Apertou duas teclas para telefonar para o marido. Fugindo de um beijo, correndo para se proteger sob o manto de uma mulher casada de boa reputação, em busca de alguma
solidez. Fez a chamada sem pensar, por puro hábito, quase sem ter consciência da situação atual entre ela e Jack. Quando ouviu seu alô duvidoso, a acústica lhe disse
que ele se encontrava na cozinha. O rádio ligado, talvez Poulenc. Nas manhãs de sábado, embora acordassem cedo, sempre faziam, ou costumavam fazer, o desjejum sem
pressa, com vários jornais em cima da mesa, a rádio Três tocando baixinho, café e o pain aux raisins comprado na Lamb’s da Conduit Street esquentado no forninho.
Ele estaria com o robe de seda estampado com formas curvas. Barba por fazer, cabelo desgrenhado.
Num tom cuidadosamente neutro, Jack perguntou se estava tudo bem com ela. Quando Fiona respondeu que sim, ficou surpresa ao ver como tinha soado normal. Começou
a improvisar sem dificuldade, bem no instante em que Pauling, com um suspiro de satisfação, se recordou de um atalho e escapou do tráfego. Perfeitamente plausível,
em se tratando de rotina doméstica, lembrar Jack de que ela chegaria no fim do mês, e também natural, ou costumava ser, sugerir que na noite em que ela voltasse
eles deviam jantar fora. Um restaurante próximo de que gostavam costumava ter todos os lugares reservados com antecedência. Talvez ele pudesse fazer uma reserva
agora. Ele achou uma boa ideia. Ela o ouviu suprimir a surpresa na voz, manobrando com cuidado entre a cordialidade e a frieza. Perguntou de novo se ela estava bem.
Conhecia Fiona bem demais, e obviamente ela não parecia normal. Com uma ênfase maior, ela disse que estava ótima. Trocaram algumas palavras sobre assuntos de trabalho.
A chamada terminou com um adeus de Jack que soava quase como uma pergunta.
Mas tinha funcionado. Ela havia se livrado dos devaneios paranoicos para cair na realidade de um compromisso, de uma data, de um relacionamento melhorado. Sentiu-se
mais bem defendida e no todo mais sensata. Caso tivesse havido alguma queixa, ela já teria tomado conhecimento àquela altura. Tinha sido bom telefonar e dar continuidade
àquele momento indefinível no café da manhã. Útil se lembrar de que o mundo nunca era como ela o imaginava em momentos de ansiedade. Uma hora depois, quando o carro
começou a se arrastar pela congestionada A69 para entrar em Carlisle, ela estava enfronhada em documentos judiciais.
E foi assim que duas semanas depois, encerrada a temporada itinerante e distribuída a Justiça em quatro cidades do Norte, ela se encontrava diante do marido num
canto tranquilo de um restaurante na rua Clerkenwell. Entre os dois uma garrafa de vinho, bebido cautelosamente. Não devia haver nenhuma onda súbita de intimidade.
Mantiveram-se distantes do assunto que poderia destruí-los. Ele se dirigiu a ela de forma delicada e canhestra, como se Fiona fosse um tipo incomum de bomba capaz
de estourar no meio de qualquer frase. Ela perguntou a respeito do trabalho dele, o livro sobre Virgílio. Uma apresentação e uma seleção, um manual para escolas
e universidades que, ele comovedoramente acreditava, o faria ganhar um dinheirão. Nervosa, ela fez uma pergunta após a outra, consciente de que estava se comportando
como uma entrevistadora. Esperava observá-lo como se o fizesse pela primeira vez, captar o que havia de estranho nele como acontecera muitos anos antes ao se apaixonar
por ele. Não era fácil. Sua voz, seus traços eram tão familiares como os dela próprios. Seu rosto tinha uma expressão áspera, aflita. Atraente, é claro, mas não
para ela naquele instante. Fiona esperava que a mão dele, posta sobre a mesa perto do copo, não estivesse prestes a pegar a sua.
Lá para o fim da refeição, quando haviam esgotado os tópicos mais seguros, houve um silêncio ameaçador. Apetites saciados, as sobremesas e metade do vinho permaneciam
intocados. A recriminação mútua e não manifestada os perturbava. Na mente dela, ainda a aventura despudorada de Jack; na dele, ela supunha, o senso exagerado de
ofensa de Fiona. Num tom forçado, ele começou a relatar a palestra sobre geologia a que comparecera na noite passada. O palestrante havia descrito como a sequência
de camadas rochosas sedimentares pode ser lida como um livro que conta a história da Terra, permitindo-se algumas especulações no final. Cem milhões de anos no futuro,
quando a maior parte dos oceanos tiver afundado na crosta terrestre e não houver suficiente dióxido de carbono na atmosfera para sustentar as plantas, a superfície
do planeta tendo se transformado num deserto rochoso e sem vida, que provas teria de nossa civilização um geólogo que viesse do espaço? Algumas dezenas de centímetros
abaixo da superfície, haveria uma grossa linha negra que nos separaria de tudo o que aconteceu antes. Condensadas nessa camada de fuligem de quinze centímetros,
estariam nossas cidades, veículos, estradas, pontes, armas. Estariam também todos os tipos de substâncias químicas não encontradas no registro geológico anterior.
O concreto e os tijolos se desintegrariam tão facilmente quanto o calcário, nossos aços mais resistentes se transmudariam em manchas de ferro pulverizado. Um exame
microscópico mais cuidadoso poderia revelar uma preponderância de pólen das monótonas planícies cobertas de gramíneas que criamos para alimentar rebanhos gigantescos.
Com sorte, o geólogo poderia encontrar ossos fossilizados, até mesmo os nossos. Mas os animais, incluindo aí todos os peixes, mal corresponderiam a um décimo do
peso de todos os carneiros e vacas. O visitante espacial terminaria concluindo que estava observando o começo de uma extinção em massa na qual a variedade da vida
tinha começado a se estreitar.
Jack vinha falando havia cinco minutos. Estava oprimindo-a com o peso daquele tempo sem sentido. O deserto inimaginável de anos e o fim inevitável o animavam. Mas
não a ela. Sentiu-se invadida por um sentimento de desolação que pesava sobre seus ombros e descia até as pernas. Pegou o guardanapo do colo e o depositou sobre
a mesa num gesto de rendição, levantando-se a seguir.
Ele estava dizendo, como se aquilo o deixasse perplexo: “É assim que estamos assinando nosso nome no registro geológico”.
Ela disse: “Acho que está na hora de pedirmos a conta”, e caminhou rapidamente através do restaurante até o toalete, onde se postou na frente do espelho, olhos fechados,
pente na mão no caso de alguém entrar, respirando fundo e devagar algumas vezes.
O degelo não ocorreu de modo rápido nem linear. De início foi um alívio não ter de se evitarem conscientemente no apartamento, não competirem com toda frieza para
saber quem era mais cortês naquela forma sufocante que tinham adotado. Passaram a fazer as refeições juntos, começaram a aceitar convites para jantar com amigos,
conversaram — principalmente sobre assuntos de trabalho. Mas ele ainda dormia no quarto de hóspedes e, quando uma sobrinha de dezenove anos foi passar uns dias lá,
ele voltou a se instalar no sofá da sala de visitas.
Fim de outubro. Os relógios foram atrasados, marcando a última etapa de um ano exausto, e chegou a escuridão. Durante algumas poucas semanas, o clima de estagnação
voltou a imperar entre ela e Jack, quase tão sufocante como antes. Mas ela estava ocupada e cansada demais à noite para iniciar o tipo de conversa exigente que poderia
levá-los a um novo estágio. Além da carga normal de casos no Strand, ela estava presidindo um comitê encarregado de estudar novos procedimentos nos tribunais e participava
de outro que devia responder a um relatório do governo a respeito da reforma da legislação sobre a família. Se lhe sobrava alguma energia depois do jantar, ela se
exercitava sozinha ao piano, preparando-se para os ensaios com Mark Berner. Jack também estava ocupado, substituindo um colega enfermo na universidade e, em casa,
absorto na redação da longa introdução aos poemas selecionados de Virgílio.
O advogado incumbido de organizar as festas de Natal no Great Hall informara que eles haviam sido escolhidos para abrir o concerto. Tocariam no máximo por vinte
minutos, deixando uma margem de outros cinco minutos para o bis. Tempo suficiente para a seleção que haviam feito das canções do ciclo de Berlioz Les nuits d’été,
além de uma de Mahler, “Estou Perdido para o Mundo”, que fazia parte do Rückert-Lieder. O coral da Gray’s Inn cantaria algumas peças de Monteverdi e Bach, seguindo-se
um quarteto de cordas que interpretaria Haydn. Uma significativa minoria dos membros do Judiciário que moravam na Gray’s Inn passava muitas noites por ano ouvindo
música de câmara com grande concentração, as testas franzidas, no Wigmore Hall de Marylebone. Dominavam o repertório. Dizia-se que reconheciam uma nota errada antes
mesmo que ela fosse tocada. No concerto natalino, embora se servisse vinho antes e a atmosfera geral, ao menos na aparência, fosse amistosa, os padrões eram punitivamente
elevados para uma exibição de amadores. Às vezes Fiona acordava antes de o sol raiar e se perguntava se dessa vez estava em condições de enfrentar o desafio, se
havia algum modo de pular fora. Achava que lhe faltava a concentração necessária, e o Mahler era difícil. Tão languidamente lento e bem equilibrado. Ela ficaria
exposta. E o desejo germânico de não ser notada a tornava desconfortável. Mark, porém, estava ansioso para se exibir. Dois anos antes seu casamento havia fracassado.
Agora, segundo Sherwood Runcie, havia uma mulher em sua vida. Fiona desconfiava que ela estaria na plateia e Mark desejava ardentemente impressioná-la. Tinha até
pedido a Fiona que decorasse as canções, mas isso, ela lhe disse, estava além de sua capacidade. Apenas as três ou quatro pequenas peças para o bis estavam gravadas
em sua memória.
No final de outubro, em meio à correspondência entregue pela manhã no tribunal, ela viu o envelope azul que lhe era tão familiar. Pauling se encontrava no gabinete
naquela hora. Para ocultar seus sentimentos, uma mescla de excitação e vago temor, ela levou a carta para perto da janela e fingiu que observava alguma coisa lá
embaixo no pátio. Depois que Pauling saiu, tirou do envelope uma única página, dobrada em quatro e rasgada embaixo, na qual constava um poema inacabado. O título
em letras maiúsculas e sublinhado duas vezes: “A BALADA DE ADAM HENRY”. Apesar da caligrafia miúda, o longo poema ocupava a página inteira. Nenhuma carta o acompanhava.
Ela deu uma olhada no primeiro verso, não conseguiu se interessar, pôs a página de lado. Tinha um caso difícil dentro de meia hora, uma série de solicitações e contrassolicitações
conjugais que sem dúvida absorveria duas semanas de sua vida. Cada parte tencionava permanecer extremamente rica à custa da outra. Não era um momento oportuno para
ler poesia.
Dois dias se passaram antes que voltasse a abrir o envelope. Eram dez da noite. Jack estava assistindo a outra palestra sobre as camadas sedimentares, ou assim ele
disse, e ela preferiu acreditar. Instalou-se na chaise longue e abriu a página no colo. Pareciam versos medíocres, desses vistos em cartões de aniversário. Fiona
então se forçou para adotar um estado de espírito mais acolhedor. Afinal de contas, tratava-se de uma balada e ele só tinha dezoito anos.
A BALADA DE ADAM HENRY
Ergui minha cruz de madeira e a arrastei junto ao rio.
Eu era jovem e tolo, e perturbado pela ideia
De que a penitência era uma asneira e os encargos coisa de idiotas.
Mas aos domingos me diziam para seguir todas as regras.
As farpas feriam meu ombro, aquela cruz pesava mais que chumbo,
Minha vida de devoto era estreita, e quase morri.
O rio corria alegre e sorridente, a luz do sol dançando a seu redor,
Mas eu devia seguir meu caminho, olhos postos no chão.
Então um peixe pulou da água com um arco-íris nas escamas.
Pérolas de água saltitavam formando colares prateados.
“Jogue a cruz na água se você quer se libertar!”
Por isso, à sombra da árvore de Judas, afoguei no rio minha carga.
Num êxtase maravilhoso me ajoelhei na margem do rio
Enquanto, apoiada em meu ombro, ela me dava o beijo mais doce.
Mas mergulhou rumo ao fundo gélido onde nunca será encontrada,
E meus olhos se encheram de lágrimas até que ouvi o som das trombetas.
E Jesus se pôs de pé sobre as águas e me disse:
“Aquele peixe era a voz de Satã, e você deve pagar o preço.
O beijo dela era o beijo de Judas e traiu meu nome.
Morte àquele
Morte àquele o quê? As últimas palavras do verso final estavam perdidas em meio a um novelo de linhas entrecruzadas que davam voltas em torno de reconsiderações,
palavras cortadas e recolocadas, variantes com pontos de interrogação. Em vez de tentar decifrar aquela mixórdia, ela releu o poema e depois se reclinou, os olhos
fechados. Ficou sentida por Adam estar com raiva dela, pintando-a como Satã, e começou a compor em devaneio uma carta para ele, sabendo que nunca a enviaria pelo
correio ou mesmo a escreveria. Seu impulso era aquietá-lo ao mesmo tempo que se justificava. Recorreu a frases prontas. Tive de mandá-lo embora, Era o que melhor
servia a seus interesses, Você tem toda uma vida jovem pela frente. Depois, com maior coerência: Mesmo se tivéssemos outro quarto, você não poderia ser nosso inquilino.
Uma coisa dessas não é aceitável para uma juíza. Acrescentou: Adam, não sou Judas. Talvez uma velha truta... Essa última frase para dar um toque de leveza à sua
firme intenção de se autojustificar.
O “beijo mais doce” dela tinha sido irresponsável, e Fiona não escapara ilesa dele, não no que dizia respeito a Adam. Mas era um gesto de pura bondade não lhe responder.
Ele voltaria a escrever, apareceria à sua porta, ela precisaria enxotá-lo de novo. Dobrou a página outra vez e a recolocou no envelope, levando-o para o quarto e
guardando na gaveta da mesinha de cabeceira. Em breve ele superaria tudo. Também devia ter sido tragado de volta para a religião, ou então Judas, Jesus Cristo e
tudo o mais eram apenas recursos poéticos usados para dramatizar o pavoroso comportamento dela ao beijá-lo e depois mandá-lo embora num táxi. Seja lá o que fosse,
Adam Henry provavelmente teria grande sucesso nos exames de recuperação e iria para uma boa universidade. Ela esmaeceria nos pensamentos dele, se tornaria uma figura
menor em sua educação sentimental.
Eles estavam num pequeno cômodo sem mobília no porão do prédio onde Mark Berner morava. Ninguém se lembrava como um piano de armário Grotrian-Steinweg tinha sido
posto lá, ninguém fora buscá-lo em vinte e cinco anos, ninguém tencionava mudá-lo de lugar. Havia arranhões e marcas de cigarros no tampo, mas o mecanismo funcionava
bem e o som era aveludado. Do lado de fora, a temperatura estava abaixo de zero, com os primeiros centímetros de neve da estação dando um toque pitoresco à Gray’s
Inn Square. Ali, que chamavam de sala de ensaios, não havia aquecedores, mas certos canos, dos muitos que corriam ao longo de uma parede e datavam dos primórdios
da era vitoriana, emitiam um calor débil porém constante que mantinha o instrumento afinado. O assoalho era coberto por um tecido com estrias que lembrava veludo,
instalado na década de 1960; ele tinha sido colado ao cimento e agora, além de exibir muitas manchas de café, se erguia aqui e ali rebeldemente, provocando tropeções.
A iluminação provinha de uma resplandecente lâmpada de 150 watts atarraxada no teto baixo. Há muito Mark falava que ia instalar uma luminária. Além de uma estante
para partituras e do banco do piano, a única mobília adicional era uma frágil cadeira de cozinha na qual eram empilhados casacos e cachecóis.
Fiona estava sentada diante do teclado, as mãos entrelaçadas e postas sobre o colo para se aquecerem, estudando a partitura, Les nuits d’été num arranjo para piano
e tenor. Em algum canto de sua sala de visitas estaria o velho disco de vinil de Kiri Te Kanawa. Não o via fazia anos. E não os ajudaria agora. Precisavam urgentemente
trabalhar na peça porque até então só haviam feito dois ensaios. Mas Mark estivera no tribunal no dia anterior e continuava irritado, precisando dizer a ela a razão.
E o que ele pensava fazer no futuro, pois estava deixando a profissão. Já bastava. Era triste demais, idiotice demais, pondo a perder muitas vidas cheias de esperança.
Uma velha e vã ameaça, mas, sentada no banco e tiritando, ela se obrigou a ouvi-lo. Mesmo assim, não podia deixar de olhar para a abertura, a “Villanelle”, os acordes
se repetindo suavemente, as colcheias pulsando em staccato, imaginando a doce melodia ou criando suas próprias versões do primeiro verso de Gautier: Quando chega
a nova estação, quando o frio se foi...
O caso de Berner tinha a ver com quatro homens ainda jovens brigando do lado de fora de um pub perto da Ponte da Torre com outros quatro com quem haviam se encontrado
por acaso. Os oito tinham bebido. Só os quatro primeiros foram presos e indiciados. O júri havia decidido que eles eram culpados de provocar ferimentos graves intencionalmente,
aceitando o argumento do promotor de que tinham agido em conjunto, devendo assim receber igual punição independentemente do que cada um fizera. Estavam todos no
mesmo barco. Depois do veredito, anunciado uma semana antes da sentença, o juiz em Southwark, Christopher Cranham, tinha advertido os quatro de que deveriam esperar
longas condenações à prisão. A essa altura, Mark Berner foi chamado pelos parentes aflitos de um dos quatro, Wayne Gallagher. Graças a uma cotização entre os membros
da família e amigos, complementada por uma inteligente campanha nas redes sociais, conseguiram juntar as vinte mil libras necessárias. Tinham a esperança de que
um advogado de renome poderia obter uma mitigação da pena antes de Gallagher ser sentenciado. Um aconselhamento jurídico perfeitamente correto oferecido pelo Estado
foi recusado, embora o advogado original tivesse sido mantido.
O cliente de Berner tinha vinte e três anos e era de Dalston, um homem jovem e algo sonhador cujo principal defeito era a passividade. E a incapacidade de comparecer
aos encontros marcados. Sua mãe era alcoólatra e viciada em drogas; o pai, com problemas semelhantes, praticamente esteve ausente na infância de Wayne, marcada pelo
caos e pelo abandono. Ele amava a mãe e, segundo insistia, ela o amava. Ela nunca havia batido nele. Passou a maior parte da adolescência tomando conta da mãe, faltando
muito à escola. Saiu de casa com dezesseis anos, trabalhou em empregos de baixo nível — numa fábrica de depenar frangos, como trabalhador braçal, num armazém, enfiando
anúncios em caixas de correio. Cinco anos antes, com dezoito, fora injustamente acusado de estupro por uma moça, ficou detido numa prisão para jovens durante algumas
semanas e depois ganhou uma tornozeleira eletrônica que o obrigou a não sair de casa à noite por seis meses. A troca de textos nos celulares oferecia boas provas
de que o sexo havia sido consensual, mas a polícia se recusou a investigar. Tinham metas a alcançar em casos de estupro. Gallagher era o tipo perfeito para eles.
No primeiro dia do julgamento, o testemunho arrasador da melhor amiga da acusadora fez com que o caso fosse encerrado. A suposta vítima pretendia receber uma compensação
financeira do programa de assistência do governo. Queria comprar um novo Xbox. Passara uma mensagem a uma amiga anunciando sua intenção. O promotor foi visto atirando
a peruca no chão e resmungando: “Garota imbecil”.
“Outra mancha em seu registro criminal”, disse Berner, “foi que, quando Gallagher tinha dezesseis anos, arrancou o capacete de um policial. Uma brincadeira idiota.
Mas lá ficou anotado como ‘agressão a policial’.”
A primavera chegou, minha adorada. É o mês abençoado dos que se amam.
O advogado estava próximo do cotovelo esquerdo de Fiona, em frente à estante de partituras. De jeans preto e justo, além de um suéter também preto de gola olímpica,
ele a fazia lembrar um beatnik antiquado. Impressão só modificada pelos óculos de leitura presos por um cordão em volta do pescoço.
“Sabe, quando Cranham disse àqueles rapazes o que eles deviam esperar, dois deles falaram que queriam começar a cumprir imediatamente sua pena de prisão. Mansos
como ovelhas, perus fazendo fila para entrar no forno. Portanto Wayne Gallagher teve de ir com eles embora quisesse passar mais uma semana com sua companheira. Ela
havia acabado de ter um bebê. Por isso eu precisei viajar para um lugar horroroso para lá da área leste de Londres a fim de vê-lo. Thamesmead.”
Fiona virou a página da partitura. “Já estive lá”, ela disse. “Há coisas piores.”
Venha pois para essa margem coberta de musgo, aqui falaremos do nosso maravilhoso amor...
“Pense bem”, Berner continuou. “Quatro garotões de Londres — Gallagher, Quinn, O’Rourke, Kelly. Terceira ou quarta geração de irlandeses. Sotaques londrinos. Todos
estudaram na mesma escola. Escola pública mas bem razoável. O policial viu o nome deles e decidiu que eram arruaceiros. Nem se deu ao trabalho de ir atrás dos outros
quatro. Por isso os promotores adotaram a tese da ação conjunta, que eles usam para quadrilhas. Coisa simples. Um belo trabalhinho daqueles preguiçosos.”
“Mark”, ela murmurou, “precisamos trabalhar.”
“Estou quase acabando.”
Como se viu depois, a briga ocorreu diante de duas câmeras de segurança.
“Os ângulos eram perfeitos. Deu para ver todo mundo. E em cores decentes. Extraordinariamente nítido. Martin Scorsese não faria melhor.”
Berner teve quatro dias para se inteirar do caso, passar e repassar o DVD e memorizar os movimentos rápidos de uma briga de oito minutos filmada de duas posições
distintas, guardando de cor cada passo de seu cliente e dos outros sete. Observou o primeiro contato dos homens na calçada larga entre uma loja fechada com tábuas
e um telefone público, uma troca verbal raivosa, alguns empurrões, peitos estufados, fanfarronice masculina, o grupo amorfo indo para lá e para cá, em certo momento
saindo da calçada e indo para o meio da rua. Uma mão pegou um antebraço, a palma de outra empurrou um ombro. Então Wayne Gallagher, que estava atrás de seus companheiros,
levantou um braço e, infelizmente para ele, desferiu o primeiro e logo depois o segundo golpe. Mas seu punho estava alto demais, ele se encontrava muito atrás, seus
movimentos foram dificultados pela lata de cerveja na outra mão. Seus golpes foram ineficazes, e o sujeito que ele atacou mal se deu conta do que tinha acontecido.
Os grupos então se dividiram desordenadamente em dois, e Gallagher, ainda longe do centro da briga, atirou sua lata de cerveja. Um arremesso feito sem levantar o
braço acima da cabeça, e o suposto alvo só precisou limpar umas gotas de cerveja da camisa. Mas, indo à forra, um dos outros quatro contornou o grupo e acertou um
soco poderoso na cara de Gallagher, cortando-lhe o lábio e pondo fim ao envolvimento dele. Gallagher ficou parado, tonto, e se afastou da briga e do campo de visão
das câmeras.
A briga continuou sem ele. Um de seus colegas de escola, O’Rourke, deu um passo à frente e derrubou no chão o sujeito que socara Gallagher. Tão logo ele caiu, outro
amigo, Kelly, fraturou sua mandíbula com um pontapé. Meio minuto depois, outro homem foi ao chão, dessa vez chutado por Quinn, que abriu um dos lados do rosto do
adversário. Quando a polícia chegou, o sujeito que havia dado um soco em Gallagher se levantou e saiu correndo, foi se esconder no apartamento de sua namorada. Ele
tinha medo de ser preso e perder o emprego.
Fiona olhou para o relógio. “Mark...”
“Estou quase acabando, Meritíssima. O importante é que meu cliente ficou lá esperando pela polícia. O rosto coberto de sangue. Tão culpado de agressão quanto vítima
de agressão etc. e tal. Ossos quebrados, portanto se trata de um caso de ferimento grave causado intencionalmente. A polícia indiciou os quatro com base em vários
artigos do código, mas no tribunal a promotoria enfatizou a iniciativa conjunta e o consequente agravamento da pena, que vai de cinco a nove anos. A história de
sempre. Meu cliente não participou da violência. Ia ser sentenciado por crimes que outros cometeram e pelos quais nem havia sido indiciado. Ele se declarou não culpado.
Devia ter admitido a participação em perturbação da ordem, mas eu não estava lá para aconselhá-lo. Um advogado público deveria ter mostrado ao júri a fotografia
que a polícia tirou de seu rosto ensanguentado. De qualquer modo, o sujeito com a mandíbula fraturada se recusou a depor como vítima. Depôs apenas como testemunha
de acusação. Disse ao juiz que não entendia todo aquele estardalhaço. Não havia precisado de tratamento, tinha viajado de férias para a Espanha dois dias depois
da briga. Nos dois primeiros dias foi obrigado a tomar vodca de canudinho. Fim da história — essas foram suas palavras, é o que consta na transcrição.”
Continuando a ouvir, ela abriu os dedos formando um acorde mas não o tocou. Voltemos para casa, carregados de morangos silvestres.
“Obviamente, eu não podia fazer nada sobre o veredito do júri. Falei durante setenta e cinco minutos, tentando separar Wayne do resto, tentando baixar o nível do
indiciamento para um patamar de três a cinco anos de prisão. Defendi também com muito vigor a tese de que o Judiciário lhe devia seis meses de liberdade devido à
falsa acusação de estupro. Com isso ele receberia uma punição mas obteria a suspensão da pena de detenção, que era tudo o que merecia por causa da sua imbecilidade.
Os outros três advogados falaram por dez minutos em defesa de seus clientes. Cranham fez um resumo. Filho da mãe preguiçoso. Graças a Deus aceitou baixar o nível
da condenação para aquele que eu havia pedido, mas não abandonou a tese da iniciativa comum e esqueceu de se manifestar a respeito da questão que eu havia suscitado,
sobre o tempo que o Judiciário devia ao meu cliente. Dois anos e meio para todos. Preguiçoso e cruel. Mas, na galeria, os parentes dos outros três choravam de alívio.
Estavam esperando um mínimo de cinco anos. Acho que fiz um favor a eles.”
Fiona disse: “O juiz se valeu da sua faculdade de reduzir o nível de indiciamento. Considere-se um homem de sorte”.
“Não é disso que se trata, Fiona.”
“Vamos começar. Temos menos de uma hora.”
“Escute até o fim. Esse é o meu discurso de pedido de demissão. Todos aqueles sujeitos tinham um emprego. Poxa vida, pagavam impostos! Meu cliente não feriu ninguém.
À luz de sua história pregressa, ele vinha contrariando todas as probabilidades e se revelando um pai que cuidava do filho. Kelly era técnico de um time de futebol
juvenil nas horas vagas. O’Rourke trabalhava nos fins de semana numa instituição de amparo a vítimas da fibrose cística. Não se tratou de um ataque a transeuntes
inocentes. Foi uma briga do lado de fora de um pub.”
Ela levantou os olhos da partitura. “Uma fratura de mandíbula?”
“Tudo bem. Uma briga. Entre adultos que sabiam o que faziam. De que serve encher as prisões com esse tipo de gente? Gallagher deu dois socos inofensivos e atirou
uma lata de cerveja vazia. Dois anos e meio. A grave condenação por crimes pelos quais nem foi indiciado. Está indo para uma prisão especial de jovens, você sabe,
dentro do presídio de Belmarsh. Já estive lá algumas vezes. O site diz que eles têm uma ‘academia de ensino’. Mentira das boas! Tive clientes que ficavam dentro
da cela vinte e três horas por dia. Os cursos são cancelados o tempo todo. Dizem que falta pessoal. Cranham, com seu cansaço fingido, querendo dar a impressão de
que é irritadiço demais para ouvir qualquer um. Não liga a mínima para o que pode acontecer com esses rapazes! Jogados naqueles infernos, se tornando amargos, aprendendo
a ser criminosos. Sabe qual foi o meu maior erro?”
“Qual?”
“Tentei caracterizar o caso como de bebedeira e ânimos exaltados. A violência foi consensual. ‘Se esses quatro senhores fossem membros do Bullingdon Club da universidade
de Oxford, não estariam aqui à sua frente, Meritíssimo.’ Com um pressentimento horrível, quando voltei para casa, pesquisei quem era Cranham no Who’s Who. Arrisque
um palpite.”
“Ah, meu Deus, Mark. Você está precisando de férias.”
“Abra os olhos, Fiona. É a merda da luta de classes.”
“E na Vara de Família é só champanhe e fraises des bois.”
Sem esperar mais, ela começou a tocar os dez compassos da introdução, os acordes suavemente insistentes. Do canto do olho, viu que ele punha os óculos de leitura.
E então a bonita voz de tenor, obedecendo à instrução dolce do compositor, se fez ouvir com doçura.
Quand viendra la saison nouvelle,
Quand auront disparu les froids...
Por cinquenta e cinco minutos não pensaram um só minuto no direito.
Em dezembro, no dia do concerto, ela chegou em casa, de volta do tribunal, às seis da tarde, apressada para tomar um banho e mudar de roupa. Ouviu Jack na cozinha
e lhe deu um oi a caminho do quarto. Curvado diante da geladeira, ele respondeu com um grunhido. Quarenta minutos depois ela apareceu no corredor num vestido de
seda preta e sapatos de salto alto de verniz preto, os quais lhe garantiriam uma boa alavanca para trabalhar os pedais. Usava no pescoço uma corrente simples de
prata. O perfume era Rive Gauche. Do hi-fi raramente usado da sala de visitas, veio o som de música para piano, um velho disco de Keith Jarrett, Facing You. A primeira
música. Ela parou do lado de fora do quarto para ouvir. Fazia muito tempo que não ouvia a melodia hesitante e só revelada em parte. Tinha se esquecido de como aos
poucos a melodia ganhava confiança e se tornava subitamente viva à medida que a mão esquerda mergulhava num boogie estranhamente modificado, cada vez mais potente,
impossível de ser freado como uma locomotiva a vapor em aceleração. Só um músico com formação clássica, como Jarrett, seria capaz de fazer com que cada mão fosse
tão independente da outra.
Jack estava lhe enviando uma mensagem, pois se tratava de um dos três ou quatro álbuns que serviram de fundo musical no início do relacionamento deles. Naqueles
dias, depois dos exames finais, depois da encenação de Antônio e Cleópatra só por mulheres, quando ele a persuadiu a passar uma noite, e mais tarde dezenas delas,
no quarto sob o beiral do telhado com a janelinha que dava para o leste. Quando ela entendeu que o êxtase sexual era mais que uma expressão exagerada. Quando, pela
primeira vez desde os seus sete anos, gritou de prazer. Ela havia caído de costas num espaço remoto e desabitado, e mais tarde, lado a lado na cama, os lençóis os
cobrindo só até a cintura como nas poses dos artistas de cinema depois de fazerem sexo, riam da barulheira que ela havia feito. Por sorte, não havia ninguém no apartamento
de baixo. Jack, com seu jeito controlado e cabeleira comprida, disse que era o maior elogio que ele já havia recebido. Ela lhe disse que não conseguia imaginar como
iria recobrar suas forças, na espinha, nos ossos, para fazer aquilo de novo. Se é que queria voltar viva. Mas o fez, e com frequência. Era jovem.
Nessa época, quando não estavam juntos na cama, ele procurava seduzi-la ainda mais através do jazz. Gostava de vê-la tocar, porém queria afastá-la à força da tirania
das notações rígidas e dos gênios havia muito falecidos. Punha para ela ouvir “Round Midnight”, de Thelonious Monk, e lhe deu a partitura. Não era difícil de interpretar.
Mas a versão dela, suave e sem acentos, soava como uma peça medíocre de Debussy. Tudo bem, Jack dizia. Os grandes mestres do jazz adoravam Debussy e aprendiam com
ele. Fiona ouvia outra vez, persistia, tocava o que se encontrava à sua frente, mas aquilo não era jazz. Não havia pulsação, nenhum sincopado, nenhuma liberdade,
os dedos sem vida própria seguindo obedientemente a marcação dos compassos e as notas tal como escritas. Por isso ela estava estudando direito, disse a seu amante.
Respeito pelas regras.
Fiona desistiu, mas de fato aprendeu a ouvir, e Jarrett foi o pianista que mais admirou. Levou Jack para ouvi-lo no Coliseu de Roma. A facilidade técnica, o jorro
espontâneo de invenção lírica tão copioso quanto o de Mozart, e lá estava ele depois de tantos anos ainda a fazendo parar e lembrar como outrora ela e Jack haviam
se divertido juntos. A música fora artisticamente escolhida.
Seguiu pelo corredor e parou de novo na entrada da sala de visitas. Ele estivera ocupado. Dois abajures com lâmpadas havia muito queimadas estavam por fim acesos.
Várias velas espalhadas pela sala. As cortinas cerradas ocultando a chuva fina da noite de inverno e, pela primeira vez em mais de um ano, um fogo decentemente preparado
na lareira, com lenha além do carvão. Jack estava a postos com uma garrafa de champanhe na mão. À sua frente, numa mesa baixa, um prato de presunto, azeitonas e
queijo.
Ele vestia um terno preto e camisa branca sem gravata. Ainda esbelto. Aproximou-se, entregou-lhe uma taça de champanhe flute e a encheu, servindo-se depois. Manteve
uma expressão séria enquanto erguiam as taças e as faziam tilintar.
“Não temos muito tempo.”
Ela entendeu que ele se referia ao fato de que, em breve, deveriam sair e ir caminhando até o Great Hall. Loucura beber antes de um concerto, mas ela não ligou.
Tomou um segundo gole substancial e o seguiu até perto do fogo. Ele lhe ofereceu o prato, Fiona pegou um pedaço de parmesão e cada qual ficou num lado da lareira,
apoiando-se na cornija. Como dois enfeites enormes, ela pensou.
Ele disse: “Quem sabe quanto tempo temos. Não muitos anos. Ou voltamos a viver outra vez, a realmente viver, ou entregamos os pontos e aceitamos que vai ser uma
droga daqui até o fim”.
O velho tema dele. Carpe diem. Ela ergueu a taça e disse em tom solene: “Ao nosso reviver”.
Viu a ligeira mudança no semblante de Jack. Alívio e, por trás disso, algo mais intenso.
Jack reencheu a taça dela. “Por falar nisso, seu vestido é fabuloso. Você está muito bonita.”
“Obrigada.”
Olharam-se no fundo dos olhos até não haver mais nada a fazer senão avançarem um na direção do outro e se beijarem. Beijaram-se de novo. A mão dele pousou de leve
na parte de baixo das costas de Fiona sem descer até a coxa, como ele costumava fazer. Estava avançando por etapas, e sua delicadeza a tocou. Se não estivessem sujeitos
a um grande dever musical e social, ela não tinha dúvida sobre o que se seguiria àquele momento de distensão. Mas a partitura estava atrás dela na chaise longue
e eles estavam obrigados a se manter vestidos da cabeça aos pés. Por isso trocaram um abraço apertado e se beijaram mais uma vez; voltando a se separar, pegaram
as taças, as tocaram em silêncio e beberam.
Ele tampou a garrafa de champanhe com um aparelhinho engenhoso, dotado de mola, que ela lhe dera fazia tempo no Natal. “Para depois”, Jack disse, e ambos riram.
Pegaram os casacos e saíram. Para se equilibrar nos saltos altos, Fiona caminhou apoiada no braço do marido e sob o guarda-chuva dele, mantido galantemente sobre
a cabeça dela.
“Você é que é a artista”, ele disse. “Você é quem está de vestido de seda.”
A azáfama de conversas e risadas anunciou a presença de uns cento e cinquenta espectadores, cada qual com um copo de vinho na mão. As cadeiras haviam sido dispostas,
porém ninguém se sentara ainda, o Fazioli e uma estante musical aguardando no palco. Eram todos moradores da região, membros do Judiciário, a maior parte da vida
profissional e social dela reunida num único lugar. Por mais de trinta anos ela havia cooperado ou se confrontado com dezenas de pessoas que via ali no salão. Vários
magistrados eminentes, muitos de fora, da Lincoln’s Inn, do Inner Temple ou do Middle Temple — o próprio lorde que presidia o Judiciário, alguns membros do Tribunal
de Recursos, dois juízes da Corte Suprema, o promotor geral, uns vinte advogados famosos. Os executivos da lei, que decidiam a sorte das pessoas e privavam cidadãos
de sua liberdade, tinham desenvolvido um senso de humor peculiar e paixão pelas conversas sobre assuntos profissionais. O barulho era ensurdecedor. Em poucos minutos
ela e Jack se perderam de vista. Alguém se aproximara e pedira a ajuda dele com alguma frase em latim. Ela foi atraída para um grupo que fofocava sobre um amigo
excêntrico do presidente da Vara Cível, a segunda maior autoridade judiciária do país. Ela nem precisava se mover de onde estava. Os amigos vinham abraçá-la e lhe
desejar boa sorte, outros apertavam sua mão. Tinha sido um golpe de gênio do comitê de advogados da Gray’s Inn permitir que os concertos fossem precedidos de uma
vasta reunião social. Vinho, Fiona esperava, poderia mitigar as faculdades críticas dos frequentadores assíduos do Wigmore Hall.
Quando um garçom se aproximou com uma bandeja de prata, ela estava se sentindo bem demais para recusar. Ao pegar uma taça, Mark Berner surgiu em sua linha de visão,
a uns quinze metros de distância e com umas cem pessoas entre eles, sacudindo um dedo em sinal de proibição. Claro que ele tinha razão. Ela ergueu a taça na direção
dele e tomou um pequeno gole. Um amigo, valoroso magistrado, levou-a para lhe apresentar um advogado “brilhante” que por acaso era seu sobrinho. Observada pelo tio
orgulhoso, ela fez perguntas solícitas a um jovem magricela com uma gagueira dolorosa. Começava a desejar companhias mais animadas, quando uma velha colega da Middle
Temple apareceu de repente e a roubou, levando-a para um grupo de expansivas e jovens advogadas, que lhe disseram, de forma brincalhona, que não estavam recebendo
as causas de maior qualidade, todas entregues aos homens.
Funcionários do salão começaram a circular anunciando que o concerto estava prestes a começar. As pessoas se instalaram com relutância nas cadeiras. Era difícil
trocar subitamente um bom vinho e fofocas por música solene. Mas, com os copos sendo recolhidos, o alarido foi se amainando. Ela ia caminhando para os degraus do
lado direito do palco, quando sentiu um toque no ombro e se voltou. Era Sherwood Runcie. O juiz do caso de Martha Longman. Por alguma razão ele vestia um smoking,
o que conferia um ar patético, de bicho apanhado numa armadilha, a homens de certa idade com panças volumosas. Pousou a mão no braço de Fiona desejando transmitir-lhe
uma informação de interesse dela que fora mantida fora dos jornais. Ela se inclinou para ouvir suas palavras. Com a mente já focada no concerto, a pulsação se acelerando,
foi difícil concentrar-se no que era dito, embora tivesse a impressão de havê-lo entendido. Quando ia pedir ao juiz que repetisse, deu-se conta de que Mark, à sua
frente, se voltava para ela fazendo sinais impacientes. Endireitou o corpo, agradeceu a Runcie e seguiu o tenor na direção do palco.
Enquanto esperavam ao pé da escadinha que a audiência se acomodasse e fossem chamados, Mark disse: “Você está se sentindo bem?”.
“Estou bem. Por quê?”
“Parece pálida.”
“Hum.”
Automaticamente, ela tocou seu cabelo com a ponta dos dedos de uma das mãos. Na outra estava a partitura, que segurou com ainda mais força. Será que estava com uma
cara ruim? Calculou o que havia bebido. Não mais do que três goles de vinho branco. Mark a advertira para não beber. Umas duas taças ao todo. Ia ficar bem. Ele lhe
deu a mão ao subirem os degraus e até chegarem junto ao piano, quando ambos curvaram a cabeça num gesto de saudação e receberam o tipo de aplauso reservado ao time
da casa. Afinal de contas, aquele era o quinto concerto de Natal deles no Great Hall. Depois de se sentar, pôr a partitura no lugar e ajustar o banco, ela respirou
fundo e expirou devagar para se livrar dos últimos retalhos das conversas recentes, do advogado gago, das jovens carentes de trabalho. E de Runcie. Não. Não havia
tempo para pensar. Mark acenou com a cabeça para ela a fim de mostrar que estava pronto, e de imediato seus dedos passaram a extrair do colossal instrumento os acordes
suavemente ondulantes, parecendo carregar consigo sua mente. A entrada do tenor foi perfeita e, depois de alguns poucos compassos, eles estavam congregados numa
unidade de propósitos raramente atingida nos ensaios, não mais se concentrando apenas em fazer as coisas certas, mas capazes de se dissolver na música sem o menor
esforço. Passou por sua cabeça que ela havia bebido a quantidade certa de vinho. O poder macio e profundo do Fazioli a despertou. Era como se ela e Mark estivessem
sendo levados com facilidade rio abaixo numa corrente de notas. A voz dele soava mais cálida em seus ouvidos, perfeitamente afinada, livre do vibrato não pedido
pela melodia e que ele às vezes exibia, livres para explorarem todas as delícias da composição de Berlioz para a “Villanelle” e depois para o “Lamento”, toda a tristeza
da linha abruptamente cadente: Ah! Sans amour s’en aller sur la mer! Sua interpretação jorrava de forma espontânea. À medida que seus dedos tocavam as teclas, ela
se ouvia como se estivesse sentada no fundo da sala, como se dela só se exigisse estar presente. Juntos, Fiona e Mark penetraram no hiperespaço sem horizonte do
fazer musical, mais além do tempo e do espaço. Ela tinha a vaga noção de que algo a esperava na volta, um pontinho estranho lá embaixo numa paisagem bem conhecida.
Talvez nem estivesse lá, talvez não fosse verdade.
Eles vieram à tona como se saídos de um sonho, lado a lado, para se defrontar de novo com a audiência. O aplauso foi retumbante, mas sempre era. No espírito de generosidade
que imperava no Great Hall durante a festa natalina, era com frequência ainda mais alto para as performances modestas. Foi só ao trocar olhares com Mark e ver o
brilho em seus olhos que ela se certificou de que haviam rompido os limites usuais dos músicos amadores. Tinham de fato contribuído com alguma coisa para a peça.
Se havia uma mulher na plateia que Mark quisesse impressionar, então ela teria sido cortejada no estilo antigo e sem dúvida ficaria caída por ele.
De repente se fez silêncio quando tomaram posição para o Mahler. Agora ela estava sozinha. A longa introdução pareceu estar sendo inventada pela pianista enquanto
se desenrolava. Com infinita paciência, duas notas soaram de forma hesitante, foram repetidas, outra se somou a elas, as três foram repetidas, e só ao surgir a quarta
nota a linha se estendeu luxuriosamente para cima numa das mais adoráveis melodias que Mahler compôs em toda a sua vida. Ela não se sentiu exposta de um modo desagradável.
Conseguiu mesmo alcançar o que é uma segunda natureza para os mestres do piano, extraindo um som de sino de certas notas acima do dó médio. Em outros trechos, achou
que, pela forma como tocava, era capaz de persuadir seus ouvintes de que percebiam a harpa presente na versão para orquestra. Desde sua entrada, Mark absorveu o
espírito de serena resignação. Por alguma razão ele havia insistido em cantar em inglês, e não em alemão, uma liberdade só concedida aos amadores. A vantagem era
a compreensão instantânea que todos tinham de um homem que se afastava do tumulto. Eu realmente me sinto como se estivesse morto para o mundo. Os dois tiveram a
certeza de que dominavam a audiência, e o desempenho deles ganhou ainda mais força. Fiona também sabia que estava avançando com passos majestosos rumo a algo terrível.
Era verdade, não era verdade. Só saberia quando a música cessasse e ela confrontasse aquilo.
De novo o aplauso, as reverências apenas esboçadas e, agora, pedidos de bis. Ouviram-se até pés batendo no chão, cada vez mais ruidosos. Os dois executantes se entreolharam.
Lágrimas nos olhos de Mark. Um gosto metálico na boca de Fiona ao voltar a se sentar no banco do piano enquanto a plateia silenciava. Manteve durante alguns segundos
as mãos no colo e a cabeça baixa, recusando-se a olhar para seu parceiro. Da seleção de peças que sabiam de cor, já haviam se decidido por “An die Musik”, de Schubert.
Uma velha favorita. Nunca falhava. Pôs as mãos sobre as teclas, se preparando, sem ainda erguer a vista. O silêncio na sala era absoluto, e então ela começou. O
fantasma de Schubert talvez tenha abençoado a introdução que tocou, mas as três notas que subiam, um acorde incompleto carinhosamente ecoado mais abaixo, e depois
ainda mais abaixo até por fim se tornar harmônico, pertenciam a alguma outra mão. Nas notas tranquilas e repetidas que pulsavam no fundo, talvez houvesse uma homenagem
a Berlioz. Quem saberia? Até a canção de Mahler, com sua aceitação melancólica, talvez tenha subliminarmente ajudado Britten em seu arranjo. Fiona não sinalizou
nenhum pedido de desculpa para Mark. Seu rosto permanecia tão rígido como fora antes seu sorriso. E ela só olhava para as mãos. Ele teve apenas alguns segundos para
reorganizar seus pensamentos, mas estava sorrindo ao sorver o ar e seu tom foi doce, e ainda mais doce no segundo verso.
Num campo junto ao rio, meu amor pousou de leve
A mão branca como a neve
No meu ombro inclinado, me dizendo
Que levasse a vida com leveza,
Como o capim cresce na margem da represa;
Mas eu era jovem e tolo, e hoje só me resta chorar.
Tratava-se de uma plateia sempre generosa mas que raramente se punha de pé para fazer uma ovação. Isso era coisa para concertos de música pop, assim como gritos
e assobios. Mas todos se levantaram de uma só vez, notando-se somente alguma hesitação de algumas figuras mais eminentes do Judiciário. Alguns entusiastas mais jovens
gritaram e assobiaram. Mas Mark Berner recebeu o tributo sozinho, com uma mão pousada no piano, balançando a cabeça e sorrindo em agradecimento, enquanto também
observava com preocupação a pianista, que atravessava às pressas o palco, olhos postos no chão, e descia os degraus, abrindo caminho entre os componentes do quarteto
de cordas, que aguardavam sua vez, e se dirigindo em passos largos para a saída. Como todos deduziram que a experiência devia ter sido incomumente intensa para ela,
magistrados e amigos foram compreensivos e bateram palmas ainda mais fortes quando passou diante deles.
Fiona pegou o casaco e, sem se importar com a nova chuvarada, caminhou até o seu apartamento tão depressa quanto ousava com salto alto. Na sala de visitas, umas
poucas velas permaneciam acesas, como eles descuidadamente as haviam deixado. Ainda de casaco, o cabelo grudado no crânio, água escorrendo pelo pescoço e pelas costas,
ela ficou imóvel, tentando recordar o nome de uma mulher. Tanta coisa acontecera desde que havia pensado nela pela última vez. Lembrava-se de um rosto, ouvia uma
voz, e aí o nome voltou. Marina Greene. Fiona pegou o celular na bolsa e fez a chamada. Desculpou-se por telefonar àquela hora. A conversa foi breve porque crianças
gritavam ao fundo e a voz da jovem denotava cansaço e irritação. Sim, ela confirmava. Quatro semanas atrás. Deu os poucos detalhes que sabia e se disse surpresa
pela juíza não haver sido informada.
Fiona continuou parada no mesmo lugar, o olhar fixo, por nenhuma razão em particular, no prato de comida preparado por Jack, a cabeça misericordiosamente vazia.
A música que acabara de tocar não ressoava em seus ouvidos como costumava acontecer. Já havia se esquecido do concerto. Até onde era neurologicamente possível não
pensar, ela não tinha nenhum pensamento. Passaram-se vários minutos. Impossível saber quantos. Voltou-se ao ouvir um ruído. O fogo estava nas últimas, se desmanchando
na grelha. Foi até lá, se ajoelhou e cuidou de reanimá-lo levantando fragmentos de lenha e carvão com as mãos e não com as tenazes, e os colocando em cima ou perto
das brasas. Depois de três sopros do fole, uma lasca de pinho pegou fogo, que se espalhou para dois pedaços maiores enquanto ela observava. Aproximou-se e deixou
que o espetáculo das pequenas chamas, com seus movimentos espásticos contra o negror do carvão, enchesse seus olhos.
Por fim, os pensamentos chegaram sob a forma de duas perguntas insistentes. Por que você não me disse? Por que não pediu minha ajuda? A resposta veio em sua própria
voz imaginada. Fiz isso. Ela se levantou, consciente da dor nos quadris ao caminhar até o quarto para pegar o poema na mesinha de cabeceira, onde ficara por seis
semanas. Não tinha podido reler o poema por causa de seu tom melodramático e pela sugestão puritana de que a busca da liberdade, ao atirar a pesada cruz no rio e
receber um beijo casto, deviam ser inspiradas por Satã. Havia algo pegajoso ou sufocante naquela parafernália cristã — a cruz, a árvore de Judas, as trombetas. E
ela era a mulher pintada, o peixe com arco-íris nas escamas, a criatura traiçoeira que levou o poeta para o mau caminho e o beijou. Sim, aquele beijo. Foi a culpa
dela que a tinha mantido distante.
Ela se agachou outra vez perto do fogo e pôs o poema à sua frente sobre o tapete Bokhara. Como havia mexido no carvão, suas impressões digitais ficaram marcadas
no topo da página. Foi direto ao último verso — Jesus Cristo milagrosamente de pé sobre as águas do rio, anunciando que o peixe era Satã disfarçado e que o poeta
devia “pagar o preço”.
O beijo dela era o beijo de Judas e traiu meu nome.
Morte àquele
Fiona alcançou os óculos na mesa atrás dela e se inclinou para ler as palavras riscadas e circundadas. “Faca” havia sido riscada, assim como “preço”, “Deixe que
ele” e “culpa”. As palavras “ele próprio” tinham sido riscadas, depois recolocadas e mais uma vez eliminadas. “Não deve” foi substituído por “deve”, “afundei” por
“afoguei”. “Morte àquele” se destacava, sem um círculo em volta, flutuando acima da confusão com uma seta para indicar que deveria substituir “E”. Fiona estava pegando
o jeito do método e da caligrafia dele. E de repente tudo ficou claro. Havia mesmo uma linha sinuosa conectando as palavras escolhidas. O Filho de Deus tinha proferido
uma maldição.
Morte àquele que afogou minha cruz com as próprias mãos.
Ela não se voltou ao ouvir a porta da frente sendo aberta, e foi assim que Jack a viu de relance ao passar pela sala de visitas em direção à cozinha. Achou que ela
estivesse cuidando da lareira.
“Capricha no fogo”, ele disse. E já mais afastado: “Você foi brilhante! Todo mundo adorou. E tão emocionante!”.
Quando voltou com o champanhe e duas taças limpas, ela havia se posto de pé para tirar o casaco, jogando-o sobre as costas de uma cadeira, e se livrar do sapato.
Estava de pé no meio da sala, esperando. Ele não percebeu sua palidez ao lhe dar uma das taças, que ela ergueu para ser servida.
“Seu cabelo. Quer que eu pegue uma toalha?”
“Daqui a pouco ele seca.”
Ele removeu a tampa de metal e encheu a taça de Fiona, depois a dele, que deixou sobre um móvel enquanto se dirigia à lareira, onde despejou a cesta de carvão e
pôs três pedaços grandes de lenha ensarilhados. Ligou o hi-fi, para tocar de novo o disco de Jarrett.
Ela murmurou: “Jack, agora não”.
“Claro. Depois de hoje à noite! Burrice minha.”
Vendo que Jack queria retornar rapidamente à situação em que se encontravam antes do concerto, sentiu pena dele. Ele estava fazendo o possível. Logo, logo ia querer
beijá-la. Aproximou-se de Fiona e, no silêncio que passara a silvar nos ouvidos dela desde o instante em que o hi-fi foi desligado, tocaram suas taças e beberam.
Ele então comentou o desempenho dela e de Mark, das lágrimas de orgulho do tenor quando todos se puseram de pé ao final e o que as pessoas disseram depois.
“Saiu tudo bem”, ela disse. “Estou muito feliz que tudo correu bem.”
Ele não era músico e gostava unicamente de jazz e blues, mas fez observações bastante plausíveis sobre o concerto e se lembrava de cada peça executada. Les nuits
d’été havia sido uma revelação. Emocionou-o em particular o “Lamento”, chegou mesmo a entender o francês. Precisaria ouvir de novo o Mahler, porque percebeu um imenso
reservatório de sentimento na peça, mas não foi capaz de apreender tudo naquela primeira vez. Ficou contente de Mark ter cantado em inglês. Todos tinham vontade
de fugir do mundo, poucos ousavam fazê-lo. Ela escutou com seriedade, ou pareceu que o fazia, dando respostas breves ou assentindo com a cabeça. Sentia-se como um
paciente hospitalizado que deseja ardentemente que o visitante bondoso vá embora para que ele possa voltar a se sentir mal. O fogo pegou e Jack, notando que ela
tiritava, levou-a para perto da lareira e lá serviu o resto do champanhe.
Residiam na praça havia bastante tempo e ele conhecia os membros do Judiciário que eram seus vizinhos quase tão bem quanto ela. Começou a lhe falar das pessoas que
encontrara naquela noite. Os moradores do lugar eram muito unidos e os fascinavam. Aquele post mortem no final das noitadas era uma característica do relacionamento
dos dois. Era fácil para ela continuar resmungando uma resposta aqui e ali. Jack permanecia excitado com a performance dela e com o que imaginava que iria acontecer.
Ele contou sobre um criminalista que estava montando com outros uma escola gratuita. Precisavam de uma tradução em latim para o moto “Toda criança é um gênio”. Coisa
curta, que pudesse ser costurada no blusão escolar debaixo de uma fênix heráldica se erguendo das cinzas. Um problema fascinante. A ideia de gênio surgira no século
XVIII, e as palavras correspondentes a “criança” em latim traziam em geral a definição do gênero. Jack se saíra com “Cuiusque parvuli ingenium” — não tão forte quanto
gênio, mas o conceito de inteligência ou aptidão natural era um substituto razoável. Com um pouco de boa vontade, “parvuli” poderia englobar as meninas. Depois o
advogado havia perguntado se ele estaria interessado em criar um curso descontraído de latim para jovens de nível variado entre onze e dezesseis anos. Desafiador.
Irresistível.
Fiona ouviu sem exprimir nenhuma emoção. Nenhum filho seu jamais usaria aquele maravilhoso emblema. Deu-se conta de que estava excessivamente vulnerável.
Ela disse: “Seria uma coisa boa de fazer”.
Jack sentiu a falta de entusiasmo em sua voz e a olhou de forma diferente.
“Tem alguma coisa te incomodando.”
“Eu estou bem.”
Franzindo a testa ao relembrar a pergunta que deixara de fazer, ele disse: “Por que você saiu daquele jeito no fim?”.
Ela hesitou: “Foi demais para mim”.
“Quando todos se levantaram? Eu quase chorei.”
“Foi a última música.”
“O Mahler.”
“Não, ‘The Salley Gardens’.”
Ele achou a resposta engraçada e lhe lançou um olhar de descrença. Já a tinha visto executar aquela música com Mark dezenas de vezes. “Como assim?”
Havia também um toque de impaciência na atitude dele. Jack queria realizar a promessa de uma noite formidável, repor o casamento nos trilhos, beijá-la, abrir outra
garrafa, levá-la para a cama, fazer com que tudo se tornasse mais uma vez fácil entre os dois. Ela o conhecia bem, entendeu tudo e, de novo, teve pena de Jack. Mas
sentiu tudo isso de uma grande distância.
Ela disse: “Uma recordação. Do verão”.
“É mesmo?” Seu tom denotava apenas uma leve curiosidade.
“Um jovem tocou essa melodia para mim no violino. Ainda estava aprendendo a música. Foi num hospital. Acompanhei cantando. Acho que fizemos uma barulheira. Depois
ele quis tocar outra vez, mas eu precisava ir embora.”
Jack não estava interessado em quebra-cabeças. Esforçou-se para que sua voz não demonstrasse irritação. “Comece de novo. Quem era o rapaz?”
“Um jovem muito estranho e bonito.” Ela falou num tom vago, as palavras saindo lentamente.
“E?”
“Suspendi a sessão enquanto fui vê-lo em seu quarto no hospital. Você se lembra. Uma testemunha de Jeová, muito doente, recusando o tratamento. Saiu em todos os
jornais.”
Se precisava ser lembrado era porque naquela época ele estava instalado no quarto de Melanie. De outro modo, teria discutido o caso.
Ele disse com firmeza: “Acho que me lembro”.
“Permiti que o hospital o tratasse e ele se recuperou. A sentença teve... um grande efeito sobre ele.”
Como antes, estavam de um lado e do outro da lareira, que agora irradiava um forte calor. Ela fixou os olhos nas chamas. “Acho... acho que ele se apegou muito a
mim.”
Jack descansou a taça vazia. “Continue.”
“Quando eu estava no circuito, ele me seguiu até Newcastle. E eu...” Fiona não ia lhe contar o que havia acontecido lá, mas mudou de ideia. Não havia razão para
ocultar nada agora. “Ele andou na chuva para me encontrar e... eu fiz uma idiotice. No hotel. Não sei o que eu estava... Eu o beijei. Beijei o rapaz.”
Ele deu um passo atrás para se distanciar do calor do fogo, ou dela. Fiona não se importava mais.
Sussurrou: “Ele era uma pessoa muito doce. Queria vir morar conosco”.
“Conosco?”
Jack Maye tinha atingido a maioridade nos idos da década de 1970 em meio a suas múltiplas correntes de pensamento. Ensinara numa universidade durante toda a sua
vida adulta. Conhecia tudo sobre a falta de lógica dos padrões morais diferentes para homens e mulheres, mas esse saber não era capaz de protegê-lo. Fiona viu a
raiva no rosto dele, a tensão dos músculos em torno das mandíbulas, o olhar se endurecendo.
“Ele imaginou que eu poderia modificar sua vida. Acredito que queria me transformar numa espécie de guru. Achou que eu podia... Estava tão ávido, com tanta fome
de viver, de tudo. E eu não...”
“Então você o beijou e ele quis viver com você. O que é que está tentando me dizer?”
“Mandei-o embora.” Ela balançou a cabeça e não conseguiu continuar.
Em seguida olhou para Jack. Ele se manteve bem longe dela, os pés afastados, braços cruzados, o rosto ainda bonito e afável agora enrijecido pela raiva. Alguns pelos
prateados do seu peito escapavam pela gola aberta da camisa. Ela já o vira levantá-los vez por outra com um pente. A noção de que o mundo era repleto de tais detalhes,
de tantos pontos minúsculos da fraqueza humana ameaçou esmagá-la e ela se viu forçada a desviar os olhos.
Só agora, que a chuva tinha parado, eles perceberam que ela estivera martelando as janelas.
Naquele silêncio mais profundo, ele disse: “E o que aconteceu? Onde ele está agora?”.
Fiona respondeu baixinho, num tom monocórdio. “Eu soube hoje pelo Runcie. Algumas semanas atrás sua leucemia voltou e ele foi levado para o hospital. Recusou a transfusão
que queriam lhe dar. Foi sua decisão. Já tinha dezoito anos e ninguém pôde fazer nada. Com a recusa, seus pulmões se encheram de sangue e ele morreu.”
“Então ele morreu por suas crenças.” A voz de seu marido soou fria.
Ela o olhou sem entender. Deu-se conta de que não havia se explicado nem um pouco, que havia muita coisa que deixara de lhe contar.
“Acho que foi suicídio.”
Durante alguns segundos nenhum dos dois falou. Ouviram vozes, risadas e passos na praça. O espetáculo musical tinha acabado.
Jack limpou a garganta delicadamente. “Você estava apaixonada por ele, Fiona?”
A pergunta a derrubou. Deixou escapar um som terrível, um urro sufocado. “Ah, Jack, ele não passava de uma criança! Um menino. Um menino adorável!” E por fim ela
desandou a chorar, de pé junto à lareira, os braços caindo inermes ao longo do corpo, enquanto Jack observava, chocado por ver sua mulher, sempre tão contida, num
paroxismo de dor.
Fiona não conseguia falar, o choro não iria parar e ela não podia mais permitir que fosse vista naquele estado. Abaixou-se para pegar os sapatos e, só de meia, atravessou
correndo a sala e o corredor. Quanto mais se afastava dele, mais alto chorava. Entrou no quarto, bateu a porta e, sem acender a luz, se atirou na cama, enfiando
o rosto num travesseiro.
Meia hora depois, ao acordar das profundezas de um sonho em que subia por uma interminável escada vertical, ela não se recordava de haver caído no sono. Ainda confusa,
manteve-se deitada de lado, voltada para a porta. Por baixo dela, um fiapo de luz vindo do corredor trazia algum conforto. Mas não as cenas que visitavam sua imaginação.
Adam doente de novo, retornando à sua casa enfraquecido para ser recebido com amor pelos pais, encontrando os bondosos anciãos, readquirindo as crenças antigas.
Ou as usando como um pretexto perfeito para se destruir. Morte àquele que afogou minha cruz com as próprias mãos. Ela o reviu na penumbra em que o encontrara ao
visitar a unidade de tratamento intensivo. O rosto fino e pálido, as sombras roxas abaixo dos grandes olhos cor de violeta. A língua coberta por uma película branca,
braços como gravetos, tão doente, tão decidido a morrer, tão cheio de encanto e vida, páginas com seus poemas espalhadas pela cama, implorando a ela que permanecesse
e os dois tocassem de novo a música, quando Fiona precisava regressar ao tribunal.
Lá, com a autoridade e dignidade de sua posição, ela lhe havia oferecido, em vez da morte, toda a vida e o amor que se abriam diante dele. E proteção contra sua
religião. Sem fé, como o mundo deve ter lhe parecido ilimitado, belo e aterrador! Com tal pensamento, ela foi caindo de novo num sono ainda mais profundo e acordou
minutos depois ao ouvir o cantar e os suspiros das calhas do telhado. Será que a chuva iria parar algum dia? Viu a figura solitária caminhando pela alameda do Leadman
Hall, encurvada para se defender da tempestade de verão, avançando em meio às trevas, ouvindo os galhos que caíam. Ele devia ter visto à frente luzes na casa e sabido
que ela se encontrava lá. Tiritou de frio numa dependência dos fundos, sem saber o que fazer, aguardando uma oportunidade de falar com ela, arriscando tudo na busca
de — o quê, exatamente? E acreditando que poderia obtê-lo de uma mulher de sessenta anos que jamais arriscara nada na vida a não ser nuns poucos episódios estouvados
em Newcastle fazia muito tempo. Ela devia ter se sentido lisonjeada. E pronta. Em vez disso, num impulso poderoso e indesculpável, o beijara e depois o mandara embora.
Mais tarde, ela fugira também. Negara-se a responder às cartas dele. Negara-se a decifrar o alerta no poema dele. Que vergonha sentia agora dos temores mesquinhos
que tivera sobre sua reputação! Aquela transgressão escapava ao alcance de qualquer comitê disciplinar. Adam a tinha procurado e ela não ofereceu nada no lugar da
religião, nenhuma proteção, embora a lei fosse clara ao determinar que sua principal preocupação devia ser o bem-estar dele. Quantas páginas em quantos julgamentos
ela já não devotara a esse propósito? Bem-estar, felicidade, um conceito social. Nenhuma criança é uma ilha. Ela pensava que suas responsabilidades terminavam na
porta do tribunal. Mas como seria possível? Adam tratou de encontrá-la, querendo o que todo mundo quer, e que só pessoas de mente aberta, e não o sobrenatural, podiam
dar: um sentido para a vida.
Quando ela mudou de posição, sentiu contra o rosto o travesseiro úmido e frio. Agora inteiramente desperta, o empurrou para pegar outro, e se surpreendeu ao tocar
num corpo quente a seu lado, às suas costas. Voltou-se. Jack estava deitado com a cabeça apoiada na mão. Com a outra afastou o cabelo que cobria os olhos de Fiona.
Um gesto de ternura. A luz vinda do corredor lhe permitia apenas vislumbrar o rosto dele.
Jack disse simplesmente: “Fiquei vendo você dormir”.
Depois de algum tempo, bastante tempo, ela murmurou: “Obrigada”.
Fiona então perguntou se ele ainda a amaria depois de ela ter lhe contado toda a história. Era uma pergunta impossível de ser respondida, porque ele ainda não sabia
quase nada. Suspeitou que Jack tentaria persuadi-la de que não lhe cabia nenhuma culpa.
Ele pôs a mão no ombro dela e a puxou para si: “Claro que sim”.
Ficaram um diante do outro na semiescuridão e, enquanto a grande cidade lavada pela chuva entrava em seus ritmos noturnos mais suaves, e o casamento deles recomeçava
com movimentos titubeantes, Fiona lhe falou, numa voz calma e compassada, de sua vergonha, da paixão daquele doce rapaz pela vida e da parte que lhe cabia na morte dele.Apertou duas teclas para telefonar para o marido. Fugindo de um beijo, correndo para se proteger sob o manto de uma mulher casada de boa reputação, em busca de alguma
solidez. Fez a chamada sem pensar, por puro hábito, quase sem ter consciência da situação atual entre ela e Jack. Quando ouviu seu alô duvidoso, a acústica lhe disse
que ele se encontrava na cozinha. O rádio ligado, talvez Poulenc. Nas manhãs de sábado, embora acordassem cedo, sempre faziam, ou costumavam fazer, o desjejum sem
pressa, com vários jornais em cima da mesa, a rádio Três tocando baixinho, café e o pain aux raisins comprado na Lamb’s da Conduit Street esquentado no forninho.
Ele estaria com o robe de seda estampado com formas curvas. Barba por fazer, cabelo desgrenhado.
Num tom cuidadosamente neutro, Jack perguntou se estava tudo bem com ela. Quando Fiona respondeu que sim, ficou surpresa ao ver como tinha soado normal. Começou
a improvisar sem dificuldade, bem no instante em que Pauling, com um suspiro de satisfação, se recordou de um atalho e escapou do tráfego. Perfeitamente plausível,
em se tratando de rotina doméstica, lembrar Jack de que ela chegaria no fim do mês, e também natural, ou costumava ser, sugerir que na noite em que ela voltasse
eles deviam jantar fora. Um restaurante próximo de que gostavam costumava ter todos os lugares reservados com antecedência. Talvez ele pudesse fazer uma reserva
agora. Ele achou uma boa ideia. Ela o ouviu suprimir a surpresa na voz, manobrando com cuidado entre a cordialidade e a frieza. Perguntou de novo se ela estava bem.
Conhecia Fiona bem demais, e obviamente ela não parecia normal. Com uma ênfase maior, ela disse que estava ótima. Trocaram algumas palavras sobre assuntos de trabalho.
A chamada terminou com um adeus de Jack que soava quase como uma pergunta.
Mas tinha funcionado. Ela havia se livrado dos devaneios paranoicos para cair na realidade de um compromisso, de uma data, de um relacionamento melhorado. Sentiu-se
mais bem defendida e no todo mais sensata. Caso tivesse havido alguma queixa, ela já teria tomado conhecimento àquela altura. Tinha sido bom telefonar e dar continuidade
àquele momento indefinível no café da manhã. Útil se lembrar de que o mundo nunca era como ela o imaginava em momentos de ansiedade. Uma hora depois, quando o carro
começou a se arrastar pela congestionada A69 para entrar em Carlisle, ela estava enfronhada em documentos judiciais.
E foi assim que duas semanas depois, encerrada a temporada itinerante e distribuída a Justiça em quatro cidades do Norte, ela se encontrava diante do marido num
canto tranquilo de um restaurante na rua Clerkenwell. Entre os dois uma garrafa de vinho, bebido cautelosamente. Não devia haver nenhuma onda súbita de intimidade.
Mantiveram-se distantes do assunto que poderia destruí-los. Ele se dirigiu a ela de forma delicada e canhestra, como se Fiona fosse um tipo incomum de bomba capaz
de estourar no meio de qualquer frase. Ela perguntou a respeito do trabalho dele, o livro sobre Virgílio. Uma apresentação e uma seleção, um manual para escolas
e universidades que, ele comovedoramente acreditava, o faria ganhar um dinheirão. Nervosa, ela fez uma pergunta após a outra, consciente de que estava se comportando
como uma entrevistadora. Esperava observá-lo como se o fizesse pela primeira vez, captar o que havia de estranho nele como acontecera muitos anos antes ao se apaixonar
por ele. Não era fácil. Sua voz, seus traços eram tão familiares como os dela próprios. Seu rosto tinha uma expressão áspera, aflita. Atraente, é claro, mas não
para ela naquele instante. Fiona esperava que a mão dele, posta sobre a mesa perto do copo, não estivesse prestes a pegar a sua.
Lá para o fim da refeição, quando haviam esgotado os tópicos mais seguros, houve um silêncio ameaçador. Apetites saciados, as sobremesas e metade do vinho permaneciam
intocados. A recriminação mútua e não manifestada os perturbava. Na mente dela, ainda a aventura despudorada de Jack; na dele, ela supunha, o senso exagerado de
ofensa de Fiona. Num tom forçado, ele começou a relatar a palestra sobre geologia a que comparecera na noite passada. O palestrante havia descrito como a sequência
de camadas rochosas sedimentares pode ser lida como um livro que conta a história da Terra, permitindo-se algumas especulações no final. Cem milhões de anos no futuro,
quando a maior parte dos oceanos tiver afundado na crosta terrestre e não houver suficiente dióxido de carbono na atmosfera para sustentar as plantas, a superfície
do planeta tendo se transformado num deserto rochoso e sem vida, que provas teria de nossa civilização um geólogo que viesse do espaço? Algumas dezenas de centímetros
abaixo da superfície, haveria uma grossa linha negra que nos separaria de tudo o que aconteceu antes. Condensadas nessa camada de fuligem de quinze centímetros,
estariam nossas cidades, veículos, estradas, pontes, armas. Estariam também todos os tipos de substâncias químicas não encontradas no registro geológico anterior.
O concreto e os tijolos se desintegrariam tão facilmente quanto o calcário, nossos aços mais resistentes se transmudariam em manchas de ferro pulverizado. Um exame
microscópico mais cuidadoso poderia revelar uma preponderância de pólen das monótonas planícies cobertas de gramíneas que criamos para alimentar rebanhos gigantescos.
Com sorte, o geólogo poderia encontrar ossos fossilizados, até mesmo os nossos. Mas os animais, incluindo aí todos os peixes, mal corresponderiam a um décimo do
peso de todos os carneiros e vacas. O visitante espacial terminaria concluindo que estava observando o começo de uma extinção em massa na qual a variedade da vida
tinha começado a se estreitar.
Jack vinha falando havia cinco minutos. Estava oprimindo-a com o peso daquele tempo sem sentido. O deserto inimaginável de anos e o fim inevitável o animavam. Mas
não a ela. Sentiu-se invadida por um sentimento de desolação que pesava sobre seus ombros e descia até as pernas. Pegou o guardanapo do colo e o depositou sobre
a mesa num gesto de rendição, levantando-se a seguir.
Ele estava dizendo, como se aquilo o deixasse perplexo: “É assim que estamos assinando nosso nome no registro geológico”.
Ela disse: “Acho que está na hora de pedirmos a conta”, e caminhou rapidamente através do restaurante até o toalete, onde se postou na frente do espelho, olhos fechados,
pente na mão no caso de alguém entrar, respirando fundo e devagar algumas vezes.
O degelo não ocorreu de modo rápido nem linear. De início foi um alívio não ter de se evitarem conscientemente no apartamento, não competirem com toda frieza para
saber quem era mais cortês naquela forma sufocante que tinham adotado. Passaram a fazer as refeições juntos, começaram a aceitar convites para jantar com amigos,
conversaram — principalmente sobre assuntos de trabalho. Mas ele ainda dormia no quarto de hóspedes e, quando uma sobrinha de dezenove anos foi passar uns dias lá,
ele voltou a se instalar no sofá da sala de visitas.
Fim de outubro. Os relógios foram atrasados, marcando a última etapa de um ano exausto, e chegou a escuridão. Durante algumas poucas semanas, o clima de estagnação
voltou a imperar entre ela e Jack, quase tão sufocante como antes. Mas ela estava ocupada e cansada demais à noite para iniciar o tipo de conversa exigente que poderia
levá-los a um novo estágio. Além da carga normal de casos no Strand, ela estava presidindo um comitê encarregado de estudar novos procedimentos nos tribunais e participava
de outro que devia responder a um relatório do governo a respeito da reforma da legislação sobre a família. Se lhe sobrava alguma energia depois do jantar, ela se
exercitava sozinha ao piano, preparando-se para os ensaios com Mark Berner. Jack também estava ocupado, substituindo um colega enfermo na universidade e, em casa,
absorto na redação da longa introdução aos poemas selecionados de Virgílio.
O advogado incumbido de organizar as festas de Natal no Great Hall informara que eles haviam sido escolhidos para abrir o concerto. Tocariam no máximo por vinte
minutos, deixando uma margem de outros cinco minutos para o bis. Tempo suficiente para a seleção que haviam feito das canções do ciclo de Berlioz Les nuits d’été,
além de uma de Mahler, “Estou Perdido para o Mundo”, que fazia parte do Rückert-Lieder. O coral da Gray’s Inn cantaria algumas peças de Monteverdi e Bach, seguindo-se
um quarteto de cordas que interpretaria Haydn. Uma significativa minoria dos membros do Judiciário que moravam na Gray’s Inn passava muitas noites por ano ouvindo
música de câmara com grande concentração, as testas franzidas, no Wigmore Hall de Marylebone. Dominavam o repertório. Dizia-se que reconheciam uma nota errada antes
mesmo que ela fosse tocada. No concerto natalino, embora se servisse vinho antes e a atmosfera geral, ao menos na aparência, fosse amistosa, os padrões eram punitivamente
elevados para uma exibição de amadores. Às vezes Fiona acordava antes de o sol raiar e se perguntava se dessa vez estava em condições de enfrentar o desafio, se
havia algum modo de pular fora. Achava que lhe faltava a concentração necessária, e o Mahler era difícil. Tão languidamente lento e bem equilibrado. Ela ficaria
exposta. E o desejo germânico de não ser notada a tornava desconfortável. Mark, porém, estava ansioso para se exibir. Dois anos antes seu casamento havia fracassado.
Agora, segundo Sherwood Runcie, havia uma mulher em sua vida. Fiona desconfiava que ela estaria na plateia e Mark desejava ardentemente impressioná-la. Tinha até
pedido a Fiona que decorasse as canções, mas isso, ela lhe disse, estava além de sua capacidade. Apenas as três ou quatro pequenas peças para o bis estavam gravadas
em sua memória.
No final de outubro, em meio à correspondência entregue pela manhã no tribunal, ela viu o envelope azul que lhe era tão familiar. Pauling se encontrava no gabinete
naquela hora. Para ocultar seus sentimentos, uma mescla de excitação e vago temor, ela levou a carta para perto da janela e fingiu que observava alguma coisa lá
embaixo no pátio. Depois que Pauling saiu, tirou do envelope uma única página, dobrada em quatro e rasgada embaixo, na qual constava um poema inacabado. O título
em letras maiúsculas e sublinhado duas vezes: “A BALADA DE ADAM HENRY”. Apesar da caligrafia miúda, o longo poema ocupava a página inteira. Nenhuma carta o acompanhava.
Ela deu uma olhada no primeiro verso, não conseguiu se interessar, pôs a página de lado. Tinha um caso difícil dentro de meia hora, uma série de solicitações e contrassolicitações
conjugais que sem dúvida absorveria duas semanas de sua vida. Cada parte tencionava permanecer extremamente rica à custa da outra. Não era um momento oportuno para
ler poesia.
Dois dias se passaram antes que voltasse a abrir o envelope. Eram dez da noite. Jack estava assistindo a outra palestra sobre as camadas sedimentares, ou assim ele
disse, e ela preferiu acreditar. Instalou-se na chaise longue e abriu a página no colo. Pareciam versos medíocres, desses vistos em cartões de aniversário. Fiona
então se forçou para adotar um estado de espírito mais acolhedor. Afinal de contas, tratava-se de uma balada e ele só tinha dezoito anos.
A BALADA DE ADAM HENRY
Ergui minha cruz de madeira e a arrastei junto ao rio.
Eu era jovem e tolo, e perturbado pela ideia
De que a penitência era uma asneira e os encargos coisa de idiotas.
Mas aos domingos me diziam para seguir todas as regras.
As farpas feriam meu ombro, aquela cruz pesava mais que chumbo,
Minha vida de devoto era estreita, e quase morri.
O rio corria alegre e sorridente, a luz do sol dançando a seu redor,
Mas eu devia seguir meu caminho, olhos postos no chão.
Então um peixe pulou da água com um arco-íris nas escamas.
Pérolas de água saltitavam formando colares prateados.
“Jogue a cruz na água se você quer se libertar!”
Por isso, à sombra da árvore de Judas, afoguei no rio minha carga.
Num êxtase maravilhoso me ajoelhei na margem do rio
Enquanto, apoiada em meu ombro, ela me dava o beijo mais doce.
Mas mergulhou rumo ao fundo gélido onde nunca será encontrada,
E meus olhos se encheram de lágrimas até que ouvi o som das trombetas.
E Jesus se pôs de pé sobre as águas e me disse:
“Aquele peixe era a voz de Satã, e você deve pagar o preço.
O beijo dela era o beijo de Judas e traiu meu nome.
Morte àquele
Morte àquele o quê? As últimas palavras do verso final estavam perdidas em meio a um novelo de linhas entrecruzadas que davam voltas em torno de reconsiderações,
palavras cortadas e recolocadas, variantes com pontos de interrogação. Em vez de tentar decifrar aquela mixórdia, ela releu o poema e depois se reclinou, os olhos
fechados. Ficou sentida por Adam estar com raiva dela, pintando-a como Satã, e começou a compor em devaneio uma carta para ele, sabendo que nunca a enviaria pelo
correio ou mesmo a escreveria. Seu impulso era aquietá-lo ao mesmo tempo que se justificava. Recorreu a frases prontas. Tive de mandá-lo embora, Era o que melhor
servia a seus interesses, Você tem toda uma vida jovem pela frente. Depois, com maior coerência: Mesmo se tivéssemos outro quarto, você não poderia ser nosso inquilino.
Uma coisa dessas não é aceitável para uma juíza. Acrescentou: Adam, não sou Judas. Talvez uma velha truta... Essa última frase para dar um toque de leveza à sua
firme intenção de se autojustificar.
O “beijo mais doce” dela tinha sido irresponsável, e Fiona não escapara ilesa dele, não no que dizia respeito a Adam. Mas era um gesto de pura bondade não lhe responder.
Ele voltaria a escrever, apareceria à sua porta, ela precisaria enxotá-lo de novo. Dobrou a página outra vez e a recolocou no envelope, levando-o para o quarto e
guardando na gaveta da mesinha de cabeceira. Em breve ele superaria tudo. Também devia ter sido tragado de volta para a religião, ou então Judas, Jesus Cristo e
tudo o mais eram apenas recursos poéticos usados para dramatizar o pavoroso comportamento dela ao beijá-lo e depois mandá-lo embora num táxi. Seja lá o que fosse,
Adam Henry provavelmente teria grande sucesso nos exames de recuperação e iria para uma boa universidade. Ela esmaeceria nos pensamentos dele, se tornaria uma figura
menor em sua educação sentimental.
Eles estavam num pequeno cômodo sem mobília no porão do prédio onde Mark Berner morava. Ninguém se lembrava como um piano de armário Grotrian-Steinweg tinha sido
posto lá, ninguém fora buscá-lo em vinte e cinco anos, ninguém tencionava mudá-lo de lugar. Havia arranhões e marcas de cigarros no tampo, mas o mecanismo funcionava
bem e o som era aveludado. Do lado de fora, a temperatura estava abaixo de zero, com os primeiros centímetros de neve da estação dando um toque pitoresco à Gray’s
Inn Square. Ali, que chamavam de sala de ensaios, não havia aquecedores, mas certos canos, dos muitos que corriam ao longo de uma parede e datavam dos primórdios
da era vitoriana, emitiam um calor débil porém constante que mantinha o instrumento afinado. O assoalho era coberto por um tecido com estrias que lembrava veludo,
instalado na década de 1960; ele tinha sido colado ao cimento e agora, além de exibir muitas manchas de café, se erguia aqui e ali rebeldemente, provocando tropeções.
A iluminação provinha de uma resplandecente lâmpada de 150 watts atarraxada no teto baixo. Há muito Mark falava que ia instalar uma luminária. Além de uma estante
para partituras e do banco do piano, a única mobília adicional era uma frágil cadeira de cozinha na qual eram empilhados casacos e cachecóis.
Fiona estava sentada diante do teclado, as mãos entrelaçadas e postas sobre o colo para se aquecerem, estudando a partitura, Les nuits d’été num arranjo para piano
e tenor. Em algum canto de sua sala de visitas estaria o velho disco de vinil de Kiri Te Kanawa. Não o via fazia anos. E não os ajudaria agora. Precisavam urgentemente
trabalhar na peça porque até então só haviam feito dois ensaios. Mas Mark estivera no tribunal no dia anterior e continuava irritado, precisando dizer a ela a razão.
E o que ele pensava fazer no futuro, pois estava deixando a profissão. Já bastava. Era triste demais, idiotice demais, pondo a perder muitas vidas cheias de esperança.
Uma velha e vã ameaça, mas, sentada no banco e tiritando, ela se obrigou a ouvi-lo. Mesmo assim, não podia deixar de olhar para a abertura, a “Villanelle”, os acordes
se repetindo suavemente, as colcheias pulsando em staccato, imaginando a doce melodia ou criando suas próprias versões do primeiro verso de Gautier: Quando chega
a nova estação, quando o frio se foi...
O caso de Berner tinha a ver com quatro homens ainda jovens brigando do lado de fora de um pub perto da Ponte da Torre com outros quatro com quem haviam se encontrado
por acaso. Os oito tinham bebido. Só os quatro primeiros foram presos e indiciados. O júri havia decidido que eles eram culpados de provocar ferimentos graves intencionalmente,
aceitando o argumento do promotor de que tinham agido em conjunto, devendo assim receber igual punição independentemente do que cada um fizera. Estavam todos no
mesmo barco. Depois do veredito, anunciado uma semana antes da sentença, o juiz em Southwark, Christopher Cranham, tinha advertido os quatro de que deveriam esperar
longas condenações à prisão. A essa altura, Mark Berner foi chamado pelos parentes aflitos de um dos quatro, Wayne Gallagher. Graças a uma cotização entre os membros
da família e amigos, complementada por uma inteligente campanha nas redes sociais, conseguiram juntar as vinte mil libras necessárias. Tinham a esperança de que
um advogado de renome poderia obter uma mitigação da pena antes de Gallagher ser sentenciado. Um aconselhamento jurídico perfeitamente correto oferecido pelo Estado
foi recusado, embora o advogado original tivesse sido mantido.
O cliente de Berner tinha vinte e três anos e era de Dalston, um homem jovem e algo sonhador cujo principal defeito era a passividade. E a incapacidade de comparecer
aos encontros marcados. Sua mãe era alcoólatra e viciada em drogas; o pai, com problemas semelhantes, praticamente esteve ausente na infância de Wayne, marcada pelo
caos e pelo abandono. Ele amava a mãe e, segundo insistia, ela o amava. Ela nunca havia batido nele. Passou a maior parte da adolescência tomando conta da mãe, faltando
muito à escola. Saiu de casa com dezesseis anos, trabalhou em empregos de baixo nível — numa fábrica de depenar frangos, como trabalhador braçal, num armazém, enfiando
anúncios em caixas de correio. Cinco anos antes, com dezoito, fora injustamente acusado de estupro por uma moça, ficou detido numa prisão para jovens durante algumas
semanas e depois ganhou uma tornozeleira eletrônica que o obrigou a não sair de casa à noite por seis meses. A troca de textos nos celulares oferecia boas provas
de que o sexo havia sido consensual, mas a polícia se recusou a investigar. Tinham metas a alcançar em casos de estupro. Gallagher era o tipo perfeito para eles.
No primeiro dia do julgamento, o testemunho arrasador da melhor amiga da acusadora fez com que o caso fosse encerrado. A suposta vítima pretendia receber uma compensação
financeira do programa de assistência do governo. Queria comprar um novo Xbox. Passara uma mensagem a uma amiga anunciando sua intenção. O promotor foi visto atirando
a peruca no chão e resmungando: “Garota imbecil”.
“Outra mancha em seu registro criminal”, disse Berner, “foi que, quando Gallagher tinha dezesseis anos, arrancou o capacete de um policial. Uma brincadeira idiota.
Mas lá ficou anotado como ‘agressão a policial’.”
A primavera chegou, minha adorada. É o mês abençoado dos que se amam.
O advogado estava próximo do cotovelo esquerdo de Fiona, em frente à estante de partituras. De jeans preto e justo, além de um suéter também preto de gola olímpica,
ele a fazia lembrar um beatnik antiquado. Impressão só modificada pelos óculos de leitura presos por um cordão em volta do pescoço.
“Sabe, quando Cranham disse àqueles rapazes o que eles deviam esperar, dois deles falaram que queriam começar a cumprir imediatamente sua pena de prisão. Mansos
como ovelhas, perus fazendo fila para entrar no forno. Portanto Wayne Gallagher teve de ir com eles embora quisesse passar mais uma semana com sua companheira. Ela
havia acabado de ter um bebê. Por isso eu precisei viajar para um lugar horroroso para lá da área leste de Londres a fim de vê-lo. Thamesmead.”
Fiona virou a página da partitura. “Já estive lá”, ela disse. “Há coisas piores.”
Venha pois para essa margem coberta de musgo, aqui falaremos do nosso maravilhoso amor...
“Pense bem”, Berner continuou. “Quatro garotões de Londres — Gallagher, Quinn, O’Rourke, Kelly. Terceira ou quarta geração de irlandeses. Sotaques londrinos. Todos
estudaram na mesma escola. Escola pública mas bem razoável. O policial viu o nome deles e decidiu que eram arruaceiros. Nem se deu ao trabalho de ir atrás dos outros
quatro. Por isso os promotores adotaram a tese da ação conjunta, que eles usam para quadrilhas. Coisa simples. Um belo trabalhinho daqueles preguiçosos.”
“Mark”, ela murmurou, “precisamos trabalhar.”
“Estou quase acabando.”
Como se viu depois, a briga ocorreu diante de duas câmeras de segurança.
“Os ângulos eram perfeitos. Deu para ver todo mundo. E em cores decentes. Extraordinariamente nítido. Martin Scorsese não faria melhor.”
Berner teve quatro dias para se inteirar do caso, passar e repassar o DVD e memorizar os movimentos rápidos de uma briga de oito minutos filmada de duas posições
distintas, guardando de cor cada passo de seu cliente e dos outros sete. Observou o primeiro contato dos homens na calçada larga entre uma loja fechada com tábuas
e um telefone público, uma troca verbal raivosa, alguns empurrões, peitos estufados, fanfarronice masculina, o grupo amorfo indo para lá e para cá, em certo momento
saindo da calçada e indo para o meio da rua. Uma mão pegou um antebraço, a palma de outra empurrou um ombro. Então Wayne Gallagher, que estava atrás de seus companheiros,
levantou um braço e, infelizmente para ele, desferiu o primeiro e logo depois o segundo golpe. Mas seu punho estava alto demais, ele se encontrava muito atrás, seus
movimentos foram dificultados pela lata de cerveja na outra mão. Seus golpes foram ineficazes, e o sujeito que ele atacou mal se deu conta do que tinha acontecido.
Os grupos então se dividiram desordenadamente em dois, e Gallagher, ainda longe do centro da briga, atirou sua lata de cerveja. Um arremesso feito sem levantar o
braço acima da cabeça, e o suposto alvo só precisou limpar umas gotas de cerveja da camisa. Mas, indo à forra, um dos outros quatro contornou o grupo e acertou um
soco poderoso na cara de Gallagher, cortando-lhe o lábio e pondo fim ao envolvimento dele. Gallagher ficou parado, tonto, e se afastou da briga e do campo de visão
das câmeras.
A briga continuou sem ele. Um de seus colegas de escola, O’Rourke, deu um passo à frente e derrubou no chão o sujeito que socara Gallagher. Tão logo ele caiu, outro
amigo, Kelly, fraturou sua mandíbula com um pontapé. Meio minuto depois, outro homem foi ao chão, dessa vez chutado por Quinn, que abriu um dos lados do rosto do
adversário. Quando a polícia chegou, o sujeito que havia dado um soco em Gallagher se levantou e saiu correndo, foi se esconder no apartamento de sua namorada. Ele
tinha medo de ser preso e perder o emprego.
Fiona olhou para o relógio. “Mark...”
“Estou quase acabando, Meritíssima. O importante é que meu cliente ficou lá esperando pela polícia. O rosto coberto de sangue. Tão culpado de agressão quanto vítima
de agressão etc. e tal. Ossos quebrados, portanto se trata de um caso de ferimento grave causado intencionalmente. A polícia indiciou os quatro com base em vários
artigos do código, mas no tribunal a promotoria enfatizou a iniciativa conjunta e o consequente agravamento da pena, que vai de cinco a nove anos. A história de
sempre. Meu cliente não participou da violência. Ia ser sentenciado por crimes que outros cometeram e pelos quais nem havia sido indiciado. Ele se declarou não culpado.
Devia ter admitido a participação em perturbação da ordem, mas eu não estava lá para aconselhá-lo. Um advogado público deveria ter mostrado ao júri a fotografia
que a polícia tirou de seu rosto ensanguentado. De qualquer modo, o sujeito com a mandíbula fraturada se recusou a depor como vítima. Depôs apenas como testemunha
de acusação. Disse ao juiz que não entendia todo aquele estardalhaço. Não havia precisado de tratamento, tinha viajado de férias para a Espanha dois dias depois
da briga. Nos dois primeiros dias foi obrigado a tomar vodca de canudinho. Fim da história — essas foram suas palavras, é o que consta na transcrição.”
Continuando a ouvir, ela abriu os dedos formando um acorde mas não o tocou. Voltemos para casa, carregados de morangos silvestres.
“Obviamente, eu não podia fazer nada sobre o veredito do júri. Falei durante setenta e cinco minutos, tentando separar Wayne do resto, tentando baixar o nível do
indiciamento para um patamar de três a cinco anos de prisão. Defendi também com muito vigor a tese de que o Judiciário lhe devia seis meses de liberdade devido à
falsa acusação de estupro. Com isso ele receberia uma punição mas obteria a suspensão da pena de detenção, que era tudo o que merecia por causa da sua imbecilidade.
Os outros três advogados falaram por dez minutos em defesa de seus clientes. Cranham fez um resumo. Filho da mãe preguiçoso. Graças a Deus aceitou baixar o nível
da condenação para aquele que eu havia pedido, mas não abandonou a tese da iniciativa comum e esqueceu de se manifestar a respeito da questão que eu havia suscitado,
sobre o tempo que o Judiciário devia ao meu cliente. Dois anos e meio para todos. Preguiçoso e cruel. Mas, na galeria, os parentes dos outros três choravam de alívio.
Estavam esperando um mínimo de cinco anos. Acho que fiz um favor a eles.”
Fiona disse: “O juiz se valeu da sua faculdade de reduzir o nível de indiciamento. Considere-se um homem de sorte”.
“Não é disso que se trata, Fiona.”
“Vamos começar. Temos menos de uma hora.”
“Escute até o fim. Esse é o meu discurso de pedido de demissão. Todos aqueles sujeitos tinham um emprego. Poxa vida, pagavam impostos! Meu cliente não feriu ninguém.
À luz de sua história pregressa, ele vinha contrariando todas as probabilidades e se revelando um pai que cuidava do filho. Kelly era técnico de um time de futebol
juvenil nas horas vagas. O’Rourke trabalhava nos fins de semana numa instituição de amparo a vítimas da fibrose cística. Não se tratou de um ataque a transeuntes
inocentes. Foi uma briga do lado de fora de um pub.”
Ela levantou os olhos da partitura. “Uma fratura de mandíbula?”
“Tudo bem. Uma briga. Entre adultos que sabiam o que faziam. De que serve encher as prisões com esse tipo de gente? Gallagher deu dois socos inofensivos e atirou
uma lata de cerveja vazia. Dois anos e meio. A grave condenação por crimes pelos quais nem foi indiciado. Está indo para uma prisão especial de jovens, você sabe,
dentro do presídio de Belmarsh. Já estive lá algumas vezes. O site diz que eles têm uma ‘academia de ensino’. Mentira das boas! Tive clientes que ficavam dentro
da cela vinte e três horas por dia. Os cursos são cancelados o tempo todo. Dizem que falta pessoal. Cranham, com seu cansaço fingido, querendo dar a impressão de
que é irritadiço demais para ouvir qualquer um. Não liga a mínima para o que pode acontecer com esses rapazes! Jogados naqueles infernos, se tornando amargos, aprendendo
a ser criminosos. Sabe qual foi o meu maior erro?”
“Qual?”
“Tentei caracterizar o caso como de bebedeira e ânimos exaltados. A violência foi consensual. ‘Se esses quatro senhores fossem membros do Bullingdon Club da universidade
de Oxford, não estariam aqui à sua frente, Meritíssimo.’ Com um pressentimento horrível, quando voltei para casa, pesquisei quem era Cranham no Who’s Who. Arrisque
um palpite.”
“Ah, meu Deus, Mark. Você está precisando de férias.”
“Abra os olhos, Fiona. É a merda da luta de classes.”
“E na Vara de Família é só champanhe e fraises des bois.”
Sem esperar mais, ela começou a tocar os dez compassos da introdução, os acordes suavemente insistentes. Do canto do olho, viu que ele punha os óculos de leitura.
E então a bonita voz de tenor, obedecendo à instrução dolce do compositor, se fez ouvir com doçura.
Quand viendra la saison nouvelle,
Quand auront disparu les froids...
Por cinquenta e cinco minutos não pensaram um só minuto no direito.
Em dezembro, no dia do concerto, ela chegou em casa, de volta do tribunal, às seis da tarde, apressada para tomar um banho e mudar de roupa. Ouviu Jack na cozinha
e lhe deu um oi a caminho do quarto. Curvado diante da geladeira, ele respondeu com um grunhido. Quarenta minutos depois ela apareceu no corredor num vestido de
seda preta e sapatos de salto alto de verniz preto, os quais lhe garantiriam uma boa alavanca para trabalhar os pedais. Usava no pescoço uma corrente simples de
prata. O perfume era Rive Gauche. Do hi-fi raramente usado da sala de visitas, veio o som de música para piano, um velho disco de Keith Jarrett, Facing You. A primeira
música. Ela parou do lado de fora do quarto para ouvir. Fazia muito tempo que não ouvia a melodia hesitante e só revelada em parte. Tinha se esquecido de como aos
poucos a melodia ganhava confiança e se tornava subitamente viva à medida que a mão esquerda mergulhava num boogie estranhamente modificado, cada vez mais potente,
impossível de ser freado como uma locomotiva a vapor em aceleração. Só um músico com formação clássica, como Jarrett, seria capaz de fazer com que cada mão fosse
tão independente da outra.
Jack estava lhe enviando uma mensagem, pois se tratava de um dos três ou quatro álbuns que serviram de fundo musical no início do relacionamento deles. Naqueles
dias, depois dos exames finais, depois da encenação de Antônio e Cleópatra só por mulheres, quando ele a persuadiu a passar uma noite, e mais tarde dezenas delas,
no quarto sob o beiral do telhado com a janelinha que dava para o leste. Quando ela entendeu que o êxtase sexual era mais que uma expressão exagerada. Quando, pela
primeira vez desde os seus sete anos, gritou de prazer. Ela havia caído de costas num espaço remoto e desabitado, e mais tarde, lado a lado na cama, os lençóis os
cobrindo só até a cintura como nas poses dos artistas de cinema depois de fazerem sexo, riam da barulheira que ela havia feito. Por sorte, não havia ninguém no apartamento
de baixo. Jack, com seu jeito controlado e cabeleira comprida, disse que era o maior elogio que ele já havia recebido. Ela lhe disse que não conseguia imaginar como
iria recobrar suas forças, na espinha, nos ossos, para fazer aquilo de novo. Se é que queria voltar viva. Mas o fez, e com frequência. Era jovem.
Nessa época, quando não estavam juntos na cama, ele procurava seduzi-la ainda mais através do jazz. Gostava de vê-la tocar, porém queria afastá-la à força da tirania
das notações rígidas e dos gênios havia muito falecidos. Punha para ela ouvir “Round Midnight”, de Thelonious Monk, e lhe deu a partitura. Não era difícil de interpretar.
Mas a versão dela, suave e sem acentos, soava como uma peça medíocre de Debussy. Tudo bem, Jack dizia. Os grandes mestres do jazz adoravam Debussy e aprendiam com
ele. Fiona ouvia outra vez, persistia, tocava o que se encontrava à sua frente, mas aquilo não era jazz. Não havia pulsação, nenhum sincopado, nenhuma liberdade,
os dedos sem vida própria seguindo obedientemente a marcação dos compassos e as notas tal como escritas. Por isso ela estava estudando direito, disse a seu amante.
Respeito pelas regras.
Fiona desistiu, mas de fato aprendeu a ouvir, e Jarrett foi o pianista que mais admirou. Levou Jack para ouvi-lo no Coliseu de Roma. A facilidade técnica, o jorro
espontâneo de invenção lírica tão copioso quanto o de Mozart, e lá estava ele depois de tantos anos ainda a fazendo parar e lembrar como outrora ela e Jack haviam
se divertido juntos. A música fora artisticamente escolhida.
Seguiu pelo corredor e parou de novo na entrada da sala de visitas. Ele estivera ocupado. Dois abajures com lâmpadas havia muito queimadas estavam por fim acesos.
Várias velas espalhadas pela sala. As cortinas cerradas ocultando a chuva fina da noite de inverno e, pela primeira vez em mais de um ano, um fogo decentemente preparado
na lareira, com lenha além do carvão. Jack estava a postos com uma garrafa de champanhe na mão. À sua frente, numa mesa baixa, um prato de presunto, azeitonas e
queijo.
Ele vestia um terno preto e camisa branca sem gravata. Ainda esbelto. Aproximou-se, entregou-lhe uma taça de champanhe flute e a encheu, servindo-se depois. Manteve
uma expressão séria enquanto erguiam as taças e as faziam tilintar.
“Não temos muito tempo.”
Ela entendeu que ele se referia ao fato de que, em breve, deveriam sair e ir caminhando até o Great Hall. Loucura beber antes de um concerto, mas ela não ligou.
Tomou um segundo gole substancial e o seguiu até perto do fogo. Ele lhe ofereceu o prato, Fiona pegou um pedaço de parmesão e cada qual ficou num lado da lareira,
apoiando-se na cornija. Como dois enfeites enormes, ela pensou.
Ele disse: “Quem sabe quanto tempo temos. Não muitos anos. Ou voltamos a viver outra vez, a realmente viver, ou entregamos os pontos e aceitamos que vai ser uma
droga daqui até o fim”.
O velho tema dele. Carpe diem. Ela ergueu a taça e disse em tom solene: “Ao nosso reviver”.
Viu a ligeira mudança no semblante de Jack. Alívio e, por trás disso, algo mais intenso.
Jack reencheu a taça dela. “Por falar nisso, seu vestido é fabuloso. Você está muito bonita.”
“Obrigada.”
Olharam-se no fundo dos olhos até não haver mais nada a fazer senão avançarem um na direção do outro e se beijarem. Beijaram-se de novo. A mão dele pousou de leve
na parte de baixo das costas de Fiona sem descer até a coxa, como ele costumava fazer. Estava avançando por etapas, e sua delicadeza a tocou. Se não estivessem sujeitos
a um grande dever musical e social, ela não tinha dúvida sobre o que se seguiria àquele momento de distensão. Mas a partitura estava atrás dela na chaise longue
e eles estavam obrigados a se manter vestidos da cabeça aos pés. Por isso trocaram um abraço apertado e se beijaram mais uma vez; voltando a se separar, pegaram
as taças, as tocaram em silêncio e beberam.
Ele tampou a garrafa de champanhe com um aparelhinho engenhoso, dotado de mola, que ela lhe dera fazia tempo no Natal. “Para depois”, Jack disse, e ambos riram.
Pegaram os casacos e saíram. Para se equilibrar nos saltos altos, Fiona caminhou apoiada no braço do marido e sob o guarda-chuva dele, mantido galantemente sobre
a cabeça dela.
“Você é que é a artista”, ele disse. “Você é quem está de vestido de seda.”
A azáfama de conversas e risadas anunciou a presença de uns cento e cinquenta espectadores, cada qual com um copo de vinho na mão. As cadeiras haviam sido dispostas,
porém ninguém se sentara ainda, o Fazioli e uma estante musical aguardando no palco. Eram todos moradores da região, membros do Judiciário, a maior parte da vida
profissional e social dela reunida num único lugar. Por mais de trinta anos ela havia cooperado ou se confrontado com dezenas de pessoas que via ali no salão. Vários
magistrados eminentes, muitos de fora, da Lincoln’s Inn, do Inner Temple ou do Middle Temple — o próprio lorde que presidia o Judiciário, alguns membros do Tribunal
de Recursos, dois juízes da Corte Suprema, o promotor geral, uns vinte advogados famosos. Os executivos da lei, que decidiam a sorte das pessoas e privavam cidadãos
de sua liberdade, tinham desenvolvido um senso de humor peculiar e paixão pelas conversas sobre assuntos profissionais. O barulho era ensurdecedor. Em poucos minutos
ela e Jack se perderam de vista. Alguém se aproximara e pedira a ajuda dele com alguma frase em latim. Ela foi atraída para um grupo que fofocava sobre um amigo
excêntrico do presidente da Vara Cível, a segunda maior autoridade judiciária do país. Ela nem precisava se mover de onde estava. Os amigos vinham abraçá-la e lhe
desejar boa sorte, outros apertavam sua mão. Tinha sido um golpe de gênio do comitê de advogados da Gray’s Inn permitir que os concertos fossem precedidos de uma
vasta reunião social. Vinho, Fiona esperava, poderia mitigar as faculdades críticas dos frequentadores assíduos do Wigmore Hall.
Quando um garçom se aproximou com uma bandeja de prata, ela estava se sentindo bem demais para recusar. Ao pegar uma taça, Mark Berner surgiu em sua linha de visão,
a uns quinze metros de distância e com umas cem pessoas entre eles, sacudindo um dedo em sinal de proibição. Claro que ele tinha razão. Ela ergueu a taça na direção
dele e tomou um pequeno gole. Um amigo, valoroso magistrado, levou-a para lhe apresentar um advogado “brilhante” que por acaso era seu sobrinho. Observada pelo tio
orgulhoso, ela fez perguntas solícitas a um jovem magricela com uma gagueira dolorosa. Começava a desejar companhias mais animadas, quando uma velha colega da Middle
Temple apareceu de repente e a roubou, levando-a para um grupo de expansivas e jovens advogadas, que lhe disseram, de forma brincalhona, que não estavam recebendo
as causas de maior qualidade, todas entregues aos homens.
Funcionários do salão começaram a circular anunciando que o concerto estava prestes a começar. As pessoas se instalaram com relutância nas cadeiras. Era difícil
trocar subitamente um bom vinho e fofocas por música solene. Mas, com os copos sendo recolhidos, o alarido foi se amainando. Ela ia caminhando para os degraus do
lado direito do palco, quando sentiu um toque no ombro e se voltou. Era Sherwood Runcie. O juiz do caso de Martha Longman. Por alguma razão ele vestia um smoking,
o que conferia um ar patético, de bicho apanhado numa armadilha, a homens de certa idade com panças volumosas. Pousou a mão no braço de Fiona desejando transmitir-lhe
uma informação de interesse dela que fora mantida fora dos jornais. Ela se inclinou para ouvir suas palavras. Com a mente já focada no concerto, a pulsação se acelerando,
foi difícil concentrar-se no que era dito, embora tivesse a impressão de havê-lo entendido. Quando ia pedir ao juiz que repetisse, deu-se conta de que Mark, à sua
frente, se voltava para ela fazendo sinais impacientes. Endireitou o corpo, agradeceu a Runcie e seguiu o tenor na direção do palco.
Enquanto esperavam ao pé da escadinha que a audiência se acomodasse e fossem chamados, Mark disse: “Você está se sentindo bem?”.
“Estou bem. Por quê?”
“Parece pálida.”
“Hum.”
Automaticamente, ela tocou seu cabelo com a ponta dos dedos de uma das mãos. Na outra estava a partitura, que segurou com ainda mais força. Será que estava com uma
cara ruim? Calculou o que havia bebido. Não mais do que três goles de vinho branco. Mark a advertira para não beber. Umas duas taças ao todo. Ia ficar bem. Ele lhe
deu a mão ao subirem os degraus e até chegarem junto ao piano, quando ambos curvaram a cabeça num gesto de saudação e receberam o tipo de aplauso reservado ao time
da casa. Afinal de contas, aquele era o quinto concerto de Natal deles no Great Hall. Depois de se sentar, pôr a partitura no lugar e ajustar o banco, ela respirou
fundo e expirou devagar para se livrar dos últimos retalhos das conversas recentes, do advogado gago, das jovens carentes de trabalho. E de Runcie. Não. Não havia
tempo para pensar. Mark acenou com a cabeça para ela a fim de mostrar que estava pronto, e de imediato seus dedos passaram a extrair do colossal instrumento os acordes
suavemente ondulantes, parecendo carregar consigo sua mente. A entrada do tenor foi perfeita e, depois de alguns poucos compassos, eles estavam congregados numa
unidade de propósitos raramente atingida nos ensaios, não mais se concentrando apenas em fazer as coisas certas, mas capazes de se dissolver na música sem o menor
esforço. Passou por sua cabeça que ela havia bebido a quantidade certa de vinho. O poder macio e profundo do Fazioli a despertou. Era como se ela e Mark estivessem
sendo levados com facilidade rio abaixo numa corrente de notas. A voz dele soava mais cálida em seus ouvidos, perfeitamente afinada, livre do vibrato não pedido
pela melodia e que ele às vezes exibia, livres para explorarem todas as delícias da composição de Berlioz para a “Villanelle” e depois para o “Lamento”, toda a tristeza
da linha abruptamente cadente: Ah! Sans amour s’en aller sur la mer! Sua interpretação jorrava de forma espontânea. À medida que seus dedos tocavam as teclas, ela
se ouvia como se estivesse sentada no fundo da sala, como se dela só se exigisse estar presente. Juntos, Fiona e Mark penetraram no hiperespaço sem horizonte do
fazer musical, mais além do tempo e do espaço. Ela tinha a vaga noção de que algo a esperava na volta, um pontinho estranho lá embaixo numa paisagem bem conhecida.
Talvez nem estivesse lá, talvez não fosse verdade.
Eles vieram à tona como se saídos de um sonho, lado a lado, para se defrontar de novo com a audiência. O aplauso foi retumbante, mas sempre era. No espírito de generosidade
que imperava no Great Hall durante a festa natalina, era com frequência ainda mais alto para as performances modestas. Foi só ao trocar olhares com Mark e ver o
brilho em seus olhos que ela se certificou de que haviam rompido os limites usuais dos músicos amadores. Tinham de fato contribuído com alguma coisa para a peça.
Se havia uma mulher na plateia que Mark quisesse impressionar, então ela teria sido cortejada no estilo antigo e sem dúvida ficaria caída por ele.
De repente se fez silêncio quando tomaram posição para o Mahler. Agora ela estava sozinha. A longa introdução pareceu estar sendo inventada pela pianista enquanto
se desenrolava. Com infinita paciência, duas notas soaram de forma hesitante, foram repetidas, outra se somou a elas, as três foram repetidas, e só ao surgir a quarta
nota a linha se estendeu luxuriosamente para cima numa das mais adoráveis melodias que Mahler compôs em toda a sua vida. Ela não se sentiu exposta de um modo desagradável.
Conseguiu mesmo alcançar o que é uma segunda natureza para os mestres do piano, extraindo um som de sino de certas notas acima do dó médio. Em outros trechos, achou
que, pela forma como tocava, era capaz de persuadir seus ouvintes de que percebiam a harpa presente na versão para orquestra. Desde sua entrada, Mark absorveu o
espírito de serena resignação. Por alguma razão ele havia insistido em cantar em inglês, e não em alemão, uma liberdade só concedida aos amadores. A vantagem era
a compreensão instantânea que todos tinham de um homem que se afastava do tumulto. Eu realmente me sinto como se estivesse morto para o mundo. Os dois tiveram a
certeza de que dominavam a audiência, e o desempenho deles ganhou ainda mais força. Fiona também sabia que estava avançando com passos majestosos rumo a algo terrível.
Era verdade, não era verdade. Só saberia quando a música cessasse e ela confrontasse aquilo.
De novo o aplauso, as reverências apenas esboçadas e, agora, pedidos de bis. Ouviram-se até pés batendo no chão, cada vez mais ruidosos. Os dois executantes se entreolharam.
Lágrimas nos olhos de Mark. Um gosto metálico na boca de Fiona ao voltar a se sentar no banco do piano enquanto a plateia silenciava. Manteve durante alguns segundos
as mãos no colo e a cabeça baixa, recusando-se a olhar para seu parceiro. Da seleção de peças que sabiam de cor, já haviam se decidido por “An die Musik”, de Schubert.
Uma velha favorita. Nunca falhava. Pôs as mãos sobre as teclas, se preparando, sem ainda erguer a vista. O silêncio na sala era absoluto, e então ela começou. O
fantasma de Schubert talvez tenha abençoado a introdução que tocou, mas as três notas que subiam, um acorde incompleto carinhosamente ecoado mais abaixo, e depois
ainda mais abaixo até por fim se tornar harmônico, pertenciam a alguma outra mão. Nas notas tranquilas e repetidas que pulsavam no fundo, talvez houvesse uma homenagem
a Berlioz. Quem saberia? Até a canção de Mahler, com sua aceitação melancólica, talvez tenha subliminarmente ajudado Britten em seu arranjo. Fiona não sinalizou
nenhum pedido de desculpa para Mark. Seu rosto permanecia tão rígido como fora antes seu sorriso. E ela só olhava para as mãos. Ele teve apenas alguns segundos para
reorganizar seus pensamentos, mas estava sorrindo ao sorver o ar e seu tom foi doce, e ainda mais doce no segundo verso.
Num campo junto ao rio, meu amor pousou de leve
A mão branca como a neve
No meu ombro inclinado, me dizendo
Que levasse a vida com leveza,
Como o capim cresce na margem da represa;
Mas eu era jovem e tolo, e hoje só me resta chorar.
Tratava-se de uma plateia sempre generosa mas que raramente se punha de pé para fazer uma ovação. Isso era coisa para concertos de música pop, assim como gritos
e assobios. Mas todos se levantaram de uma só vez, notando-se somente alguma hesitação de algumas figuras mais eminentes do Judiciário. Alguns entusiastas mais jovens
gritaram e assobiaram. Mas Mark Berner recebeu o tributo sozinho, com uma mão pousada no piano, balançando a cabeça e sorrindo em agradecimento, enquanto também
observava com preocupação a pianista, que atravessava às pressas o palco, olhos postos no chão, e descia os degraus, abrindo caminho entre os componentes do quarteto
de cordas, que aguardavam sua vez, e se dirigindo em passos largos para a saída. Como todos deduziram que a experiência devia ter sido incomumente intensa para ela,
magistrados e amigos foram compreensivos e bateram palmas ainda mais fortes quando passou diante deles.
Fiona pegou o casaco e, sem se importar com a nova chuvarada, caminhou até o seu apartamento tão depressa quanto ousava com salto alto. Na sala de visitas, umas
poucas velas permaneciam acesas, como eles descuidadamente as haviam deixado. Ainda de casaco, o cabelo grudado no crânio, água escorrendo pelo pescoço e pelas costas,
ela ficou imóvel, tentando recordar o nome de uma mulher. Tanta coisa acontecera desde que havia pensado nela pela última vez. Lembrava-se de um rosto, ouvia uma
voz, e aí o nome voltou. Marina Greene. Fiona pegou o celular na bolsa e fez a chamada. Desculpou-se por telefonar àquela hora. A conversa foi breve porque crianças
gritavam ao fundo e a voz da jovem denotava cansaço e irritação. Sim, ela confirmava. Quatro semanas atrás. Deu os poucos detalhes que sabia e se disse surpresa
pela juíza não haver sido informada.
Fiona continuou parada no mesmo lugar, o olhar fixo, por nenhuma razão em particular, no prato de comida preparado por Jack, a cabeça misericordiosamente vazia.
A música que acabara de tocar não ressoava em seus ouvidos como costumava acontecer. Já havia se esquecido do concerto. Até onde era neurologicamente possível não
pensar, ela não tinha nenhum pensamento. Passaram-se vários minutos. Impossível saber quantos. Voltou-se ao ouvir um ruído. O fogo estava nas últimas, se desmanchando
na grelha. Foi até lá, se ajoelhou e cuidou de reanimá-lo levantando fragmentos de lenha e carvão com as mãos e não com as tenazes, e os colocando em cima ou perto
das brasas. Depois de três sopros do fole, uma lasca de pinho pegou fogo, que se espalhou para dois pedaços maiores enquanto ela observava. Aproximou-se e deixou
que o espetáculo das pequenas chamas, com seus movimentos espásticos contra o negror do carvão, enchesse seus olhos.
Por fim, os pensamentos chegaram sob a forma de duas perguntas insistentes. Por que você não me disse? Por que não pediu minha ajuda? A resposta veio em sua própria
voz imaginada. Fiz isso. Ela se levantou, consciente da dor nos quadris ao caminhar até o quarto para pegar o poema na mesinha de cabeceira, onde ficara por seis
semanas. Não tinha podido reler o poema por causa de seu tom melodramático e pela sugestão puritana de que a busca da liberdade, ao atirar a pesada cruz no rio e
receber um beijo casto, deviam ser inspiradas por Satã. Havia algo pegajoso ou sufocante naquela parafernália cristã — a cruz, a árvore de Judas, as trombetas. E
ela era a mulher pintada, o peixe com arco-íris nas escamas, a criatura traiçoeira que levou o poeta para o mau caminho e o beijou. Sim, aquele beijo. Foi a culpa
dela que a tinha mantido distante.
Ela se agachou outra vez perto do fogo e pôs o poema à sua frente sobre o tapete Bokhara. Como havia mexido no carvão, suas impressões digitais ficaram marcadas
no topo da página. Foi direto ao último verso — Jesus Cristo milagrosamente de pé sobre as águas do rio, anunciando que o peixe era Satã disfarçado e que o poeta
devia “pagar o preço”.
O beijo dela era o beijo de Judas e traiu meu nome.
Morte àquele
Fiona alcançou os óculos na mesa atrás dela e se inclinou para ler as palavras riscadas e circundadas. “Faca” havia sido riscada, assim como “preço”, “Deixe que
ele” e “culpa”. As palavras “ele próprio” tinham sido riscadas, depois recolocadas e mais uma vez eliminadas. “Não deve” foi substituído por “deve”, “afundei” por
“afoguei”. “Morte àquele” se destacava, sem um círculo em volta, flutuando acima da confusão com uma seta para indicar que deveria substituir “E”. Fiona estava pegando
o jeito do método e da caligrafia dele. E de repente tudo ficou claro. Havia mesmo uma linha sinuosa conectando as palavras escolhidas. O Filho de Deus tinha proferido
uma maldição.
Morte àquele que afogou minha cruz com as próprias mãos.
Ela não se voltou ao ouvir a porta da frente sendo aberta, e foi assim que Jack a viu de relance ao passar pela sala de visitas em direção à cozinha. Achou que ela
estivesse cuidando da lareira.
“Capricha no fogo”, ele disse. E já mais afastado: “Você foi brilhante! Todo mundo adorou. E tão emocionante!”.
Quando voltou com o champanhe e duas taças limpas, ela havia se posto de pé para tirar o casaco, jogando-o sobre as costas de uma cadeira, e se livrar do sapato.
Estava de pé no meio da sala, esperando. Ele não percebeu sua palidez ao lhe dar uma das taças, que ela ergueu para ser servida.
“Seu cabelo. Quer que eu pegue uma toalha?”
“Daqui a pouco ele seca.”
Ele removeu a tampa de metal e encheu a taça de Fiona, depois a dele, que deixou sobre um móvel enquanto se dirigia à lareira, onde despejou a cesta de carvão e
pôs três pedaços grandes de lenha ensarilhados. Ligou o hi-fi, para tocar de novo o disco de Jarrett.
Ela murmurou: “Jack, agora não”.
“Claro. Depois de hoje à noite! Burrice minha.”
Vendo que Jack queria retornar rapidamente à situação em que se encontravam antes do concerto, sentiu pena dele. Ele estava fazendo o possível. Logo, logo ia querer
beijá-la. Aproximou-se de Fiona e, no silêncio que passara a silvar nos ouvidos dela desde o instante em que o hi-fi foi desligado, tocaram suas taças e beberam.
Ele então comentou o desempenho dela e de Mark, das lágrimas de orgulho do tenor quando todos se puseram de pé ao final e o que as pessoas disseram depois.
“Saiu tudo bem”, ela disse. “Estou muito feliz que tudo correu bem.”
Ele não era músico e gostava unicamente de jazz e blues, mas fez observações bastante plausíveis sobre o concerto e se lembrava de cada peça executada. Les nuits
d’été havia sido uma revelação. Emocionou-o em particular o “Lamento”, chegou mesmo a entender o francês. Precisaria ouvir de novo o Mahler, porque percebeu um imenso
reservatório de sentimento na peça, mas não foi capaz de apreender tudo naquela primeira vez. Ficou contente de Mark ter cantado em inglês. Todos tinham vontade
de fugir do mundo, poucos ousavam fazê-lo. Ela escutou com seriedade, ou pareceu que o fazia, dando respostas breves ou assentindo com a cabeça. Sentia-se como um
paciente hospitalizado que deseja ardentemente que o visitante bondoso vá embora para que ele possa voltar a se sentir mal. O fogo pegou e Jack, notando que ela
tiritava, levou-a para perto da lareira e lá serviu o resto do champanhe.
Residiam na praça havia bastante tempo e ele conhecia os membros do Judiciário que eram seus vizinhos quase tão bem quanto ela. Começou a lhe falar das pessoas que
encontrara naquela noite. Os moradores do lugar eram muito unidos e os fascinavam. Aquele post mortem no final das noitadas era uma característica do relacionamento
dos dois. Era fácil para ela continuar resmungando uma resposta aqui e ali. Jack permanecia excitado com a performance dela e com o que imaginava que iria acontecer.
Ele contou sobre um criminalista que estava montando com outros uma escola gratuita. Precisavam de uma tradução em latim para o moto “Toda criança é um gênio”. Coisa
curta, que pudesse ser costurada no blusão escolar debaixo de uma fênix heráldica se erguendo das cinzas. Um problema fascinante. A ideia de gênio surgira no século
XVIII, e as palavras correspondentes a “criança” em latim traziam em geral a definição do gênero. Jack se saíra com “Cuiusque parvuli ingenium” — não tão forte quanto
gênio, mas o conceito de inteligência ou aptidão natural era um substituto razoável. Com um pouco de boa vontade, “parvuli” poderia englobar as meninas. Depois o
advogado havia perguntado se ele estaria interessado em criar um curso descontraído de latim para jovens de nível variado entre onze e dezesseis anos. Desafiador.
Irresistível.
Fiona ouviu sem exprimir nenhuma emoção. Nenhum filho seu jamais usaria aquele maravilhoso emblema. Deu-se conta de que estava excessivamente vulnerável.
Ela disse: “Seria uma coisa boa de fazer”.
Jack sentiu a falta de entusiasmo em sua voz e a olhou de forma diferente.
“Tem alguma coisa te incomodando.”
“Eu estou bem.”
Franzindo a testa ao relembrar a pergunta que deixara de fazer, ele disse: “Por que você saiu daquele jeito no fim?”.
Ela hesitou: “Foi demais para mim”.
“Quando todos se levantaram? Eu quase chorei.”
“Foi a última música.”
“O Mahler.”
“Não, ‘The Salley Gardens’.”
Ele achou a resposta engraçada e lhe lançou um olhar de descrença. Já a tinha visto executar aquela música com Mark dezenas de vezes. “Como assim?”
Havia também um toque de impaciência na atitude dele. Jack queria realizar a promessa de uma noite formidável, repor o casamento nos trilhos, beijá-la, abrir outra
garrafa, levá-la para a cama, fazer com que tudo se tornasse mais uma vez fácil entre os dois. Ela o conhecia bem, entendeu tudo e, de novo, teve pena de Jack. Mas
sentiu tudo isso de uma grande distância.
Ela disse: “Uma recordação. Do verão”.
“É mesmo?” Seu tom denotava apenas uma leve curiosidade.
“Um jovem tocou essa melodia para mim no violino. Ainda estava aprendendo a música. Foi num hospital. Acompanhei cantando. Acho que fizemos uma barulheira. Depois
ele quis tocar outra vez, mas eu precisava ir embora.”
Jack não estava interessado em quebra-cabeças. Esforçou-se para que sua voz não demonstrasse irritação. “Comece de novo. Quem era o rapaz?”
“Um jovem muito estranho e bonito.” Ela falou num tom vago, as palavras saindo lentamente.
“E?”
“Suspendi a sessão enquanto fui vê-lo em seu quarto no hospital. Você se lembra. Uma testemunha de Jeová, muito doente, recusando o tratamento. Saiu em todos os
jornais.”
Se precisava ser lembrado era porque naquela época ele estava instalado no quarto de Melanie. De outro modo, teria discutido o caso.
Ele disse com firmeza: “Acho que me lembro”.
“Permiti que o hospital o tratasse e ele se recuperou. A sentença teve... um grande efeito sobre ele.”
Como antes, estavam de um lado e do outro da lareira, que agora irradiava um forte calor. Ela fixou os olhos nas chamas. “Acho... acho que ele se apegou muito a
mim.”
Jack descansou a taça vazia. “Continue.”
“Quando eu estava no circuito, ele me seguiu até Newcastle. E eu...” Fiona não ia lhe contar o que havia acontecido lá, mas mudou de ideia. Não havia razão para
ocultar nada agora. “Ele andou na chuva para me encontrar e... eu fiz uma idiotice. No hotel. Não sei o que eu estava... Eu o beijei. Beijei o rapaz.”
Ele deu um passo atrás para se distanciar do calor do fogo, ou dela. Fiona não se importava mais.
Sussurrou: “Ele era uma pessoa muito doce. Queria vir morar conosco”.
“Conosco?”
Jack Maye tinha atingido a maioridade nos idos da década de 1970 em meio a suas múltiplas correntes de pensamento. Ensinara numa universidade durante toda a sua
vida adulta. Conhecia tudo sobre a falta de lógica dos padrões morais diferentes para homens e mulheres, mas esse saber não era capaz de protegê-lo. Fiona viu a
raiva no rosto dele, a tensão dos músculos em torno das mandíbulas, o olhar se endurecendo.
“Ele imaginou que eu poderia modificar sua vida. Acredito que queria me transformar numa espécie de guru. Achou que eu podia... Estava tão ávido, com tanta fome
de viver, de tudo. E eu não...”
“Então você o beijou e ele quis viver com você. O que é que está tentando me dizer?”
“Mandei-o embora.” Ela balançou a cabeça e não conseguiu continuar.
Em seguida olhou para Jack. Ele se manteve bem longe dela, os pés afastados, braços cruzados, o rosto ainda bonito e afável agora enrijecido pela raiva. Alguns pelos
prateados do seu peito escapavam pela gola aberta da camisa. Ela já o vira levantá-los vez por outra com um pente. A noção de que o mundo era repleto de tais detalhes,
de tantos pontos minúsculos da fraqueza humana ameaçou esmagá-la e ela se viu forçada a desviar os olhos.
Só agora, que a chuva tinha parado, eles perceberam que ela estivera martelando as janelas.
Naquele silêncio mais profundo, ele disse: “E o que aconteceu? Onde ele está agora?”.
Fiona respondeu baixinho, num tom monocórdio. “Eu soube hoje pelo Runcie. Algumas semanas atrás sua leucemia voltou e ele foi levado para o hospital. Recusou a transfusão
que queriam lhe dar. Foi sua decisão. Já tinha dezoito anos e ninguém pôde fazer nada. Com a recusa, seus pulmões se encheram de sangue e ele morreu.”
“Então ele morreu por suas crenças.” A voz de seu marido soou fria.
Ela o olhou sem entender. Deu-se conta de que não havia se explicado nem um pouco, que havia muita coisa que deixara de lhe contar.
“Acho que foi suicídio.”
Durante alguns segundos nenhum dos dois falou. Ouviram vozes, risadas e passos na praça. O espetáculo musical tinha acabado.
Jack limpou a garganta delicadamente. “Você estava apaixonada por ele, Fiona?”
A pergunta a derrubou. Deixou escapar um som terrível, um urro sufocado. “Ah, Jack, ele não passava de uma criança! Um menino. Um menino adorável!” E por fim ela
desandou a chorar, de pé junto à lareira, os braços caindo inermes ao longo do corpo, enquanto Jack observava, chocado por ver sua mulher, sempre tão contida, num
paroxismo de dor.
Fiona não conseguia falar, o choro não iria parar e ela não podia mais permitir que fosse vista naquele estado. Abaixou-se para pegar os sapatos e, só de meia, atravessou
correndo a sala e o corredor. Quanto mais se afastava dele, mais alto chorava. Entrou no quarto, bateu a porta e, sem acender a luz, se atirou na cama, enfiando
o rosto num travesseiro.
Meia hora depois, ao acordar das profundezas de um sonho em que subia por uma interminável escada vertical, ela não se recordava de haver caído no sono. Ainda confusa,
manteve-se deitada de lado, voltada para a porta. Por baixo dela, um fiapo de luz vindo do corredor trazia algum conforto. Mas não as cenas que visitavam sua imaginação.
Adam doente de novo, retornando à sua casa enfraquecido para ser recebido com amor pelos pais, encontrando os bondosos anciãos, readquirindo as crenças antigas.
Ou as usando como um pretexto perfeito para se destruir. Morte àquele que afogou minha cruz com as próprias mãos. Ela o reviu na penumbra em que o encontrara ao
visitar a unidade de tratamento intensivo. O rosto fino e pálido, as sombras roxas abaixo dos grandes olhos cor de violeta. A língua coberta por uma película branca,
braços como gravetos, tão doente, tão decidido a morrer, tão cheio de encanto e vida, páginas com seus poemas espalhadas pela cama, implorando a ela que permanecesse
e os dois tocassem de novo a música, quando Fiona precisava regressar ao tribunal.
Lá, com a autoridade e dignidade de sua posição, ela lhe havia oferecido, em vez da morte, toda a vida e o amor que se abriam diante dele. E proteção contra sua
religião. Sem fé, como o mundo deve ter lhe parecido ilimitado, belo e aterrador! Com tal pensamento, ela foi caindo de novo num sono ainda mais profundo e acordou
minutos depois ao ouvir o cantar e os suspiros das calhas do telhado. Será que a chuva iria parar algum dia? Viu a figura solitária caminhando pela alameda do Leadman
Hall, encurvada para se defender da tempestade de verão, avançando em meio às trevas, ouvindo os galhos que caíam. Ele devia ter visto à frente luzes na casa e sabido
que ela se encontrava lá. Tiritou de frio numa dependência dos fundos, sem saber o que fazer, aguardando uma oportunidade de falar com ela, arriscando tudo na busca
de — o quê, exatamente? E acreditando que poderia obtê-lo de uma mulher de sessenta anos que jamais arriscara nada na vida a não ser nuns poucos episódios estouvados
em Newcastle fazia muito tempo. Ela devia ter se sentido lisonjeada. E pronta. Em vez disso, num impulso poderoso e indesculpável, o beijara e depois o mandara embora.
Mais tarde, ela fugira também. Negara-se a responder às cartas dele. Negara-se a decifrar o alerta no poema dele. Que vergonha sentia agora dos temores mesquinhos
que tivera sobre sua reputação! Aquela transgressão escapava ao alcance de qualquer comitê disciplinar. Adam a tinha procurado e ela não ofereceu nada no lugar da
religião, nenhuma proteção, embora a lei fosse clara ao determinar que sua principal preocupação devia ser o bem-estar dele. Quantas páginas em quantos julgamentos
ela já não devotara a esse propósito? Bem-estar, felicidade, um conceito social. Nenhuma criança é uma ilha. Ela pensava que suas responsabilidades terminavam na
porta do tribunal. Mas como seria possível? Adam tratou de encontrá-la, querendo o que todo mundo quer, e que só pessoas de mente aberta, e não o sobrenatural, podiam
dar: um sentido para a vida.
Quando ela mudou de posição, sentiu contra o rosto o travesseiro úmido e frio. Agora inteiramente desperta, o empurrou para pegar outro, e se surpreendeu ao tocar
num corpo quente a seu lado, às suas costas. Voltou-se. Jack estava deitado com a cabeça apoiada na mão. Com a outra afastou o cabelo que cobria os olhos de Fiona.
Um gesto de ternura. A luz vinda do corredor lhe permitia apenas vislumbrar o rosto dele.
Jack disse simplesmente: “Fiquei vendo você dormir”.
Depois de algum tempo, bastante tempo, ela murmurou: “Obrigada”.
Fiona então perguntou se ele ainda a amaria depois de ela ter lhe contado toda a história. Era uma pergunta impossível de ser respondida, porque ele ainda não sabia
quase nada. Suspeitou que Jack tentaria persuadi-la de que não lhe cabia nenhuma culpa.
Ele pôs a mão no ombro dela e a puxou para si: “Claro que sim”.
Ficaram um diante do outro na semiescuridão e, enquanto a grande cidade lavada pela chuva entrava em seus ritmos noturnos mais suaves, e o casamento deles recomeçava
com movimentos titubeantes, Fiona lhe falou, numa voz calma e compassada, de sua vergonha, da paixão daquele doce rapaz pela vida e da parte que lhe cabia na morte dele.Apertou duas teclas para telefonar para o marido. Fugindo de um beijo, correndo para se proteger sob o manto de uma mulher casada de boa reputação, em busca de alguma
solidez. Fez a chamada sem pensar, por puro hábito, quase sem ter consciência da situação atual entre ela e Jack. Quando ouviu seu alô duvidoso, a acústica lhe disse
que ele se encontrava na cozinha. O rádio ligado, talvez Poulenc. Nas manhãs de sábado, embora acordassem cedo, sempre faziam, ou costumavam fazer, o desjejum sem
pressa, com vários jornais em cima da mesa, a rádio Três tocando baixinho, café e o pain aux raisins comprado na Lamb’s da Conduit Street esquentado no forninho.
Ele estaria com o robe de seda estampado com formas curvas. Barba por fazer, cabelo desgrenhado.
Num tom cuidadosamente neutro, Jack perguntou se estava tudo bem com ela. Quando Fiona respondeu que sim, ficou surpresa ao ver como tinha soado normal. Começou
a improvisar sem dificuldade, bem no instante em que Pauling, com um suspiro de satisfação, se recordou de um atalho e escapou do tráfego. Perfeitamente plausível,
em se tratando de rotina doméstica, lembrar Jack de que ela chegaria no fim do mês, e também natural, ou costumava ser, sugerir que na noite em que ela voltasse
eles deviam jantar fora. Um restaurante próximo de que gostavam costumava ter todos os lugares reservados com antecedência. Talvez ele pudesse fazer uma reserva
agora. Ele achou uma boa ideia. Ela o ouviu suprimir a surpresa na voz, manobrando com cuidado entre a cordialidade e a frieza. Perguntou de novo se ela estava bem.
Conhecia Fiona bem demais, e obviamente ela não parecia normal. Com uma ênfase maior, ela disse que estava ótima. Trocaram algumas palavras sobre assuntos de trabalho.
A chamada terminou com um adeus de Jack que soava quase como uma pergunta.
Mas tinha funcionado. Ela havia se livrado dos devaneios paranoicos para cair na realidade de um compromisso, de uma data, de um relacionamento melhorado. Sentiu-se
mais bem defendida e no todo mais sensata. Caso tivesse havido alguma queixa, ela já teria tomado conhecimento àquela altura. Tinha sido bom telefonar e dar continuidade
àquele momento indefinível no café da manhã. Útil se lembrar de que o mundo nunca era como ela o imaginava em momentos de ansiedade. Uma hora depois, quando o carro
começou a se arrastar pela congestionada A69 para entrar em Carlisle, ela estava enfronhada em documentos judiciais.
E foi assim que duas semanas depois, encerrada a temporada itinerante e distribuída a Justiça em quatro cidades do Norte, ela se encontrava diante do marido num
canto tranquilo de um restaurante na rua Clerkenwell. Entre os dois uma garrafa de vinho, bebido cautelosamente. Não devia haver nenhuma onda súbita de intimidade.
Mantiveram-se distantes do assunto que poderia destruí-los. Ele se dirigiu a ela de forma delicada e canhestra, como se Fiona fosse um tipo incomum de bomba capaz
de estourar no meio de qualquer frase. Ela perguntou a respeito do trabalho dele, o livro sobre Virgílio. Uma apresentação e uma seleção, um manual para escolas
e universidades que, ele comovedoramente acreditava, o faria ganhar um dinheirão. Nervosa, ela fez uma pergunta após a outra, consciente de que estava se comportando
como uma entrevistadora. Esperava observá-lo como se o fizesse pela primeira vez, captar o que havia de estranho nele como acontecera muitos anos antes ao se apaixonar
por ele. Não era fácil. Sua voz, seus traços eram tão familiares como os dela próprios. Seu rosto tinha uma expressão áspera, aflita. Atraente, é claro, mas não
para ela naquele instante. Fiona esperava que a mão dele, posta sobre a mesa perto do copo, não estivesse prestes a pegar a sua.
Lá para o fim da refeição, quando haviam esgotado os tópicos mais seguros, houve um silêncio ameaçador. Apetites saciados, as sobremesas e metade do vinho permaneciam
intocados. A recriminação mútua e não manifestada os perturbava. Na mente dela, ainda a aventura despudorada de Jack; na dele, ela supunha, o senso exagerado de
ofensa de Fiona. Num tom forçado, ele começou a relatar a palestra sobre geologia a que comparecera na noite passada. O palestrante havia descrito como a sequência
de camadas rochosas sedimentares pode ser lida como um livro que conta a história da Terra, permitindo-se algumas especulações no final. Cem milhões de anos no futuro,
quando a maior parte dos oceanos tiver afundado na crosta terrestre e não houver suficiente dióxido de carbono na atmosfera para sustentar as plantas, a superfície
do planeta tendo se transformado num deserto rochoso e sem vida, que provas teria de nossa civilização um geólogo que viesse do espaço? Algumas dezenas de centímetros
abaixo da superfície, haveria uma grossa linha negra que nos separaria de tudo o que aconteceu antes. Condensadas nessa camada de fuligem de quinze centímetros,
estariam nossas cidades, veículos, estradas, pontes, armas. Estariam também todos os tipos de substâncias químicas não encontradas no registro geológico anterior.
O concreto e os tijolos se desintegrariam tão facilmente quanto o calcário, nossos aços mais resistentes se transmudariam em manchas de ferro pulverizado. Um exame
microscópico mais cuidadoso poderia revelar uma preponderância de pólen das monótonas planícies cobertas de gramíneas que criamos para alimentar rebanhos gigantescos.
Com sorte, o geólogo poderia encontrar ossos fossilizados, até mesmo os nossos. Mas os animais, incluindo aí todos os peixes, mal corresponderiam a um décimo do
peso de todos os carneiros e vacas. O visitante espacial terminaria concluindo que estava observando o começo de uma extinção em massa na qual a variedade da vida
tinha começado a se estreitar.
Jack vinha falando havia cinco minutos. Estava oprimindo-a com o peso daquele tempo sem sentido. O deserto inimaginável de anos e o fim inevitável o animavam. Mas
não a ela. Sentiu-se invadida por um sentimento de desolação que pesava sobre seus ombros e descia até as pernas. Pegou o guardanapo do colo e o depositou sobre
a mesa num gesto de rendição, levantando-se a seguir.
Ele estava dizendo, como se aquilo o deixasse perplexo: “É assim que estamos assinando nosso nome no registro geológico”.
Ela disse: “Acho que está na hora de pedirmos a conta”, e caminhou rapidamente através do restaurante até o toalete, onde se postou na frente do espelho, olhos fechados,
pente na mão no caso de alguém entrar, respirando fundo e devagar algumas vezes.
O degelo não ocorreu de modo rápido nem linear. De início foi um alívio não ter de se evitarem conscientemente no apartamento, não competirem com toda frieza para
saber quem era mais cortês naquela forma sufocante que tinham adotado. Passaram a fazer as refeições juntos, começaram a aceitar convites para jantar com amigos,
conversaram — principalmente sobre assuntos de trabalho. Mas ele ainda dormia no quarto de hóspedes e, quando uma sobrinha de dezenove anos foi passar uns dias lá,
ele voltou a se instalar no sofá da sala de visitas.
Fim de outubro. Os relógios foram atrasados, marcando a última etapa de um ano exausto, e chegou a escuridão. Durante algumas poucas semanas, o clima de estagnação
voltou a imperar entre ela e Jack, quase tão sufocante como antes. Mas ela estava ocupada e cansada demais à noite para iniciar o tipo de conversa exigente que poderia
levá-los a um novo estágio. Além da carga normal de casos no Strand, ela estava presidindo um comitê encarregado de estudar novos procedimentos nos tribunais e participava
de outro que devia responder a um relatório do governo a respeito da reforma da legislação sobre a família. Se lhe sobrava alguma energia depois do jantar, ela se
exercitava sozinha ao piano, preparando-se para os ensaios com Mark Berner. Jack também estava ocupado, substituindo um colega enfermo na universidade e, em casa,
absorto na redação da longa introdução aos poemas selecionados de Virgílio.
O advogado incumbido de organizar as festas de Natal no Great Hall informara que eles haviam sido escolhidos para abrir o concerto. Tocariam no máximo por vinte
minutos, deixando uma margem de outros cinco minutos para o bis. Tempo suficiente para a seleção que haviam feito das canções do ciclo de Berlioz Les nuits d’été,
além de uma de Mahler, “Estou Perdido para o Mundo”, que fazia parte do Rückert-Lieder. O coral da Gray’s Inn cantaria algumas peças de Monteverdi e Bach, seguindo-se
um quarteto de cordas que interpretaria Haydn. Uma significativa minoria dos membros do Judiciário que moravam na Gray’s Inn passava muitas noites por ano ouvindo
música de câmara com grande concentração, as testas franzidas, no Wigmore Hall de Marylebone. Dominavam o repertório. Dizia-se que reconheciam uma nota errada antes
mesmo que ela fosse tocada. No concerto natalino, embora se servisse vinho antes e a atmosfera geral, ao menos na aparência, fosse amistosa, os padrões eram punitivamente
elevados para uma exibição de amadores. Às vezes Fiona acordava antes de o sol raiar e se perguntava se dessa vez estava em condições de enfrentar o desafio, se
havia algum modo de pular fora. Achava que lhe faltava a concentração necessária, e o Mahler era difícil. Tão languidamente lento e bem equilibrado. Ela ficaria
exposta. E o desejo germânico de não ser notada a tornava desconfortável. Mark, porém, estava ansioso para se exibir. Dois anos antes seu casamento havia fracassado.
Agora, segundo Sherwood Runcie, havia uma mulher em sua vida. Fiona desconfiava que ela estaria na plateia e Mark desejava ardentemente impressioná-la. Tinha até
pedido a Fiona que decorasse as canções, mas isso, ela lhe disse, estava além de sua capacidade. Apenas as três ou quatro pequenas peças para o bis estavam gravadas
em sua memória.
No final de outubro, em meio à correspondência entregue pela manhã no tribunal, ela viu o envelope azul que lhe era tão familiar. Pauling se encontrava no gabinete
naquela hora. Para ocultar seus sentimentos, uma mescla de excitação e vago temor, ela levou a carta para perto da janela e fingiu que observava alguma coisa lá
embaixo no pátio. Depois que Pauling saiu, tirou do envelope uma única página, dobrada em quatro e rasgada embaixo, na qual constava um poema inacabado. O título
em letras maiúsculas e sublinhado duas vezes: “A BALADA DE ADAM HENRY”. Apesar da caligrafia miúda, o longo poema ocupava a página inteira. Nenhuma carta o acompanhava.
Ela deu uma olhada no primeiro verso, não conseguiu se interessar, pôs a página de lado. Tinha um caso difícil dentro de meia hora, uma série de solicitações e contrassolicitações
conjugais que sem dúvida absorveria duas semanas de sua vida. Cada parte tencionava permanecer extremamente rica à custa da outra. Não era um momento oportuno para
ler poesia.
Dois dias se passaram antes que voltasse a abrir o envelope. Eram dez da noite. Jack estava assistindo a outra palestra sobre as camadas sedimentares, ou assim ele
disse, e ela preferiu acreditar. Instalou-se na chaise longue e abriu a página no colo. Pareciam versos medíocres, desses vistos em cartões de aniversário. Fiona
então se forçou para adotar um estado de espírito mais acolhedor. Afinal de contas, tratava-se de uma balada e ele só tinha dezoito anos.
A BALADA DE ADAM HENRY
Ergui minha cruz de madeira e a arrastei junto ao rio.
Eu era jovem e tolo, e perturbado pela ideia
De que a penitência era uma asneira e os encargos coisa de idiotas.
Mas aos domingos me diziam para seguir todas as regras.
As farpas feriam meu ombro, aquela cruz pesava mais que chumbo,
Minha vida de devoto era estreita, e quase morri.
O rio corria alegre e sorridente, a luz do sol dançando a seu redor,
Mas eu devia seguir meu caminho, olhos postos no chão.
Então um peixe pulou da água com um arco-íris nas escamas.
Pérolas de água saltitavam formando colares prateados.
“Jogue a cruz na água se você quer se libertar!”
Por isso, à sombra da árvore de Judas, afoguei no rio minha carga.
Num êxtase maravilhoso me ajoelhei na margem do rio
Enquanto, apoiada em meu ombro, ela me dava o beijo mais doce.
Mas mergulhou rumo ao fundo gélido onde nunca será encontrada,
E meus olhos se encheram de lágrimas até que ouvi o som das trombetas.
E Jesus se pôs de pé sobre as águas e me disse:
“Aquele peixe era a voz de Satã, e você deve pagar o preço.
O beijo dela era o beijo de Judas e traiu meu nome.
Morte àquele
Morte àquele o quê? As últimas palavras do verso final estavam perdidas em meio a um novelo de linhas entrecruzadas que davam voltas em torno de reconsiderações,
palavras cortadas e recolocadas, variantes com pontos de interrogação. Em vez de tentar decifrar aquela mixórdia, ela releu o poema e depois se reclinou, os olhos
fechados. Ficou sentida por Adam estar com raiva dela, pintando-a como Satã, e começou a compor em devaneio uma carta para ele, sabendo que nunca a enviaria pelo
correio ou mesmo a escreveria. Seu impulso era aquietá-lo ao mesmo tempo que se justificava. Recorreu a frases prontas. Tive de mandá-lo embora, Era o que melhor
servia a seus interesses, Você tem toda uma vida jovem pela frente. Depois, com maior coerência: Mesmo se tivéssemos outro quarto, você não poderia ser nosso inquilino.
Uma coisa dessas não é aceitável para uma juíza. Acrescentou: Adam, não sou Judas. Talvez uma velha truta... Essa última frase para dar um toque de leveza à sua
firme intenção de se autojustificar.
O “beijo mais doce” dela tinha sido irresponsável, e Fiona não escapara ilesa dele, não no que dizia respeito a Adam. Mas era um gesto de pura bondade não lhe responder.
Ele voltaria a escrever, apareceria à sua porta, ela precisaria enxotá-lo de novo. Dobrou a página outra vez e a recolocou no envelope, levando-o para o quarto e
guardando na gaveta da mesinha de cabeceira. Em breve ele superaria tudo. Também devia ter sido tragado de volta para a religião, ou então Judas, Jesus Cristo e
tudo o mais eram apenas recursos poéticos usados para dramatizar o pavoroso comportamento dela ao beijá-lo e depois mandá-lo embora num táxi. Seja lá o que fosse,
Adam Henry provavelmente teria grande sucesso nos exames de recuperação e iria para uma boa universidade. Ela esmaeceria nos pensamentos dele, se tornaria uma figura
menor em sua educação sentimental.
Eles estavam num pequeno cômodo sem mobília no porão do prédio onde Mark Berner morava. Ninguém se lembrava como um piano de armário Grotrian-Steinweg tinha sido
posto lá, ninguém fora buscá-lo em vinte e cinco anos, ninguém tencionava mudá-lo de lugar. Havia arranhões e marcas de cigarros no tampo, mas o mecanismo funcionava
bem e o som era aveludado. Do lado de fora, a temperatura estava abaixo de zero, com os primeiros centímetros de neve da estação dando um toque pitoresco à Gray’s
Inn Square. Ali, que chamavam de sala de ensaios, não havia aquecedores, mas certos canos, dos muitos que corriam ao longo de uma parede e datavam dos primórdios
da era vitoriana, emitiam um calor débil porém constante que mantinha o instrumento afinado. O assoalho era coberto por um tecido com estrias que lembrava veludo,
instalado na década de 1960; ele tinha sido colado ao cimento e agora, além de exibir muitas manchas de café, se erguia aqui e ali rebeldemente, provocando tropeções.
A iluminação provinha de uma resplandecente lâmpada de 150 watts atarraxada no teto baixo. Há muito Mark falava que ia instalar uma luminária. Além de uma estante
para partituras e do banco do piano, a única mobília adicional era uma frágil cadeira de cozinha na qual eram empilhados casacos e cachecóis.
Fiona estava sentada diante do teclado, as mãos entrelaçadas e postas sobre o colo para se aquecerem, estudando a partitura, Les nuits d’été num arranjo para piano
e tenor. Em algum canto de sua sala de visitas estaria o velho disco de vinil de Kiri Te Kanawa. Não o via fazia anos. E não os ajudaria agora. Precisavam urgentemente
trabalhar na peça porque até então só haviam feito dois ensaios. Mas Mark estivera no tribunal no dia anterior e continuava irritado, precisando dizer a ela a razão.
E o que ele pensava fazer no futuro, pois estava deixando a profissão. Já bastava. Era triste demais, idiotice demais, pondo a perder muitas vidas cheias de esperança.
Uma velha e vã ameaça, mas, sentada no banco e tiritando, ela se obrigou a ouvi-lo. Mesmo assim, não podia deixar de olhar para a abertura, a “Villanelle”, os acordes
se repetindo suavemente, as colcheias pulsando em staccato, imaginando a doce melodia ou criando suas próprias versões do primeiro verso de Gautier: Quando chega
a nova estação, quando o frio se foi...
O caso de Berner tinha a ver com quatro homens ainda jovens brigando do lado de fora de um pub perto da Ponte da Torre com outros quatro com quem haviam se encontrado
por acaso. Os oito tinham bebido. Só os quatro primeiros foram presos e indiciados. O júri havia decidido que eles eram culpados de provocar ferimentos graves intencionalmente,
aceitando o argumento do promotor de que tinham agido em conjunto, devendo assim receber igual punição independentemente do que cada um fizera. Estavam todos no
mesmo barco. Depois do veredito, anunciado uma semana antes da sentença, o juiz em Southwark, Christopher Cranham, tinha advertido os quatro de que deveriam esperar
longas condenações à prisão. A essa altura, Mark Berner foi chamado pelos parentes aflitos de um dos quatro, Wayne Gallagher. Graças a uma cotização entre os membros
da família e amigos, complementada por uma inteligente campanha nas redes sociais, conseguiram juntar as vinte mil libras necessárias. Tinham a esperança de que
um advogado de renome poderia obter uma mitigação da pena antes de Gallagher ser sentenciado. Um aconselhamento jurídico perfeitamente correto oferecido pelo Estado
foi recusado, embora o advogado original tivesse sido mantido.
O cliente de Berner tinha vinte e três anos e era de Dalston, um homem jovem e algo sonhador cujo principal defeito era a passividade. E a incapacidade de comparecer
aos encontros marcados. Sua mãe era alcoólatra e viciada em drogas; o pai, com problemas semelhantes, praticamente esteve ausente na infância de Wayne, marcada pelo
caos e pelo abandono. Ele amava a mãe e, segundo insistia, ela o amava. Ela nunca havia batido nele. Passou a maior parte da adolescência tomando conta da mãe, faltando
muito à escola. Saiu de casa com dezesseis anos, trabalhou em empregos de baixo nível — numa fábrica de depenar frangos, como trabalhador braçal, num armazém, enfiando
anúncios em caixas de correio. Cinco anos antes, com dezoito, fora injustamente acusado de estupro por uma moça, ficou detido numa prisão para jovens durante algumas
semanas e depois ganhou uma tornozeleira eletrônica que o obrigou a não sair de casa à noite por seis meses. A troca de textos nos celulares oferecia boas provas
de que o sexo havia sido consensual, mas a polícia se recusou a investigar. Tinham metas a alcançar em casos de estupro. Gallagher era o tipo perfeito para eles.
No primeiro dia do julgamento, o testemunho arrasador da melhor amiga da acusadora fez com que o caso fosse encerrado. A suposta vítima pretendia receber uma compensação
financeira do programa de assistência do governo. Queria comprar um novo Xbox. Passara uma mensagem a uma amiga anunciando sua intenção. O promotor foi visto atirando
a peruca no chão e resmungando: “Garota imbecil”.
“Outra mancha em seu registro criminal”, disse Berner, “foi que, quando Gallagher tinha dezesseis anos, arrancou o capacete de um policial. Uma brincadeira idiota.
Mas lá ficou anotado como ‘agressão a policial’.”
A primavera chegou, minha adorada. É o mês abençoado dos que se amam.
O advogado estava próximo do cotovelo esquerdo de Fiona, em frente à estante de partituras. De jeans preto e justo, além de um suéter também preto de gola olímpica,
ele a fazia lembrar um beatnik antiquado. Impressão só modificada pelos óculos de leitura presos por um cordão em volta do pescoço.
“Sabe, quando Cranham disse àqueles rapazes o que eles deviam esperar, dois deles falaram que queriam começar a cumprir imediatamente sua pena de prisão. Mansos
como ovelhas, perus fazendo fila para entrar no forno. Portanto Wayne Gallagher teve de ir com eles embora quisesse passar mais uma semana com sua companheira. Ela
havia acabado de ter um bebê. Por isso eu precisei viajar para um lugar horroroso para lá da área leste de Londres a fim de vê-lo. Thamesmead.”
Fiona virou a página da partitura. “Já estive lá”, ela disse. “Há coisas piores.”
Venha pois para essa margem coberta de musgo, aqui falaremos do nosso maravilhoso amor...
“Pense bem”, Berner continuou. “Quatro garotões de Londres — Gallagher, Quinn, O’Rourke, Kelly. Terceira ou quarta geração de irlandeses. Sotaques londrinos. Todos
estudaram na mesma escola. Escola pública mas bem razoável. O policial viu o nome deles e decidiu que eram arruaceiros. Nem se deu ao trabalho de ir atrás dos outros
quatro. Por isso os promotores adotaram a tese da ação conjunta, que eles usam para quadrilhas. Coisa simples. Um belo trabalhinho daqueles preguiçosos.”
“Mark”, ela murmurou, “precisamos trabalhar.”
“Estou quase acabando.”
Como se viu depois, a briga ocorreu diante de duas câmeras de segurança.
“Os ângulos eram perfeitos. Deu para ver todo mundo. E em cores decentes. Extraordinariamente nítido. Martin Scorsese não faria melhor.”
Berner teve quatro dias para se inteirar do caso, passar e repassar o DVD e memorizar os movimentos rápidos de uma briga de oito minutos filmada de duas posições
distintas, guardando de cor cada passo de seu cliente e dos outros sete. Observou o primeiro contato dos homens na calçada larga entre uma loja fechada com tábuas
e um telefone público, uma troca verbal raivosa, alguns empurrões, peitos estufados, fanfarronice masculina, o grupo amorfo indo para lá e para cá, em certo momento
saindo da calçada e indo para o meio da rua. Uma mão pegou um antebraço, a palma de outra empurrou um ombro. Então Wayne Gallagher, que estava atrás de seus companheiros,
levantou um braço e, infelizmente para ele, desferiu o primeiro e logo depois o segundo golpe. Mas seu punho estava alto demais, ele se encontrava muito atrás, seus
movimentos foram dificultados pela lata de cerveja na outra mão. Seus golpes foram ineficazes, e o sujeito que ele atacou mal se deu conta do que tinha acontecido.
Os grupos então se dividiram desordenadamente em dois, e Gallagher, ainda longe do centro da briga, atirou sua lata de cerveja. Um arremesso feito sem levantar o
braço acima da cabeça, e o suposto alvo só precisou limpar umas gotas de cerveja da camisa. Mas, indo à forra, um dos outros quatro contornou o grupo e acertou um
soco poderoso na cara de Gallagher, cortando-lhe o lábio e pondo fim ao envolvimento dele. Gallagher ficou parado, tonto, e se afastou da briga e do campo de visão
das câmeras.
A briga continuou sem ele. Um de seus colegas de escola, O’Rourke, deu um passo à frente e derrubou no chão o sujeito que socara Gallagher. Tão logo ele caiu, outro
amigo, Kelly, fraturou sua mandíbula com um pontapé. Meio minuto depois, outro homem foi ao chão, dessa vez chutado por Quinn, que abriu um dos lados do rosto do
adversário. Quando a polícia chegou, o sujeito que havia dado um soco em Gallagher se levantou e saiu correndo, foi se esconder no apartamento de sua namorada. Ele
tinha medo de ser preso e perder o emprego.
Fiona olhou para o relógio. “Mark...”
“Estou quase acabando, Meritíssima. O importante é que meu cliente ficou lá esperando pela polícia. O rosto coberto de sangue. Tão culpado de agressão quanto vítima
de agressão etc. e tal. Ossos quebrados, portanto se trata de um caso de ferimento grave causado intencionalmente. A polícia indiciou os quatro com base em vários
artigos do código, mas no tribunal a promotoria enfatizou a iniciativa conjunta e o consequente agravamento da pena, que vai de cinco a nove anos. A história de
sempre. Meu cliente não participou da violência. Ia ser sentenciado por crimes que outros cometeram e pelos quais nem havia sido indiciado. Ele se declarou não culpado.
Devia ter admitido a participação em perturbação da ordem, mas eu não estava lá para aconselhá-lo. Um advogado público deveria ter mostrado ao júri a fotografia
que a polícia tirou de seu rosto ensanguentado. De qualquer modo, o sujeito com a mandíbula fraturada se recusou a depor como vítima. Depôs apenas como testemunha
de acusação. Disse ao juiz que não entendia todo aquele estardalhaço. Não havia precisado de tratamento, tinha viajado de férias para a Espanha dois dias depois
da briga. Nos dois primeiros dias foi obrigado a tomar vodca de canudinho. Fim da história — essas foram suas palavras, é o que consta na transcrição.”
Continuando a ouvir, ela abriu os dedos formando um acorde mas não o tocou. Voltemos para casa, carregados de morangos silvestres.
“Obviamente, eu não podia fazer nada sobre o veredito do júri. Falei durante setenta e cinco minutos, tentando separar Wayne do resto, tentando baixar o nível do
indiciamento para um patamar de três a cinco anos de prisão. Defendi também com muito vigor a tese de que o Judiciário lhe devia seis meses de liberdade devido à
falsa acusação de estupro. Com isso ele receberia uma punição mas obteria a suspensão da pena de detenção, que era tudo o que merecia por causa da sua imbecilidade.
Os outros três advogados falaram por dez minutos em defesa de seus clientes. Cranham fez um resumo. Filho da mãe preguiçoso. Graças a Deus aceitou baixar o nível
da condenação para aquele que eu havia pedido, mas não abandonou a tese da iniciativa comum e esqueceu de se manifestar a respeito da questão que eu havia suscitado,
sobre o tempo que o Judiciário devia ao meu cliente. Dois anos e meio para todos. Preguiçoso e cruel. Mas, na galeria, os parentes dos outros três choravam de alívio.
Estavam esperando um mínimo de cinco anos. Acho que fiz um favor a eles.”
Fiona disse: “O juiz se valeu da sua faculdade de reduzir o nível de indiciamento. Considere-se um homem de sorte”.
“Não é disso que se trata, Fiona.”
“Vamos começar. Temos menos de uma hora.”
“Escute até o fim. Esse é o meu discurso de pedido de demissão. Todos aqueles sujeitos tinham um emprego. Poxa vida, pagavam impostos! Meu cliente não feriu ninguém.
À luz de sua história pregressa, ele vinha contrariando todas as probabilidades e se revelando um pai que cuidava do filho. Kelly era técnico de um time de futebol
juvenil nas horas vagas. O’Rourke trabalhava nos fins de semana numa instituição de amparo a vítimas da fibrose cística. Não se tratou de um ataque a transeuntes
inocentes. Foi uma briga do lado de fora de um pub.”
Ela levantou os olhos da partitura. “Uma fratura de mandíbula?”
“Tudo bem. Uma briga. Entre adultos que sabiam o que faziam. De que serve encher as prisões com esse tipo de gente? Gallagher deu dois socos inofensivos e atirou
uma lata de cerveja vazia. Dois anos e meio. A grave condenação por crimes pelos quais nem foi indiciado. Está indo para uma prisão especial de jovens, você sabe,
dentro do presídio de Belmarsh. Já estive lá algumas vezes. O site diz que eles têm uma ‘academia de ensino’. Mentira das boas! Tive clientes que ficavam dentro
da cela vinte e três horas por dia. Os cursos são cancelados o tempo todo. Dizem que falta pessoal. Cranham, com seu cansaço fingido, querendo dar a impressão de
que é irritadiço demais para ouvir qualquer um. Não liga a mínima para o que pode acontecer com esses rapazes! Jogados naqueles infernos, se tornando amargos, aprendendo
a ser criminosos. Sabe qual foi o meu maior erro?”
“Qual?”
“Tentei caracterizar o caso como de bebedeira e ânimos exaltados. A violência foi consensual. ‘Se esses quatro senhores fossem membros do Bullingdon Club da universidade
de Oxford, não estariam aqui à sua frente, Meritíssimo.’ Com um pressentimento horrível, quando voltei para casa, pesquisei quem era Cranham no Who’s Who. Arrisque
um palpite.”
“Ah, meu Deus, Mark. Você está precisando de férias.”
“Abra os olhos, Fiona. É a merda da luta de classes.”
“E na Vara de Família é só champanhe e fraises des bois.”
Sem esperar mais, ela começou a tocar os dez compassos da introdução, os acordes suavemente insistentes. Do canto do olho, viu que ele punha os óculos de leitura.
E então a bonita voz de tenor, obedecendo à instrução dolce do compositor, se fez ouvir com doçura.
Quand viendra la saison nouvelle,
Quand auront disparu les froids...
Por cinquenta e cinco minutos não pensaram um só minuto no direito.
Em dezembro, no dia do concerto, ela chegou em casa, de volta do tribunal, às seis da tarde, apressada para tomar um banho e mudar de roupa. Ouviu Jack na cozinha
e lhe deu um oi a caminho do quarto. Curvado diante da geladeira, ele respondeu com um grunhido. Quarenta minutos depois ela apareceu no corredor num vestido de
seda preta e sapatos de salto alto de verniz preto, os quais lhe garantiriam uma boa alavanca para trabalhar os pedais. Usava no pescoço uma corrente simples de
prata. O perfume era Rive Gauche. Do hi-fi raramente usado da sala de visitas, veio o som de música para piano, um velho disco de Keith Jarrett, Facing You. A primeira
música. Ela parou do lado de fora do quarto para ouvir. Fazia muito tempo que não ouvia a melodia hesitante e só revelada em parte. Tinha se esquecido de como aos
poucos a melodia ganhava confiança e se tornava subitamente viva à medida que a mão esquerda mergulhava num boogie estranhamente modificado, cada vez mais potente,
impossível de ser freado como uma locomotiva a vapor em aceleração. Só um músico com formação clássica, como Jarrett, seria capaz de fazer com que cada mão fosse
tão independente da outra.
Jack estava lhe enviando uma mensagem, pois se tratava de um dos três ou quatro álbuns que serviram de fundo musical no início do relacionamento deles. Naqueles
dias, depois dos exames finais, depois da encenação de Antônio e Cleópatra só por mulheres, quando ele a persuadiu a passar uma noite, e mais tarde dezenas delas,
no quarto sob o beiral do telhado com a janelinha que dava para o leste. Quando ela entendeu que o êxtase sexual era mais que uma expressão exagerada. Quando, pela
primeira vez desde os seus sete anos, gritou de prazer. Ela havia caído de costas num espaço remoto e desabitado, e mais tarde, lado a lado na cama, os lençóis os
cobrindo só até a cintura como nas poses dos artistas de cinema depois de fazerem sexo, riam da barulheira que ela havia feito. Por sorte, não havia ninguém no apartamento
de baixo. Jack, com seu jeito controlado e cabeleira comprida, disse que era o maior elogio que ele já havia recebido. Ela lhe disse que não conseguia imaginar como
iria recobrar suas forças, na espinha, nos ossos, para fazer aquilo de novo. Se é que queria voltar viva. Mas o fez, e com frequência. Era jovem.
Nessa época, quando não estavam juntos na cama, ele procurava seduzi-la ainda mais através do jazz. Gostava de vê-la tocar, porém queria afastá-la à força da tirania
das notações rígidas e dos gênios havia muito falecidos. Punha para ela ouvir “Round Midnight”, de Thelonious Monk, e lhe deu a partitura. Não era difícil de interpretar.
Mas a versão dela, suave e sem acentos, soava como uma peça medíocre de Debussy. Tudo bem, Jack dizia. Os grandes mestres do jazz adoravam Debussy e aprendiam com
ele. Fiona ouvia outra vez, persistia, tocava o que se encontrava à sua frente, mas aquilo não era jazz. Não havia pulsação, nenhum sincopado, nenhuma liberdade,
os dedos sem vida própria seguindo obedientemente a marcação dos compassos e as notas tal como escritas. Por isso ela estava estudando direito, disse a seu amante.
Respeito pelas regras.
Fiona desistiu, mas de fato aprendeu a ouvir, e Jarrett foi o pianista que mais admirou. Levou Jack para ouvi-lo no Coliseu de Roma. A facilidade técnica, o jorro
espontâneo de invenção lírica tão copioso quanto o de Mozart, e lá estava ele depois de tantos anos ainda a fazendo parar e lembrar como outrora ela e Jack haviam
se divertido juntos. A música fora artisticamente escolhida.
Seguiu pelo corredor e parou de novo na entrada da sala de visitas. Ele estivera ocupado. Dois abajures com lâmpadas havia muito queimadas estavam por fim acesos.
Várias velas espalhadas pela sala. As cortinas cerradas ocultando a chuva fina da noite de inverno e, pela primeira vez em mais de um ano, um fogo decentemente preparado
na lareira, com lenha além do carvão. Jack estava a postos com uma garrafa de champanhe na mão. À sua frente, numa mesa baixa, um prato de presunto, azeitonas e
queijo.
Ele vestia um terno preto e camisa branca sem gravata. Ainda esbelto. Aproximou-se, entregou-lhe uma taça de champanhe flute e a encheu, servindo-se depois. Manteve
uma expressão séria enquanto erguiam as taças e as faziam tilintar.
“Não temos muito tempo.”
Ela entendeu que ele se referia ao fato de que, em breve, deveriam sair e ir caminhando até o Great Hall. Loucura beber antes de um concerto, mas ela não ligou.
Tomou um segundo gole substancial e o seguiu até perto do fogo. Ele lhe ofereceu o prato, Fiona pegou um pedaço de parmesão e cada qual ficou num lado da lareira,
apoiando-se na cornija. Como dois enfeites enormes, ela pensou.
Ele disse: “Quem sabe quanto tempo temos. Não muitos anos. Ou voltamos a viver outra vez, a realmente viver, ou entregamos os pontos e aceitamos que vai ser uma
droga daqui até o fim”.
O velho tema dele. Carpe diem. Ela ergueu a taça e disse em tom solene: “Ao nosso reviver”.
Viu a ligeira mudança no semblante de Jack. Alívio e, por trás disso, algo mais intenso.
Jack reencheu a taça dela. “Por falar nisso, seu vestido é fabuloso. Você está muito bonita.”
“Obrigada.”
Olharam-se no fundo dos olhos até não haver mais nada a fazer senão avançarem um na direção do outro e se beijarem. Beijaram-se de novo. A mão dele pousou de leve
na parte de baixo das costas de Fiona sem descer até a coxa, como ele costumava fazer. Estava avançando por etapas, e sua delicadeza a tocou. Se não estivessem sujeitos
a um grande dever musical e social, ela não tinha dúvida sobre o que se seguiria àquele momento de distensão. Mas a partitura estava atrás dela na chaise longue
e eles estavam obrigados a se manter vestidos da cabeça aos pés. Por isso trocaram um abraço apertado e se beijaram mais uma vez; voltando a se separar, pegaram
as taças, as tocaram em silêncio e beberam.
Ele tampou a garrafa de champanhe com um aparelhinho engenhoso, dotado de mola, que ela lhe dera fazia tempo no Natal. “Para depois”, Jack disse, e ambos riram.
Pegaram os casacos e saíram. Para se equilibrar nos saltos altos, Fiona caminhou apoiada no braço do marido e sob o guarda-chuva dele, mantido galantemente sobre
a cabeça dela.
“Você é que é a artista”, ele disse. “Você é quem está de vestido de seda.”
A azáfama de conversas e risadas anunciou a presença de uns cento e cinquenta espectadores, cada qual com um copo de vinho na mão. As cadeiras haviam sido dispostas,
porém ninguém se sentara ainda, o Fazioli e uma estante musical aguardando no palco. Eram todos moradores da região, membros do Judiciário, a maior parte da vida
profissional e social dela reunida num único lugar. Por mais de trinta anos ela havia cooperado ou se confrontado com dezenas de pessoas que via ali no salão. Vários
magistrados eminentes, muitos de fora, da Lincoln’s Inn, do Inner Temple ou do Middle Temple — o próprio lorde que presidia o Judiciário, alguns membros do Tribunal
de Recursos, dois juízes da Corte Suprema, o promotor geral, uns vinte advogados famosos. Os executivos da lei, que decidiam a sorte das pessoas e privavam cidadãos
de sua liberdade, tinham desenvolvido um senso de humor peculiar e paixão pelas conversas sobre assuntos profissionais. O barulho era ensurdecedor. Em poucos minutos
ela e Jack se perderam de vista. Alguém se aproximara e pedira a ajuda dele com alguma frase em latim. Ela foi atraída para um grupo que fofocava sobre um amigo
excêntrico do presidente da Vara Cível, a segunda maior autoridade judiciária do país. Ela nem precisava se mover de onde estava. Os amigos vinham abraçá-la e lhe
desejar boa sorte, outros apertavam sua mão. Tinha sido um golpe de gênio do comitê de advogados da Gray’s Inn permitir que os concertos fossem precedidos de uma
vasta reunião social. Vinho, Fiona esperava, poderia mitigar as faculdades críticas dos frequentadores assíduos do Wigmore Hall.
Quando um garçom se aproximou com uma bandeja de prata, ela estava se sentindo bem demais para recusar. Ao pegar uma taça, Mark Berner surgiu em sua linha de visão,
a uns quinze metros de distância e com umas cem pessoas entre eles, sacudindo um dedo em sinal de proibição. Claro que ele tinha razão. Ela ergueu a taça na direção
dele e tomou um pequeno gole. Um amigo, valoroso magistrado, levou-a para lhe apresentar um advogado “brilhante” que por acaso era seu sobrinho. Observada pelo tio
orgulhoso, ela fez perguntas solícitas a um jovem magricela com uma gagueira dolorosa. Começava a desejar companhias mais animadas, quando uma velha colega da Middle
Temple apareceu de repente e a roubou, levando-a para um grupo de expansivas e jovens advogadas, que lhe disseram, de forma brincalhona, que não estavam recebendo
as causas de maior qualidade, todas entregues aos homens.
Funcionários do salão começaram a circular anunciando que o concerto estava prestes a começar. As pessoas se instalaram com relutância nas cadeiras. Era difícil
trocar subitamente um bom vinho e fofocas por música solene. Mas, com os copos sendo recolhidos, o alarido foi se amainando. Ela ia caminhando para os degraus do
lado direito do palco, quando sentiu um toque no ombro e se voltou. Era Sherwood Runcie. O juiz do caso de Martha Longman. Por alguma razão ele vestia um smoking,
o que conferia um ar patético, de bicho apanhado numa armadilha, a homens de certa idade com panças volumosas. Pousou a mão no braço de Fiona desejando transmitir-lhe
uma informação de interesse dela que fora mantida fora dos jornais. Ela se inclinou para ouvir suas palavras. Com a mente já focada no concerto, a pulsação se acelerando,
foi difícil concentrar-se no que era dito, embora tivesse a impressão de havê-lo entendido. Quando ia pedir ao juiz que repetisse, deu-se conta de que Mark, à sua
frente, se voltava para ela fazendo sinais impacientes. Endireitou o corpo, agradeceu a Runcie e seguiu o tenor na direção do palco.
Enquanto esperavam ao pé da escadinha que a audiência se acomodasse e fossem chamados, Mark disse: “Você está se sentindo bem?”.
“Estou bem. Por quê?”
“Parece pálida.”
“Hum.”
Automaticamente, ela tocou seu cabelo com a ponta dos dedos de uma das mãos. Na outra estava a partitura, que segurou com ainda mais força. Será que estava com uma
cara ruim? Calculou o que havia bebido. Não mais do que três goles de vinho branco. Mark a advertira para não beber. Umas duas taças ao todo. Ia ficar bem. Ele lhe
deu a mão ao subirem os degraus e até chegarem junto ao piano, quando ambos curvaram a cabeça num gesto de saudação e receberam o tipo de aplauso reservado ao time
da casa. Afinal de contas, aquele era o quinto concerto de Natal deles no Great Hall. Depois de se sentar, pôr a partitura no lugar e ajustar o banco, ela respirou
fundo e expirou devagar para se livrar dos últimos retalhos das conversas recentes, do advogado gago, das jovens carentes de trabalho. E de Runcie. Não. Não havia
tempo para pensar. Mark acenou com a cabeça para ela a fim de mostrar que estava pronto, e de imediato seus dedos passaram a extrair do colossal instrumento os acordes
suavemente ondulantes, parecendo carregar consigo sua mente. A entrada do tenor foi perfeita e, depois de alguns poucos compassos, eles estavam congregados numa
unidade de propósitos raramente atingida nos ensaios, não mais se concentrando apenas em fazer as coisas certas, mas capazes de se dissolver na música sem o menor
esforço. Passou por sua cabeça que ela havia bebido a quantidade certa de vinho. O poder macio e profundo do Fazioli a despertou. Era como se ela e Mark estivessem
sendo levados com facilidade rio abaixo numa corrente de notas. A voz dele soava mais cálida em seus ouvidos, perfeitamente afinada, livre do vibrato não pedido
pela melodia e que ele às vezes exibia, livres para explorarem todas as delícias da composição de Berlioz para a “Villanelle” e depois para o “Lamento”, toda a tristeza
da linha abruptamente cadente: Ah! Sans amour s’en aller sur la mer! Sua interpretação jorrava de forma espontânea. À medida que seus dedos tocavam as teclas, ela
se ouvia como se estivesse sentada no fundo da sala, como se dela só se exigisse estar presente. Juntos, Fiona e Mark penetraram no hiperespaço sem horizonte do
fazer musical, mais além do tempo e do espaço. Ela tinha a vaga noção de que algo a esperava na volta, um pontinho estranho lá embaixo numa paisagem bem conhecida.
Talvez nem estivesse lá, talvez não fosse verdade.
Eles vieram à tona como se saídos de um sonho, lado a lado, para se defrontar de novo com a audiência. O aplauso foi retumbante, mas sempre era. No espírito de generosidade
que imperava no Great Hall durante a festa natalina, era com frequência ainda mais alto para as performances modestas. Foi só ao trocar olhares com Mark e ver o
brilho em seus olhos que ela se certificou de que haviam rompido os limites usuais dos músicos amadores. Tinham de fato contribuído com alguma coisa para a peça.
Se havia uma mulher na plateia que Mark quisesse impressionar, então ela teria sido cortejada no estilo antigo e sem dúvida ficaria caída por ele.
De repente se fez silêncio quando tomaram posição para o Mahler. Agora ela estava sozinha. A longa introdução pareceu estar sendo inventada pela pianista enquanto
se desenrolava. Com infinita paciência, duas notas soaram de forma hesitante, foram repetidas, outra se somou a elas, as três foram repetidas, e só ao surgir a quarta
nota a linha se estendeu luxuriosamente para cima numa das mais adoráveis melodias que Mahler compôs em toda a sua vida. Ela não se sentiu exposta de um modo desagradável.
Conseguiu mesmo alcançar o que é uma segunda natureza para os mestres do piano, extraindo um som de sino de certas notas acima do dó médio. Em outros trechos, achou
que, pela forma como tocava, era capaz de persuadir seus ouvintes de que percebiam a harpa presente na versão para orquestra. Desde sua entrada, Mark absorveu o
espírito de serena resignação. Por alguma razão ele havia insistido em cantar em inglês, e não em alemão, uma liberdade só concedida aos amadores. A vantagem era
a compreensão instantânea que todos tinham de um homem que se afastava do tumulto. Eu realmente me sinto como se estivesse morto para o mundo. Os dois tiveram a
certeza de que dominavam a audiência, e o desempenho deles ganhou ainda mais força. Fiona também sabia que estava avançando com passos majestosos rumo a algo terrível.
Era verdade, não era verdade. Só saberia quando a música cessasse e ela confrontasse aquilo.
De novo o aplauso, as reverências apenas esboçadas e, agora, pedidos de bis. Ouviram-se até pés batendo no chão, cada vez mais ruidosos. Os dois executantes se entreolharam.
Lágrimas nos olhos de Mark. Um gosto metálico na boca de Fiona ao voltar a se sentar no banco do piano enquanto a plateia silenciava. Manteve durante alguns segundos
as mãos no colo e a cabeça baixa, recusando-se a olhar para seu parceiro. Da seleção de peças que sabiam de cor, já haviam se decidido por “An die Musik”, de Schubert.
Uma velha favorita. Nunca falhava. Pôs as mãos sobre as teclas, se preparando, sem ainda erguer a vista. O silêncio na sala era absoluto, e então ela começou. O
fantasma de Schubert talvez tenha abençoado a introdução que tocou, mas as três notas que subiam, um acorde incompleto carinhosamente ecoado mais abaixo, e depois
ainda mais abaixo até por fim se tornar harmônico, pertenciam a alguma outra mão. Nas notas tranquilas e repetidas que pulsavam no fundo, talvez houvesse uma homenagem
a Berlioz. Quem saberia? Até a canção de Mahler, com sua aceitação melancólica, talvez tenha subliminarmente ajudado Britten em seu arranjo. Fiona não sinalizou
nenhum pedido de desculpa para Mark. Seu rosto permanecia tão rígido como fora antes seu sorriso. E ela só olhava para as mãos. Ele teve apenas alguns segundos para
reorganizar seus pensamentos, mas estava sorrindo ao sorver o ar e seu tom foi doce, e ainda mais doce no segundo verso.
Num campo junto ao rio, meu amor pousou de leve
A mão branca como a neve
No meu ombro inclinado, me dizendo
Que levasse a vida com leveza,
Como o capim cresce na margem da represa;
Mas eu era jovem e tolo, e hoje só me resta chorar.
Tratava-se de uma plateia sempre generosa mas que raramente se punha de pé para fazer uma ovação. Isso era coisa para concertos de música pop, assim como gritos
e assobios. Mas todos se levantaram de uma só vez, notando-se somente alguma hesitação de algumas figuras mais eminentes do Judiciário. Alguns entusiastas mais jovens
gritaram e assobiaram. Mas Mark Berner recebeu o tributo sozinho, com uma mão pousada no piano, balançando a cabeça e sorrindo em agradecimento, enquanto também
observava com preocupação a pianista, que atravessava às pressas o palco, olhos postos no chão, e descia os degraus, abrindo caminho entre os componentes do quarteto
de cordas, que aguardavam sua vez, e se dirigindo em passos largos para a saída. Como todos deduziram que a experiência devia ter sido incomumente intensa para ela,
magistrados e amigos foram compreensivos e bateram palmas ainda mais fortes quando passou diante deles.
Fiona pegou o casaco e, sem se importar com a nova chuvarada, caminhou até o seu apartamento tão depressa quanto ousava com salto alto. Na sala de visitas, umas
poucas velas permaneciam acesas, como eles descuidadamente as haviam deixado. Ainda de casaco, o cabelo grudado no crânio, água escorrendo pelo pescoço e pelas costas,
ela ficou imóvel, tentando recordar o nome de uma mulher. Tanta coisa acontecera desde que havia pensado nela pela última vez. Lembrava-se de um rosto, ouvia uma
voz, e aí o nome voltou. Marina Greene. Fiona pegou o celular na bolsa e fez a chamada. Desculpou-se por telefonar àquela hora. A conversa foi breve porque crianças
gritavam ao fundo e a voz da jovem denotava cansaço e irritação. Sim, ela confirmava. Quatro semanas atrás. Deu os poucos detalhes que sabia e se disse surpresa
pela juíza não haver sido informada.
Fiona continuou parada no mesmo lugar, o olhar fixo, por nenhuma razão em particular, no prato de comida preparado por Jack, a cabeça misericordiosamente vazia.
A música que acabara de tocar não ressoava em seus ouvidos como costumava acontecer. Já havia se esquecido do concerto. Até onde era neurologicamente possível não
pensar, ela não tinha nenhum pensamento. Passaram-se vários minutos. Impossível saber quantos. Voltou-se ao ouvir um ruído. O fogo estava nas últimas, se desmanchando
na grelha. Foi até lá, se ajoelhou e cuidou de reanimá-lo levantando fragmentos de lenha e carvão com as mãos e não com as tenazes, e os colocando em cima ou perto
das brasas. Depois de três sopros do fole, uma lasca de pinho pegou fogo, que se espalhou para dois pedaços maiores enquanto ela observava. Aproximou-se e deixou
que o espetáculo das pequenas chamas, com seus movimentos espásticos contra o negror do carvão, enchesse seus olhos.
Por fim, os pensamentos chegaram sob a forma de duas perguntas insistentes. Por que você não me disse? Por que não pediu minha ajuda? A resposta veio em sua própria
voz imaginada. Fiz isso. Ela se levantou, consciente da dor nos quadris ao caminhar até o quarto para pegar o poema na mesinha de cabeceira, onde ficara por seis
semanas. Não tinha podido reler o poema por causa de seu tom melodramático e pela sugestão puritana de que a busca da liberdade, ao atirar a pesada cruz no rio e
receber um beijo casto, deviam ser inspiradas por Satã. Havia algo pegajoso ou sufocante naquela parafernália cristã — a cruz, a árvore de Judas, as trombetas. E
ela era a mulher pintada, o peixe com arco-íris nas escamas, a criatura traiçoeira que levou o poeta para o mau caminho e o beijou. Sim, aquele beijo. Foi a culpa
dela que a tinha mantido distante.
Ela se agachou outra vez perto do fogo e pôs o poema à sua frente sobre o tapete Bokhara. Como havia mexido no carvão, suas impressões digitais ficaram marcadas
no topo da página. Foi direto ao último verso — Jesus Cristo milagrosamente de pé sobre as águas do rio, anunciando que o peixe era Satã disfarçado e que o poeta
devia “pagar o preço”.
O beijo dela era o beijo de Judas e traiu meu nome.
Morte àquele
Fiona alcançou os óculos na mesa atrás dela e se inclinou para ler as palavras riscadas e circundadas. “Faca” havia sido riscada, assim como “preço”, “Deixe que
ele” e “culpa”. As palavras “ele próprio” tinham sido riscadas, depois recolocadas e mais uma vez eliminadas. “Não deve” foi substituído por “deve”, “afundei” por
“afoguei”. “Morte àquele” se destacava, sem um círculo em volta, flutuando acima da confusão com uma seta para indicar que deveria substituir “E”. Fiona estava pegando
o jeito do método e da caligrafia dele. E de repente tudo ficou claro. Havia mesmo uma linha sinuosa conectando as palavras escolhidas. O Filho de Deus tinha proferido
uma maldição.
Morte àquele que afogou minha cruz com as próprias mãos.
Ela não se voltou ao ouvir a porta da frente sendo aberta, e foi assim que Jack a viu de relance ao passar pela sala de visitas em direção à cozinha. Achou que ela
estivesse cuidando da lareira.
“Capricha no fogo”, ele disse. E já mais afastado: “Você foi brilhante! Todo mundo adorou. E tão emocionante!”.
Quando voltou com o champanhe e duas taças limpas, ela havia se posto de pé para tirar o casaco, jogando-o sobre as costas de uma cadeira, e se livrar do sapato.
Estava de pé no meio da sala, esperando. Ele não percebeu sua palidez ao lhe dar uma das taças, que ela ergueu para ser servida.
“Seu cabelo. Quer que eu pegue uma toalha?”
“Daqui a pouco ele seca.”
Ele removeu a tampa de metal e encheu a taça de Fiona, depois a dele, que deixou sobre um móvel enquanto se dirigia à lareira, onde despejou a cesta de carvão e
pôs três pedaços grandes de lenha ensarilhados. Ligou o hi-fi, para tocar de novo o disco de Jarrett.
Ela murmurou: “Jack, agora não”.
“Claro. Depois de hoje à noite! Burrice minha.”
Vendo que Jack queria retornar rapidamente à situação em que se encontravam antes do concerto, sentiu pena dele. Ele estava fazendo o possível. Logo, logo ia querer
beijá-la. Aproximou-se de Fiona e, no silêncio que passara a silvar nos ouvidos dela desde o instante em que o hi-fi foi desligado, tocaram suas taças e beberam.
Ele então comentou o desempenho dela e de Mark, das lágrimas de orgulho do tenor quando todos se puseram de pé ao final e o que as pessoas disseram depois.
“Saiu tudo bem”, ela disse. “Estou muito feliz que tudo correu bem.”
Ele não era músico e gostava unicamente de jazz e blues, mas fez observações bastante plausíveis sobre o concerto e se lembrava de cada peça executada. Les nuits
d’été havia sido uma revelação. Emocionou-o em particular o “Lamento”, chegou mesmo a entender o francês. Precisaria ouvir de novo o Mahler, porque percebeu um imenso
reservatório de sentimento na peça, mas não foi capaz de apreender tudo naquela primeira vez. Ficou contente de Mark ter cantado em inglês. Todos tinham vontade
de fugir do mundo, poucos ousavam fazê-lo. Ela escutou com seriedade, ou pareceu que o fazia, dando respostas breves ou assentindo com a cabeça. Sentia-se como um
paciente hospitalizado que deseja ardentemente que o visitante bondoso vá embora para que ele possa voltar a se sentir mal. O fogo pegou e Jack, notando que ela
tiritava, levou-a para perto da lareira e lá serviu o resto do champanhe.
Residiam na praça havia bastante tempo e ele conhecia os membros do Judiciário que eram seus vizinhos quase tão bem quanto ela. Começou a lhe falar das pessoas que
encontrara naquela noite. Os moradores do lugar eram muito unidos e os fascinavam. Aquele post mortem no final das noitadas era uma característica do relacionamento
dos dois. Era fácil para ela continuar resmungando uma resposta aqui e ali. Jack permanecia excitado com a performance dela e com o que imaginava que iria acontecer.
Ele contou sobre um criminalista que estava montando com outros uma escola gratuita. Precisavam de uma tradução em latim para o moto “Toda criança é um gênio”. Coisa
curta, que pudesse ser costurada no blusão escolar debaixo de uma fênix heráldica se erguendo das cinzas. Um problema fascinante. A ideia de gênio surgira no século
XVIII, e as palavras correspondentes a “criança” em latim traziam em geral a definição do gênero. Jack se saíra com “Cuiusque parvuli ingenium” — não tão forte quanto
gênio, mas o conceito de inteligência ou aptidão natural era um substituto razoável. Com um pouco de boa vontade, “parvuli” poderia englobar as meninas. Depois o
advogado havia perguntado se ele estaria interessado em criar um curso descontraído de latim para jovens de nível variado entre onze e dezesseis anos. Desafiador.
Irresistível.
Fiona ouviu sem exprimir nenhuma emoção. Nenhum filho seu jamais usaria aquele maravilhoso emblema. Deu-se conta de que estava excessivamente vulnerável.
Ela disse: “Seria uma coisa boa de fazer”.
Jack sentiu a falta de entusiasmo em sua voz e a olhou de forma diferente.
“Tem alguma coisa te incomodando.”
“Eu estou bem.”
Franzindo a testa ao relembrar a pergunta que deixara de fazer, ele disse: “Por que você saiu daquele jeito no fim?”.
Ela hesitou: “Foi demais para mim”.
“Quando todos se levantaram? Eu quase chorei.”
“Foi a última música.”
“O Mahler.”
“Não, ‘The Salley Gardens’.”
Ele achou a resposta engraçada e lhe lançou um olhar de descrença. Já a tinha visto executar aquela música com Mark dezenas de vezes. “Como assim?”
Havia também um toque de impaciência na atitude dele. Jack queria realizar a promessa de uma noite formidável, repor o casamento nos trilhos, beijá-la, abrir outra
garrafa, levá-la para a cama, fazer com que tudo se tornasse mais uma vez fácil entre os dois. Ela o conhecia bem, entendeu tudo e, de novo, teve pena de Jack. Mas
sentiu tudo isso de uma grande distância.
Ela disse: “Uma recordação. Do verão”.
“É mesmo?” Seu tom denotava apenas uma leve curiosidade.
“Um jovem tocou essa melodia para mim no violino. Ainda estava aprendendo a música. Foi num hospital. Acompanhei cantando. Acho que fizemos uma barulheira. Depois
ele quis tocar outra vez, mas eu precisava ir embora.”
Jack não estava interessado em quebra-cabeças. Esforçou-se para que sua voz não demonstrasse irritação. “Comece de novo. Quem era o rapaz?”
“Um jovem muito estranho e bonito.” Ela falou num tom vago, as palavras saindo lentamente.
“E?”
“Suspendi a sessão enquanto fui vê-lo em seu quarto no hospital. Você se lembra. Uma testemunha de Jeová, muito doente, recusando o tratamento. Saiu em todos os
jornais.”
Se precisava ser lembrado era porque naquela época ele estava instalado no quarto de Melanie. De outro modo, teria discutido o caso.
Ele disse com firmeza: “Acho que me lembro”.
“Permiti que o hospital o tratasse e ele se recuperou. A sentença teve... um grande efeito sobre ele.”
Como antes, estavam de um lado e do outro da lareira, que agora irradiava um forte calor. Ela fixou os olhos nas chamas. “Acho... acho que ele se apegou muito a
mim.”
Jack descansou a taça vazia. “Continue.”
“Quando eu estava no circuito, ele me seguiu até Newcastle. E eu...” Fiona não ia lhe contar o que havia acontecido lá, mas mudou de ideia. Não havia razão para
ocultar nada agora. “Ele andou na chuva para me encontrar e... eu fiz uma idiotice. No hotel. Não sei o que eu estava... Eu o beijei. Beijei o rapaz.”
Ele deu um passo atrás para se distanciar do calor do fogo, ou dela. Fiona não se importava mais.
Sussurrou: “Ele era uma pessoa muito doce. Queria vir morar conosco”.
“Conosco?”
Jack Maye tinha atingido a maioridade nos idos da década de 1970 em meio a suas múltiplas correntes de pensamento. Ensinara numa universidade durante toda a sua
vida adulta. Conhecia tudo sobre a falta de lógica dos padrões morais diferentes para homens e mulheres, mas esse saber não era capaz de protegê-lo. Fiona viu a
raiva no rosto dele, a tensão dos músculos em torno das mandíbulas, o olhar se endurecendo.
“Ele imaginou que eu poderia modificar sua vida. Acredito que queria me transformar numa espécie de guru. Achou que eu podia... Estava tão ávido, com tanta fome
de viver, de tudo. E eu não...”
“Então você o beijou e ele quis viver com você. O que é que está tentando me dizer?”
“Mandei-o embora.” Ela balançou a cabeça e não conseguiu continuar.
Em seguida olhou para Jack. Ele se manteve bem longe dela, os pés afastados, braços cruzados, o rosto ainda bonito e afável agora enrijecido pela raiva. Alguns pelos
prateados do seu peito escapavam pela gola aberta da camisa. Ela já o vira levantá-los vez por outra com um pente. A noção de que o mundo era repleto de tais detalhes,
de tantos pontos minúsculos da fraqueza humana ameaçou esmagá-la e ela se viu forçada a desviar os olhos.
Só agora, que a chuva tinha parado, eles perceberam que ela estivera martelando as janelas.
Naquele silêncio mais profundo, ele disse: “E o que aconteceu? Onde ele está agora?”.
Fiona respondeu baixinho, num tom monocórdio. “Eu soube hoje pelo Runcie. Algumas semanas atrás sua leucemia voltou e ele foi levado para o hospital. Recusou a transfusão
que queriam lhe dar. Foi sua decisão. Já tinha dezoito anos e ninguém pôde fazer nada. Com a recusa, seus pulmões se encheram de sangue e ele morreu.”
“Então ele morreu por suas crenças.” A voz de seu marido soou fria.
Ela o olhou sem entender. Deu-se conta de que não havia se explicado nem um pouco, que havia muita coisa que deixara de lhe contar.
“Acho que foi suicídio.”
Durante alguns segundos nenhum dos dois falou. Ouviram vozes, risadas e passos na praça. O espetáculo musical tinha acabado.
Jack limpou a garganta delicadamente. “Você estava apaixonada por ele, Fiona?”
A pergunta a derrubou. Deixou escapar um som terrível, um urro sufocado. “Ah, Jack, ele não passava de uma criança! Um menino. Um menino adorável!” E por fim ela
desandou a chorar, de pé junto à lareira, os braços caindo inermes ao longo do corpo, enquanto Jack observava, chocado por ver sua mulher, sempre tão contida, num
paroxismo de dor.
Fiona não conseguia falar, o choro não iria parar e ela não podia mais permitir que fosse vista naquele estado. Abaixou-se para pegar os sapatos e, só de meia, atravessou
correndo a sala e o corredor. Quanto mais se afastava dele, mais alto chorava. Entrou no quarto, bateu a porta e, sem acender a luz, se atirou na cama, enfiando
o rosto num travesseiro.
Meia hora depois, ao acordar das profundezas de um sonho em que subia por uma interminável escada vertical, ela não se recordava de haver caído no sono. Ainda confusa,
manteve-se deitada de lado, voltada para a porta. Por baixo dela, um fiapo de luz vindo do corredor trazia algum conforto. Mas não as cenas que visitavam sua imaginação.
Adam doente de novo, retornando à sua casa enfraquecido para ser recebido com amor pelos pais, encontrando os bondosos anciãos, readquirindo as crenças antigas.
Ou as usando como um pretexto perfeito para se destruir. Morte àquele que afogou minha cruz com as próprias mãos. Ela o reviu na penumbra em que o encontrara ao
visitar a unidade de tratamento intensivo. O rosto fino e pálido, as sombras roxas abaixo dos grandes olhos cor de violeta. A língua coberta por uma película branca,
braços como gravetos, tão doente, tão decidido a morrer, tão cheio de encanto e vida, páginas com seus poemas espalhadas pela cama, implorando a ela que permanecesse
e os dois tocassem de novo a música, quando Fiona precisava regressar ao tribunal.
Lá, com a autoridade e dignidade de sua posição, ela lhe havia oferecido, em vez da morte, toda a vida e o amor que se abriam diante dele. E proteção contra sua
religião. Sem fé, como o mundo deve ter lhe parecido ilimitado, belo e aterrador! Com tal pensamento, ela foi caindo de novo num sono ainda mais profundo e acordou
minutos depois ao ouvir o cantar e os suspiros das calhas do telhado. Será que a chuva iria parar algum dia? Viu a figura solitária caminhando pela alameda do Leadman
Hall, encurvada para se defender da tempestade de verão, avançando em meio às trevas, ouvindo os galhos que caíam. Ele devia ter visto à frente luzes na casa e sabido
que ela se encontrava lá. Tiritou de frio numa dependência dos fundos, sem saber o que fazer, aguardando uma oportunidade de falar com ela, arriscando tudo na busca
de — o quê, exatamente? E acreditando que poderia obtê-lo de uma mulher de sessenta anos que jamais arriscara nada na vida a não ser nuns poucos episódios estouvados
em Newcastle fazia muito tempo. Ela devia ter se sentido lisonjeada. E pronta. Em vez disso, num impulso poderoso e indesculpável, o beijara e depois o mandara embora.
Mais tarde, ela fugira também. Negara-se a responder às cartas dele. Negara-se a decifrar o alerta no poema dele. Que vergonha sentia agora dos temores mesquinhos
que tivera sobre sua reputação! Aquela transgressão escapava ao alcance de qualquer comitê disciplinar. Adam a tinha procurado e ela não ofereceu nada no lugar da
religião, nenhuma proteção, embora a lei fosse clara ao determinar que sua principal preocupação devia ser o bem-estar dele. Quantas páginas em quantos julgamentos
ela já não devotara a esse propósito? Bem-estar, felicidade, um conceito social. Nenhuma criança é uma ilha. Ela pensava que suas responsabilidades terminavam na
porta do tribunal. Mas como seria possível? Adam tratou de encontrá-la, querendo o que todo mundo quer, e que só pessoas de mente aberta, e não o sobrenatural, podiam
dar: um sentido para a vida.
Quando ela mudou de posição, sentiu contra o rosto o travesseiro úmido e frio. Agora inteiramente desperta, o empurrou para pegar outro, e se surpreendeu ao tocar
num corpo quente a seu lado, às suas costas. Voltou-se. Jack estava deitado com a cabeça apoiada na mão. Com a outra afastou o cabelo que cobria os olhos de Fiona.
Um gesto de ternura. A luz vinda do corredor lhe permitia apenas vislumbrar o rosto dele.
Jack disse simplesmente: “Fiquei vendo você dormir”.
Depois de algum tempo, bastante tempo, ela murmurou: “Obrigada”.
Fiona então perguntou se ele ainda a amaria depois de ela ter lhe contado toda a história. Era uma pergunta impossível de ser respondida, porque ele ainda não sabia
quase nada. Suspeitou que Jack tentaria persuadi-la de que não lhe cabia nenhuma culpa.
Ele pôs a mão no ombro dela e a puxou para si: “Claro que sim”.
Ficaram um diante do outro na semiescuridão e, enquanto a grande cidade lavada pela chuva entrava em seus ritmos noturnos mais suaves, e o casamento deles recomeçava
com movimentos titubeantes, Fiona lhe falou, numa voz calma e compassada, de sua vergonha, da paixão daquele doce rapaz pela vida e da parte que lhe cabia na morte dele.Apertou duas teclas para telefonar para o marido. Fugindo de um beijo, correndo para se proteger sob o manto de uma mulher casada de boa reputação, em busca de alguma
solidez. Fez a chamada sem pensar, por puro hábito, quase sem ter consciência da situação atual entre ela e Jack. Quando ouviu seu alô duvidoso, a acústica lhe disse
que ele se encontrava na cozinha. O rádio ligado, talvez Poulenc. Nas manhãs de sábado, embora acordassem cedo, sempre faziam, ou costumavam fazer, o desjejum sem
pressa, com vários jornais em cima da mesa, a rádio Três tocando baixinho, café e o pain aux raisins comprado na Lamb’s da Conduit Street esquentado no forninho.
Ele estaria com o robe de seda estampado com formas curvas. Barba por fazer, cabelo desgrenhado.
Num tom cuidadosamente neutro, Jack perguntou se estava tudo bem com ela. Quando Fiona respondeu que sim, ficou surpresa ao ver como tinha soado normal. Começou
a improvisar sem dificuldade, bem no instante em que Pauling, com um suspiro de satisfação, se recordou de um atalho e escapou do tráfego. Perfeitamente plausível,
em se tratando de rotina doméstica, lembrar Jack de que ela chegaria no fim do mês, e também natural, ou costumava ser, sugerir que na noite em que ela voltasse
eles deviam jantar fora. Um restaurante próximo de que gostavam costumava ter todos os lugares reservados com antecedência. Talvez ele pudesse fazer uma reserva
agora. Ele achou uma boa ideia. Ela o ouviu suprimir a surpresa na voz, manobrando com cuidado entre a cordialidade e a frieza. Perguntou de novo se ela estava bem.
Conhecia Fiona bem demais, e obviamente ela não parecia normal. Com uma ênfase maior, ela disse que estava ótima. Trocaram algumas palavras sobre assuntos de trabalho.
A chamada terminou com um adeus de Jack que soava quase como uma pergunta.
Mas tinha funcionado. Ela havia se livrado dos devaneios paranoicos para cair na realidade de um compromisso, de uma data, de um relacionamento melhorado. Sentiu-se
mais bem defendida e no todo mais sensata. Caso tivesse havido alguma queixa, ela já teria tomado conhecimento àquela altura. Tinha sido bom telefonar e dar continuidade
àquele momento indefinível no café da manhã. Útil se lembrar de que o mundo nunca era como ela o imaginava em momentos de ansiedade. Uma hora depois, quando o carro
começou a se arrastar pela congestionada A69 para entrar em Carlisle, ela estava enfronhada em documentos judiciais.
E foi assim que duas semanas depois, encerrada a temporada itinerante e distribuída a Justiça em quatro cidades do Norte, ela se encontrava diante do marido num
canto tranquilo de um restaurante na rua Clerkenwell. Entre os dois uma garrafa de vinho, bebido cautelosamente. Não devia haver nenhuma onda súbita de intimidade.
Mantiveram-se distantes do assunto que poderia destruí-los. Ele se dirigiu a ela de forma delicada e canhestra, como se Fiona fosse um tipo incomum de bomba capaz
de estourar no meio de qualquer frase. Ela perguntou a respeito do trabalho dele, o livro sobre Virgílio. Uma apresentação e uma seleção, um manual para escolas
e universidades que, ele comovedoramente acreditava, o faria ganhar um dinheirão. Nervosa, ela fez uma pergunta após a outra, consciente de que estava se comportando
como uma entrevistadora. Esperava observá-lo como se o fizesse pela primeira vez, captar o que havia de estranho nele como acontecera muitos anos antes ao se apaixonar
por ele. Não era fácil. Sua voz, seus traços eram tão familiares como os dela próprios. Seu rosto tinha uma expressão áspera, aflita. Atraente, é claro, mas não
para ela naquele instante. Fiona esperava que a mão dele, posta sobre a mesa perto do copo, não estivesse prestes a pegar a sua.
Lá para o fim da refeição, quando haviam esgotado os tópicos mais seguros, houve um silêncio ameaçador. Apetites saciados, as sobremesas e metade do vinho permaneciam
intocados. A recriminação mútua e não manifestada os perturbava. Na mente dela, ainda a aventura despudorada de Jack; na dele, ela supunha, o senso exagerado de
ofensa de Fiona. Num tom forçado, ele começou a relatar a palestra sobre geologia a que comparecera na noite passada. O palestrante havia descrito como a sequência
de camadas rochosas sedimentares pode ser lida como um livro que conta a história da Terra, permitindo-se algumas especulações no final. Cem milhões de anos no futuro,
quando a maior parte dos oceanos tiver afundado na crosta terrestre e não houver suficiente dióxido de carbono na atmosfera para sustentar as plantas, a superfície
do planeta tendo se transformado num deserto rochoso e sem vida, que provas teria de nossa civilização um geólogo que viesse do espaço? Algumas dezenas de centímetros
abaixo da superfície, haveria uma grossa linha negra que nos separaria de tudo o que aconteceu antes. Condensadas nessa camada de fuligem de quinze centímetros,
estariam nossas cidades, veículos, estradas, pontes, armas. Estariam também todos os tipos de substâncias químicas não encontradas no registro geológico anterior.
O concreto e os tijolos se desintegrariam tão facilmente quanto o calcário, nossos aços mais resistentes se transmudariam em manchas de ferro pulverizado. Um exame
microscópico mais cuidadoso poderia revelar uma preponderância de pólen das monótonas planícies cobertas de gramíneas que criamos para alimentar rebanhos gigantescos.
Com sorte, o geólogo poderia encontrar ossos fossilizados, até mesmo os nossos. Mas os animais, incluindo aí todos os peixes, mal corresponderiam a um décimo do
peso de todos os carneiros e vacas. O visitante espacial terminaria concluindo que estava observando o começo de uma extinção em massa na qual a variedade da vida
tinha começado a se estreitar.
Jack vinha falando havia cinco minutos. Estava oprimindo-a com o peso daquele tempo sem sentido. O deserto inimaginável de anos e o fim inevitável o animavam. Mas
não a ela. Sentiu-se invadida por um sentimento de desolação que pesava sobre seus ombros e descia até as pernas. Pegou o guardanapo do colo e o depositou sobre
a mesa num gesto de rendição, levantando-se a seguir.
Ele estava dizendo, como se aquilo o deixasse perplexo: “É assim que estamos assinando nosso nome no registro geológico”.
Ela disse: “Acho que está na hora de pedirmos a conta”, e caminhou rapidamente através do restaurante até o toalete, onde se postou na frente do espelho, olhos fechados,
pente na mão no caso de alguém entrar, respirando fundo e devagar algumas vezes.
O degelo não ocorreu de modo rápido nem linear. De início foi um alívio não ter de se evitarem conscientemente no apartamento, não competirem com toda frieza para
saber quem era mais cortês naquela forma sufocante que tinham adotado. Passaram a fazer as refeições juntos, começaram a aceitar convites para jantar com amigos,
conversaram — principalmente sobre assuntos de trabalho. Mas ele ainda dormia no quarto de hóspedes e, quando uma sobrinha de dezenove anos foi passar uns dias lá,
ele voltou a se instalar no sofá da sala de visitas.
Fim de outubro. Os relógios foram atrasados, marcando a última etapa de um ano exausto, e chegou a escuridão. Durante algumas poucas semanas, o clima de estagnação
voltou a imperar entre ela e Jack, quase tão sufocante como antes. Mas ela estava ocupada e cansada demais à noite para iniciar o tipo de conversa exigente que poderia
levá-los a um novo estágio. Além da carga normal de casos no Strand, ela estava presidindo um comitê encarregado de estudar novos procedimentos nos tribunais e participava
de outro que devia responder a um relatório do governo a respeito da reforma da legislação sobre a família. Se lhe sobrava alguma energia depois do jantar, ela se
exercitava sozinha ao piano, preparando-se para os ensaios com Mark Berner. Jack também estava ocupado, substituindo um colega enfermo na universidade e, em casa,
absorto na redação da longa introdução aos poemas selecionados de Virgílio.
O advogado incumbido de organizar as festas de Natal no Great Hall informara que eles haviam sido escolhidos para abrir o concerto. Tocariam no máximo por vinte
minutos, deixando uma margem de outros cinco minutos para o bis. Tempo suficiente para a seleção que haviam feito das canções do ciclo de Berlioz Les nuits d’été,
além de uma de Mahler, “Estou Perdido para o Mundo”, que fazia parte do Rückert-Lieder. O coral da Gray’s Inn cantaria algumas peças de Monteverdi e Bach, seguindo-se
um quarteto de cordas que interpretaria Haydn. Uma significativa minoria dos membros do Judiciário que moravam na Gray’s Inn passava muitas noites por ano ouvindo
música de câmara com grande concentração, as testas franzidas, no Wigmore Hall de Marylebone. Dominavam o repertório. Dizia-se que reconheciam uma nota errada antes
mesmo que ela fosse tocada. No concerto natalino, embora se servisse vinho antes e a atmosfera geral, ao menos na aparência, fosse amistosa, os padrões eram punitivamente
elevados para uma exibição de amadores. Às vezes Fiona acordava antes de o sol raiar e se perguntava se dessa vez estava em condições de enfrentar o desafio, se
havia algum modo de pular fora. Achava que lhe faltava a concentração necessária, e o Mahler era difícil. Tão languidamente lento e bem equilibrado. Ela ficaria
exposta. E o desejo germânico de não ser notada a tornava desconfortável. Mark, porém, estava ansioso para se exibir. Dois anos antes seu casamento havia fracassado.
Agora, segundo Sherwood Runcie, havia uma mulher em sua vida. Fiona desconfiava que ela estaria na plateia e Mark desejava ardentemente impressioná-la. Tinha até
pedido a Fiona que decorasse as canções, mas isso, ela lhe disse, estava além de sua capacidade. Apenas as três ou quatro pequenas peças para o bis estavam gravadas
em sua memória.
No final de outubro, em meio à correspondência entregue pela manhã no tribunal, ela viu o envelope azul que lhe era tão familiar. Pauling se encontrava no gabinete
naquela hora. Para ocultar seus sentimentos, uma mescla de excitação e vago temor, ela levou a carta para perto da janela e fingiu que observava alguma coisa lá
embaixo no pátio. Depois que Pauling saiu, tirou do envelope uma única página, dobrada em quatro e rasgada embaixo, na qual constava um poema inacabado. O título
em letras maiúsculas e sublinhado duas vezes: “A BALADA DE ADAM HENRY”. Apesar da caligrafia miúda, o longo poema ocupava a página inteira. Nenhuma carta o acompanhava.
Ela deu uma olhada no primeiro verso, não conseguiu se interessar, pôs a página de lado. Tinha um caso difícil dentro de meia hora, uma série de solicitações e contrassolicitações
conjugais que sem dúvida absorveria duas semanas de sua vida. Cada parte tencionava permanecer extremamente rica à custa da outra. Não era um momento oportuno para
ler poesia.
Dois dias se passaram antes que voltasse a abrir o envelope. Eram dez da noite. Jack estava assistindo a outra palestra sobre as camadas sedimentares, ou assim ele
disse, e ela preferiu acreditar. Instalou-se na chaise longue e abriu a página no colo. Pareciam versos medíocres, desses vistos em cartões de aniversário. Fiona
então se forçou para adotar um estado de espírito mais acolhedor. Afinal de contas, tratava-se de uma balada e ele só tinha dezoito anos.
A BALADA DE ADAM HENRY
Ergui minha cruz de madeira e a arrastei junto ao rio.
Eu era jovem e tolo, e perturbado pela ideia
De que a penitência era uma asneira e os encargos coisa de idiotas.
Mas aos domingos me diziam para seguir todas as regras.
As farpas feriam meu ombro, aquela cruz pesava mais que chumbo,
Minha vida de devoto era estreita, e quase morri.
O rio corria alegre e sorridente, a luz do sol dançando a seu redor,
Mas eu devia seguir meu caminho, olhos postos no chão.
Então um peixe pulou da água com um arco-íris nas escamas.
Pérolas de água saltitavam formando colares prateados.
“Jogue a cruz na água se você quer se libertar!”
Por isso, à sombra da árvore de Judas, afoguei no rio minha carga.
Num êxtase maravilhoso me ajoelhei na margem do rio
Enquanto, apoiada em meu ombro, ela me dava o beijo mais doce.
Mas mergulhou rumo ao fundo gélido onde nunca será encontrada,
E meus olhos se encheram de lágrimas até que ouvi o som das trombetas.
E Jesus se pôs de pé sobre as águas e me disse:
“Aquele peixe era a voz de Satã, e você deve pagar o preço.
O beijo dela era o beijo de Judas e traiu meu nome.
Morte àquele
Morte àquele o quê? As últimas palavras do verso final estavam perdidas em meio a um novelo de linhas entrecruzadas que davam voltas em torno de reconsiderações,
palavras cortadas e recolocadas, variantes com pontos de interrogação. Em vez de tentar decifrar aquela mixórdia, ela releu o poema e depois se reclinou, os olhos
fechados. Ficou sentida por Adam estar com raiva dela, pintando-a como Satã, e começou a compor em devaneio uma carta para ele, sabendo que nunca a enviaria pelo
correio ou mesmo a escreveria. Seu impulso era aquietá-lo ao mesmo tempo que se justificava. Recorreu a frases prontas. Tive de mandá-lo embora, Era o que melhor
servia a seus interesses, Você tem toda uma vida jovem pela frente. Depois, com maior coerência: Mesmo se tivéssemos outro quarto, você não poderia ser nosso inquilino.
Uma coisa dessas não é aceitável para uma juíza. Acrescentou: Adam, não sou Judas. Talvez uma velha truta... Essa última frase para dar um toque de leveza à sua
firme intenção de se autojustificar.
O “beijo mais doce” dela tinha sido irresponsável, e Fiona não escapara ilesa dele, não no que dizia respeito a Adam. Mas era um gesto de pura bondade não lhe responder.
Ele voltaria a escrever, apareceria à sua porta, ela precisaria enxotá-lo de novo. Dobrou a página outra vez e a recolocou no envelope, levando-o para o quarto e
guardando na gaveta da mesinha de cabeceira. Em breve ele superaria tudo. Também devia ter sido tragado de volta para a religião, ou então Judas, Jesus Cristo e
tudo o mais eram apenas recursos poéticos usados para dramatizar o pavoroso comportamento dela ao beijá-lo e depois mandá-lo embora num táxi. Seja lá o que fosse,
Adam Henry provavelmente teria grande sucesso nos exames de recuperação e iria para uma boa universidade. Ela esmaeceria nos pensamentos dele, se tornaria uma figura
menor em sua educação sentimental.
Eles estavam num pequeno cômodo sem mobília no porão do prédio onde Mark Berner morava. Ninguém se lembrava como um piano de armário Grotrian-Steinweg tinha sido
posto lá, ninguém fora buscá-lo em vinte e cinco anos, ninguém tencionava mudá-lo de lugar. Havia arranhões e marcas de cigarros no tampo, mas o mecanismo funcionava
bem e o som era aveludado. Do lado de fora, a temperatura estava abaixo de zero, com os primeiros centímetros de neve da estação dando um toque pitoresco à Gray’s
Inn Square. Ali, que chamavam de sala de ensaios, não havia aquecedores, mas certos canos, dos muitos que corriam ao longo de uma parede e datavam dos primórdios
da era vitoriana, emitiam um calor débil porém constante que mantinha o instrumento afinado. O assoalho era coberto por um tecido com estrias que lembrava veludo,
instalado na década de 1960; ele tinha sido colado ao cimento e agora, além de exibir muitas manchas de café, se erguia aqui e ali rebeldemente, provocando tropeções.
A iluminação provinha de uma resplandecente lâmpada de 150 watts atarraxada no teto baixo. Há muito Mark falava que ia instalar uma luminária. Além de uma estante
para partituras e do banco do piano, a única mobília adicional era uma frágil cadeira de cozinha na qual eram empilhados casacos e cachecóis.
Fiona estava sentada diante do teclado, as mãos entrelaçadas e postas sobre o colo para se aquecerem, estudando a partitura, Les nuits d’été num arranjo para piano
e tenor. Em algum canto de sua sala de visitas estaria o velho disco de vinil de Kiri Te Kanawa. Não o via fazia anos. E não os ajudaria agora. Precisavam urgentemente
trabalhar na peça porque até então só haviam feito dois ensaios. Mas Mark estivera no tribunal no dia anterior e continuava irritado, precisando dizer a ela a razão.
E o que ele pensava fazer no futuro, pois estava deixando a profissão. Já bastava. Era triste demais, idiotice demais, pondo a perder muitas vidas cheias de esperança.
Uma velha e vã ameaça, mas, sentada no banco e tiritando, ela se obrigou a ouvi-lo. Mesmo assim, não podia deixar de olhar para a abertura, a “Villanelle”, os acordes
se repetindo suavemente, as colcheias pulsando em staccato, imaginando a doce melodia ou criando suas próprias versões do primeiro verso de Gautier: Quando chega
a nova estação, quando o frio se foi...
O caso de Berner tinha a ver com quatro homens ainda jovens brigando do lado de fora de um pub perto da Ponte da Torre com outros quatro com quem haviam se encontrado
por acaso. Os oito tinham bebido. Só os quatro primeiros foram presos e indiciados. O júri havia decidido que eles eram culpados de provocar ferimentos graves intencionalmente,
aceitando o argumento do promotor de que tinham agido em conjunto, devendo assim receber igual punição independentemente do que cada um fizera. Estavam todos no
mesmo barco. Depois do veredito, anunciado uma semana antes da sentença, o juiz em Southwark, Christopher Cranham, tinha advertido os quatro de que deveriam esperar
longas condenações à prisão. A essa altura, Mark Berner foi chamado pelos parentes aflitos de um dos quatro, Wayne Gallagher. Graças a uma cotização entre os membros
da família e amigos, complementada por uma inteligente campanha nas redes sociais, conseguiram juntar as vinte mil libras necessárias. Tinham a esperança de que
um advogado de renome poderia obter uma mitigação da pena antes de Gallagher ser sentenciado. Um aconselhamento jurídico perfeitamente correto oferecido pelo Estado
foi recusado, embora o advogado original tivesse sido mantido.
O cliente de Berner tinha vinte e três anos e era de Dalston, um homem jovem e algo sonhador cujo principal defeito era a passividade. E a incapacidade de comparecer
aos encontros marcados. Sua mãe era alcoólatra e viciada em drogas; o pai, com problemas semelhantes, praticamente esteve ausente na infância de Wayne, marcada pelo
caos e pelo abandono. Ele amava a mãe e, segundo insistia, ela o amava. Ela nunca havia batido nele. Passou a maior parte da adolescência tomando conta da mãe, faltando
muito à escola. Saiu de casa com dezesseis anos, trabalhou em empregos de baixo nível — numa fábrica de depenar frangos, como trabalhador braçal, num armazém, enfiando
anúncios em caixas de correio. Cinco anos antes, com dezoito, fora injustamente acusado de estupro por uma moça, ficou detido numa prisão para jovens durante algumas
semanas e depois ganhou uma tornozeleira eletrônica que o obrigou a não sair de casa à noite por seis meses. A troca de textos nos celulares oferecia boas provas
de que o sexo havia sido consensual, mas a polícia se recusou a investigar. Tinham metas a alcançar em casos de estupro. Gallagher era o tipo perfeito para eles.
No primeiro dia do julgamento, o testemunho arrasador da melhor amiga da acusadora fez com que o caso fosse encerrado. A suposta vítima pretendia receber uma compensação
financeira do programa de assistência do governo. Queria comprar um novo Xbox. Passara uma mensagem a uma amiga anunciando sua intenção. O promotor foi visto atirando
a peruca no chão e resmungando: “Garota imbecil”.
“Outra mancha em seu registro criminal”, disse Berner, “foi que, quando Gallagher tinha dezesseis anos, arrancou o capacete de um policial. Uma brincadeira idiota.
Mas lá ficou anotado como ‘agressão a policial’.”
A primavera chegou, minha adorada. É o mês abençoado dos que se amam.
O advogado estava próximo do cotovelo esquerdo de Fiona, em frente à estante de partituras. De jeans preto e justo, além de um suéter também preto de gola olímpica,
ele a fazia lembrar um beatnik antiquado. Impressão só modificada pelos óculos de leitura presos por um cordão em volta do pescoço.
“Sabe, quando Cranham disse àqueles rapazes o que eles deviam esperar, dois deles falaram que queriam começar a cumprir imediatamente sua pena de prisão. Mansos
como ovelhas, perus fazendo fila para entrar no forno. Portanto Wayne Gallagher teve de ir com eles embora quisesse passar mais uma semana com sua companheira. Ela
havia acabado de ter um bebê. Por isso eu precisei viajar para um lugar horroroso para lá da área leste de Londres a fim de vê-lo. Thamesmead.”
Fiona virou a página da partitura. “Já estive lá”, ela disse. “Há coisas piores.”
Venha pois para essa margem coberta de musgo, aqui falaremos do nosso maravilhoso amor...
“Pense bem”, Berner continuou. “Quatro garotões de Londres — Gallagher, Quinn, O’Rourke, Kelly. Terceira ou quarta geração de irlandeses. Sotaques londrinos. Todos
estudaram na mesma escola. Escola pública mas bem razoável. O policial viu o nome deles e decidiu que eram arruaceiros. Nem se deu ao trabalho de ir atrás dos outros
quatro. Por isso os promotores adotaram a tese da ação conjunta, que eles usam para quadrilhas. Coisa simples. Um belo trabalhinho daqueles preguiçosos.”
“Mark”, ela murmurou, “precisamos trabalhar.”
“Estou quase acabando.”
Como se viu depois, a briga ocorreu diante de duas câmeras de segurança.
“Os ângulos eram perfeitos. Deu para ver todo mundo. E em cores decentes. Extraordinariamente nítido. Martin Scorsese não faria melhor.”
Berner teve quatro dias para se inteirar do caso, passar e repassar o DVD e memorizar os movimentos rápidos de uma briga de oito minutos filmada de duas posições
distintas, guardando de cor cada passo de seu cliente e dos outros sete. Observou o primeiro contato dos homens na calçada larga entre uma loja fechada com tábuas
e um telefone público, uma troca verbal raivosa, alguns empurrões, peitos estufados, fanfarronice masculina, o grupo amorfo indo para lá e para cá, em certo momento
saindo da calçada e indo para o meio da rua. Uma mão pegou um antebraço, a palma de outra empurrou um ombro. Então Wayne Gallagher, que estava atrás de seus companheiros,
levantou um braço e, infelizmente para ele, desferiu o primeiro e logo depois o segundo golpe. Mas seu punho estava alto demais, ele se encontrava muito atrás, seus
movimentos foram dificultados pela lata de cerveja na outra mão. Seus golpes foram ineficazes, e o sujeito que ele atacou mal se deu conta do que tinha acontecido.
Os grupos então se dividiram desordenadamente em dois, e Gallagher, ainda longe do centro da briga, atirou sua lata de cerveja. Um arremesso feito sem levantar o
braço acima da cabeça, e o suposto alvo só precisou limpar umas gotas de cerveja da camisa. Mas, indo à forra, um dos outros quatro contornou o grupo e acertou um
soco poderoso na cara de Gallagher, cortando-lhe o lábio e pondo fim ao envolvimento dele. Gallagher ficou parado, tonto, e se afastou da briga e do campo de visão
das câmeras.
A briga continuou sem ele. Um de seus colegas de escola, O’Rourke, deu um passo à frente e derrubou no chão o sujeito que socara Gallagher. Tão logo ele caiu, outro
amigo, Kelly, fraturou sua mandíbula com um pontapé. Meio minuto depois, outro homem foi ao chão, dessa vez chutado por Quinn, que abriu um dos lados do rosto do
adversário. Quando a polícia chegou, o sujeito que havia dado um soco em Gallagher se levantou e saiu correndo, foi se esconder no apartamento de sua namorada. Ele
tinha medo de ser preso e perder o emprego.
Fiona olhou para o relógio. “Mark...”
“Estou quase acabando, Meritíssima. O importante é que meu cliente ficou lá esperando pela polícia. O rosto coberto de sangue. Tão culpado de agressão quanto vítima
de agressão etc. e tal. Ossos quebrados, portanto se trata de um caso de ferimento grave causado intencionalmente. A polícia indiciou os quatro com base em vários
artigos do código, mas no tribunal a promotoria enfatizou a iniciativa conjunta e o consequente agravamento da pena, que vai de cinco a nove anos. A história de
sempre. Meu cliente não participou da violência. Ia ser sentenciado por crimes que outros cometeram e pelos quais nem havia sido indiciado. Ele se declarou não culpado.
Devia ter admitido a participação em perturbação da ordem, mas eu não estava lá para aconselhá-lo. Um advogado público deveria ter mostrado ao júri a fotografia
que a polícia tirou de seu rosto ensanguentado. De qualquer modo, o sujeito com a mandíbula fraturada se recusou a depor como vítima. Depôs apenas como testemunha
de acusação. Disse ao juiz que não entendia todo aquele estardalhaço. Não havia precisado de tratamento, tinha viajado de férias para a Espanha dois dias depois
da briga. Nos dois primeiros dias foi obrigado a tomar vodca de canudinho. Fim da história — essas foram suas palavras, é o que consta na transcrição.”
Continuando a ouvir, ela abriu os dedos formando um acorde mas não o tocou. Voltemos para casa, carregados de morangos silvestres.
“Obviamente, eu não podia fazer nada sobre o veredito do júri. Falei durante setenta e cinco minutos, tentando separar Wayne do resto, tentando baixar o nível do
indiciamento para um patamar de três a cinco anos de prisão. Defendi também com muito vigor a tese de que o Judiciário lhe devia seis meses de liberdade devido à
falsa acusação de estupro. Com isso ele receberia uma punição mas obteria a suspensão da pena de detenção, que era tudo o que merecia por causa da sua imbecilidade.
Os outros três advogados falaram por dez minutos em defesa de seus clientes. Cranham fez um resumo. Filho da mãe preguiçoso. Graças a Deus aceitou baixar o nível
da condenação para aquele que eu havia pedido, mas não abandonou a tese da iniciativa comum e esqueceu de se manifestar a respeito da questão que eu havia suscitado,
sobre o tempo que o Judiciário devia ao meu cliente. Dois anos e meio para todos. Preguiçoso e cruel. Mas, na galeria, os parentes dos outros três choravam de alívio.
Estavam esperando um mínimo de cinco anos. Acho que fiz um favor a eles.”
Fiona disse: “O juiz se valeu da sua faculdade de reduzir o nível de indiciamento. Considere-se um homem de sorte”.
“Não é disso que se trata, Fiona.”
“Vamos começar. Temos menos de uma hora.”
“Escute até o fim. Esse é o meu discurso de pedido de demissão. Todos aqueles sujeitos tinham um emprego. Poxa vida, pagavam impostos! Meu cliente não feriu ninguém.
À luz de sua história pregressa, ele vinha contrariando todas as probabilidades e se revelando um pai que cuidava do filho. Kelly era técnico de um time de futebol
juvenil nas horas vagas. O’Rourke trabalhava nos fins de semana numa instituição de amparo a vítimas da fibrose cística. Não se tratou de um ataque a transeuntes
inocentes. Foi uma briga do lado de fora de um pub.”
Ela levantou os olhos da partitura. “Uma fratura de mandíbula?”
“Tudo bem. Uma briga. Entre adultos que sabiam o que faziam. De que serve encher as prisões com esse tipo de gente? Gallagher deu dois socos inofensivos e atirou
uma lata de cerveja vazia. Dois anos e meio. A grave condenação por crimes pelos quais nem foi indiciado. Está indo para uma prisão especial de jovens, você sabe,
dentro do presídio de Belmarsh. Já estive lá algumas vezes. O site diz que eles têm uma ‘academia de ensino’. Mentira das boas! Tive clientes que ficavam dentro
da cela vinte e três horas por dia. Os cursos são cancelados o tempo todo. Dizem que falta pessoal. Cranham, com seu cansaço fingido, querendo dar a impressão de
que é irritadiço demais para ouvir qualquer um. Não liga a mínima para o que pode acontecer com esses rapazes! Jogados naqueles infernos, se tornando amargos, aprendendo
a ser criminosos. Sabe qual foi o meu maior erro?”
“Qual?”
“Tentei caracterizar o caso como de bebedeira e ânimos exaltados. A violência foi consensual. ‘Se esses quatro senhores fossem membros do Bullingdon Club da universidade
de Oxford, não estariam aqui à sua frente, Meritíssimo.’ Com um pressentimento horrível, quando voltei para casa, pesquisei quem era Cranham no Who’s Who. Arrisque
um palpite.”
“Ah, meu Deus, Mark. Você está precisando de férias.”
“Abra os olhos, Fiona. É a merda da luta de classes.”
“E na Vara de Família é só champanhe e fraises des bois.”
Sem esperar mais, ela começou a tocar os dez compassos da introdução, os acordes suavemente insistentes. Do canto do olho, viu que ele punha os óculos de leitura.
E então a bonita voz de tenor, obedecendo à instrução dolce do compositor, se fez ouvir com doçura.
Quand viendra la saison nouvelle,
Quand auront disparu les froids...
Por cinquenta e cinco minutos não pensaram um só minuto no direito.
Em dezembro, no dia do concerto, ela chegou em casa, de volta do tribunal, às seis da tarde, apressada para tomar um banho e mudar de roupa. Ouviu Jack na cozinha
e lhe deu um oi a caminho do quarto. Curvado diante da geladeira, ele respondeu com um grunhido. Quarenta minutos depois ela apareceu no corredor num vestido de
seda preta e sapatos de salto alto de verniz preto, os quais lhe garantiriam uma boa alavanca para trabalhar os pedais. Usava no pescoço uma corrente simples de
prata. O perfume era Rive Gauche. Do hi-fi raramente usado da sala de visitas, veio o som de música para piano, um velho disco de Keith Jarrett, Facing You. A primeira
música. Ela parou do lado de fora do quarto para ouvir. Fazia muito tempo que não ouvia a melodia hesitante e só revelada em parte. Tinha se esquecido de como aos
poucos a melodia ganhava confiança e se tornava subitamente viva à medida que a mão esquerda mergulhava num boogie estranhamente modificado, cada vez mais potente,
impossível de ser freado como uma locomotiva a vapor em aceleração. Só um músico com formação clássica, como Jarrett, seria capaz de fazer com que cada mão fosse
tão independente da outra.
Jack estava lhe enviando uma mensagem, pois se tratava de um dos três ou quatro álbuns que serviram de fundo musical no início do relacionamento deles. Naqueles
dias, depois dos exames finais, depois da encenação de Antônio e Cleópatra só por mulheres, quando ele a persuadiu a passar uma noite, e mais tarde dezenas delas,
no quarto sob o beiral do telhado com a janelinha que dava para o leste. Quando ela entendeu que o êxtase sexual era mais que uma expressão exagerada. Quando, pela
primeira vez desde os seus sete anos, gritou de prazer. Ela havia caído de costas num espaço remoto e desabitado, e mais tarde, lado a lado na cama, os lençóis os
cobrindo só até a cintura como nas poses dos artistas de cinema depois de fazerem sexo, riam da barulheira que ela havia feito. Por sorte, não havia ninguém no apartamento
de baixo. Jack, com seu jeito controlado e cabeleira comprida, disse que era o maior elogio que ele já havia recebido. Ela lhe disse que não conseguia imaginar como
iria recobrar suas forças, na espinha, nos ossos, para fazer aquilo de novo. Se é que queria voltar viva. Mas o fez, e com frequência. Era jovem.
Nessa época, quando não estavam juntos na cama, ele procurava seduzi-la ainda mais através do jazz. Gostava de vê-la tocar, porém queria afastá-la à força da tirania
das notações rígidas e dos gênios havia muito falecidos. Punha para ela ouvir “Round Midnight”, de Thelonious Monk, e lhe deu a partitura. Não era difícil de interpretar.
Mas a versão dela, suave e sem acentos, soava como uma peça medíocre de Debussy. Tudo bem, Jack dizia. Os grandes mestres do jazz adoravam Debussy e aprendiam com
ele. Fiona ouvia outra vez, persistia, tocava o que se encontrava à sua frente, mas aquilo não era jazz. Não havia pulsação, nenhum sincopado, nenhuma liberdade,
os dedos sem vida própria seguindo obedientemente a marcação dos compassos e as notas tal como escritas. Por isso ela estava estudando direito, disse a seu amante.
Respeito pelas regras.
Fiona desistiu, mas de fato aprendeu a ouvir, e Jarrett foi o pianista que mais admirou. Levou Jack para ouvi-lo no Coliseu de Roma. A facilidade técnica, o jorro
espontâneo de invenção lírica tão copioso quanto o de Mozart, e lá estava ele depois de tantos anos ainda a fazendo parar e lembrar como outrora ela e Jack haviam
se divertido juntos. A música fora artisticamente escolhida.
Seguiu pelo corredor e parou de novo na entrada da sala de visitas. Ele estivera ocupado. Dois abajures com lâmpadas havia muito queimadas estavam por fim acesos.
Várias velas espalhadas pela sala. As cortinas cerradas ocultando a chuva fina da noite de inverno e, pela primeira vez em mais de um ano, um fogo decentemente preparado
na lareira, com lenha além do carvão. Jack estava a postos com uma garrafa de champanhe na mão. À sua frente, numa mesa baixa, um prato de presunto, azeitonas e
queijo.
Ele vestia um terno preto e camisa branca sem gravata. Ainda esbelto. Aproximou-se, entregou-lhe uma taça de champanhe flute e a encheu, servindo-se depois. Manteve
uma expressão séria enquanto erguiam as taças e as faziam tilintar.
“Não temos muito tempo.”
Ela entendeu que ele se referia ao fato de que, em breve, deveriam sair e ir caminhando até o Great Hall. Loucura beber antes de um concerto, mas ela não ligou.
Tomou um segundo gole substancial e o seguiu até perto do fogo. Ele lhe ofereceu o prato, Fiona pegou um pedaço de parmesão e cada qual ficou num lado da lareira,
apoiando-se na cornija. Como dois enfeites enormes, ela pensou.
Ele disse: “Quem sabe quanto tempo temos. Não muitos anos. Ou voltamos a viver outra vez, a realmente viver, ou entregamos os pontos e aceitamos que vai ser uma
droga daqui até o fim”.
O velho tema dele. Carpe diem. Ela ergueu a taça e disse em tom solene: “Ao nosso reviver”.
Viu a ligeira mudança no semblante de Jack. Alívio e, por trás disso, algo mais intenso.
Jack reencheu a taça dela. “Por falar nisso, seu vestido é fabuloso. Você está muito bonita.”
“Obrigada.”
Olharam-se no fundo dos olhos até não haver mais nada a fazer senão avançarem um na direção do outro e se beijarem. Beijaram-se de novo. A mão dele pousou de leve
na parte de baixo das costas de Fiona sem descer até a coxa, como ele costumava fazer. Estava avançando por etapas, e sua delicadeza a tocou. Se não estivessem sujeitos
a um grande dever musical e social, ela não tinha dúvida sobre o que se seguiria àquele momento de distensão. Mas a partitura estava atrás dela na chaise longue
e eles estavam obrigados a se manter vestidos da cabeça aos pés. Por isso trocaram um abraço apertado e se beijaram mais uma vez; voltando a se separar, pegaram
as taças, as tocaram em silêncio e beberam.
Ele tampou a garrafa de champanhe com um aparelhinho engenhoso, dotado de mola, que ela lhe dera fazia tempo no Natal. “Para depois”, Jack disse, e ambos riram.
Pegaram os casacos e saíram. Para se equilibrar nos saltos altos, Fiona caminhou apoiada no braço do marido e sob o guarda-chuva dele, mantido galantemente sobre
a cabeça dela.
“Você é que é a artista”, ele disse. “Você é quem está de vestido de seda.”
A azáfama de conversas e risadas anunciou a presença de uns cento e cinquenta espectadores, cada qual com um copo de vinho na mão. As cadeiras haviam sido dispostas,
porém ninguém se sentara ainda, o Fazioli e uma estante musical aguardando no palco. Eram todos moradores da região, membros do Judiciário, a maior parte da vida
profissional e social dela reunida num único lugar. Por mais de trinta anos ela havia cooperado ou se confrontado com dezenas de pessoas que via ali no salão. Vários
magistrados eminentes, muitos de fora, da Lincoln’s Inn, do Inner Temple ou do Middle Temple — o próprio lorde que presidia o Judiciário, alguns membros do Tribunal
de Recursos, dois juízes da Corte Suprema, o promotor geral, uns vinte advogados famosos. Os executivos da lei, que decidiam a sorte das pessoas e privavam cidadãos
de sua liberdade, tinham desenvolvido um senso de humor peculiar e paixão pelas conversas sobre assuntos profissionais. O barulho era ensurdecedor. Em poucos minutos
ela e Jack se perderam de vista. Alguém se aproximara e pedira a ajuda dele com alguma frase em latim. Ela foi atraída para um grupo que fofocava sobre um amigo
excêntrico do presidente da Vara Cível, a segunda maior autoridade judiciária do país. Ela nem precisava se mover de onde estava. Os amigos vinham abraçá-la e lhe
desejar boa sorte, outros apertavam sua mão. Tinha sido um golpe de gênio do comitê de advogados da Gray’s Inn permitir que os concertos fossem precedidos de uma
vasta reunião social. Vinho, Fiona esperava, poderia mitigar as faculdades críticas dos frequentadores assíduos do Wigmore Hall.
Quando um garçom se aproximou com uma bandeja de prata, ela estava se sentindo bem demais para recusar. Ao pegar uma taça, Mark Berner surgiu em sua linha de visão,
a uns quinze metros de distância e com umas cem pessoas entre eles, sacudindo um dedo em sinal de proibição. Claro que ele tinha razão. Ela ergueu a taça na direção
dele e tomou um pequeno gole. Um amigo, valoroso magistrado, levou-a para lhe apresentar um advogado “brilhante” que por acaso era seu sobrinho. Observada pelo tio
orgulhoso, ela fez perguntas solícitas a um jovem magricela com uma gagueira dolorosa. Começava a desejar companhias mais animadas, quando uma velha colega da Middle
Temple apareceu de repente e a roubou, levando-a para um grupo de expansivas e jovens advogadas, que lhe disseram, de forma brincalhona, que não estavam recebendo
as causas de maior qualidade, todas entregues aos homens.
Funcionários do salão começaram a circular anunciando que o concerto estava prestes a começar. As pessoas se instalaram com relutância nas cadeiras. Era difícil
trocar subitamente um bom vinho e fofocas por música solene. Mas, com os copos sendo recolhidos, o alarido foi se amainando. Ela ia caminhando para os degraus do
lado direito do palco, quando sentiu um toque no ombro e se voltou. Era Sherwood Runcie. O juiz do caso de Martha Longman. Por alguma razão ele vestia um smoking,
o que conferia um ar patético, de bicho apanhado numa armadilha, a homens de certa idade com panças volumosas. Pousou a mão no braço de Fiona desejando transmitir-lhe
uma informação de interesse dela que fora mantida fora dos jornais. Ela se inclinou para ouvir suas palavras. Com a mente já focada no concerto, a pulsação se acelerando,
foi difícil concentrar-se no que era dito, embora tivesse a impressão de havê-lo entendido. Quando ia pedir ao juiz que repetisse, deu-se conta de que Mark, à sua
frente, se voltava para ela fazendo sinais impacientes. Endireitou o corpo, agradeceu a Runcie e seguiu o tenor na direção do palco.
Enquanto esperavam ao pé da escadinha que a audiência se acomodasse e fossem chamados, Mark disse: “Você está se sentindo bem?”.
“Estou bem. Por quê?”
“Parece pálida.”
“Hum.”
Automaticamente, ela tocou seu cabelo com a ponta dos dedos de uma das mãos. Na outra estava a partitura, que segurou com ainda mais força. Será que estava com uma
cara ruim? Calculou o que havia bebido. Não mais do que três goles de vinho branco. Mark a advertira para não beber. Umas duas taças ao todo. Ia ficar bem. Ele lhe
deu a mão ao subirem os degraus e até chegarem junto ao piano, quando ambos curvaram a cabeça num gesto de saudação e receberam o tipo de aplauso reservado ao time
da casa. Afinal de contas, aquele era o quinto concerto de Natal deles no Great Hall. Depois de se sentar, pôr a partitura no lugar e ajustar o banco, ela respirou
fundo e expirou devagar para se livrar dos últimos retalhos das conversas recentes, do advogado gago, das jovens carentes de trabalho. E de Runcie. Não. Não havia
tempo para pensar. Mark acenou com a cabeça para ela a fim de mostrar que estava pronto, e de imediato seus dedos passaram a extrair do colossal instrumento os acordes
suavemente ondulantes, parecendo carregar consigo sua mente. A entrada do tenor foi perfeita e, depois de alguns poucos compassos, eles estavam congregados numa
unidade de propósitos raramente atingida nos ensaios, não mais se concentrando apenas em fazer as coisas certas, mas capazes de se dissolver na música sem o menor
esforço. Passou por sua cabeça que ela havia bebido a quantidade certa de vinho. O poder macio e profundo do Fazioli a despertou. Era como se ela e Mark estivessem
sendo levados com facilidade rio abaixo numa corrente de notas. A voz dele soava mais cálida em seus ouvidos, perfeitamente afinada, livre do vibrato não pedido
pela melodia e que ele às vezes exibia, livres para explorarem todas as delícias da composição de Berlioz para a “Villanelle” e depois para o “Lamento”, toda a tristeza
da linha abruptamente cadente: Ah! Sans amour s’en aller sur la mer! Sua interpretação jorrava de forma espontânea. À medida que seus dedos tocavam as teclas, ela
se ouvia como se estivesse sentada no fundo da sala, como se dela só se exigisse estar presente. Juntos, Fiona e Mark penetraram no hiperespaço sem horizonte do
fazer musical, mais além do tempo e do espaço. Ela tinha a vaga noção de que algo a esperava na volta, um pontinho estranho lá embaixo numa paisagem bem conhecida.
Talvez nem estivesse lá, talvez não fosse verdade.
Eles vieram à tona como se saídos de um sonho, lado a lado, para se defrontar de novo com a audiência. O aplauso foi retumbante, mas sempre era. No espírito de generosidade
que imperava no Great Hall durante a festa natalina, era com frequência ainda mais alto para as performances modestas. Foi só ao trocar olhares com Mark e ver o
brilho em seus olhos que ela se certificou de que haviam rompido os limites usuais dos músicos amadores. Tinham de fato contribuído com alguma coisa para a peça.
Se havia uma mulher na plateia que Mark quisesse impressionar, então ela teria sido cortejada no estilo antigo e sem dúvida ficaria caída por ele.
De repente se fez silêncio quando tomaram posição para o Mahler. Agora ela estava sozinha. A longa introdução pareceu estar sendo inventada pela pianista enquanto
se desenrolava. Com infinita paciência, duas notas soaram de forma hesitante, foram repetidas, outra se somou a elas, as três foram repetidas, e só ao surgir a quarta
nota a linha se estendeu luxuriosamente para cima numa das mais adoráveis melodias que Mahler compôs em toda a sua vida. Ela não se sentiu exposta de um modo desagradável.
Conseguiu mesmo alcançar o que é uma segunda natureza para os mestres do piano, extraindo um som de sino de certas notas acima do dó médio. Em outros trechos, achou
que, pela forma como tocava, era capaz de persuadir seus ouvintes de que percebiam a harpa presente na versão para orquestra. Desde sua entrada, Mark absorveu o
espírito de serena resignação. Por alguma razão ele havia insistido em cantar em inglês, e não em alemão, uma liberdade só concedida aos amadores. A vantagem era
a compreensão instantânea que todos tinham de um homem que se afastava do tumulto. Eu realmente me sinto como se estivesse morto para o mundo. Os dois tiveram a
certeza de que dominavam a audiência, e o desempenho deles ganhou ainda mais força. Fiona também sabia que estava avançando com passos majestosos rumo a algo terrível.
Era verdade, não era verdade. Só saberia quando a música cessasse e ela confrontasse aquilo.
De novo o aplauso, as reverências apenas esboçadas e, agora, pedidos de bis. Ouviram-se até pés batendo no chão, cada vez mais ruidosos. Os dois executantes se entreolharam.
Lágrimas nos olhos de Mark. Um gosto metálico na boca de Fiona ao voltar a se sentar no banco do piano enquanto a plateia silenciava. Manteve durante alguns segundos
as mãos no colo e a cabeça baixa, recusando-se a olhar para seu parceiro. Da seleção de peças que sabiam de cor, já haviam se decidido por “An die Musik”, de Schubert.
Uma velha favorita. Nunca falhava. Pôs as mãos sobre as teclas, se preparando, sem ainda erguer a vista. O silêncio na sala era absoluto, e então ela começou. O
fantasma de Schubert talvez tenha abençoado a introdução que tocou, mas as três notas que subiam, um acorde incompleto carinhosamente ecoado mais abaixo, e depois
ainda mais abaixo até por fim se tornar harmônico, pertenciam a alguma outra mão. Nas notas tranquilas e repetidas que pulsavam no fundo, talvez houvesse uma homenagem
a Berlioz. Quem saberia? Até a canção de Mahler, com sua aceitação melancólica, talvez tenha subliminarmente ajudado Britten em seu arranjo. Fiona não sinalizou
nenhum pedido de desculpa para Mark. Seu rosto permanecia tão rígido como fora antes seu sorriso. E ela só olhava para as mãos. Ele teve apenas alguns segundos para
reorganizar seus pensamentos, mas estava sorrindo ao sorver o ar e seu tom foi doce, e ainda mais doce no segundo verso.
Num campo junto ao rio, meu amor pousou de leve
A mão branca como a neve
No meu ombro inclinado, me dizendo
Que levasse a vida com leveza,
Como o capim cresce na margem da represa;
Mas eu era jovem e tolo, e hoje só me resta chorar.
Tratava-se de uma plateia sempre generosa mas que raramente se punha de pé para fazer uma ovação. Isso era coisa para concertos de música pop, assim como gritos
e assobios. Mas todos se levantaram de uma só vez, notando-se somente alguma hesitação de algumas figuras mais eminentes do Judiciário. Alguns entusiastas mais jovens
gritaram e assobiaram. Mas Mark Berner recebeu o tributo sozinho, com uma mão pousada no piano, balançando a cabeça e sorrindo em agradecimento, enquanto também
observava com preocupação a pianista, que atravessava às pressas o palco, olhos postos no chão, e descia os degraus, abrindo caminho entre os componentes do quarteto
de cordas, que aguardavam sua vez, e se dirigindo em passos largos para a saída. Como todos deduziram que a experiência devia ter sido incomumente intensa para ela,
magistrados e amigos foram compreensivos e bateram palmas ainda mais fortes quando passou diante deles.
Fiona pegou o casaco e, sem se importar com a nova chuvarada, caminhou até o seu apartamento tão depressa quanto ousava com salto alto. Na sala de visitas, umas
poucas velas permaneciam acesas, como eles descuidadamente as haviam deixado. Ainda de casaco, o cabelo grudado no crânio, água escorrendo pelo pescoço e pelas costas,
ela ficou imóvel, tentando recordar o nome de uma mulher. Tanta coisa acontecera desde que havia pensado nela pela última vez. Lembrava-se de um rosto, ouvia uma
voz, e aí o nome voltou. Marina Greene. Fiona pegou o celular na bolsa e fez a chamada. Desculpou-se por telefonar àquela hora. A conversa foi breve porque crianças
gritavam ao fundo e a voz da jovem denotava cansaço e irritação. Sim, ela confirmava. Quatro semanas atrás. Deu os poucos detalhes que sabia e se disse surpresa
pela juíza não haver sido informada.
Fiona continuou parada no mesmo lugar, o olhar fixo, por nenhuma razão em particular, no prato de comida preparado por Jack, a cabeça misericordiosamente vazia.
A música que acabara de tocar não ressoava em seus ouvidos como costumava acontecer. Já havia se esquecido do concerto. Até onde era neurologicamente possível não
pensar, ela não tinha nenhum pensamento. Passaram-se vários minutos. Impossível saber quantos. Voltou-se ao ouvir um ruído. O fogo estava nas últimas, se desmanchando
na grelha. Foi até lá, se ajoelhou e cuidou de reanimá-lo levantando fragmentos de lenha e carvão com as mãos e não com as tenazes, e os colocando em cima ou perto
das brasas. Depois de três sopros do fole, uma lasca de pinho pegou fogo, que se espalhou para dois pedaços maiores enquanto ela observava. Aproximou-se e deixou
que o espetáculo das pequenas chamas, com seus movimentos espásticos contra o negror do carvão, enchesse seus olhos.
Por fim, os pensamentos chegaram sob a forma de duas perguntas insistentes. Por que você não me disse? Por que não pediu minha ajuda? A resposta veio em sua própria
voz imaginada. Fiz isso. Ela se levantou, consciente da dor nos quadris ao caminhar até o quarto para pegar o poema na mesinha de cabeceira, onde ficara por seis
semanas. Não tinha podido reler o poema por causa de seu tom melodramático e pela sugestão puritana de que a busca da liberdade, ao atirar a pesada cruz no rio e
receber um beijo casto, deviam ser inspiradas por Satã. Havia algo pegajoso ou sufocante naquela parafernália cristã — a cruz, a árvore de Judas, as trombetas. E
ela era a mulher pintada, o peixe com arco-íris nas escamas, a criatura traiçoeira que levou o poeta para o mau caminho e o beijou. Sim, aquele beijo. Foi a culpa
dela que a tinha mantido distante.
Ela se agachou outra vez perto do fogo e pôs o poema à sua frente sobre o tapete Bokhara. Como havia mexido no carvão, suas impressões digitais ficaram marcadas
no topo da página. Foi direto ao último verso — Jesus Cristo milagrosamente de pé sobre as águas do rio, anunciando que o peixe era Satã disfarçado e que o poeta
devia “pagar o preço”.
O beijo dela era o beijo de Judas e traiu meu nome.
Morte àquele
Fiona alcançou os óculos na mesa atrás dela e se inclinou para ler as palavras riscadas e circundadas. “Faca” havia sido riscada, assim como “preço”, “Deixe que
ele” e “culpa”. As palavras “ele próprio” tinham sido riscadas, depois recolocadas e mais uma vez eliminadas. “Não deve” foi substituído por “deve”, “afundei” por
“afoguei”. “Morte àquele” se destacava, sem um círculo em volta, flutuando acima da confusão com uma seta para indicar que deveria substituir “E”. Fiona estava pegando
o jeito do método e da caligrafia dele. E de repente tudo ficou claro. Havia mesmo uma linha sinuosa conectando as palavras escolhidas. O Filho de Deus tinha proferido
uma maldição.
Morte àquele que afogou minha cruz com as próprias mãos.
Ela não se voltou ao ouvir a porta da frente sendo aberta, e foi assim que Jack a viu de relance ao passar pela sala de visitas em direção à cozinha. Achou que ela
estivesse cuidando da lareira.
“Capricha no fogo”, ele disse. E já mais afastado: “Você foi brilhante! Todo mundo adorou. E tão emocionante!”.
Quando voltou com o champanhe e duas taças limpas, ela havia se posto de pé para tirar o casaco, jogando-o sobre as costas de uma cadeira, e se livrar do sapato.
Estava de pé no meio da sala, esperando. Ele não percebeu sua palidez ao lhe dar uma das taças, que ela ergueu para ser servida.
“Seu cabelo. Quer que eu pegue uma toalha?”
“Daqui a pouco ele seca.”
Ele removeu a tampa de metal e encheu a taça de Fiona, depois a dele, que deixou sobre um móvel enquanto se dirigia à lareira, onde despejou a cesta de carvão e
pôs três pedaços grandes de lenha ensarilhados. Ligou o hi-fi, para tocar de novo o disco de Jarrett.
Ela murmurou: “Jack, agora não”.
“Claro. Depois de hoje à noite! Burrice minha.”
Vendo que Jack queria retornar rapidamente à situação em que se encontravam antes do concerto, sentiu pena dele. Ele estava fazendo o possível. Logo, logo ia querer
beijá-la. Aproximou-se de Fiona e, no silêncio que passara a silvar nos ouvidos dela desde o instante em que o hi-fi foi desligado, tocaram suas taças e beberam.
Ele então comentou o desempenho dela e de Mark, das lágrimas de orgulho do tenor quando todos se puseram de pé ao final e o que as pessoas disseram depois.
“Saiu tudo bem”, ela disse. “Estou muito feliz que tudo correu bem.”
Ele não era músico e gostava unicamente de jazz e blues, mas fez observações bastante plausíveis sobre o concerto e se lembrava de cada peça executada. Les nuits
d’été havia sido uma revelação. Emocionou-o em particular o “Lamento”, chegou mesmo a entender o francês. Precisaria ouvir de novo o Mahler, porque percebeu um imenso
reservatório de sentimento na peça, mas não foi capaz de apreender tudo naquela primeira vez. Ficou contente de Mark ter cantado em inglês. Todos tinham vontade
de fugir do mundo, poucos ousavam fazê-lo. Ela escutou com seriedade, ou pareceu que o fazia, dando respostas breves ou assentindo com a cabeça. Sentia-se como um
paciente hospitalizado que deseja ardentemente que o visitante bondoso vá embora para que ele possa voltar a se sentir mal. O fogo pegou e Jack, notando que ela
tiritava, levou-a para perto da lareira e lá serviu o resto do champanhe.
Residiam na praça havia bastante tempo e ele conhecia os membros do Judiciário que eram seus vizinhos quase tão bem quanto ela. Começou a lhe falar das pessoas que
encontrara naquela noite. Os moradores do lugar eram muito unidos e os fascinavam. Aquele post mortem no final das noitadas era uma característica do relacionamento
dos dois. Era fácil para ela continuar resmungando uma resposta aqui e ali. Jack permanecia excitado com a performance dela e com o que imaginava que iria acontecer.
Ele contou sobre um criminalista que estava montando com outros uma escola gratuita. Precisavam de uma tradução em latim para o moto “Toda criança é um gênio”. Coisa
curta, que pudesse ser costurada no blusão escolar debaixo de uma fênix heráldica se erguendo das cinzas. Um problema fascinante. A ideia de gênio surgira no século
XVIII, e as palavras correspondentes a “criança” em latim traziam em geral a definição do gênero. Jack se saíra com “Cuiusque parvuli ingenium” — não tão forte quanto
gênio, mas o conceito de inteligência ou aptidão natural era um substituto razoável. Com um pouco de boa vontade, “parvuli” poderia englobar as meninas. Depois o
advogado havia perguntado se ele estaria interessado em criar um curso descontraído de latim para jovens de nível variado entre onze e dezesseis anos. Desafiador.
Irresistível.
Fiona ouviu sem exprimir nenhuma emoção. Nenhum filho seu jamais usaria aquele maravilhoso emblema. Deu-se conta de que estava excessivamente vulnerável.
Ela disse: “Seria uma coisa boa de fazer”.
Jack sentiu a falta de entusiasmo em sua voz e a olhou de forma diferente.
“Tem alguma coisa te incomodando.”
“Eu estou bem.”
Franzindo a testa ao relembrar a pergunta que deixara de fazer, ele disse: “Por que você saiu daquele jeito no fim?”.
Ela hesitou: “Foi demais para mim”.
“Quando todos se levantaram? Eu quase chorei.”
“Foi a última música.”
“O Mahler.”
“Não, ‘The Salley Gardens’.”
Ele achou a resposta engraçada e lhe lançou um olhar de descrença. Já a tinha visto executar aquela música com Mark dezenas de vezes. “Como assim?”
Havia também um toque de impaciência na atitude dele. Jack queria realizar a promessa de uma noite formidável, repor o casamento nos trilhos, beijá-la, abrir outra
garrafa, levá-la para a cama, fazer com que tudo se tornasse mais uma vez fácil entre os dois. Ela o conhecia bem, entendeu tudo e, de novo, teve pena de Jack. Mas
sentiu tudo isso de uma grande distância.
Ela disse: “Uma recordação. Do verão”.
“É mesmo?” Seu tom denotava apenas uma leve curiosidade.
“Um jovem tocou essa melodia para mim no violino. Ainda estava aprendendo a música. Foi num hospital. Acompanhei cantando. Acho que fizemos uma barulheira. Depois
ele quis tocar outra vez, mas eu precisava ir embora.”
Jack não estava interessado em quebra-cabeças. Esforçou-se para que sua voz não demonstrasse irritação. “Comece de novo. Quem era o rapaz?”
“Um jovem muito estranho e bonito.” Ela falou num tom vago, as palavras saindo lentamente.
“E?”
“Suspendi a sessão enquanto fui vê-lo em seu quarto no hospital. Você se lembra. Uma testemunha de Jeová, muito doente, recusando o tratamento. Saiu em todos os
jornais.”
Se precisava ser lembrado era porque naquela época ele estava instalado no quarto de Melanie. De outro modo, teria discutido o caso.
Ele disse com firmeza: “Acho que me lembro”.
“Permiti que o hospital o tratasse e ele se recuperou. A sentença teve... um grande efeito sobre ele.”
Como antes, estavam de um lado e do outro da lareira, que agora irradiava um forte calor. Ela fixou os olhos nas chamas. “Acho... acho que ele se apegou muito a
mim.”
Jack descansou a taça vazia. “Continue.”
“Quando eu estava no circuito, ele me seguiu até Newcastle. E eu...” Fiona não ia lhe contar o que havia acontecido lá, mas mudou de ideia. Não havia razão para
ocultar nada agora. “Ele andou na chuva para me encontrar e... eu fiz uma idiotice. No hotel. Não sei o que eu estava... Eu o beijei. Beijei o rapaz.”
Ele deu um passo atrás para se distanciar do calor do fogo, ou dela. Fiona não se importava mais.
Sussurrou: “Ele era uma pessoa muito doce. Queria vir morar conosco”.
“Conosco?”
Jack Maye tinha atingido a maioridade nos idos da década de 1970 em meio a suas múltiplas correntes de pensamento. Ensinara numa universidade durante toda a sua
vida adulta. Conhecia tudo sobre a falta de lógica dos padrões morais diferentes para homens e mulheres, mas esse saber não era capaz de protegê-lo. Fiona viu a
raiva no rosto dele, a tensão dos músculos em torno das mandíbulas, o olhar se endurecendo.
“Ele imaginou que eu poderia modificar sua vida. Acredito que queria me transformar numa espécie de guru. Achou que eu podia... Estava tão ávido, com tanta fome
de viver, de tudo. E eu não...”
“Então você o beijou e ele quis viver com você. O que é que está tentando me dizer?”
“Mandei-o embora.” Ela balançou a cabeça e não conseguiu continuar.
Em seguida olhou para Jack. Ele se manteve bem longe dela, os pés afastados, braços cruzados, o rosto ainda bonito e afável agora enrijecido pela raiva. Alguns pelos
prateados do seu peito escapavam pela gola aberta da camisa. Ela já o vira levantá-los vez por outra com um pente. A noção de que o mundo era repleto de tais detalhes,
de tantos pontos minúsculos da fraqueza humana ameaçou esmagá-la e ela se viu forçada a desviar os olhos.
Só agora, que a chuva tinha parado, eles perceberam que ela estivera martelando as janelas.
Naquele silêncio mais profundo, ele disse: “E o que aconteceu? Onde ele está agora?”.
Fiona respondeu baixinho, num tom monocórdio. “Eu soube hoje pelo Runcie. Algumas semanas atrás sua leucemia voltou e ele foi levado para o hospital. Recusou a transfusão
que queriam lhe dar. Foi sua decisão. Já tinha dezoito anos e ninguém pôde fazer nada. Com a recusa, seus pulmões se encheram de sangue e ele morreu.”
“Então ele morreu por suas crenças.” A voz de seu marido soou fria.
Ela o olhou sem entender. Deu-se conta de que não havia se explicado nem um pouco, que havia muita coisa que deixara de lhe contar.
“Acho que foi suicídio.”
Durante alguns segundos nenhum dos dois falou. Ouviram vozes, risadas e passos na praça. O espetáculo musical tinha acabado.
Jack limpou a garganta delicadamente. “Você estava apaixonada por ele, Fiona?”
A pergunta a derrubou. Deixou escapar um som terrível, um urro sufocado. “Ah, Jack, ele não passava de uma criança! Um menino. Um menino adorável!” E por fim ela
desandou a chorar, de pé junto à lareira, os braços caindo inermes ao longo do corpo, enquanto Jack observava, chocado por ver sua mulher, sempre tão contida, num
paroxismo de dor.
Fiona não conseguia falar, o choro não iria parar e ela não podia mais permitir que fosse vista naquele estado. Abaixou-se para pegar os sapatos e, só de meia, atravessou
correndo a sala e o corredor. Quanto mais se afastava dele, mais alto chorava. Entrou no quarto, bateu a porta e, sem acender a luz, se atirou na cama, enfiando
o rosto num travesseiro.
Meia hora depois, ao acordar das profundezas de um sonho em que subia por uma interminável escada vertical, ela não se recordava de haver caído no sono. Ainda confusa,
manteve-se deitada de lado, voltada para a porta. Por baixo dela, um fiapo de luz vindo do corredor trazia algum conforto. Mas não as cenas que visitavam sua imaginação.
Adam doente de novo, retornando à sua casa enfraquecido para ser recebido com amor pelos pais, encontrando os bondosos anciãos, readquirindo as crenças antigas.
Ou as usando como um pretexto perfeito para se destruir. Morte àquele que afogou minha cruz com as próprias mãos. Ela o reviu na penumbra em que o encontrara ao
visitar a unidade de tratamento intensivo. O rosto fino e pálido, as sombras roxas abaixo dos grandes olhos cor de violeta. A língua coberta por uma película branca,
braços como gravetos, tão doente, tão decidido a morrer, tão cheio de encanto e vida, páginas com seus poemas espalhadas pela cama, implorando a ela que permanecesse
e os dois tocassem de novo a música, quando Fiona precisava regressar ao tribunal.
Lá, com a autoridade e dignidade de sua posição, ela lhe havia oferecido, em vez da morte, toda a vida e o amor que se abriam diante dele. E proteção contra sua
religião. Sem fé, como o mundo deve ter lhe parecido ilimitado, belo e aterrador! Com tal pensamento, ela foi caindo de novo num sono ainda mais profundo e acordou
minutos depois ao ouvir o cantar e os suspiros das calhas do telhado. Será que a chuva iria parar algum dia? Viu a figura solitária caminhando pela alameda do Leadman
Hall, encurvada para se defender da tempestade de verão, avançando em meio às trevas, ouvindo os galhos que caíam. Ele devia ter visto à frente luzes na casa e sabido
que ela se encontrava lá. Tiritou de frio numa dependência dos fundos, sem saber o que fazer, aguardando uma oportunidade de falar com ela, arriscando tudo na busca
de — o quê, exatamente? E acreditando que poderia obtê-lo de uma mulher de sessenta anos que jamais arriscara nada na vida a não ser nuns poucos episódios estouvados
em Newcastle fazia muito tempo. Ela devia ter se sentido lisonjeada. E pronta. Em vez disso, num impulso poderoso e indesculpável, o beijara e depois o mandara embora.
Mais tarde, ela fugira também. Negara-se a responder às cartas dele. Negara-se a decifrar o alerta no poema dele. Que vergonha sentia agora dos temores mesquinhos
que tivera sobre sua reputação! Aquela transgressão escapava ao alcance de qualquer comitê disciplinar. Adam a tinha procurado e ela não ofereceu nada no lugar da
religião, nenhuma proteção, embora a lei fosse clara ao determinar que sua principal preocupação devia ser o bem-estar dele. Quantas páginas em quantos julgamentos
ela já não devotara a esse propósito? Bem-estar, felicidade, um conceito social. Nenhuma criança é uma ilha. Ela pensava que suas responsabilidades terminavam na
porta do tribunal. Mas como seria possível? Adam tratou de encontrá-la, querendo o que todo mundo quer, e que só pessoas de mente aberta, e não o sobrenatural, podiam
dar: um sentido para a vida.
Quando ela mudou de posição, sentiu contra o rosto o travesseiro úmido e frio. Agora inteiramente desperta, o empurrou para pegar outro, e se surpreendeu ao tocar
num corpo quente a seu lado, às suas costas. Voltou-se. Jack estava deitado com a cabeça apoiada na mão. Com a outra afastou o cabelo que cobria os olhos de Fiona.
Um gesto de ternura. A luz vinda do corredor lhe permitia apenas vislumbrar o rosto dele.
Jack disse simplesmente: “Fiquei vendo você dormir”.
Depois de algum tempo, bastante tempo, ela murmurou: “Obrigada”.
Fiona então perguntou se ele ainda a amaria depois de ela ter lhe contado toda a história. Era uma pergunta impossível de ser respondida, porque ele ainda não sabia
quase nada. Suspeitou que Jack tentaria persuadi-la de que não lhe cabia nenhuma culpa.
Ele pôs a mão no ombro dela e a puxou para si: “Claro que sim”.
Ficaram um diante do outro na semiescuridão e, enquanto a grande cidade lavada pela chuva entrava em seus ritmos noturnos mais suaves, e o casamento deles recomeçava
com movimentos titubeantes, Fiona lhe falou, numa voz calma e compassada, de sua vergonha, da paixão daquele doce rapaz pela vida e da parte que lhe cabia na morte dele.
Ian McEwan
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