta amanhã.

Sara desapareceu, de regresso ao seu pardieiro e às descomposturas de uma mãe desleixada e colérica. Os outros ajudaram a Sr.a Mannering a levantar a mesa, e as duas raparigas, tontas com o sono, lavaram a louça. Depois foram para a cama, para sonhar com o castelo abandonado, com os quartos cheios de teias de aranha, com altas torres e gritos de águias e com uma poça de água no chão, por baixo da bomba do lava-loiça.

«Que coisa tão esquisita!», pensava Filipe já quase a dormir. «Mas agora estou tão cansado que não posso pensar no assunto».

O dia seguinte apresentou-se chuvoso. Grossas nuvens vinham lá do cimo do monte, tornando tudo nevoento e húmido, e o sol quase não se mostrou. A nascente do jardim engrossou e ouvia-se bem o barulho da água que dela vinha.

- Bolas! - exclamou João. - E eu que queria ir hoje para o castelo! A águia pequena deve estar a começar a voar de um momento para o outro, e eu não queria perder esse espectáculo!

- Tens películas que cheguem? - perguntou Filipe. - O costume é elas acabarem na altura em que mais precisamos delas.

- Que remédio senão passar sem películas se elas acabarem! Não consegui comprá-las na aldeia na única loja que lá existe.

- Porque não te metes no comboio e não vais comprá-las à cidade mais próxima? - alvitrou a Sr.a Mannering. - Vai e leva Dina, que está morta por dar à língua com alguém, em vez de ficarem aqui metidos todo o dia.

Dina riu-se. Detestava estar metida em casa e ficava de mau humor sempre que isso sucedia, mas à medida que ia crescendo ia aprendendo a dominar-se.

- Ai, isso era bem bom - respondeu ela. - Ir no comboio e fazer compras na cidade! Vamos! E depressa, que estamos quase na hora do único comboio que parte daqui! Para o regresso também só temos um!

Vestiram as gabardines com os capuzes pela cabeça e desataram a correr para a estação, embora não valesse a pena apressarem-se tanto porque o comboiozito costumava esperar pelos passageiros que se avistassem na estrada. A cidade ficava a trinta quilómetros dali, e levaram uma hora a lá chegar; o passeio era bonito, através de vales e por entre cadeias de montes. Havia até um outro castelo, no alto de um monte, que todos acharam que não chegava aos calcanhares do deles.

O Botão tinha ficado com a Sara, o que muito o desgostou. Sara fora convidada para tomar parte no passeio, mas o seu terror do comboio foi mais forte e encolheu-se toda só com a ideia. Ficou então encarregada do Botão, com muitas recomendações para que não o deixasse aborrecer a Sr.a Mannering. A Didi, claro, essa foi com João, como sempre. As suas constantes observações e os seus comentários divertiam toda a gente, e gostava muito de se exibir quando tinha público a admirá-la. Logo à saída da estação, ainda mal tinham entrado na cidade, ouviram uma voz que os sobressaltou:

- Olá! Olá! Quem havia de dizer que vocês andavam por estas paragens!

Voltaram-se todos e a Didi deu um gritinho de alegria.

- Jaime Smugs! - gritaram os pequenos, e correram para o homem de faces avermelhadas e olhinhos brilhantes que os tinha saudado. Maria da Luz abraçou-o, Dina sorria de prazer, os rapazes batiam-lhe palmadas nas costas.

O homem não se chamava Jaime Smugs, mas era esse o nome sob o qual se apresentara, um ano antes, quando conhecera os quatro garotos. Andava em busca de uns falsários e não lhe convinha revelar o seu verdadeiro nome nem indicar claramente a sua profissão. E desde então, embora por fim tivessem sabido o nome autêntico, para eles tinha ficado sempre a chamar-se Jaime Smugs.

- Venham almoçar comigo. Ou vocês trazem outros projectos? Eu preciso de saber o que fazem vocês por aqui. Julgava que estivessem em casa, a férias!

- E que faz o senhor por aqui? - inquiriu Filipe, com os olhos a brilhar. - Anda outra vez à procura de falsários? Aposto que está metido nalguma acção importante!

- Talvez sim, talvez não! - e Jaime sorriu. - Seja o que for nada vos posso dizer, não é assim? Admitamos que estou em férias, como vocês. Venham, vamos experimentar este hotel; parece o melhorzinho da terra.

O almoço foi animadíssimo e Jaime Smugs era uma pessoa fascinante. Falou-se outra vez na aventura do ano anterior, quando todos se tinham visto envolvidos numa história de minas de cobre e de burlões e haviam corrido um certo risco. Todas as vezes que se lembravam disso ainda sentiam calafrios!

- Não há dúvida de que a aventura foi boa! - comentou Jaime enquanto se servia de torta de maçã e natas. - E agora vamos lá a saber: que andam vocês a fazer por aqui, neste canto do mundo?

Desataram todos a falar ao mesmo tempo, constantemente interrompidos por João, que só queria falar das águias, e Jaime ouvia-os mastigando com grande apetite ou dando petisquinhos à Didi. Também esta se encontrava encantada por tornar a vê-lo, e já lhe dissera mais de uma dúzia de vezes que prestasse atenção e abrisse o livro na página seis.

-- Que pena vocês viverem tão longe! Eu estou condenado a passar aqui uns tempos sem arredar pé. Mas só se não puder é que não irei visitar-vos. Se a vossa mãe pudesse alojar-me por um dia ou dois, então talvez eu fosse convosco ver essas famosas águias e esse vetusto castelo!

- Sim, sim! Venha para casa! - gritaram todos. Filipe acrescentou: - Que raiva não termos telefone! Mas não faz mal, apareça em qualquer altura, nós estamos sempre por lá e ficaríamos encantados se lá fosse.

- Combinado! - Talvez eu possa lá dar um salto para a semana, porque não parece que vá ter aqui muito que fazer. Nada mais vos posso dizer, tenham paciência, mas não façam qualquer bicho de sete cabeças a respeito do meu trabalho. Assim que eu possa vou ver-vos, e à vossa simpática mãe. Apresentem-lhe os meus cumprimentos e digam-lhe que logo que lhe seja possível Jaime Smugs irá apresentar-lhe os seus respeitos.

- Temos de ir andando - lembrou João, cheio de pena, a olhar para o relógio. - Só temos um comboio de regresso e ainda há uma data de compras a fazer. Adeus, Jaime, foi uma bela surpresa este nosso encontro!

- Adeus, até à vista! Havemos de ver-nos em breve! - respondeu Jaime com um sorriso de amigo. E lá se foram, a correr para não perderem o comboio.

 

         JOÃO FICA NO CASTELO

A Sr.a Mannering ficou encantada quando soube do encontro com Jaime Smugs; tinha-lhe ficado sempre muito grata pela ajuda que ele dera aos pequenos quando da extraorDinária aventura do ano anterior.

- Se ele cá vier, vou dormir convosco e cedo-lhe o meu quarto - disse ela às raparigas. - Gosto tanto de tornar a ver esse simpático Jaime Smugs! Que vida interessante a dele, nessa bela tarefa de dar caça à gente má e criminosa!

- Aposto que ele teria sido capaz de apanhar o velhote mau, o do castelo! - observou Maria da Luz. - E que divertido vai ser levá-lo até lá! Oxalá não chova amanhã.

Mas no dia seguinte continuou a chover, para grande arrelia de João, cheio de medo de que as águias partissem levando o filhote. Nem pensar em subir o monte debaixo daquelas cargas de água, além de que as nuvens baixas formavam como que uma bruma espessa, e João, se tentasse meter-se ao caminho, arriscar-se-ia a perder-se.

- Quem não se perdia, aposto, era a Sara! - disse ele, e a rapariga, que estava presente, fitou-o com os grandes olhos negros, muito brilhantes, e acenou a cabeça.

- Não perdia, não. Se quiseres eu levo-te lá.

- Não! - proibiu a Sr.a Mannering. - Esperem até amanhã, que tenho a impressão de que o tempo vai melhorar. Não estou para ter de organizar batidas para irem à vossa procura.

- Ó mãe, eu tenho a certeza de que a Sara é capaz de dar com os caminhos do monte mesmo de olhos tapados! - insistiu Filipe. Porém, a Sr.a Mannering tinha menos fé do que eles nas capacidades de Sara, e João não teve outro remédio senão aguardar o dia seguinte. Felizmente este surgiu radioso, com o sol a despontar num céu límpido, e nem a mais ténue nuvenzinha se avistava. Todo o monte faiscava ao sol, e os milhões de gotas de água que brilhavam em cada folha, em cada raminho, secavam rapidamente sob a acção dos seus raios. Estava o que se chama um dia lindo.

- Nós vamos contigo, João - preveniu Filipe -, e ajudamos-te a carregar com a bagagem. Tens de levar duas boas mantas, comida, uma ou duas velas, uma lanterna, e, evidentemente, a máquina e rolos.

Decidiram então tornar a passar o dia no castelo, deixando lá João ao fim da tarde; e assim, por volta das onze horas, sob um sol ardente, puseram-se em marcha a caminho do monte. O Botão e a Didi iam também, como não podia deixar de ser. A Didi ficaria com João no castelo, uma vez que as águias não tinham implicado com ela. Quem sabe até se não acabariam por simpatizar com ela e se João não iria fazer umas fotografias curiosíssimas!

O grupinho, ajoujado, ia trepando, e Dina apalpava com satisfação a lanterna no bolso. Não lhe apetecia nada tornar a ver-se às escuras nas velhas dependências do castelo, com teias de aranha a agarrarem-se-lhe aos cabelos.

Entraram pela fresta, como da primeira vez, e novamente o Botão surgiu no terreiro sem que ninguém descobrisse por onde entrara. A Didi voou até às fragas onde as águias tinham o ninho, a gritar, como elas, como se fosse essa a maneira mais cordial de as saudar, e elas, assustadas, bateram asas, mirando com surpresa aquele estranho passaroco, tão tagarela, que lhes voava à roda. O que era nítido é que não lhe faziam mal, pensando talvez tratar-se de algum parente afastado, visto que falava a mesma língua!

João apressou-se a trepar pelas fragas acima, morto por ver se a àguiazinha ainda lá estava. E estava! A mãe acabara de levar-lhe um coelho morto, e a águia novita, toda entregue ao prazer da refeição, assustou-se com a presença do rapaz e esticou as asas, a esconder a presa.

«Então, não tenhas medo»!, tranquilizou-a docemente João, «Come lá o teu coelho, que eu não to tiro! Só quero um retrato teu!»

Olhou à volta a ver se descobria um esconderijo e deu com um sítio que se lhe afigurou ideal: uma moita de tojo alta e espessa mesmo ao nível do ninho. Se se escondesse aí, afastando os ramos só o bastante para não taparem a máquina... Mas pensou:

«O pior são os picos! Vou ficar todo arranhado. Ora, que importa? O que quero é tirar boas fotografias. E aposto que as águias não darão por mim, ali dentro do tojo!»

Informou os companheiros e todos concordaram que o esconderijo era óptimo, apesar de pouco cómodo. No meio da moita havia um espaço livre onde ele caberia sem se picar muito, mas entrar e sair é que era desagradável.

- Enrola-te nesta manta - alvitrou Maria da Luz, passando-lhe uma das grossas mantas que tinha trazido - e já podes arrastar-te até ao meio do tojo sem te picares.

- Boa ideia!

Voltaram então à torre e almoçaram lá em cima,tornando a admirar a paisagem esplendorosa que se lhes deparava.

- Gostava que Jaime Smugs visse isto - disse João. - Temos de o trazer cá quando ele vier visitar-nos.

- Onde vais tu dormir, esta noite, João? - perguntou Maria da Luz preocupada. - Não te esqueces de acenar com o lenço, aqui da torre, antes de te deitares? Eu fico lá de vigia!

- Aceno-te com a camisa, que é branca, porque o lenço é muito pequeno; a não ser que olhes pelo meu binóculo velho - respondeu-lhe o irmão. - Se o quiseres, está no meu

quarto.

- Quero, quero! A camisa vê-se bem. Mas... tu não irás

sentir-te muito só?

- Não penses nisso! Tenho cá a Didi, e ninguém pode sentir-se só com uma tagarela destas ao pé! - e coçou a poupa da Didi, que lhe deu uma bicadinha na orelha e exclamou:

«Ora bolas!»

- Mas ainda não me disseste onde vais dormir - insistiu Maria da Luz. - Não vais passar a noite nos sofás, não?»

- Não tenho essa ideia. É provável que durma num canto do terreiro onde haja areia. Vês ali um montinho dela? O sol vai secá-la e deve ficar quentinha, boa para eu me enrolar nas

mantas e me aconchegar.

- Eu antes queria dormir no terreiro, ou em qualquer parte cá fora, do que dentro deste castelo tão estranho! - opinou Maria da Luz. - Não gosto daqueles quartos bafientos, poeirentos e bolorentos!

«Bafientos, poeirentos, bolorentos! Bafientos, poeirentos, bolorentos!», cantarolou a Didi, deliciada.

«Cala o bico, Didi», gritaram-lhe todos, mas a Didi estava encantada com aquelas três palavras e não parava de repeti-las, dirigindo-se ao Botão, que se sentou a ouvi-la, de orelhas arrebitadas e cabecita à banda.

- Toca a andar - rematou Filipe por fim. Estavam fartos de procurar o sítio por onde o Botão entrava e saía do castelo, e tinham dado nova volta pelos casarões abandonados do edifício, projectando as lanternas em todos os cantinhos. Mobiladas só existiam, efectivamente, as três dependências que já conheciam: sala, casa de jantar e cozinha. Não havia quartos de cama, e Filipe lamentou que João não pudesse instalar-se confortavelmente numa cama de dossel. João despediu-se deles ao pé da prancha, e segurava o Botão ao colo, decidido a não o largar antes que os outros desaparecessem, para ver se descobria por onde é que ele passava. Um por um, os garotos atravessaram a tábua e afastaram-se, perdendo-se as suas vozes a distância, e João ficou só.

Meteu pela galeria, desceu a larga escada de pedra que ia dar à grande sala escura, saiu para o terreiro, iluminado pelos últimos raios de sol, e só aí largou o raposito.

«Agora vais mostrar-me por onde passas!» Botão disparou como uma seta, tão rápido que o rapaz, mesmo correndo atrás dele, não teve tempo de ver coisa alguma a não ser que ele tinha desaparecido sem deixar rasto.

«Bolas! E eu que estava resolvido a não sair daqui sem ter descoberto a passagem! Mas com um corisco destes... A esta hora já apanhou o grupo!»

Foi-se dali, para preparar a máquina fotográfica e instalar-se no meio do tojo. Era uma bela máquina a sua, e fora-lhe oferecida pelo Jaime Smugs, no Natal anterior. Com os bolsos cheios de rolos de películas, tudo indicava que iria tirar uma estupenda colecção de fotografias àquelas águias.

Embrulhou-se numa das mantas, como Maria da Luz tinha lembrado, e esgueirou-se através dos tojos. Apesar da manta os picos ainda lhe chegavam à carne, e a Didi, que seguia os manejos com ares surpresos, ia dizendo: «Que pena, que pena, que pena!»

«E é mesmo uma pena picar-me desta maneira!», gemeu o rapaz. Mas logo se alegrou ao verificar que tinha uma vista esplêndida sobre o ninho e sobre o rebordo de onde as águias vigiavam os montes circundantes. A distância a que estava era exactamente a necessária, e João exultou. Afastou o tojo, do lado do ninho, e assestou a máquina nessa direcção, mantendo-a firme no tripé. Olhou em redor, a escolher o quadro.

«Catita! Hoje não vale a pena fazer mais nada com esta luz. Mas amanhã de manhã, com o sol a vir mesmo do lado que me convém, vai dar tudo certinho!»

A àguiazinha, que dera pela máquina a surgir do tojo, teve medo e, receosa, agachou-se no ninho.

«Habituas-te, vais ver. E os teus papás também. Didi! Terás por força de meter-te aqui? Mal tenho espaço para mim!»

«Bolorento, bafiento, poeirento!», segredou a Didi, convencida de que João estava a jogar às escondidas com alguém e que era preciso falar baixinho. E repetiu:

«Bafiento, poeirento, bolorento!»

«Estúpido pássaro! Vá, sai daí, que eu quero ir-me embora. Mas tens razão: este tojo é bafiento e bolorento, se é que não é também poeirento!»

A Didi esgueirou-se para fora da moita, seguida de João, que se esforçava por proteger-se dos picos. Uma vez cá fora o rapaz ficou de pé uns instantes, espreguiçou-se e, tendo deixado a máquina a postos, pegou na manta e desceu com ligeireza. Tudo indicava que não choveria durante a noite. Enquanto houve luz de dia foi lendo o livro que levara consigo e quando foi escurecendo lembrou-se da promessa que fizera à irmã. Subiu ao cimo da torre, na esperança de que não fosse já tarde de mais para que ela o visse, despiu a camisa e pôs-se alegremente a acenar na direcção da vivenda, ajudado pela brisa forte que soprava. Da janela mais alta da casa veio um feixe de luz: era Maria da Luz a responder-lhe.

- Ele disse adeus! - gritou a rapariga para Dina, que se despia. - Eu vi a camisa branca! Bom, agora já sei que ele está bem e que não tardará a preparar-se para dormir.

- Não percebo por que motivo te preocupas tanto com o João - foi dizendo Dina, a meter-se na cama. - Eu nunca me ralo com Filipe! És um bebé, Luzinha!

- Talvez, mas não me importo. - E deitou-se também. - Gosto de saber que João está bem, apesar de não me agradar que ele tenha ficado sozinho naquele castelo horrível!

 

         RUÍDOS NOCTURNOS

João desceu as escadas da torre a assobiar baixinho, e a Didi imitou-o. Quando sabia a melodia assobiava em dueto com João. Ao chegarem ao terreiro não havia vestígios das águias, que deviam estar já recolhidas, mas o rapaz sentiu uma restolhada de fuga em todas as direcções do terreiro, e delirou!

«Coelhos! Safa, são aos centos! Deve ser a hora de saírem das tocas; vou enroscar-me ali, àquele canto, em cima da areia, e gozá-los-ei um bocado. Didi, não os assustes!»

Encaminhou-se para a areia macia, levando consigo as mantas e um pacote de chocolate e de biscoitos. Embrulhou-se todo e ficou a observar os coelhos, que novamente se esgueiravam das luras. O espectáculo era digno de ver-se. Havia coelhos grandes e pequenos, escuros e claros, sisudos e brincalhões. Uns roíam os tufos de erva, espalhados aqui e além, outros pulavam doidamente. Satisfeitíssimo, o rapaz ia-os observando, enquanto mordiscava o chocolate e os biscoitos, e a Didi, também muito atenta, resmungava alguns comentários ao ouvido do João.

«As águias devem caçar uma boa parte destes coelhos!», pensou o rapaz, sentindo-se subitamente ensonado. Comeu o último biscoito e enrolou-se melhor na manta; começava a ter frio e a areia afinal não era tão fofa como a princípio lhe quis parecer. Pensou que talvez tivesse feito melhor escolher abrigo num tufo da urze, onde talvez se sentisse mais confortável.

«Mas agora não saio daqui, porque tenho muito sono. Que sono! Didi, chega-te para lá, estás a arranhar-me o pescoço. Porque não vais procurar outro poleiro?»

Ainda a Didi não se mexera e já João mergulhava no sono. Didi ficou onde estava, e os coelhos vieram aproximando-se cada vez mais atrevidos, acabando por brincar sem receio ao pé do rapaz adormecido.

A meia lua rompeu das nuvens e banhou de luz aquele terreiro de sonho.

João nunca soube o que o acordara num sobressalto. O facto é que acordara bruscamente; pôs-se a esfregar os olhos, a olhar para o negrume do céu sem se lembrar onde estava. Geralmente, ao acordar, dava com os olhos no tecto do quarto, mas o tecto era agora feito de estrelas e de nuvens. De repente, lembrou-se! Pois claro, estava no terreiro do castelo! Sentou-se e a Didi, acordando também, cacarejou aborrecida.


«Que me teria acordado?», reflectiu João, e pôs-se a olhar à roda do terreiro cheio de sombras. A Lua descobriu-se novamente, e ele viu alguns coelhos, que por ali ainda saltavam, destacando-se do fundo do escuro da muralha. Tinha a certeza de que alguma coisa, ou alguém, o acordara. Seria um barulho? Algum coelho que passasse por cima dele? Escutou atentamente mas não ouviu mais do que o pio de um mocho, vindo das bandas do monte, Uúúúú! Uúúú!, e depois o chiar agudo de um morcego que andaria à caça de carochas. Levantou os olhos para a torre de onde acenara e ficou petrificado! Sem a mínima dúvida, uma luz projectava-se lá de cima! Uma luz de lanterna, ao que lhe pareceu. Mas, por mais que apurasse o olhar, não tornou a vê-la.

Começou a cogitar, sem atinar com a explicação do facto. Seria uma lanterna? Teriam sido os passos de alguém que passeasse lá por cima, pela muralha, que o tinham acordado? Mas então, haveria alguém no castelo? A situação apresentava-se confusa, e João não sabia ao certo que fazer. Não se sentia muito disposto a ir investigar a proveniência da luz - se é que era luz o que tinha parecido ver. Duvidava já de a ter visto, e só acreditaria se o facto se repetisse. Pensou, porém, que era cobardia ficar para ali sentado só porque estava um pouco assustado. O melhor e o mais digno era levantar-se e ir à torre ver se lá estaria alguém.

«A verdade é que não me sinto nada heróico! Mas as pessoas heróicas são as que vencem o medo. Portanto, vamos a isto!»

Avisou a Didi para que se conservasse calada e dirigiu-se, pé ante pé, para a entrada do castelo, sempre cosido com a escuridão.

Sabia-lhe bem a presença da Didi e sentir-lhe as garras fincadas no ombro. Entrou no salão grande e pôs-se à escuta. Nem um som. Carregou no botão da lanterna e, cautelosamente, diminuiu com o lenço o foco de luz. O salão estava deserto. Subiu a escadaria de pedra, a caminho da torre, e hesitou: «Subo ou não subo? Não me apetece nada! Se lá está alguém não deve ser com boas intenções. E afinal, eu não terei sonhado com uma luz que nunca existiu?»

Apelou para toda a sua coragem e, sorrateiramente, começou a subir a escada. Na sala do meio da torre, ninguém! Meteu à escadinha do topo e, antes de sair para o terraço, espreitou à volta: o luar era suficiente para lhe provar que ninguém lá havia!

«Não há dúvida, sonhei! Sou parvo! Vou mas é dormir outra vez».

Desceu a escada sempre com a Didi no ombro, mas ao chegar ao salão grande estacou. Tinha ouvido barulho. Como que um tinir abafado e - ou não seria? - água a saltar.

«Estará alguém na cozinha! Alguém que foi beber água? Mau, já não estou a gostar disto! Quem me dera que os outros cá estivessem!»

E João sentiu percorrê-lo um calafrio de terror. Ficou onde estava, imóvel, sem saber que fazer. O medo, porém, foi mais forte do que ele, e quase voou pelo salão fora até se apanhar no terreiro enluarado. Ocultou-se na sombra a tremer, e a Didi, que percebera o seu pânico, murmurava-lhe ao ouvido o que entendia serem consolações.

Daí a minutos, João teve vergonha de si mesmo.

«Por que diabo fugi? Fugi de quê? Fugir nada remedeia; vou voltar à cozinha, a ver quem está lá, só para provar a mim próprio que não sou cobarde. Não pode ser senão um vagabundo, que sabe como se entra no castelo e que vai ter muito mais medo de mim do que eu dele!»

Cheio de coragem, mas sem fazer bulha, o rapaz tornou a entrar no castelo e novamente atravessou o salão grande, a caminho da cozinha. Chegado à porta, ficou-se à escuta, espiando se haveria luz lá dentro, e esperou durante dois ou três minutos, com a Didi tão imóvel e silenciosa como ele.

Nem o mais leve ruído! Nem barulho do manípulo da bomba, nem de água a derramar-se, nada! Nem um suspiro se ouvia, na cozinha ninguém devia estar.

«Vou fazer incidir a luz lá para dentro, com um movimento rápido da lanterna, para ver se lá estará alguém escondido. Se estiver, tenho tempo de me safar a correr».

Assim fez, e atirou com o foco de luz para o lava-loiça: nem vivalma! Projectou a luz da lanterna nas paredes da cozinha: estava vazia. Não havia sinais de gente.

João deu um suspiro de alívio e foi examinar o chão, por baixo do lava-loiça. Lá estava a poça de água; mas seria uma água recente ou a que eles lá haviam deixado quando tinham estado a dar à bomba? Era impossível sabê-lo, por mais que examinasse a fonte, o lava-loiça e o chão.

«Isto é um mistério, Didi! E a minha imaginação é que deve ter inventado os barulhos de lata e de água a derramar-se. Eu estava cheio de medo e quando se tem medo inventam-se coisas. Inventei tudo, desde a lanterna e a luz no cimo da torre aos barulhos na cozinha. Sabes, Didi? Não passo de um bebé, apenas um bocado maior do que a Maria da Luz».

Ainda intrigado, mas assaz envergonhado com os sustos e o alarme que sentira, João voltou para o cantinho do terreiro para seguir a dormir. Que duro lhe parecia o chão agora! E que frio! Enroscou-se nas mantas e tentou dormir. A Lua desaparecera e a escuridão era de breu, mas João dispôs-se a não tornar a sair dali, fosse o que fosse que visse ou ouvisse. Podiam acender as lanternas que quisessem, ou passar o resto da noite a dar à bomba que ele não arredaria pé.

Todavia, o sono não vinha, embora o medo tivesse passado. Que aborrecimento não poder dormir! Pôs-se a pensar nas águias e a planear as fotografias que faria no dia seguinte. Sentia no ombro a Didi e sabia que ela estava a dormir, com a cabeça debaixo da asa. Se ao menos pudesse conversar com ela! Se os seus companheiros ali estivessem poderia contar-lhes tudo quanto tinha inventado! Adormeceu, finalmente, mas já o dia prateava o céu a nascente, e não viu essa luz prateada tornar-se dourada e depois cor-de-rosa, assim como não viu o primeiro voo das águias, subindo nas alturas. Dormia profundamente e, como ele, a Didi. Mas as águias gritaram e a Didi acordou, respondendo-lhes com uma das suas perfeitas imitações. João despertou, num estremeção, e sentou-se. A Didi levantou voo, acudiu ao chamado do dono, e tornou a bater as asas, enquanto o rapaz bocejava esfregando os olhos.

«Tenho fome, Didi! E tu?»

«Bafiento, poeirento, bolorento»!, respondeu a Didi, lembrando-se das três palavras que tanto lhe tinham agradado. «Bolorento, bafi...»

«Está bem, já ouvi. Olha lá, Didi: lembras-te dos nossos passeios esta noite, à torre e à cozinha?»

Dava a impressão de que sim pelo olhar que deitou ao João, de cabeça à banda e a coçar a poupa com uma pata: «Que pena, que pena, que pena!», sentenciou.

««Tens razão, foi uma pena termo-nos agitado tanto! Didi, fui um idiota! Agora, à luz do dia, começo a pensar que sonhei tudo quanto aconteceu esta noite... se bem que não possa dizer-se que tenha acontecido muita coisa!»

Didi inclinava a cabeça, a prestar muita atenção, e João desembrulhou-se da manta.

«Sabes que mais, Didi! Nem palavra, a ninguém, sobre a luz da torre, ou a respeito dos ruídos metálicos, ou da água a correr, que nós julgámos ouvir. Percebeste? A Dina e o Filipe rir-se-iam de nós, e a Maria da Luz e a Sara ficariam cheias de medo; e estou convencido de que foi tudo produto da minha imaginação».

A Didi concordou inteiramente com estas palavras e ajudou João a tirar os biscoitos do cartucho e a fruta do saco, seguindo-lhe atentamente os gestos quando ele abriu uma garrafa de gasosa. João ia comendo e pensava nos seus companheiros:

«A que horas chegarão eles? Anda, Didi, vamos tirar umas quantas fotografias enquanto eles não aparecem».

 

         SEMPRE ERA VERDADE!

Acabado o pequeno almoço, João foi meter-se no esconderijo. O dia estava uma beleza e se as águias estivessem lá em cima as fotografias deviam ficar esplêndidas.

Tornou a envolver-se na manta para abrir caminho por entre os tojos e a Didi desta vez não o seguiu, preferindo ficar de fora. Verificou a posição da máquina e espreitou pelo obturador, a focar o ninho.

- Óptimo! A miúda parece estar ainda a dormir; vou apanhá-la a acordar! E as outras? Devem andar por aí, a alguns quilómetros de altura.

Era uma boa espiga ter de ficar para ali à espera do despertar da àguiazinha, mas João, tal como Filipe, tinha uma longa prática de imobilidade e de silêncio, habituado como estava a observar os animais e a estudar-lhes os costumes. Portanto, acocorou-se na moita e esperou. A Didi, entretanto, andava em explorações por conta própria. Encarrapitou-se no cimo de uma das torres, a admirar a paisagem, e disparou de lá um voo até ao terreiro; aí encontrou um cartucho vazio e vasculhou-o à procura de algum biscoito esquecido. Acabou por ir empoleirar-se num ramo de bétula, e pôs-se a imitar, em surdina, os latidos do raposito, como se estivesse a estudar uma lição. Para ela a felicidade consistia em ter João perto de si e, embora não atinasse com o motivo singular que levara o dono a escolher uma moita de tojo para local de repouso, bastava-lhe saber que o tinha ali à mão.

Para ela, João procedia sempre bem, fizesse o que fizesse.

De repente a àguiazinha acordou, esticou as asas, primeiro uma, depois a outra, e trepou para a beira do ninho, à procura dos pais.

«Catita!», murmurou João, e disparou a máquina. O animal, assustado com o estalido, encolheu-se no ninho, mas a fotografia estava tirada! Daí a momentos, refeita do susto, voltou a aparecer e começou a estender e a encolher as asas, com a alegria de ver os pais, que vinham descendo, em largos círculos, e dando grandes pios. Uma das águias trazia nas garras uma lebre, que deixou cair para dentro do ninho, e logo o filhote, de asas abertas, desatou às bicadas, esfomeado, a despedaçar a carne. João bateu nova chapa, e as aves olharam desconfiadas para a moita do tojo; o macho fitou João com tal insistência que o rapaz se sentiu pouco seguro e receou que o brilho da lente atraísse a atenção da águia, despertando-lhe   a vontade de a espatifar. Quem salvou a situação foi a Didi, que se apressou a ir saudar as águias, num grande à vontade, a piar como elas. E elas deram mostras de agrado por tornar a vê-la, embora o filhote se agachasse sobre a lebre, de asas abertas, em atitude ameaçadora como que a manter a Didi a distância.

«Abram os livros na página seis», ordenou ela, em tom amável, e as águias arregalaram os olhos, espantadas de ouvir a um pássaro uma fala tão estranha; do espanto passaram ao alarme quando a Didi resolveu regougar como o Botão, e a fêmea, debruçando-se toda, abriu o bico feroz para a Didi e pôs-se a rosnar. Mas logo a Didi piou como uma águia, e tão bem que ambas deram mostras de agrado. A àguiazita continuou a despedaçar a lebre e comeu até não poder mais, afundando-se depois, saciada, no grande ninho. Então a mãe, rapidamente, acabou com os restos da carne, e João bateu nova chapa. Desta vez as águias limitaram-se a deitar um olhar para o lado de onde partira o ruído e não prestaram mais atenção.

«Bom, começaram a não fazer caso nem do estalido, nem do brilho da lente!», pensou o rapaz. O resto da manhã passou-o a tirar fotografias, até à última película, e a antegozar o prazer que iria ter ao revelá-las, ou quando as visse publicadas nas revistas, com o seu nome por baixo!

Subitamente, a Didi deu um grito espavorido, o que fez com que as águias levantassem voo, assustadas, e bateu asas na direcção da muralha do terreiro; João espreitou, do seu esconderijo, e viu-a desaparecer por trás da muralha.

«Para onde diabo terá ela ido? E agora que eu ia tirar uma fotografia das águias com ela!»

Passou-se mais de meia hora sem que a Didi voltasse, e quando regressou vinha encarrapitada no ombro da Sara. Avistara os garotos a subir o monte e tinha ido ter com eles! Estes entraram no castelo pelo processo habitual e andavam em busca de João, que lhes gritou do seu esconderijo, enquanto as águias se mantinham a distância, lá nas alturas:

- Estou aqui! Olá, que prazer em ver-vos! Esperem lá, que já saio.

Arrastou-se para fora dos tojos, sempre enrolado na manta, e veio ao encontro dos amigos. Maria da Luz mirava-o de alto a baixo, muito aliviada por verificar que ele estava são e salvo. Pelos vistos João tinha passado bem a noite, no castelo, apesar da solidão.

- Trouxemos-te um almoço estupendo - avisou Filipe. - A mãe arranjou presunto e um rico bolo de frutas lá em baixo na aldeia.

- Bem bom! - e João avaliou a fome que tinha.- O meu pequeno almoço foram os biscoitos e o resto da fruta, regados com a gasosa.

- Também trouxemos mais gasosas - disse Dina. - Onde almoçamos? No terraço da torre outra vez?

- Aqui era melhor, para não desperdiçar esta luz tão boa e a oportunidade de tirar mais fotografias das águias se elas voltarem. Desconfio de que estão a preparar-se para ensinar o filhote a voar, porque a mãe esteve esta manhã a ver se o puxava do ninho.

- A Didi veio ao nosso encontro - relatou a Sara. - E tu viste agora por onde entrou o Botão? Deixámo-lo lá fora, mas ele já cá está!

- Não, não vi. Nem podia ver, lá do meio do tojo, como calculas! Mas é escusado, nunca mais daremos com o sítio por onde ele passa; cada vez me convenço mais de que é apenas por uma toca de coelho. De resto, deixa-o crescer mais um bocado, e vais ver que já não consegue enfiar-se por ela. E então, ele portou-se bem?

- Nem por isso - respondeu Filipe. - Esgueirou-se para a despensa, sabe-se lá como, e papou as salsichas todas que a mãe lá tinha. A mãe ficou furiosa! Ele engoliu, pelo menos, meio quilo de salsichas, nem acredito que tão cedo seja capaz de comer mais nada!

«Lambão!», ralhou o João, mas foi-lhe dando metade do pão com presunto. «Tu não mereces, mas eu não resisto a mimar-te, és patusco!»

- O pior é o cheiro que ele deita! - lamentou-se Dina, de nariz torcido. - Tens de o mandar embora, quando ele for crescido, porque ninguém aguentará o pivete!

- Vai esperando por essa! Eu faço boas ideias de ficar com ele até que morra de velho.

- Então tens de passar a usar uma máscara antiga! - troçou João. - Ó Dina, dá cá um pãozinho. Estão formidáveis!

- Como passaste a noite, João? - perguntou Maria da Luz, muito encostado ao irmão. Este tomou uns ares despreocupados ao responder:

- Ora, lindamente! Acordei durante a noite e custou-me um bocado a adormecer, mas depois ferrei a dormir outra vez.

Estava decidido a não dizer palavra sobre os sustos e terrores que sofrera nessa noite, e que agora, à luz do sol, rodeado de amigos, ainda lhe pareciam mais ridículos. Voltou-se para Filipe:

- Havias de ter visto os coelhos ontem à noite! Ficavas maluco! De mim não se aproximam eles, está visto, mas se fosse contigo, e mansinhos como eram!...

Assim se passou a tarde até à hora da merenda. Foram ver o esconderijo de João, cada qual por sua vez, e subiram novamente ao alto da torre, aproveitando João o ensejo para inspeccionar o terraço cuidadosamente, à cata de algum vestígio revelador - ponta de cigarro, ou papel amarrotado - que o elucidasse. Mas nada, nada havia por lá de anormal ou de novo.

- Porque não voltas connosco, João? - pediu Maria da Luz.

O rapaz, embora lá no seu íntimo estivesse mortinho por regressar a casa, negou-se.

- Não, não volto! Então agora é que eu ia perder o primeiro voo da águia pequena, quando ela está prestes a ensaiá-lo?

- Seja... - suspirou Maria da Luz. - Não me perguntes porquê, mas detesto saber-te aqui sozinho, neste castelo medonho.

- O castelo nada tem de medonho, não passa de um castelo velho e arruinado, mais nada.

- Pois eu acho-o medonho! E tenho a certeza de que se passaram aqui antigamente coisas terríveis, pavorosas. E que assim como se passaram, ainda podem tornar a passar-se.

- És uma pateta e estás a assustar a pobre Sara. Já te disse que o castelo não é mais do que um casarão abandonado e velho, e que não há por cá mais ninguém além de mim, das águias, dos morcegos e dos coelhos.

Filipe deu o sinal de partida.

- São horas! Toca a andar. João, aqui tens outra manta, para o caso de teres tido frio. Vens até à prancha?

- Vou, pois!

Entraram no castelo, ouvindo o ressoar dos passos no lajedo, até chegarem à sala de onde partia a prancha, e um por um fizeram a travessia habitual. Maria da Luz voltou-se para trás, a despedir-se do irmão.

- Obrigada por teres acenado com a camisa, ontem à noite! Ai, é verdade, ó João! Eu ontem também vi o foco da tua lanterna, lá na torre. Foi muito mais tarde, já estava deitada, mas ainda acordada e vi luz, aí durante uns três ou quatro minutos. Foste muito simpático, e eu gostei muito de saber que também estavas acordado!

- Maria da Luz, despacha-te, por amor de Deus! - gritou Dina. - Lembra-te que a mãe disse que não queria que chegássemos hoje tarde!

- Cá vou, pronto! - e Maria da Luz, deixando-se escorregar pelas trepadeiras, saltou para o pé do grupo, que gritou as últimas despedidas e desapareceu.

João ficou espantado! Então sempre era verdade que alguém tinha estado na torre!

Não era então produto da sua imaginação, não tinha sido um sonho, era mesmo verdade!

«Se Maria da Luz viu, não resta dúvida, é a prova de que não me enganei», ruminava ele de regresso ao terreiro. «Que diabo de mistério! E os barulhos que ouvi na cozinha também devem ter sido reais. Há aqui mais alguém - mas quem? e porquê? Com que fins?»

Arrependia-se de não ter contado aos amigos os acontecimentos da noite, mas agora já não ia a tempo. Ah! Porque não regressara com eles! E se os focos de luz e os barulhos se repetissem? Sentindo-se angustiado, pensou nos amigos.

«E se fosse atrás deles? Ainda os apanho! Não, não vou! Hei-de descobrir quem está cá. Tem piada a minha irmã ter visto as luzes! E ainda bem que ela mo disse!»

 

         O QUARTO SECRETO

Depois de andar um bocado à toa, João deu consigo no esconderijo. Ainda era o lugar em que se sentia mais seguro, pois quem se lembraria de ir dar com ele no meio dos tojos? Com o cair da noite o sono foi-se apoderando dele, mas hesitava: iria deixar-se dormir já, para estar acordado mais tarde? Seria capaz de adormecer num sítio tão desconfortável? Embrulhou-se na manta mais grossa e com uma das outras fez uma almofada, enquanto a Didi, de cabeça encolhida para não se picar, abria caminho por entre o tojo para vir empoleirar-se-lhe nos joelhos. Das águias nem sombra e o filhote estava aconchegado no ninho. De qualquer maneira a luz já não prestava para fotografias, o melhor era nem tentar.

João adormeceu e, por ter a cabeça numa posição toda torcida, ressonou um bocado, imitado na perfeição pela Didi, que a breve trecho desistiu, uma vez que o rapaz não lhe retorquia, e deixou-se dormir, com a cabeça debaixo da asa. O sono durou até à meia-noite, quando João acordou num sobressalto de aflição. Esticou-se ao comprido, sem saber bem onde estava, e sentiu imediatamente as picadas dolorosas do tojo, o que o levou a encolher as pernas com rapidez.

«Estou no meio dos tojos, pois onde havia de estar? Devo estar a dormir há séculos. Isto que horas serão?»

Olhou para o relógio, de ponteiros luminosos, e viu que era meia-noite e dez.

- Hum! Cheira-me que estamos na hora em que acordam os habitantes misteriosos! Ora, se eu quero seguir pistas e fazer investigações, tenho de sair daqui para fora, para me pôr alerta! Mal se mexera para sair da moita, e logo a Didi, irritada, deu um berro de protesto, subitamente abafado pelo João, de dedo espetado, furioso:

«Se tornas a piar ficas aqui, ouviste?» Foi quanto bastou para a Didi se calar, conhecendo bem quando o dono lhe falava a sério.

O rapaz saiu dos tojos, deslizou pelos penedos sem fazer ruído e veio pôr-se à escuta no terreiro. Felizmente que o luar, apesar de ténue, iluminava um pouco mais do que na véspera. O único som que lhe chegava aos ouvidos era o da ventania; mas eis que lhe pareceu tornar a ouvir o ruído de água e o som metálico do manípulo da bomba! Continuou à escuta, e ouviu nitidamente uns passos cautelosos, de quem andasse sobre o lajedo do salão grande - ou seria na muralha? Iria repetir-se a cena das luzes lá em cima da torre?

«Se ele foi para a torre, quer dizer que o castelo está desimpedido, e vamos ver se há lá sinais. Ele há-de viver nalgum sítio; onde se esconderá? Nos quartos mobilados não é, com certeza; onde diabo será? E comida? Caramba! Isto é que é um mistério!»

Com a Didi encarrapitada no ombro, João entrou sorrateiramente no castelo, tão empenhado em descobrir o mistério que nem sentia medo. Uma vez que estava provado que alguém, além dele, se escondia no castelo, apenas lhe interessava descobrir quem era e por que motivos lá estaria.

Mal entrara no salão grande da entrada parou, estarrecido! De onde vinha aquela luzita? Olhou à sua volta e viu que era do chão que ela vinha, ou melhor: de baixo do chão da sala. Pé ante pé foi-se aproximando até que deu com um buraco aberto no chão; não era um alçapão, era muito simplesmente um buraco, em cuja existência nunca tinha reparado, das várias vezes que por ali passara. E era desse buraco que vinha luz. Espreitou lá para baixo e viu uma escada de pedra - onde iria ela dar? A uma cave? A alguma masmorra? Deu uma corrida para ver se ele ainda estaria na torre, para calcular se lhe daria tempo de descer a escada e ir investigar lá por baixo. Do cimo da torre partiu um foco luminoso, como se alguém estivesse a fazer sinais a distância. Óptimo! Isso queria dizer que ainda lhe sobravam uns minutos para fazer investigações; sem perda de tempo, enfiou pela escada ao fundo da qual parou embasbacado.

Aquilo parecia um museu! Uma sala subterrânea, enorme, vastíssima, de paredes revestidas de tapeçarias, bem atapetada, cheia, a toda a volta, de velhas armaduras, como as que se vêem nos museus, de cadeirões pesadíssimos, e uma mesa estreita, que corria a toda a largura da sala, mas que estava posta para uma refeição.

O pasmo de João era ilimitado. O mobiliário era todo velho, sem dúvida, mas aqui não havia o ar de abandono que se notava nos outros quartos lá de cima, nem teias de aranha, nem pó. A um dos cantos estava uma enorme cama de dossel, e dela pendiam pesados cortinados. O rapaz foi espreitar e verificou que alguém saíra da cama precipitadamente, deixando lençóis e almofadas em desalinho. Sobre a mesa, um jarro de água frigidíssima fê-lo pensar:

«Água da bomba! E aqui está a origem das poças no chão! Alguém que vai todas as noites tirar água da bomba!»

A Didi tinha-se posto em cima do elmo de uma das couraças e espreitava pelos buracos da viseira, à espera de ver alguém lá dentro, o que arrancou uma gargalhada ao João. A Didi tomava as couraças por pessoas de carne e osso e estava muito intrigada.

Nesta altura pareceu a João ouvir barulho e, num salto súbito, agarrou a Didi e disparou escada acima para se ocultar na parte mais escura ao fundo do salão de entrada. Aí, receoso de que ele o visse, ou o atingisse com a luz da lanterna, foi-se esgueirando para o lado dos quartos mobilados, dos quais o primeiro onde entrou era a sala de estar. Mas logo à entrada tropeçou num banco, o que fez estacar de repente os passos que se ouviam lá fora e extinguir a luz da lanterna. Quem quer que fosse tinha parado, ao barulho do banco caído, e estava à escuta.

Com o coração a bater desordenadamente, João arrastou-se para trás de um sofá e agachou-se todo, sem largar a Didi. Ficaram ambos imóveis, e o rapaz não pôde deixar de pensar que a pessoa que estava à escuta era capaz de lhe ouvir as pancadas do coração, tão fortemente ele batia! Ouviu uns passos cautelosos, já dentro da sala, depois novamente o silêncio. Mais passos, desta vez já mais próximos; João ficou com os cabelos de pé!

Se a pessoa chegasse ao sofá e projectasse a luz da lanterna, era garantido que o apanhava.

O coração saltava-lhe pela boca e começou a sentir o suor escorrer-lhe da testa; a Didi não lhe largava o ombro, sentindo o terror que se apossara do dono. A certa altura contudo não pôde mais. Bateu asas e disparou num voo atirado à cabeça do homem, com um daqueles gritos agudos que aprendera com as águias. Apanhado de surpresa, o homem teve uma exclamação e gesticulou a afastar a Didi, deixando cair a lanterna no chão, enquanto João fazia votos ardentes para que ela se tivesse partido.

Novo berro da Didi desta vez em forma de apito de locomotiva, e o homem, num gesto desesperado para a agarrar, arrancou-lhe uma pena da cauda. A Didi foi aninhar-se ao pé do dono e ficou de lá a rosnar, como um cão.

«Irra! Esta casa está cheia de pássaros e de cães por todos os lados!», exclamou uma voz grossa e rouca, num tom enojado. E o homem baixou-se para tactear o chão, à procura da lanterna.

«Pronto, está partida!», tornou a dizer, e João ouvia os estalidos da mola que o homem tentava accionar. «Isto é talvez alguma das águias, com certeza; mas como diabo se metem elas dentro de casa?»

E o homem foi-se embora a resmungar. João ouviu ainda um ruído estranho, de quem arranhasse qualquer coisa, e depois fez-se silêncio completo. Durante um bom bocado o rapaz não ousou mexer-se de onde estava, de tal maneira que a Didi lhe adormeceu no ombro. Mas acabou por levantar-se e ir até à porta, em bicos de pés, feliz por calçar sapatos de sola de borracha. Espreitou e já não viu a luz do buraco. Tudo era escuridão e silêncio. O olhar do rapaz foi cair na parede do fundo do salão e viu uma abertura, talvez a passagem para algum quarto secreto, quem sabe se um quarto recheado de velharias, com ar de museu! Ou o tal quarto onde o velhote lendário escondia os convidados, para aí os deixar morrer de fome? João arrepiou-se e nem quis saber para onde dava a passagem; correu para o terreiro e voltou para o esconderijo no meio dos tojos. Aí, sim, sentia-se a salvo.

Rastejou por entre os picos, acompanhado pelos gemidos e pelos protestos da Didi, e tentou pegar outra vez no sono.

Mas não conseguia dormir, nem afastar da ideia aquela estranha sala, estremecendo ainda só em pensar como estivera em riscos de ser caçado pelo homem. Se não fosse a Didi - querida Didi! - era garantido que não escapava, bastando que o homem desse mais um ou dois passos para tropeçar nele!

Desejou ter ali os companheiros, tinha pressa de lhes contar aquilo tudo; mas que remédio senão armar-se de paciência até que chegasse o dia! Não era provável que o homem viesse cá para fora expor-se à luz, pois se se escondia alguma razão tinha para isso, e não iria mostrar-se, nem revelar o seu esconderijo passeando ao ar livre.

«Onde arranjará ele comida?», cogitava João. «Tirar água da bomba, era fácil, mas a comida? Talvez fosse por isso que ele fazia sinais com a luz da lanterna lá da torre. Devia ser isso: eram mensagens que enviava a amigos. Mas nesse caso isso queria dizer que havia gente que o visitava... E por onde entravam, então?»

«Que aventura esta!» e de repente João sentiu um calafrio. «É isso mesmo: uma aventura. E é o mesmo arrepio que senti, no ano passado, quando navegávamos para a aventura na ilha, a ilha das Trevas, onde tanta coisa nos aconteceu! Eia! Que dirão os outros quando eu lhes contar que estamos metidos noutra! O Filipe é que tinha razão quando chamava a isto a aventura no castelo!»

Assim ficou, a cogitar durante quase duas horas, até que por fim adormeceu. Quando acordou já os raiozinhos de sol se infiltravam através dos tojos, e todo se alegrou ao ver que era dia. Lembrou-se dos acontecimentos da noite e duvidou da realidade da sala museu.

«Ora, era impossível sonhar com uma sala daquelas! Era absolutamente impossível!»

Começou a fazer cócegas à Didi, para a acordar. Depois saiu da moita e foi almoçar, servindo-se dos biscoitos e das ameixas que os companheiros lhe tinham trazido na véspera. Enquanto comia não tirava os olhos do castelo, sempre a contas com a mesma interrogação: quem seria que estava lá escondido? De repente ficou petrificado quando viu dois homens a atravessar o terreiro, na direcção do edifício. Céus! Por onde é que eles teriam entrado? Sempre existiria outra entrada, ou os homens teriam as chaves de alguma das portas?

Os homens entraram em casa. Pelos vistos, e ao contrário do que se escondia, aqueles não se importavam que os vissem à plena luz do dia! João tomou-se de pânico:

«E se o homem escondido lhes diz que suspeitou da presença de alguém esta noite? Virão à minha procura».

 

         COMEÇAM OS ACONTECIMENTOS

João enfiou pelo tojo tão precipitadamente que nem se embrulhou na manta, arranhando-se todo, e só quando se viu no esconderijo é que se lembrou de que tinha deixado no terreiro, no dia anterior, uns cartuchos com os restos das maçãs roídas.

«Oh diabo! Se dão com eles então é que ficam a saber que há por cá mais alguém!»

Durante quase uma hora não se mexeu, limitando-se a dar de vez em quando umas espreitadelas às águias. Já não sabia se havia de desejar a vinda dos seus companheiros, para não continuar naquela solidão, ou se seria preferível que eles viessem tarde, de modo a dar tempo a que os homens se fossem embora sem esbarrarem neles. João sentia-se cada vez mais atrapalhado.

«Se eles escolheram este local para esconderijo de alguém não devem ficar muito satisfeitos ao saber que andamos por aqui. Afinal foi tolice termos vindo ao castelo. Se calhar, pertence a alguém - e estes homens são capazes de ser os donos!»

Ouviu vozes e espreitou por entre os tojos, a ver quem seria. Eram os dois homens outra vez, que o outro não se mostrava disposto a sair cá para fora. Os homens eram altos e encorpados; um deles tinha uma barba preta, e à medida que se iam aproximando João ouvia-os falar numa língua desconhecida, o que mais ainda o intrigou.

De repente, os homens pararam e o das barbas apontou para os cartuchos que João deixara no terreiro; apanhou-os do chão e examinou-os, mostrando as cascas e os restos das maçãs ao outro. João pensou que aqueles restos eram recentes e que eles calculariam que tinham ali sido deixados havia pouco, e encafuou-se para dentro dos tojos, abençoando-os por serem tão espessos.

Então os dois homens separaram-se e iniciaram uma busca minuciosa por todo o edifício, pelas torres e ao longo das muralhas, sob a vigilância de João, que, afastando ligeiramente as pernadas do tojo, não os perdia de vista. A Didi nem se mexia.

Os homens juntaram-se outra vez e começaram a subir pelas fragas, obviamente dispostos a continuar por aí a batida até que dessem com o intruso. João parecia um rato espiado por um mocho; encolheu-se o mais que lhe foi possível, com o coração a pular como um doido, e viu os homens aproximarem-se do ninho das águias, com exclamações de espanto. Nada deviam saber dos costumes das águias, porque um deles avançou a mão para o ninho. Foi quanto bastou para que, num turbilhão de asas agitadas, a águia fêmea descesse lá do alto em voo picado sobre a cabeça do homem, como uma pedra atirada do céu. O outro homem desatou a sacudir, a torto e a direito, a ave enfurecida, enquanto o primeiro tentava defender-se tapando a cabeça com os braços, mas deitando uns olhares furiosos para os ares, apavorado, porque a águia macho vinha também numa descida veloz.

João não perdia pitada, e uma ideia atravessou-lhe o espírito: do seu esconderijo via perfeitamente o homem a ser atacado pela águia, a cara a descoberto na altura em que ele viu descer a outra, e o pescoço e a gola da camisa aberta. Sem perda de tempo, disparou o obturador e, zás! fotografou-o! Só era pena que o outro estivesse a olhar para o lado, e não se lhe visse a cara.

Ouviram ambos o estalido da máquina e olharam um para o outro, mas a águia fêmea voltou a atacá-los e, tomados de pânico, deitaram a correr pelos penedos abaixo para só pararem no terreiro. Tinham desistido de continuar a busca, e convenceram-se de que ninguém ousaria esconder-se ao pé de tão ferozes aves.

João continuou à espreita, de dentro dos tojos, e ia observando a agitação das águias, irritadas pela presença dos homens. Não tardou a perceber que elas estavam resolvidas a tirar o filhote do ninho e a obrigá-lo a voar, uma vez que esse ninho tinha deixado de ser um lugar seguro e estava à mercê da curiosidade das criaturas de dois pés. Isto fascinou o rapaz a tal ponto que imediatamente esqueceu os sustos, e passou só a ter olhos para as águias e para os esforços que elas faziam para obrigar o filhote a voar. Conseguiram convencê-lo a vir até à borda do ninho e depois deram-lhe um empurrão que o fez cair do rebordo da fraga. A ave quis voltar para o ninho, mas a mãe começou a voar à roda dela, gritando continuamente, como se estivesse a explicar-lhe, com todas as palavras do seu vocabulário de águia, que era imprescindível que ela os acompanhasse. A águia nova escutava-a, ou parecia que a escutava, e depois virava a cabeça para o outro lado como que enfadada.

Foi então que inesperadamente abriu as asas, que ficaram muito esticadas. E que enormes asas! João, que tinha estado a tirar fotografias sobre fotografias, apanhou-a na posição de experimentar as asas e viu-a batê-las com tanta força que quase se voltou - até que iniciou um voo soberbo e elevou-se nos ares, ladeado pelos pais em grande gritaria. Já sabia voar!

«Maravilhoso!», comentou o rapaz, enquanto ia tirando o rolo da máquina. - Gostaria de saber se elas voltam! De resto pouco me importa que voltem ou não porque as fotos que eu queria já cá as tenho. E devo ter feito umas fotografias como ninguém foi capaz de fazer!

Carregava novamente a máquina quando ouviu as vozes dos companheiros; ficou radiante mas logo o assaltou o temor da presença dos dois homens. Onde estariam!

Rastejou pelos tojos, quase sem lhes sentir as picadas, e desceu ao encontro dos amigos, que, pela cara dele, compreenderam que havia novidade. Maria da Luz correu para o irmão:

- Que aconteceu, João? Estás tão sério! Nem imaginas como vimos carregados: a Sr.a Mannering consentiu que acampássemos contigo dois ou três dias! Tem de ir tratar da tia Lena, que está outra vez doente, mas calcula não se demorar.

- E foi por isso que nos deixou vir ter contigo!- acrescentou Dina. - Tu é que não pareces muito encantado com o sucesso!

- Ouçam - começou João. - Passam-se por cá umas coisas estranhas, muito estranhas mesmo. Tenho a impressão até que a vossa presença não é oportuna. Para vos falar com franqueza, agora, que já fiz todas as fotografias que queria, acho melhor, realmente, não nos conservarmos por aqui.

- Voltar para casa? - exclamou Filipe. - Mas porquê? Anda, desembucha! Conta lá tudo.

- Está bem, eu conto. Mas, antes de mais: que é feito da Sara? - e o rapaz lançou um olhar à procura da ciganita.

- A mãe dela não a deixou vir - respondeu-lhe a irmã. - Quando a Sara lhe disse que vínhamos todos acampar aqui, ia quase tendo um ataque. Ela é como a gente da aldeia, como sabes; acredita que os espíritos maus andam pelo castelo, e proibiu

a Sara de vir connosco. Por isso ela não nos acompanhou.

- A Sara teve uma destas fúrias! - prosseguiu Filipe. - Pior " do que todas as fúrias da Dina! Atirou-se à mãe, aos murros, e a mãe sacudiu-a como se ela fosse um trapo. Que mulher horrível! Pronto, a Sara não veio, e agora vamos à tua história!

- Vocês... vocês, por acaso, não encontraram qualquer pessoa a descer o monte, não? - perguntou João, bruscamente, ao ocorrer-lhe que os dois homens talvez se tivessem ido embora.

- Pareceu-nos ver, à distância, três vultos de homens - respondeu Filipe. - Porquê?

- Como eram eles? Havia um com barbas?

- À distância a que estávamos era impossível observar pormenores; de resto seguiam por um carreiro diferente do nosso. Tanto podiam ser pastores como outra coisa qualquer. Por acaso, até pensávamos que fossem pastores!

- Três homens! - resmungou João, pensativo. - Dá a impressão de que o que estava escondido os acompanhou!

- Que diabo estás tu a dizer? - gritou Dina já impaciente. João começou a contar-lhes a história, e os outros ouviam-no

atónitos. Quando lhes descreveu o quarto secreto do subterrâneo, os olhos de Maria da Luz quase lhe saltavam das órbitas!

- Um quarto subterrâneo... com gente a habitá-lo! Ai, eu bem sei o que pensaria a Sara! Dizia logo que o velhote mau ainda cá está, e que o que ele quer é apanhar-nos, para nos meter numa prisão, de maneira que nunca mais alguém saiba de nós!

- Não sejas tola! O caso é este: passou-se aqui qualquer coisa que nós devíamos desvendar. Quem me dera cá o Jaime Smugs! Esse saberia agir.

- Nem sequer a morada dele conhecemos! - acrescentou Filipe. - Apenas que está numa cidade a vinte milhas daqui. Agora até a mãe se foi embora! Nem a ela podemos pedir um conselho.

- De qualquer maneira, quer a tua mãe esteja, quer não, acho que devemos voltar para casa. Já uma vez lidámos com homens perigosos, e não gostámos da experiência; eu, por mim, não quero meter-me em complicações, enquanto tivermos as raparigas à nossa conta. Vamos embora todos.

- Estou inteiramente de acordo - apoiou Filipe. - Mas antes de irmos, e uma vez que dizes que os três homens se puseram a andar, se déssemos uma espreitadela ao quarto secreto? Talvez encontremos qualquer coisa que nos indique quem vive lá e o que faz.

- Está bem, vamos. Didi, anda também! E o Botão, onde está ele, Filipe?

- Deixei-o à Sara, para a consolar de não ter vindo. Ela estava tão triste! Vai ficar radiante quando nos vir voltar tão depressa!

Entraram no salão grande e os rapazes acenderam as lanternas. Certos de que não havia mais ninguém além deles, dentro do castelo, riam e tagarelavam naturalmente, sem a preocupação de não serem notados, e João foi-lhes mostrar a parede do fundo, enquanto procurava no chão o buraco da véspera. Do buraco nem vestígios! Tactearam, à procura de um alçapão, mas era coisa que não existia, e Filipe começava a desconfiar de que João tinha sonhado, quando a sua boa vista descortinou, na parede do fundo, uma escápula de ferro que brilhava de polida pelo uso. Filipe deitou-lhe a mão.

- Aqui há coisa! - principiou ele a dizer, puxando com força; a escápula girou suavemente numa espécie de gonzo, e de repente ouviu-se ranger mesmo aos pés de Maria da Luz, que só teve tempo de dar um salto à retaguarda. O chão abria-se-lhe debaixo dos pés! Um grande bloco de pedra movia-se lentamente, de um modo estranho, até se afastar de lado, para deixar à vista um curto lanço de escadas que terminava no quarto secreto que João tinha visto nessa noite. Os garotos ficaram boquiabertos. - Isto faz-me lembrar Ali Babá e os quarenta ladrões, ou a gruta de Aladino! - comentou Dina. - Então, descemos? Vamos lá, que isto promete!

Sobre a mesa estreita comprida havia uma lâmpada de azeite, acesa, e a essa luz puderam ver o quarto. Filipe, Maria da Luz e Dina precipitaram-se pela escada abaixo, a vasculhar tudo. Viram as tapeçarias, com motivos de cenas de caça, que pendiam das paredes, viram as armaduras, à roda de toda a sala, e os cadeirões, tão grandes e tão pesados que parecia terem sido feitos para gigantes, e não para homens.

- Onde está o João? - perguntou Filipe.

- Foi buscar a Didi - respondeu Dina. - Filipe! Olha! Está aqui outra escápula, como a de lá de cima, aqui, nesta parede! Que acontecerá se puxarmos por ela?

Dina puxou. Ouviu-se um rangido, a pedra voltou a girar, lentamente, e os três amigos ficaram encarcerados no quarto secreto!

 

         OS ACONTECIMENTOS SUCEDEM-SE

Ficaram os três a olhar, maravilhados, para a enorme pedra a deslizar, como que por encanto, até se encaixar na parede. Mas Filipe sentiu-se tomado de pânico:

- Dina! Tira-te daí e deixa-me puxar a escápula, a ver se a pedra torna a movimentar-se.

Puxou outra vez, para cima, para baixo, para os lados, deu-lhe safanões, mas a escápula não funcionou e a pedra não se moveu.

- Serve para fechar a abertura, mas não para a abrir - explicou, e procurou com os olhos outra escápula, ou alavanca, ou puxador, qualquer coisa enfim de que deitassem mão para fazer girar o bloco, de maneira a safarem-se dali. Mas nada viu.

- Há-de haver um sistema, por força tem de haver! Senão, como poderia o homem sair todas as noites lá para fora?

As duas raparigas estavam aterradas com a perspectiva de ficarem fechadas no subterrâneo, e Maria da Luz tinha a sensação de que as armaduras a espiavam com ar de sarcasmo. Dina voltou-se para o irmão:

- Não vale a pena afligirmo-nos, porque João deve estar a chegar e quando vir que a abertura está tapada puxa a escápula do outro lado, e a pedra torna a abrir-se.

- Conto com isso! - respondeu o rapaz, criando alma nova. - Tu é que tiveste a culpa! Quem te mandou mexericar em coisas que não sabes o que são?

- E tu não fizeste o mesmo?

- Está bem, está bem... - e pôs-se de novo a inspeccionar a sala, muito interessado pelas armaduras. Se pudesse vestir uma, ao menos uma? E veio-lhe uma ideia:

- Vou pregar uma partida ao João!

Escondo-me dentro de uma destas couraças e quando ele chegar vocês nada lhe dizem. Então eu salto lá de dentro, a fazer um estardalhaço medonho, e ele fica sem pinga de sangue!

As raparigas riram-se. - Combinado! - aprovou Maria da Luz. - Despacha-te! Tu sabes meter-te lá dentro?

- Sei, já experimentei uma vez, quando estudámos uma que havia lá no colégio. É muito simples, e vocês dão-me uma ajuda.

Num abrir e fechar de olhos Filipe estava metido numa das armaduras, de elmo na cabeça e a viseira descida. Via tudo cá para fora, mas ninguém o descobriria lá dentro. Com um ruidoso chocalhar de lata lá trepou para cima da peanha, enquanto as raparigas riam perdidamente.

- O susto que João vai apanhar! Oxalá ele não se demore! - disse Maria da Luz. Dina interrogou a couraça, que não se distinguia das outras, à força de imobilidade:

- Sentes-te bem aí, Filipe?

- Lindamente! Mas lá ir para a guerra com isto em cima, é que não queria! Não seria capaz de dar um passo, nem consigo perceber como era possível combater com toda esta lataria às costas!

Entretanto as raparigas iam vagueando pela sala, admirando as velhas tapeçarias, sentando-se nos cadeirões, mexendo nas armas antigas das panóplias que ornavam as paredes, achando tudo muito curioso, até que Maria da Luz começou a afligir-se.

- Que diabo andará o João a fazer? Estamos à espera dele há que séculos! Meu Deus, Dina! Admites que os tais homens tenham voltado para trás e o tivessem apanhado?

- Que ideia! - respondeu Dina, que também já estava aflita. - Lá o que ele andará a fazer, não sei. A verdade é que ele ia só buscar a Didi e ficou de vir imediatamente ter connosco!

- Sabem vocês? - disse uma voz cava lá do fundo de uma armadura. - Sabem vocês? Eu não acredito que aqueles homens que vimos fossem os homens do castelo. Tenho estado a pensar nisso e admito agora que não eram, nem podiam ser.

- Que queres dizer? - gritaram as duas raparigas, muito assustadas, a olhar para a viseira que tapava a cara do Filipe.

- Ora pensem bem, e lembrem-se do local onde os vimos! Iam lá muito em baixo, quase no sopé do monte, para os lados da quinta, não iam? Já sabemos que não há caminhos, nem carreiros entre o castelo e a quinta, e agora, pensando melhor, estou convencido de que os homens que vimos eram trabalhadores da quinta. Um deles, pelo tamanho, devia ser aquele homenzarrão que nos vende os ovos quando lá vamos às compras.

As raparigas calaram-se a reflectir. De facto, os homens iam lá muito em baixo e deviam andar muito perto da quinta. A aflição de Maria da Luz aumentava.

- Deves ter razão, Filipe. Além de que, não faria sentido que metessem pelo atalho da quinta se não querem ser vistos, não é assim? Os cães desatariam a ladrar e o lavrador viria ver quem era.

- Pois, mas os cães não ladraram, porque nós não os ouvimos. Portanto, aí está mais uma indicação de que não eram os homens de que João falou. Esses não chegaram a sair do castelo e devem estar para aí metidos em qualquer canto.

- Sempre gostava de saber o que andará o João a fazer! - repetiu Dina. - Quem mo dera cá!

Efectivamente João estava a demorar-se muito, mas a culpa não era sua. Tinha ido em busca da Didi e dera com ela na saleta onde ambos se tinham escondido durante a noite, quando de súbito viu, da janela da saleta, três homens a um canto do terreiro.

- Caramba! O Filipe enganou-se, os homens que ele viu não eram os de cá, deviam ser trabalhadores da quinta, talvez pastores! Oh, Céus! Oxalá que estes não vão ao quarto secreto!

Disparou como uma seta, direito ao salão grande, mas estacou ao ver que a passagem secreta estava obstruída, sem lhe passar pela cabeça que Dina descobrira outra alavanca, no subterrâneo, e tinha fechado a passagem ao puxar por ela. Ficou hesitante sobre a decisão a tomar. Deveria abrir a passagem secreta e ir ver se os companheiros ainda estariam lá em baixo? E se os homens entrassem no salão nessa altura? Já lhes ouvia as vozes muito perto.

Voltou para a saleta, noutra corrida e, ao esbarrar numa cadeira, levantou uma nuvem de pó. Escondeu-se apressadamente atrás de uma cortina de tapeçaria que tapava o vão da janela, sem ousar tocar-lhe, não fosse ela cair aos bocados.

Os homens davam mostras de preocupação, certamente ainda causada pela descoberta do cartucho com as cascas de maçã, e via-se nitidamente que desconfiavam da presença de estranhos no castelo, quando João, aflitíssimo, deu com eles a examinar a tralha que os pequenos haviam trazido nessa manhã. Tinham-na encontrado no terreiro e espalharam-na à entrada do castelo, observando cuidadosamente objecto por objecto. João ouvia-os falar, mas não percebia o que diziam.

«Temos de nos pôr a andar daqui para fora o mais depressa possível», pensou ele, «se não nos queremos ver metidos numa camisa de onze varas. O pior são as raparigas! Ainda ao menos se eu conseguisse levá-las até à sala onde está a prancha!»

Dois homens entraram no castelo, cada qual por seu lado, com ar de quem decidiu fazer nova busca, mais rigorosa, e o terceiro ficou à porta, a puxar fumaças de um cigarro, como se estivesse de atalaia ao terreiro.

João percebeu que lhe era impossível regressar ao quarto secreto sem que o homem que estava de sentinela desse por ele. Nada havia a fazer senão esperar e aguardar um acaso que lhe permitisse lá chegar antes dos homens que andavam na busca, e deixou-se ficar, atrás da cortina, à espera e à espreita. Ai, quem lhe dera ali Jaime Smugs! Esse sabia sempre como desenvencilhar-se das situações difíceis, mas que admirava que soubesse? Jaime era um adulto, e os adultos geralmente sabem sair-se de apuros.

O homem que estava de atalaia acabou de fumar e, em vez de deitar fora a ponta do cigarro, apagou-a esmagando-a contra uma moeda que tirou do bolso, e meteu-a numa caixinha de lata. Não queria deixar sinal algum que pudesse revelar a sua presença. Voltou-se e entrou no castelo, enquanto o João, sustendo a respiração, lhe ia ouvindo os passos sonoros encaminharem-se para o fundo do salão grande. Iria meter-se no subterrâneo? Ia mesmo! João quis certificar-se e rastejou até à porta, a espreitar pela frincha.

Viu o homem puxar a escápula, a pedra mexer-se, a ranger, primeiro para baixo, depois para o lado, accionada por um mecanismo perfeito que, apesar de muito velho, ainda funcionava maravilhosamente.

O coração do rapaz parou de bater: que aconteceria agora? Que faria o homem quando desse com os garotos lá em baixo?

Dina e Maria da Luz ouviram o ranger do bloco e viram-no deslizar. Olharam para cima, o mesmo fazendo Filipe, de dentro da viseira, na esperança de ver aparecer João. Mas ficaram com os cabelos de pé ao darem com um homem que, do meio da escada, os olhava no cúmulo do espanto e da ira!

O homem só via as duas raparigas, bem entendido, as quais não despregavam os olhos da cara dele, a tremer como varas verdes. Que cara medonha! Com um nariz enorme, olhos pequenos, lábios finíssimos e umas sobrancelhas que lhe caíam para os olhos como as guedelhas de um cão pastor!

As raparigas estavam apavoradas e Maria da Luz começou a soluçar. João, ao ouvi-la chorar, teve ganas de atirar o homem pela escada abaixo e torcer-lhe o pescoço: «Malvado! Assustar assim a pobre Maria da Luz!» - e só queria poder aparecer a consolar a irmã. Nessa altura ouviu os passos dos outros dois homens, que regressavam da busca; o homem também os ouviu, porque subiu a escada e falou-lhes numa língua estranha, que João não compreendeu, mas que devia ser a participar-lhes a descoberta que acabara de fazer.

Filipe aproveitou então para segredar, de dentro da couraça, às duas raparigas:

- Não tenham medo! Eles vão julgar, com certeza, que vocês são duas patetas que vieram meter o nariz no castelo. Façam-nos acreditar nisso e não falem de mim, nem do João, senão é que nunca mais de cá saímos. João deve estar lá em cima, está bem de ver, e há-de encontrar maneira de vos fazer escapar. Quanto a mim, não arredo daqui até passar o perigo, e eles nunca darão comigo.

Calou-se bruscamente porque os três homens vinham a descer a escada. Um deles tinha uma barba preta e cerrada, o outro a cara rapada e o terceiro, o que as raparigas já tinham visto, era realmente o mais feio do trio.

Maria da Luz pôs-se outra vez a chorar. Dina, que também estava assustadíssima, essa não era para choros.

- Que fazem vocês aqui? - perguntou o das sobrancelhas de cão-pastor. - Vamos, respondam! E contem tudo, se não querem arrepender-se!

 

         PRISIONEIROS NO CASTELO

- Nós só viemos dar uma vista de olhos ao castelo - começou Dina, esforçando-se por não tremer com a voz. - O castelo é seu? Nós não sabíamos...

- Como é que deram vocês com este quarto? - perguntou o das barbas, todo zangado.

- Por acaso. Ficámos muito admiradas! Por favor, deixem-nos ir embora! Nós somos duas pobres rapariguinhas e não fizemos por mal!

- Há alguém fora deste castelo que saiba que nós estamos cá? Alguém sabe da existência desta sala? - voltou a interrogar o das sobrancelhas.

- Ninguém. Não há ninguém que saiba. Nós também nunca tínhamos visto, e só hoje é que descobrimos este quarto. Por favor, deixem-nos ir!

- Pelos vistos, vocês andam a bisbilhotar por aqui há já alguns dias. Nós bem demos com a vossa tralha, suas pestes abelhudas!

- Nós não sabíamos que o castelo tinha dono. Como havíamos de sabê-lo? Nunca aqui vem ninguém, e lá na aldeia toda a gente tem medo destes sítios.

- Há mais alguém convosco? - perguntou o das barbas, desconfiado.

- Se não acreditam, podem procurar! - respondeu a rapariga, fazendo preces para que nenhum deles se lembrasse de ir espreitar para dentro das armaduras que guarneciam a sala. Um dos homens disse para o dos sobrolhos cabeludos:

- Já passámos busca e não vimos mais ninguém.

- Por favor, deixem-nos ir! Nós prometemos nunca mais voltar!

- Ah! Para vocês irem para casa e contarem que estiveram cá, e que nos viram, e que viram esta sala, não? - disse o homem da barba preta, numa voz melíflua, de meter medo. - Não, minhas meninas, vocês ficam aqui até nós acabarmos o nosso trabalho. Só depois disso, e quando já não tiver importância, é que as deixaremos partir. Que talvez as deixemos ir! Ainda depende da forma como vocês se portarem.

De dentro da couraça Filipe tremia de raiva pelo modo como os homens tratavam as rapariguitas, mas não ousava mostrar-se para não complicar as coisas. O homem da barba continuou:

- Bom, temos coisas a tratar. Vocês podem sair desta sala, mas não se afastem. Ficam ao alcance do nosso chamado.

Deixaram-nas subir a escada e tornaram a obstruir a passagem secreta, abandonando-as no salão grande, onde as duas raparigas deram um fundo suspiro de alívio. Dina pegou na mão da amiga e murmurou-lhe:

- Temos de fugir e depressa, para ir buscar socorros para libertar Filipe. Nem quero pensar no que pode acontecer-lhe se aqueles homens o descobrem.

- Onde estará João? Eu quero o meu irmão!

João estava perto. Assim que ouviu a pedra a obstruir o buraco da passagem, e reconheceu as vozes das raparigas, disparou lá da saleta. Maria da Luz viu-o e correu para ele. O rapaz abraçou-a e fez-lhe festas, a acalmá-la.

- Pronto, pronto, já passou. Não chores mais! Saímos daqui e vamos buscar auxílio para Filipe!

Mas Maria da Luz não parava de chorar, agora já não tanto de susto mas também de alegria por ter encontrado o irmão. Este foi-a levando pela escadaria larga até ao primeiro andar do castelo.

- Estamos quase a atravessar a prancha, vais ver. E depois estamos salvos. Filipe também não tardará a ser libertado. Não tenhas mais medo!

Foram andando, atravessaram o corredor compridíssimo, mal iluminado pelas frestas estreitas e chegaram ao salão de cuja janela partia a tábua das travessias. Dina correu alegremente, ansiosa pela libertação, mas quedou-se, aterrada: a prancha tinha desaparecido!

- Enganámo-nos na sala! Depressa, João, procura a sala por onde entrámos!

Correram várias salas, mas em nenhuma encontraram a fresta e o parapeito com a tábua. Dina começou a tremer.

- Isto parece um pesadelo! Andamos de quarto em quarto, sem nunca mais encontrar a prancha. João! Tens a certeza de que não estamos a sonhar?

- Parece! Vamos lá outra vez, nós estamos com os nervos destrambelhados e não soubemos procurar. Calma! Vamos procurar do princípio, até encontrarmos a nossa sala de entrada.

Mas foi em vão que tornaram a percorrer as dependências todas, vasculhando-as com a máxima atenção. Em nenhum parapeito encontraram a tábua salvadora. Por fim pararam e João disse:

- Começo a recear, mas a recear muitíssimo, que eles tenham dado com o recurso da nossa entrada e tenham tirado a tábua.

Dina sentou-se no chão poeirento. - Meu Deus! Nem me tenho nas pernas! Está a ver-se porque eles nos deixaram sair do subterrâneo! Já sabiam que nós não podíamos escapar!

- Sim, se tivéssemos pensado dois minutos tínhamos visto logo isso - disse João tristemente. E sentou-se no chão também, a ver se encontrava uma solução para o caso.

- Se eu soubesse onde eles esconderam a prancha!... E se fôssemos à procura? Talvez fosse uma ideia...

- O mais certo é terem-na empurrado para fora do parapeito, e deixarem-na cair - respondeu Dina, no mesmo tom soturno.

- Não me parece. No caso de haver mais alguém a saber do nosso processo de entrar, deixar lá a tábua era asneira que eles não faziam. O melhor é irmos procurá-la.

Procuraram por todos os lados, mas da prancha nem sinais. Onde quer que ela estivesse, estava bem escondida; os três amigos acabaram por desistir.

- E agora? Se não podemos sair do castelo, que vamos fazer? - disse Dina. - Acaba com a choradeira, Maria da Luz, que nada remedeias com isso.

- Não a maces - disse João, cheio de pena da irmã. - O caso está muito sério, e nós estamos encafuados no castelo, sem podermos sair daqui, enquanto Filipe corre perigo, lá em baixo. Basta que ele espirre ou tussa!

Maria da Luz alarmou-se com a ideia de que o pobre do Filipe nem pudesse espirrar.

- Dá a impressão de que viemos cair no meio de um segredo importante, embora eu não consiga perceber patavina disto! Não faço ideia alguma do motivo por que estes homens se escondem aqui. Mas lá boa pinta é que eles não têm, qualquer deles! São capazes de pertencer a uma quadrilha de malfeitores que andam a maquinar qualquer coisa. Quem me dera poder impedi-los, mas sei lá como fazê-lo? A única coisa menos má, para nós, é que eles nem sonham que eu estou aqui e que o Filipe está escondido no sítio onde eles conspiram!

- Se pudéssemos escapar-nos! - suspirou Maria da Luz. - Eu bem sei que a tia Lia não está em casa, mas podíamos ir pedir socorro ao homem da quinta, por exemplo!

- Cá por mim não vejo maneira de fugir daqui, uma vez que o nosso único recurso para a saída desapareceu. Nem com a Sara podemos contar, depois da ameaça, que a mãe lhe fez, de a sovar se viesse para estes lados.

- É preciso evitar que os homens saibam que tu também cá estás, João! - disse Dina. - Onde hás-de esconder-te?

- Nas moitas de tojo, é o lugar mais seguro. Vocês desçam ao salão grande, vejam se a passagem ainda está fechada; se estiver eu trepo às fragas e vou esconder-me nos tojos. Vocês podem ficar ali perto e vão-me avisando do que se passar.

- Se nós soubéssemos por onde passava o Botão! Mas era capaz de ser uma lura onde nenhum de nós caberia... - observou Maria da Luz.

Voltaram ao salão grande e viram que a pedra ainda tapava a entrada para o quarto secreto. Fizeram sinal ao João e ele esgueirou-se rapidamente ao longo do salão, voou pela porta principal até ao terreiro e trepou pelas fragas acima até ao seu esconderijo nas moitas, onde se sentiu finalmente em segurança, bem tapado pelo tojo a toda a volta.

As raparigas subiram atrás dele, e admiraram, lá de cima, a bela vista que tinham do castelo. Estavam num posto de observação magnífico. Tiraram uns pãezinhos de um embrulho que levavam com elas e começaram a comer, passando alguns ao João através dos tojos.

- Ainda bem que trouxemos tanta comida - regozijou-se Dina. - Se vamos cá ficar prisioneiros, sabe-se lá por quanto tempo, ao menos teremos provisões.

- Se a tua mãe não se tivesse ido embora, assim que desse pela nossa falta organizaria logo uma batida ao castelo, para nos encontrar. Que pouca sorte a nossa! Logo nesta altura é que ela havia de sair de casa. Assim ninguém vai dar pela nossa falta.

- Chiu! Lá vêm os homens! Não fales, João! - avisou Dina. Os homens deram um berro a chamar as duas raparigas, e elas responderam-lhes de mau humor. Ordenaram-lhes que descessem dos penedos e, já cá em baixo, o das barbas perguntou, muito amável, enquanto o outro fungava uns risinhos:

- Então, encontraram a tabuinha?

- Não, o senhor tirou-a de lá - respondeu Dina, com má cara.

- Pois claro. A ideia era boa, sim, senhor, mas nós não gostamos dela. Já sabem que não podem sair daqui, e sem a tábua de facto não saem. Podem ficar no terreiro, que ninguém lhes faz mal, e logo à noite podem dormir na cama grande, lá em baixo. O que temos de fazer é fora do quarto, por isso podem lá ficar. Mas estão proibidas de subir as escadas das torres, ou qualquer outra. Não pensem que vão poder fazer sinais a pedir socorro. E notem bem: se nos desobedecerem, arrepender-se-ão amargamente. Podemos metê-las numa masmorra que há no castelo, onde há ratos vivos e baratas a correr.

Dina deixou escapar um grito agudo, horrorizada com semelhante ideia.

- Portanto, tenham juízo e portem-se bem, que nenhum mal vos acontecerá. Não saiam da nossa vista, nem se afastem deste terreiro, para que nos ouçam chamar-vos. Quanto a comida, já vimos que vocês têm paparoca que chegue, e há água na cozinha, é questão de dar à bomba.

As raparigas não responderam e os homens afastaram-se para tornar a entrar no castelo. Daí a bocado, Maria da Luz disse:

- Que estará a acontecer ao Filipe? Ai, não podermos nós libertá-lo! Vai morrer de fome, ali metido!

- Não morre, a mesa está carregada de coisas de comer, assim ele possa descer da peanha para se servir! - respondeu Dina. E acrescentou: - Se nós pudéssemos mandar um recado à Sara talvez ela nos conseguisse dar uma ajuda. Mas não temos quem lá mande!

- Achas que a Didi seria capaz de fazer de pombo-correio? Atávamos-lhe uma mensagem a uma pata? - sugeriu Maria da Luz. - Mas não, ela não larga o João. A Didi é muito esperta, mas não podemos contar com ela para servir de mensageiro.

O mensageiro, porém, havia de lhes aparecer inesperadamente, e que bem recebido foi!

 

         MARIA DA LUZ TEM UMA IDEIA

Todo o dia as raparigas vaguearam pelo terreiro, sem se afastarem muito do penedo onde João se escondia, conversando com ele para o entreter. Preocupavam-se, sobretudo, com a situação de Filipe e receavam que ele tivesse sido apanhado.

- É uma raiva que os homens falem numa língua que nós não compreendemos! - comentou Dina. - Se falassem inglês era garantido que Filipe lhes apanharia muitos segredos uma vez que está ali mesmo no meio deles, sem eles suspeitarem!

- Pois era! Mesmo assim, eu preferia que ele não estivesse lá em baixo. Cá por mim, morria de medo se me visse assim metida numa couraça que pode ranger e chocalhar ao mais pequeno movimento!

- Ora, Filipe não tem medo. Ainda gostava de saber do que terá ele medo! É capaz de estar a divertir-se imenso!

Mas nisso é que Maria da Luz não acreditava, e achou Dina tola por falar daquela maneira. Só mostrava com isso que não era tão amiga do irmão como ela, Maria da Luz era do João. Já lhe custava muito sabê-lo ali, forçado a não poder sair daquela horrível moita, quanto mais se o imaginasse lá em baixo, no quarto secreto à mercê dos homens que talvez fossem bandidos.

Do esconderijo onde estava, João notou-lhe o ar desolado e consolou-a: - Então, anima-te! Pensa na aventura que isto tudo representa!

- Eu só gosto de aventuras depois de elas terem passado! Enquanto duram não têm graça, e ainda por cima esta aventura não fomos nós quem a provocou. Não foi por nossa vontade que nos vimos nela!

- Pois sim, tens razão. Mas não te rales, que tudo acabará bem, vais ver!

Como acabaria bem é que a pobre Maria da Luz não descortinava, parecendo-lhe, pelo contrário, que dali é que nunca mais sairiam, e que qualquer socorro se demonstrava de todo improvável.

O Sol já ia no ocaso, e a Didi, aborrecida por sentir-se presa, desatou a falar pelos cotovelos. As raparigas deixaram-na pairar à vontade, mas iam espiando o castelo, com medo de que os homens aparecessem de repente e a ouvissem.

«Pobre Didi, pobre Didi! Que pena, que pena, que pena, que pena! Deus salve o rei! Atenção, atenção, atenção, por favor! Sentem-se direitos, não estejam recostados! Quantas vezes te tenho dito que lá vai tudo quanto Marta fiou?»

As raparigas torciam-se com riso! A Didi era altamente cómica quando se punha a dar à língua e a despejar as frases todas do seu repertório, enfiadas umas nas outras, da maneira mais disparatada. João coçou-lhe a cabeça, dizendo:

«Valente Didi! Coitada, estás muito maçada, não estás? Deixa lá, daqui a pouco, quando estiver escuro, podes ir esticar as asas e voar um bocado. Mas vê lá, não te lembres de desatar para aí a apitar como uma locomotiva, se não queres que os homens nos caiam em cima em dois tempos!»

O Sol desapareceu no horizonte, o terreiro principiou a encher-se de sombras crepusculares, o céu cravejou-se de estrelas. Dois dos homens apareceram à entrada do edifício e chamaram pelas raparigas.

- Eh lá pequenas! Venham deitar-se!

- Nós gostamos de estar às escuras! - berrou-lhes Dina, em resposta. - Ficamos mais um bocado cá fora.

O que ela pretendia era dar uma volta pelo terreiro, com João, antes de ter de recolher ao quarto secreto. O homem da barba gritou lá de baixo:

- Bom, então desçam daí dentro de meia hora. Já deve ser noite fechada e o melhor é irem para a cama!

Os homens tornaram a desaparecer, e Dina, deslizando silenciosamente, foi atrás deles. Viu-os descer a escada do quarto secreto e ouviu o costumado ranger da pedra a girar nos gonzos, ocultando a passagem. Correu até junto do João e sussurrou-lhe:

- Anda daí! Eles estão fechados no quarto secreto, e já está noite escura. Ninguém te verá!

Satisfeitíssimo por sair de um esconderijo tão pouco confortável, João esgueirou-se através da moita; pôs-se de pé, distendeu os músculos e esticou os braços ao alto.

- Puf! Estou todo dormente! Vamos lá dar uma volta rápida pelo terreiro, para mexer as pernas! Com esta escuridão já ninguém nos vê.

De braço dado, os três iniciaram a marcha desentorpecedora, mas não tinham ainda chegado a meio do caminho quando um corpo estranho, saído bruscamente do negrume da noite, esbarrou nas pernas de João com tal violência que quase o deitou por terra. O rapaz estacou, espavorido.

- Que é isto? Onde está a minha lanterna? - Acendeu-a rapidamente e tornou a apagá-la, não fossem os homens andar por ali, e tornou a projectar o foco de luz para o chão, exclamando logo, em voz baixa:

«É o Botão! Meu rico Botãozinho! Por onde vieste tu?»

O Botão deu uns rosnadinhos de contentamento, rebolou-se no chão, de barriga para o ar, como um cãozito, lambeu-os aos três, com todas as demonstrações de uma alegria louca, e pôs-se a correr de um lado para o outro, como se estivesse à procura de alguém que não encontrava ali. Perceberam imediatamente que era com Filipe, o dono, que ele viera ter.

«Não, meu velho, não podes ir ter com Filipe!», disse-lhe João, afagando-o. «Tens de contentar-te connosco, Filipe não está cá!»

O raposito regougou e a Didi, instalada no ombro de João, imediatamente o imitou, manifestando o seu desagrado por ver que o Botão já lá estava outra vez. Este desatou aos pulos, a ver se apanhava a Didi, sem se irritar, nem sequer perceber os cacarejos de escárnio com que era recebido. Maria da Luz apertou de súbito o braço do irmão e exclamou:

- Tive uma ideia, João!

- Que ideia? - respondeu o rapaz, que não confiava muito nas ideias de Maria da Luz.

- E se fizéssemos do Botão o nosso mensageiro? Se mandássemos por ele umas linhas à Sara a pedir-lhe que nos arranjasse socorros? É garantido que o Botão volta para o pé dela uma vez que não encontra Filipe; depois dele, a pessoa de quem ele mais gosta é da Sara. Vamos tentar?

- A ideia de Maria da Luz é óptima, João! - aplaudiu Dina, excitadíssima. - Só o Botão é que pode, e sabe, sair daqui, e só ele nos pode servir de mensageiro!

João meditou um bocado e pronunciou-se:

- Está bem, não há dúvida de que a ideia parece boa, e vale a pena experimentar. Mal não pode fazer-nos. Seja, vamos mandar o Botão como mensageiro!

Rasgaram uma folha da agenda do João e rabiscaram a lápis estas palavras, que o rapaz leu alto:

«Sara, estamos prisioneiros. Arranja socorros o mais depressa possível. O perigo é grande».

Assinaram todos, João dobrou o papel e pôs-se a pensar na maneira de o mandar pelo Botão, até que descobriu: tirou do bolso um bocado de guita, que lhe serviu para dar algumas voltas ao papel, amarrando-o bem, e depois atou-a firmemente ao pescoço gorducho do bicho, sem a deixar muito folgada, para que ele não a tirasse com as patas, no seu horror a coleiras, que nenhum animal bravio suporta.

- Pronto, já está! - disse o rapaz, satisfeito com a obra. - O Botão não deve arrancar o cordel do pescoço, e o papel está bem amarrado; vê-se bem, pendurado debaixo do queixo!

«Anda, Botão, volta para Sara!», ordenou-lhe Maria da Luz. Mas o Botão não compreendia a ordem. Ainda não tinha desistido de encontrar Filipe e não parecia disposto a arredar pé enquanto não visse o dono. Trotava de um lado para o outro, em todos os sentidos do terreiro, em busca de Filipe, parando de vez em quando para tentar arrancar a coleira, sem todavia o conseguir.

Ouviu-se de repente a voz muito alta de um dos homens e deram todos um pinote de susto.

«Ó pequenas, venham para dentro!»

Maria da Luz abraçou ternamente o irmão e segredou:

- Boa noite, João! Temos de ir. Deus queira que possas dormir e não te sintas muito desconfortavelmente! Leva as nossas mantas quando fores para cima.

- Eu só hei-de voltar para aquela maldita moita o mais tarde que possa! - responde o rapaz, que estava fartíssimo do esconderijo, e que daria alguma coisa para não tornar a servir-se dele. - Adeus, boa noite! Não se aflijam nem tenham medo, Sara não tardará a mandar-nos socorro, assim que o Botão lá chegue.

As raparigas deixaram-no no terreiro escuro e, ao entrarem no salão grande, da entrada, viram logo a luz mortiça que vinha da lâmpada do quarto secreto. Desceram a escada e olharam rapidamente à volta, para ver se Filipe ainda estaria dentro da armadura, mas era impossível sabê-lo, no meio de tantas outras iguais, e igualmente imóveis. O homem dos sobrolhos cabeludos, que parecia ainda mais feio à luz da lâmpada, avisou-as:

- Vocês ficam aqui fechadas. Podem dormir naquela cama; amanhã de manhã cá estaremos.

Subiu as escadas e a pedra foi deslizando até obstruir a passagem, encerrando as raparigas novamente. Ficaram as duas caladas, de pé, de ouvido à escuta. Reinava o silêncio. Maria da Luz foi espreitar uma armadura e murmurou:

- Filipe! Ainda aí estás? Diz qualquer coisa!

- Ainda cá estou! - ouviu-se a voz estranhamente cava de Filipe. - Mas faço votos para nunca mais, na minha vida, tornar a passar um dia como o de hoje! Vou sair daqui para fora, não aguento nem mais um minuto!

- Ai, Filipe! Não será tolice? E se os homens voltam para trás? - perguntou Dina, angustiada.

- Não é natural que voltem, e, mesmo que voltem, não quero saber. Não posso mais! Estou cheio de cãibras, estafado de estar de pé este tempo todo, e por três vezes tive de suster os espirros. Tem sido um esforço terrível, digo-vos eu!

Com uma grande barulheira de latas, Filipe começou a desenvencilhar-se da armadura, mas muito desajeitadamente, tão entorpecido estava.

- O mais bonito foi que o sapo não aguentou mais, saltou-me do bolso e meteu-se por uma fenda da armadura. Andou por aí aos pinotes, os homens viram-no e ficaram de boca aberta!

Dina relanceou o olhar, a ver se o sapo andava por ali.

- Coitado de ti! Que dia horrível deves ter passado! - comentou Maria da Luz, enquanto ajudava o rapaz a libertar-se.

- Lá isso passei! Mas valeu bem a pena!

Fiquei a saber umas quantas coisas bastante interessantes. Por exemplo, que há uma outra saída secreta, nesta sala, atrás de uma dessas tapeçarias.

- Ui! - gemeu Maria da Luz, a olhar para a tapeçaria como se visse abrir-se diante dela um caminho misterioso. - Como sabes?

- Eu já te digo, deixa-me ver livre desta tralha. Palavra, só desejo não ter de tornar a envergá-la! Vocês nem imaginam o que sofri! Uf! Estou safo, até que enfim! Deixem-me espreguiçar à vontade!

- Anda lá, conta-nos o que se passou aqui durante o dia! - pediu-lhe a irmã, morta por ouvir o relato. - Deves ter muito que contar!

Se tinha!

 

         FILIPE NARRA UMA ESTRANHA HISTÓRIA

- Vamos mas é para a cama, não se dê o caso de os homens voltarem de repente! - sugeriu Dina. - Que fazes tu, se eles vierem?

- Como se ouve o gemer dos gonzos quando a pedra desliza, tenho tempo de saltar da cama e esconder-me debaixo dela. Mas os homens não suspeitam de que esteja cá mais ninguém além de vocês duas, e não será agora, no meio da noite, que vão pôr-se a fazer mais buscas!

A cama era tão grande que havia espaço à larga para todos. O colchão era de penas e os garotos enterraram-se nele, com grande prazer de Filipe. Depois do desconforto da armadura era uma delícia sentir tanta macieza! Sentado na cama, começou a narrativa.

- Vocês lembram-se do momento em que foram pela escada acima e me deixaram aqui? Eu estava furioso com a maneira como os homens vos trataram, mas, claro, nada podia fazer. Fiquei-me para ali, tempos sem fim, até que os homens voltaram, taparam a entrada e sentaram-se à volta da mesa.

- E tu percebias o que eles diziam? - quis saber Maria da Luz.

- Não, infelizmente nada percebia. Espalharam mapas em cima da mesa e traçavam linhas e sinais, mas que eu não podia ver. Quase ia caindo da peanha abaixo, à força de tentar ver o que faziam!

- Com os diabos! Como eles haviam de ficar se tu lhes caísses em cima, com todo o peso e todo o banzé da armadura! - e Dina pôs-se a rir. - Mas ainda bem que não caíste!

- Bem, lá estiveram sentados, numa grande conversa e debruçados sobre os mapas, durante muito tempo. Depois comeram e comeram bem! Fartaram-se de abrir latas, e a água crescia-me na boca!

- Pobre Filipe! Tu comeste alguma coisa hoje? - perguntou Maria da Luz, muito preocupada. Filipe acenou com a cabeça:

- Não te rales com isso. Assim que eles desapareceram, e tornaram a obstruir a passagem, desci da peanha e dei conta dos restos! Espero que eles não tenham dado pela "limpeza". Mas tinha tanta fome e tanta sede que nem quis saber. Se vocês vissem o espectáculo de todas as outras armaduras a olharem para mim! Eu quase estava à espera que viessem ter comigo para tomar parte no banquete!

- Não digas essas coisas! - rogou Maria da Luz, espavorida. Encarou as armaduras, tão quietinhas nas peanhas, e pensou de repente que elas iam pôr-se em movimento, num inferno de latas a chocalhar. Filipe riu-se e deu-lhe uma palmadinha. Depois prosseguiu:

- Beber é que foi difícil! Por causa do capacete não podia inclinar a cabeça e despejei metade da água por mim abaixo. Fiquei cheio de medo de que os homens dessem por isso se vissem poças de água no chão, ao pé da minha peanha.

As raparigas não puderam deixar de rir. Filipe tinha sempre graça a contar histórias, e fazia-as render.

- Lá voltei para o pedestal, a sentir-me um bocado mais confortado, e assim se passaram cerca de vinte minutos antes que os homens voltassem. E foi então que aconteceu uma coisa espantosa!

- O quê? - perguntaram ambas em uníssono, sustendo a respiração.

- Vêem aquela tapeçaria, aquela ali, com cães e cavalos, do lado exactamente oposto ao da minha couraça? Pois bem, ali por trás há outra porta secreta.

Filipe calou-se uns instantes, que ambas aproveitaram para olhar a tapeçaria, depois o rapaz.

- Os homens conversaram um bocado e depois um deles encaminhou-se para ali, levantou o pano e pendurou-o naquele prego que vocês estão a ver. Eu via tudo pela viseira. A princípio não percebi o que estava o homem a fazer, pois a parede dava-me a impressão de ser feita de um só bloco de pedra.

- E não era? - interrompeu Maria da Luz, muito nervosa.

- Não. Há um trecho que, em vez de ser maciço e grosso como todas as paredes do castelo, é tapado por uma pedra delgadinha que também se move lateralmente. Assim que a pedra se afastou, o homem meteu-se pelo buraco aberto na parede e começou às apalpadelas. Abriu uma portinha e enfiaram todos três por ela!

- Meu Deus! - exclamou Dina. - Para onde foram?

- Eu sei lá! Quem me dera sabê-lo! Há por ali um segredo, um mistério de grande importância. Estes homens estão a armar grossa tramóia. Por que demónio é que estrangeiros - sim, porque dois deles são estrangeiros, conhece-se logo pelo sotaque - porque é que estrangeiros haviam de vir para um sítio destes, tão solitário, a esconderem-se todo o tempo, passando a vida em conversas e encontros e a servirem-se de portas e quartos secretos?

Dina não resistiu à curiosidade, e propôs:

- E se fôssemos ver para onde dá a tal porta?

- Não, não vamos! - suplicou Maria da Luz, que já tinha a sua conta em matéria de aflições.

- És um bebé! - troçou Dina, escarninha.

- Não, não é. Apenas não é tão destemida como tu. E eu concordo com que podia ser asneira ir agora, nesta altura, bisbilhotar atrás das tapeçarias. Bastava que os homens voltassem e dessem connosco a mexer na porta secreta para poderem dar cabo de nós! Nunca mais se sabia das nossas existências!

Dina calou-se e achou que Filipe tinha razão, embora estivesse a morrer por ir ver o que havia do lado de lá da tapeçaria. Mas era preciso esperar pela oportunidade. Começou então a contar ao irmão as peripécias do dia, no terreiro, com o João, sem omitir nada. Filipe alegrou-se ao saber que o amigo não tinha sido apanhado pelos homens.

- De nós dois é que eles nem suspeitam! E é bem bom que seja assim.

Enquanto estiverem convencidos de que não há mais ninguém a não ser vocês duas, não desconfiam, nem se acautelam.

Dina contou-lhe ainda como tinham mandado um recado à Sara, aproveitando o Botão para mensageiro. Mas o rapaz, que ouvia, muito atento, fez um reparo que as deixou ficar desoladas:

- Sim, a ideia era boa, mas inoperante. Vocês esqueceram-se de que a Sara não sabe ler nem escrever!

As duas pequenas olharam consternadas uma para outra. Tinham-se esquecido desse pormenor! Pois claro, a Sara olharia para o papel como boi para palácio! Por esta é que elas não esperavam! E Maria da Luz, que nunca tinha confiança em si própria, fez uma cara compungida onde podia ler-se que ideia sua havia de ser sempre absurda. Filipe reparou e passou-lhe amistosamente um braço à volta dos ombros:

- Não te aflijas, deixa lá. Pode ser que a Sara tenha senso bastante para levar a mensagem a quem a saiba ler! Anima-te!

Conversando, o tempo passou e as raparigas caíam de sono. Maria da Luz estendeu-se na cama fofa e fechou os olhos, enquanto Dina e o irmão ainda deram mais um bocado à língua, até que se deitaram também. Filipe, exausto pelo dia infindável que passara dentro da armadura, ferrou a dormir instantaneamente.

Duas ou três horas mais tarde, Dina acordou de repelão ao ouvir o ranger da pedra nos gonzos. Ensonada, não percebeu logo do que se tratava, mas não tardou a acordar completamente e a compreender. Os seus companheiros dormiam a sono solto. Pôs-se a sacudi-los desesperadamente:

- Filipe! Acorda, Filipe! Depressa, safa-te para debaixo da cama!

Meio a dormir, Filipe rolou da cama abaixo e escondeu-se quase no momento preciso em que um dos homens começava a descer a escada. Dina fingiu que dormia e Maria da Luz não se mexeu. O homem, que tinha ouvido o barulho do trambulhão que Filipe dera da cama abaixo, foi pôr-se a olhar, desconfiado, para o canto onde estava a cama; subiu a torcida à lâmpada de azeite, que estava quase a apagar-se, e voltou a inspeccionar a cama. Por pouco não dava com o pé no corpo agachado do Filipe. De supetão, puxou os cortinados do leito e olhou as raparigas; Dina teve a sensação de que ele percebeu muito bem que ela não dormia. Depois de ficar assim uns instantes a olhá-las, tornou a correr os cortinados, como se se tivesse assegurado de que dormiam ambas. Nem por um segundo lhe passou pela cabeça que estivesse um terceiro garoto muito bem escondido debaixo da cama!

Dina semicerrou as pálpebras e espreitou. Os homens agora eram cinco, havia mais dois que ela nunca tinha visto. Falavam numa língua incompreensível para ela, e um deles foi a uma gaveta enorme, de um dos armários, buscar um rolo de mapas que espalhou em cima da mesa.

Depois, debruçados sobre os mapas abertos, começaram todos, a discutir. Por fim tornaram a enrolar os mapas e meteram-nos na gaveta, que fecharam à chave. A seguir, com grande regozijo de Dina, o dos sobrolhos guedelhudos levantou uma ponta da tapeçaria e deixou a descoberto a tal porta secreta.

Um dos outros pôs-lhe a mão no braço e sussurrou umas palavras, indicando com a cabeça o lado da cama. Ele então dirigiu-se à cama, num passo rápido, e puxou os cortinados a toda a volta, unindo-os com tanta cautela que Dina nada mais pôde ver. Que raiva! Sem se atrever a espreitar, com medo de que a vissem, só lhe restava apurar os ouvidos, na tentativa de apreender qualquer ruído elucidativo. Ouviu um deslizar, seguido de um estalido, depois uma pancadita surda, e o som de uma chave a dar volta na fechadura. Tornou a ouvir vozes, seguidas de passos a subir a escada. Espreitou, então, num movimento rápido, e viu que só os três homens seus conhecidos iam pela escada acima. Obviamente, os outros dois tinham desaparecido pela porta secreta. Tudo aquilo era altamente misterioso!

Outra vez o gemer dos gonzos e depois o silêncio. A rapariga deitou a cabeça de fora e o quarto apresentou-se-lhe deserto. A tapeçaria pendia novamente da parede como se nunca lhe tivessem tocado.

Chamou baixinho e o Filipe saiu de baixo da cama. - Não acordes a Maria da Luz, senão ela, com o susto, não torna a adormecer - recomendou ele em voz baixa. - Viste alguma coisa, Dina?

- Vi muitas coisas! - Dina contou-lhe tudo, tintim por tintim. Filipe ouvia, concentrado e muito sério.

- Cinco homens! Já são cinco! Que diabo andarão eles a maquinar? Estás a ver o disparate que tinha sido ir bisbilhotar a porta secreta esta noite? Éramos apanhados com a boca na botija!

- Não há dúvida. Ó Filipe, o que estarão estes homens a planear?

- Eu sei lá! Se tivéssemos podido atravessar a porta escondida, e investigar onde ela vai dar, talvez lhes apanhássemos o segredo.

Mas assim, temos de esperar e não precipitar os acontecimentos.

Dina deitou-se outra vez.

- Eles já cá não voltam esta noite, não te parece? Em todo o caso, eu se fosse a ti dormia debaixo da cama, por precaução. Tu fazes uma restolhada quando te levantas!

- Talvez tenhas razão!

Filipe pegou num cobertor, para se instalar debaixo da cama o melhor que pudesse. A irmã perguntou-lhe, passados momentos:

- Amanhã tornas a esconder-te dentro da armadura?

- Livra! Antes quero esconder-me debaixo da cama; eles decerto não se lembrarão de vir aqui espreitar, tão seguros estão de que não há mais ninguém com vocês. Nunca mais quero ver uma armadura na minha frente, durante toda a vida! Que objecto mais estúpido, mais desconfortável!

Não tardaram a pegar no sono e dormiram sem mais interrupções até de manhã. Se não fosse o relógio de pulso de Dina, ninguém seria capaz de saber se era dia ou noite, naquele subterrâneo, e só pelo relógio souberam que já eram sete e meia.

O homem das sobrancelhas fartas desceu a escada e disse-lhes:

- Podem pôr-se a andar lá para fora. Mas não se esqueçam das ordens que têm se não querem que lhes aconteça alguma!

 

         MAIS UM DIA QUE PASSA

Assim que as raparigas desapareceram, para se irem deitar, João sentiu-se terrivelmente só. Tinha ficado no terreiro, com a Didi, e começou a maçar-se imenso.

- Oxalá nada lhes aconteça, coitadas! Olá, Botão! Ainda por cá estás? Vai ter com a Sara, anda; desiste de procurar o teu dono!

O animalzinho gania docemente e dava marradinhas no João, como que a pedir-lhe que o levasse ao seu querido Filipe. O rapaz insistiu, sem se lembrar de que a Sara não sabia ler:

«Ouve lá: vai ter com a Sara e entrega-lhe o papel, despacha-te. Anda, Botão, ajuda-nos! A Sara assim que ler o papel arranja logo quem nos venha cá valer!»

Mas o Botão não abandonava o terreiro, nem largava o João, sempre a farejar pelos cantos, à procura do dono, apesar da troça da Didi, troça pela qual, aliás, o raposito não dava.

Apareceu a Lua e o terreiro ficou inundado de uma luz irreal. Um mocho piou, à distância, e a Didi imitou-o dando outro pio exactamente igual. O mocho veio a voar silenciosamente para ver quem lhe teria respondido, e a Didi delirou com a brincadeira. Voava de canto para canto, sem parar de piar, para grande espanto do mocho, que se julgou num souto superpovoado de parentes e conhecidos!

O João gozava à doida, mas viu de súbito os três homens, iluminados pelo luar, e felicitou-se por não andar a passear, pois não escaparia sem ser visto. Foi-se esgueirando ao longo da muralha, cosido com a sombra, até chegar perto do portão que em tempo devia ter dado para a entrada, agora obstruída, que conduzia ao castelo. Agachou-se ao pé de uma moita bastante alta para o cobrir todo, mas ia dando um salto, sem poder crer no que via, quando o portão começou a abrir-se silenciosamente inundando a sombra de um luar claro e deixando aberto o caminho para a liberdade!

O rapaz, que ia levantar-se, tornou a agachar-se quando viu dois homens a cruzar a entrada, e logo o portão a fechar as portas sem ruído atrás deles. Ouviu-se um estalido forte e os homens passaram rentinhos à moita, só não dando pelo João devido à sombra que o protegia. Espalmou-se de encontro à terra, como um sapo, enquanto os homens se aproximavam dos outros dois que já os esperavam, para enfiarem todos quatro para dentro de casa. João suspeitou de que eles se dirigissem para o subterrâneo, como de facto foram, como se sabe.

Esperou até que os homens desaparecessem e correu para o portão. Ai, se fosse capaz de o abrir! Se pudesse sair dali para fora, mesmo tendo de passar pela estrada traiçoeira! Os homens também por lá tinham passado, e estavam ali!

Experimentou o puxador, que era uma enorme argola de ferro, e fê-lo girar em todos os sentidos, mas o portão permaneceu fechado. Pensou, furioso:

«Claro, o estalido devia ser da chave a dar a volta. Não há maneira de sair daqui. Bolas! Se eu estivesse mais perto, talvez me tivesse sido possível escapar; mesmo que eles me vissem, pouco importava, porque eu correria pelo monte abaixo mais depressa do que eles, aposto!»

Sentou-se, muito murcho, ao pé do portão.

«Hei-de ficar aqui, na sombra, até ao regresso deles. Dispararei então lá para fora com tal velocidade que eles nem terão tempo de se recomporem do susto, antes de me poderem deitar a mão!»

Se bem pensou melhor o fez, quedando-se ali horas a fio, até cabecear com sono. Mas os homens não regressaram, e só a Dina poderia explicar-lhe porquê. Eram os que se tinham escapado pela porta secreta, porque os outros três continuavam no castelo.

Quando o céu começou a clarear, a nascente, João reconheceu que era tempo de voltar para o esconderijo. A Didi dormia a sono solto, no seu ombro, cansada de ter sido mocho durante tanto tempo, e o Botão tinha-se evaporado. João não o vira sair, esquecido do raposito na excitação de ver abrir-se o portão da entrada.

«Oxalá ele tenha ido ter com a Sara; assim talvez possamos contar com socorros para hoje. E já não é sem tempo! Estou farto disto; já não há águias, foram-se todas embora, e as raparigas estão em perigo, para nem falar do pobre Filipe! Como se teria ele aguentado? Talvez elas me contem alguma coisa daqui a bocado.

Por volta das oito horas as duas pequenas saíram do quarto secreto, postas fora pelos três homens. Dina tinha suplicado ao irmão que voltasse para a armadura, mas ele não queria ouvir falar em tal.

- Não volto, antes quero ficar debaixo da cama. Um dia inteiro dentro daquela horrível fatiota chegou-me! Prefiro ser apanhado a voltar para dentro dela. Ponham-me vocês aqui alguma coisa que se coma e que se beba, que eu não sairei daqui. Todas as vezes que os homens saírem poderei esticar as pernas e dar uma voltinha!

- Seja, a sorte é para os tolos! - respondeu-lhe Dina, embora pensasse, de si para si, que no lugar dele faria o mesmo. - É uma boa tolice essa, a de te esconderes debaixo de uma cama onde algum deles pode vir deitar-se, em qualquer altura. Pelo menos, não espirres!

De facto não tardou a ver-se que a intenção dos homens era precisamente essa: dormir toda a tarde. Assim que mandaram embora as raparigas, o barbudo atirou-se para cima da cama. Todos eles tinham um aspecto cansado, e as caras dos outros dois, de barba por fazer, nada agradáveis eram à vista. Lá da cama, a bocejar longamente, o barbaças atirou uma última recomendação às duas amigas:

- Nós logo à noite as chamaremos. Podem levar a comida que quiserem. Há para aí muitas conservas, está um abre-latas em cima da mesa. Agora desapareçam-nos da vista, suas maçadoras!

As pequenas deitaram mão a uma lata de sardinhas, uma de salmão, outra de pêssegos e outra de alperches, e voaram escada acima. A pedra imediatamente obstruiu a passagem e Dina gritou, escarninha:

- Durmam bem!

Foram ter com o João, que as esperava, impaciente, encafuado na moita de tojo. Maria da Luz chamou:

- João! Estás bem? Podes sair um bocadinho, eles ficaram fechados lá em baixo. Queres sardinhas ou pêssegos? Há as duas coisas!

- Vivam! - exclamou João, radiante. - Têm a certeza de que não há perigo? Então já saio; estou cheio de fome!

Vou comer ali para trás do penedo. Vocês ontem não trouxeram biscoitos?

A Dina descobriu a lata dos biscoitos e comeram então o mais cómico dos pequenos almoços, feito de sardinhas, biscoitos e pêssegos, regados com gasosa, o que não impediu que o saboreassem, regalados, cada qual relatando aos outros os acontecimentos da noite.

João era todo ouvidos, e exclamava, de olhos a brilhar:

- Uma porta secreta por trás da tapeçaria! Mas para onde dá ela?

- Sabe-se lá! É capaz de dar para o monte, quem sabe? - disse Dina, ao mesmo tempo que molhava um biscoito no sumo de pêssego e o chupava deliciada.

- Esperem lá! De que lado do quarto secreto fica essa porta? Ai, sim, do lado oposto ao da armadura do Filipe, estou a ver... Ora isso... deixem-me pensar... isso quer dizer que a porta deita para as traseiras do castelo, para o monte! Tem graça! Estou cá a pensar se haverá alguma masmorra aí para essa banda!

- Ai, meu Deus! Parece-te que os homens têm gente aqui presa? Se calhar estão a matá-la à fome, como fazia o velho malvado! - assustou-se Maria da Luz. - João! O velho ainda por aí andará, vivo como uma aranha centenária, a fazer patifarias?

- Não sejas pateta, está claro que não anda. Não estou farto de dizer-te que o velho já morreu há que séculos, que está morto e enterrado de uma vez para sempre? Não sejas tontinha, Maria da Luz, nem tenhas ideias tolas. Deixa-me pensar e não me interrompas.

Roeu o biscoito a matutar.

- Sim, parece-me que já estou a ver. A porta da tapeçaria deve abrir para uma passagem subterrânea, através do monte, que leve às traseiras do edifício. Eu só queria era meter por essa passagem, e aposto que o Filipe não tardará a fazê-lo!

- E eu espero que ele seja bastante sensato para não sair de baixo da cama - respondeu Maria da Luz -, Com tantos homens a andar para cá e para lá, por portas e passagens secretas, era certo esbarrar nalgum e deixar-se apanhar!

- E o Botão! Foi-se embora? - perguntou de repente Dina. - Onde está ele?

- Acabou por se ir embora, sim, mas lá por onde enfiou não sei. Só desejo é que já tenha entregue o papel à Sara e que ela esteja a tomar providências!

- O Filipe diz que a minha ideia para nada serviu - lamentou-se tristemente Maria da Luz. - Nós não nos lembrámos de que a Sara não sabe ler!

- Ora, bolas! - explodiu João. - Pois claro! Somos uns palermas!

«Palerma, palerma, palerma!», cantarolou logo a Didi, muito contente. «O palerma deu um estouro!»

«Quem vai dar um estouro és tu se continuas a comer pêssegos assim!», ralhou o João. - Ó Dina, a lata já está vazia? Tira-lha da frente, por amor de Deus, senão ela não pára de comer enquanto lá houver algum bocadito!

«Coitadinha da palerma!», fez a Didi muito triste, ao ver a Dina arredar dela a lata ao mesmo tempo que lhe dava uma palmadinha no bico. Maria da Luz perguntou:

- Que vamos fazer hoje?

- Que havemos de fazer senão esperar!

- E esperar sobretudo que a Sara tenha a genial ideia de mostrar o papel a alguém que saiba ler - acrescentou Dina. - Não tem mesmo outra coisa a fazer, porque já deve ter visto que não pode vir ter connosco. Ou melhor: já deveria ter visto se tivesse subido ao castelo e desse pela falta da prancha.

O dia custava a passar, sem nada que fazer, nem sequer uma águia para observar. João levou as mãos aos bolsos, para apalpar os seus preciosos rolos de fotografias.

- Nem ao menos posso revelá-los! Estou morto por ver como ficaram as fotografias das águias!

Nada tinham para ler; as raparigas vagueavam por ali, a pensar se não poderiam trepar a uma das torres e fazer de lá sinais que alguém observasse. Mas quem havia de as observar? Só se fosse a Sara, e essa nada entenderia.

- Não pensem nisso! - foi o conselho de João. - Lembrem-se do castigo que apanhavam se os homens as vissem subir à torre. Não vale a pena arriscarem-se, temos de aguardar com paciência que a Sara nos mande auxílio.

O dia passou e finalmente chegou a noite. Os homens chamaram pelas duas raparigas para as fechar novamente no quarto secreto. Cheias de medo deles, e sem quererem desobedecer-lhes, despediram-se apressadamente de João. Este não voltou para o esconderijo dos tojos e esperou que se fizesse noite escura para ir beber água à nascente da muralha. Ir bebê-la à cozinha nem pensar, arriscado como estaria a esbarrar nalgum dos homens ou a que eles ouvissem o barulho da bomba em acção.

Acocorou-se para beber, e, surpreendidíssimo, pôs-se à escuta. Do tunelzinho para onde a água corria vinha um ruído esquisito.

«Uúú! Pssch! Uúú!»

E ouvia-se também esgravatar, como se alguém, ou alguma coisa, viesse pelo túnel fora. João deu dois passos à retaguarda, alarmadíssimo. Quem seria? E que seria?

 

         SARA, A CORAJOSA

Foi então que João ouviu o inconfundível regougo do Botão, e percebeu que uma parte do barulho era feito por ele. Debruçou-se e projectou a luz da lanterna lá para o fundo do túnel estreitíssimo.

Deu com uma cara bastante pálida, a olhar para ele, e pulou de pasmo. Era a Sara! Aquietara-se por uns instantes, mas assim que a luz lhe bateu em cheio, continuou a torcer-se toda. João interrogou-a, em voz baixa mas cheia de espanto:

- Que estás a fazer, Sara? Não ouves?

Sara não dava resposta, continuava a comprimir-se, mais um bocado, mais acima, mais, mais... até que a cabeça e os ombros chegaram à boca do túnel! O João deu-lhe um puxão e ela saltou cá para fora; trazia o Botão à trela, pelo que ele a seguia com um aspecto desolado.

A ciganita sentou-se no chão e respirou com grande esforço, de cabeça dobrada sobre os joelhos, sem poder articular palavra. João iluminou-a com a lanterna e viu que ela estava encharcada, coberta de lama. Tremia de frio e de susto. O rapaz ajudou-a a trepar às fragas, para que ela despisse os farrapos ensopados e se embrulhasse numa das mantas; depois sentou-se muito aconchegado a ela, para a aquecer. A Didi empoleirou-se no ombro de Sara, encostando-se-lhe à carita enregelada. Em poucos minutos Sara começou a respirar melhor e olhou para o João esboçando um sorriso pálido, até que pôde murmurar:

- Onde está o Filipe?

João não quis contar-lhe logo tudo de chofre e respondeu:

- Está com as raparigas. Mas não penses nisso agora, descansa e respira fundo! Estás exausta!

Continuou encostado a ela, rodeando-lhe os ombros com o braço e sentindo-lhe o coração a saltar no peito. Pobre Sara! Que se teria passado para que ela se tivesse deixado chegar àquele ponto de estafa?

À medida, porém, que o calor a invadia, Sara recuperava forças. Encostou-se mais ao João e disse:

- Tenho tanta fome!

João foi buscar biscoitos e o resto de salmão para ela comer; depois deu-lhe a beber o que restava de sumo de pêssego, e a Didi ia imitando o barulho que ela fazia a engolir. Por fim a Sara conseguiu falar:

- Ai, já me sinto melhor! Que vos aconteceu, João?

- Antes de mais nada, conta tu alguma coisa, mas fala baixo porque estamos rodeados de inimigos!

Sara abriu os olhos, surpreendida, e olhou rapidamente à volta, cheia de medo.

- É o velhote malvado? O homem mau?

- Não, que disparate! Olha lá, o Botão não te levou um papelinho escrito por nós?

- Sim. Mas, sabes tu? Eu escapei-me de casa ontem e vim para aqui para ver se passava umas horas com vocês. E não sei se sabes! - a prancha já lá não está! Porquê?

- Isso queria eu saber! E depois, que fizeste?

- Voltei para casa. Estava muito aflita por vossa causa. Então, esta manhã, apareceu o Botão, de cordel ao pescoço, e eu vi logo o papel pendurado.

- E depois?

- Depois... não consegui lê-lo (A voz da Sara estava cheia de lágrimas) nem tinha alguém que mo lesse. A minha mãe estava furiosa comigo, e a Sr.a Mannering não está lá em casa. Não queria ir à quinta pedir que mo lessem; então resolvi prender o Botão à trela e ir atrás dele quando ele voltasse ao castelo, à procura do Filipe. Assim havia de dar com o sítio por onde ele entrava!

- És uma rapariga esperta, sim, senhor!

A Sara sentiu-se radiante, e prosseguiu, já mais alegre:

- Encontrei uma velha trela de cão, prendi-a ao pescoço do Botão e deixei-me ir atrás dele, por onde ele quis. Ele estava danado, a morder a trela, e quase me mordeu também!

João afagou o animalzito, que estava muito quieto, deitado aos pés deles. - Coitado! Ele não percebia nada! E então, acabou por te trazer até cá, não foi?

- Acabou, sim, depois de quase ter estourado comigo a vaguear pelo monte milhas e milhas, ora para baixo, ora para cima, sem parar! Até que veio a noite e decidiu vir procurar o Filipe outra vez. Se visses como ele corria! Parecia um raio!

- Acredito! Coitado do Botão, que confusão deve fazer-lhe não ver o dono!

- Então arrastou-me por ali acima até à nascente do monte. Há assim a modos que um túnel, por baixo do castelo, um túnel estreitíssimo, não calculas!, e que passa mesmo por baixo da muralha! Imagina!, e que vem dar a este lado.

- E tu esgueiraste-te por esse túnel? - João não podia crer no que ouvia. - Sara, és formidável! Mas, olha lá: e a água? Não te encharcava toda?

- Ai não! Se encharcava! Até me engasgava! E que água mais fria! Parecia gelo! Parte do caminho, vá lá, não foi tão má, porque o túnel era cavado na rocha e a água corria por um rego, e eu tinha mais espaço para me arrastar. O princípio e o fim é que são mais estreitos, e aí é que eu julguei que ficava! Nem para trás, nem para diante, não podia mexer-me. O medo que eu tinha era de ficar ali presa, sem ninguém saber que eu lá estava!

- Pobre Sara. És uma valentona! Quando o Filipe souber disto vai ficar pasmado contigo!

O rosto de Sara iluminou-se todo de alegria. Agradar ao Filipe não era qualquer coisa! Mas se ali estava era para vir prestar-lhes auxílio, e quis saber tudo quanto se passara desde que se tinha separado dos seus amigos. O João contou-lhe a história toda, e ela ouviu, pasmada e aterrada. O Filipe escondido dentro de uma armadura... no quarto secreto... as duas raparigas feitas prisioneiras... homens maus e cruéis a andarem por ali, às escondidas... passagens secretas! Que horror!

Tudo aquilo lhe parecia um sonho. Ao menos, o João e a Didi estavam sãos e salvos.

- Tu serás capaz de enfiar pelo túnel, comigo, para irmos os dois buscar socorros?

- Estava precisamente a pensar em fazê-lo. E acho melhor que vamos já esta noite, sem esperar pelas raparigas. De resto desconfio que nenhuma delas teria coragem para passar pelo túnel. Morreriam de medo, ou ficariam para lá enterradas, sem serem capazes de sair. Eu vou, e vou já. Mas tu ficas, para as avisar amanhã. Escondes-te na moita de tojo e esperas que elas apareçam.

A Sara deu um fundo suspiro de alívio. Não lhe apetecia ter de regressar por aquele horrível caminho, do qual se havia de lembrar durante toda a vida! Também não lhe sorria a ideia de passar a noite sozinha, no terreiro, mas o João fez-lhe ver que a Didi e o Botão podiam dormir com ela, no esconderijo dos tojos, e lá se afoitou.

- Anda, não percas a coragem e faz-nos isso. Talvez vejas o Filipe amanhã; ele vai ficar de boca aberta com as tuas aventuras!

Ainda embrulhada na manta, a Sara foi mostrar ao João a boca do túnel, e o rapaz admirou-se que houvesse alguém com bastante coragem para se meter por ele abaixo, quanto mais por ele acima, com a água a saltar para a cara durante todo o percurso.

- Pronto, agora vai-te embora, leva o Botão e a Didi, embrulha-te bem nas mantas e procura dormir. Não largues a Didi até que eu esteja fora da vista, senão ela quer ir atrás de mim!

Obediente, a ciganita trepou até à moita e enfiou pelos tojos. Enroscou-se toda, como um bicho, com o Botão aos pés e a Didi pousada em cima dela, à espera do dono. A Sara só queria que ela não desse pela demora do João, porque então pôr-se-ia para ali a fazer um escarcéu e ninguém a calaria.

O João enfiou de cabeça para dentro do túnel, entrando logo na água, e começou a rastejar, comprimindo-se o mais possível. Cheirava mal a humidade. Ia empurrando o corpo para diante, com a ajuda das mãos e dos cotovelos. Aquilo era, sem dúvida, muito pouco agradável!

«O Botão bem podia ter descoberto uma entrada melhor do que esta! Como é que a Sara conseguiu subir, com a água a cegá-la todo o caminho? É uma autêntica heroína!»

A meio do caminho passou da terra feita lama à rocha dura, o que o levou a supor que devia estar mesmo por baixo da muralha. O túnel aqui alargava bastante, e pôde sentar-se a tomar fôlego. Preocupava-o a ideia dos rolos de películas, apesar de os ter embrulhado, com todo o cuidado, num dos chapéus de oleado que um dos seus companheiros tinha trazido, e de os ter amarrado muito bem, com guitas. Seria o cúmulo da pouca sorte se as fotografias ficassem inutilizadas!

Começou a tremer de frio, encharcado até aos ossos. Só enquanto se esforçava por abrir caminho, a rastejar, é que sentia calor, mas não podia parar sem se sentir gelado, nem desatar a tremer dos pés à cabeça.

Recomeçou a travessia, agora no meio de uma escuridão total. Só pelo tacto se ia guiando, aliviado quando o túnel se alargava, aflito quando o sentia estreitar, a comprimi-lo por todos os lados.

Pareceram-lhe horas o tempo que levou por semelhante caminho, mas acabou por lhe ver o fim! Lá se desprendeu da boca do túnel e sentou-se, a arfar, num tufo de urze. Esperava não ter, nunca mais, de repetir aquela travessia! Agora tinha a certeza de que as duas raparigas teriam lá ficado, imobilizadas pelo susto, incapazes de se mexerem. Ainda bem que decidira não as trazer.

Quando se levantou não se tinha nas pernas, cheio de arrepios e com os joelhos a tremer. Não estaria tão extenuado como a Sara, mas estava bem cansado! «Se não aqueço depressa apanho um resfriamento valente!», pensou, e deitou a correr pelo monte abaixo, grato ao luar brilhante que iluminava tudo.

Depois de alguns tropeções, ansioso por ver aparecer a vivenda, chegou enfim ao caminho da casa. Lá estava ela, recortada contra a luz do luar, com o telhado a brilhar como prata! Mas estacou, sem acreditar no que via!

«Que fumo é aquele? A chaminé está a deitar fumo!», e encostou-se a uma árvore. «Que quer isto dizer? A tia já teria voltado? Não, senão a Sara já o sabia. Então, quem acendeu o fogão na cozinha? Quem? Céus! Não me digam que um daqueles patifes descobriu a nossa casa para vir saber coisas a respeito das pequenas!»

Aproximou-se pé ante pé e entrou no jardinzinho. Uma das janelas estava iluminada! Sempre em bicos de pés, chegou à janela e espreitou, angustiado e surpreso. Alguém se sentara na cadeira de braços, mas estava de costas para a janela. Seria a Sr.a Mannering?

Da cadeira levantou-se uma fumarada - uma fumarada, espessa e azulada, de cachimbo!

«É um homem. Mas quem será ele?»

 

         MAIS SURPRESAS

João não se despegava da janela, varado de arrepios. Se ao menos o homem se levantasse, para que ele pudesse ver se era algum dos do castelo! Mas quem se atrevia agora a entrar em casa?

Resolveu entrar sorrateiramente pela cozinha, a fim de ir espreitar pela fenda da porta; assim veria logo quem estava na cadeira de braços. Sem parar de tremer, agora tanto de frio como de medo, deu a volta à casa, à procura da janela do seu quarto; se estivesse aberta talvez pudesse trepar a uma árvore e deixar-se escorregar lá para dentro.

Estava aberta, de facto, mas só uma gretinha. Lembrou-se, porém, de que os fechos estavam frouxos, e que por isso lhe seria possível meter a mão até levantar um deles. A janela era bastante larga para o deixar passar à vontade.

Nessa altura tropeçou num balde, ou em coisa idêntica, que estava do lado de fora da porta e ficou quieto, com medo de que o homem tivesse ouvido o barulho. Trepou então à árvore muito depressa. Enfiou a mão pela greta da janela e procurou o fecho, que deslizou facilmente, deixando a janela abrir-se de par em par. Então deixou-se escorregar e ficou especado no meio do quarto sem se atrever sequer a respirar!

Aventurou-se até ao corredorzinho escuro que separava os quartos de cama e ficou mais uns minutos à espera de coragem para descer a escada, onde alguns degraus rangiam, até que se decidiu a fazê-lo, cheio de cautelas, não fosse algum degrau ranger mais intensamente.

Chegado ao patamar, dispunha-se a uma paragem antes de continuar, mas sentiu-se subitamente agarrado por alguém que lhe saltava em cima e lhe prendia os braços, empurrando-o violentamente pelos últimos degraus abaixo! Caiu ao comprido e ficou sem poder mexer-se, tolhido de medo.

Quem quer que o empurrara estava agora na sua frente, e deu-lhe um puxão que o obrigou a levantar-se. Depois um safanão valente atirou com ele para a cozinha iluminada e o rapaz deitou imediatamente os olhos para a cadeira de braços.

A cadeira estava vazia! Fosse quem fosse que nela se sentara havia pouco, tinha-o ouvido entrar e pusera-se de atalaia.

Só então o João volveu a cabeça e levantou os olhos para o seu captor, à espera de dar com um dos homens da torre.

Mas ambos, captor e capturado, a olhar um para o outro de boca aberta!

- Jaime Smugs!

- João! Que necessidade tens tu de entrar assim em casa como um malfeitor?

- Sim senhor, parabéns! Que belas nódoas negras com que vou ficar! - o rapaz começou a sacudir-se, mas tremia outra vez violentamente. Jaime olhou-lhe para o fato encharcado e para a cara pálida, empurrou-o para perto do lume, onde uma chaleira cantava de uma maneira que alegrava a alma.

- Que diabo é isto? Que quer isto tudo dizer? Tu estás a pingar! Apanhas um resfriamento, e dos bons! Onde estão os outros? Quando aqui cheguei, esta tarde, na intenção de pedir asilo à tua mãe, encontrei a casa fechada e sem ninguém cá dentro!

- Ai sim? Então como entrou? - perguntou João, consolado com o calor do lume.

- Ora, eu tenho cá os meus métodos! Pensei que vocês tivessem ido fazer algum piquenique e pus-me à vossa espera. Mas vocês nunca mais apareciam. Portanto, resolvi passar cá a noite e ir investigando o que vos tinha acontecido. Foi nessa altura que ouvi barulho e julguei que fosse algum ladrão - mas foi a ti que cacei!

- E eu estive a espreitar pela janela sem conseguir ver quem estava sentado na cadeira de braços, e por isso resolvi entrar em casa, sem fazer bulha, e vir deitar uma vista de olhos. Ó Jaime, que contente estou por vê-lo aqui! Nós estamos metidos numa alhada tremenda!

- Que queres dizer? Onde estão as pequenas? - perguntou Jaime, pasmado.

- É uma história muito comprida, mas eu tenho de lha contar desde o princípio. E se eu bebesse qualquer coisa quente, Jaime? Bem precisava, a chaleira está a ferver.

- Calha lindamente! Um chocolate bem quente e umas bolachas vêm mesmo a propósito! Ainda bem que paraste de tremer, safa! É verdade, onde está a Sr.a Mannering? Não me digas que ela também está em perigo?

- Não, não! Foi tratar de uma tia de Filipe, a tia Lena, que adoeceu outra vez. Mas nada lhe aconteceu.

Jaime trouxe a caneca cheia de chocolate com leite, encontrou umas quantas bolachas e deu-as a João que, deste modo, começava a reanimar-se. Tinha tirado o fato ensopado e vestira um roupão quente.

- Tenho remorsos de estar a gastar tempo desta maneira enquanto os meus amigos estão em perigo! Mas tenho de contar-lhe a história toda, depois o senhor decidirá o que há-de fazer-se.

- Vamos a isso!

Então João narrou tudo, à medida que Jaime dava mostras, cada vez maiores, de interesse e de pasmo. Só desatou a rir quando imaginou o Filipe metido dentro da armadura.

- É mesmo uma ideia do Filipe! De facto, os homens nunca poderiam pensar que ele estava no meio deles!

À medida que a história se ia desenrolando, a cara de Jaime ia-se tornando mais séria. Puxava fumaças do cachimbo, sem desfitar o João, e a sua carantonha vermelhusca parecia ainda mais corada pela luz do fogo, com a careca a luzir mais do que o costume. Por fim, disse:

- Realmente, é uma história espantosa! Mas é ainda mais espantosa do que supões, João! Como eram esses homens? Descreve-mos lá. Algum deles tem uma grande cicatriz que lhe apanha o queixo e o pescoço?

João pensou um bocado. - Não, que eu saiba, nenhum deles tem cicatriz. Eu tirei uma fotografia a um deles, lá no ninho das águias. Lembra-se de eu ter dito que tinha a máquina preparada, lá no meio do tojo, para fotografar as águias? Foi na altura em que uma das águias o atacou que eu fotografei o homem. Fotografei-os a ambos até, mas um deles ficou de cara voltada.

- Tens aí as fotografias? - perguntou Jaime vivamente.

- Tenho as películas. - João apontou para o embrulho de oleado, em cima da mesa.

- Estão ali. Mas ainda não estão reveladas.

- Está bem, então vai dormir, que eu trato disso. Já vi que tens, ali na entrada, um cantinho escuro preparado para esse efeito. Era aí que ias revelá-las, não era? Tens lá tudo quanto é preciso?

- Mas... mas então nós não vamos salvar as raparigas, já?

- Não, enquanto eu não for à cidade, onde vocês me encontraram no outro dia, buscar reforços e tratar de umas coisas. Se estes homens estão empenhados no que eu suponho, não podemos deixá-los escapar. Quanto às meninas, não creio que lhes façam mal.

- Que estão eles a tentar fazer? Têm ligação com a tarefa em que o senhor disse estar empenhado, Jaime? - perguntou o João, cheio de curiosidade.

- Por enquanto nada mais posso dizer-te. Até me custa a crer que seja o que penso, mas não tardarei a sabê-lo. - Calou-se e fitou o João. - Vocês são danados para se meterem em trabalhos, palavra! Nunca vi outros desta força! Desconfio que o melhor que tenho a fazer é não os largar mais, para não perder qualquer oportunidade de compartilhar desses trabalhos!

Jaime ajudou João a deitar-se no sofá, tapou-o bem com cobertores, apagou a luz e foi para o quartinho armado em câmara escura. João tinha-lhe indicado o rolo em que estava o retrato do homem.

O rapaz dormiu regaladamente de estafado que estava. Nem soube há quanto tempo dormia quando foi acordado pela entrada do Jaime, que, triunfante, brandia uma película.

- Desculpa, João, mas tenho de acordar-te! Isto está estupendo! - E levantava a película contra a luz do dia que começava a entrar pela janela. - Tu apanhaste o homem de uma maneira magistral! Não há um pormenor desprezado, cá está o das barbas, vês! Mas repara: tem a cabeça levantada e o pescoço todo a descoberto, com o colarinho aberto. Não vês?

- Sim, um vergão, como uma grande cicatriz! - confirmou o rapaz, sentando-se no sofá.

- Isso mesmo! - e Jaime tirou do bolso uma agenda, que abriu, e mostrou ao João uma outra fotografia. - Olha bem: não vês a cicatriz que este homem tem, do queixo até ao pescoço?

João olhou atentamente para o retrato de um homem, de cara rapada, desfigurado por uma cicatriz medonha.

- É o mesmo homem, embora tu não desses por isso, porque usa agora uma barba muito preta, que deixou crescer, sem dúvida para se disfarçar. Mas o pescoço continua a atraiçoá-lo, bastando para isso que tenha o colarinho desapertado, como de resto aconteceu quando o fotografaste. Pronto, já sei quem são os homens do castelo. Há seis meses que ando atrás deste indivíduo!

- Quem é ele? - perguntou o João, curioso.

- O nome dele, o autêntico, é Mannheim, mas é conhecido pela alcunha de Pescoço-Riscado. É um espião perigosíssimo.

- Com mil macacos! E o senhor anda atrás dele?

- Bem, fui encarregado de o vigiar, mas de não o prender sem que se soubesse ao certo qual era a tarefa dele e quem eram os seus colaboradores. Pelos vistos, dá-me a impressão de que topámos com o bando todo inteiro! O pior é que o Pescoço-Riscado é um tipo muito esperto e tem o condão de se tornar invisível de um momento para o outro. Eu segui-lhe o rasto até ao dia em que vocês esbarraram comigo, lá na cidade. Desde então tinha-o perdido de vista.

- Pudera! Foi meter-se no castelo! E que belo esconderijo arranjou!

Jaime parecia absorto. - O que eu precisava era de saber a verdadeira história do castelo. Tenho de indagar a quem ele pertence. Tu sabes, porventura, o que há para lá do monte, do outro lado?

- Não! - respondeu João, admirado. - Nunca lá fomos. Porque pergunta isso?

- Só para saber se vocês teriam ouvido qualquer boato. Por ora não lhes posso dizer mais nada. Palavra, que sorte ter esbarrado em vocês no outro dia! Que sorte ainda maior ter vindo até cá!

- A sorte é minha, Jaime. Eu estava atrapalhado, sem saber o que fazer. Assim, entrego-lhe o caso!

- Entrega, entrega, que fazes bem. Bem, agora vou até à cidade, no meu carro, para fazer uns telefonemas, dar uns recados e arranjar reforços. E tu vai dormir, outra vez, até que eu regresse. Juro-te que me demorarei o menos possível!

João aconchegou-se novamente no sofá. - Afinal sempre escapei do resfriamento! Graças ao lume que o senhor acendeu, Jaime!

- Tive de o acender, pois não vi outra maneira de pôr a chaleira a aquecer. Não, já não há perigo de resfriamento, e vais estar fino quando eu regressar, pronto a voltar lá acima e ensinar-me o caminho do castelo.

- E como entraremos lá?

Mas a pergunta de João ficou sem resposta, porque Jaime já estava a meter-se no carro.

«Ora, o Jaime que resolva. Vamos a ver o que mais irá acontecer».

 

         A "DIDI" EXIBE-SE

Lá em cima, no terreiro do castelo, a Sara passara uma noite fantástica. Mal tinha pegado no sono quando a Didi a acordou, numa inquietação, a fincar-lhe as garras no corpo. Cheia de sono, a Sara tentou sossegá-la:

«Está quietinha, Didi, vamos lá! Juízo, ouviste?»

Mas a Didi, sempre à espera de ver chegar o João, impacientava-se com a demora do dono. Começou a resmungar, e a Sara, a cabecear, deitou-lhe a mão ao bico, para a fazer calar.

«Cala-te! Anda, dorme! Olha para o Botão, esse é que é uma jóia!»

Ouviu-se então um rumor no terreiro, e a Didi deitou a cabeça de fora, a escutar, convencida de que era o João. Radiante, largou da moita aos berros:

«Deus salve o rei! Deus salve o rei!»

Lá em baixo, no terreiro, fez-se um silêncio de pasmo, seguido de uma luz fortíssima, como de um projector, que varreu tudo em redor. Mas a Didi tinha-se escondido atrás de uma pedra e ninguém a viu.

Os homens, no terreiro, ouvindo a voz da Didi, não pensaram que se tratasse de uma ave palradora e suspeitaram da presença de mais alguém.

«Limpa os pés, quantas vezes te tenho dito que limpes os pés?»

Os dois homens começaram a falar um com o outro, certamente a combinar a maneira de dar caça ao intruso que falava numa voz tão estridente. A Didi, por sua vez, desconfiada de que ainda não era o João, zangou-se.

«Lá se vai tudo por água abaixo! Ora bolas!», carpiu ela. Um dos homens abaixou-se e apanhou uma pedra, que atirou na direcção da Didi, e que não a matou por uma unha negra. A Didi ficou muito admirada! Nunca alguém lhe tinha atirado pedras. Abriu as asas e voou para a muralha, atrás dos homens.

«Maroto! Grande maroto!»

Os homens puseram-se aos berros, furiosos, e rodopiavam para ver se davam com os intrusos, pois que lhes pareciam agora mais do que um, e pensaram que estivesse um no alto da fraga e outro na muralha. Um deles gritou, ameaçador:

«Desçam imediatamente! Já os descobrimos e não estamos dispostos a continuar esta farsa!»

«Bolorento, bafiento, poeirento!», palrou de lá a Didi, e fez novo voo até perto dos homens que, como ela, estavam em plenas trevas. Depois a Didi rosnou fortemente, como um cão, e os homens deram um salto no ar, porque o rosnado vinha precisamente por trás deles!

«E há também um cão! Cuidado! Anda, atira!»

O homem, de cabeça perdida, carregou no gatilho do revólver e um tiro atroou a noite. Do seu esconderijo a Sara ia morrendo de medo, e o Botão, espavorido também, largou a fugir. Ainda levava a trela a arrastar quando deitou a correr pelo terreiro. Esbarrou num dos homens, que disparou novamente, e o Botão regougou, embora a bala não o tivesse atingido. O homem atirou-lhe com a luz para cima, e admirou-se:

«O cão seria este? É bem pequenito!»

A Didi estava a gozar; voou para cima de uma árvore e pôs-se a miar com a mesma perfeição com que ladrava. Os homens iam de pasmo em pasmo!

«Gatos, agora! Não percebo nada. Durante o dia não se vê nem um bicho! Ou serão as miúdas a entrar connosco?»

«Deus salve o rei! Palerma, palerma, palerma!», volveu de lá a Didi, e desatou às gargalhadas, pulando de árvore para árvore. A seguir cacarejou exactamente como uma galinha, e acabou o "recital" com berros de águia. Foi uma exibição magnífica, que os homens, todavia, pareceram não apreciar devidamente.

«Vamos lá para dentro!», propôs um deles, muito nervoso.

«Este sítio parece embruxado, cheio de vozes e de barulhos, sem que se veja ninguém! Vamos embora!»

Nessa altura a Didi largou um silvo de locomotiva, agudíssimo e os homens não aguentaram mais, dando às de vila-diogo para dentro de casa, como se fossem perseguidos por um comboio em vias de os colher... Novas gargalhadas da Didi ressoaram pelo terreiro, mas de um modo estranho. Até Sara, apesar de saber que era a Didi a autora daquele barulho todo, se sentiu arrepiada.

Fez-se novamente silêncio e a Didi, depois de mais uns voozitos, desistiu de encontrar o João e voltou para a moita ter com a Sara.

A rapariguinha alegrou-se de a ver.

«Sabes, Didi, o Botão foi-se embora, se calhar enfiou pelo túnel! E agora, anda, vamos dormir, que estou muito cansada!»

Desta vez a Didi sossegou, emitiu um suspirito, meteu a cabeça debaixo da asa e pegou a dormir. A Sara também, e daí a pouco não se ouvia, a quebrar o silêncio da noite, senão o correr da água na nascente do canto do terreiro.

A ciganita foi acordada pela Dina e pela Maria da Luz. Estas tinham passado uma noite tranquila, sem interrupções desta vez, enquanto Filipe dormia debaixo da cama. Farto de esconderijos, o rapaz bem queria que o deixassem meter-se na cama, mas Dina conseguiu convencê-lo de que era um disparate que os exporia a todos desnecessariamente. Então, a resmungar, lá acedeu a voltar para debaixo da cama, onde as duas amigas lhe tinham posto alguns víveres à mão.

- João! - chamou a Maria da Luz, baixinho, quando chegaram perto da moita de tojo. - João! Estás aí!

O João não estava lá, já sabemos, mas ela é que ignorava. A Sara acordou e sentou-se, picando-se toda com os tojos. A Maria da Luz tornou, afastando os tojos para ver melhor:

- João! Oh!... Tu aqui, Sara? Como vieste cá parar?

A Sara sorriu, sentindo-se perfeitamente restabelecida depois do descanso da noite. A cara dela metia medo, toda coberta de lama e de arranhões, e o cabelo era uma pasta de lama seca, todo eriçado. Tinha vestido outra vez os seus trapos velhos.

- Olá! Eu vim para vos ajudar; recebi o papelinho, mas não fui capaz de o ler, e por isso vim ver o que se passava. Mas não dei com a prancha, já lá não está, e então descobri a entrada do Botão, e vim atrás dele!

- E por onde entrou o Botão! - quis saber Dina. A Sara contou-lhes e as raparigas ouviram atónitas. Maria da Luz sentia calafrios só de pensar!

- És fantástica, Sara, formidável! Eu nunca seria capaz de fazer o que tu fizeste!

- Nem eu! - apressou-se Dina a dizer. - Não há dúvida,

és maravilhosa!

A Sara sorriu, desvanecida com os elogios, e a Maria da Luz voltou a interrogá-la:

- Mas onde está o João?

- Foi pelo túnel, para ir buscar socorros. Ele disse-me que lhes desse saudades, e que tinha pena de não vos dizer adeus, mas que achava melhor não perder tempo.

Maria da Luz baixou a cabeça, muito murcha. - Eu queria ter ido com ele!

- Ora, tu mesma acabaste de dizer que não serias capaz de passar o túnel! - disse Dina. - Ainda bem que vieste, Sara, para o João saber o caminho da fuga! Tenho a certeza de que ele não tardará a aparecer com socorros! Bem bom!

- Mas como torna ele a entrar? - perguntou Maria da Luz.

- Talvez tragam outra prancha, não? - lembrou Sara. A Didi veio tomar parte na conversa, com ares amáveis. «Não te ponhas a fungar! Onde meteste o lenço?»

A Sara lembrou-se da cena da noite e desatou a rir:

- Ai, se vocês vissem a Didi esta noite! Foi de morrer a rir! - e contou o que se tinha passado. A Maria da Luz, quando ouviu falar em tiros, ficou toda alarmada.

- Meu Deus! Que homens tão perigosos! Não, não gosto nada deles, e quero ir-me embora depressa. Parece-me que não me importo de experimentar o túnel, por muito horrível que ele seja! Vamos, sim, Dina? E a Sara vem também. Vamos todas!

- O quê? - exclamou a Sara, indignada - e deixamos o Filipe aqui sozinho, não?

Vocês podem ir, se quiserem, mas eu fico!

- Pois claro, não vamos deixar o Filipe! - concordou Dina. - Ai, Sara, por favor, anda lavar a cara, que metes medo! Pareces um limpa-chaminés! E o teu vestido, credo! Tu és toda um farrapo!

- Não tenho culpa, o túnel estava um horror, e cheio de coisas que se agarravam a mim. Se tu achas que não há perigo, não me importo de ir lavar-me!

- Bem vistas as coisas, acho que sim, que há perigo. Os homens podem aparecer por aí, e sabem muito bem que nós somos só duas, e que tu estás a mais. Vamos antes buscar água, para te lavares aqui.

- E depois vamos almoçar! - propôs Maria da Luz, que estava com fome.

Lavar a Sara não foi tarefa fácil, pois só tinham uma garrafa e um copo de papel para transportar água. Mas, à custa de uns tantos lenços e de alguma água, lá conseguiram limpar-lhe a cara e as mãos. E depois almoçaram.

A Didi fez-lhes companhia ao pequeno almoço, comendo também. Do Botão nem sinais. Devia ter enfiado pelo túnel, e a esta hora estaria com o João. De repente, a Dina exclamou:

- Olhem! Lá estão as águias outra vez!

A Sara olhou, muito interessada, porque ainda não as tinha visto desta vez. As três enormes aves vieram pousar no rebordo da fraga e ficaram-se a olhar para o terreiro, com ares majestosos.

- O filhote já voa tão bem como os pais, não voa? - disse Maria da Luz, e atirou-lhes um biscoito. Elas nem para ele olharam, continuando a fitar o terreiro, impassíveis, de viseira carregada. ;,

- Só queria que o João estivesse aqui! Podia fotografar o trio! A máquina ainda está ali na moita, mas eu tenho medo de lhe mexer e de a estragar. O pior é se chove, que achas, Dina?

- Não me parece que vá chover! - disse Dina, mas a Sara discordou:

- Está a ameaçar tempestade! Desconfio de que vamos ter trovoada e chuva a potes. Desejo muito que já cá não estejamos, no cimo destas pedras, porque deve ser de meter medo! Os trovões rolam lá de cima e os relâmpagos parece que correm pelo monte abaixo!

- Tenho esperança de que nos venham libertar antes que a tempestade rebente - disse Dina.- Estou à espera de ver aparecer o João de um momento para o outro, com gente para nos ajudar a fugir!

 

         A MEIA-NOITE

O João fez um sono de algumas horas, só acordando com o regresso do carro do Jaime. Vinha acompanhado de quatro "amigos", que o João achou bastante façanhudos. Não restava dúvida de que era o Jaime quem comandava.

Jaime Smugs entrou na cozinha e deixou os homens lá fora.

- Viva! Já acordaste? Queres comer? Já passa da uma!

- Eia, será possível? Sim, quero comer, estou cheio de fome!

- Então levanta-te e veste-te, que eu vou chamar os homens para me ajudarem a preparar o almoço. Espero que a Sr.a Mannering não se importe com esta invasão da cozinha!

- E depois, vamos ao castelo? - perguntou o João, embrulhando-se no roupão e preparando-se para se ir vestir, no andar superior.

- Logo à noite. A Lua levanta-se tarde e quero aproveitar a escuridão. Lá pela meia-noite talvez. Nenhum dos homenzinhos se atreve a deitar o nariz de fora, durante o dia, com certeza!

- Ai, tão tarde! Coitadas das raparigas, ficam para lá à espera todo o dia!

- Tenho muita pena, João, mas é muito importante que não nos vejam!

João foi para cima vestir-se. Estava cheio de calor e, embora o Sol mal se mostrasse por entre as nuvens, sentiu a respiração opressa, como se tivesse dado uma grande corrida, apesar de não ter feito qualquer esforço.

- Está um ar de trovoada! Deus queira que não rebente esta tarde, senão as pobres pequenas morrem por lá com medo!

Ouviram-se uns passinhos abafados, e o Botão rompeu pelo quarto dentro, a abanar o penacho da cauda e a olhar para ele como se estivesse a dizer: «Sim senhor! Tão depressa estás aqui como lá em cima, e eu que me rale à tua procura! Eu só quero é saber do Filipe!»

«Andas à procura do Trunfa, não andas?» e o João fez-lhe festas, que logo o fizeram deitar-se de barriga para o ar, como um cãozito. - Jaime! Já viu o nosso raposito?

- Ai, sim, realmente passou um tornadozito pela cozinha e voou pela escada acima, mas não vi o que era! Trá-lo cá abaixo.

João desceu, com o Botão ao colo, e o animal ia lambendo-lhe o nariz, felicíssimo. Jaime achou-o muito engraçado.

Almoçaram todos juntos, e Jaime ia fazendo perguntas a respeito do castelo, dos homens e dos quartos secretos. João respondia como podia e sabia, certo de que Jaime ia disposto a entrar no castelo, e que apanharia os homens, mas lá como executaria a tarefa é que não conseguia perceber.

- Olhe que eles devem ser bastante perigosos! Andam armados, isso é garantido!

- Não te rales, que não são só eles que andam armados! - Jaime teve um riso trocista. - Eu conheço o Pescoço-Riscado há muito tempo, já sei que ele não confia na sorte. Calculo a fúria dele quando deu com as pequenas no seu rico quarto secreto! A presença delas deve tê-lo feito apressar a realização dos planos, sejam quais forem.

João começou a sentir-se excitadíssimo. - Isto está a aquecer! - comentou ele, todo contente.

- Está, está, e alguém vai escaldar-se! - respondeu-lhe Jaime. Depois do almoço foram acabar de revelar as películas; as fotografias tinham ficado uma maravilha!. As águias estavam tão nítidas que quase se lhes podia contar as penas! Mas a estrela da companhia era a àguiazinha! Que belas atitudes! O João nem cabia em si de contente!

- Olhe para esta, Jaime!

- Palavra! Estão realmente maravilhosas! Devias mandá-las a uma revista da especialidade, João! Pagar-tas-iam bem, e não tardarias a criar fama, com material deste!

João sentiu-se orgulhoso. Se pudesse arranjar nome à custa dos seus queridos pássaros seria inteiramente feliz! Isso trouxe-lhe à memória a Didi e pensou no que estaria ela a fazer sem o dono. Que desgosto não deveria ter tido ao dar pela sua falta! Mas, enfim, estava lá a Sara, e a Didi gostava muito dela.

O dia custou a passar e depois do chá Jaime recomendou-lhe que fosse dormir.

- Tu passaste uma noite péssima, e nós logo devemos precisar muito de ti, portanto o melhor é ires dormir agora um bocado para estares em forma esta noite!

O rapaz estendeu então umas mantas no jardim e adormeceu. Lá fora fazia calor, um calor abafado e pegajoso. Os homens que acompanhavam o Jaime, e tinham passado o dia a jogar as cartas, sem quase dizer palavra, despiram os casacos e ficaram em mangas de camisa. O calor era sufocante.

João acordou ao anoitecer e foi à procura do Jaime.

- Não serão horas de nos pormos a caminho? Ainda leva um bom bocado a chegar lá acima!

- Nós vamos de carro até onde nos for possível. Os meus homens são valentes, mas não gostam de fazer alpinismo! Vamos pela estrada até à barreira, e depois a pé o resto do caminho.

Assim que escureceu empilharam-se todos no carro de Jaime e partiram monte acima. João receou que o ruído do motor despertasse atenções, mas Jaime garantiu-lhe que não se ouvia lá em cima.

- A única coisa que me preocupa é que o Filipe esteja no quarto secreto! Se houver zaragata lá em baixo - e vai haver, é mais do que certo! - não me convém ter miúdos envolvidos na história.

- Essa agora, Jaime! Fomos nós, miúdos, quem o meteu a si na história! - respingou o João, todo formalizado. ,Smugs riu-se.

- Está certo! Mas, lamento dizer-te, vocês tolhem-nos os movimentos!

- Jaime! Que vão vocês fazer? Agora já pode falar!

- Ainda não sei bem, depende do caminho que as coisas levarem. Mas o plano é este, em poucas palavras: irmos para o subterrâneo, logo à noite, quando as pequenas estiverem a dormir e os tipos andarem por fora...

- Libertar as raparigas! E Filipe?

- E Filipe também, se ele condescender em acompanhá-las! Mas não antes que ele nos mostre a porta secreta, e cheira-me que ele há-de querer seguir-nos!

- Se há-de! Eu também, deixe-me dizer-lhe. Só se não puder evitá-lo é que ficarei de fora, feito espectador passivo! O que era bom era vermos se é possível pôr as raparigas do castelo para fora antes de começar a fita, depois o Filipe e eu juntamo-nos ao seu grupo.

- Então ficas encarregado de investigar para onde dá a porta secreta. Eu desconfio, mas não tenho a certeza. E convém-me saber umas quantas coisas antes que os tipos dêem por mim. Foi uma pena o Filipe não perceber a língua deles! Podia ter ouvido tudo quanto nós queremos saber.

- E como vão ficar vocês a saber?

- Pelo processo do Filipe! - E o Jaime pôs-se a rir.- Enfiando-nos nas armaduras e ouvindo as conversas!

- Eia! Nunca tinha pensado nisso! Ó Jaime, eu e o Filipe também podemos enfiar as couraças?

- Veremos. A ideia de Filipe, ainda que tenha partido de uma brincadeira, é muitíssimo boa. Cá estamos na barreira, ou não é?

Tinham lá chegado efectivamente. Abandonaram o carro e o João guiou-os pelo carreirinho dos coelhos, auxiliando-se com a luz da lanterna, porque não era fácil, no meio das trevas, dar com o caminho certo. A uma ordem de Jaime, caminharam todos em silêncio. O Botão corria atrás de João, na esperança de encontrar Filipe. Um mocho piou mesmo ali ao pé, sobressaltando-os.

O calor apertava e os homens enxugavam a testa, ofegantes. João tinha a camisa colada ao corpo e ouvia-se muito ao longe o ribombar dos trovões.

«Bem me pareceu que andava tempestade no ar!», comentou João de si para si ao limpar pela vigésima vez o suor que lhe escorria da testa. «Oxalá as raparigas estejam no subterrâneo a estas horas.

Assim não ouvem a trovoada. Mas a Sara, pobrezinha! Deve apanhar tudo lá no alto das fragas! E a Didi! Só queria saber como estão elas!»

Continuaram a subir até que João parou, em frente da muralha, e murmurou:

- Cá está a muralha, Jaime! Agora como vão vocês entrar?

- Onde fica o tal portão de que me falaste? Não, não é o portão que dá para a barreira, por onde viste entrar os outros dois homens. Eu falo da outra porta, mais pequena, encaixada na muralha.

- Está aqui perto, mas já lhe disse que está fechada à chave. - Sempre a indicar-lhes o caminho, João levou-os a contornar a muralha; virou a esquina e mostrou-lhes a porta.

Era uma porta ogival atarracada e fortíssima, feita de sólida madeira de carvalho, ao rés da muralha. Jaime assestou-lhe a lanterna, e focou-a de alto a baixo com a luz, demorando-se a examinar a fechadura. Chamou um dos seus homens, que se aproximou tirando do bolso a mais fantástica das colecções de chaves de todos os tamanhos e feitios. Sem o menor ruído, o homem experimentou chave após chave mas nenhuma delas dava a volta na fechadura.

- É inútil, senhor! - segredou a Jaime. - Esta fechadura é nova, e deve ser especial. Foi posta aqui há pouco tempo e nenhuma das minhas chaves serve nela.

João ouviu isto, desolado. Iriam eles arrombar a porta? Com um barulho desses, estava dado o alarme! Jaime chamou outro dos homens, o qual trazia na mão um objecto muito curioso: parecia uma bengalinha com um tubo grosso, e João ficou a mirá-lo, sem atinar com o que fosse aquilo. Jaime ordenou:

- Tens de pôr isso a funcionar, Raul! Podes começar, mas vê se consegues fazer o menos barulho possível; pára assim que eu te fizer sinal.

A bengalinha começou a emitir um silvo muito agudo, e o Raul afastou-se bruscamente quando um forte jacto de chama azulada rompeu do tubo. O homem apontou o tubo para a porta, mesmo por cima da fechadura.

O João estava fascinado! A chama azulada devorava a madeira rapidamente, e João percebeu que se tratava de um fogo intensíssimo, embora nunca tivesse visto nenhum como aquele. Sem fazer bulha, quase sem se mexer, o homem ia "regando" a fechadura, e a chama comia a madeira da porta, à volta

da fechadura, até que João compreendeu tudo. O homem tinha acabado por recortar a fechadura por completo, de maneira que a porta se abriu de par em par! O rapaz maravilhou-se!

 

         A CAMINHO DOS ESCONDERIJOS

Entraram todos, em fila indiana, sem fazer o mínimo ruído. O último a entrar encostou a porta e meteu-lhe um calço para a impedir de bater. O terreiro estava vagamente iluminado pela Lua, que despontava num céu assaz enevoado. João disse, muito baixinho:

- Vou ver se a Sara ainda está escondida na moita; é ela quem nos vai dar notícias frescas dos acontecimentos do dia! É preciso mandá-la embora, com as pequenas, mesmo para lhes mostrar o caminho até casa.

Enquanto João trepava ao alto das fragas, Jaime e os seus homens esperavam cá em baixo, ocultos na sombra. Quando João ia a chegar aos tojos, ouviu uma voz estridente:

«Quantas vezes te tenho dito que...»

«Cala-te!», interrompeu-a o rapaz, tomado de pânico. Ouviu rumor lá dentro da moita e chamou, baixinho: - És tu, Sara? Sou eu, João, já estou de volta!

A Sara, radiante por se encontrar acompanhada, rastejou até cá fora:

- João! Vieste pelo túnel, como eu? Trouxeste socorros?

- Trouxe. Acompanha-me o meu amigo Jaime Smugs, que é da polícia, com alguns dos seus homens. Vocês, raparigas, vão-se embora para casa e o Filipe e eu ficamos a assistir aos acontecimentos... se o Jaime nos deixar!

- Mas, como vais tu buscar as outras? Elas estão a dormir no quarto secreto, bem sabes! E o Filipe também!

- Muito simplesmente, basta puxar a escápula e abrir a passagem! E depois, Sara, vocês têm de deitar a correr sem parar, nem olhar para trás!

- Eu antes queria ficar com Filipe! - insistiu a Sara, casmurra. - De resto vai haver tempestade, e uma tempestade tremenda, eu não estou disposta a correr pelo monte abaixo no meio dos trovões e das faíscas.

- Tu fazes o que o Jaime mandar! Pode ser que vocês cheguem a casa antes da tempestade. Como estão as outras?

- Estão bem, mas muito fartas disto. Ó João, a Didi, ontem à noite, depois de teres desaparecido, fez para aí um banzé dos diabos. Os homens ouviram-na e começaram aos tiros! Que susto apanhei!

- Com mil diabos! Que sorte não te terem acertado! Podias estar ferida a esta hora!

- A Dina e a Maria da Luz foram para o quarto secreto, obrigadas pelos homens, há bocado. Eles fizeram-lhes uma data de perguntas e falavam-lhes com umas vozes tão ríspidas que a Luzinha pôs-se a chorar. Como não descobriram que o escarcéu da outra noite tinha sido feito pela Didi, desconfiaram de que estivesse cá mais alguém, e queriam saber quem era. Só as largaram quando a Dina lhes disse que era a catatua, a Didi.

- Bom, toca a andar. Vamos ter com o Jaime e contar-lhe isso tudo. Os homens estão ali, vês? Os homens do Jaime, quero dizer!

A Lua rompeu das nuvens e os dois pequenos foram juntar-se ao grupo silencioso, que se conservava oculto na sombra. Seria uma loucura mostrarem-se ao luar num momento tão crítico.

- Onde estão os outros homens, Sara? - sussurrou o João. - Tens alguma ideia? Estarão no subterrâneo ou andarão por aí?

- Que eu saiba, não estão no terreiro, nem a passear pelo castelo. Devem estar no quarto secreto talvez. E... e não será melhor estar alerta quando fores puxar a escápula para abrir a passagem?

- Evidentemente que estaremos alerta! Pronto, aqui tens Jaime Smugs, nosso amigo! Esta é a Sara, a pequena de quem lhe falei há bocado!

O Jaime fez umas tantas perguntas à Sara, que respondia muito envergonhada. Tudo levava a crer que os tipos estivessem no quarto secreto. Ora, tanto melhor! Que valente surpresa os esperava quando a passagem se abrisse e dessem de caras com Jaime e os seus homens!

- Escutem. Tu, João, puxas a tal escápula e abres a passagem para o quarto secreto. Um dos meus homens fica contigo, e observa a manobra, para aprender como é. Não se sabe se precisaremos de nos tornar a servir dessa abertura. Assim que a passagem estiver toda aberta, eu e os outros juntamo-nos cá em cima, ao pé da escada, e damos um berro que levante o alarme entre os tipos e os obrigue a subir a escada. Recebê-los-emos então de revólver na mão!

- Com mil demónios! Tenha cuidado com as raparigas, Jaime! Vão morrer de medo!

- Eu grito-lhes cá de cima que se afastem do caminho, deixa isso comigo. Juro-te que nenhum mal acontece às meninas! Assim que elas subirem a escada, tu, Sara, leva-las logo, mas sem perda de tempo, daqui para fora, e só paras em casa! Percebeste?

- Eu antes queria ficar com o Filipe! - tornou a Sara.

- Não pode ser, tem paciência. O Filipe já estará em casa amanhã, deixa lá! Bom, está tudo pronto? Todos sabem o que têm a fazer?

Dirigiram-se silenciosamente para a massa negra do castelo, todo envolto na sombra e na escuridão, agora que a Lua estava outra vez encoberta. Ouviam-se os trovões ribombando ainda muito ao longe.

Sempre sem o mínimo ruído, entraram, pé ante pé, no salão grande da entrada. Todos calçavam sapatos de sola de borracha, à excepção de Sara; essa, como de costume, estava descalça, e nem sequer trazia as sapatilhas penduradas ao pescoço, porque as tinha escondido quando a mãe ameaçou tirar-lhas.

Acompanhado por um dos homens, João deslizou até à parede do fundo, e a Sara ia mostrando a Jaime a entrada para o subterrâneo. Ele e os seus companheiros aguardavam que o João fizesse accionar a escápula; ouviu-se o ranger da pedra nos gonzos, e o buraco da passagem abriu-se como uma bocarra, deixando à vista o começo da escada. Lá de baixo veio a luz da lâmpada de azeite, e o Jaime imobilizou-se, à entrada do buraco, todo ouvidos. Mas não se ouvia o menor rumor. João aproximou-se, em bicos de pés, e segredou:

- Talvez só lá estejam as raparigas e o Filipe! Se calhar os homens saíram pela porta da tapeçaria!

Jaime acenou a cabeça e atirou com o seu vozeirão lá para o fundo: - Quem está aí? Respondam!

Uma voz apavorada - a de Dina - respondeu:

- Só estamos nós! Quem é?

Antes que Jaime o pudesse impedir, João deu um grito de alegria.

- Dina! Sou eu e o Jaime Smugs! Vocês estão sozinhas?

- Estamos, sim! - volveu a mesma voz, no auge da excitação. - Está aí o Jaime? Ai, que bom!

João precipitou-se, escada abaixo, seguido do Jaime e dos outros homens, só ficando um deles cá em cima, de sentinela. O primeiro gesto de Jaime foi procurar a segunda escápula, a do quarto secreto, para fechar a passagem. Daí por momentos, esta abria-se outra vez, movida pelo homem que tinha ficado de atalaia. Estavam a experimentar o funcionamento, para não terem surpresas, e Jaime queria certificar-se de que poderia entrar e sair quando quisesse.

Maria da Luz correu para o irmão e agarrou-se a ele, lavada em lágrimas. A Dina sorriu-se para o Jaime, refreando a vontade que tinha de lhe saltar ao pescoço. Mas não resistiu, tão contente estava de os ver a ambos.

- Bom, bom, não percamos tempo! Onde está o Filipe? Foi Maria da Luz quem respondeu agarrando-se ao braço

do Jaime.

- Ai, Jaime! Filipe desapareceu! Quando chegámos aqui, esta noite, o Filipe já cá não estava! E não sabemos para onde foi, nem porquê, nem como! Se foram os homens que o apanharam, ou se ele fugiu. Não deixou recado, nem um papel, nem nada! Desconfiamos de que ele foi bisbilhotar a porta secreta!

- Jaime! Os homens devem estar de volta! - afirmou a Dina, lembrando-se de repente. - Eu ouvi um deles dizer, em inglês, que se encontravam aqui esta noite pela última vez. E como é aqui que eles se encontram, e guardam os mapas, ou lá

o que é, não devem tardar!

- Onde estão os mapas? - perguntou Jaime imediatamente, e Dina apontou para uma das gavetas fechadas à chave. - Estão aí, mas eles é que têm a chave. Que vai o senhor fazer, Jaime? Que mistério é este?

Jaime casquinou:

- Começou a ver tudo claro! Bom, agora ouçam. Tu, Dina, e tu, Maria da Luz, vão com a Sara direitinhas a casa e não saem de lá sem nós chegarmos. Perceberam? Podem sair pela porta da muralha, que já está aberta. O homem que eu deixei lá em cima, de sentinela, acompanha-vos até lá, e depois, ala!

- Mas... mas... - começou Dina a dizer, com pouca vontade de deixar o Filipe.

- Não há mas, nem meio mas! Quem manda aqui sou eu, e vocês obedecem-me. Vamos, toca a andar! Amanhã lá estaremos!

As três raparigas obedeceram e subiram a escada, a sentinela acompanhou-as até à porta da muralha e certificou-se de que o caminho do monte estava livre. - Vocês sabem ir sozinhas? - perguntou-lhes, baixinho, porque ele próprio não se sentia capaz de dar com os atalhos do monte, na escuridão. Mas a Sara sabia, seria até capaz de ir de olhos fechados, tão bem conhecia o monte, tão segura por lá andava.

A noite tragou as raparigas e o homem voltou para o seu posto. A passagem para o subterrâneo fecha-se novamente. Lá em baixo Jaime, João e os companheiros encafuaram-se rapidamente dentro das armaduras. Jaime não queria perder a última conferência do Pescoço-Riscado e dos seus cúmplices, e o João sentiu-se muito aliviado ao ver que todos usavam revólver. Os homens de Jaime falavam muito pouco, e o rapaz ia pensando que nunca tinha visto gente tão lacónica!

João foi destacado para uma das armaduras mais afastadas, porque Jaime não o queria ali ao pé quando rebentasse a zaragata, como ele dizia. O rapaz tremia de excitação.

A Didi tinha-se ido embora ao colo da Sara, furiosa de ser assim levada para longe de João, e guinchando desabaladamente. Mas era impossível ficar ali com uma catatua tagarela, que escangalharia tudo num instante.

Quem lá ficou foi o Botão. Simplesmente, ninguém sabia da sua presença, porque o raposito tinha ido enroscar-se debaixo da cama, satisfeito por lá encontrar o cheiro do dono, e o João esquecera-se dele.

Não tardou que as armaduras voltassem todas à costumada imobilidade, em cima das peanhas, na sala-museu, e só três é que estavam vazias. Todas as outras tinham ocupantes, e um dos homens, enorme, queixava-se amargamente de não caber na dele.

- Silêncio! - ordenou Jaime. - Nem palavra! Parece-me que ouço rumor!

 

         AS COISAS COMEÇAM A AQUECER

Afinal o rumor era apenas o de um trovão, tão forte que se ouvia no subterrâneo!

- Estou preocupado com as raparigas! - disse Jaime, a pensar na corrida delas, em plena noite, pelo monte abaixo. - É capaz de estar a chover!

- Elas estão com a Sara, por isso não há mal! - respondeu o João. - A Sara conhece uma data de abrigos, e não são tão tolas que vão meter-se debaixo de uma árvore. O monte tem umas grutas onde elas, com certeza, se abrigarão até que passe a tempestade.

Fez-se novamente silêncio; era espantoso como tanta gente, encafuada em armaduras desconfortáveis, era capaz de guardar um silêncio assim, sem que se ouvisse o menor estalido!

Um dos homens pigarreou, e o ruído soou estranho naquela sala.

- Não tornes a fazer isso, Raul! - ralhou o chefe. E tudo recaiu num silêncio de túmulo. João deu um leve suspiro, exausto de nervos, impaciente pela espera, palpitante de calor e coberto de suor.

De súbito ouviu-se o barulho de uma chave na porta, a tapeçaria agitou-se e alguém a soergueu. Todos se petrificaram, dentro das armaduras, e uma quantidade de pares de olhos espreitou pelas viseiras. Quem seria que entrava?

Um homem levantou a tapeçaria e prendeu-a num prego para dar passagem aos que o seguiam. João pôde ver uma abertura e o princípio de um corredor cavado na muralha, de onde começaram a surgir, silenciosos, os homens todos... e com eles o Filipe! O primeiro a entrar foi o homem dos sobrolhos cabeludos, depois o das barbas, aquele a quem Jaime chamava o Pescoço-Riscado, arrastando Filipe. O Pescoço-Riscado trazia o colarinho abotoado, o João não viu sinais de cicatriz.

Filipe tinha no rosto uma expressão de desafio, mas João percebeu que ele estava assustado. Atrás dele vinham mais três homens, qualquer deles bastante feio, de olhar penetrante e bocas duras. Entraram no quarto, a falar, deixando a porta aberta, e João dava tratos à imaginação para descobrir para onde é que ela deitaria.

Filipe tinha as mãos amarradas atrás das costas com tanta força que os vergões lhe marcavam a carne. O Pescoço-Riscado empurrou-o para um cadeirão. Via-se que Filipe tinha sido caçado naquele momento, e o Pescoço-Riscado começou o interrogatório.

- Há quanto tempo estás no castelo? E, que sabes tu?

- Tenho cá estado sempre com as pequenas, escondido debaixo da cama. Vocês é que nunca se lembraram de espreitar lá por baixo. Não vim cá fazer mal algum, viemos apenas brincar para o castelo, sem sabermos que ele tinha dono.

O Pescoço-Riscado rosnou para o dos sobrolhos:

- Chama as pequenas e trá-las aqui. Vamos interrogá-las.

Quando penso que um bando de fedelhos nos faz perder um tempo que para nós é precioso!

O das sobrancelhas dirigiu-se à cama, onde esperava encontrar as duas raparigas a dormir, mas quando puxou os cortinados viu a cama vazia! Sem poder crer, arrepanhou a roupa toda para trás e disse, atónito:

- Não estão cá!

O barbaças virou-se de supetão:

- Não sejas estúpido! Hão-de estar nesta sala. Como haviam elas de sair daqui?

- Foi o rapaz quem lhes deu fuga ao abrir a passagem, lá em cima!

O barbaças voltou-se para Filipe, que estava tão espantado como ele, sem perceber como tinham as raparigas fugido, mas sem querer dar mostras de espanto.

O homem dos sobrolhos olhou para debaixo da cama, mas não havia dúvida: as raparigas tinham desaparecido! O Pescoço-Riscado interpelou Filipe brutalmente:

- Foste tu quem lhes proporcionou a fuga?

- Não, não fui eu. Já lhes disse que estava escondido debaixo da cama, não andava lá por cima.

- Ai sim? Então quem lhes abriu a porta? - disse o dos sobrolhos, unindo-os de tal modo que quase lhe tapavam os olhos.

- Anda, fala e diz tudo quanto sabes! - ameaçou o Pescoço-Riscado com uma voz terrível. Filipe calou-se e fitou-o em ar de desafio, o que exasperou o Pescoço-Riscado a tal ponto que despediu dois murros à cabeça do rapaz, deitando-o da cadeira abaixo. Filipe levantou-se, sem pronunciar palavra e tornou a sentar-se.

João, fora de si, viu a orelha de Filipe, congestionada, começar a inchar. O Pescoço-Riscado, rouco de cólera, tornou:

- E agora, já falas?

Os outros homens assistiam sem dizer palavra. Filipe continuou calado, e João sentiu-se orgulhoso por vê-lo tão valente, mas ficou horrorizado quando viu o Pescoço-Riscado tirar o revólver do bolso e colocá-lo em cima da mesa.

Com os olhos a faiscar de raiva, o homem ameaçou:

- Temos meios de fazer falar os rapazes mudos!

Filipe olhou para a arma brilhante e não gostou; pestanejou levemente, mas continuou a fitar o Pescoço-Riscado sem quebrar o mutismo.

Sem uma súbita intervenção, que deixou todos boquiabertos, seria difícil dizer como terminaria esta cena. Com uma rapidez incrível, como uma pedra catapultada, o Botão disparara de baixo da cama e viera atirar-se para o colo do Filipe. Os homens deram um salto e o Pescoço-Riscado atirou a mão ao revólver, mas todos tornaram a sentar-se, furiosos com o susto, quando viram que o bólide era um raposito. O Pescoço-Riscado, enraivecido, desatou às chicotadas ao animal que lhe arreganhou os dentinhos.

- Não lhe faça mal! - disse Filipe, aflito. - Não passa de um cachorro, e é meu.

- Como apareceu ele aqui? Quando as miúdas saíram, não? - rosnou o das sobrancelhas guedelhudas.

- Não faço ideia: já lhes disse que nem sei como elas saíram, nem como ele entrou. Sei tanto como vocês.

- Se este miúdo está a falar verdade, o melhor é acabar com isto e irmos andando - disse o homem, começando a estar preocupado. - É capaz de haver por aí mais gente, apesar da nossa vigilância. Vamos embora!

Um trovão atroou os ares e os homens entreolharam-se, pouco à vontade.

- Que é isto? - fez o dos sobrolhos.

- É trovoada, que havia de ser? - rosnou o Pescoço-Riscado. - Que diabo tens tu? Estás nervoso só porque um bando de fedelhos idiotas anda por aí a brincar? Uma boa dose de açoites é o que eles estão a pedir, e vamos começar por este, mesmo que as raparigas tenham realmente fugido.

O Botão enrolou-se aos pés de Filipe, com medo dos homens. O Pescoço-Riscado fez sinal a um deles, que se levantou e foi abrir a gaveta dos documentos, tirando de lá um maço de papéis. Depois veio colocá-los em frente do Pescoço-Riscado.

Começaram então a discutir, numa língua desconhecida que Filipe não entendia. Mas Jaime compreendia-os muito bem! Falavam sete ou oito línguas, e não perdia palavra do que eles diziam.

Filipe deixou de lhes prestar atenção e começou a sentir os pulsos doridos e a orelha inchadíssima. Nem sequer podia esfregá-la porque tinha as mãos amarradas atrás das costas! O Botão lambia-lhe as pernas nuas e isso dava-lhe um certo consolo. «Como teriam escapado as raparigas?», matutava ele. «Como teriam saído daquela sala? Ainda bem que tinham podido escapar. Mas como? Já teriam chegado socorros? João teria arranjado quem os ajudasse a fugir?»

Teve pena de ter abandonado a armadura, onde, apesar de tudo, estivera tão bem escondido. Deitou os olhos à volta e ficou espavorido. Aquilo eram olhos a espreitar pelas viseiras! Não podia ser outra coisa! Filipe tinha boa vista e a luz da lâmpada incidia sobre a viseira da armadura que ele precisamente fitava. Pareceu-lhe que do fundo dos buracos, em vez deles, brilhavam olhos verdadeiros. Percorreu com a vista todas as outras armaduras, e em todas via a mesma coisa. Sentiu um medo terrível. As armaduras estavam vivas? Quem as teria vestido? Começou a tremer.

O Pescoço-Riscado deu pela tremura do Filipe e troçou:

- Ah, ah! Começas a ter medo do que possa acontecer a rapazes abelhudos? Talvez agora fales!

Filipe não disse palavra e continuou a pensar. Queria pôr ordem nas ideias e reconsiderou: quem devia ter vestido as armaduras deviam ser amigos seus, não inimigos. Que parvoíce, ter-se assustado! Mas não impedia que fosse uma sensação esquisita, essa de dar com olhos a brilhar por trás dass viseiras!

«Com que então, foi por isso que as raparigas fugiram?», pensou ele. «Agora já percebo! Por isso João foi buscar gente e tiveram a mesma ideia que eu tive, de se esconder para ver o que se passava aqui! Bom, é preciso que estes tipos não desconfiem, dê lá por onde der! Sempre gostava de saber se o Pintinhas estará metido dentro de alguma!»

Sentia-se agora muito melhor e pôs-se a mirar as armaduras, uma por uma, disfarçadamente, não fossem os homens seguir-lhe o olhar.

O ribombar dos trovões ouvia-se cada vez mais forte. O subterrâneo estava tão abafado que os homens de Jaime faziam grandes esforços para não arfar, ofegantes. Escorriam em suor, mas não ousavam esboçar o mais leve movimento.

Jaime seguia a conversa muito atento, mas Filipe não percebia patavina. Dos papéis espalhados sobre a mesa, nenhum ficava ao alcance dos olhos do Jaime, de modo que pudesse perceber do que tratavam. Apenas conseguiu vislumbrar-lhes a cor, azul, calculando que se tratasse de projectos de máquinas, talvez, até que o Pescoço-Riscado os enrolou, devagar, e se voltou para Filipe:

- Pronto, acabámos o trabalho. Não teremos o prazer de tornar a ver-te, nem às tuas amigas. Mas não quero ir-me embora sem te ensinar que não nos deixamos espiar impunemente! Onde está essa corda?

- Não se atreva a tocar-me! - gritou o rapaz, pondo-se de pé instantaneamente. O Pescoço-Riscado pegou na corda.

Nesse momento, ante o seu pasmo mesclado de terror, uma das armaduras desceu da peanha, levantando o braço articulado e empunhando um revólver, para dizer:

- Acabou-se a brincadeira, Pescoço-Riscado! Vocês estão caçados!

A voz era cava, e o Pescoço-Riscado, bem como os seus cúmplices, no cúmulo do pavor, viram aproximar-se as outras armaduras como se fossem seres vivos! Pareceu-lhes um pesadelo - mas era um pesadelo com pistolas a mais!

«Mãos no ar!», comandou a voz de Jaime.

O Pescoço-Riscado ia começar a levantar os braços quando de repente se virou e atirou com a lâmpada ao chão, desfazendo-a em mil bocados. Imediatamente a sala ficou mergulhada na escuridão mais profunda.

 

         UMA TEMPESTADE MEDONHA

Jaime deu um berro de raiva, e João ouviu-o ordenar-lhes:

«Metam-se debaixo da cama, depressa, João e Filipe! Vai haver tiroteio!»

Os rapazes obedeceram logo e mergulharam para debaixo da cama, João ainda a chocalhar a armadura e Filipe ofegante, de mãos atadas. João encalhou, a meio do caminho.

Não sabiam o que estava a passar-se na sala, ouviam berros, roncos e gemidos, mas nada de tiros. Ninguém se atrevia a disparar, na escuridão, com medo de alvejar algum amigo. Os rapazes tiveram a impressão de que havia luta corpo a corpo entre as armaduras e os homens.

De súbito, ouviu-se o ranger dos gonzos e os rapazes perceberam que era a passagem secreta a abrir-se. Mas quem estaria do lado de fora, para poder abri-la? O Filipe não chegara a descobrir como é que se fazia deslizar a pedra, do lado do quarto, embora tivesse estado sempre convencido de que havia, sem dúvida, um processo qualquer.

Era óbvio que tinha sido o Pescoço-Riscado, ou algum dos cúmplices, a abrir a passagem, porque se ouviu a voz de Jaime, a berrar:

«Raul! Atenção! Atira ao primeiro que suba a escada!»

Raul, a sentinela, veio ao topo da escada;.mas nada conseguiu ver lá para baixo e só se dava conta da mesma barulhada e do mesmo resfolgar que os rapazes ouviam. Um dos homens subiu sorrateiro pela escada e Raul, que não lhe ouvira os passos, apanhou em cheio com um murro que o estendeu ao comprido. Era o Pescoço-Riscado, que tentava fugir; não devia ter a arma consigo, de contrário teria atirado ao Raul.

Antes que Raul pudesse levantar-se, o Pescoço-Riscado tinha desaparecido, e passava-lhe por cima outro homem, que por sua vez o esmurrou. O pobre do Raul sentiu a cabeça andar à roda, e o homem dos sobrolhos, depois de lhe dar uns pontapés brutais, pôs-se também em fuga.

Raul ficou sem saber o que fazer - se continuar de sentinela, para evitar mais fugas, se correr atrás dos fugitivos. Como, porém, não fazia a mínima ideia do caminho que eles poderiam ter tomado, optou pela primeira solução.

Os outros três homens, no subterrâneo, estavam numa situação insustentável. Um deles estava liquidado. Um outro aguentava com o peso de Jaime, que se lhe sentara em cima, com toda a força. O terceiro, que tentou escapar pela porta da tapeçaria, voltou para trás, arrastado pelo Esteves, que o sacudia, a resmungar ameaças.

Jaime acabou por dar com uma lanterna e projectou o foco em redor. A lâmpada estava feita em cacos, e era muita sorte que não tivesse pegado fogo ao quarto. O homem sobre o qual o Jaime se sentara foi entregue a um dos seus agentes. Tinha um ar compungido e muito infeliz, com um olho todo negro e um alto enorme na cabeça. Jaime estava assaz cómico, ainda de armadura, mas sem elmo, de maneira que se lhe via a cabeça, calva no topo e fortemente cabeluda dos lados, a emergir da carapaça.

Os rapazes saíram de baixo da cama e Jaime teve de ajudar o João a despir a armadura; este foi desamarrar o Filipe.

Jaime pôs-se carrancudo ao ver que os dois homens que mais queria apanhar - o Pescoço-Riscado e o dos sobrolhos guedelhudos - se tinham safado. Chamou a sentinela.

- Estás aí, Raul?

- Sim, senhor-veio de lá a voz do agente, bastante humilde.

- Apanhaste os dois que subiram a escada?

- Não, senhor. Lamento informar que fugiram depois de me terem deitado ao chão a murro! - a voz de Raul era cada vez mais inexpressiva.

Jaime resmungou uns insultos, dedicados ao infeliz Raul, e chamou-o:

- Anda cá! És um bom parvo, sim senhor! Na posição estratégica em que estavas, lá em cima, podias ter apanhado um exército em peso!

- Estava muito escuro, senhor, eu não via nada!

- Está bem, por causa de ti deixámos escapar os dois tipos mais importantes! - resmungou Jaime. - Não é dessa maneira que subirás de posto, compreendes? Se eu tivesse adivinhado, tinha posto lá outro em vez de ti! A estas horas os tipos já vão do outro lado do monte! Aposto que têm um bom carro para aí escondido, pronto para qualquer emergência, e amanhã à noite estarão na outra ponta do país!

O pobre do Raul estava vexadíssimo. Era um homenzarrão, e os rapazes admiravam-se como ele não tinha sido capaz de apanhar os homens, que iam desarmados! Tanto um como outro estavam excitadíssimos e desolados por não terem, eles, capturado o Pescoço-Riscado.

- Amarrem-me estes tipos - disse Jaime, apontando para os três cativos. O Esteves deitou-se à tarefa e em breve os homens pareciam uns fardos, muito bem atados, de caras sombrias e olhar carregado.

- E agora vamos examinar a papelada - ordenou Jaime enquanto um dos seus homens lhe punha os documentos na frente.

Jaime debruçou-se sobre eles.

- Sim, senhor! Está aqui tudo quanto pretendia saber! Este Pescoço-Riscado deve ser o mais esperto espião do mundo. Calculo a raiva dele ao ter de abandonar este trabalhinho e estes papéis. Para ele valem uma fortuna, e são de um preço incalculável para o país que lhe paga a tarefa!

Um dos homens enrolou os papéis; nesse momento um trovão medonho estalou ali perto, assustando toda a gente.

- Isto é que é uma tempestade! - disse o homem que se chamava Esteves. - Foi uma faísca, não?

O relâmpago tinha sido tão forte que a luz penetrara no quarto secreto, e ouviu-se quase simultaneamente o trovão.

- A tempestade está mesmo por cima - afirmou Jaime. - Parece-me rematada tolice descer o monte enquanto ela durar.

João, muito desapontado, inquiriu:

- Mas então não vamos ver para onde dá a porta secreta?

- Vamos, pois! O Raul vai comigo, enquanto os outros levam os prisioneiros daqui para fora. Mas esperemos que nasça o dia.

A trovoada aumentava e cobria a voz de Filipe, que tentava contar ao Jaime as peripécias do dia. O Filipe pôs-se a gritar:

- Estava tão maçado que resolvi ir ver onde a porta secreta levaria. Os homens estiveram aqui a dormir, durante muito tempo, depois saíram, subindo a escada; então eu saí do meu esconderijo e atravessei aquele buraco, ali na parede, que os homens tinham deixado aberto, como agora está, com a tapeçaria levantada e o bloco afastado para o lado, assim, vê? O buraco dá para uma porta...

Outro trovão interrompeu Filipe e fê-lo calar. Todos o escutavam com grande interesse, excepto os presos, naturalmente. O rapaz esperou uns instantes e prosseguiu:

- A porta estava fechada, mas alguém tinha deixado a chave na fechadura. Abri-a e dei comigo num corredor muito estreito.

- E não estava muito escuro? - perguntou João.

- Estava, mas eu tinha a lanterna de bolso para me alumiar o caminho. O corredor ia descendo, primeiro cavado na parede (deviam ser os alicerces do castelo, suponho eu) depois tive a impressão de ter saído do edifício e que o corredor se transformava num túnel talhado na rocha.

- E, se não me engano, foste dar ao outro lado do monte, não é assim? - interrompeu o Jaime. - Que viste por lá? Alguma coisa que te despertasse a atenção?

- Não tive tempo de lá chegar! Ouvi passos atrás de mim e tratei de me esconder. Só havia um rebordo, estreitinho, quase à altura do tecto, portanto trepei para aí e alapardei-me, calado como um rato.

- Safa! - exclamou o João. - Ele passou por ti?

- Passou, sim. Andava mesmo à minha procura, porque eu esqueci-me de fechar a porta, ao meter pelo corredor, e eles deram por isso quando voltaram a este quarto. Mandaram logo um ver quem teria aberto a porta.

- E encontraram-te? - mas a pergunta de Jaime foi sufocada pelo ruído de outro trovão.

- Quando o homem viu que eu não estava no corredor, voltou para trás. Mas o chefe é que não desistiu, nem estava disposto a deixar-me andar por ali perto, e por isso meteu ele próprio pelo corredor dentro, seguido dos outros. Está claro, deram logo comigo, espalmado no rebordo, e puxaram-me de lá para fora.

- E que te fizeram? - quis saber Jaime. - Não te trouxeram logo para aqui, porque as pequenas, à hora de se deitarem, deram pela tua falta.

- Pois não; ataram-me de pés e mãos e deixaram-me estendido no chão. Disseram que, como parecia que eu tinha predilecção pelo corredor, me deixavam lá ficar até terem tempo para me interrogar. Para lá fiquei, então, até que eles voltaram para me buscar; desamarraram-me os pés, para que eu pudesse andar, e trouxeram-me para aqui, como vocês viram.

- Coitado de ti! Foi uma experiência pouco agradável! - comentou Jaime.

- O maior susto que eu apanhei foi quando vi os vossos olhos todos a brilhar, pelas fendas das viseiras, caramba! Nunca fui tomado de tamanho susto! Mas não tardei a perceber que deviam ser de gente amiga.

Os trovões sucediam-se agora num tal ritmo, e com tal estrondo, que os rapazes e o Jaime desistiram de conversar. Ficaram calados, cada qual a pensar na trovoada medonha que devia estar a pairar sobre o monte.

- Vou até à porta principal dar uma espreitadela - disse Jaime. - O espectáculo deve ser digno de ver-se!

- Nós vamos consigo - responderam os rapazes. Subiram as escadas, atravessaram o salão grande, até à porta de entrada, e ainda lá não tinham chegado já se imobilizavam de espanto. O monte e o vale estavam debaixo da maior tempestade que jamais tinham visto, com relâmpagos a rasgar o céu, uns após outros, como forquilhas monstruosas que o percorressem de alto a baixo, sem cessar.

A trovoada ultrapassava tudo quanto tinham visto, na violência dos estrondos, que não paravam, rolando pelo monte, como se fossem peças de artilharia a bombardear o inimigo. E a chuva! Parecia que o céu se abria, a desabar em água! Ninguém se atreveria a dar um passo lá fora, sob pena de ser imediatamente desfeito.

- Abriu-se o céu num dilúvio! - disse Jaime. - Nunca vi coisa parecida, a não ser uma vez, na índia. Está cá a cheirar-me que o Pescoço-Riscado e o outro tipo devem passar um mau bocado a descer o monte!

- O que vale é que as raparigas devem ter tido tempo de sobra para chegar a casa e já devem estar a salvo. Senhores! Que é isto?

 

         A PASSAGEM SECRETA.

Ainda o João não acabara de falar ouviu-se um estampido como nunca mais na vida ele tornaria a ouvir. O rapaz deu um pinote e chegou-se a Jaime. Era o estrondo mais forte que ele jamais ouvira. Simultaneamente, uma faísca iluminou os montes numa vastidão de muitas milhas. Os três amigos viram-se uns aos outros, durante meio segundo, banhados de uma luz intensíssima e fantasmagórica, e logo as trevas os rodearam. Sentiram-se todos três percorridos por um arrepio singular enquanto durou a luz.

Jaime puxou-os para trás, de repente:

- Parece-me que a faísca caiu no castelo! E caiu, olhem! À luz de outro relâmpago, os rapazes viram uma das torres

a desmoronar-se. Ficaram outra vez às escuras, mas chegou-lhes aos ouvidos o barulho de pedras a rolar; era a torre que caía com a queda aumentada pela violência da chuva.

- A trovoada está exactamente aqui por cima de nós! - gritou João com quanta força tinha. - Vamos para o subterrâneo, Jaime, que tenho medo disto! A faísca buliu comigo, juro! Jaime, a trovoada está mesmo por cima do terreiro! Está, está!

Jaime não duvidava de que assim fosse, com aquele inferno de estrondos e explosões ensurdecedoras, quando uma nova faísca lhes caiu quase aos pés, provocando-lhes a sensação de terem sido trespassados. Jaime pensou:

«Se não fossem as nossas solas de borracha, teríamos sido electrocutados! Oh, caramba! O castelo está a cair!»

Correram todos para as escadas do quarto secreto e precipitaram-se por elas, mas pararam a meio, varados! O castelo estava, de facto, a cair!

Num abrir e fechar de olhos, Jaime dirigiu-se à escápula e deu-lhe um puxão, respirando fundo quando viu que a pedra girava nos gonzos. Apetecia-lhe sentir a protecção de uma parede bem grossa entre eles e a tempestade. Quase logo a seguir veio um estampido tremendo, que abalou o quarto, com as pedras a desmoronarem-se num fragor incrível.

- O castelo está a abater e vai cair-nos em cima! - e Filipe empalideceu. Assim parecia, efectivamente. Jaime calculou que o edifício tivesse sido atingido por nova faísca, e que o que eles ouviam fosse o abater do telhado e dos pisos superiores sobre o salão grande.

Houve ainda uns estrondos, que desta vez não eram de trovão, depois fez-se silêncio. Ninguém falou durante algum tempo, até que Smugs disse:

- Estou a perceber a origem da barreira! Uma tempestade destas causa facilmente desprendimentos de terras e engole a estrada. Não me admira que haja novos desprendimentos esta noite e que desapareça mais um bom bocado da estrada!

- Que chuva medonha! - observou João. - Nunca vi chover desta maneira! Aposto que as raparigas devem estar aterradas, sozinhas, lá em casa!

- Sim, quem me dera poder lá estar com elas! - e Jaime, ao dizer isto, olhou para os presos. Pareciam cheios de medo, como se os estrondos que lhes chegavam, dos trovões e do desabar do edifício, fossem o prenúncio de novos acontecimentos.

- Sabem que mais? Acabo de descobrir que estou cheio de fome! - participou Filipe. - Desde que me meti a explorar o corredor secreto, nunca mais coisa alguma me entrou na boca!

- Deves estar esfomeado! - respondeu-lhe Jaime. - Cá por mim, também tenho fome! Estou ali a ver uma bela colecção de latas de conserva; talvez que o mastigar nos custasse menos a passar o tempo e nos fizesse esquecer a trovoada!

João e Filipe examinaram as latas e escolheram uma de carne, outra de língua e duas de pêssego. Abriram-nas, foram buscar os pratos que estavam arrumados a um canto da mesa, e serviram-se abundantemente.

Jaime pôs-se à procura de bebidas e encontrou garrafas de cerveja, que lhes soube deliciosamente, a ele e aos seus homens naquele ambiente de fornalha. Os rapazes regalaram-se com umas garrafas de limonada e gasosa, que apareceram no meio das outras.

Acabada a refeição, todos se sentiram mais confortados. A trovoada parecia estar a afastar-se, e Jaime olhou para o relógio:

- Cinco e meia! - bocejou. - Não imaginei que fosse tão tarde! Bem, visto que a tempestade amainou, porque não vamos até lá fora, ao terreiro, apanhar ar? Já deve ser dia. Talvez eu possa até mandar os meus homens, pelo monte, com os presos.

- Boa ideia! Bem precisado estou de ir tomar ar! - apoiou Filipe, que estava vermelho de calor. - Como se abre a passagem, aqui da sala?

- Ali no tecto! - e Jaime mostrou-lhe uma alavanca meio oculta lá no alto. Puxou-a, mas sem resultado. Puxou outra vez.

- Esta agora! Não se mexe! Anda cá tu, Raul, puxa aí! Tens mais força do que um cavalo!

Raul puxou, por sua vez, mas a alavanca não cedia, e a pedra ficou onde estava, sem se afastar um milímetro. Resolveram empregar esforços combinados, e puxaram ambos, Jaime e Raul. A pedra moveu-se ligeiramente, e voltou a empenar, tornando inúteis todas as outras tentativas.

Jaime subiu os degraus, para ir espreitar pela greta aberta na pedra, mas nada enxergou e retrocedeu.

- Receio bem que uma boa parte do edifício tenha ruido sobre o salão de entrada. A alavanca é suficientemente forte para levantar um pedregulho, mas nós é que não temos força bastante para fazer remover o que quer que seja que a esteja a travar, lá em cima. Estamos bloqueados!

Filipe acenou a cabeça na direcção da tapeçaria:

- Temos ali outro caminho, o do corredor por onde eu enfiei ontem!

- Pois temos. Contanto que ele não tenha abatido também! Mas agora me lembro que disseste que o corredor era cavado na rocha, não foi? Nesse caso...

A temperatura no subterrâneo tornara-se insuportável. O Botão, que se tinha esgueirado para debaixo da cama enquanto durara a luta, estava agora aos pés de Filipe, de língua de fora, como um cão.

- Está cheio de sede! - disse João. - Dá-lhe de beber!

- Só há gasosa! - e Filipe despejou uma num prato. O Botão, morto de sede, bebeu-a toda, depois sentou-se, a lamber-se, como se dissesse: «Sim, lá fresca estava, mas que sabor tão esquisito!»

- Morreremos assados se não saímos daqui depressa! Vamos lá tentar a sorte por este lado! Eu vou à frente.

Jaime enfiou pelo buraco da parede e empurrou a porta. Estava aberta! Foi andando, de lanterna em punho, seguido dos dois rapazes e dos três homens com os prisioneiros, que se mostravam muito abatidos. Ainda não tinham dito palavra. O corredor era estreito, mas pouco tortuoso. Jaime ia projectando a luz sobre as paredes, sem dúvida talhadas nos alicerces do castelo.

- É mais que provável que haja masmorras por aqui perto! Que edifício tão estranho! E quantos mais quartos secretos haverá também! As velhas lendas falam em mais do que um.

Dentro em pouco as paredes de pedra deram lugar a rocha viva, a temperatura arrefeceu muito, para consolo de todos quantos vinham do forno que era o quarto do subterrâneo. O corredor dava agora umas voltas, como se seguisse os contornos da rocha. Jaime pensou que uma parte daquele caminho era natural e a outra, artificial, era evidente que seguia a direito, perfurando o cimo do monte, e depois em plano inclinado. Nalguns trechos descia abruptamente, tornando-se escorregadio. Ouviram então um inesperado ruído de água e pararam. Jaime olhou para o Filipe.

- Água? Viste água quando andaste por aqui? Filipe abanou a cabeça:

- Não, estava tudo seco. Ainda não chegámos à cornija onde me escondi!

Intrigados, continuaram a andar, e viram então de onde vinha o barulho da água.

O dilúvio que inundara o monte infiltrara-se por toda a parte e corria, em torrente, pelo subsolo. Como encontrasse uma fenda na parede do corredor, entrara

por ali dentro, e um verdadeiro rio corria, tumultuoso, ao longo do túnel.

- Céus! - exclamou João, espreitando pelo ombro de Jaime, para a água impetuosa, iluminada pela luz da lanterna. - Não podemos passar daqui!

- Isto é pouco fundo; creio bem que podemos meter-nos à água sem maior perigo. A nossa sorte está em o túnel ir a descer, e não a subir o monte, senão caía-nos a água em cima!

Jaime avançou um pé e a água chegou-lhe ao joelho. A corrente era forte, não tanto, porém, que derrubasse algum deles. Jaime lembrou-se das raparigas, que teriam dificuldade em manter o equilíbrio se ali estivessem, e deu graças a Deus por tê-las mandado embora.

Meteram-se todos à água, muito fria, que os refrescou agradavelmente. Chapinhando e salpicando-se uns aos outros, foram andando. O Botão enrolara-se ao pescoço de Filipe apertando-o com força. Tinha horror à água. Andaram mais e mais, até que Filipe lhes mostrou um rebordo da rocha, quase ao pé do tecto.

- Foi ali que me escondi, estão a ver? O sítio não era mau, não acham? Se não andassem à minha procura, não dariam comigo ali!

Continuaram, e a água ia-se tornando mais funda e mais impetuosa, porque o corredor inclinava-se cada vez mais. Avançavam com dificuldade, e João, que estava muito cansado, pensou que aquele túnel nunca mais tinha fim. Gostava de aventuras, sim, mas começava a estar farto desta e a apetecer-lhe descansar.

De repente o túnel começou a descer a pique e a corrente transformou-se em queda de água. Jaime estacou.

- Só temos uma solução: deixarmo-nos escorregar ao sabor da corrente! Ah! Esperem lá! Parece-me que há aqui uns degraus. Há, sim. Isto ajuda-nos, se a força da água nos não derrubar.

Foi ele à frente, com imensa cautela, tenteando os degraus com o pé. Os rapazes foram atrás dele, igualmente cautelosos, se bem que João estivesse em riscos de se desequilibrar por mais do que uma vez, com a força da corrente.

De súbito, surgiu a luz do dia e Jaime apagou a lanterna! Os degraus acabavam na outra vertente do morro do castelo. Tinham chegado finalmente!

Jaime saltou para um carreirinho coberto de silvas.

- Uf! Cá estamos! Sãos e salvos!

 

         O OUTRO LADO DO MONTE

Os rapazes saíram do túnel e pasmaram diante da paisagem que se lhes abria na frente. Tinham vindo parar a uma ravina cortada quase a pique. Lá em baixo, ao fundo, pareceu-lhes ver uma herdade e alguns barracões espalhados pela encosta, tudo circundado de arame farpado, em volta e voltas, sem deixar aberturas.

Por trás da casa havia um maciço de árvores no meio do qual se abria uma curiosa clareira, onde estava uma máquina esquisita, grande e brilhante. Para quem estivesse na herdade, ou nas proximidades, a máquina devia ser invisível, completamente oculta pelas árvores, mas lá de cima, do alto da ravina, via-se perfeitamente.

- Que é aquilo? - inquiriu João, de olhos arregalados para a máquina, iluminada pelo sol matutino.

- Nem eu sei! - respondeu Jaime. - Algum segredo militar, experiências dos nossos cientistas...

- Então era aquilo que o Pescoço-Riscado andava a espiar? - perguntou Filipe.

- Precisamente. Farejou a existência do segredo, e de pesquisa em pesquisa deu com este centro de experiências, e descobriu, encantado, que havia um castelo arruinado no outro lado deste monte. Um castelo que estava à venda!

- Ena! Então ele comprou o castelo? - exclamou o João. Smugs fez sinal com a cabeça:

- Comprou-o, sim. Uma das minhas tarefas foi saber quem era o dono do castelo. O Pescoço-Riscado não figurava como dono, era esperto de mais para cair nessa. Comprou-o em nome de um inglês chamado Brown. Um homem que tem fama de coleccionar edifícios antigos. Mas eu não tardei a descobrir quem estava por trás desse Brown.

- Jaime, o senhor é um génio! - comentou João, cheio de admiração.

- Não, nada disso. Isto são coisas que fazem parte do meu trabalho. Eu sabia que o Pescoço-Riscado devia andar atrás deste segredo, mas não percebia, por nada desta vida, como é que ele havia de descobrir fosse o que fosse. Como vocês vêem, o segredo está bem guardado, nas traseiras desta herdade, bem protegido pelo arame farpado, ao qual desconfio que devem estar misturados uns quantos fios de alta tensão.

- Nesse caso, como apanhou ele o segredo? - perguntou Filipe.

- Utilizando máquinas fotográficas aperfeiçoadíssimas, e cavando um caminho por baixo dos arames, para chegar à máquina, suponho eu. Olhem! Não vêem ali sinais de terra cavada?

Se não estou em erro, o Pescoço-Riscado, mais os amigos, devem ter aberto luras, como os coelhos, para poderem passar por baixo dos arames sem correr perigo.

- E ninguém os via? - perguntou João.

- Deste lado não. Quem poderia imaginar que houvesse alguém a espreitar cá de cima, num declive destes?

- E ninguém sabia do túnel que ligava o castelo a este lado do monte! - volveu João. - Como o teria ele descoberto?

- Deve ter arranjado uma planta antiga. O velhote que foi o último dono do castelo era meio maluco, como vocês sabem certamente, pelas madurezas que ainda por lá viram. Fartou-se de construir quartos secretos, cheios de manigâncias, e vivia num mundo à parte, em pleno romantismo. O Pescoço-Riscado achou o quarto secreto, o que nós conhecemos, de uma extrema utilidade, e quanto ao túnel, então, era uma dádiva dos deuses! Uma passagem que o conduzia direitinho ao local onde se guardava o segredo que ele estava encarregado de roubar!

- É um homem valente! - não pôde Filipe deixar de comentar.

- É, sim, como quase todos os espiões. Mas é muito antipático, um tipo muito pouco agradável, cordialmente detestado em toda a parte, até mesmo no seu próprio país. É capaz de trair seja quem for, incluindo o seu melhor amigo. Receio bem que se tenha safado mais uma vez! Só temos de agradecer aos deuses que não tenha podido levar os planos, os que deixou no subterrâneo...

- Desse modo, o dano que nos possa causar não será muito grande, pois não? -perguntou Filipe.

- Não, a menos que tenha gravado tudo na memória. Como tem uma memória espantosa, evidentemente, ainda nos pode fazer muito mal, mesmo sem os planos.

- Oxalá que não! Que raiva não o termos filado! A ele e ao Sobrolho. Não gosto nada deles, nem de um, nem de outro!

- Os três que apanhámos não passam de uns vulgares guarda-costas, capazes de tudo por amor ao vil metal.

Deixei escapar os cabecilhas e não me consolo. O que eu merecia era que me dessem com a cabeça contra uma parede! É bem feito: tive-os nas mãos, era minha obrigação prever que o Riscado havia de escaqueirar a lâmpada!

Os três amigos gozaram o descanso e o ar fresco, até que Jaime se levantou a fim de observar a encosta. Era impossível descer sem se arriscarem a despedaçar-se no arame farpado, e ainda menos lhes sorria a ideia de terem de enfiar pelas luras abertas pelo Pescoço-Riscado.

Jaime viu, lá em baixo, um vulto de homem a andar de um lado para o outro e chamou. O homem levantou a cabeça, admirado de ver tanta gente de pé, no alto da encosta, e gritou:

- Quem são vocês?

- Gente amiga! - respondeu Jaime, berrando com toda a força. - Está aí o coronel Yarmouth? Eu queria falar com ele, mas não posso passar, por causa dos arames!

O João por acaso olhou para um silvado e viu uma magnífica máquina fotográfica semioculta entre as folhas.

- Olhem! Olhem como eles arranjavam as tais fotografias! Era aqui! E que máquina! É do melhor que tenho visto. Tem uma protecção especial, à prova de água, e daí o ter resistido à chuva. Eu é que fiquei sem máquina, é mais que certo! Era aquela que o senhor me tinha dado, Jaime. Deixei-a no meio dos tojos; infelizmente essa não tinha protecção de qualquer espécie.

- Que pena! Mas deixa lá! Talvez eu consiga que te dêem esta, João, como paga de me teres deixado tomar parte na vossa aventura!

Os olhos de João faiscaram! Com uma máquina daquelas, o que não faria ele? Devia ser uma das melhores máquinas do mundo!

Lá em baixo, na herdade, nos terrenos das traseiras, apareceu outro homem. Contra a expectativa de João, que esperava ver o coronel fardado, estava à paisana.

- Eh! Yarmouth! - gritou Jaime. - Sou eu! Não me conhece?

Uma voz surpresa flutuou no ar:

- Diabos me levem! Por esta é que eu não esperava! Espere aí um bocado, vou mandar dois homens para lhe ensinarem o caminho.

Não tardou que lhes abrissem caminho cortando os arames, que foram imediatamente arranjados outra vez, e lá desceram aos trambulhões pela encosta, escorrega aqui, agarra acolá, até chegarem à herdade.

O coronel e Jaime entraram em casa, para conversarem à vontade, e os dois rapazes esperaram-nos cá fora, pacientemente. Deitaram-se no chão, atapetado de urze, e começaram a bocejar. Daí a pouco dormiam ambos a sono solto!

Passado um bocado, o coronel e Jaime apareceram à porta da casa a dar umas tantas ordens. Três homens levaram os prisioneiros para uma dependência cheia de luz, e muito limpa, que devia ter sido a leitaria da herdade, e fecharam-nos aí. Jaime mostrou-se satisfeito.

- Destes já estamos livres! Pronto, agora vamos para casa. Mas não vejo outro caminho de regresso senão a estrada, que teremos de ir apanhar ali ao pé do monte.

Os rapazes, já acordados, gemeram com a perspectiva de mais caminhadas. Não havia outro remédio, porém!

- E os mapas, ou lá o que eram, que ficaram no subterrâneo? Que se lhes faz? - perguntou João.

- Isso é o menos. Quando o túnel estiver enxuto, um dos homens do coronel vai lá buscá-los. Quanto aos presos, ainda hoje vão, sob escolta, para onde aguardem julgamento.

- Portanto a aventura terminou, não é verdade? - volveu Filipe. - Acabou-se.

- Não, acabada de vez ainda não está! Temos de organizar uma batida pela região a ver se se encontram vestígios do Riscado e do cúmplice. O Riscado é capaz de rapar a sua linda barba, apesar de não ganhar muito com isso, porque fica com a cicatriz à mostra. E essa, só se a pintar! Temos de seguir-lhe outra vez a pista, até que o cacemos. O fim ideal da aventura seria esse, não vos parece?

- E o seu carro, Jaime? É preciso ir buscá-lo onde o deixou, ao pé da barreira! - lembrou João de repente.

- É verdade! Ó diabo, é capaz de ter sido levado pela cheia, ou de estar enterrado na lama!

- O que eu mais quero, nesta altura, é saber o que aconteceu às raparigas e se conseguiram chegar a casa antes da trovoada. Tenho a impressão de não as ver há séculos! - foi dizendo o Filipe.

Um dos homens da herdade guiou-os pela encosta até à estrada, mostrando-se interessadíssimo com o relato da aventura, embora lhe contassem apenas que tinham sido apanhados no castelo pela tempestade e descoberto o corredor subterrâneo. Acharam preferível não falar no resto.

O Botão corria alegremente atrás de Filipe, feliz por ver-se ao ar livre. Também ele tomara parte nos acontecimentos, e neles colaborara mostrando a Sara como se entrava no castelo sem fazer uso de portas, cancelas ou frestas!

Chegaram à estrada, no sopé do monte, e meteram depois pelo atalho que ia dar à vivenda. João deu um grito e pôs-se a apontar:

- Lá está a casa! Eh, raparigas! Cá estamos! Onde param vocês?

 

         O FIM DA AVENTURA NO CASTELO

Da casa partiu um guincho agudo. Era a Maria da Luz, claro. Saiu como um raio e atirou-se ao João com tal violência que o ia deitando a terra.

- João! Até que enfim! E Filipe! Onde estiveste tu metido? Pregaste-nos um bom susto!

A Dina e a Sara apareceram a correr, também, com exclamações de alegria.

- Vocês safaram-se da tempestade? Estivemos tão aflitas por vossa causa! Sara foi ao monte e diz que o castelo abateu e que vem a cair por ali abaixo!

- E vocês safaram-se da tempestade? - perguntou João, à medida que iam entrando em casa. - Nós é que estávamos aflitos por vossa causa, a pensar que a trovoada vos apanhava no monte. Chegaram cá antes de ela estalar?

Foi Dina quem respondeu:

- Ainda apanhámos chuva e ouvimos trovões ao longe, mas pouco mais. Chegámos a casa feitas numa sopa, porque Sara não nos deixava descansar nem um minuto, nem procurar abrigo, sempre a dizer que ia haver mais desabamentos de terras. E tinha toda a razão!

- Heróica Sara! Trouxe-vos para aqui na boa altura! Vocês nem fazem uma pálida ideia do que se passou lá pelo castelo!

João começou a contar-lhes, e as raparigas esbugalhavam os olhos, horrorizadas. Que noite! João interrompeu-se e olhou à volta:

- Onde pára a Didi? Sempre julguei que estivesse à minha espera!

- A Didi não pára de voar, à tua procura. Vai e volta, sempre de um lado para o outro. Deve estar a chegar! - respondeu Sara.

Ainda não tinham passado dez minutos e lá voltava a Didi, de asas abertas, aos gritos de alegria.

«Quantas vezes, quantas vezes, quantas vezes, bolorento, bafiento, poeirento, João, João, João».

Empoleirou-se no ombro do dono, a dar-lhe bicadinhas ternas na orelha. Filipe levou a mão à esquerda, que ainda estava inchada.

«Não penses vir para o meu ombro, nem debicar-me a orelha, a mim! Não está em estado de suportar "carícias"!»

As raparigas foram preparar o pequeno almoço, falando pelos cotovelos, radiantes por terem os rapazes e o Jaime novamente ao pé delas. Jaime mandou os seus três homens pela estrada acima, à procura do carro. Quando acabaram de almoçar, sugeriu:

- E agora, rapazes! Se fôssemos dormir? Estou estafado!

João já estava meio a dormir e o Filipe abria a boca sem descanso. Foram ambos para o quarto, enquanto Jaime se acomodava num sofá, na cozinha. As raparigas saíram para o jardim, a continuar a conversa.

Tiveram de estender os impermeáveis em cima da relva para se poderem sentar, tão molhado ainda estava tudo. O dia apresentava-se lindíssimo, sem uma nuvem, e o ar leve e fresco. A trovoada limpara a atmosfera.

Ficaram para ali a preguiçar, a dar à língua, com a presença da Didi de vez em quando. O Botão fora deitar-se no patamar da escada, para ficar perto do dono. Mas a Didi não tinha sono, pelo que não quis ir com o João, contentando-se com deitar umas espreitadelas à janela do quarto dos rapazes para se certificar de que o seu amigo estava lá dentro.

A Dina sentou-se e pôs-se a olhar.

- Vem aí alguém!

- São os homens de Jaime - respondeu Maria da Luz cheia de preguiça.

Os homens avançaram pelo jardim, de semblantes fechados, e um deles perguntou:

- Onde está o patrão? Precisamos de falar-lhe.

- Está a dormir, não o acordem já.

- Temos muita pena, minha menina, mas é preciso acordá-lo, é um assunto importante.

- Que foi? - perguntou Maria da Luz. - Encontraram o carro?

- Encontrámos, sim. Mas é com o patrão que queremos falar.

- Está bem, ele está na cozinha.

Os homens foram à cozinha e acordaram o chefe; as raparigas ouviram-nos falar muito depressa, num tom preocupado. Jaime veio até ao jardim e elas interrogaram-no:

- Que foi, Jaime? Encontraram o carro todo espatifado?

- O carro apareceu, sim, e mais alguma coisa além dele - informou Jaime lentamente.

- O quê? - perguntaram as três em coro.

- Parece que o Riscado e o amigo teriam descido a barreira e deram com o meu carro, que trataram de aproveitar. Meteram-se nele e tentaram dar a volta para descer a estrada; devem ter sido apanhados nesse momento pelo dilúvio, e por outro desabamento!

- Mo... Morreram?

- Penso que sim, mas ainda não se sabe. A terra, ao desmoronar-se, arrastou o carro, que foi cair num barranco, de rodas para o ar. Foi aí que estes homens o encontraram, e ainda lá estão dentro o Riscado e o sócio.

- E não podem sair? - perguntou Dina, bastante pálida.

- As portas ficaram esmagadas. Ouçam, vocês arranjam-me aí uma corda de estopa, ou um arame grosso, em suma, uma coisa forte, que não parta? Para ver se podemos içar o carro e lhe tiramos a capota, para arrancar de lá os tipos.

Dina foi ao alpendre e trouxe uma corda entrançada, que entregou a Jaime sem dizer palavra. Nenhuma delas pediu para o acompanhar, muito impressionadas com um fim tão trágico, mesmo sendo as vítimas, como era o caso, gente tão má.

Puseram-se à espera, cheias de impaciência, que os rapazes acordassem. Quando eles desceram, a bocejar e a clamar com fome, apressaram-se a contar-lhes a novidade. João exclamou:

- Caramba! E logo darem com o carro, devem ter ficado radiantes! O pavor que devem ter tido quando a terra começou a ceder e a arrastá-los!

Jaime só voltou passadas algumas horas. Voaram todos ao seu encontro, e ele recebeu-os a sorrir:

- Nenhum deles está morto! O Riscado está em estado de choque, bastante ferido; o outro tipo partiu uma perna e estava inconsciente, mas já voltou a si.

- O que quer dizer que o senhor acabou por prendê-los a ambos, no fim de contas! - exultou Filipe. - Bom trabalho, Jaime!

- E o carro? - perguntou Dina.

- Quanto a mim, não tem conserto. Mas isso pouco importa. Quando eu disser ao chefe que apanhei o Riscado e o sócio, estou convencido de que me darão um carro novo! Isto para mim foi a sorte grande, lembrem-se de que eu nunca teria dado em cheio com a tramóia se não fossem vocês, amigos!

- E nós? Estávamos metidos num encanto de situação se o senhor não tivesse aparecido, Jaime! - lembrou o João.- Que dirá a tia Lia quando voltar e souber desta história toda?

Filipe fungou um risinho:

- Ora! Vai dizer que não pode virar costas sem que nós façamos logo tolices! Onde estão os sujeitos, ó Jaime?

- Mandei o Raul à aldeia buscar socorros, em vez de o deixar voltar ao carro comigo. Apareceram-lá duas macas e um médico, que por acaso estava na aldeia, e a estas horas já vão a caminho do hospital. Só estou à espera que voltem a si, ambos, para lhes plantar ao lado de cada cama dois polícias de um tamanho respeitável!

- Ai, Jaime, que aventura! - exclamou Dina. - Nunca me passou pela cabeça, quando aqui chegámos, que havíamos de cair numa destas, assim tão depressa!

Oxalá que o resto das férias seja mais sossegado, que já tenho aventuras que cheguem para um ano.

- Eu vou esticar as pernas - declarou João. - E se nós déssemos uma volta pelo monte, Jaime, para ver o que aconteceu ao castelo?

- Boa ideia!

Meteram pela estrada, mas não puderam segui-la até onde costumavam, porque o desabamento das terras vinha até muito mais abaixo, e a encosta estava cheia de pedregulhos, árvores desenraizadas, montes de lama e torrentes de água. O aspecto da região era desolador, na verdade!

- Que horror! - disse Maria da Luz, que depois olhou para o castelo, de aspecto carrancudo, um pouco mais acima. - O castelo parece diferente! O que terá havido por lá? Vamos ver?

Subiram mais um bocado, até apanharem o carreirito de coelhos que já conheciam tão bem. Quando chegaram perto do castelo, pasmaram. Maria da Luz, sem poder crer no que via, ia dizendo:

- Duas das torres desapareceram, e grande parte da muralha também! Já pode entrar-se no terreiro, basta saltar por cima das pedras! Que barulho infernal devem ter feito quando desabaram!

- Olha para o castelo! A parte central abateu! Parece agora uma casca vazia! - observou João, de olhos esgazeados.

Era uma verdadeira ruína o que tinham na frente. Filipe atentou melhor.

- O corpo principal caiu todo para dentro do salão de entrada. Está a ver-se porque a alavanca não se mexia! Deve ter algumas toneladas de pedra por cima!

Jaime tinha um ar grave ao ver como tinham escapado à morte por uma unha negra. Bastava que no momento estivessem em qualquer outro ponto do castelo, ou no terreiro, para que o desmoronar do velho edifício os tivesse esmagado, ou sepultado vivos! Só por se terem abrigado no subterrâneo estavam agora vivos!

- Adeus, máquinas! Adeus, mantas! - acenou João.

- Eu substituo-vos tudo isso - prometeu Jaime; desde que apanhara o Pescoço-Riscado sentia-se capaz de oferecer o mundo a toda a gente! - E hei-de dar um bom presente a cada um de vocês, por me terem deixado entrar nesta aventura!

- A mim também? - disse logo a Sara, que simpatizava com o Jaime.

- A ti também, pois claro! De que gostas tu mais?

- Eu queria três pares de sapatos, todos para mim! - O ar da Sara era tão solene que todos desataram a rir. Estavam fartos de saber que ela não calçaria qualquer deles, que só os queria para os guardar e os contemplar como a um tesouro. Era muito cómica, a Sara!

- Vamos embora - rogou Maria da Luz. - Estou farta de olhar para este montão de ruínas.

- Também eu! - disse Dina. - Mas é bem melhor que isto tenha acabado num montão de ruínas, aberto a quem queira vir cá vê-las, do que tivesse continuado a ser um castelo fechado, pertencente a velhos maus e malucos, ou a espiões como o Riscado. Gosto muito mais do castelo como está agora! E dá-me prazer pensar que os quartos bolorentos estão todos soterrados! Eram medonhos!

«Bolorentos, bafientos, poeirentos!», repetiu logo a Didi, em cantilena. «Lá se vai tudo por bolorentos, bafientos, poeirentos!»

«Idiota!», riu-se o João. «Hás-de ter sempre a última palavra, não é, Didi?»

E o grupo começou a descer o monte, todo batido de sol, deixando lá para trás o velho castelo arruinado, de aspecto tristt e sombrio, com o buraco do telhado aberto à chuva e ao vento e as suas orgulhosas torres deitadas por terra.

- A aventura no castelo! - disse solenemente o João. - Tinhas razão, Filipe, era mesmo a aventura no castelo!

 

 

                                                                                Enid Blyton  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

           Voltar à Página do Autor