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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BALADA DE ADAM HENRY
A BALADA DE ADAM HENRY

 

 

Nesse momento, o mordomo os convidou a seguirem para a mesa de jantar. Embora não pudesse ter mais de trinta anos, seu rosto era doentiamente pálido, como se coberto
de talco. Tão branco quanto uma aspirina — Fiona certo dia ouvira uma proprietária rural francesa dizer. Mas o mordomo não parecia doente pois mantinha uma atitude
impessoal e segura. Enquanto aguardava à pequena distância, com a cabeça inclinada para a frente em sinal de atenção, eles terminaram seus drinques e, seguindo Fiona,
atravessaram uma porta de folha dupla rumo à sala de jantar. A mesa, que poderia comportar trinta pessoas, estava posta para cinco numa extremidade solitária. A
sala era recoberta de lambris, pintados de um laranja quase fluorescente, com desenhos de flamingos calculadamente espaçados. Os convivas encontravam-se agora no
lado norte da casa, atingido em cheio pelo vento e onde as três janelas de guilhotina sacudiam, produzindo um ruído surdo. O ar estava frio e úmido. Havia um buquê
de flores secas na lareira. O mordomo explicou que ela havia sido bloqueada muitos anos antes, mas que ele traria um aquecedor elétrico. Eles avaliaram a distribuição
dos assentos e, após alguns momentos de polida incerteza, concordaram que, em respeito à simetria, Fiona se sentaria à cabeceira.
Até então ela mal falara. O mordomo pálido serviu um vinho branco. Dois garçons trouxeram patê de arenque e torradas finas. À esquerda dela estava o perito em conservação,
Charlie, um cinquentão gordo, careca e bem-humorado. Enquanto os outros continuavam a falar sobre jurados, ele perguntou cortesmente sobre o trabalho dela. Resignada
a uma rodada de conversinha fiada, Fiona explicou em termos gerais o trabalho da Vara de Família. Mas Charlie queria detalhes. Que tipo de decisão iria tomar no
dia seguinte? Ela se sentia mais feliz falando sobre um caso específico. Uma instituição local desejava ficar com a guarda de duas crianças, um menino de dois anos
e uma menina de quatro. A mãe era alcoólatra e também viciada em anfetaminas. Sofria crises psicóticas durante as quais imaginava estar sendo espionada por lâmpadas
elétricas. Tornara-se incapaz de cuidar de si própria ou das crianças. O pai, separado dela, tinha permanecido distante, mas agora alegava que ele e sua namorada
podiam cuidar das crianças. Ele também enfrentava problemas com drogas e era fichado na polícia, embora tivesse direito sobre os filhos. Um assistente social se
pronunciaria no dia seguinte perante o tribunal acerca da adequação dele como pai. Os avós maternos adoravam as crianças, eram competentes e queriam cuidar delas,
porém não tinham amparo legal para isso. A instituição local, cujo serviço de atendimento a menores havia sido criticado num relatório oficial, se opunha aos avós
por razões que ainda não estavam claras. As três partes — mãe, pai e avós — estavam amargamente divididas. Outra complicação era existirem opiniões contraditórias
acerca da menina de quatro anos. Um pediatra disse que ela tinha necessidades especiais, outro, contratado pelos avós, acreditava que, conquanto a menina estivesse
perturbada pelo comportamento da mãe e abaixo do peso normal por causa das refeições em horários irregulares, seu desenvolvimento era normal.
Havia, Fiona disse, muitos outros casos similares agendados para aquela semana. Charlie levou a mão à testa e fechou os olhos. Que encrenca! Se ele tivesse de tomar
uma decisão na manhã seguinte em um só caso como aquele, ficaria acordado a noite toda, roendo as unhas e abusando das bebidas oferecidas no quarto do hotel. Fiona
perguntou por que ele estava lá. Charlie tinha vindo de Whitehall a fim de persuadir um grupo de fazendeiros da costa a se unir a algumas organizações de proteção
ambiental, para permitirem que suas pastagens voltassem a ser cobertas pela água do mar, retornando à condição de pântanos salgados. Essa era de longe a melhor e
mais barata forma de defesa contra a inundação da costa, maravilhosa para a vida selvagem, sobretudo pássaros, e boa também para o turismo de pequena escala. Mas
havia uma forte oposição de certos segmentos do setor agrícola, embora os fazendeiros fossem ser bem recompensados. Durante todo o dia o tinham calado aos berros
nas reuniões. Corria o rumor de que o plano era compulsório. Ninguém acreditava nele quando dizia que não era assim. Viam-no como um representante do governo central,
com o qual os fazendeiros estavam irritados por uma série de outras questões que não eram de sua alçada. No final, tinha levado uns trancos num corredor. Um indivíduo
“com metade da minha idade e o dobro da minha força” havia agarrado sua gola e murmurado alguma coisa com o sotaque local que ele não tinha entendido. Melhor assim.
Amanhã ele voltaria e tentaria de novo. Estava certo de que no final iria conseguir o que queria.
Bom, isso soava a ela como um dos círculos especiais do inferno, bem pior do que qualquer mãe psicótica. Os dois estavam dando umas risadinhas por conta dessa observação,
quando perceberam que os outros três tinham abandonado a conversa deles e os ouviam.
Caradoc Ball, que era um velho colega de escola de Charlie, disse: “Espero que você saiba que está falando com uma juíza muito eminente. Certamente se lembra do
caso dos irmãos siameses”.
Todos se lembravam e, à medida que os pratos foram retirados e o boeuf en croûte servido com um Château Latour, conversaram e fizeram perguntas a ela sobre o famoso
caso. Fiona lhes disse tudo o que queriam saber. Todos tinham uma opinião, mas, como era a mesma, logo passaram a discutir a paixão que a história suscitara nos
jornais e como eles a haviam disputado. Dali foi um passo para uma troca de fofocas sobre os lances mais recentes da Investigação Leveson.* Terminaram a carne. À
frente, como dizia o cartão com o menu, havia um pudim de pão. Logo, logo, pensou Fiona, estariam discutindo a sabedoria ou a loucura de o Ocidente não mandar tropas
para a Síria. Era impossível calar Caradoc sobre aquele tema. E, de fato, ele o introduzia quando se deram conta de vozes ecoando no corredor. Pauling e o mordomo
de rosto branco pararam no umbral da porta e depois se aproximaram dela.
O mordomo se pôs de lado, com um olhar contrariado, enquanto Pauling, depois de pedir desculpas a todos com um aceno de cabeça, inclinou-se por cima da cadeira de
Fiona e disse baixinho perto de seu ouvido: “Minha senhora, perdão por interromper, mas infelizmente há um assunto que exige sua atenção imediata”.
Ela limpou os lábios com o guardanapo e se pôs de pé. “Me desculpem, senhores.”
Sem mudar de expressão, todos se levantaram e ela atravessou a sala na frente dos dois homens. Já do lado de fora, ela disse ao mordomo: “Ainda estamos esperando
por aquele aquecedor”.
“Vou pegar agora.”
Havia algo impertinente em seu jeito ao dar meia-volta, e ela olhou para seu assistente com as sobrancelhas erguidas.
Mas ele simplesmente disse: “Por aqui”.
Ela o seguiu através do corredor e do que fora antes uma biblioteca. As estantes estavam repletas de livros comprados em lojas de objetos usados, do tipo que os
hotéis adquirem por metro para criar uma atmosfera respeitável em certos ambientes.
Pauling disse: “É o rapaz das testemunhas de Jeová, Adam Henry. A senhora se lembra do caso da transfusão? Parece que ele a seguiu até aqui. Andou na chuva, está
completamente encharcado. Queriam expulsá-lo, mas achei que a senhora precisava ser informada antes”.
“Onde ele está?”
“Na cozinha. É mais quentinho lá.”
“Melhor trazê-lo aqui.”
Tão logo Pauling saiu, ela se levantou e caminhou lentamente pela sala, consciente de que seu ritmo cardíaco tinha aumentado. Caso houvesse respondido às cartas,
não estaria agora defrontando aquilo. Defrontando o quê? O envolvimento desnecessário com um caso fechado. E mais que isso. Mas não havia tempo para refletir. Ouviu
passos se aproximando.
A porta se abriu e Pauling fez o rapaz passar. Ela nunca o vira fora da cama e se surpreendeu com sua altura, bem mais de um metro e oitenta. Vestia seu uniforme
escolar, calça de flanela cinza, suéter cinza, camisa branca, um blusão bem leve, encharcado da cabeça aos pés, o cabelo em desordem depois de ter sido enxugado.
Uma pequena mochila pendia frouxamente de sua mão. O toque patético era dado pela toalha de chá do Leadman, com ilustrações dos pontos turísticos locais, envolvendo
suas costas para aquecê-lo.
O assistente se manteve junto à porta enquanto o rapaz deu alguns passos para dentro da sala, parando perto de onde ela se encontrava e dizendo: “Sinto muito mesmo”.
Naqueles primeiros momentos, era mais fácil esconder a confusão de sentimentos sob um tom maternal. “Você parece estar congelado. É melhor trazermos o aquecedor
para cá.”
“Eu mesmo vou pegar”, disse Pauling, saindo.
“Bem”, ela disse após um silêncio. “Como você me achou aqui?”
Outra evasão, perguntar como em vez de por quê, mas àquela altura, conquanto sua presença ainda fosse um choque, Fiona não era capaz de entender o que Adam queria
dela.
O relato dele foi sóbrio. “Eu a segui num táxi desde King’s Cross, peguei seu trem e, como não tinha ideia de onde a senhora ia saltar, comprei passagem para Edinburgh.
Em Newcastle, a segui ao sair da estação, corri atrás da sua limusine e então a perdi de vista. Tive um palpite e perguntei onde eram os tribunais. Quando cheguei
lá, vi imediatamente o seu carro.”
Ela o observou falar, enquanto analisava a transformação. A magreza se fora, porém ele continuava esbelto. Novos músculos nos ombros e braços. O mesmo rosto delicadamente
estruturado, a pinta marrom na maçã do rosto quase invisível na pele bronzeada pela saúde juvenil. Tênues indícios das olheiras roxas. Lábios cheios e úmidos, olhos
que naquela luz eram demasiado escuros para revelar sua cor. Mesmo enquanto tentava se desculpar, ele se mostrava vívido demais, ávido demais para dar uma explicação
detalhada. Quando ele afastou o olhar para ordenar a sequência de fatos, Fiona se perguntou se aquele era um rosto que sua mãe chamaria de antiquado. Uma ideia sem
nexo. A noção generalizada do rosto de um poeta romântico, um primo de Keats ou Shelley.
“Esperei um tempão até a senhora sair e a segui ao atravessar a cidade e voltar na direção do rio, vendo quando saiu do carro. Levei mais de uma hora até descobrir
no meu celular onde os juízes se hospedavam, peguei uma carona, desci na estrada principal, pulei o muro para não passar pela casa do guarda e andei até aqui na
chuva. Esperei muito tempo nos fundos, perto das antigas estrebarias, me perguntando o que eu devia fazer, até que alguém me viu. Realmente sinto muito, eu...”
Pauling, irritado e com o rosto vermelho por causa do esforço, chegou com o aquecedor. Talvez tivesse sido necessário arrancá-lo das mãos do mordomo. Os dois ficaram
olhando enquanto o assistente se pôs de quatro com um grunhido e desapareceu parcialmente debaixo de uma mesinha de canto para encontrar a tomada. Depois que se
reergueu, pousou as mãos nos ombros do rapaz e o levou para a frente do ar aquecido. Antes de sair, disse a Fiona: “Estou esperando do lado de fora”.
Quando ficaram sozinhos, ela disse: “Eu não deveria pensar que tem alguma coisa de esquisito em você me seguir até minha casa e depois até aqui?”.
“Ah, não! Por favor, não pense isso. Não é nada disso.” Olhou em volta impaciente, como se nas paredes estivesse escrita alguma explicação. “Olha, a senhora salvou
minha vida. E não é só isso. Papai tentou esconder de mim, mas li sua sentença. A senhora disse que queria me proteger da minha religião. Pois bem, protegeu. Fui
salvo!”
Ele riu da própria piada e ela disse: “Não o salvei para que você me seguisse por todo canto”.
Nesse justo instante, uma peça fixa do aquecedor deve ter entrado na órbita de alguma peça móvel, pois um estalido regular tomou conta da sala. O volume aumentou,
baixou, se estabilizou. Ela sentiu uma onda de irritação com a casa toda. Um embuste. Um depósito de velharias. Como não tinha visto isso antes?
O momento passou e ela perguntou: “Seus pais sabem onde você está?”.
“Tenho dezoito anos. Posso estar onde quiser.”
“Não me interessa sua idade. Eles vão ficar preocupados.”
Adam soltou um arquejo de exasperação juvenil e depositou a mochila no chão. “Olha, Meritíssima...”
“Chega disso. Me chame de Fiona.” Enquanto pudesse mantê-lo em seu lugar, ela se sentiria melhor.
“Eu não quis ser sarcástico nem nada.”
“Ótimo. E quanto a seus pais?”
“Ontem tive uma briga feia com papai. Tivemos algumas desde que saí do hospital, mas essa foi realmente das grandes, os dois gritando, e eu lhe disse tudo o que
achava sobre sua religião idiota, mesmo que ele não estivesse escutando. No final, me afastei. Subi para o quarto, fiz a mala, peguei o dinheiro que tinha guardado
e me despedi de mamãe. Depois fui embora.”
“Você precisa telefonar para ela agora.”
“Não há necessidade. Mandei uma mensagem para o celular dela ontem à noite do lugar onde me hospedei.”
“Mande outra.”
Ele a olhou, ao mesmo tempo surpreso e desapontado.
“Vamos, diga que está são e salvo em Newcastle e que vai escrever outra vez amanhã. Depois disso conversamos.”
Ela se afastou alguns passos e observou enquanto seus dedos longos dançavam sobre o teclado virtual. Em segundos o celular voltara ao bolso dele.
“Pronto”, disse, olhando para ela com ar expectante, como se ela é que lhe devesse alguma explicação.
Fiona cruzou os braços. “Adam, por que você está aqui?” Seu olhar se desviou, ele hesitou. Não ia dizer a ela a razão, pelo menos não de forma direta.
“Olhe, eu não sou a mesma pessoa. Quando a senhora foi me ver eu estava realmente pronto para morrer. É impressionante que alguém como a senhora tivesse perdido
tempo comigo. Eu era um tremendo idiota!”
Ela apontou para duas cadeiras de madeira junto a uma mesa oval de nogueira, onde se sentaram frente a frente. A luz branca e sepulcral vinha de quatro lâmpadas
LED presas a uma roda rústica de madeira pintada. Por não estar situada diretamente acima da mesa, a iluminação acentuava os contornos das maçãs do rosto e dos lábios
de Adam, assim como as finas saliências gêmeas que separavam a parte acima de seu lábio superior. Tratava-se de uma bela face.
“Não achei você um idiota.”
“Mas eu era. Sempre que os médicos e as enfermeiras tentavam me dissuadir, eu me sentia nobre e heroico, dizendo para me deixarem em paz. Eu era bom e puro. Adorava
que eles não conseguissem entender como eu era profundo. Eu realmente me achava o tal. Gostava de ver o orgulho dos meus pais e dos anciãos. À noite, quando não
tinha ninguém por perto, ensaiei fazer um vídeo, como esses homens-bomba. Ia fazer no meu celular. Queria que fosse reproduzido nos noticiários de televisão e no
meu funeral. Acabei chorando no escuro, imaginando meu caixão sendo levado diante dos meus pais, dos meus colegas e professores, de toda a congregação, as flores,
as coroas, a música triste, todos chorando, todos orgulhosos de mim e me amando. Sinceramente, eu era um idiota.”
“E onde entrava Deus nessa história?”
“Por trás de tudo. Eu estava obedecendo às instruções dele. Mas era mais sobre a maravilhosa aventura que eu estava vivendo, como ia morrer gloriosamente e ser adorado.
Uma garota que eu conheci na escola sofria de anorexia três anos atrás, quando tinha quinze anos. O sonho dela era se transformar em nada — como uma folha seca soprada
pelo vento, foi o que ela disse, mergulhando devagarzinho na morte, todo mundo com pena dela e depois se culpando por não compreendê-la. O mesmo tipo de coisa.”
Agora que o via sentado, Fiona se lembrou dele no hospital, recostando-se nos travesseiros em meio àquela bagunça juvenil. Não era a enfermidade dele que lhe vinha
à mente, mas sua avidez, a inocência vulnerável. Até mesmo a palavra anorexia soava como uma diversão. Ele havia tirado do bolso uma tira estreita de tecido verde,
talvez parte de um forro, que enrolava e desenrolava entre o indicador e o polegar como as contas do colar de um muçulmano.
“Então, não era muito uma questão de religião; tinha mais a ver com seus outros sentimentos.”
Ele ergueu as mãos. “Meus sentimentos tinham origem na minha religião. Eu estava cumprindo a vontade de Deus, a senhora e todos os outros estavam claramente errados.
Como eu teria me metido numa confusão daquelas se não fosse testemunha de Jeová?”
“Parece que sua colega anoréxica conseguiu.”
“Bem, na verdade a anorexia é um pouco como uma religião.”
Diante do olhar cético de Fiona, ele improvisou. “Ah, a senhora sabe, querer sofrer, amar a dor e o sacrifício, pensar que todo mundo está te observando, preocupado
com você, que o universo gira em torno de você. E do seu peso!”
Ela não se conteve e riu da ironia contida na última frase. Ele sorriu por seu inesperado êxito em diverti-la.
Ouviram vozes e passos no corredor quando os convidados passaram da sala de jantar para a de visitas a fim de tomarem café, e depois uma sucessão de gargalhadas
que mais pareciam latidos perto da porta da biblioteca. O rapaz ficou tenso com a possibilidade de uma interrupção, e ambos mantiveram um silêncio conspiratório
enquanto aguardavam que os sons morressem. Adam olhava para baixo, para suas mãos entrelaçadas sobre a madeira envernizada da mesa. Ela imaginava todas as horas
de sua infância e juventude dedicadas a orações, hinos, sermões e as diversas restrições que jamais conheceria, a comunidade fechada mas amorosa que o sustentara
até quase matá-lo.
“Adam, vou perguntar outra vez. Por que você está aqui?”
“Para lhe agradecer.”
“Há maneiras mais fáceis.”
Ele suspirou com impaciência enquanto repunha no bolso a tira de tecido. Por um momento Fiona acreditou que ele se preparava para partir.
“Sua visita foi uma das melhores coisas que me aconteceram.” E então, rapidamente: “A religião de meus pais era um veneno e a senhora foi o antídoto”.
“Não me lembro de haver criticado a religião de seus pais.”
“Não criticou. A senhora foi calma, ouviu, fez perguntas e alguns comentários. Aí é que está. É essa coisa que a senhora tem. Fez diferença. A senhora não precisou
dizer. Um jeito de pensar e de falar. Se não sabe o que estou dizendo, trate de ouvir os anciãos. E quando tocamos a música...”
Ela disse com rapidez: “Você ainda está tocando violino?”.
Ele fez que sim com a cabeça.
“E a poesia?”
“Sim, muito. Mas odeio as coisas que eu escrevia.”
“Bom, você tem talento. Sei que vai escrever alguma coisa maravilhosa.”
Fiona percebeu o desalento nos olhos dele. Ela estava se distanciando, fazendo o papel da tia solícita. Repassou algumas etapas da conversa, se perguntando por que
estava tão ansiosa para não desapontá-lo.
“Mas seus professores devem ser bem diferentes dos anciãos.”
Ele deu de ombros. “Não sei.” Acrescentou à guisa de explicação: “A escola era enorme”.
“E o que é isso que você supõe que eu tenha?”, ela perguntou em tom sério, sem nenhum traço de ironia.
A pergunta não o embaraçou. “Quando vi meus pais chorando daquele jeito, chorando e quase urrando de alegria, tudo desmoronou. Mas aí que está. Desmoronou para cair
na verdade. Claro que eles não queriam que eu morresse! Eles me amam. Por que não disseram isso, em vez de falar e falar sobre as alegrias do céu? Foi então que
eu vi tudo aquilo como uma coisa humana comum. Comum e boa. Não tinha nada a ver com Deus. Isso era só uma bobagem. Como se um adulto entrasse numa sala cheia de
crianças que estão se infernizando e dissesse: ‘Chega, parem com isso, é hora do chá!’. A senhora foi esse adulto. Sabia desde o começo, mas não disse. Só fez perguntas
e escutou. Toda a vida e o amor que se abrem diante dele — foi o que a senhora escreveu. Essa foi a sua ‘coisa’. E a minha revelação. Começando com ‘The Salley Gardens’.”
Ainda em tom sério, ela disse: “E a tampa da sua cabeça explodiu”.
Ele riu gostosamente por também ser citado. “Fiona, quase consigo tocar uma composição de Bach sem cometer nenhum erro. Toco o tema de Coronation Street. Estou lendo
o livro de Berryman Dream Songs. Vou participar de uma peça teatral e tenho que terminar todos os exames antes do Natal. E, graças à senhora, estou entupido de Keats!”
“Muito bem”, ela disse em voz baixa.
Ele se inclinou para a frente, apoiado nos cotovelos, os olhos escuros brilhando na luz pavorosa, todo o rosto parecendo fremir de expectativa, com um apetite incontrolável.
Depois de refletir por um instante, Fiona disse num sussurro: “Espere aqui”. Levantou-se e hesitou, parecendo prestes a mudar de ideia e que voltaria a se sentar.
Mas deu as costas para ele, atravessou a sala e foi para o corredor. Pauling se encontrava de pé, a alguns passos de distância, fingindo interesse pelas páginas
do livro de visitantes aberto sobre uma mesa com tampo de mármore. Ela lhe deu rápidas instruções em voz baixa, voltou à biblioteca e fechou a porta atrás de si.
Adam havia retirado a toalha de chá do ombro e examinava a série de atrações locais. Quando ela se sentou de novo, ele comentou: “Eu nunca tinha ouvido falar em
nenhum desses lugares”.
“Há muita coisa a ser descoberta.”
Passados os efeitos da interrupção, ela disse: “Quer dizer que você perdeu sua fé”.
Adam pareceu se contorcer. “Sim, talvez. Não sei. Acho que tenho medo de dizer isso em voz alta. Realmente não sei onde estou. Quer dizer, o troço é que, quando
a gente se afasta um pouquinho das testemunhas de Jeová, talvez seja melhor sair de vez. Por que substituir um conto de fadas por outro?”
“Talvez todo mundo precise de contos de fadas.”
Ele lhe deu um sorriso benevolente. “Não acho que a senhora esteja dizendo isso pra valer.”
Fiona sucumbiu a seu hábito de resumir a opinião dos outros. “Você viu seus pais chorando e está confuso, pois suspeita que o amor deles por você é maior do que
a crença que têm em Deus ou na vida após a morte. Você precisa se afastar. Perfeitamente natural para alguém da sua idade. Talvez curse uma universidade. Isso vai
ajudar. Mas ainda não entendo o que está fazendo aqui. E, o que é mais importante, o que vai fazer agora. Para onde é que você vai?”
A segunda pergunta o perturbou mais. “Tenho uma tia em Birmingham. Irmã da minha mãe. Ela vai me receber por uma ou duas semanas.”
“Ela está te esperando?”
“Mais ou menos.”
Fiona estava prestes a obrigá-lo a enviar uma nova mensagem, quando ele estendeu a mão por cima da mesa, enquanto ela, com igual rapidez, recolheu a sua para o colo.
Adam não foi capaz de encará-la ou de ser olhado de frente quando voltou a falar. Pôs as mãos na testa como se protegesse os olhos da luz. “Tenho uma pergunta a
lhe fazer. Quando a senhora a ouvir vai achar que é uma idiotice. Mas, por favor, não a rejeite simplesmente. Diga por favor o que pensa sobre ela.”
“O que é?”
Ele se dirigiu ao tampo da mesa. “Quero ir morar com a senhora.”
Ela esperou por mais alguma coisa. Nunca poderia ter previsto tal pedido. Mas agora parecia óbvio.
Adam ainda era incapaz de olhá-la nos olhos. Falou depressa, como se envergonhado com sua própria voz. Ele havia pensado em tudo. “Eu podia ajudar a senhora a cuidar
da casa, prestar serviços na rua. E a senhora podia me dar livros para ler, sabe como é, tudo o que achar que eu preciso aprender...”
Ele a havia seguido por um bom pedaço do país, pelas ruas, atravessado uma tempestade para lhe pedir aquilo. Era uma extensão lógica de sua fantasia sobre uma longa
viagem marítima com ela, de falarem o dia todo caminhando no convés ao balanço das ondas. Lógica e insana. E inocente. O silêncio os envolveu e uniu. Até mesmo o
tilintar do aquecedor parecia ter se reduzido, nenhum som vinha do lado de fora. Ele continuou a proteger o rosto do olhar de Fiona. Ela contemplou o encaracolado
de seu cabelo escuro, jovem e saudável, agora totalmente seco e reluzente.
Fiona disse com suavidade: “Você sabe que isso não é possível”.
“Eu não ia atrapalhar, quer dizer, interferir com a senhora e seu marido.” Por fim, ele recolheu as mãos e olhou para ela. “A senhora sabe, como alguém que alugasse
um quarto. Quando eu terminar meus exames, posso arranjar um emprego e pagar algum aluguel.”
Ela viu o quarto de hóspedes e as duas camas de solteiro, os ursinhos e outros bichos de pelúcia na cesta de vime, o armário de brinquedos tão cheio que uma das
portas não fechava. Tossiu de repente e se pôs de pé, atravessando toda a sala até a janela para dar a impressão de que olhava com atenção para fora. Por fim, sem
se voltar, ela disse: “Só temos um quarto livre e uma porção de sobrinhos e sobrinhas”.
“Quer dizer que essa é sua única objeção?”
Ouviu-se uma batida na porta e Pauling entrou. “Estará aqui dentro de dois minutos, minha senhora”, ele disse e saiu.
Ela se afastou da janela e voltou a se aproximar de Adam, abaixando-se para pegar a mochila dele do chão.
“Meu assistente vai levá-lo de táxi até a estação e lhe comprar uma passagem com destino a Birmingham para amanhã de manhã; depois vai levá-lo para um hotel perto
de lá.”
Após uma pausa, ele se levantou devagar e pegou a mochila das mãos dela. Apesar de sua altura, parecia uma criança pequena em estado de choque.
“Então é isso?”
“Gostaria que me prometesse que vai entrar em contato outra vez com sua mãe antes de pegar o trem. Diga a ela para onde está indo.”
Adam não respondeu. Ela o conduziu à porta e os dois saíram para o corredor. Ninguém à vista. Caradoc Ball e seus convidados estavam instalados na sala de visitas
com as portas fechadas. Ela o deixou esperando na biblioteca e subiu ao quarto para pegar algum dinheiro na bolsa. Ao voltar, viu toda a cena de sua posição elevada
no topo da imponente escadaria. A porta da frente estava aberta e o mordomo falava com o motorista. Atrás dele, abaixo dos degraus do pórtico, estava o táxi, a porta
aberta para liberar os alegres e sinuosos acordes da música orquestral árabe. Seu assistente atravessava o vestíbulo às pressas, supostamente a fim de impedir que
o mordomo criasse algum problema. Quanto a Adam Henry, ele ainda continuava na biblioteca, abraçado à sua mochila. Quando Fiona se aproximou dele, o mordomo, o motorista
e o assistente estavam do lado de fora, no pátio de cascalho, conversando junto ao carro, segundo ela esperava, sobre um hotel apropriado.
O rapaz começou a dizer: “Mas nós nem...”, e ela levantou a mão para fazê-lo se calar.
“Você precisa ir.”
Ela segurou delicadamente a gola do blusão leve dele e o puxou para si. Pretendia lhe dar um beijo no rosto, mas, como ergueu o corpo e Adam se curvou um pouco,
seus rostos se aproximaram, ele girou a cabeça e os lábios deles se tocaram. Ela poderia ter recuado, ter dado um passo atrás, se afastando dele. Em vez disso, se
demorou, inerme diante daquele momento. A sensação de pele contra pele anulou qualquer possibilidade de escolha. Caso fosse possível dar um beijo casto na boca,
foi isso que ela fez. Um contato fugaz, porém mais do que a mera sugestão de um beijo, mais do que uma mãe daria no filho adulto. Durou dois segundos, quem sabe
três. Tempo suficiente para sentir, na maciez e elasticidade dos lábios dele, todos os anos, toda a vida que a separava de Adam. Ao se afastarem, uma leve adesão
de pele poderia tê-los atraído de volta. Mas soavam passos no cascalho e nos degraus de pedra, cada vez mais próximos. Ela largou a gola dele e repetiu: “Você precisa
ir”.
Adam apanhou a mochila, que havia deixado cair no chão, e seguiu-a através do vestíbulo até o lado de fora, onde foram recebidos pelo ar fresco da noite. Ao pé da
escada, o motorista fez uma saudação amistosa e abriu a porta traseira do carro. O rádio havia sido desligado. Ela tinha pensado em dar o dinheiro a Adam, mas, numa
súbita e gratuita mudança de ideia, o entregou a Pauling. Ele balançou a cabeça e forçou um leve sorriso ao pegar o rolinho de notas. Com um movimento brusco dos
ombros, Adam deu a impressão de se desvencilhar de todos e mergulhou no banco de trás, sentando-se com a mochila no colo e olhando para a frente. Já se arrependendo
do que havia posto em movimento, Fiona deu a volta no carro para trocar um último olhar com ele. Adam sem dúvida reparou em seu movimento, mas afastou o rosto. Pauling
se sentou na frente, ao lado do motorista. O mordomo fechou a porta de Adam, empurrando-a num gesto insolente com as costas da mão. Ombros encurvados, Fiona subiu
às pressas os degraus de pedra rachados enquanto o táxi se distanciava.
* Investigação pública conduzida por lorde Leveson em 2011 e 2012 acerca das práticas e da ética da imprensa britânica após o escândalo das escutas telefônicas feitas
pela News International. (N. T.)
5.
Ela partiu de Newcastle depois de uma semana, sentenças proferidas ou suspensas à espera de laudos técnicos, deixando para trás litigantes felizes ou amargurados,
alguns dos quais com o parco consolo de poderem recorrer. No caso que descrevera para Charlie no jantar, ela havia concedido a guarda aos avós e permitido visitas
semanais sob supervisão à mãe e ao pai, separadamente, tudo passível de revisão ao fim de seis meses. Até lá, quem quer que a substituísse teria a vantagem de receber
relatórios acerca do bem-estar das crianças, das promessas dos pais de frequentar um programa de tratamento de viciados em drogas e do estado mental da mãe. A menininha
continuaria em sua escola, um curso elementar organizado pela Igreja da Inglaterra, onde era bem conhecida. Fiona considerou exemplar, naquele caso, a conduta das
instituições de atendimento a menores da cidade.
No final da tarde de sexta-feira, ela disse adeus aos funcionários do tribunal. Na manhã de sábado, no Leadman Hall, Pauling encheu o porta-malas do carro com documentos
acondicionados em caixas de papelão e com as togas dela penduradas em cabides. As bagagens pessoais empilhadas no banco traseiro e a juíza instalada na frente, rumaram
para Oeste, na direção de Carlisle, passando pelo Tyne Gap e cruzando a Inglaterra de um lado a outro, as Cheviots à direita e as Pennines à esquerda. Mas os dramas
da geologia e da história eram embotados pelo tráfego, por seu volume, suas rotinas e pelas placas de sinalização rodoviária características das ilhas britânicas.
Enquanto atravessavam Hexham muito lentamente, Fiona mantinha o celular sem uso na mão e, como fizera durante vários interlúdios ao longo da semana, pensava no beijo.
Que loucura impulsiva não ter se afastado! Loucura profissional e social. Em suas recordações, o contato real, carne contra carne, tendia a se prolongar no tempo.
Ela então tentava encurtar o momento para que voltasse a ser um beijinho inocente nos lábios. Mas o beijinho logo voltava a se inflar, até ela não saber o que ele
era, o que havia acontecido ou por quanto tempo ela correra o risco de uma desgraça. Caradoc Ball poderia ter passado pelo corredor a qualquer momento. Pior ainda,
um de seus convidados, sem as peias da lealdade tribal, poderia tê-la visto e contado a todo mundo. Pauling poderia ter voltado depois de conversar com o motorista
de táxi e a apanhado em flagrante. Nesse caso, a distância sensatamente construída entre eles, que tornava possível seu trabalho, teria sido destruída.
Como não era dada a impulsos irrefletidos, Fiona não entendia seu próprio comportamento. Deu-se conta de que havia muito mais a confrontar em sua mistura de sentimentos
confusos, porém, no momento, era o horror do que podia ter ocorrido, a transgressão ridícula e vergonhosa da ética profissional, que ocupavam sua mente. A ignomínia
que poderia ter se abatido sobre ela. Difícil crer que ninguém a vira, que estava abandonando incólume a cena do crime. Mais fácil acreditar que a verdade, dura
e negra como uma semente amarga, estava prestes a ser revelada: que ela tinha sido observada sem saber. Que agora mesmo, a centenas de quilômetros de distância,
o caso estivesse sendo discutido em Londres. Que em breve ouviria no telefone a voz pouco à vontade de um colega mais antigo: Ah, Fiona, escute, sinto muito, mas
creio que preciso alertá-la de que, hã, de que surgiu um probleminha. E então, esperando por ela no apartamento da Gray’s Inn, uma carta formal do investigador do
departamento de reclamações judiciais.


CONTINUA
“Os pais se opõem à solicitação com base em sua fé religiosa, que é manifestada serenamente e fruto de profunda convicção. O filho deles também objeta e demonstra
boa compreensão dos princípios religiosos, possuindo considerável maturidade e capacidade de articulação verbal para a sua idade.”
Descreveu a seguir a evolução da enfermidade, a leucemia, o tratamento usual que em geral produzia bons resultados. Mas dois dos remédios comumente administrados
causavam anemia, que necessitava ser combatida mediante transfusões de sangue. Resumiu os argumentos do médico assistente, enfatizando a contagem declinante de hemoglobina
e os prognósticos sombrios caso isso não fosse revertido. Ela podia confirmar pessoalmente que a falta de ar de A era agora patente.
A contestação ao pedido se fundamentava em três argumentos principais. O primeiro era o de que, como lhe faltavam três meses para completar dezoito anos e ele era
muito inteligente, conhecendo as consequências de sua decisão, Adam devia ser tratado como possuidor da “competência de Gillick”. Em outras palavras, seria tão capaz
de ter suas decisões reconhecidas quanto qualquer adulto. Em segundo lugar, que a recusa de tratamento médico constituía um direito humano básico, razão por que
a corte deveria mostrar relutância em intervir. E que, por fim, a fé religiosa de A era genuína e devia ser respeitada.
Fiona abordou os seguintes pontos. Agradeceu ao advogado dos pais de A por ter chamado sua atenção para a seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: o consentimento
de uma pessoa de dezesseis anos “será tão eficaz como o seria se ele já houvesse alcançado a maioridade”. Listou as condições relativas à “competência de Gillick”,
citando Scarman no processo. Reconheceu a distinção entre a circunstância de uma criança competente com menos de dezesseis anos consentir num tratamento, possivelmente
contra a vontade dos pais, e de uma criança de menos de dezoito recusar um tratamento passível de salvar sua vida. Do que percebera naquela noite, estaria ela convencida
de que A tinha uma compreensão absoluta das implicações de serem aceitas sua vontade e a de seus pais?
“Ele é sem dúvida uma criança excepcional. Posso mesmo dizer, como o fez uma das enfermeiras hoje à noite, que se trata de um menino adorável, com o que certamente
concordam seus pais. Ele tem uma capacidade de compreensão excepcional para um jovem de dezessete anos. Mas creio que possui um entendimento limitado da provação
que deve confrontar, do pavor que o invadiria à medida que seu sofrimento e sua impotência aumentassem. Na verdade, ele tem uma noção romântica do que seja sofrer.
Entretanto...”
Deixou a palavra pendurada no ar, e o silêncio na sala se adensou enquanto ela passava os olhos pelas anotações.
“Entretanto, em última análise não me deixo influenciar pelo fato de que ele tenha ou não a compreensão absoluta de seu estado. Em vez disso, sou guiada pela decisão
do juiz Ward, como era chamado na época, com referência ao menor E, em julgamento que também envolveu um adolescente que pertencia às testemunhas de Jeová. Naquela
oportunidade, ele afirmou: ‘Assim, é o bem-estar da criança que preside a minha decisão, e cumpre a mim decidir o que dita o bem-estar de E’. Essa observação foi
cristalizada na clara prescrição da Lei da Criança de 1989, que garante nas duas primeiras linhas a primazia do bem-estar do menor. Entendo ‘bem-estar’ como englobando
‘felicidade’ e ‘interesses’. Também sou obrigada a levar em conta a vontade de A. Como já observei, ele a expressou claramente a mim, como o fez seu pai perante
esta corte. De acordo com as doutrinas de sua religião, derivadas de uma interpretação peculiar de três passagens da Bíblia, A se recusa a aceitar a transfusão de
sangue que provavelmente salvará sua vida.
“É um direito fundamental dos adultos recusarem qualquer tratamento médico. Tratar um adulto contra sua vontade significa cometer o crime de agressão. A está próximo
da idade em que pode tomar uma decisão por sua conta e risco. O fato de estar preparado para morrer por suas crenças religiosas demonstra quão profundas elas são.
O fato de que seus pais estão preparados para sacrificar um filho muito querido por causa de sua fé revela o poder da crença a que as testemunhas de Jeová obedecem.”
Mais uma vez ela parou e o público aguardou.
“É precisamente esse poder que me faz refletir, porque A, com seus dezessete anos, conheceu muito pouco fora do turbulento terreno das ideias religiosas e filosóficas.
Não faz parte dos métodos dessa seita cristã encorajar o debate aberto e a discordância na congregação, cujos membros são por eles chamados — de forma correta, alguém
poderia dizer — de ‘as outras ovelhas’. Não creio que a mente de A e suas opiniões lhe pertençam inteiramente. Durante toda a infância ele esteve exposto sem interrupção
a uma visão do mundo monocromática e poderosa, a cujo condicionamento não poderia escapar. Não promoverá seu bem-estar sofrer uma morte desnecessária e agonizante,
para assim se transformar num mártir de sua fé. As testemunhas de Jeová, como outras religiões, têm uma noção nítida do que nos aguarda após a morte, e as predições
deles sobre o fim dos dias, sua escatologia, são também rígidas e muito detalhadas. Este tribunal não tem opinião alguma sobre a vida no Além, que, de qualquer forma,
certo dia A descobrirá, ou deixará de descobrir, por conta própria. Até lá, presumindo uma boa recuperação, o bem-estar dele será mais bem servido por seu amor pela
poesia, por sua recém-descoberta paixão pelo violino, pelo aproveitamento de sua viva inteligência e pelas manifestações de uma natureza brincalhona e afetuosa,
por toda a vida e o amor que se abrem à sua frente. Em suma, entendo que A, seus pais e os anciãos da igreja tomaram uma decisão que é hostil ao bem-estar de A,
o qual constitui a principal consideração desta corte. Ele precisa ser protegido de tal decisão. Precisa ser protegido de sua religião e de si mesmo.
“Esta não foi uma questão simples de resolver. Ponderei cuidadosamente a idade de A, o respeito devido à sua fé e a dignidade do indivíduo contida no direito de
recusar tratamento. A meu juízo, sua vida é mais preciosa do que essa dignidade.
“Em consequência, nego a vontade de A e de seus pais. Minha ordem é que não seja necessário obter a concordância para a transfusão de sangue do primeiro e segundo
contestantes, que são os pais, e a concordância para a transfusão de sangue do terceiro contestante, que é o próprio A. Desse modo, o hospital demandante está legalmente
autorizado a aplicar em A os tratamentos médicos que julgue necessários, no entendimento de que podem administrar sangue e produtos dele derivados mediante transfusão.”
* * *
Eram quase onze da noite quando Fiona iniciou a caminhada para casa ao sair do tribunal. Àquela hora, os portões estavam trancados e não era possível cortar caminho
por dentro da Lincoln’s Inn. Antes de dobrar na Chancery Lane, ela desceu um pequeno trecho da Fleet Street para comprar uma refeição pronta numa loja de conveniência
que ficava aberta a noite inteira. Na noite anterior, isso teria sido uma missão deprimente, mas ela estava sentindo a cabeça leve, talvez porque não se alimentava
decentemente fazia dois dias. Na loja apertada e excessivamente iluminada, os alimentos com embalagens berrantes — vermelhos e roxos explosivos, amarelos de manchas
solares — pulsavam nas prateleiras em sintonia com seus batimentos cardíacos. Ela comprou uma torta de peixe congelada e examinou várias frutas antes de se decidir.
No caixa, atrapalhou-se com o dinheiro, deixando cair moedas no chão. O ágil rapaz asiático que trabalhava na máquina registradora impediu com o pé que as moedas
rolassem e, lhe dando um sorriso protetor, as pôs de volta na mão dela. Fiona se imaginou através dos olhos dele ao observar a expressão de grande cansaço dela,
ignorando ou sendo incapaz de apreciar o corte elegante do casaco e vendo apenas uma dessas velhotas inofensivas que viviam e comiam sozinhas, já um tanto incapazes,
andando pelas ruas tarde da noite.
Ela estava cantando “The Salley Gardens” com os lábios fechados enquanto seguia pela High Holborn. A sacola contendo as frutas e o sólido invólucro do jantar se
chocava agradavelmente contra sua perna. A torta seria aquecida no micro-ondas enquanto ela se preparava para ir se deitar, e a comeria já de camisola em frente
ao canal de notícias; depois disso, nada se interporia entre ela e o sono. Nenhum estímulo químico. No dia seguinte havia um divórcio de gente graúda — um guitarrista
famoso e uma esposa quase famosa, cantora de música romântica, com um excelente advogado e desejando abocanhar boa parte dos vinte e sete milhões de libras do marido.
Algodão-doce comparado com hoje, mas o interesse da imprensa seria igualmente intenso, a lei igualmente solene.
Dobrou na Gray’s Inn, seu santuário. Era sempre gostoso ver como o barulho do tráfego ia cessando à medida que caminhava. Uma comunidade fechada de certo valor histórico,
uma fortaleza de advogados e magistrados que também eram músicos, amantes do bom vinho, pseudoescritores, pescadores que usavam como iscas moscas artificiais, contadores
de histórias. Um ninho de fofocas e perícia profissional, além de um jardim delicioso ainda visitado pelo fantasma de Francis Bacon. Ela amava o lugar e não queria
sair dali nunca.
Entrou no prédio, verificou que a minuteria estava ligada, subiu até o segundo andar, ouviu o rangido costumeiro do quarto e sétimo degraus e, ao atingir o último
lance da escada, viu tudo e entendeu imediatamente. Seu marido estava lá, se levantando naquele momento com um livro na mão; atrás dele, a mala encostada à parede
havia servido como uma espécie de assento, tendo ao lado, no chão, o paletó junto à valise aberta de onde escapavam diversos papéis. Trancado do lado de fora, trabalhando
enquanto esperava. E por que não? Roupas amarrotadas, semblante irritado. Trancado do lado de fora e esperando fazia muito tempo. Sem dúvida não estava ali para
buscar camisas limpas e livros, não se trazia a mala. Seu primeiro pensamento, melancólico e egoísta, foi que agora teria de dividir o jantar calculado para uma
só pessoa. Então pensou que não seria necessário. Preferia não comer.
Subiu os últimos degraus até alcançar o patamar, sem dizer uma única palavra enquanto procurava na bolsa as chaves, as chaves novas, e o contornava a caminho da
porta. Ele que falasse primeiro.
O tom foi de queixume: “Telefonei a noite toda”.
Ela abriu a porta e entrou sem olhar para trás; deixou as compras na cozinha e parou. Seu coração batia forte demais. Ouviu a respiração mal-humorada dele ao trazer
a bagagem para dentro. Se era para haver uma confrontação, que ela não desejava, não agora, a cozinha era um espaço confinado demais. Pegou sua pasta e foi rapidamente
para a sala de visitas, ocupando seu lugar de sempre na chaise longue. Espalhar algumas páginas em volta de onde estava sentada era uma forma de proteção. Sem isso,
não saberia o que fazer de si.
O ruído da mala sendo arrastada pelo corredor e para dentro do quarto soou para ela como uma jogada de abertura. E um insulto. Pela força do hábito, tirou o sapato
e apanhou um documento ao acaso. O guitarrista tinha uma casa de alto padrão em Marbella. A crooner de canções românticas queria a casa. Mas, antes mesmo do casamento,
ele a adquirira da ex-mulher, dando em troca a casa da família no centro de Londres. E essa primeira esposa a havia ganho num acerto de divórcio com um ex-marido.
Irrelevante, Fiona não se furtou a declarar.
Um estalido no assoalho a fez olhar para cima. Jack parou na porta antes de preparar um drinque. Vestia uma calça jeans e uma camisa branca desabotoada no peito.
Será que se imaginava desejável? Reparou que ele não fizera a barba. Até mesmo do outro lado da sala os pelos pareciam grisalhos. Patético, ambos eram patéticos.
Ele se serviu de um uísque e levantou a garrafa na direção dela. Fiona disse não com a cabeça. Ele deu de ombros e atravessou a sala para se sentar em sua poltrona.
Ela era uma desmancha-prazeres, não sabia aproveitar o bom momento. Ele se acomodou com um suspiro de quem se sente em casa. A poltrona dele, a chaise longue dela,
outra vez a vida de casados. Ela olhou para a página em sua mão, a narrativa feita pela esposa do mundo desejável do guitarrista, impossível de absorver. Fez-se
silêncio enquanto ele bebia e ela olhava através da sala para nada em especial.
Então ele disse: “Olha, Fiona, eu te amo”.
Depois de alguns segundos, ela disse: “Prefiro que você durma no quarto de hóspedes”.
Ele baixou a cabeça em sinal de concordância. “Vou pegar minha mala.”
Jack não se levantou. Ambos conheciam a vitalidade do não dito, cujos espíritos invisíveis dançavam agora em volta deles. Ela não lhe dissera para se manter fora
do apartamento, aceitando tacitamente que ele podia dormir lá. Ele não lhe dissera ainda se a especialista em estatística o havia mandado embora, ou se ele tinha
mudado de opinião, ou se já havia experimentado um êxtase suficiente para durar até o túmulo. A mudança das fechaduras não fora comentada. Ele provavelmente achou
estranho Fiona ter chegado tão tarde. Ela mal suportava olhar para ele. O que se fazia necessário agora era uma briga, com vários capítulos se estendendo ao longo
do tempo. Talvez houvesse algumas digressões rancorosas, o arrependimento de Jack poderia vir embrulhado em reclamações, talvez demorasse meses até ela recebê-lo
na cama, o fantasma da outra mulher era capaz de pairar entre eles para sempre. Mas eles provavelmente encontrariam uma forma de recuperar, mais ou menos, o que
haviam tido antes.
A ideia do imenso esforço envolvido e da previsibilidade do processo a cansou ainda mais. No entanto, ela estava obrigada a segui-lo. Como se, por contrato, devesse
escrever um manual de direito enfadonho mas necessário. Achou que, afinal, gostaria de tomar um drinque, embora isso se parecesse demais com uma celebração. Estava
muito longe de uma reconciliação. Acima de tudo, não aguentaria ouvir outra vez que ele a amava. Queria estar sozinha na cama, de costas no escuro, mordiscando uma
fruta, deixando o resto cair no chão, até apagar de todo. O que a impedia de fazer isso? Ela se pôs de pé e começou a recolher seus documentos. Foi quando ele começou
a falar.
Foi uma torrente, em parte desculpas, em parte autojustificações, algumas das quais ela já ouvira. A mortalidade dele, os anos de total fidelidade, sua avassaladora
curiosidade de saber como seria, mas depois que saiu naquela noite, depois que chegou ao apartamento de Melanie, não demorou muito para se dar conta do erro. Ela
era uma estranha, ele não a entendia. E quando foram para o quarto dela...
Fiona levantou a mão em sinal de alerta. Não queria ouvir nada sobre o quarto. Ele fez uma pausa, refletiu, e continuou. Ele era um imbecil, ele percebeu, por se
deixar levar por uma necessidade sexual, quando deveria ter dado meia-volta naquela noite no momento em que ela abriu a porta, porém se sentiu envergonhado e obrigado
a ir adiante.
Apertando sua pasta contra o estômago, Fiona ficou no centro da sala observando-o, se perguntando como fazê-lo parar. Surpreendia-se que mesmo agora, com o dramalhão
conjugal em sua cena de abertura, a canção irlandesa continuasse girando em seu cérebro, o ritmo mais rápido para acompanhar o compasso da fala de Jack, soando ao
mesmo tempo mecânica e festiva como se tocada por um realejo de rua. Seus sentimentos eram confusos, obscurecidos pela fadiga e de difícil definição enquanto sobre
ela jorravam as palavras chorosas do marido. Sentiu nem tanto fúria ou um ressentimento amargo, conquanto algo mais que mera resignação.
Sim, disse Jack, ao chegar ao apartamento de Melanie ele se sentiu estupidamente obrigado a seguir em frente com o que começara. “E, quanto mais preso na armadilha
eu me sentia, mais me dava conta de como eu era um idiota por ameaçar tudo o que temos, tudo o que construímos juntos, este amor que...”
“Tive um dia longo”, ela disse ao atravessar a sala. “Vou pôr sua mala no corredor.”
Parou na cozinha para pegar uma maçã e uma banana em meio às compras postas sobre a mesa. Carregá-las no caminho para o quarto trouxe de volta a felicidade relativa
que sentira no trajeto entre o trabalho e a casa. Os primórdios de certa tranquilidade. Difícil de resgatar agora. Abriu a porta e viu a mala dele de pé sobre as
rodinhas, placidamente posta junto à cama. Então lhe ocorreu com clareza o que sentia com a volta de Jack. Tão simples. Era desapontamento por ele não ter continuado
longe. Só por mais algum tempo. Apenas isso. Desapontamento.
4.
Embora os fatos não o confirmassem, ela teve a impressão de que, no final do verão de 2012, os rompimentos e as crises conjugais ou crises entre parceiros na Grã-Bretanha
cresceram como uma maré aberrante de primavera, varrendo lares do mapa, espalhando bens e sonhos esperançosos, afogando quem não tinha um forte instinto de sobrevivência.
Promessas de amor foram negadas ou reformuladas, bons companheiros se transformaram em ardilosos combatentes escudados atrás de advogados, sem se importar com os
custos. Objetos da casa antes desdenhados eram motivo de amargas disputas, a tranquila confiança de outrora substituída por “acertos” redigidos com todo o cuidado.
Na mente dos envolvidos, a história do casamento era reescrita para que ele fosse visto como fadado ao insucesso desde o começo, o amor repaginado como mera ilusão.
E os filhos? Peças de um jogo, elementos de barganha a serem usados pelas mães; pretexto para acusações de abusos feitas em geral pelas mães, às vezes pelos pais,
embora fossem com frequência fantasiosas ou inventadas com todo o cinismo; crianças em estado de choque indo e vindo semanalmente de uma casa para a outra com base
em acordos de guarda compartilhada, o esquecimento de casacos e caixas de lápis sendo comunicado por meio de advogados; crianças condenadas a verem o pai uma ou
duas vezes por mês; ou nunca, pois os homens mais audaciosos desapareciam na oficina de ferreiro de um novo e quente matrimônio para forjar outros rebentos.
E o dinheiro? As novas moedas eram as meias verdades e os apelos especiais. Maridos gananciosos contra esposas gananciosas, manobrando como nações ao final de uma
guerra, tentando salvar das ruínas todos os despojos que podiam antes da retirada final. Homens ocultavam recursos em contas no exterior, mulheres exigiam para sempre
uma vida de conforto. Mães impediam crianças de ver os pais apesar de ordens judiciais; pais se negavam a oferecer sustento aos filhos apesar de ordens judiciais.
Maridos agrediam esposas e filhos, esposas mentiam ou maquinavam ardis, um ou outro, ou ambos, bêbados, viciados em drogas ou psicóticos; e crianças eram obrigadas
a tomar conta de pais incapazes, crianças de fato vítimas de abusos sexuais ou mentais, ou ambos, seus depoimentos transmitidos numa tela ao tribunal. E já fora
da área de competência de Fiona, em casos julgados pelas cortes criminais e não pelas varas de família, crianças torturadas, mortas de fome ou por espancamento,
espíritos maus arrancados de dentro delas em ritos animistas, padrastos jovens e cruéis quebrando ossos de bebês sob os olhares abobalhados e cúmplices das mães,
e drogas, álcool, sujeira doméstica extrema, vizinhos indiferentes e seletivamente surdos para não ouvir os gritos, assistentes sociais descuidados ou atarefados
demais para intervir.
O trabalho das varas de família não cessava. Era por simples acaso que tantos conflitos conjugais caíssem no colo de Fiona. Pura coincidência que ela própria estivesse
vivendo um conflito similar. Naquele setor do Judiciário, não era comum mandar gente para a cadeia, mas, apesar disso, em certos momentos ela tinha vontade de ordenar
que fossem encarcerados aqueles demandantes que, à custa dos filhos, desejavam uma mulher mais jovem, um marido mais rico ou menos enfadonho, um bairro mais elegante,
novas aventuras sexuais, novos amores, uma nova visão do mundo, um bom reinício antes que fosse tarde demais. A simples busca do prazer. Vulgaridade moral. Sua falta
de filhos e a situação com Jack davam forma a esses devaneios e, naturalmente, eles não eram para valer. Entretanto, embora mergulhasse bem fundo em seu reino mental,
ela nunca deixava que suas decisões fossem afetadas pelo desprezo puritano que devotava aos homens e às mulheres que destruíam sua família e se persuadiam de que
agiam altruisticamente pelo bem de todos. Nesses experimentos intelectuais, ela não teria poupado as pessoas sem filhos ou, pelo menos, não Jack. Um período de contrição
atrás das grades por contaminar o casamento deles em nome de uma novidade? Por que não?
Porque, depois do retorno dele, a vida no apartamento da Gray’s Inn era lúgubre e silenciosa. Tinha havido brigas durante as quais ela pusera para fora alguns sentimentos
amargos. Doze horas depois esses sentimentos se renovavam tão ardentemente quanto os votos matrimoniais, nada mudava, o ar não ficava mais “limpo”. Ela permanecia
traída. Ele apimentava suas desculpas com velhas recordações de que ela o isolara, de que era fria. Disse até, certa noite bem tarde, que ela era “uma chata” e havia
“perdido a arte de sentir prazer”. De todas as acusações, essas foram as que mais a incomodaram, porque ela percebia serem verdadeiras, o que em nada diminuiu sua
raiva.
Pelo menos ele deixara de dizer que a amava. Na troca de palavras mais recente, dez dias antes, fora reiterado tudo o que haviam se dito antes, todas as recriminações,
todas as defesas, todas as frases bem formuladas que eram fruto de uma longa elucubração prévia, até que depuseram as armas, cansados um do outro e de si próprios.
Desde então, nada. Moviam-se o dia todo, cada qual cuidando de seus afazeres em diferentes partes da cidade e, quando confinados no apartamento, evitavam cuidadosamente
se tocar, como dançarinos numa quadrilha. Eram sucintos e competiam em matéria de cortesia quando forçados a decidir sobre questões referentes à casa, buscavam não
comer juntos, trabalhavam em cômodos separados, com a atenção prejudicada pela vívida consciência, através das paredes, da presença radioativa do outro. Sem necessidade
de discuti-lo, declinavam todos os convites conjuntos. O único gesto conciliatório dela consistiu em lhe dar uma nova chave.
De comentários evasivos e taciturnos dele, ela deduziu que, no quarto da especialista em estatística, Jack não transpusera os portões do paraíso. O que não era tão
tranquilizador. Ele provavelmente iria tentar a sorte em outro lugar, talvez já estivesse tentando, desta vez livre das tristes amarras da honestidade. Suas “aulas
de geologia” poderiam ser um bom subterfúgio. Ela se lembrava de haver prometido abandoná-lo se ele fosse em frente com Melanie. Mas Fiona não tinha tempo para desfazer
aquele complexo nó. E ainda estava indecisa, não confiava em seu atual estado de espírito. Caso ele houvesse lhe dado mais tempo depois de sair de casa, ela teria
chegado a uma decisão clara e se empenhado em terminar o casamento ou reconstruí-lo. Por isso, se entregou ao trabalho na forma usual e resolveu sobreviver dia após
dia o drama agora serenado de sua vida com Jack.
Quando uma de suas sobrinhas deixou lá as filhas durante um fim de semana, gêmeas idênticas de oito anos, as coisas ficaram mais fáceis, o apartamento ficou maior,
porque as atenções se voltaram para fora. Por duas noites Jack dormiu no sofá da sala de visitas sem que as meninas fizessem perguntas. Pertenciam a um tipo antiquado
de crianças que mantinham as costas bem retas, com modos solenes e afetuosos, embora sujeitas a brigas repentinas e explosivas. Uma ou outra — era fácil distinguir
as duas — procurava Fiona onde ela estivesse lendo e, postada diante dela, descansando uma mão confiante em seu joelho, despejava uma torrente prateada de historinhas,
reflexões e fantasias. Fiona replicava com suas próprias historinhas. Duas vezes, durante aquela visita, aconteceu que, enquanto ela falava, uma onda de amor pela
menina contraiu sua garganta e marejou seus olhos. Ela estava se sentindo velha e tola. Incomodava-a relembrar como Jack era bom com as crianças. Correndo o risco
de ter uma crise de coluna, como aconteceu certa vez com os três filhos do irmão de Fiona, ele fazia brincadeiras pesadas, de que as meninas participavam com acessos
de gritos inumanos. Em casa, a mãe delas, ressentida por causa do divórcio, jamais as jogava para o alto de cabeça para baixo. Ele as levou aos jardins para ensinar
uma versão de críquete que tinha inventado, além de ler uma longa história para elas na cama com vibrante energia cômica e talento na imitação das vozes.
Mas um domingo à noite, depois que as gêmeas foram levadas, os aposentos se encolheram, o ar ficou pesado e Jack saiu sem dar explicações — sem dúvida um ato hostil.
Para um encontro amoroso, ela imaginou, enquanto se ocupava arrumando o quarto de hóspedes para impedir que seu moral baixasse ainda mais. Repondo os brinquedos
macios na cesta de vime onde residiam, recuperando as contas de vidro e os desenhos rejeitados debaixo da cama, ela sentiu a melancolia mansa e envolvente, uma forma
de nostalgia instantânea, que a ausência repentina de crianças pode causar. Aquele sentimento durou até a manhã de segunda-feira e cresceu até se transformar numa
tristeza generalizada, que a perseguiu na caminhada para o trabalho. Só começou a se dissipar quando ela se sentou à sua mesa a fim de se preparar para o primeiro
caso da semana.
Em algum momento Nigel Pauling deve ter trazido a correspondência, porque a pilha de cartas se encontrava subitamente perto de seu cotovelo. Vendo o pequeno envelope
azul-claro em cima de todos, ela quase chamou seu assistente para abri-lo. Não estava com vontade de ler mais uma profusão de agressões verbais de algum analfabeto
ou ameaças de violência. Voltou ao trabalho, mas não conseguiu se concentrar. O envelope absurdo, as letras arredondadas, a falta de um código postal, o selo ligeiramente
torto — era demais. Mas, olhando uma vez mais, ela reparou no carimbo postal e foi tomada por uma repentina suspeita. Sopesou a carta por um instante e a abriu.
No momento seguinte, viu pela saudação que estava certa. Tinha aguardado vagamente por aquilo durante semanas. Havia falado com Marina Greene e soubera que ele estava
progredindo bem, já fora do hospital, recuperando em casa o tempo de estudos perdido e esperando voltar à sala de aulas em breve.
Três páginas azul-claras, escritas em cinco lados. O primeiro tinha o número sete dentro de um círculo posto no centro e no alto da página. Acima da data.
Meritíssima!
Esta é minha sétima carta e acho que vai ser a que porei no correio.
As primeiras palavras do parágrafo seguinte tinham sido riscadas.
Vai ser a mais simples e a mais curta. Só quero lhe descrever um acontecimento. Entendo agora como ele foi importante. Mudou tudo. Estou feliz por ter esperado porque
não gostaria que a senhora visse as outras cartas. Muito embaraçosas! Mas não tão terríveis como os nomes que lhe chamei quando Donna me anunciou sua decisão. Eu
estava certo de que a senhora tinha visto as coisas do meu jeito. Na verdade, guardei perfeitamente o que me disse, que era óbvio que eu sabia o que queria, e lembro
que lhe agradeci. Eu ainda estava tendo um ataque de raiva e xingando quando aquele horrível médico assistente, o dr. “me chama de Rodney” Carter, entrou com meia
dúzia de pessoas e o equipamento. Eles pensaram que iam precisar me segurar. Mas eu estava fraco demais e, mesmo furioso, sabia o que a senhora queria que eu fizesse.
Por isso, estendi o braço e eles começaram. A ideia de que o sangue de alguém entrava no meu corpo foi tão nojenta que vomitei na cama.
Mas não é isso que quero lhe contar. É o seguinte. Como mamãe não conseguiu assistir, ela ficou sentada do lado de fora do quarto e eu ouvia seu choro, o que me
deixou muito triste. Não sei quando papai apareceu. Acho que fiquei desmaiado algum tempo e, quando retomei os sentidos, os dois estavam ao lado da minha cama —
ambos chorando, e me senti ainda mais triste porque todos nós estávamos desobedecendo a Deus. Mas o importante, e levei algum tempo para entender isto, é que eles
estavam chorando de ALEGRIA! Estavam muito felizes, me abraçando e se abraçando, agradecendo a Deus e soluçando. Eu me senti muito esquisito e não entendi nada por
um ou dois dias. Nem pensava naquilo. Então comecei a pensar. Meus pais seguiram os ensinamentos, obedeceram aos anciãos, fizeram tudo certo e podem esperar ser
aceitos no paraíso aqui na Terra — e ao mesmo tempo podem me ter vivo sem que nenhum de nós seja expulso da Igreja. Transfusão feita, mas não por culpa nossa! Culpa
da juíza, culpa do sistema sem fé, culpa do que às vezes chamamos de “mundo”. Que alívio! Ainda temos nosso filho embora tivéssemos dito que ele devia morrer.
Não sei como interpretar isto. Foi uma fraude? Para mim foi uma mudança de direção. Estou resumindo a história. Quando eles me trouxeram para casa, tirei a Bíblia
do meu quarto, simbolicamente a botei virada para baixo numa cadeira do corredor e disse que eu não ia mais voltar ao Salão do Reino, que podiam me expulsar da igreja
se quisessem. Tivemos umas brigas horríveis. O sr. Crosby tem vindo me convencer. Nenhuma chance. Estou escrevendo para a senhora porque preciso mesmo falar com
a senhora, preciso ouvir sua voz calma e aproveitar sua mente clara para discutir comigo este assunto. Sinto que a senhora me levou para perto de alguma outra coisa,
alguma coisa de fato bonita e profunda, mas não sei bem o que é. A senhora nunca me disse no que acreditava, mas adorei quando sentou ao meu lado e executamos “The
Salley Gardens”. Ainda leio o poema todos os dias. Gosto de ser “jovem e tolo”, e, se não fosse pela senhora, eu não seria nem uma coisa nem outra, eu estaria morto!
Eu lhe escrevi uma porção de cartas bobas, penso na senhora o tempo todo e quero mesmo ver a senhora para nos falarmos outra vez. Sonho acordado sobre nós, fantasias
maravilhosas e impossíveis, como a de que vamos fazer uma viagem de volta ao mundo juntos num navio, em camarotes vizinhos, e que passeamos o dia todo pelo convés
conversando.
Meritíssima, me escreva por favor, apenas algumas palavras para dizer que leu esta carta e que não me odeia por tê-la escrito.
Sempre seu,
Adam Henry
P.S.: Esqueci de dizer que estou ficando cada dia mais forte.
Ela não respondeu, ou melhor, não pôs no correio o bilhete que levou mais de uma hora para escrever naquela noite. No quarto e último rascunho, pensou ter sido bastante
afetuosa, feliz de sabê-lo em casa e se sentindo melhor, contente por ele ter boas recordações da visita dela. Aconselhou-o a ser carinhoso com os pais. Era normal,
como adolescente, questionar as crenças com que havíamos sido criados, mas isso devia ser feito de modo respeitoso. Terminou dizendo, embora não fosse verdade, que
havia ficado atraída pela ideia de uma volta ao mundo num navio. Acrescentou que, quando jovem, tinha sonhos de fuga como o dele. Isso também não era verdade, pois
ela havia sido ambiciosa demais, mesmo com dezesseis anos, ávida demais por boas notas nos exames para pensar em escapar. As visitas como adolescente a seus primos
de Newcastle foram suas únicas aventuras. Olhando a cartinha no dia seguinte, não foi a afetuosidade que a impressionou, e sim a frieza, os conselhos esfarrapados,
a linguagem impessoal, as falsas lembranças. Releu a carta dele e foi mais uma vez tocada por sua inocência e calor humano. Melhor não mandar nada do que decepcioná-lo.
Se mudasse de opinião, poderia escrever mais tarde.
Estava se aproximando o momento em que realizaria o circuito itinerante, visitando cidades inglesas e antigos vilarejos na companhia de outro juiz especializado
em direito criminal e cível. Ela julgaria casos que, de outra forma, precisariam ser transferidos para os tribunais de Londres. Ela ficaria hospedada em locais especialmente
bem preservados, mansões impressionantes de interesse histórico e arquitetônico onde, em certos casos, as adegas eram lendárias e as cozinheiras provavelmente decentes.
As autoridades do lugar costumavam convidá-la para jantar. Ela e seu colega retribuiriam a gentileza nas casas onde estivessem instalados, convidando figuras eminentes
ou interessantes (havia uma clara distinção entre as duas categorias) da localidade. Os quartos de dormir eram bem mais sofisticados que o seu, as camas mais largas,
os lençóis de tecido mais fino. Em tempos mais felizes, havia, para uma mulher bem casada, um elemento de culpa e prazer sensual naquelas acomodações a sós. Agora,
ela ansiava escapar do silencioso e solene pas de deux em casa. E a primeira parada era sua cidade inglesa predileta.
Certa manhã no começo de setembro, uma semana antes de iniciar a viagem, ela recebeu uma segunda carta. Mesmo antes de lê-la sua preocupação desta vez foi maior,
porque o envelope azul se encontrava sobre o capacho do vestíbulo de seu apartamento, em meio a circulares e a uma conta de luz. Nenhum endereço, só o nome dela.
Bem simples para Adam Henry esperar no Strand ou na Carey Street e segui-la à distância.
Jack já tinha saído para o trabalho. Ela levou a carta para a cozinha e se sentou diante dos restos do café da manhã.
Meritíssima,
Nem sei o que escrevi porque não guardei uma cópia, mas tudo bem que a senhora não tenha respondido. Ainda preciso conversar com a senhora. Aqui estão minhas notícias
— grandes brigas com meus pais, fantástico estar de volta à escola, me sentindo melhor, me sentindo feliz e depois infeliz e feliz outra vez. Às vezes a ideia do
sangue de um estranho dentro de mim me causa enjoo, como se eu tivesse bebido a saliva de alguém. Ou pior. Não posso me livrar da ideia de que a transfusão é uma
coisa errada, mas não me importo mais. Tenho tantas perguntas para a senhora, mas nem tenho certeza de que se lembra de mim. A senhora deve ter tido dezenas de casos
desde o meu e feito um bocado de escolhas sobre outras pessoas. Sinto ciúme! Quis conversar com a senhora na rua, chegar perto e tocar no seu ombro. Não fiz isso
porque sou um covarde. Achei que a senhora podia não me reconhecer. A senhora também não precisa responder a esta carta — o que significa que espero que responda.
Por favor, não se preocupe, não quero atormentá-la ou nada parecido. Só sinto que a tampa da minha cabeça explodiu. Está saindo tudo!
Sinceramente seu,
Adam Henry
Fiona mandou imediatamente um e-mail para Marina Greene perguntando se ela podia encontrar um tempinho para visitar o rapaz num acompanhamento de rotina e depois
lhe enviar um relatório. Recebeu o retorno antes do fim do dia. Marina se encontrara com Adam durante a tarde na escola, onde ele estava começando um período de
estudos especiais a fim de se preparar para os exames antes do Natal. Ficou meia hora com ele, que havia engordado e estava corado. Mostrou-se animado, até mesmo
“engraçado e travesso”. Havia alguns problemas em casa, a maior parte sobre diferenças religiosas com os pais, mas ela não achou nada de estranho nisso. Em particular,
o diretor lhe disse que Adam, depois de voltar do hospital, havia trabalhado bastante para recuperar o tempo perdido. Seus professores consideravam que ele estava
progredindo otimamente. Contribuía bastante para as atividades em sala de aula, nenhum problema de comportamento. Em suma, tudo corria bem. Tranquilizada, Fiona
decidiu não escrever para ele.
Uma semana depois, na manhã da segunda-feira em que deveria viajar para o nordeste da Inglaterra, ocorreu um desvio minúsculo na falha geológica conjugal, um movimento
quase tão imperceptível quanto o deslocamento das placas tectônicas. Foi tácito, algo não reconhecido abertamente. Mais tarde, quando se encontrava no trem e repassou
tudo, o instante pareceu se situar na fronteira entre o real e o imaginado. Será que ela podia confiar em sua memória? Eram sete e meia quando entrara na cozinha.
Jack estava de pé junto ao balcão, de costas para ela, despejando grãos de café no moedor. A pasta dela já estava no corredor e Fiona cuidava de recolher uns poucos
documentos que faltavam. Como de hábito, ficou relutante em dividir um espaço pequeno com ele. Pegou a echarpe das costas da cadeira e saiu para continuar a busca
na sala de visitas.
Voltou alguns minutos depois. Jack tirava uma jarra de leite do micro-ondas. Eles eram exigentes em matéria de café da manhã e, no curso dos anos, seus gostos tinham
convergido. Gostavam de café forte feito com grãos colombianos de alta qualidade, servido em canecas brancas e altas de borda fina, com leite morno, e não quente.
Ainda de costas para ela, Jack derramou leite em seu café e depois se voltou com a caneca erguida e ligeiramente estendida na direção dela. Nada na expressão de
Jack sugeria que ele estava lhe oferecendo a caneca, e ela nem assentiu nem recusou com a cabeça. Os olhos dos dois se encontraram por um instante, e então ele depositou
a caneca na mesa de pinho e empurrou-a uns cinco centímetros na direção dela. Isso não significava necessariamente muito, pois, em suas tensas manobras para se evitar,
ambos permaneciam escrupulosamente corteses, como se cada qual estivesse procurando superar o outro em se mostrar razoável, os dois irrepreensíveis graças à ausência
de rancor. Não faria sentido preparar um bule de café só para uma pessoa. Mas há maneiras e maneiras de pôr uma caneca na mesa, desde a batidinha peremptória da
porcelana contra a madeira até o pouso silencioso e cuidadoso, assim como há maneiras e maneiras de aceitar uma caneca, coisa que ela fez mansamente, em câmera lenta,
sem se afastar tão logo tomou um gole, ou não tão de imediato quanto o teria feito em qualquer outra manhã. Passaram-se alguns segundos de silêncio, em seguida pareceu
que isso era o mais longe que ambos estavam preparados para ir, que o momento continha coisas demais para eles e que tentar algo além os faria recuar. Jack se afastou
a fim de preparar uma caneca para ele, enquanto Fiona se afastou para ir buscar alguma coisa no quarto. Moveram-se um pouco mais devagar do que era comum, talvez
quase com relutância.
No começo da tarde, ela chegou a Newcastle. Um motorista esperava do lado de lá das catracas para levá-la aos tribunais de Quayside. Nigel Pauling a aguardava na
entrada dos magistrados e a conduziu ao gabinete que ela ocuparia. Ele chegara de Londres de manhã com os documentos e as togas — os paramentos completos, como disse
—, porque Fiona participaria da Corte da Rainha além da Vara da Família. O assistente do tribunal apareceu para dar as boas-vindas formais, seguido do funcionário
que cuidava da agenda, com o qual ela repassou os casos a serem ouvidos nos dias seguintes.
Como havia outras pequenas matérias a tratar, só por volta das quatro da tarde Fiona ficou livre para sair. A previsão era de que uma tempestade de verão chegaria
do sudoeste no começo da noite. Ela mandou que o motorista esperasse e deu uma caminhada pelo calçadão junto ao rio, passando por baixo da ponte Tyne e ao longo
de Sandhill, pelos novos cafés ao ar livre e por jardins floridos junto a sólidos prédios comerciais com fachadas clássicas. Subiu as escadas até Castle Garth e
parou no alto para olhar o rio que ficara para trás. Ela tinha uma queda por aquela mistura exuberante de peças poderosas de ferro fundido, aço e vidro pós-industrial,
de velhos armazéns salvos da decrepitude por uma fantasia juvenil de cafés e bares. Compartilhava um passado com Newcastle e se sentia bem lá. Na adolescência, durante
as recorrentes doenças de sua mãe, ia passar algum tempo ali com suas primas prediletas. Tio Fred, dentista, era o homem mais rico que ela conhecia. Tia Simone ensinava
francês numa escola primária. A casa era agradavelmente caótica, uma libertação dos domínios de sua mãe em Finchley, encerados ao exagero e insuficientemente arejados.
As primas, de sua idade, eram alegres e aventurosas, obrigando-a a sair à noite em missões aterradoras que incluíam a ingestão de bebidas e quatro músicos dedicados
com cabelos até a cintura e bigodes de pontas caídas, que pareciam transviados mas provaram ser gente boa. Seus pais ficariam horrorizados de saber que a filha estudiosa
de dezesseis anos era presença assídua em certos bares, que bebia licor de cereja e cuba-libre, e tivera seu primeiro amante. E, juntamente com as primas, ela era
a tiete fiel, e tolerada como assistente novata, de uma banda de blues mal equipada e mal remunerada, ajudando a carregar amplificadores e peças da bateria numa
caminhonete enferrujada que vivia enguiçando. Com frequência afinava as guitarras. Sua emancipação tinha muito a ver com o fato de que aquelas visitas, além de ocasionais,
nunca duravam mais que três semanas. Se permanecesse por mais tempo — nunca uma possibilidade real —, talvez fosse até autorizada a cantar os blues. Poderia ter
se casado com Keith, o principal cantor do grupo e tocador de gaita, que tinha um braço atrofiado e a quem ela adorava timidamente.
Tio Fred mudou seu consultório para o sul do país quando ela tinha dezoito anos, o caso com Keith acabou em lágrimas e em alguns poemas de amor que ela não enviou.
Fiona jamais voltou a viver esse tipo de relacionamento arriscado e tremendamente divertido, o qual se tornou parte inseparável da ideia que fazia de Newcastle.
Não seria possível reproduzi-lo em Londres, a sede de suas ambições profissionais. Por vários anos ela voltara ao Nordeste sob diversos pretextos, além de quatro
vezes para cumprir o circuito judiciário. Sempre fazia bem ao seu espírito se aproximar da cidade pela alta ponte Stephenson sobre o rio Tyne, chegando com o espírito
excitado de uma adolescente, descendo do trem na gare central sob os três grandes arcos criados por John Dobson e saindo pela extravagante porte cochère neoclássica
desenhada por Thomas Prosser. Foi seu tio dentista, recebendo-a com seu Jaguar verde e suas primas impacientes, quem a ensinou a apreciar a gare e os tesouros arquitetônicos
da cidade. Ela nunca se desfizera da impressão de estar no exterior, de se encontrar numa cidade-Estado báltica caracterizada por um curioso otimismo e orgulho.
O ar era mais revigorante, a luz de um cinzento amplo e luminescente, os habitantes amistosos, porém mais incisivos, autoconscientes ou ironizando a si próprios
como atores numa comédia. Perto do sotaque deles, o dela parecia tenso e artificial. Se, como Jack insistia, a geologia moldava a variedade de tipos e de destinos
dos ingleses, então os moradores da cidade eram feitos de granito e ela de calcário friável. Mas, com sua paixonite juvenil pela cidade, com suas primas, a banda
e o primeiro namorado, acreditava que poderia mudar, se tornar mais autêntica, mais verdadeira, uma genuína cidadã daquela região. Anos depois, recordar-se de tal
ambição ainda a fazia sorrir. No entanto, o sentimento lá estava em cada regresso, uma vaga noção de renovação, de um potencial não explorado em outra vida — e isso
mesmo às vésperas de fazer sessenta anos.
O carro em cujo assento ela se reclinou era um Bentley da década de 1960, e seu destino o Leadman Hall, situado dentro de seu próprio parque a um quilômetro e meio
dos portões que ela agora transpunha. Logo passou por um campo de críquete, depois por uma alameda de faias com as copas já agitadas pelo vento que crescia, mais
tarde por um lago tomado por plantas aquáticas. O palacete, no estilo do arquiteto Andrea Palladio e havia pouco tempo pintado de um branco brilhante demais, tinha
doze quartos e nove empregados para servir a dois magistrados do Tribunal Superior em seu circuito itinerante. Pevsner, conhecido historiador da arte arquitetônica,
aprovara sem grande entusiasmo a estufa, e nada mais. Somente uma anomalia burocrática havia preservado Leadman de ser destruído por medida de economia do governo,
mas o jogo estava chegando ao fim porque aquele era o último ano em que a construção iria contar com o Judiciário. O palacete, alugado algumas semanas por ano de
uma família da região com interesses históricos na mineração de carvão, servia principalmente como centro de conferências e local para festas de casamento. Seu campo
de golfe, quadras de tênis e piscina externa aquecida eram, como agora se reconhecia, luxos desnecessários para juízes de passagem e muito atarefados. Do ano seguinte
em diante, uma empresa de táxi da cidade forneceria um espaçoso Vauxhall para substituir o Bentley. As acomodações seriam num hotel do centro de Newcastle. Os magistrados
da Vara Criminal, que às vezes mandavam para a prisão por longos períodos homens da região com parentes assustadores, tinham clara preferência pelo isolamento de
um palacete. Mas ninguém era capaz de argumentar em favor de Leadman sem dar a impressão de que o fazia por puro interesse.
Pauling esperava com a governanta no pátio de cascalho junto à entrada principal. Ele desejava dar um sentido especial àquela derradeira visita. Aproximou-se da
porta de trás do carro com um floreio irônico e bateu os calcanhares. Como sempre, a governanta era nova, uma polonesa de uns vinte e poucos anos, calculou Fiona,
mas seu olhar era direto e frio, e ela pegou com firmeza a mala mais pesada da juíza até que Pauling a tomou de sua mão. Lado a lado, o assistente e a governanta
conduziram Fiona ao quarto do primeiro andar que ela considerava como seu. Ficava na frente da casa, com três janelas altas que davam para a alameda de faias e para
o trecho do lago invadido por ervas. Além do quarto de quase dez metros de comprimento, havia a sala de estar com uma mesa de trabalho. O banheiro, no entanto, ficava
no fim de um corredor e três degraus atapetados abaixo do nível do quarto. Na última vez em que Leadman tinha sido modernizado, a proliferação generalizada de lavatórios
e chuveiros ainda não começara.
A tempestade chegou quando Fiona saiu do banho. Vestida com um penhoar, plantou-se diante da janela central observando as pancadas de chuva, cortinas fantasmagóricas
que corriam velozes e, por segundos, ocultavam os campos. Viu o galho mais alto de uma das faias próximas se partir e começar a cair, ficando de cabeça para baixo
e balançando ao ser contido pelos galhos mais baixos, até mergulhar de novo, voltar a se emaranhar e ser enfim liberado pelo vento para se chocar com um baque contra
o solo. Quase tão alto quanto o silvar da chuva no cascalho era o coro de gemidos nas calhas do telhado. Ela acendeu as luzes e começou a se vestir. Já estava atrasada
dez minutos para o xerez na sala de visitas.
Quatro homens de terno preto e gravata, cada qual com seu gim e sua tônica, pararam de conversar e se ergueram das poltronas quando ela entrou. Um garçom de paletó
branco engomado foi preparar o drinque dela, enquanto Caradoc Ball da Corte da Rainha, colega de Fiona encarregado dos casos criminais, apresentou-a aos demais —
um professor de jurisprudência, um homem que tinha negócios no setor de fibras ópticas e alguém que trabalhava para o governo na conservação da costa marítima. Todos
de alguma forma eram ligados a Ball. Ela não convidara ninguém para a primeira noite. Seguiu-se a conversa obrigatória sobre o clima tempestuoso. Depois, uma digressão
sobre como as pessoas de mais de cinquenta anos e todos os norte-americanos ainda viviam no mundo das temperaturas medidas em Fahrenheit. Depois, como os jornais
britânicos, para obter o máximo de impacto, noticiavam as baixas temperaturas em graus Celsius e as quentes em Fahrenheit. Durante todo o tempo ela se perguntava
por que o rapaz curvado sobre o carrinho de bebidas estava demorando tanto. Ele trouxe o drinque dela justamente quando estava sendo lembrada a já distante transição
para as moedas decimais.
Fiona já sabia pelo próprio Ball que ele estava em Newcastle para realizar o novo julgamento de um caso de assassinato no qual um homem era acusado de haver matado
sua mãe em casa com golpes de porrete devido aos maus-tratos que ela infligia à filha mais jovem, meia-irmã do réu. A arma do crime não tinha sido encontrada e a
prova de DNA era inconclusiva. A defesa argumentava que a mulher havia sido morta por um intruso. O julgamento fora anulado quando se descobriu que um jurado tinha
revelado aos outros membros do júri informações que colhera na internet pelo celular. Ele encontrara a reportagem de um jornal sensacionalista, publicada cinco anos
antes, sobre a prévia condenação do homem por agressão violenta. Na nova era de acesso digital, alguma coisa precisava ser feita para “esclarecer” certas questões
aos jurados. O professor de jurisprudência havia pouco tempo apresentara um estudo à Comissão Jurídica, possivelmente objeto da conversa que Fiona interrompera ao
entrar na sala. Agora ela foi retomada. O especialista em fibras ópticas perguntou como seria possível impedir que os jurados buscassem informações na privacidade
de suas casas ou conseguissem que um membro da família o fizesse por eles. Relativamente simples, segundo o professor. Os próprios jurados se policiariam. Seriam
obrigados, sob pena de prisão, a apontar qualquer um deles que discutisse matérias não apresentadas perante o tribunal. Dois anos no máximo pela divulgação de tais
matérias, seis meses no máximo por não informar a violação. A Comissão daria seu parecer conclusivo no ano seguinte.
Nesse momento, o mordomo os convidou a seguirem para a mesa de jantar. Embora não pudesse ter mais de trinta anos, seu rosto era doentiamente pálido, como se coberto
de talco. Tão branco quanto uma aspirina — Fiona certo dia ouvira uma proprietária rural francesa dizer. Mas o mordomo não parecia doente pois mantinha uma atitude
impessoal e segura. Enquanto aguardava à pequena distância, com a cabeça inclinada para a frente em sinal de atenção, eles terminaram seus drinques e, seguindo Fiona,
atravessaram uma porta de folha dupla rumo à sala de jantar. A mesa, que poderia comportar trinta pessoas, estava posta para cinco numa extremidade solitária. A
sala era recoberta de lambris, pintados de um laranja quase fluorescente, com desenhos de flamingos calculadamente espaçados. Os convivas encontravam-se agora no
lado norte da casa, atingido em cheio pelo vento e onde as três janelas de guilhotina sacudiam, produzindo um ruído surdo. O ar estava frio e úmido. Havia um buquê
de flores secas na lareira. O mordomo explicou que ela havia sido bloqueada muitos anos antes, mas que ele traria um aquecedor elétrico. Eles avaliaram a distribuição
dos assentos e, após alguns momentos de polida incerteza, concordaram que, em respeito à simetria, Fiona se sentaria à cabeceira.
Até então ela mal falara. O mordomo pálido serviu um vinho branco. Dois garçons trouxeram patê de arenque e torradas finas. À esquerda dela estava o perito em conservação,
Charlie, um cinquentão gordo, careca e bem-humorado. Enquanto os outros continuavam a falar sobre jurados, ele perguntou cortesmente sobre o trabalho dela. Resignada
a uma rodada de conversinha fiada, Fiona explicou em termos gerais o trabalho da Vara de Família. Mas Charlie queria detalhes. Que tipo de decisão iria tomar no
dia seguinte? Ela se sentia mais feliz falando sobre um caso específico. Uma instituição local desejava ficar com a guarda de duas crianças, um menino de dois anos
e uma menina de quatro. A mãe era alcoólatra e também viciada em anfetaminas. Sofria crises psicóticas durante as quais imaginava estar sendo espionada por lâmpadas
elétricas. Tornara-se incapaz de cuidar de si própria ou das crianças. O pai, separado dela, tinha permanecido distante, mas agora alegava que ele e sua namorada
podiam cuidar das crianças. Ele também enfrentava problemas com drogas e era fichado na polícia, embora tivesse direito sobre os filhos. Um assistente social se
pronunciaria no dia seguinte perante o tribunal acerca da adequação dele como pai. Os avós maternos adoravam as crianças, eram competentes e queriam cuidar delas,
porém não tinham amparo legal para isso. A instituição local, cujo serviço de atendimento a menores havia sido criticado num relatório oficial, se opunha aos avós
por razões que ainda não estavam claras. As três partes — mãe, pai e avós — estavam amargamente divididas. Outra complicação era existirem opiniões contraditórias
acerca da menina de quatro anos. Um pediatra disse que ela tinha necessidades especiais, outro, contratado pelos avós, acreditava que, conquanto a menina estivesse
perturbada pelo comportamento da mãe e abaixo do peso normal por causa das refeições em horários irregulares, seu desenvolvimento era normal.
Havia, Fiona disse, muitos outros casos similares agendados para aquela semana. Charlie levou a mão à testa e fechou os olhos. Que encrenca! Se ele tivesse de tomar
uma decisão na manhã seguinte em um só caso como aquele, ficaria acordado a noite toda, roendo as unhas e abusando das bebidas oferecidas no quarto do hotel. Fiona
perguntou por que ele estava lá. Charlie tinha vindo de Whitehall a fim de persuadir um grupo de fazendeiros da costa a se unir a algumas organizações de proteção
ambiental, para permitirem que suas pastagens voltassem a ser cobertas pela água do mar, retornando à condição de pântanos salgados. Essa era de longe a melhor e
mais barata forma de defesa contra a inundação da costa, maravilhosa para a vida selvagem, sobretudo pássaros, e boa também para o turismo de pequena escala. Mas
havia uma forte oposição de certos segmentos do setor agrícola, embora os fazendeiros fossem ser bem recompensados. Durante todo o dia o tinham calado aos berros
nas reuniões. Corria o rumor de que o plano era compulsório. Ninguém acreditava nele quando dizia que não era assim. Viam-no como um representante do governo central,
com o qual os fazendeiros estavam irritados por uma série de outras questões que não eram de sua alçada. No final, tinha levado uns trancos num corredor. Um indivíduo
“com metade da minha idade e o dobro da minha força” havia agarrado sua gola e murmurado alguma coisa com o sotaque local que ele não tinha entendido. Melhor assim.
Amanhã ele voltaria e tentaria de novo. Estava certo de que no final iria conseguir o que queria.
Bom, isso soava a ela como um dos círculos especiais do inferno, bem pior do que qualquer mãe psicótica. Os dois estavam dando umas risadinhas por conta dessa observação,
quando perceberam que os outros três tinham abandonado a conversa deles e os ouviam.
Caradoc Ball, que era um velho colega de escola de Charlie, disse: “Espero que você saiba que está falando com uma juíza muito eminente. Certamente se lembra do
caso dos irmãos siameses”.
Todos se lembravam e, à medida que os pratos foram retirados e o boeuf en croûte servido com um Château Latour, conversaram e fizeram perguntas a ela sobre o famoso
caso. Fiona lhes disse tudo o que queriam saber. Todos tinham uma opinião, mas, como era a mesma, logo passaram a discutir a paixão que a história suscitara nos
jornais e como eles a haviam disputado. Dali foi um passo para uma troca de fofocas sobre os lances mais recentes da Investigação Leveson.* Terminaram a carne. À
frente, como dizia o cartão com o menu, havia um pudim de pão. Logo, logo, pensou Fiona, estariam discutindo a sabedoria ou a loucura de o Ocidente não mandar tropas
para a Síria. Era impossível calar Caradoc sobre aquele tema. E, de fato, ele o introduzia quando se deram conta de vozes ecoando no corredor. Pauling e o mordomo
de rosto branco pararam no umbral da porta e depois se aproximaram dela.
O mordomo se pôs de lado, com um olhar contrariado, enquanto Pauling, depois de pedir desculpas a todos com um aceno de cabeça, inclinou-se por cima da cadeira de
Fiona e disse baixinho perto de seu ouvido: “Minha senhora, perdão por interromper, mas infelizmente há um assunto que exige sua atenção imediata”.
Ela limpou os lábios com o guardanapo e se pôs de pé. “Me desculpem, senhores.”
Sem mudar de expressão, todos se levantaram e ela atravessou a sala na frente dos dois homens. Já do lado de fora, ela disse ao mordomo: “Ainda estamos esperando
por aquele aquecedor”.
“Vou pegar agora.”
Havia algo impertinente em seu jeito ao dar meia-volta, e ela olhou para seu assistente com as sobrancelhas erguidas.
Mas ele simplesmente disse: “Por aqui”.
Ela o seguiu através do corredor e do que fora antes uma biblioteca. As estantes estavam repletas de livros comprados em lojas de objetos usados, do tipo que os
hotéis adquirem por metro para criar uma atmosfera respeitável em certos ambientes.
Pauling disse: “É o rapaz das testemunhas de Jeová, Adam Henry. A senhora se lembra do caso da transfusão? Parece que ele a seguiu até aqui. Andou na chuva, está
completamente encharcado. Queriam expulsá-lo, mas achei que a senhora precisava ser informada antes”.
“Onde ele está?”
“Na cozinha. É mais quentinho lá.”
“Melhor trazê-lo aqui.”
Tão logo Pauling saiu, ela se levantou e caminhou lentamente pela sala, consciente de que seu ritmo cardíaco tinha aumentado. Caso houvesse respondido às cartas,
não estaria agora defrontando aquilo. Defrontando o quê? O envolvimento desnecessário com um caso fechado. E mais que isso. Mas não havia tempo para refletir. Ouviu
passos se aproximando.
A porta se abriu e Pauling fez o rapaz passar. Ela nunca o vira fora da cama e se surpreendeu com sua altura, bem mais de um metro e oitenta. Vestia seu uniforme
escolar, calça de flanela cinza, suéter cinza, camisa branca, um blusão bem leve, encharcado da cabeça aos pés, o cabelo em desordem depois de ter sido enxugado.
Uma pequena mochila pendia frouxamente de sua mão. O toque patético era dado pela toalha de chá do Leadman, com ilustrações dos pontos turísticos locais, envolvendo
suas costas para aquecê-lo.
O assistente se manteve junto à porta enquanto o rapaz deu alguns passos para dentro da sala, parando perto de onde ela se encontrava e dizendo: “Sinto muito mesmo”.
Naqueles primeiros momentos, era mais fácil esconder a confusão de sentimentos sob um tom maternal. “Você parece estar congelado. É melhor trazermos o aquecedor
para cá.”
“Eu mesmo vou pegar”, disse Pauling, saindo.
“Bem”, ela disse após um silêncio. “Como você me achou aqui?”
Outra evasão, perguntar como em vez de por quê, mas àquela altura, conquanto sua presença ainda fosse um choque, Fiona não era capaz de entender o que Adam queria
dela.
O relato dele foi sóbrio. “Eu a segui num táxi desde King’s Cross, peguei seu trem e, como não tinha ideia de onde a senhora ia saltar, comprei passagem para Edinburgh.
Em Newcastle, a segui ao sair da estação, corri atrás da sua limusine e então a perdi de vista. Tive um palpite e perguntei onde eram os tribunais. Quando cheguei
lá, vi imediatamente o seu carro.”
Ela o observou falar, enquanto analisava a transformação. A magreza se fora, porém ele continuava esbelto. Novos músculos nos ombros e braços. O mesmo rosto delicadamente
estruturado, a pinta marrom na maçã do rosto quase invisível na pele bronzeada pela saúde juvenil. Tênues indícios das olheiras roxas. Lábios cheios e úmidos, olhos
que naquela luz eram demasiado escuros para revelar sua cor. Mesmo enquanto tentava se desculpar, ele se mostrava vívido demais, ávido demais para dar uma explicação
detalhada. Quando ele afastou o olhar para ordenar a sequência de fatos, Fiona se perguntou se aquele era um rosto que sua mãe chamaria de antiquado. Uma ideia sem
nexo. A noção generalizada do rosto de um poeta romântico, um primo de Keats ou Shelley.
“Esperei um tempão até a senhora sair e a segui ao atravessar a cidade e voltar na direção do rio, vendo quando saiu do carro. Levei mais de uma hora até descobrir
no meu celular onde os juízes se hospedavam, peguei uma carona, desci na estrada principal, pulei o muro para não passar pela casa do guarda e andei até aqui na
chuva. Esperei muito tempo nos fundos, perto das antigas estrebarias, me perguntando o que eu devia fazer, até que alguém me viu. Realmente sinto muito, eu...”
Pauling, irritado e com o rosto vermelho por causa do esforço, chegou com o aquecedor. Talvez tivesse sido necessário arrancá-lo das mãos do mordomo. Os dois ficaram
olhando enquanto o assistente se pôs de quatro com um grunhido e desapareceu parcialmente debaixo de uma mesinha de canto para encontrar a tomada. Depois que se
reergueu, pousou as mãos nos ombros do rapaz e o levou para a frente do ar aquecido. Antes de sair, disse a Fiona: “Estou esperando do lado de fora”.
Quando ficaram sozinhos, ela disse: “Eu não deveria pensar que tem alguma coisa de esquisito em você me seguir até minha casa e depois até aqui?”.
“Ah, não! Por favor, não pense isso. Não é nada disso.” Olhou em volta impaciente, como se nas paredes estivesse escrita alguma explicação. “Olha, a senhora salvou
minha vida. E não é só isso. Papai tentou esconder de mim, mas li sua sentença. A senhora disse que queria me proteger da minha religião. Pois bem, protegeu. Fui
salvo!”
Ele riu da própria piada e ela disse: “Não o salvei para que você me seguisse por todo canto”.
Nesse justo instante, uma peça fixa do aquecedor deve ter entrado na órbita de alguma peça móvel, pois um estalido regular tomou conta da sala. O volume aumentou,
baixou, se estabilizou. Ela sentiu uma onda de irritação com a casa toda. Um embuste. Um depósito de velharias. Como não tinha visto isso antes?
O momento passou e ela perguntou: “Seus pais sabem onde você está?”.
“Tenho dezoito anos. Posso estar onde quiser.”
“Não me interessa sua idade. Eles vão ficar preocupados.”
Adam soltou um arquejo de exasperação juvenil e depositou a mochila no chão. “Olha, Meritíssima...”
“Chega disso. Me chame de Fiona.” Enquanto pudesse mantê-lo em seu lugar, ela se sentiria melhor.
“Eu não quis ser sarcástico nem nada.”
“Ótimo. E quanto a seus pais?”
“Ontem tive uma briga feia com papai. Tivemos algumas desde que saí do hospital, mas essa foi realmente das grandes, os dois gritando, e eu lhe disse tudo o que
achava sobre sua religião idiota, mesmo que ele não estivesse escutando. No final, me afastei. Subi para o quarto, fiz a mala, peguei o dinheiro que tinha guardado
e me despedi de mamãe. Depois fui embora.”
“Você precisa telefonar para ela agora.”
“Não há necessidade. Mandei uma mensagem para o celular dela ontem à noite do lugar onde me hospedei.”
“Mande outra.”
Ele a olhou, ao mesmo tempo surpreso e desapontado.
“Vamos, diga que está são e salvo em Newcastle e que vai escrever outra vez amanhã. Depois disso conversamos.”
Ela se afastou alguns passos e observou enquanto seus dedos longos dançavam sobre o teclado virtual. Em segundos o celular voltara ao bolso dele.
“Pronto”, disse, olhando para ela com ar expectante, como se ela é que lhe devesse alguma explicação.
Fiona cruzou os braços. “Adam, por que você está aqui?” Seu olhar se desviou, ele hesitou. Não ia dizer a ela a razão, pelo menos não de forma direta.
“Olhe, eu não sou a mesma pessoa. Quando a senhora foi me ver eu estava realmente pronto para morrer. É impressionante que alguém como a senhora tivesse perdido
tempo comigo. Eu era um tremendo idiota!”
Ela apontou para duas cadeiras de madeira junto a uma mesa oval de nogueira, onde se sentaram frente a frente. A luz branca e sepulcral vinha de quatro lâmpadas
LED presas a uma roda rústica de madeira pintada. Por não estar situada diretamente acima da mesa, a iluminação acentuava os contornos das maçãs do rosto e dos lábios
de Adam, assim como as finas saliências gêmeas que separavam a parte acima de seu lábio superior. Tratava-se de uma bela face.
“Não achei você um idiota.”
“Mas eu era. Sempre que os médicos e as enfermeiras tentavam me dissuadir, eu me sentia nobre e heroico, dizendo para me deixarem em paz. Eu era bom e puro. Adorava
que eles não conseguissem entender como eu era profundo. Eu realmente me achava o tal. Gostava de ver o orgulho dos meus pais e dos anciãos. À noite, quando não
tinha ninguém por perto, ensaiei fazer um vídeo, como esses homens-bomba. Ia fazer no meu celular. Queria que fosse reproduzido nos noticiários de televisão e no
meu funeral. Acabei chorando no escuro, imaginando meu caixão sendo levado diante dos meus pais, dos meus colegas e professores, de toda a congregação, as flores,
as coroas, a música triste, todos chorando, todos orgulhosos de mim e me amando. Sinceramente, eu era um idiota.”
“E onde entrava Deus nessa história?”
“Por trás de tudo. Eu estava obedecendo às instruções dele. Mas era mais sobre a maravilhosa aventura que eu estava vivendo, como ia morrer gloriosamente e ser adorado.
Uma garota que eu conheci na escola sofria de anorexia três anos atrás, quando tinha quinze anos. O sonho dela era se transformar em nada — como uma folha seca soprada
pelo vento, foi o que ela disse, mergulhando devagarzinho na morte, todo mundo com pena dela e depois se culpando por não compreendê-la. O mesmo tipo de coisa.”
Agora que o via sentado, Fiona se lembrou dele no hospital, recostando-se nos travesseiros em meio àquela bagunça juvenil. Não era a enfermidade dele que lhe vinha
à mente, mas sua avidez, a inocência vulnerável. Até mesmo a palavra anorexia soava como uma diversão. Ele havia tirado do bolso uma tira estreita de tecido verde,
talvez parte de um forro, que enrolava e desenrolava entre o indicador e o polegar como as contas do colar de um muçulmano.
“Então, não era muito uma questão de religião; tinha mais a ver com seus outros sentimentos.”
Ele ergueu as mãos. “Meus sentimentos tinham origem na minha religião. Eu estava cumprindo a vontade de Deus, a senhora e todos os outros estavam claramente errados.
Como eu teria me metido numa confusão daquelas se não fosse testemunha de Jeová?”
“Parece que sua colega anoréxica conseguiu.”
“Bem, na verdade a anorexia é um pouco como uma religião.”
Diante do olhar cético de Fiona, ele improvisou. “Ah, a senhora sabe, querer sofrer, amar a dor e o sacrifício, pensar que todo mundo está te observando, preocupado
com você, que o universo gira em torno de você. E do seu peso!”
Ela não se conteve e riu da ironia contida na última frase. Ele sorriu por seu inesperado êxito em diverti-la.
Ouviram vozes e passos no corredor quando os convidados passaram da sala de jantar para a de visitas a fim de tomarem café, e depois uma sucessão de gargalhadas
que mais pareciam latidos perto da porta da biblioteca. O rapaz ficou tenso com a possibilidade de uma interrupção, e ambos mantiveram um silêncio conspiratório
enquanto aguardavam que os sons morressem. Adam olhava para baixo, para suas mãos entrelaçadas sobre a madeira envernizada da mesa. Ela imaginava todas as horas
de sua infância e juventude dedicadas a orações, hinos, sermões e as diversas restrições que jamais conheceria, a comunidade fechada mas amorosa que o sustentara
até quase matá-lo.
“Adam, vou perguntar outra vez. Por que você está aqui?”
“Para lhe agradecer.”
“Há maneiras mais fáceis.”
Ele suspirou com impaciência enquanto repunha no bolso a tira de tecido. Por um momento Fiona acreditou que ele se preparava para partir.
“Sua visita foi uma das melhores coisas que me aconteceram.” E então, rapidamente: “A religião de meus pais era um veneno e a senhora foi o antídoto”.
“Não me lembro de haver criticado a religião de seus pais.”
“Não criticou. A senhora foi calma, ouviu, fez perguntas e alguns comentários. Aí é que está. É essa coisa que a senhora tem. Fez diferença. A senhora não precisou
dizer. Um jeito de pensar e de falar. Se não sabe o que estou dizendo, trate de ouvir os anciãos. E quando tocamos a música...”
Ela disse com rapidez: “Você ainda está tocando violino?”.
Ele fez que sim com a cabeça.
“E a poesia?”
“Sim, muito. Mas odeio as coisas que eu escrevia.”
“Bom, você tem talento. Sei que vai escrever alguma coisa maravilhosa.”
Fiona percebeu o desalento nos olhos dele. Ela estava se distanciando, fazendo o papel da tia solícita. Repassou algumas etapas da conversa, se perguntando por que
estava tão ansiosa para não desapontá-lo.
“Mas seus professores devem ser bem diferentes dos anciãos.”
Ele deu de ombros. “Não sei.” Acrescentou à guisa de explicação: “A escola era enorme”.
“E o que é isso que você supõe que eu tenha?”, ela perguntou em tom sério, sem nenhum traço de ironia.
A pergunta não o embaraçou. “Quando vi meus pais chorando daquele jeito, chorando e quase urrando de alegria, tudo desmoronou. Mas aí que está. Desmoronou para cair
na verdade. Claro que eles não queriam que eu morresse! Eles me amam. Por que não disseram isso, em vez de falar e falar sobre as alegrias do céu? Foi então que
eu vi tudo aquilo como uma coisa humana comum. Comum e boa. Não tinha nada a ver com Deus. Isso era só uma bobagem. Como se um adulto entrasse numa sala cheia de
crianças que estão se infernizando e dissesse: ‘Chega, parem com isso, é hora do chá!’. A senhora foi esse adulto. Sabia desde o começo, mas não disse. Só fez perguntas
e escutou. Toda a vida e o amor que se abrem diante dele — foi o que a senhora escreveu. Essa foi a sua ‘coisa’. E a minha revelação. Começando com ‘The Salley Gardens’.”
Ainda em tom sério, ela disse: “E a tampa da sua cabeça explodiu”.
Ele riu gostosamente por também ser citado. “Fiona, quase consigo tocar uma composição de Bach sem cometer nenhum erro. Toco o tema de Coronation Street. Estou lendo
o livro de Berryman Dream Songs. Vou participar de uma peça teatral e tenho que terminar todos os exames antes do Natal. E, graças à senhora, estou entupido de Keats!”
“Muito bem”, ela disse em voz baixa.
Ele se inclinou para a frente, apoiado nos cotovelos, os olhos escuros brilhando na luz pavorosa, todo o rosto parecendo fremir de expectativa, com um apetite incontrolável.
Depois de refletir por um instante, Fiona disse num sussurro: “Espere aqui”. Levantou-se e hesitou, parecendo prestes a mudar de ideia e que voltaria a se sentar.
Mas deu as costas para ele, atravessou a sala e foi para o corredor. Pauling se encontrava de pé, a alguns passos de distância, fingindo interesse pelas páginas
do livro de visitantes aberto sobre uma mesa com tampo de mármore. Ela lhe deu rápidas instruções em voz baixa, voltou à biblioteca e fechou a porta atrás de si.
Adam havia retirado a toalha de chá do ombro e examinava a série de atrações locais. Quando ela se sentou de novo, ele comentou: “Eu nunca tinha ouvido falar em
nenhum desses lugares”.
“Há muita coisa a ser descoberta.”
Passados os efeitos da interrupção, ela disse: “Quer dizer que você perdeu sua fé”.
Adam pareceu se contorcer. “Sim, talvez. Não sei. Acho que tenho medo de dizer isso em voz alta. Realmente não sei onde estou. Quer dizer, o troço é que, quando
a gente se afasta um pouquinho das testemunhas de Jeová, talvez seja melhor sair de vez. Por que substituir um conto de fadas por outro?”
“Talvez todo mundo precise de contos de fadas.”
Ele lhe deu um sorriso benevolente. “Não acho que a senhora esteja dizendo isso pra valer.”
Fiona sucumbiu a seu hábito de resumir a opinião dos outros. “Você viu seus pais chorando e está confuso, pois suspeita que o amor deles por você é maior do que
a crença que têm em Deus ou na vida após a morte. Você precisa se afastar. Perfeitamente natural para alguém da sua idade. Talvez curse uma universidade. Isso vai
ajudar. Mas ainda não entendo o que está fazendo aqui. E, o que é mais importante, o que vai fazer agora. Para onde é que você vai?”
A segunda pergunta o perturbou mais. “Tenho uma tia em Birmingham. Irmã da minha mãe. Ela vai me receber por uma ou duas semanas.”
“Ela está te esperando?”
“Mais ou menos.”
Fiona estava prestes a obrigá-lo a enviar uma nova mensagem, quando ele estendeu a mão por cima da mesa, enquanto ela, com igual rapidez, recolheu a sua para o colo.
Adam não foi capaz de encará-la ou de ser olhado de frente quando voltou a falar. Pôs as mãos na testa como se protegesse os olhos da luz. “Tenho uma pergunta a
lhe fazer. Quando a senhora a ouvir vai achar que é uma idiotice. Mas, por favor, não a rejeite simplesmente. Diga por favor o que pensa sobre ela.”
“O que é?”
Ele se dirigiu ao tampo da mesa. “Quero ir morar com a senhora.”
Ela esperou por mais alguma coisa. Nunca poderia ter previsto tal pedido. Mas agora parecia óbvio.
Adam ainda era incapaz de olhá-la nos olhos. Falou depressa, como se envergonhado com sua própria voz. Ele havia pensado em tudo. “Eu podia ajudar a senhora a cuidar
da casa, prestar serviços na rua. E a senhora podia me dar livros para ler, sabe como é, tudo o que achar que eu preciso aprender...”
Ele a havia seguido por um bom pedaço do país, pelas ruas, atravessado uma tempestade para lhe pedir aquilo. Era uma extensão lógica de sua fantasia sobre uma longa
viagem marítima com ela, de falarem o dia todo caminhando no convés ao balanço das ondas. Lógica e insana. E inocente. O silêncio os envolveu e uniu. Até mesmo o
tilintar do aquecedor parecia ter se reduzido, nenhum som vinha do lado de fora. Ele continuou a proteger o rosto do olhar de Fiona. Ela contemplou o encaracolado
de seu cabelo escuro, jovem e saudável, agora totalmente seco e reluzente.
Fiona disse com suavidade: “Você sabe que isso não é possível”.
“Eu não ia atrapalhar, quer dizer, interferir com a senhora e seu marido.” Por fim, ele recolheu as mãos e olhou para ela. “A senhora sabe, como alguém que alugasse
um quarto. Quando eu terminar meus exames, posso arranjar um emprego e pagar algum aluguel.”
Ela viu o quarto de hóspedes e as duas camas de solteiro, os ursinhos e outros bichos de pelúcia na cesta de vime, o armário de brinquedos tão cheio que uma das
portas não fechava. Tossiu de repente e se pôs de pé, atravessando toda a sala até a janela para dar a impressão de que olhava com atenção para fora. Por fim, sem
se voltar, ela disse: “Só temos um quarto livre e uma porção de sobrinhos e sobrinhas”.
“Quer dizer que essa é sua única objeção?”
Ouviu-se uma batida na porta e Pauling entrou. “Estará aqui dentro de dois minutos, minha senhora”, ele disse e saiu.
Ela se afastou da janela e voltou a se aproximar de Adam, abaixando-se para pegar a mochila dele do chão.
“Meu assistente vai levá-lo de táxi até a estação e lhe comprar uma passagem com destino a Birmingham para amanhã de manhã; depois vai levá-lo para um hotel perto
de lá.”
Após uma pausa, ele se levantou devagar e pegou a mochila das mãos dela. Apesar de sua altura, parecia uma criança pequena em estado de choque.
“Então é isso?”
“Gostaria que me prometesse que vai entrar em contato outra vez com sua mãe antes de pegar o trem. Diga a ela para onde está indo.”
Adam não respondeu. Ela o conduziu à porta e os dois saíram para o corredor. Ninguém à vista. Caradoc Ball e seus convidados estavam instalados na sala de visitas
com as portas fechadas. Ela o deixou esperando na biblioteca e subiu ao quarto para pegar algum dinheiro na bolsa. Ao voltar, viu toda a cena de sua posição elevada
no topo da imponente escadaria. A porta da frente estava aberta e o mordomo falava com o motorista. Atrás dele, abaixo dos degraus do pórtico, estava o táxi, a porta
aberta para liberar os alegres e sinuosos acordes da música orquestral árabe. Seu assistente atravessava o vestíbulo às pressas, supostamente a fim de impedir que
o mordomo criasse algum problema. Quanto a Adam Henry, ele ainda continuava na biblioteca, abraçado à sua mochila. Quando Fiona se aproximou dele, o mordomo, o motorista
e o assistente estavam do lado de fora, no pátio de cascalho, conversando junto ao carro, segundo ela esperava, sobre um hotel apropriado.
O rapaz começou a dizer: “Mas nós nem...”, e ela levantou a mão para fazê-lo se calar.
“Você precisa ir.”
Ela segurou delicadamente a gola do blusão leve dele e o puxou para si. Pretendia lhe dar um beijo no rosto, mas, como ergueu o corpo e Adam se curvou um pouco,
seus rostos se aproximaram, ele girou a cabeça e os lábios deles se tocaram. Ela poderia ter recuado, ter dado um passo atrás, se afastando dele. Em vez disso, se
demorou, inerme diante daquele momento. A sensação de pele contra pele anulou qualquer possibilidade de escolha. Caso fosse possível dar um beijo casto na boca,
foi isso que ela fez. Um contato fugaz, porém mais do que a mera sugestão de um beijo, mais do que uma mãe daria no filho adulto. Durou dois segundos, quem sabe
três. Tempo suficiente para sentir, na maciez e elasticidade dos lábios dele, todos os anos, toda a vida que a separava de Adam. Ao se afastarem, uma leve adesão
de pele poderia tê-los atraído de volta. Mas soavam passos no cascalho e nos degraus de pedra, cada vez mais próximos. Ela largou a gola dele e repetiu: “Você precisa
ir”.
Adam apanhou a mochila, que havia deixado cair no chão, e seguiu-a através do vestíbulo até o lado de fora, onde foram recebidos pelo ar fresco da noite. Ao pé da
escada, o motorista fez uma saudação amistosa e abriu a porta traseira do carro. O rádio havia sido desligado. Ela tinha pensado em dar o dinheiro a Adam, mas, numa
súbita e gratuita mudança de ideia, o entregou a Pauling. Ele balançou a cabeça e forçou um leve sorriso ao pegar o rolinho de notas. Com um movimento brusco dos
ombros, Adam deu a impressão de se desvencilhar de todos e mergulhou no banco de trás, sentando-se com a mochila no colo e olhando para a frente. Já se arrependendo
do que havia posto em movimento, Fiona deu a volta no carro para trocar um último olhar com ele. Adam sem dúvida reparou em seu movimento, mas afastou o rosto. Pauling
se sentou na frente, ao lado do motorista. O mordomo fechou a porta de Adam, empurrando-a num gesto insolente com as costas da mão. Ombros encurvados, Fiona subiu
às pressas os degraus de pedra rachados enquanto o táxi se distanciava.
* Investigação pública conduzida por lorde Leveson em 2011 e 2012 acerca das práticas e da ética da imprensa britânica após o escândalo das escutas telefônicas feitas
pela News International. (N. T.)
5.
Ela partiu de Newcastle depois de uma semana, sentenças proferidas ou suspensas à espera de laudos técnicos, deixando para trás litigantes felizes ou amargurados,
alguns dos quais com o parco consolo de poderem recorrer. No caso que descrevera para Charlie no jantar, ela havia concedido a guarda aos avós e permitido visitas
semanais sob supervisão à mãe e ao pai, separadamente, tudo passível de revisão ao fim de seis meses. Até lá, quem quer que a substituísse teria a vantagem de receber
relatórios acerca do bem-estar das crianças, das promessas dos pais de frequentar um programa de tratamento de viciados em drogas e do estado mental da mãe. A menininha
continuaria em sua escola, um curso elementar organizado pela Igreja da Inglaterra, onde era bem conhecida. Fiona considerou exemplar, naquele caso, a conduta das
instituições de atendimento a menores da cidade.
No final da tarde de sexta-feira, ela disse adeus aos funcionários do tribunal. Na manhã de sábado, no Leadman Hall, Pauling encheu o porta-malas do carro com documentos
acondicionados em caixas de papelão e com as togas dela penduradas em cabides. As bagagens pessoais empilhadas no banco traseiro e a juíza instalada na frente, rumaram
para Oeste, na direção de Carlisle, passando pelo Tyne Gap e cruzando a Inglaterra de um lado a outro, as Cheviots à direita e as Pennines à esquerda. Mas os dramas
da geologia e da história eram embotados pelo tráfego, por seu volume, suas rotinas e pelas placas de sinalização rodoviária características das ilhas britânicas.
Enquanto atravessavam Hexham muito lentamente, Fiona mantinha o celular sem uso na mão e, como fizera durante vários interlúdios ao longo da semana, pensava no beijo.
Que loucura impulsiva não ter se afastado! Loucura profissional e social. Em suas recordações, o contato real, carne contra carne, tendia a se prolongar no tempo.
Ela então tentava encurtar o momento para que voltasse a ser um beijinho inocente nos lábios. Mas o beijinho logo voltava a se inflar, até ela não saber o que ele
era, o que havia acontecido ou por quanto tempo ela correra o risco de uma desgraça. Caradoc Ball poderia ter passado pelo corredor a qualquer momento. Pior ainda,
um de seus convidados, sem as peias da lealdade tribal, poderia tê-la visto e contado a todo mundo. Pauling poderia ter voltado depois de conversar com o motorista
de táxi e a apanhado em flagrante. Nesse caso, a distância sensatamente construída entre eles, que tornava possível seu trabalho, teria sido destruída.
Como não era dada a impulsos irrefletidos, Fiona não entendia seu próprio comportamento. Deu-se conta de que havia muito mais a confrontar em sua mistura de sentimentos
confusos, porém, no momento, era o horror do que podia ter ocorrido, a transgressão ridícula e vergonhosa da ética profissional, que ocupavam sua mente. A ignomínia
que poderia ter se abatido sobre ela. Difícil crer que ninguém a vira, que estava abandonando incólume a cena do crime. Mais fácil acreditar que a verdade, dura
e negra como uma semente amarga, estava prestes a ser revelada: que ela tinha sido observada sem saber. Que agora mesmo, a centenas de quilômetros de distância,
o caso estivesse sendo discutido em Londres. Que em breve ouviria no telefone a voz pouco à vontade de um colega mais antigo: Ah, Fiona, escute, sinto muito, mas
creio que preciso alertá-la de que, hã, de que surgiu um probleminha. E então, esperando por ela no apartamento da Gray’s Inn, uma carta formal do investigador do
departamento de reclamações judiciais.


CONTINUA
“Os pais se opõem à solicitação com base em sua fé religiosa, que é manifestada serenamente e fruto de profunda convicção. O filho deles também objeta e demonstra
boa compreensão dos princípios religiosos, possuindo considerável maturidade e capacidade de articulação verbal para a sua idade.”
Descreveu a seguir a evolução da enfermidade, a leucemia, o tratamento usual que em geral produzia bons resultados. Mas dois dos remédios comumente administrados
causavam anemia, que necessitava ser combatida mediante transfusões de sangue. Resumiu os argumentos do médico assistente, enfatizando a contagem declinante de hemoglobina
e os prognósticos sombrios caso isso não fosse revertido. Ela podia confirmar pessoalmente que a falta de ar de A era agora patente.
A contestação ao pedido se fundamentava em três argumentos principais. O primeiro era o de que, como lhe faltavam três meses para completar dezoito anos e ele era
muito inteligente, conhecendo as consequências de sua decisão, Adam devia ser tratado como possuidor da “competência de Gillick”. Em outras palavras, seria tão capaz
de ter suas decisões reconhecidas quanto qualquer adulto. Em segundo lugar, que a recusa de tratamento médico constituía um direito humano básico, razão por que
a corte deveria mostrar relutância em intervir. E que, por fim, a fé religiosa de A era genuína e devia ser respeitada.
Fiona abordou os seguintes pontos. Agradeceu ao advogado dos pais de A por ter chamado sua atenção para a seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: o consentimento
de uma pessoa de dezesseis anos “será tão eficaz como o seria se ele já houvesse alcançado a maioridade”. Listou as condições relativas à “competência de Gillick”,
citando Scarman no processo. Reconheceu a distinção entre a circunstância de uma criança competente com menos de dezesseis anos consentir num tratamento, possivelmente
contra a vontade dos pais, e de uma criança de menos de dezoito recusar um tratamento passível de salvar sua vida. Do que percebera naquela noite, estaria ela convencida
de que A tinha uma compreensão absoluta das implicações de serem aceitas sua vontade e a de seus pais?
“Ele é sem dúvida uma criança excepcional. Posso mesmo dizer, como o fez uma das enfermeiras hoje à noite, que se trata de um menino adorável, com o que certamente
concordam seus pais. Ele tem uma capacidade de compreensão excepcional para um jovem de dezessete anos. Mas creio que possui um entendimento limitado da provação
que deve confrontar, do pavor que o invadiria à medida que seu sofrimento e sua impotência aumentassem. Na verdade, ele tem uma noção romântica do que seja sofrer.
Entretanto...”
Deixou a palavra pendurada no ar, e o silêncio na sala se adensou enquanto ela passava os olhos pelas anotações.
“Entretanto, em última análise não me deixo influenciar pelo fato de que ele tenha ou não a compreensão absoluta de seu estado. Em vez disso, sou guiada pela decisão
do juiz Ward, como era chamado na época, com referência ao menor E, em julgamento que também envolveu um adolescente que pertencia às testemunhas de Jeová. Naquela
oportunidade, ele afirmou: ‘Assim, é o bem-estar da criança que preside a minha decisão, e cumpre a mim decidir o que dita o bem-estar de E’. Essa observação foi
cristalizada na clara prescrição da Lei da Criança de 1989, que garante nas duas primeiras linhas a primazia do bem-estar do menor. Entendo ‘bem-estar’ como englobando
‘felicidade’ e ‘interesses’. Também sou obrigada a levar em conta a vontade de A. Como já observei, ele a expressou claramente a mim, como o fez seu pai perante
esta corte. De acordo com as doutrinas de sua religião, derivadas de uma interpretação peculiar de três passagens da Bíblia, A se recusa a aceitar a transfusão de
sangue que provavelmente salvará sua vida.
“É um direito fundamental dos adultos recusarem qualquer tratamento médico. Tratar um adulto contra sua vontade significa cometer o crime de agressão. A está próximo
da idade em que pode tomar uma decisão por sua conta e risco. O fato de estar preparado para morrer por suas crenças religiosas demonstra quão profundas elas são.
O fato de que seus pais estão preparados para sacrificar um filho muito querido por causa de sua fé revela o poder da crença a que as testemunhas de Jeová obedecem.”
Mais uma vez ela parou e o público aguardou.
“É precisamente esse poder que me faz refletir, porque A, com seus dezessete anos, conheceu muito pouco fora do turbulento terreno das ideias religiosas e filosóficas.
Não faz parte dos métodos dessa seita cristã encorajar o debate aberto e a discordância na congregação, cujos membros são por eles chamados — de forma correta, alguém
poderia dizer — de ‘as outras ovelhas’. Não creio que a mente de A e suas opiniões lhe pertençam inteiramente. Durante toda a infância ele esteve exposto sem interrupção
a uma visão do mundo monocromática e poderosa, a cujo condicionamento não poderia escapar. Não promoverá seu bem-estar sofrer uma morte desnecessária e agonizante,
para assim se transformar num mártir de sua fé. As testemunhas de Jeová, como outras religiões, têm uma noção nítida do que nos aguarda após a morte, e as predições
deles sobre o fim dos dias, sua escatologia, são também rígidas e muito detalhadas. Este tribunal não tem opinião alguma sobre a vida no Além, que, de qualquer forma,
certo dia A descobrirá, ou deixará de descobrir, por conta própria. Até lá, presumindo uma boa recuperação, o bem-estar dele será mais bem servido por seu amor pela
poesia, por sua recém-descoberta paixão pelo violino, pelo aproveitamento de sua viva inteligência e pelas manifestações de uma natureza brincalhona e afetuosa,
por toda a vida e o amor que se abrem à sua frente. Em suma, entendo que A, seus pais e os anciãos da igreja tomaram uma decisão que é hostil ao bem-estar de A,
o qual constitui a principal consideração desta corte. Ele precisa ser protegido de tal decisão. Precisa ser protegido de sua religião e de si mesmo.
“Esta não foi uma questão simples de resolver. Ponderei cuidadosamente a idade de A, o respeito devido à sua fé e a dignidade do indivíduo contida no direito de
recusar tratamento. A meu juízo, sua vida é mais preciosa do que essa dignidade.
“Em consequência, nego a vontade de A e de seus pais. Minha ordem é que não seja necessário obter a concordância para a transfusão de sangue do primeiro e segundo
contestantes, que são os pais, e a concordância para a transfusão de sangue do terceiro contestante, que é o próprio A. Desse modo, o hospital demandante está legalmente
autorizado a aplicar em A os tratamentos médicos que julgue necessários, no entendimento de que podem administrar sangue e produtos dele derivados mediante transfusão.”
* * *
Eram quase onze da noite quando Fiona iniciou a caminhada para casa ao sair do tribunal. Àquela hora, os portões estavam trancados e não era possível cortar caminho
por dentro da Lincoln’s Inn. Antes de dobrar na Chancery Lane, ela desceu um pequeno trecho da Fleet Street para comprar uma refeição pronta numa loja de conveniência
que ficava aberta a noite inteira. Na noite anterior, isso teria sido uma missão deprimente, mas ela estava sentindo a cabeça leve, talvez porque não se alimentava
decentemente fazia dois dias. Na loja apertada e excessivamente iluminada, os alimentos com embalagens berrantes — vermelhos e roxos explosivos, amarelos de manchas
solares — pulsavam nas prateleiras em sintonia com seus batimentos cardíacos. Ela comprou uma torta de peixe congelada e examinou várias frutas antes de se decidir.
No caixa, atrapalhou-se com o dinheiro, deixando cair moedas no chão. O ágil rapaz asiático que trabalhava na máquina registradora impediu com o pé que as moedas
rolassem e, lhe dando um sorriso protetor, as pôs de volta na mão dela. Fiona se imaginou através dos olhos dele ao observar a expressão de grande cansaço dela,
ignorando ou sendo incapaz de apreciar o corte elegante do casaco e vendo apenas uma dessas velhotas inofensivas que viviam e comiam sozinhas, já um tanto incapazes,
andando pelas ruas tarde da noite.
Ela estava cantando “The Salley Gardens” com os lábios fechados enquanto seguia pela High Holborn. A sacola contendo as frutas e o sólido invólucro do jantar se
chocava agradavelmente contra sua perna. A torta seria aquecida no micro-ondas enquanto ela se preparava para ir se deitar, e a comeria já de camisola em frente
ao canal de notícias; depois disso, nada se interporia entre ela e o sono. Nenhum estímulo químico. No dia seguinte havia um divórcio de gente graúda — um guitarrista
famoso e uma esposa quase famosa, cantora de música romântica, com um excelente advogado e desejando abocanhar boa parte dos vinte e sete milhões de libras do marido.
Algodão-doce comparado com hoje, mas o interesse da imprensa seria igualmente intenso, a lei igualmente solene.
Dobrou na Gray’s Inn, seu santuário. Era sempre gostoso ver como o barulho do tráfego ia cessando à medida que caminhava. Uma comunidade fechada de certo valor histórico,
uma fortaleza de advogados e magistrados que também eram músicos, amantes do bom vinho, pseudoescritores, pescadores que usavam como iscas moscas artificiais, contadores
de histórias. Um ninho de fofocas e perícia profissional, além de um jardim delicioso ainda visitado pelo fantasma de Francis Bacon. Ela amava o lugar e não queria
sair dali nunca.
Entrou no prédio, verificou que a minuteria estava ligada, subiu até o segundo andar, ouviu o rangido costumeiro do quarto e sétimo degraus e, ao atingir o último
lance da escada, viu tudo e entendeu imediatamente. Seu marido estava lá, se levantando naquele momento com um livro na mão; atrás dele, a mala encostada à parede
havia servido como uma espécie de assento, tendo ao lado, no chão, o paletó junto à valise aberta de onde escapavam diversos papéis. Trancado do lado de fora, trabalhando
enquanto esperava. E por que não? Roupas amarrotadas, semblante irritado. Trancado do lado de fora e esperando fazia muito tempo. Sem dúvida não estava ali para
buscar camisas limpas e livros, não se trazia a mala. Seu primeiro pensamento, melancólico e egoísta, foi que agora teria de dividir o jantar calculado para uma
só pessoa. Então pensou que não seria necessário. Preferia não comer.
Subiu os últimos degraus até alcançar o patamar, sem dizer uma única palavra enquanto procurava na bolsa as chaves, as chaves novas, e o contornava a caminho da
porta. Ele que falasse primeiro.
O tom foi de queixume: “Telefonei a noite toda”.
Ela abriu a porta e entrou sem olhar para trás; deixou as compras na cozinha e parou. Seu coração batia forte demais. Ouviu a respiração mal-humorada dele ao trazer
a bagagem para dentro. Se era para haver uma confrontação, que ela não desejava, não agora, a cozinha era um espaço confinado demais. Pegou sua pasta e foi rapidamente
para a sala de visitas, ocupando seu lugar de sempre na chaise longue. Espalhar algumas páginas em volta de onde estava sentada era uma forma de proteção. Sem isso,
não saberia o que fazer de si.
O ruído da mala sendo arrastada pelo corredor e para dentro do quarto soou para ela como uma jogada de abertura. E um insulto. Pela força do hábito, tirou o sapato
e apanhou um documento ao acaso. O guitarrista tinha uma casa de alto padrão em Marbella. A crooner de canções românticas queria a casa. Mas, antes mesmo do casamento,
ele a adquirira da ex-mulher, dando em troca a casa da família no centro de Londres. E essa primeira esposa a havia ganho num acerto de divórcio com um ex-marido.
Irrelevante, Fiona não se furtou a declarar.
Um estalido no assoalho a fez olhar para cima. Jack parou na porta antes de preparar um drinque. Vestia uma calça jeans e uma camisa branca desabotoada no peito.
Será que se imaginava desejável? Reparou que ele não fizera a barba. Até mesmo do outro lado da sala os pelos pareciam grisalhos. Patético, ambos eram patéticos.
Ele se serviu de um uísque e levantou a garrafa na direção dela. Fiona disse não com a cabeça. Ele deu de ombros e atravessou a sala para se sentar em sua poltrona.
Ela era uma desmancha-prazeres, não sabia aproveitar o bom momento. Ele se acomodou com um suspiro de quem se sente em casa. A poltrona dele, a chaise longue dela,
outra vez a vida de casados. Ela olhou para a página em sua mão, a narrativa feita pela esposa do mundo desejável do guitarrista, impossível de absorver. Fez-se
silêncio enquanto ele bebia e ela olhava através da sala para nada em especial.
Então ele disse: “Olha, Fiona, eu te amo”.
Depois de alguns segundos, ela disse: “Prefiro que você durma no quarto de hóspedes”.
Ele baixou a cabeça em sinal de concordância. “Vou pegar minha mala.”
Jack não se levantou. Ambos conheciam a vitalidade do não dito, cujos espíritos invisíveis dançavam agora em volta deles. Ela não lhe dissera para se manter fora
do apartamento, aceitando tacitamente que ele podia dormir lá. Ele não lhe dissera ainda se a especialista em estatística o havia mandado embora, ou se ele tinha
mudado de opinião, ou se já havia experimentado um êxtase suficiente para durar até o túmulo. A mudança das fechaduras não fora comentada. Ele provavelmente achou
estranho Fiona ter chegado tão tarde. Ela mal suportava olhar para ele. O que se fazia necessário agora era uma briga, com vários capítulos se estendendo ao longo
do tempo. Talvez houvesse algumas digressões rancorosas, o arrependimento de Jack poderia vir embrulhado em reclamações, talvez demorasse meses até ela recebê-lo
na cama, o fantasma da outra mulher era capaz de pairar entre eles para sempre. Mas eles provavelmente encontrariam uma forma de recuperar, mais ou menos, o que
haviam tido antes.
A ideia do imenso esforço envolvido e da previsibilidade do processo a cansou ainda mais. No entanto, ela estava obrigada a segui-lo. Como se, por contrato, devesse
escrever um manual de direito enfadonho mas necessário. Achou que, afinal, gostaria de tomar um drinque, embora isso se parecesse demais com uma celebração. Estava
muito longe de uma reconciliação. Acima de tudo, não aguentaria ouvir outra vez que ele a amava. Queria estar sozinha na cama, de costas no escuro, mordiscando uma
fruta, deixando o resto cair no chão, até apagar de todo. O que a impedia de fazer isso? Ela se pôs de pé e começou a recolher seus documentos. Foi quando ele começou
a falar.
Foi uma torrente, em parte desculpas, em parte autojustificações, algumas das quais ela já ouvira. A mortalidade dele, os anos de total fidelidade, sua avassaladora
curiosidade de saber como seria, mas depois que saiu naquela noite, depois que chegou ao apartamento de Melanie, não demorou muito para se dar conta do erro. Ela
era uma estranha, ele não a entendia. E quando foram para o quarto dela...
Fiona levantou a mão em sinal de alerta. Não queria ouvir nada sobre o quarto. Ele fez uma pausa, refletiu, e continuou. Ele era um imbecil, ele percebeu, por se
deixar levar por uma necessidade sexual, quando deveria ter dado meia-volta naquela noite no momento em que ela abriu a porta, porém se sentiu envergonhado e obrigado
a ir adiante.
Apertando sua pasta contra o estômago, Fiona ficou no centro da sala observando-o, se perguntando como fazê-lo parar. Surpreendia-se que mesmo agora, com o dramalhão
conjugal em sua cena de abertura, a canção irlandesa continuasse girando em seu cérebro, o ritmo mais rápido para acompanhar o compasso da fala de Jack, soando ao
mesmo tempo mecânica e festiva como se tocada por um realejo de rua. Seus sentimentos eram confusos, obscurecidos pela fadiga e de difícil definição enquanto sobre
ela jorravam as palavras chorosas do marido. Sentiu nem tanto fúria ou um ressentimento amargo, conquanto algo mais que mera resignação.
Sim, disse Jack, ao chegar ao apartamento de Melanie ele se sentiu estupidamente obrigado a seguir em frente com o que começara. “E, quanto mais preso na armadilha
eu me sentia, mais me dava conta de como eu era um idiota por ameaçar tudo o que temos, tudo o que construímos juntos, este amor que...”
“Tive um dia longo”, ela disse ao atravessar a sala. “Vou pôr sua mala no corredor.”
Parou na cozinha para pegar uma maçã e uma banana em meio às compras postas sobre a mesa. Carregá-las no caminho para o quarto trouxe de volta a felicidade relativa
que sentira no trajeto entre o trabalho e a casa. Os primórdios de certa tranquilidade. Difícil de resgatar agora. Abriu a porta e viu a mala dele de pé sobre as
rodinhas, placidamente posta junto à cama. Então lhe ocorreu com clareza o que sentia com a volta de Jack. Tão simples. Era desapontamento por ele não ter continuado
longe. Só por mais algum tempo. Apenas isso. Desapontamento.
4.
Embora os fatos não o confirmassem, ela teve a impressão de que, no final do verão de 2012, os rompimentos e as crises conjugais ou crises entre parceiros na Grã-Bretanha
cresceram como uma maré aberrante de primavera, varrendo lares do mapa, espalhando bens e sonhos esperançosos, afogando quem não tinha um forte instinto de sobrevivência.
Promessas de amor foram negadas ou reformuladas, bons companheiros se transformaram em ardilosos combatentes escudados atrás de advogados, sem se importar com os
custos. Objetos da casa antes desdenhados eram motivo de amargas disputas, a tranquila confiança de outrora substituída por “acertos” redigidos com todo o cuidado.
Na mente dos envolvidos, a história do casamento era reescrita para que ele fosse visto como fadado ao insucesso desde o começo, o amor repaginado como mera ilusão.
E os filhos? Peças de um jogo, elementos de barganha a serem usados pelas mães; pretexto para acusações de abusos feitas em geral pelas mães, às vezes pelos pais,
embora fossem com frequência fantasiosas ou inventadas com todo o cinismo; crianças em estado de choque indo e vindo semanalmente de uma casa para a outra com base
em acordos de guarda compartilhada, o esquecimento de casacos e caixas de lápis sendo comunicado por meio de advogados; crianças condenadas a verem o pai uma ou
duas vezes por mês; ou nunca, pois os homens mais audaciosos desapareciam na oficina de ferreiro de um novo e quente matrimônio para forjar outros rebentos.
E o dinheiro? As novas moedas eram as meias verdades e os apelos especiais. Maridos gananciosos contra esposas gananciosas, manobrando como nações ao final de uma
guerra, tentando salvar das ruínas todos os despojos que podiam antes da retirada final. Homens ocultavam recursos em contas no exterior, mulheres exigiam para sempre
uma vida de conforto. Mães impediam crianças de ver os pais apesar de ordens judiciais; pais se negavam a oferecer sustento aos filhos apesar de ordens judiciais.
Maridos agrediam esposas e filhos, esposas mentiam ou maquinavam ardis, um ou outro, ou ambos, bêbados, viciados em drogas ou psicóticos; e crianças eram obrigadas
a tomar conta de pais incapazes, crianças de fato vítimas de abusos sexuais ou mentais, ou ambos, seus depoimentos transmitidos numa tela ao tribunal. E já fora
da área de competência de Fiona, em casos julgados pelas cortes criminais e não pelas varas de família, crianças torturadas, mortas de fome ou por espancamento,
espíritos maus arrancados de dentro delas em ritos animistas, padrastos jovens e cruéis quebrando ossos de bebês sob os olhares abobalhados e cúmplices das mães,
e drogas, álcool, sujeira doméstica extrema, vizinhos indiferentes e seletivamente surdos para não ouvir os gritos, assistentes sociais descuidados ou atarefados
demais para intervir.
O trabalho das varas de família não cessava. Era por simples acaso que tantos conflitos conjugais caíssem no colo de Fiona. Pura coincidência que ela própria estivesse
vivendo um conflito similar. Naquele setor do Judiciário, não era comum mandar gente para a cadeia, mas, apesar disso, em certos momentos ela tinha vontade de ordenar
que fossem encarcerados aqueles demandantes que, à custa dos filhos, desejavam uma mulher mais jovem, um marido mais rico ou menos enfadonho, um bairro mais elegante,
novas aventuras sexuais, novos amores, uma nova visão do mundo, um bom reinício antes que fosse tarde demais. A simples busca do prazer. Vulgaridade moral. Sua falta
de filhos e a situação com Jack davam forma a esses devaneios e, naturalmente, eles não eram para valer. Entretanto, embora mergulhasse bem fundo em seu reino mental,
ela nunca deixava que suas decisões fossem afetadas pelo desprezo puritano que devotava aos homens e às mulheres que destruíam sua família e se persuadiam de que
agiam altruisticamente pelo bem de todos. Nesses experimentos intelectuais, ela não teria poupado as pessoas sem filhos ou, pelo menos, não Jack. Um período de contrição
atrás das grades por contaminar o casamento deles em nome de uma novidade? Por que não?
Porque, depois do retorno dele, a vida no apartamento da Gray’s Inn era lúgubre e silenciosa. Tinha havido brigas durante as quais ela pusera para fora alguns sentimentos
amargos. Doze horas depois esses sentimentos se renovavam tão ardentemente quanto os votos matrimoniais, nada mudava, o ar não ficava mais “limpo”. Ela permanecia
traída. Ele apimentava suas desculpas com velhas recordações de que ela o isolara, de que era fria. Disse até, certa noite bem tarde, que ela era “uma chata” e havia
“perdido a arte de sentir prazer”. De todas as acusações, essas foram as que mais a incomodaram, porque ela percebia serem verdadeiras, o que em nada diminuiu sua
raiva.
Pelo menos ele deixara de dizer que a amava. Na troca de palavras mais recente, dez dias antes, fora reiterado tudo o que haviam se dito antes, todas as recriminações,
todas as defesas, todas as frases bem formuladas que eram fruto de uma longa elucubração prévia, até que depuseram as armas, cansados um do outro e de si próprios.
Desde então, nada. Moviam-se o dia todo, cada qual cuidando de seus afazeres em diferentes partes da cidade e, quando confinados no apartamento, evitavam cuidadosamente
se tocar, como dançarinos numa quadrilha. Eram sucintos e competiam em matéria de cortesia quando forçados a decidir sobre questões referentes à casa, buscavam não
comer juntos, trabalhavam em cômodos separados, com a atenção prejudicada pela vívida consciência, através das paredes, da presença radioativa do outro. Sem necessidade
de discuti-lo, declinavam todos os convites conjuntos. O único gesto conciliatório dela consistiu em lhe dar uma nova chave.
De comentários evasivos e taciturnos dele, ela deduziu que, no quarto da especialista em estatística, Jack não transpusera os portões do paraíso. O que não era tão
tranquilizador. Ele provavelmente iria tentar a sorte em outro lugar, talvez já estivesse tentando, desta vez livre das tristes amarras da honestidade. Suas “aulas
de geologia” poderiam ser um bom subterfúgio. Ela se lembrava de haver prometido abandoná-lo se ele fosse em frente com Melanie. Mas Fiona não tinha tempo para desfazer
aquele complexo nó. E ainda estava indecisa, não confiava em seu atual estado de espírito. Caso ele houvesse lhe dado mais tempo depois de sair de casa, ela teria
chegado a uma decisão clara e se empenhado em terminar o casamento ou reconstruí-lo. Por isso, se entregou ao trabalho na forma usual e resolveu sobreviver dia após
dia o drama agora serenado de sua vida com Jack.
Quando uma de suas sobrinhas deixou lá as filhas durante um fim de semana, gêmeas idênticas de oito anos, as coisas ficaram mais fáceis, o apartamento ficou maior,
porque as atenções se voltaram para fora. Por duas noites Jack dormiu no sofá da sala de visitas sem que as meninas fizessem perguntas. Pertenciam a um tipo antiquado
de crianças que mantinham as costas bem retas, com modos solenes e afetuosos, embora sujeitas a brigas repentinas e explosivas. Uma ou outra — era fácil distinguir
as duas — procurava Fiona onde ela estivesse lendo e, postada diante dela, descansando uma mão confiante em seu joelho, despejava uma torrente prateada de historinhas,
reflexões e fantasias. Fiona replicava com suas próprias historinhas. Duas vezes, durante aquela visita, aconteceu que, enquanto ela falava, uma onda de amor pela
menina contraiu sua garganta e marejou seus olhos. Ela estava se sentindo velha e tola. Incomodava-a relembrar como Jack era bom com as crianças. Correndo o risco
de ter uma crise de coluna, como aconteceu certa vez com os três filhos do irmão de Fiona, ele fazia brincadeiras pesadas, de que as meninas participavam com acessos
de gritos inumanos. Em casa, a mãe delas, ressentida por causa do divórcio, jamais as jogava para o alto de cabeça para baixo. Ele as levou aos jardins para ensinar
uma versão de críquete que tinha inventado, além de ler uma longa história para elas na cama com vibrante energia cômica e talento na imitação das vozes.
Mas um domingo à noite, depois que as gêmeas foram levadas, os aposentos se encolheram, o ar ficou pesado e Jack saiu sem dar explicações — sem dúvida um ato hostil.
Para um encontro amoroso, ela imaginou, enquanto se ocupava arrumando o quarto de hóspedes para impedir que seu moral baixasse ainda mais. Repondo os brinquedos
macios na cesta de vime onde residiam, recuperando as contas de vidro e os desenhos rejeitados debaixo da cama, ela sentiu a melancolia mansa e envolvente, uma forma
de nostalgia instantânea, que a ausência repentina de crianças pode causar. Aquele sentimento durou até a manhã de segunda-feira e cresceu até se transformar numa
tristeza generalizada, que a perseguiu na caminhada para o trabalho. Só começou a se dissipar quando ela se sentou à sua mesa a fim de se preparar para o primeiro
caso da semana.
Em algum momento Nigel Pauling deve ter trazido a correspondência, porque a pilha de cartas se encontrava subitamente perto de seu cotovelo. Vendo o pequeno envelope
azul-claro em cima de todos, ela quase chamou seu assistente para abri-lo. Não estava com vontade de ler mais uma profusão de agressões verbais de algum analfabeto
ou ameaças de violência. Voltou ao trabalho, mas não conseguiu se concentrar. O envelope absurdo, as letras arredondadas, a falta de um código postal, o selo ligeiramente
torto — era demais. Mas, olhando uma vez mais, ela reparou no carimbo postal e foi tomada por uma repentina suspeita. Sopesou a carta por um instante e a abriu.
No momento seguinte, viu pela saudação que estava certa. Tinha aguardado vagamente por aquilo durante semanas. Havia falado com Marina Greene e soubera que ele estava
progredindo bem, já fora do hospital, recuperando em casa o tempo de estudos perdido e esperando voltar à sala de aulas em breve.
Três páginas azul-claras, escritas em cinco lados. O primeiro tinha o número sete dentro de um círculo posto no centro e no alto da página. Acima da data.
Meritíssima!
Esta é minha sétima carta e acho que vai ser a que porei no correio.
As primeiras palavras do parágrafo seguinte tinham sido riscadas.
Vai ser a mais simples e a mais curta. Só quero lhe descrever um acontecimento. Entendo agora como ele foi importante. Mudou tudo. Estou feliz por ter esperado porque
não gostaria que a senhora visse as outras cartas. Muito embaraçosas! Mas não tão terríveis como os nomes que lhe chamei quando Donna me anunciou sua decisão. Eu
estava certo de que a senhora tinha visto as coisas do meu jeito. Na verdade, guardei perfeitamente o que me disse, que era óbvio que eu sabia o que queria, e lembro
que lhe agradeci. Eu ainda estava tendo um ataque de raiva e xingando quando aquele horrível médico assistente, o dr. “me chama de Rodney” Carter, entrou com meia
dúzia de pessoas e o equipamento. Eles pensaram que iam precisar me segurar. Mas eu estava fraco demais e, mesmo furioso, sabia o que a senhora queria que eu fizesse.
Por isso, estendi o braço e eles começaram. A ideia de que o sangue de alguém entrava no meu corpo foi tão nojenta que vomitei na cama.
Mas não é isso que quero lhe contar. É o seguinte. Como mamãe não conseguiu assistir, ela ficou sentada do lado de fora do quarto e eu ouvia seu choro, o que me
deixou muito triste. Não sei quando papai apareceu. Acho que fiquei desmaiado algum tempo e, quando retomei os sentidos, os dois estavam ao lado da minha cama —
ambos chorando, e me senti ainda mais triste porque todos nós estávamos desobedecendo a Deus. Mas o importante, e levei algum tempo para entender isto, é que eles
estavam chorando de ALEGRIA! Estavam muito felizes, me abraçando e se abraçando, agradecendo a Deus e soluçando. Eu me senti muito esquisito e não entendi nada por
um ou dois dias. Nem pensava naquilo. Então comecei a pensar. Meus pais seguiram os ensinamentos, obedeceram aos anciãos, fizeram tudo certo e podem esperar ser
aceitos no paraíso aqui na Terra — e ao mesmo tempo podem me ter vivo sem que nenhum de nós seja expulso da Igreja. Transfusão feita, mas não por culpa nossa! Culpa
da juíza, culpa do sistema sem fé, culpa do que às vezes chamamos de “mundo”. Que alívio! Ainda temos nosso filho embora tivéssemos dito que ele devia morrer.
Não sei como interpretar isto. Foi uma fraude? Para mim foi uma mudança de direção. Estou resumindo a história. Quando eles me trouxeram para casa, tirei a Bíblia
do meu quarto, simbolicamente a botei virada para baixo numa cadeira do corredor e disse que eu não ia mais voltar ao Salão do Reino, que podiam me expulsar da igreja
se quisessem. Tivemos umas brigas horríveis. O sr. Crosby tem vindo me convencer. Nenhuma chance. Estou escrevendo para a senhora porque preciso mesmo falar com
a senhora, preciso ouvir sua voz calma e aproveitar sua mente clara para discutir comigo este assunto. Sinto que a senhora me levou para perto de alguma outra coisa,
alguma coisa de fato bonita e profunda, mas não sei bem o que é. A senhora nunca me disse no que acreditava, mas adorei quando sentou ao meu lado e executamos “The
Salley Gardens”. Ainda leio o poema todos os dias. Gosto de ser “jovem e tolo”, e, se não fosse pela senhora, eu não seria nem uma coisa nem outra, eu estaria morto!
Eu lhe escrevi uma porção de cartas bobas, penso na senhora o tempo todo e quero mesmo ver a senhora para nos falarmos outra vez. Sonho acordado sobre nós, fantasias
maravilhosas e impossíveis, como a de que vamos fazer uma viagem de volta ao mundo juntos num navio, em camarotes vizinhos, e que passeamos o dia todo pelo convés
conversando.
Meritíssima, me escreva por favor, apenas algumas palavras para dizer que leu esta carta e que não me odeia por tê-la escrito.
Sempre seu,
Adam Henry
P.S.: Esqueci de dizer que estou ficando cada dia mais forte.
Ela não respondeu, ou melhor, não pôs no correio o bilhete que levou mais de uma hora para escrever naquela noite. No quarto e último rascunho, pensou ter sido bastante
afetuosa, feliz de sabê-lo em casa e se sentindo melhor, contente por ele ter boas recordações da visita dela. Aconselhou-o a ser carinhoso com os pais. Era normal,
como adolescente, questionar as crenças com que havíamos sido criados, mas isso devia ser feito de modo respeitoso. Terminou dizendo, embora não fosse verdade, que
havia ficado atraída pela ideia de uma volta ao mundo num navio. Acrescentou que, quando jovem, tinha sonhos de fuga como o dele. Isso também não era verdade, pois
ela havia sido ambiciosa demais, mesmo com dezesseis anos, ávida demais por boas notas nos exames para pensar em escapar. As visitas como adolescente a seus primos
de Newcastle foram suas únicas aventuras. Olhando a cartinha no dia seguinte, não foi a afetuosidade que a impressionou, e sim a frieza, os conselhos esfarrapados,
a linguagem impessoal, as falsas lembranças. Releu a carta dele e foi mais uma vez tocada por sua inocência e calor humano. Melhor não mandar nada do que decepcioná-lo.
Se mudasse de opinião, poderia escrever mais tarde.
Estava se aproximando o momento em que realizaria o circuito itinerante, visitando cidades inglesas e antigos vilarejos na companhia de outro juiz especializado
em direito criminal e cível. Ela julgaria casos que, de outra forma, precisariam ser transferidos para os tribunais de Londres. Ela ficaria hospedada em locais especialmente
bem preservados, mansões impressionantes de interesse histórico e arquitetônico onde, em certos casos, as adegas eram lendárias e as cozinheiras provavelmente decentes.
As autoridades do lugar costumavam convidá-la para jantar. Ela e seu colega retribuiriam a gentileza nas casas onde estivessem instalados, convidando figuras eminentes
ou interessantes (havia uma clara distinção entre as duas categorias) da localidade. Os quartos de dormir eram bem mais sofisticados que o seu, as camas mais largas,
os lençóis de tecido mais fino. Em tempos mais felizes, havia, para uma mulher bem casada, um elemento de culpa e prazer sensual naquelas acomodações a sós. Agora,
ela ansiava escapar do silencioso e solene pas de deux em casa. E a primeira parada era sua cidade inglesa predileta.
Certa manhã no começo de setembro, uma semana antes de iniciar a viagem, ela recebeu uma segunda carta. Mesmo antes de lê-la sua preocupação desta vez foi maior,
porque o envelope azul se encontrava sobre o capacho do vestíbulo de seu apartamento, em meio a circulares e a uma conta de luz. Nenhum endereço, só o nome dela.
Bem simples para Adam Henry esperar no Strand ou na Carey Street e segui-la à distância.
Jack já tinha saído para o trabalho. Ela levou a carta para a cozinha e se sentou diante dos restos do café da manhã.
Meritíssima,
Nem sei o que escrevi porque não guardei uma cópia, mas tudo bem que a senhora não tenha respondido. Ainda preciso conversar com a senhora. Aqui estão minhas notícias
— grandes brigas com meus pais, fantástico estar de volta à escola, me sentindo melhor, me sentindo feliz e depois infeliz e feliz outra vez. Às vezes a ideia do
sangue de um estranho dentro de mim me causa enjoo, como se eu tivesse bebido a saliva de alguém. Ou pior. Não posso me livrar da ideia de que a transfusão é uma
coisa errada, mas não me importo mais. Tenho tantas perguntas para a senhora, mas nem tenho certeza de que se lembra de mim. A senhora deve ter tido dezenas de casos
desde o meu e feito um bocado de escolhas sobre outras pessoas. Sinto ciúme! Quis conversar com a senhora na rua, chegar perto e tocar no seu ombro. Não fiz isso
porque sou um covarde. Achei que a senhora podia não me reconhecer. A senhora também não precisa responder a esta carta — o que significa que espero que responda.
Por favor, não se preocupe, não quero atormentá-la ou nada parecido. Só sinto que a tampa da minha cabeça explodiu. Está saindo tudo!
Sinceramente seu,
Adam Henry
Fiona mandou imediatamente um e-mail para Marina Greene perguntando se ela podia encontrar um tempinho para visitar o rapaz num acompanhamento de rotina e depois
lhe enviar um relatório. Recebeu o retorno antes do fim do dia. Marina se encontrara com Adam durante a tarde na escola, onde ele estava começando um período de
estudos especiais a fim de se preparar para os exames antes do Natal. Ficou meia hora com ele, que havia engordado e estava corado. Mostrou-se animado, até mesmo
“engraçado e travesso”. Havia alguns problemas em casa, a maior parte sobre diferenças religiosas com os pais, mas ela não achou nada de estranho nisso. Em particular,
o diretor lhe disse que Adam, depois de voltar do hospital, havia trabalhado bastante para recuperar o tempo perdido. Seus professores consideravam que ele estava
progredindo otimamente. Contribuía bastante para as atividades em sala de aula, nenhum problema de comportamento. Em suma, tudo corria bem. Tranquilizada, Fiona
decidiu não escrever para ele.
Uma semana depois, na manhã da segunda-feira em que deveria viajar para o nordeste da Inglaterra, ocorreu um desvio minúsculo na falha geológica conjugal, um movimento
quase tão imperceptível quanto o deslocamento das placas tectônicas. Foi tácito, algo não reconhecido abertamente. Mais tarde, quando se encontrava no trem e repassou
tudo, o instante pareceu se situar na fronteira entre o real e o imaginado. Será que ela podia confiar em sua memória? Eram sete e meia quando entrara na cozinha.
Jack estava de pé junto ao balcão, de costas para ela, despejando grãos de café no moedor. A pasta dela já estava no corredor e Fiona cuidava de recolher uns poucos
documentos que faltavam. Como de hábito, ficou relutante em dividir um espaço pequeno com ele. Pegou a echarpe das costas da cadeira e saiu para continuar a busca
na sala de visitas.
Voltou alguns minutos depois. Jack tirava uma jarra de leite do micro-ondas. Eles eram exigentes em matéria de café da manhã e, no curso dos anos, seus gostos tinham
convergido. Gostavam de café forte feito com grãos colombianos de alta qualidade, servido em canecas brancas e altas de borda fina, com leite morno, e não quente.
Ainda de costas para ela, Jack derramou leite em seu café e depois se voltou com a caneca erguida e ligeiramente estendida na direção dela. Nada na expressão de
Jack sugeria que ele estava lhe oferecendo a caneca, e ela nem assentiu nem recusou com a cabeça. Os olhos dos dois se encontraram por um instante, e então ele depositou
a caneca na mesa de pinho e empurrou-a uns cinco centímetros na direção dela. Isso não significava necessariamente muito, pois, em suas tensas manobras para se evitar,
ambos permaneciam escrupulosamente corteses, como se cada qual estivesse procurando superar o outro em se mostrar razoável, os dois irrepreensíveis graças à ausência
de rancor. Não faria sentido preparar um bule de café só para uma pessoa. Mas há maneiras e maneiras de pôr uma caneca na mesa, desde a batidinha peremptória da
porcelana contra a madeira até o pouso silencioso e cuidadoso, assim como há maneiras e maneiras de aceitar uma caneca, coisa que ela fez mansamente, em câmera lenta,
sem se afastar tão logo tomou um gole, ou não tão de imediato quanto o teria feito em qualquer outra manhã. Passaram-se alguns segundos de silêncio, em seguida pareceu
que isso era o mais longe que ambos estavam preparados para ir, que o momento continha coisas demais para eles e que tentar algo além os faria recuar. Jack se afastou
a fim de preparar uma caneca para ele, enquanto Fiona se afastou para ir buscar alguma coisa no quarto. Moveram-se um pouco mais devagar do que era comum, talvez
quase com relutância.
No começo da tarde, ela chegou a Newcastle. Um motorista esperava do lado de lá das catracas para levá-la aos tribunais de Quayside. Nigel Pauling a aguardava na
entrada dos magistrados e a conduziu ao gabinete que ela ocuparia. Ele chegara de Londres de manhã com os documentos e as togas — os paramentos completos, como disse
—, porque Fiona participaria da Corte da Rainha além da Vara da Família. O assistente do tribunal apareceu para dar as boas-vindas formais, seguido do funcionário
que cuidava da agenda, com o qual ela repassou os casos a serem ouvidos nos dias seguintes.
Como havia outras pequenas matérias a tratar, só por volta das quatro da tarde Fiona ficou livre para sair. A previsão era de que uma tempestade de verão chegaria
do sudoeste no começo da noite. Ela mandou que o motorista esperasse e deu uma caminhada pelo calçadão junto ao rio, passando por baixo da ponte Tyne e ao longo
de Sandhill, pelos novos cafés ao ar livre e por jardins floridos junto a sólidos prédios comerciais com fachadas clássicas. Subiu as escadas até Castle Garth e
parou no alto para olhar o rio que ficara para trás. Ela tinha uma queda por aquela mistura exuberante de peças poderosas de ferro fundido, aço e vidro pós-industrial,
de velhos armazéns salvos da decrepitude por uma fantasia juvenil de cafés e bares. Compartilhava um passado com Newcastle e se sentia bem lá. Na adolescência, durante
as recorrentes doenças de sua mãe, ia passar algum tempo ali com suas primas prediletas. Tio Fred, dentista, era o homem mais rico que ela conhecia. Tia Simone ensinava
francês numa escola primária. A casa era agradavelmente caótica, uma libertação dos domínios de sua mãe em Finchley, encerados ao exagero e insuficientemente arejados.
As primas, de sua idade, eram alegres e aventurosas, obrigando-a a sair à noite em missões aterradoras que incluíam a ingestão de bebidas e quatro músicos dedicados
com cabelos até a cintura e bigodes de pontas caídas, que pareciam transviados mas provaram ser gente boa. Seus pais ficariam horrorizados de saber que a filha estudiosa
de dezesseis anos era presença assídua em certos bares, que bebia licor de cereja e cuba-libre, e tivera seu primeiro amante. E, juntamente com as primas, ela era
a tiete fiel, e tolerada como assistente novata, de uma banda de blues mal equipada e mal remunerada, ajudando a carregar amplificadores e peças da bateria numa
caminhonete enferrujada que vivia enguiçando. Com frequência afinava as guitarras. Sua emancipação tinha muito a ver com o fato de que aquelas visitas, além de ocasionais,
nunca duravam mais que três semanas. Se permanecesse por mais tempo — nunca uma possibilidade real —, talvez fosse até autorizada a cantar os blues. Poderia ter
se casado com Keith, o principal cantor do grupo e tocador de gaita, que tinha um braço atrofiado e a quem ela adorava timidamente.
Tio Fred mudou seu consultório para o sul do país quando ela tinha dezoito anos, o caso com Keith acabou em lágrimas e em alguns poemas de amor que ela não enviou.
Fiona jamais voltou a viver esse tipo de relacionamento arriscado e tremendamente divertido, o qual se tornou parte inseparável da ideia que fazia de Newcastle.
Não seria possível reproduzi-lo em Londres, a sede de suas ambições profissionais. Por vários anos ela voltara ao Nordeste sob diversos pretextos, além de quatro
vezes para cumprir o circuito judiciário. Sempre fazia bem ao seu espírito se aproximar da cidade pela alta ponte Stephenson sobre o rio Tyne, chegando com o espírito
excitado de uma adolescente, descendo do trem na gare central sob os três grandes arcos criados por John Dobson e saindo pela extravagante porte cochère neoclássica
desenhada por Thomas Prosser. Foi seu tio dentista, recebendo-a com seu Jaguar verde e suas primas impacientes, quem a ensinou a apreciar a gare e os tesouros arquitetônicos
da cidade. Ela nunca se desfizera da impressão de estar no exterior, de se encontrar numa cidade-Estado báltica caracterizada por um curioso otimismo e orgulho.
O ar era mais revigorante, a luz de um cinzento amplo e luminescente, os habitantes amistosos, porém mais incisivos, autoconscientes ou ironizando a si próprios
como atores numa comédia. Perto do sotaque deles, o dela parecia tenso e artificial. Se, como Jack insistia, a geologia moldava a variedade de tipos e de destinos
dos ingleses, então os moradores da cidade eram feitos de granito e ela de calcário friável. Mas, com sua paixonite juvenil pela cidade, com suas primas, a banda
e o primeiro namorado, acreditava que poderia mudar, se tornar mais autêntica, mais verdadeira, uma genuína cidadã daquela região. Anos depois, recordar-se de tal
ambição ainda a fazia sorrir. No entanto, o sentimento lá estava em cada regresso, uma vaga noção de renovação, de um potencial não explorado em outra vida — e isso
mesmo às vésperas de fazer sessenta anos.
O carro em cujo assento ela se reclinou era um Bentley da década de 1960, e seu destino o Leadman Hall, situado dentro de seu próprio parque a um quilômetro e meio
dos portões que ela agora transpunha. Logo passou por um campo de críquete, depois por uma alameda de faias com as copas já agitadas pelo vento que crescia, mais
tarde por um lago tomado por plantas aquáticas. O palacete, no estilo do arquiteto Andrea Palladio e havia pouco tempo pintado de um branco brilhante demais, tinha
doze quartos e nove empregados para servir a dois magistrados do Tribunal Superior em seu circuito itinerante. Pevsner, conhecido historiador da arte arquitetônica,
aprovara sem grande entusiasmo a estufa, e nada mais. Somente uma anomalia burocrática havia preservado Leadman de ser destruído por medida de economia do governo,
mas o jogo estava chegando ao fim porque aquele era o último ano em que a construção iria contar com o Judiciário. O palacete, alugado algumas semanas por ano de
uma família da região com interesses históricos na mineração de carvão, servia principalmente como centro de conferências e local para festas de casamento. Seu campo
de golfe, quadras de tênis e piscina externa aquecida eram, como agora se reconhecia, luxos desnecessários para juízes de passagem e muito atarefados. Do ano seguinte
em diante, uma empresa de táxi da cidade forneceria um espaçoso Vauxhall para substituir o Bentley. As acomodações seriam num hotel do centro de Newcastle. Os magistrados
da Vara Criminal, que às vezes mandavam para a prisão por longos períodos homens da região com parentes assustadores, tinham clara preferência pelo isolamento de
um palacete. Mas ninguém era capaz de argumentar em favor de Leadman sem dar a impressão de que o fazia por puro interesse.
Pauling esperava com a governanta no pátio de cascalho junto à entrada principal. Ele desejava dar um sentido especial àquela derradeira visita. Aproximou-se da
porta de trás do carro com um floreio irônico e bateu os calcanhares. Como sempre, a governanta era nova, uma polonesa de uns vinte e poucos anos, calculou Fiona,
mas seu olhar era direto e frio, e ela pegou com firmeza a mala mais pesada da juíza até que Pauling a tomou de sua mão. Lado a lado, o assistente e a governanta
conduziram Fiona ao quarto do primeiro andar que ela considerava como seu. Ficava na frente da casa, com três janelas altas que davam para a alameda de faias e para
o trecho do lago invadido por ervas. Além do quarto de quase dez metros de comprimento, havia a sala de estar com uma mesa de trabalho. O banheiro, no entanto, ficava
no fim de um corredor e três degraus atapetados abaixo do nível do quarto. Na última vez em que Leadman tinha sido modernizado, a proliferação generalizada de lavatórios
e chuveiros ainda não começara.
A tempestade chegou quando Fiona saiu do banho. Vestida com um penhoar, plantou-se diante da janela central observando as pancadas de chuva, cortinas fantasmagóricas
que corriam velozes e, por segundos, ocultavam os campos. Viu o galho mais alto de uma das faias próximas se partir e começar a cair, ficando de cabeça para baixo
e balançando ao ser contido pelos galhos mais baixos, até mergulhar de novo, voltar a se emaranhar e ser enfim liberado pelo vento para se chocar com um baque contra
o solo. Quase tão alto quanto o silvar da chuva no cascalho era o coro de gemidos nas calhas do telhado. Ela acendeu as luzes e começou a se vestir. Já estava atrasada
dez minutos para o xerez na sala de visitas.
Quatro homens de terno preto e gravata, cada qual com seu gim e sua tônica, pararam de conversar e se ergueram das poltronas quando ela entrou. Um garçom de paletó
branco engomado foi preparar o drinque dela, enquanto Caradoc Ball da Corte da Rainha, colega de Fiona encarregado dos casos criminais, apresentou-a aos demais —
um professor de jurisprudência, um homem que tinha negócios no setor de fibras ópticas e alguém que trabalhava para o governo na conservação da costa marítima. Todos
de alguma forma eram ligados a Ball. Ela não convidara ninguém para a primeira noite. Seguiu-se a conversa obrigatória sobre o clima tempestuoso. Depois, uma digressão
sobre como as pessoas de mais de cinquenta anos e todos os norte-americanos ainda viviam no mundo das temperaturas medidas em Fahrenheit. Depois, como os jornais
britânicos, para obter o máximo de impacto, noticiavam as baixas temperaturas em graus Celsius e as quentes em Fahrenheit. Durante todo o tempo ela se perguntava
por que o rapaz curvado sobre o carrinho de bebidas estava demorando tanto. Ele trouxe o drinque dela justamente quando estava sendo lembrada a já distante transição
para as moedas decimais.
Fiona já sabia pelo próprio Ball que ele estava em Newcastle para realizar o novo julgamento de um caso de assassinato no qual um homem era acusado de haver matado
sua mãe em casa com golpes de porrete devido aos maus-tratos que ela infligia à filha mais jovem, meia-irmã do réu. A arma do crime não tinha sido encontrada e a
prova de DNA era inconclusiva. A defesa argumentava que a mulher havia sido morta por um intruso. O julgamento fora anulado quando se descobriu que um jurado tinha
revelado aos outros membros do júri informações que colhera na internet pelo celular. Ele encontrara a reportagem de um jornal sensacionalista, publicada cinco anos
antes, sobre a prévia condenação do homem por agressão violenta. Na nova era de acesso digital, alguma coisa precisava ser feita para “esclarecer” certas questões
aos jurados. O professor de jurisprudência havia pouco tempo apresentara um estudo à Comissão Jurídica, possivelmente objeto da conversa que Fiona interrompera ao
entrar na sala. Agora ela foi retomada. O especialista em fibras ópticas perguntou como seria possível impedir que os jurados buscassem informações na privacidade
de suas casas ou conseguissem que um membro da família o fizesse por eles. Relativamente simples, segundo o professor. Os próprios jurados se policiariam. Seriam
obrigados, sob pena de prisão, a apontar qualquer um deles que discutisse matérias não apresentadas perante o tribunal. Dois anos no máximo pela divulgação de tais
matérias, seis meses no máximo por não informar a violação. A Comissão daria seu parecer conclusivo no ano seguinte.
Nesse momento, o mordomo os convidou a seguirem para a mesa de jantar. Embora não pudesse ter mais de trinta anos, seu rosto era doentiamente pálido, como se coberto
de talco. Tão branco quanto uma aspirina — Fiona certo dia ouvira uma proprietária rural francesa dizer. Mas o mordomo não parecia doente pois mantinha uma atitude
impessoal e segura. Enquanto aguardava à pequena distância, com a cabeça inclinada para a frente em sinal de atenção, eles terminaram seus drinques e, seguindo Fiona,
atravessaram uma porta de folha dupla rumo à sala de jantar. A mesa, que poderia comportar trinta pessoas, estava posta para cinco numa extremidade solitária. A
sala era recoberta de lambris, pintados de um laranja quase fluorescente, com desenhos de flamingos calculadamente espaçados. Os convivas encontravam-se agora no
lado norte da casa, atingido em cheio pelo vento e onde as três janelas de guilhotina sacudiam, produzindo um ruído surdo. O ar estava frio e úmido. Havia um buquê
de flores secas na lareira. O mordomo explicou que ela havia sido bloqueada muitos anos antes, mas que ele traria um aquecedor elétrico. Eles avaliaram a distribuição
dos assentos e, após alguns momentos de polida incerteza, concordaram que, em respeito à simetria, Fiona se sentaria à cabeceira.
Até então ela mal falara. O mordomo pálido serviu um vinho branco. Dois garçons trouxeram patê de arenque e torradas finas. À esquerda dela estava o perito em conservação,
Charlie, um cinquentão gordo, careca e bem-humorado. Enquanto os outros continuavam a falar sobre jurados, ele perguntou cortesmente sobre o trabalho dela. Resignada
a uma rodada de conversinha fiada, Fiona explicou em termos gerais o trabalho da Vara de Família. Mas Charlie queria detalhes. Que tipo de decisão iria tomar no
dia seguinte? Ela se sentia mais feliz falando sobre um caso específico. Uma instituição local desejava ficar com a guarda de duas crianças, um menino de dois anos
e uma menina de quatro. A mãe era alcoólatra e também viciada em anfetaminas. Sofria crises psicóticas durante as quais imaginava estar sendo espionada por lâmpadas
elétricas. Tornara-se incapaz de cuidar de si própria ou das crianças. O pai, separado dela, tinha permanecido distante, mas agora alegava que ele e sua namorada
podiam cuidar das crianças. Ele também enfrentava problemas com drogas e era fichado na polícia, embora tivesse direito sobre os filhos. Um assistente social se
pronunciaria no dia seguinte perante o tribunal acerca da adequação dele como pai. Os avós maternos adoravam as crianças, eram competentes e queriam cuidar delas,
porém não tinham amparo legal para isso. A instituição local, cujo serviço de atendimento a menores havia sido criticado num relatório oficial, se opunha aos avós
por razões que ainda não estavam claras. As três partes — mãe, pai e avós — estavam amargamente divididas. Outra complicação era existirem opiniões contraditórias
acerca da menina de quatro anos. Um pediatra disse que ela tinha necessidades especiais, outro, contratado pelos avós, acreditava que, conquanto a menina estivesse
perturbada pelo comportamento da mãe e abaixo do peso normal por causa das refeições em horários irregulares, seu desenvolvimento era normal.
Havia, Fiona disse, muitos outros casos similares agendados para aquela semana. Charlie levou a mão à testa e fechou os olhos. Que encrenca! Se ele tivesse de tomar
uma decisão na manhã seguinte em um só caso como aquele, ficaria acordado a noite toda, roendo as unhas e abusando das bebidas oferecidas no quarto do hotel. Fiona
perguntou por que ele estava lá. Charlie tinha vindo de Whitehall a fim de persuadir um grupo de fazendeiros da costa a se unir a algumas organizações de proteção
ambiental, para permitirem que suas pastagens voltassem a ser cobertas pela água do mar, retornando à condição de pântanos salgados. Essa era de longe a melhor e
mais barata forma de defesa contra a inundação da costa, maravilhosa para a vida selvagem, sobretudo pássaros, e boa também para o turismo de pequena escala. Mas
havia uma forte oposição de certos segmentos do setor agrícola, embora os fazendeiros fossem ser bem recompensados. Durante todo o dia o tinham calado aos berros
nas reuniões. Corria o rumor de que o plano era compulsório. Ninguém acreditava nele quando dizia que não era assim. Viam-no como um representante do governo central,
com o qual os fazendeiros estavam irritados por uma série de outras questões que não eram de sua alçada. No final, tinha levado uns trancos num corredor. Um indivíduo
“com metade da minha idade e o dobro da minha força” havia agarrado sua gola e murmurado alguma coisa com o sotaque local que ele não tinha entendido. Melhor assim.
Amanhã ele voltaria e tentaria de novo. Estava certo de que no final iria conseguir o que queria.
Bom, isso soava a ela como um dos círculos especiais do inferno, bem pior do que qualquer mãe psicótica. Os dois estavam dando umas risadinhas por conta dessa observação,
quando perceberam que os outros três tinham abandonado a conversa deles e os ouviam.
Caradoc Ball, que era um velho colega de escola de Charlie, disse: “Espero que você saiba que está falando com uma juíza muito eminente. Certamente se lembra do
caso dos irmãos siameses”.
Todos se lembravam e, à medida que os pratos foram retirados e o boeuf en croûte servido com um Château Latour, conversaram e fizeram perguntas a ela sobre o famoso
caso. Fiona lhes disse tudo o que queriam saber. Todos tinham uma opinião, mas, como era a mesma, logo passaram a discutir a paixão que a história suscitara nos
jornais e como eles a haviam disputado. Dali foi um passo para uma troca de fofocas sobre os lances mais recentes da Investigação Leveson.* Terminaram a carne. À
frente, como dizia o cartão com o menu, havia um pudim de pão. Logo, logo, pensou Fiona, estariam discutindo a sabedoria ou a loucura de o Ocidente não mandar tropas
para a Síria. Era impossível calar Caradoc sobre aquele tema. E, de fato, ele o introduzia quando se deram conta de vozes ecoando no corredor. Pauling e o mordomo
de rosto branco pararam no umbral da porta e depois se aproximaram dela.
O mordomo se pôs de lado, com um olhar contrariado, enquanto Pauling, depois de pedir desculpas a todos com um aceno de cabeça, inclinou-se por cima da cadeira de
Fiona e disse baixinho perto de seu ouvido: “Minha senhora, perdão por interromper, mas infelizmente há um assunto que exige sua atenção imediata”.
Ela limpou os lábios com o guardanapo e se pôs de pé. “Me desculpem, senhores.”
Sem mudar de expressão, todos se levantaram e ela atravessou a sala na frente dos dois homens. Já do lado de fora, ela disse ao mordomo: “Ainda estamos esperando
por aquele aquecedor”.
“Vou pegar agora.”
Havia algo impertinente em seu jeito ao dar meia-volta, e ela olhou para seu assistente com as sobrancelhas erguidas.
Mas ele simplesmente disse: “Por aqui”.
Ela o seguiu através do corredor e do que fora antes uma biblioteca. As estantes estavam repletas de livros comprados em lojas de objetos usados, do tipo que os
hotéis adquirem por metro para criar uma atmosfera respeitável em certos ambientes.
Pauling disse: “É o rapaz das testemunhas de Jeová, Adam Henry. A senhora se lembra do caso da transfusão? Parece que ele a seguiu até aqui. Andou na chuva, está
completamente encharcado. Queriam expulsá-lo, mas achei que a senhora precisava ser informada antes”.
“Onde ele está?”
“Na cozinha. É mais quentinho lá.”
“Melhor trazê-lo aqui.”
Tão logo Pauling saiu, ela se levantou e caminhou lentamente pela sala, consciente de que seu ritmo cardíaco tinha aumentado. Caso houvesse respondido às cartas,
não estaria agora defrontando aquilo. Defrontando o quê? O envolvimento desnecessário com um caso fechado. E mais que isso. Mas não havia tempo para refletir. Ouviu
passos se aproximando.
A porta se abriu e Pauling fez o rapaz passar. Ela nunca o vira fora da cama e se surpreendeu com sua altura, bem mais de um metro e oitenta. Vestia seu uniforme
escolar, calça de flanela cinza, suéter cinza, camisa branca, um blusão bem leve, encharcado da cabeça aos pés, o cabelo em desordem depois de ter sido enxugado.
Uma pequena mochila pendia frouxamente de sua mão. O toque patético era dado pela toalha de chá do Leadman, com ilustrações dos pontos turísticos locais, envolvendo suas costas para aquecê-lo.


CONTINUA

Nesse momento, o mordomo os convidou a seguirem para a mesa de jantar. Embora não pudesse ter mais de trinta anos, seu rosto era doentiamente pálido, como se coberto
de talco. Tão branco quanto uma aspirina — Fiona certo dia ouvira uma proprietária rural francesa dizer. Mas o mordomo não parecia doente pois mantinha uma atitude
impessoal e segura. Enquanto aguardava à pequena distância, com a cabeça inclinada para a frente em sinal de atenção, eles terminaram seus drinques e, seguindo Fiona,
atravessaram uma porta de folha dupla rumo à sala de jantar. A mesa, que poderia comportar trinta pessoas, estava posta para cinco numa extremidade solitária. A
sala era recoberta de lambris, pintados de um laranja quase fluorescente, com desenhos de flamingos calculadamente espaçados. Os convivas encontravam-se agora no
lado norte da casa, atingido em cheio pelo vento e onde as três janelas de guilhotina sacudiam, produzindo um ruído surdo. O ar estava frio e úmido. Havia um buquê
de flores secas na lareira. O mordomo explicou que ela havia sido bloqueada muitos anos antes, mas que ele traria um aquecedor elétrico. Eles avaliaram a distribuição
dos assentos e, após alguns momentos de polida incerteza, concordaram que, em respeito à simetria, Fiona se sentaria à cabeceira.
Até então ela mal falara. O mordomo pálido serviu um vinho branco. Dois garçons trouxeram patê de arenque e torradas finas. À esquerda dela estava o perito em conservação,
Charlie, um cinquentão gordo, careca e bem-humorado. Enquanto os outros continuavam a falar sobre jurados, ele perguntou cortesmente sobre o trabalho dela. Resignada
a uma rodada de conversinha fiada, Fiona explicou em termos gerais o trabalho da Vara de Família. Mas Charlie queria detalhes. Que tipo de decisão iria tomar no
dia seguinte? Ela se sentia mais feliz falando sobre um caso específico. Uma instituição local desejava ficar com a guarda de duas crianças, um menino de dois anos
e uma menina de quatro. A mãe era alcoólatra e também viciada em anfetaminas. Sofria crises psicóticas durante as quais imaginava estar sendo espionada por lâmpadas
elétricas. Tornara-se incapaz de cuidar de si própria ou das crianças. O pai, separado dela, tinha permanecido distante, mas agora alegava que ele e sua namorada
podiam cuidar das crianças. Ele também enfrentava problemas com drogas e era fichado na polícia, embora tivesse direito sobre os filhos. Um assistente social se
pronunciaria no dia seguinte perante o tribunal acerca da adequação dele como pai. Os avós maternos adoravam as crianças, eram competentes e queriam cuidar delas,
porém não tinham amparo legal para isso. A instituição local, cujo serviço de atendimento a menores havia sido criticado num relatório oficial, se opunha aos avós
por razões que ainda não estavam claras. As três partes — mãe, pai e avós — estavam amargamente divididas. Outra complicação era existirem opiniões contraditórias
acerca da menina de quatro anos. Um pediatra disse que ela tinha necessidades especiais, outro, contratado pelos avós, acreditava que, conquanto a menina estivesse
perturbada pelo comportamento da mãe e abaixo do peso normal por causa das refeições em horários irregulares, seu desenvolvimento era normal.
Havia, Fiona disse, muitos outros casos similares agendados para aquela semana. Charlie levou a mão à testa e fechou os olhos. Que encrenca! Se ele tivesse de tomar
uma decisão na manhã seguinte em um só caso como aquele, ficaria acordado a noite toda, roendo as unhas e abusando das bebidas oferecidas no quarto do hotel. Fiona
perguntou por que ele estava lá. Charlie tinha vindo de Whitehall a fim de persuadir um grupo de fazendeiros da costa a se unir a algumas organizações de proteção
ambiental, para permitirem que suas pastagens voltassem a ser cobertas pela água do mar, retornando à condição de pântanos salgados. Essa era de longe a melhor e
mais barata forma de defesa contra a inundação da costa, maravilhosa para a vida selvagem, sobretudo pássaros, e boa também para o turismo de pequena escala. Mas
havia uma forte oposição de certos segmentos do setor agrícola, embora os fazendeiros fossem ser bem recompensados. Durante todo o dia o tinham calado aos berros
nas reuniões. Corria o rumor de que o plano era compulsório. Ninguém acreditava nele quando dizia que não era assim. Viam-no como um representante do governo central,
com o qual os fazendeiros estavam irritados por uma série de outras questões que não eram de sua alçada. No final, tinha levado uns trancos num corredor. Um indivíduo
“com metade da minha idade e o dobro da minha força” havia agarrado sua gola e murmurado alguma coisa com o sotaque local que ele não tinha entendido. Melhor assim.
Amanhã ele voltaria e tentaria de novo. Estava certo de que no final iria conseguir o que queria.
Bom, isso soava a ela como um dos círculos especiais do inferno, bem pior do que qualquer mãe psicótica. Os dois estavam dando umas risadinhas por conta dessa observação,
quando perceberam que os outros três tinham abandonado a conversa deles e os ouviam.
Caradoc Ball, que era um velho colega de escola de Charlie, disse: “Espero que você saiba que está falando com uma juíza muito eminente. Certamente se lembra do
caso dos irmãos siameses”.
Todos se lembravam e, à medida que os pratos foram retirados e o boeuf en croûte servido com um Château Latour, conversaram e fizeram perguntas a ela sobre o famoso
caso. Fiona lhes disse tudo o que queriam saber. Todos tinham uma opinião, mas, como era a mesma, logo passaram a discutir a paixão que a história suscitara nos
jornais e como eles a haviam disputado. Dali foi um passo para uma troca de fofocas sobre os lances mais recentes da Investigação Leveson.* Terminaram a carne. À
frente, como dizia o cartão com o menu, havia um pudim de pão. Logo, logo, pensou Fiona, estariam discutindo a sabedoria ou a loucura de o Ocidente não mandar tropas
para a Síria. Era impossível calar Caradoc sobre aquele tema. E, de fato, ele o introduzia quando se deram conta de vozes ecoando no corredor. Pauling e o mordomo
de rosto branco pararam no umbral da porta e depois se aproximaram dela.
O mordomo se pôs de lado, com um olhar contrariado, enquanto Pauling, depois de pedir desculpas a todos com um aceno de cabeça, inclinou-se por cima da cadeira de
Fiona e disse baixinho perto de seu ouvido: “Minha senhora, perdão por interromper, mas infelizmente há um assunto que exige sua atenção imediata”.
Ela limpou os lábios com o guardanapo e se pôs de pé. “Me desculpem, senhores.”
Sem mudar de expressão, todos se levantaram e ela atravessou a sala na frente dos dois homens. Já do lado de fora, ela disse ao mordomo: “Ainda estamos esperando
por aquele aquecedor”.
“Vou pegar agora.”
Havia algo impertinente em seu jeito ao dar meia-volta, e ela olhou para seu assistente com as sobrancelhas erguidas.
Mas ele simplesmente disse: “Por aqui”.
Ela o seguiu através do corredor e do que fora antes uma biblioteca. As estantes estavam repletas de livros comprados em lojas de objetos usados, do tipo que os
hotéis adquirem por metro para criar uma atmosfera respeitável em certos ambientes.
Pauling disse: “É o rapaz das testemunhas de Jeová, Adam Henry. A senhora se lembra do caso da transfusão? Parece que ele a seguiu até aqui. Andou na chuva, está
completamente encharcado. Queriam expulsá-lo, mas achei que a senhora precisava ser informada antes”.
“Onde ele está?”
“Na cozinha. É mais quentinho lá.”
“Melhor trazê-lo aqui.”
Tão logo Pauling saiu, ela se levantou e caminhou lentamente pela sala, consciente de que seu ritmo cardíaco tinha aumentado. Caso houvesse respondido às cartas,
não estaria agora defrontando aquilo. Defrontando o quê? O envolvimento desnecessário com um caso fechado. E mais que isso. Mas não havia tempo para refletir. Ouviu
passos se aproximando.
A porta se abriu e Pauling fez o rapaz passar. Ela nunca o vira fora da cama e se surpreendeu com sua altura, bem mais de um metro e oitenta. Vestia seu uniforme
escolar, calça de flanela cinza, suéter cinza, camisa branca, um blusão bem leve, encharcado da cabeça aos pés, o cabelo em desordem depois de ter sido enxugado.
Uma pequena mochila pendia frouxamente de sua mão. O toque patético era dado pela toalha de chá do Leadman, com ilustrações dos pontos turísticos locais, envolvendo
suas costas para aquecê-lo.
O assistente se manteve junto à porta enquanto o rapaz deu alguns passos para dentro da sala, parando perto de onde ela se encontrava e dizendo: “Sinto muito mesmo”.
Naqueles primeiros momentos, era mais fácil esconder a confusão de sentimentos sob um tom maternal. “Você parece estar congelado. É melhor trazermos o aquecedor
para cá.”
“Eu mesmo vou pegar”, disse Pauling, saindo.
“Bem”, ela disse após um silêncio. “Como você me achou aqui?”
Outra evasão, perguntar como em vez de por quê, mas àquela altura, conquanto sua presença ainda fosse um choque, Fiona não era capaz de entender o que Adam queria
dela.
O relato dele foi sóbrio. “Eu a segui num táxi desde King’s Cross, peguei seu trem e, como não tinha ideia de onde a senhora ia saltar, comprei passagem para Edinburgh.
Em Newcastle, a segui ao sair da estação, corri atrás da sua limusine e então a perdi de vista. Tive um palpite e perguntei onde eram os tribunais. Quando cheguei
lá, vi imediatamente o seu carro.”
Ela o observou falar, enquanto analisava a transformação. A magreza se fora, porém ele continuava esbelto. Novos músculos nos ombros e braços. O mesmo rosto delicadamente
estruturado, a pinta marrom na maçã do rosto quase invisível na pele bronzeada pela saúde juvenil. Tênues indícios das olheiras roxas. Lábios cheios e úmidos, olhos
que naquela luz eram demasiado escuros para revelar sua cor. Mesmo enquanto tentava se desculpar, ele se mostrava vívido demais, ávido demais para dar uma explicação
detalhada. Quando ele afastou o olhar para ordenar a sequência de fatos, Fiona se perguntou se aquele era um rosto que sua mãe chamaria de antiquado. Uma ideia sem
nexo. A noção generalizada do rosto de um poeta romântico, um primo de Keats ou Shelley.
“Esperei um tempão até a senhora sair e a segui ao atravessar a cidade e voltar na direção do rio, vendo quando saiu do carro. Levei mais de uma hora até descobrir
no meu celular onde os juízes se hospedavam, peguei uma carona, desci na estrada principal, pulei o muro para não passar pela casa do guarda e andei até aqui na
chuva. Esperei muito tempo nos fundos, perto das antigas estrebarias, me perguntando o que eu devia fazer, até que alguém me viu. Realmente sinto muito, eu...”
Pauling, irritado e com o rosto vermelho por causa do esforço, chegou com o aquecedor. Talvez tivesse sido necessário arrancá-lo das mãos do mordomo. Os dois ficaram
olhando enquanto o assistente se pôs de quatro com um grunhido e desapareceu parcialmente debaixo de uma mesinha de canto para encontrar a tomada. Depois que se
reergueu, pousou as mãos nos ombros do rapaz e o levou para a frente do ar aquecido. Antes de sair, disse a Fiona: “Estou esperando do lado de fora”.
Quando ficaram sozinhos, ela disse: “Eu não deveria pensar que tem alguma coisa de esquisito em você me seguir até minha casa e depois até aqui?”.
“Ah, não! Por favor, não pense isso. Não é nada disso.” Olhou em volta impaciente, como se nas paredes estivesse escrita alguma explicação. “Olha, a senhora salvou
minha vida. E não é só isso. Papai tentou esconder de mim, mas li sua sentença. A senhora disse que queria me proteger da minha religião. Pois bem, protegeu. Fui
salvo!”
Ele riu da própria piada e ela disse: “Não o salvei para que você me seguisse por todo canto”.
Nesse justo instante, uma peça fixa do aquecedor deve ter entrado na órbita de alguma peça móvel, pois um estalido regular tomou conta da sala. O volume aumentou,
baixou, se estabilizou. Ela sentiu uma onda de irritação com a casa toda. Um embuste. Um depósito de velharias. Como não tinha visto isso antes?
O momento passou e ela perguntou: “Seus pais sabem onde você está?”.
“Tenho dezoito anos. Posso estar onde quiser.”
“Não me interessa sua idade. Eles vão ficar preocupados.”
Adam soltou um arquejo de exasperação juvenil e depositou a mochila no chão. “Olha, Meritíssima...”
“Chega disso. Me chame de Fiona.” Enquanto pudesse mantê-lo em seu lugar, ela se sentiria melhor.
“Eu não quis ser sarcástico nem nada.”
“Ótimo. E quanto a seus pais?”
“Ontem tive uma briga feia com papai. Tivemos algumas desde que saí do hospital, mas essa foi realmente das grandes, os dois gritando, e eu lhe disse tudo o que
achava sobre sua religião idiota, mesmo que ele não estivesse escutando. No final, me afastei. Subi para o quarto, fiz a mala, peguei o dinheiro que tinha guardado
e me despedi de mamãe. Depois fui embora.”
“Você precisa telefonar para ela agora.”
“Não há necessidade. Mandei uma mensagem para o celular dela ontem à noite do lugar onde me hospedei.”
“Mande outra.”
Ele a olhou, ao mesmo tempo surpreso e desapontado.
“Vamos, diga que está são e salvo em Newcastle e que vai escrever outra vez amanhã. Depois disso conversamos.”
Ela se afastou alguns passos e observou enquanto seus dedos longos dançavam sobre o teclado virtual. Em segundos o celular voltara ao bolso dele.
“Pronto”, disse, olhando para ela com ar expectante, como se ela é que lhe devesse alguma explicação.
Fiona cruzou os braços. “Adam, por que você está aqui?” Seu olhar se desviou, ele hesitou. Não ia dizer a ela a razão, pelo menos não de forma direta.
“Olhe, eu não sou a mesma pessoa. Quando a senhora foi me ver eu estava realmente pronto para morrer. É impressionante que alguém como a senhora tivesse perdido
tempo comigo. Eu era um tremendo idiota!”
Ela apontou para duas cadeiras de madeira junto a uma mesa oval de nogueira, onde se sentaram frente a frente. A luz branca e sepulcral vinha de quatro lâmpadas
LED presas a uma roda rústica de madeira pintada. Por não estar situada diretamente acima da mesa, a iluminação acentuava os contornos das maçãs do rosto e dos lábios
de Adam, assim como as finas saliências gêmeas que separavam a parte acima de seu lábio superior. Tratava-se de uma bela face.
“Não achei você um idiota.”
“Mas eu era. Sempre que os médicos e as enfermeiras tentavam me dissuadir, eu me sentia nobre e heroico, dizendo para me deixarem em paz. Eu era bom e puro. Adorava
que eles não conseguissem entender como eu era profundo. Eu realmente me achava o tal. Gostava de ver o orgulho dos meus pais e dos anciãos. À noite, quando não
tinha ninguém por perto, ensaiei fazer um vídeo, como esses homens-bomba. Ia fazer no meu celular. Queria que fosse reproduzido nos noticiários de televisão e no
meu funeral. Acabei chorando no escuro, imaginando meu caixão sendo levado diante dos meus pais, dos meus colegas e professores, de toda a congregação, as flores,
as coroas, a música triste, todos chorando, todos orgulhosos de mim e me amando. Sinceramente, eu era um idiota.”
“E onde entrava Deus nessa história?”
“Por trás de tudo. Eu estava obedecendo às instruções dele. Mas era mais sobre a maravilhosa aventura que eu estava vivendo, como ia morrer gloriosamente e ser adorado.
Uma garota que eu conheci na escola sofria de anorexia três anos atrás, quando tinha quinze anos. O sonho dela era se transformar em nada — como uma folha seca soprada
pelo vento, foi o que ela disse, mergulhando devagarzinho na morte, todo mundo com pena dela e depois se culpando por não compreendê-la. O mesmo tipo de coisa.”
Agora que o via sentado, Fiona se lembrou dele no hospital, recostando-se nos travesseiros em meio àquela bagunça juvenil. Não era a enfermidade dele que lhe vinha
à mente, mas sua avidez, a inocência vulnerável. Até mesmo a palavra anorexia soava como uma diversão. Ele havia tirado do bolso uma tira estreita de tecido verde,
talvez parte de um forro, que enrolava e desenrolava entre o indicador e o polegar como as contas do colar de um muçulmano.
“Então, não era muito uma questão de religião; tinha mais a ver com seus outros sentimentos.”
Ele ergueu as mãos. “Meus sentimentos tinham origem na minha religião. Eu estava cumprindo a vontade de Deus, a senhora e todos os outros estavam claramente errados.
Como eu teria me metido numa confusão daquelas se não fosse testemunha de Jeová?”
“Parece que sua colega anoréxica conseguiu.”
“Bem, na verdade a anorexia é um pouco como uma religião.”
Diante do olhar cético de Fiona, ele improvisou. “Ah, a senhora sabe, querer sofrer, amar a dor e o sacrifício, pensar que todo mundo está te observando, preocupado
com você, que o universo gira em torno de você. E do seu peso!”
Ela não se conteve e riu da ironia contida na última frase. Ele sorriu por seu inesperado êxito em diverti-la.
Ouviram vozes e passos no corredor quando os convidados passaram da sala de jantar para a de visitas a fim de tomarem café, e depois uma sucessão de gargalhadas
que mais pareciam latidos perto da porta da biblioteca. O rapaz ficou tenso com a possibilidade de uma interrupção, e ambos mantiveram um silêncio conspiratório
enquanto aguardavam que os sons morressem. Adam olhava para baixo, para suas mãos entrelaçadas sobre a madeira envernizada da mesa. Ela imaginava todas as horas
de sua infância e juventude dedicadas a orações, hinos, sermões e as diversas restrições que jamais conheceria, a comunidade fechada mas amorosa que o sustentara
até quase matá-lo.
“Adam, vou perguntar outra vez. Por que você está aqui?”
“Para lhe agradecer.”
“Há maneiras mais fáceis.”
Ele suspirou com impaciência enquanto repunha no bolso a tira de tecido. Por um momento Fiona acreditou que ele se preparava para partir.
“Sua visita foi uma das melhores coisas que me aconteceram.” E então, rapidamente: “A religião de meus pais era um veneno e a senhora foi o antídoto”.
“Não me lembro de haver criticado a religião de seus pais.”
“Não criticou. A senhora foi calma, ouviu, fez perguntas e alguns comentários. Aí é que está. É essa coisa que a senhora tem. Fez diferença. A senhora não precisou
dizer. Um jeito de pensar e de falar. Se não sabe o que estou dizendo, trate de ouvir os anciãos. E quando tocamos a música...”
Ela disse com rapidez: “Você ainda está tocando violino?”.
Ele fez que sim com a cabeça.
“E a poesia?”
“Sim, muito. Mas odeio as coisas que eu escrevia.”
“Bom, você tem talento. Sei que vai escrever alguma coisa maravilhosa.”
Fiona percebeu o desalento nos olhos dele. Ela estava se distanciando, fazendo o papel da tia solícita. Repassou algumas etapas da conversa, se perguntando por que
estava tão ansiosa para não desapontá-lo.
“Mas seus professores devem ser bem diferentes dos anciãos.”
Ele deu de ombros. “Não sei.” Acrescentou à guisa de explicação: “A escola era enorme”.
“E o que é isso que você supõe que eu tenha?”, ela perguntou em tom sério, sem nenhum traço de ironia.
A pergunta não o embaraçou. “Quando vi meus pais chorando daquele jeito, chorando e quase urrando de alegria, tudo desmoronou. Mas aí que está. Desmoronou para cair
na verdade. Claro que eles não queriam que eu morresse! Eles me amam. Por que não disseram isso, em vez de falar e falar sobre as alegrias do céu? Foi então que
eu vi tudo aquilo como uma coisa humana comum. Comum e boa. Não tinha nada a ver com Deus. Isso era só uma bobagem. Como se um adulto entrasse numa sala cheia de
crianças que estão se infernizando e dissesse: ‘Chega, parem com isso, é hora do chá!’. A senhora foi esse adulto. Sabia desde o começo, mas não disse. Só fez perguntas
e escutou. Toda a vida e o amor que se abrem diante dele — foi o que a senhora escreveu. Essa foi a sua ‘coisa’. E a minha revelação. Começando com ‘The Salley Gardens’.”
Ainda em tom sério, ela disse: “E a tampa da sua cabeça explodiu”.
Ele riu gostosamente por também ser citado. “Fiona, quase consigo tocar uma composição de Bach sem cometer nenhum erro. Toco o tema de Coronation Street. Estou lendo
o livro de Berryman Dream Songs. Vou participar de uma peça teatral e tenho que terminar todos os exames antes do Natal. E, graças à senhora, estou entupido de Keats!”
“Muito bem”, ela disse em voz baixa.
Ele se inclinou para a frente, apoiado nos cotovelos, os olhos escuros brilhando na luz pavorosa, todo o rosto parecendo fremir de expectativa, com um apetite incontrolável.
Depois de refletir por um instante, Fiona disse num sussurro: “Espere aqui”. Levantou-se e hesitou, parecendo prestes a mudar de ideia e que voltaria a se sentar.
Mas deu as costas para ele, atravessou a sala e foi para o corredor. Pauling se encontrava de pé, a alguns passos de distância, fingindo interesse pelas páginas
do livro de visitantes aberto sobre uma mesa com tampo de mármore. Ela lhe deu rápidas instruções em voz baixa, voltou à biblioteca e fechou a porta atrás de si.
Adam havia retirado a toalha de chá do ombro e examinava a série de atrações locais. Quando ela se sentou de novo, ele comentou: “Eu nunca tinha ouvido falar em
nenhum desses lugares”.
“Há muita coisa a ser descoberta.”
Passados os efeitos da interrupção, ela disse: “Quer dizer que você perdeu sua fé”.
Adam pareceu se contorcer. “Sim, talvez. Não sei. Acho que tenho medo de dizer isso em voz alta. Realmente não sei onde estou. Quer dizer, o troço é que, quando
a gente se afasta um pouquinho das testemunhas de Jeová, talvez seja melhor sair de vez. Por que substituir um conto de fadas por outro?”
“Talvez todo mundo precise de contos de fadas.”
Ele lhe deu um sorriso benevolente. “Não acho que a senhora esteja dizendo isso pra valer.”
Fiona sucumbiu a seu hábito de resumir a opinião dos outros. “Você viu seus pais chorando e está confuso, pois suspeita que o amor deles por você é maior do que
a crença que têm em Deus ou na vida após a morte. Você precisa se afastar. Perfeitamente natural para alguém da sua idade. Talvez curse uma universidade. Isso vai
ajudar. Mas ainda não entendo o que está fazendo aqui. E, o que é mais importante, o que vai fazer agora. Para onde é que você vai?”
A segunda pergunta o perturbou mais. “Tenho uma tia em Birmingham. Irmã da minha mãe. Ela vai me receber por uma ou duas semanas.”
“Ela está te esperando?”
“Mais ou menos.”
Fiona estava prestes a obrigá-lo a enviar uma nova mensagem, quando ele estendeu a mão por cima da mesa, enquanto ela, com igual rapidez, recolheu a sua para o colo.
Adam não foi capaz de encará-la ou de ser olhado de frente quando voltou a falar. Pôs as mãos na testa como se protegesse os olhos da luz. “Tenho uma pergunta a
lhe fazer. Quando a senhora a ouvir vai achar que é uma idiotice. Mas, por favor, não a rejeite simplesmente. Diga por favor o que pensa sobre ela.”
“O que é?”
Ele se dirigiu ao tampo da mesa. “Quero ir morar com a senhora.”
Ela esperou por mais alguma coisa. Nunca poderia ter previsto tal pedido. Mas agora parecia óbvio.
Adam ainda era incapaz de olhá-la nos olhos. Falou depressa, como se envergonhado com sua própria voz. Ele havia pensado em tudo. “Eu podia ajudar a senhora a cuidar
da casa, prestar serviços na rua. E a senhora podia me dar livros para ler, sabe como é, tudo o que achar que eu preciso aprender...”
Ele a havia seguido por um bom pedaço do país, pelas ruas, atravessado uma tempestade para lhe pedir aquilo. Era uma extensão lógica de sua fantasia sobre uma longa
viagem marítima com ela, de falarem o dia todo caminhando no convés ao balanço das ondas. Lógica e insana. E inocente. O silêncio os envolveu e uniu. Até mesmo o
tilintar do aquecedor parecia ter se reduzido, nenhum som vinha do lado de fora. Ele continuou a proteger o rosto do olhar de Fiona. Ela contemplou o encaracolado
de seu cabelo escuro, jovem e saudável, agora totalmente seco e reluzente.
Fiona disse com suavidade: “Você sabe que isso não é possível”.
“Eu não ia atrapalhar, quer dizer, interferir com a senhora e seu marido.” Por fim, ele recolheu as mãos e olhou para ela. “A senhora sabe, como alguém que alugasse
um quarto. Quando eu terminar meus exames, posso arranjar um emprego e pagar algum aluguel.”
Ela viu o quarto de hóspedes e as duas camas de solteiro, os ursinhos e outros bichos de pelúcia na cesta de vime, o armário de brinquedos tão cheio que uma das
portas não fechava. Tossiu de repente e se pôs de pé, atravessando toda a sala até a janela para dar a impressão de que olhava com atenção para fora. Por fim, sem
se voltar, ela disse: “Só temos um quarto livre e uma porção de sobrinhos e sobrinhas”.
“Quer dizer que essa é sua única objeção?”
Ouviu-se uma batida na porta e Pauling entrou. “Estará aqui dentro de dois minutos, minha senhora”, ele disse e saiu.
Ela se afastou da janela e voltou a se aproximar de Adam, abaixando-se para pegar a mochila dele do chão.
“Meu assistente vai levá-lo de táxi até a estação e lhe comprar uma passagem com destino a Birmingham para amanhã de manhã; depois vai levá-lo para um hotel perto
de lá.”
Após uma pausa, ele se levantou devagar e pegou a mochila das mãos dela. Apesar de sua altura, parecia uma criança pequena em estado de choque.
“Então é isso?”
“Gostaria que me prometesse que vai entrar em contato outra vez com sua mãe antes de pegar o trem. Diga a ela para onde está indo.”
Adam não respondeu. Ela o conduziu à porta e os dois saíram para o corredor. Ninguém à vista. Caradoc Ball e seus convidados estavam instalados na sala de visitas
com as portas fechadas. Ela o deixou esperando na biblioteca e subiu ao quarto para pegar algum dinheiro na bolsa. Ao voltar, viu toda a cena de sua posição elevada
no topo da imponente escadaria. A porta da frente estava aberta e o mordomo falava com o motorista. Atrás dele, abaixo dos degraus do pórtico, estava o táxi, a porta
aberta para liberar os alegres e sinuosos acordes da música orquestral árabe. Seu assistente atravessava o vestíbulo às pressas, supostamente a fim de impedir que
o mordomo criasse algum problema. Quanto a Adam Henry, ele ainda continuava na biblioteca, abraçado à sua mochila. Quando Fiona se aproximou dele, o mordomo, o motorista
e o assistente estavam do lado de fora, no pátio de cascalho, conversando junto ao carro, segundo ela esperava, sobre um hotel apropriado.
O rapaz começou a dizer: “Mas nós nem...”, e ela levantou a mão para fazê-lo se calar.
“Você precisa ir.”
Ela segurou delicadamente a gola do blusão leve dele e o puxou para si. Pretendia lhe dar um beijo no rosto, mas, como ergueu o corpo e Adam se curvou um pouco,
seus rostos se aproximaram, ele girou a cabeça e os lábios deles se tocaram. Ela poderia ter recuado, ter dado um passo atrás, se afastando dele. Em vez disso, se
demorou, inerme diante daquele momento. A sensação de pele contra pele anulou qualquer possibilidade de escolha. Caso fosse possível dar um beijo casto na boca,
foi isso que ela fez. Um contato fugaz, porém mais do que a mera sugestão de um beijo, mais do que uma mãe daria no filho adulto. Durou dois segundos, quem sabe
três. Tempo suficiente para sentir, na maciez e elasticidade dos lábios dele, todos os anos, toda a vida que a separava de Adam. Ao se afastarem, uma leve adesão
de pele poderia tê-los atraído de volta. Mas soavam passos no cascalho e nos degraus de pedra, cada vez mais próximos. Ela largou a gola dele e repetiu: “Você precisa
ir”.
Adam apanhou a mochila, que havia deixado cair no chão, e seguiu-a através do vestíbulo até o lado de fora, onde foram recebidos pelo ar fresco da noite. Ao pé da
escada, o motorista fez uma saudação amistosa e abriu a porta traseira do carro. O rádio havia sido desligado. Ela tinha pensado em dar o dinheiro a Adam, mas, numa
súbita e gratuita mudança de ideia, o entregou a Pauling. Ele balançou a cabeça e forçou um leve sorriso ao pegar o rolinho de notas. Com um movimento brusco dos
ombros, Adam deu a impressão de se desvencilhar de todos e mergulhou no banco de trás, sentando-se com a mochila no colo e olhando para a frente. Já se arrependendo
do que havia posto em movimento, Fiona deu a volta no carro para trocar um último olhar com ele. Adam sem dúvida reparou em seu movimento, mas afastou o rosto. Pauling
se sentou na frente, ao lado do motorista. O mordomo fechou a porta de Adam, empurrando-a num gesto insolente com as costas da mão. Ombros encurvados, Fiona subiu
às pressas os degraus de pedra rachados enquanto o táxi se distanciava.
* Investigação pública conduzida por lorde Leveson em 2011 e 2012 acerca das práticas e da ética da imprensa britânica após o escândalo das escutas telefônicas feitas
pela News International. (N. T.)
5.
Ela partiu de Newcastle depois de uma semana, sentenças proferidas ou suspensas à espera de laudos técnicos, deixando para trás litigantes felizes ou amargurados,
alguns dos quais com o parco consolo de poderem recorrer. No caso que descrevera para Charlie no jantar, ela havia concedido a guarda aos avós e permitido visitas
semanais sob supervisão à mãe e ao pai, separadamente, tudo passível de revisão ao fim de seis meses. Até lá, quem quer que a substituísse teria a vantagem de receber
relatórios acerca do bem-estar das crianças, das promessas dos pais de frequentar um programa de tratamento de viciados em drogas e do estado mental da mãe. A menininha
continuaria em sua escola, um curso elementar organizado pela Igreja da Inglaterra, onde era bem conhecida. Fiona considerou exemplar, naquele caso, a conduta das
instituições de atendimento a menores da cidade.
No final da tarde de sexta-feira, ela disse adeus aos funcionários do tribunal. Na manhã de sábado, no Leadman Hall, Pauling encheu o porta-malas do carro com documentos
acondicionados em caixas de papelão e com as togas dela penduradas em cabides. As bagagens pessoais empilhadas no banco traseiro e a juíza instalada na frente, rumaram
para Oeste, na direção de Carlisle, passando pelo Tyne Gap e cruzando a Inglaterra de um lado a outro, as Cheviots à direita e as Pennines à esquerda. Mas os dramas
da geologia e da história eram embotados pelo tráfego, por seu volume, suas rotinas e pelas placas de sinalização rodoviária características das ilhas britânicas.
Enquanto atravessavam Hexham muito lentamente, Fiona mantinha o celular sem uso na mão e, como fizera durante vários interlúdios ao longo da semana, pensava no beijo.
Que loucura impulsiva não ter se afastado! Loucura profissional e social. Em suas recordações, o contato real, carne contra carne, tendia a se prolongar no tempo.
Ela então tentava encurtar o momento para que voltasse a ser um beijinho inocente nos lábios. Mas o beijinho logo voltava a se inflar, até ela não saber o que ele
era, o que havia acontecido ou por quanto tempo ela correra o risco de uma desgraça. Caradoc Ball poderia ter passado pelo corredor a qualquer momento. Pior ainda,
um de seus convidados, sem as peias da lealdade tribal, poderia tê-la visto e contado a todo mundo. Pauling poderia ter voltado depois de conversar com o motorista
de táxi e a apanhado em flagrante. Nesse caso, a distância sensatamente construída entre eles, que tornava possível seu trabalho, teria sido destruída.
Como não era dada a impulsos irrefletidos, Fiona não entendia seu próprio comportamento. Deu-se conta de que havia muito mais a confrontar em sua mistura de sentimentos
confusos, porém, no momento, era o horror do que podia ter ocorrido, a transgressão ridícula e vergonhosa da ética profissional, que ocupavam sua mente. A ignomínia
que poderia ter se abatido sobre ela. Difícil crer que ninguém a vira, que estava abandonando incólume a cena do crime. Mais fácil acreditar que a verdade, dura
e negra como uma semente amarga, estava prestes a ser revelada: que ela tinha sido observada sem saber. Que agora mesmo, a centenas de quilômetros de distância,
o caso estivesse sendo discutido em Londres. Que em breve ouviria no telefone a voz pouco à vontade de um colega mais antigo: Ah, Fiona, escute, sinto muito, mas
creio que preciso alertá-la de que, hã, de que surgiu um probleminha. E então, esperando por ela no apartamento da Gray’s Inn, uma carta formal do investigador do
departamento de reclamações judiciais.


CONTINUA
“Os pais se opõem à solicitação com base em sua fé religiosa, que é manifestada serenamente e fruto de profunda convicção. O filho deles também objeta e demonstra
boa compreensão dos princípios religiosos, possuindo considerável maturidade e capacidade de articulação verbal para a sua idade.”
Descreveu a seguir a evolução da enfermidade, a leucemia, o tratamento usual que em geral produzia bons resultados. Mas dois dos remédios comumente administrados
causavam anemia, que necessitava ser combatida mediante transfusões de sangue. Resumiu os argumentos do médico assistente, enfatizando a contagem declinante de hemoglobina
e os prognósticos sombrios caso isso não fosse revertido. Ela podia confirmar pessoalmente que a falta de ar de A era agora patente.
A contestação ao pedido se fundamentava em três argumentos principais. O primeiro era o de que, como lhe faltavam três meses para completar dezoito anos e ele era
muito inteligente, conhecendo as consequências de sua decisão, Adam devia ser tratado como possuidor da “competência de Gillick”. Em outras palavras, seria tão capaz
de ter suas decisões reconhecidas quanto qualquer adulto. Em segundo lugar, que a recusa de tratamento médico constituía um direito humano básico, razão por que
a corte deveria mostrar relutância em intervir. E que, por fim, a fé religiosa de A era genuína e devia ser respeitada.
Fiona abordou os seguintes pontos. Agradeceu ao advogado dos pais de A por ter chamado sua atenção para a seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: o consentimento
de uma pessoa de dezesseis anos “será tão eficaz como o seria se ele já houvesse alcançado a maioridade”. Listou as condições relativas à “competência de Gillick”,
citando Scarman no processo. Reconheceu a distinção entre a circunstância de uma criança competente com menos de dezesseis anos consentir num tratamento, possivelmente
contra a vontade dos pais, e de uma criança de menos de dezoito recusar um tratamento passível de salvar sua vida. Do que percebera naquela noite, estaria ela convencida
de que A tinha uma compreensão absoluta das implicações de serem aceitas sua vontade e a de seus pais?
“Ele é sem dúvida uma criança excepcional. Posso mesmo dizer, como o fez uma das enfermeiras hoje à noite, que se trata de um menino adorável, com o que certamente
concordam seus pais. Ele tem uma capacidade de compreensão excepcional para um jovem de dezessete anos. Mas creio que possui um entendimento limitado da provação
que deve confrontar, do pavor que o invadiria à medida que seu sofrimento e sua impotência aumentassem. Na verdade, ele tem uma noção romântica do que seja sofrer.
Entretanto...”
Deixou a palavra pendurada no ar, e o silêncio na sala se adensou enquanto ela passava os olhos pelas anotações.
“Entretanto, em última análise não me deixo influenciar pelo fato de que ele tenha ou não a compreensão absoluta de seu estado. Em vez disso, sou guiada pela decisão
do juiz Ward, como era chamado na época, com referência ao menor E, em julgamento que também envolveu um adolescente que pertencia às testemunhas de Jeová. Naquela
oportunidade, ele afirmou: ‘Assim, é o bem-estar da criança que preside a minha decisão, e cumpre a mim decidir o que dita o bem-estar de E’. Essa observação foi
cristalizada na clara prescrição da Lei da Criança de 1989, que garante nas duas primeiras linhas a primazia do bem-estar do menor. Entendo ‘bem-estar’ como englobando
‘felicidade’ e ‘interesses’. Também sou obrigada a levar em conta a vontade de A. Como já observei, ele a expressou claramente a mim, como o fez seu pai perante
esta corte. De acordo com as doutrinas de sua religião, derivadas de uma interpretação peculiar de três passagens da Bíblia, A se recusa a aceitar a transfusão de
sangue que provavelmente salvará sua vida.
“É um direito fundamental dos adultos recusarem qualquer tratamento médico. Tratar um adulto contra sua vontade significa cometer o crime de agressão. A está próximo
da idade em que pode tomar uma decisão por sua conta e risco. O fato de estar preparado para morrer por suas crenças religiosas demonstra quão profundas elas são.
O fato de que seus pais estão preparados para sacrificar um filho muito querido por causa de sua fé revela o poder da crença a que as testemunhas de Jeová obedecem.”
Mais uma vez ela parou e o público aguardou.
“É precisamente esse poder que me faz refletir, porque A, com seus dezessete anos, conheceu muito pouco fora do turbulento terreno das ideias religiosas e filosóficas.
Não faz parte dos métodos dessa seita cristã encorajar o debate aberto e a discordância na congregação, cujos membros são por eles chamados — de forma correta, alguém
poderia dizer — de ‘as outras ovelhas’. Não creio que a mente de A e suas opiniões lhe pertençam inteiramente. Durante toda a infância ele esteve exposto sem interrupção
a uma visão do mundo monocromática e poderosa, a cujo condicionamento não poderia escapar. Não promoverá seu bem-estar sofrer uma morte desnecessária e agonizante,
para assim se transformar num mártir de sua fé. As testemunhas de Jeová, como outras religiões, têm uma noção nítida do que nos aguarda após a morte, e as predições
deles sobre o fim dos dias, sua escatologia, são também rígidas e muito detalhadas. Este tribunal não tem opinião alguma sobre a vida no Além, que, de qualquer forma,
certo dia A descobrirá, ou deixará de descobrir, por conta própria. Até lá, presumindo uma boa recuperação, o bem-estar dele será mais bem servido por seu amor pela
poesia, por sua recém-descoberta paixão pelo violino, pelo aproveitamento de sua viva inteligência e pelas manifestações de uma natureza brincalhona e afetuosa,
por toda a vida e o amor que se abrem à sua frente. Em suma, entendo que A, seus pais e os anciãos da igreja tomaram uma decisão que é hostil ao bem-estar de A,
o qual constitui a principal consideração desta corte. Ele precisa ser protegido de tal decisão. Precisa ser protegido de sua religião e de si mesmo.
“Esta não foi uma questão simples de resolver. Ponderei cuidadosamente a idade de A, o respeito devido à sua fé e a dignidade do indivíduo contida no direito de
recusar tratamento. A meu juízo, sua vida é mais preciosa do que essa dignidade.
“Em consequência, nego a vontade de A e de seus pais. Minha ordem é que não seja necessário obter a concordância para a transfusão de sangue do primeiro e segundo
contestantes, que são os pais, e a concordância para a transfusão de sangue do terceiro contestante, que é o próprio A. Desse modo, o hospital demandante está legalmente
autorizado a aplicar em A os tratamentos médicos que julgue necessários, no entendimento de que podem administrar sangue e produtos dele derivados mediante transfusão.”
* * *
Eram quase onze da noite quando Fiona iniciou a caminhada para casa ao sair do tribunal. Àquela hora, os portões estavam trancados e não era possível cortar caminho
por dentro da Lincoln’s Inn. Antes de dobrar na Chancery Lane, ela desceu um pequeno trecho da Fleet Street para comprar uma refeição pronta numa loja de conveniência
que ficava aberta a noite inteira. Na noite anterior, isso teria sido uma missão deprimente, mas ela estava sentindo a cabeça leve, talvez porque não se alimentava
decentemente fazia dois dias. Na loja apertada e excessivamente iluminada, os alimentos com embalagens berrantes — vermelhos e roxos explosivos, amarelos de manchas
solares — pulsavam nas prateleiras em sintonia com seus batimentos cardíacos. Ela comprou uma torta de peixe congelada e examinou várias frutas antes de se decidir.
No caixa, atrapalhou-se com o dinheiro, deixando cair moedas no chão. O ágil rapaz asiático que trabalhava na máquina registradora impediu com o pé que as moedas
rolassem e, lhe dando um sorriso protetor, as pôs de volta na mão dela. Fiona se imaginou através dos olhos dele ao observar a expressão de grande cansaço dela,
ignorando ou sendo incapaz de apreciar o corte elegante do casaco e vendo apenas uma dessas velhotas inofensivas que viviam e comiam sozinhas, já um tanto incapazes,
andando pelas ruas tarde da noite.
Ela estava cantando “The Salley Gardens” com os lábios fechados enquanto seguia pela High Holborn. A sacola contendo as frutas e o sólido invólucro do jantar se
chocava agradavelmente contra sua perna. A torta seria aquecida no micro-ondas enquanto ela se preparava para ir se deitar, e a comeria já de camisola em frente
ao canal de notícias; depois disso, nada se interporia entre ela e o sono. Nenhum estímulo químico. No dia seguinte havia um divórcio de gente graúda — um guitarrista
famoso e uma esposa quase famosa, cantora de música romântica, com um excelente advogado e desejando abocanhar boa parte dos vinte e sete milhões de libras do marido.
Algodão-doce comparado com hoje, mas o interesse da imprensa seria igualmente intenso, a lei igualmente solene.
Dobrou na Gray’s Inn, seu santuário. Era sempre gostoso ver como o barulho do tráfego ia cessando à medida que caminhava. Uma comunidade fechada de certo valor histórico,
uma fortaleza de advogados e magistrados que também eram músicos, amantes do bom vinho, pseudoescritores, pescadores que usavam como iscas moscas artificiais, contadores
de histórias. Um ninho de fofocas e perícia profissional, além de um jardim delicioso ainda visitado pelo fantasma de Francis Bacon. Ela amava o lugar e não queria
sair dali nunca.
Entrou no prédio, verificou que a minuteria estava ligada, subiu até o segundo andar, ouviu o rangido costumeiro do quarto e sétimo degraus e, ao atingir o último
lance da escada, viu tudo e entendeu imediatamente. Seu marido estava lá, se levantando naquele momento com um livro na mão; atrás dele, a mala encostada à parede
havia servido como uma espécie de assento, tendo ao lado, no chão, o paletó junto à valise aberta de onde escapavam diversos papéis. Trancado do lado de fora, trabalhando
enquanto esperava. E por que não? Roupas amarrotadas, semblante irritado. Trancado do lado de fora e esperando fazia muito tempo. Sem dúvida não estava ali para
buscar camisas limpas e livros, não se trazia a mala. Seu primeiro pensamento, melancólico e egoísta, foi que agora teria de dividir o jantar calculado para uma
só pessoa. Então pensou que não seria necessário. Preferia não comer.
Subiu os últimos degraus até alcançar o patamar, sem dizer uma única palavra enquanto procurava na bolsa as chaves, as chaves novas, e o contornava a caminho da
porta. Ele que falasse primeiro.
O tom foi de queixume: “Telefonei a noite toda”.
Ela abriu a porta e entrou sem olhar para trás; deixou as compras na cozinha e parou. Seu coração batia forte demais. Ouviu a respiração mal-humorada dele ao trazer
a bagagem para dentro. Se era para haver uma confrontação, que ela não desejava, não agora, a cozinha era um espaço confinado demais. Pegou sua pasta e foi rapidamente
para a sala de visitas, ocupando seu lugar de sempre na chaise longue. Espalhar algumas páginas em volta de onde estava sentada era uma forma de proteção. Sem isso,
não saberia o que fazer de si.
O ruído da mala sendo arrastada pelo corredor e para dentro do quarto soou para ela como uma jogada de abertura. E um insulto. Pela força do hábito, tirou o sapato
e apanhou um documento ao acaso. O guitarrista tinha uma casa de alto padrão em Marbella. A crooner de canções românticas queria a casa. Mas, antes mesmo do casamento,
ele a adquirira da ex-mulher, dando em troca a casa da família no centro de Londres. E essa primeira esposa a havia ganho num acerto de divórcio com um ex-marido.
Irrelevante, Fiona não se furtou a declarar.
Um estalido no assoalho a fez olhar para cima. Jack parou na porta antes de preparar um drinque. Vestia uma calça jeans e uma camisa branca desabotoada no peito.
Será que se imaginava desejável? Reparou que ele não fizera a barba. Até mesmo do outro lado da sala os pelos pareciam grisalhos. Patético, ambos eram patéticos.
Ele se serviu de um uísque e levantou a garrafa na direção dela. Fiona disse não com a cabeça. Ele deu de ombros e atravessou a sala para se sentar em sua poltrona.
Ela era uma desmancha-prazeres, não sabia aproveitar o bom momento. Ele se acomodou com um suspiro de quem se sente em casa. A poltrona dele, a chaise longue dela,
outra vez a vida de casados. Ela olhou para a página em sua mão, a narrativa feita pela esposa do mundo desejável do guitarrista, impossível de absorver. Fez-se
silêncio enquanto ele bebia e ela olhava através da sala para nada em especial.
Então ele disse: “Olha, Fiona, eu te amo”.
Depois de alguns segundos, ela disse: “Prefiro que você durma no quarto de hóspedes”.
Ele baixou a cabeça em sinal de concordância. “Vou pegar minha mala.”
Jack não se levantou. Ambos conheciam a vitalidade do não dito, cujos espíritos invisíveis dançavam agora em volta deles. Ela não lhe dissera para se manter fora
do apartamento, aceitando tacitamente que ele podia dormir lá. Ele não lhe dissera ainda se a especialista em estatística o havia mandado embora, ou se ele tinha
mudado de opinião, ou se já havia experimentado um êxtase suficiente para durar até o túmulo. A mudança das fechaduras não fora comentada. Ele provavelmente achou
estranho Fiona ter chegado tão tarde. Ela mal suportava olhar para ele. O que se fazia necessário agora era uma briga, com vários capítulos se estendendo ao longo
do tempo. Talvez houvesse algumas digressões rancorosas, o arrependimento de Jack poderia vir embrulhado em reclamações, talvez demorasse meses até ela recebê-lo
na cama, o fantasma da outra mulher era capaz de pairar entre eles para sempre. Mas eles provavelmente encontrariam uma forma de recuperar, mais ou menos, o que
haviam tido antes.
A ideia do imenso esforço envolvido e da previsibilidade do processo a cansou ainda mais. No entanto, ela estava obrigada a segui-lo. Como se, por contrato, devesse
escrever um manual de direito enfadonho mas necessário. Achou que, afinal, gostaria de tomar um drinque, embora isso se parecesse demais com uma celebração. Estava
muito longe de uma reconciliação. Acima de tudo, não aguentaria ouvir outra vez que ele a amava. Queria estar sozinha na cama, de costas no escuro, mordiscando uma
fruta, deixando o resto cair no chão, até apagar de todo. O que a impedia de fazer isso? Ela se pôs de pé e começou a recolher seus documentos. Foi quando ele começou
a falar.
Foi uma torrente, em parte desculpas, em parte autojustificações, algumas das quais ela já ouvira. A mortalidade dele, os anos de total fidelidade, sua avassaladora
curiosidade de saber como seria, mas depois que saiu naquela noite, depois que chegou ao apartamento de Melanie, não demorou muito para se dar conta do erro. Ela
era uma estranha, ele não a entendia. E quando foram para o quarto dela...
Fiona levantou a mão em sinal de alerta. Não queria ouvir nada sobre o quarto. Ele fez uma pausa, refletiu, e continuou. Ele era um imbecil, ele percebeu, por se
deixar levar por uma necessidade sexual, quando deveria ter dado meia-volta naquela noite no momento em que ela abriu a porta, porém se sentiu envergonhado e obrigado
a ir adiante.
Apertando sua pasta contra o estômago, Fiona ficou no centro da sala observando-o, se perguntando como fazê-lo parar. Surpreendia-se que mesmo agora, com o dramalhão
conjugal em sua cena de abertura, a canção irlandesa continuasse girando em seu cérebro, o ritmo mais rápido para acompanhar o compasso da fala de Jack, soando ao
mesmo tempo mecânica e festiva como se tocada por um realejo de rua. Seus sentimentos eram confusos, obscurecidos pela fadiga e de difícil definição enquanto sobre
ela jorravam as palavras chorosas do marido. Sentiu nem tanto fúria ou um ressentimento amargo, conquanto algo mais que mera resignação.
Sim, disse Jack, ao chegar ao apartamento de Melanie ele se sentiu estupidamente obrigado a seguir em frente com o que começara. “E, quanto mais preso na armadilha
eu me sentia, mais me dava conta de como eu era um idiota por ameaçar tudo o que temos, tudo o que construímos juntos, este amor que...”
“Tive um dia longo”, ela disse ao atravessar a sala. “Vou pôr sua mala no corredor.”
Parou na cozinha para pegar uma maçã e uma banana em meio às compras postas sobre a mesa. Carregá-las no caminho para o quarto trouxe de volta a felicidade relativa
que sentira no trajeto entre o trabalho e a casa. Os primórdios de certa tranquilidade. Difícil de resgatar agora. Abriu a porta e viu a mala dele de pé sobre as
rodinhas, placidamente posta junto à cama. Então lhe ocorreu com clareza o que sentia com a volta de Jack. Tão simples. Era desapontamento por ele não ter continuado
longe. Só por mais algum tempo. Apenas isso. Desapontamento.
4.
Embora os fatos não o confirmassem, ela teve a impressão de que, no final do verão de 2012, os rompimentos e as crises conjugais ou crises entre parceiros na Grã-Bretanha
cresceram como uma maré aberrante de primavera, varrendo lares do mapa, espalhando bens e sonhos esperançosos, afogando quem não tinha um forte instinto de sobrevivência.
Promessas de amor foram negadas ou reformuladas, bons companheiros se transformaram em ardilosos combatentes escudados atrás de advogados, sem se importar com os
custos. Objetos da casa antes desdenhados eram motivo de amargas disputas, a tranquila confiança de outrora substituída por “acertos” redigidos com todo o cuidado.
Na mente dos envolvidos, a história do casamento era reescrita para que ele fosse visto como fadado ao insucesso desde o começo, o amor repaginado como mera ilusão.
E os filhos? Peças de um jogo, elementos de barganha a serem usados pelas mães; pretexto para acusações de abusos feitas em geral pelas mães, às vezes pelos pais,
embora fossem com frequência fantasiosas ou inventadas com todo o cinismo; crianças em estado de choque indo e vindo semanalmente de uma casa para a outra com base
em acordos de guarda compartilhada, o esquecimento de casacos e caixas de lápis sendo comunicado por meio de advogados; crianças condenadas a verem o pai uma ou
duas vezes por mês; ou nunca, pois os homens mais audaciosos desapareciam na oficina de ferreiro de um novo e quente matrimônio para forjar outros rebentos.
E o dinheiro? As novas moedas eram as meias verdades e os apelos especiais. Maridos gananciosos contra esposas gananciosas, manobrando como nações ao final de uma
guerra, tentando salvar das ruínas todos os despojos que podiam antes da retirada final. Homens ocultavam recursos em contas no exterior, mulheres exigiam para sempre
uma vida de conforto. Mães impediam crianças de ver os pais apesar de ordens judiciais; pais se negavam a oferecer sustento aos filhos apesar de ordens judiciais.
Maridos agrediam esposas e filhos, esposas mentiam ou maquinavam ardis, um ou outro, ou ambos, bêbados, viciados em drogas ou psicóticos; e crianças eram obrigadas
a tomar conta de pais incapazes, crianças de fato vítimas de abusos sexuais ou mentais, ou ambos, seus depoimentos transmitidos numa tela ao tribunal. E já fora
da área de competência de Fiona, em casos julgados pelas cortes criminais e não pelas varas de família, crianças torturadas, mortas de fome ou por espancamento,
espíritos maus arrancados de dentro delas em ritos animistas, padrastos jovens e cruéis quebrando ossos de bebês sob os olhares abobalhados e cúmplices das mães,
e drogas, álcool, sujeira doméstica extrema, vizinhos indiferentes e seletivamente surdos para não ouvir os gritos, assistentes sociais descuidados ou atarefados
demais para intervir.
O trabalho das varas de família não cessava. Era por simples acaso que tantos conflitos conjugais caíssem no colo de Fiona. Pura coincidência que ela própria estivesse
vivendo um conflito similar. Naquele setor do Judiciário, não era comum mandar gente para a cadeia, mas, apesar disso, em certos momentos ela tinha vontade de ordenar
que fossem encarcerados aqueles demandantes que, à custa dos filhos, desejavam uma mulher mais jovem, um marido mais rico ou menos enfadonho, um bairro mais elegante,
novas aventuras sexuais, novos amores, uma nova visão do mundo, um bom reinício antes que fosse tarde demais. A simples busca do prazer. Vulgaridade moral. Sua falta
de filhos e a situação com Jack davam forma a esses devaneios e, naturalmente, eles não eram para valer. Entretanto, embora mergulhasse bem fundo em seu reino mental,
ela nunca deixava que suas decisões fossem afetadas pelo desprezo puritano que devotava aos homens e às mulheres que destruíam sua família e se persuadiam de que
agiam altruisticamente pelo bem de todos. Nesses experimentos intelectuais, ela não teria poupado as pessoas sem filhos ou, pelo menos, não Jack. Um período de contrição
atrás das grades por contaminar o casamento deles em nome de uma novidade? Por que não?
Porque, depois do retorno dele, a vida no apartamento da Gray’s Inn era lúgubre e silenciosa. Tinha havido brigas durante as quais ela pusera para fora alguns sentimentos
amargos. Doze horas depois esses sentimentos se renovavam tão ardentemente quanto os votos matrimoniais, nada mudava, o ar não ficava mais “limpo”. Ela permanecia
traída. Ele apimentava suas desculpas com velhas recordações de que ela o isolara, de que era fria. Disse até, certa noite bem tarde, que ela era “uma chata” e havia
“perdido a arte de sentir prazer”. De todas as acusações, essas foram as que mais a incomodaram, porque ela percebia serem verdadeiras, o que em nada diminuiu sua
raiva.
Pelo menos ele deixara de dizer que a amava. Na troca de palavras mais recente, dez dias antes, fora reiterado tudo o que haviam se dito antes, todas as recriminações,
todas as defesas, todas as frases bem formuladas que eram fruto de uma longa elucubração prévia, até que depuseram as armas, cansados um do outro e de si próprios.
Desde então, nada. Moviam-se o dia todo, cada qual cuidando de seus afazeres em diferentes partes da cidade e, quando confinados no apartamento, evitavam cuidadosamente
se tocar, como dançarinos numa quadrilha. Eram sucintos e competiam em matéria de cortesia quando forçados a decidir sobre questões referentes à casa, buscavam não
comer juntos, trabalhavam em cômodos separados, com a atenção prejudicada pela vívida consciência, através das paredes, da presença radioativa do outro. Sem necessidade
de discuti-lo, declinavam todos os convites conjuntos. O único gesto conciliatório dela consistiu em lhe dar uma nova chave.
De comentários evasivos e taciturnos dele, ela deduziu que, no quarto da especialista em estatística, Jack não transpusera os portões do paraíso. O que não era tão
tranquilizador. Ele provavelmente iria tentar a sorte em outro lugar, talvez já estivesse tentando, desta vez livre das tristes amarras da honestidade. Suas “aulas
de geologia” poderiam ser um bom subterfúgio. Ela se lembrava de haver prometido abandoná-lo se ele fosse em frente com Melanie. Mas Fiona não tinha tempo para desfazer
aquele complexo nó. E ainda estava indecisa, não confiava em seu atual estado de espírito. Caso ele houvesse lhe dado mais tempo depois de sair de casa, ela teria
chegado a uma decisão clara e se empenhado em terminar o casamento ou reconstruí-lo. Por isso, se entregou ao trabalho na forma usual e resolveu sobreviver dia após
dia o drama agora serenado de sua vida com Jack.
Quando uma de suas sobrinhas deixou lá as filhas durante um fim de semana, gêmeas idênticas de oito anos, as coisas ficaram mais fáceis, o apartamento ficou maior,
porque as atenções se voltaram para fora. Por duas noites Jack dormiu no sofá da sala de visitas sem que as meninas fizessem perguntas. Pertenciam a um tipo antiquado
de crianças que mantinham as costas bem retas, com modos solenes e afetuosos, embora sujeitas a brigas repentinas e explosivas. Uma ou outra — era fácil distinguir
as duas — procurava Fiona onde ela estivesse lendo e, postada diante dela, descansando uma mão confiante em seu joelho, despejava uma torrente prateada de historinhas,
reflexões e fantasias. Fiona replicava com suas próprias historinhas. Duas vezes, durante aquela visita, aconteceu que, enquanto ela falava, uma onda de amor pela
menina contraiu sua garganta e marejou seus olhos. Ela estava se sentindo velha e tola. Incomodava-a relembrar como Jack era bom com as crianças. Correndo o risco
de ter uma crise de coluna, como aconteceu certa vez com os três filhos do irmão de Fiona, ele fazia brincadeiras pesadas, de que as meninas participavam com acessos
de gritos inumanos. Em casa, a mãe delas, ressentida por causa do divórcio, jamais as jogava para o alto de cabeça para baixo. Ele as levou aos jardins para ensinar
uma versão de críquete que tinha inventado, além de ler uma longa história para elas na cama com vibrante energia cômica e talento na imitação das vozes.
Mas um domingo à noite, depois que as gêmeas foram levadas, os aposentos se encolheram, o ar ficou pesado e Jack saiu sem dar explicações — sem dúvida um ato hostil.
Para um encontro amoroso, ela imaginou, enquanto se ocupava arrumando o quarto de hóspedes para impedir que seu moral baixasse ainda mais. Repondo os brinquedos
macios na cesta de vime onde residiam, recuperando as contas de vidro e os desenhos rejeitados debaixo da cama, ela sentiu a melancolia mansa e envolvente, uma forma
de nostalgia instantânea, que a ausência repentina de crianças pode causar. Aquele sentimento durou até a manhã de segunda-feira e cresceu até se transformar numa
tristeza generalizada, que a perseguiu na caminhada para o trabalho. Só começou a se dissipar quando ela se sentou à sua mesa a fim de se preparar para o primeiro
caso da semana.
Em algum momento Nigel Pauling deve ter trazido a correspondência, porque a pilha de cartas se encontrava subitamente perto de seu cotovelo. Vendo o pequeno envelope
azul-claro em cima de todos, ela quase chamou seu assistente para abri-lo. Não estava com vontade de ler mais uma profusão de agressões verbais de algum analfabeto
ou ameaças de violência. Voltou ao trabalho, mas não conseguiu se concentrar. O envelope absurdo, as letras arredondadas, a falta de um código postal, o selo ligeiramente
torto — era demais. Mas, olhando uma vez mais, ela reparou no carimbo postal e foi tomada por uma repentina suspeita. Sopesou a carta por um instante e a abriu.
No momento seguinte, viu pela saudação que estava certa. Tinha aguardado vagamente por aquilo durante semanas. Havia falado com Marina Greene e soubera que ele estava
progredindo bem, já fora do hospital, recuperando em casa o tempo de estudos perdido e esperando voltar à sala de aulas em breve.
Três páginas azul-claras, escritas em cinco lados. O primeiro tinha o número sete dentro de um círculo posto no centro e no alto da página. Acima da data.
Meritíssima!
Esta é minha sétima carta e acho que vai ser a que porei no correio.
As primeiras palavras do parágrafo seguinte tinham sido riscadas.
Vai ser a mais simples e a mais curta. Só quero lhe descrever um acontecimento. Entendo agora como ele foi importante. Mudou tudo. Estou feliz por ter esperado porque
não gostaria que a senhora visse as outras cartas. Muito embaraçosas! Mas não tão terríveis como os nomes que lhe chamei quando Donna me anunciou sua decisão. Eu
estava certo de que a senhora tinha visto as coisas do meu jeito. Na verdade, guardei perfeitamente o que me disse, que era óbvio que eu sabia o que queria, e lembro
que lhe agradeci. Eu ainda estava tendo um ataque de raiva e xingando quando aquele horrível médico assistente, o dr. “me chama de Rodney” Carter, entrou com meia
dúzia de pessoas e o equipamento. Eles pensaram que iam precisar me segurar. Mas eu estava fraco demais e, mesmo furioso, sabia o que a senhora queria que eu fizesse.
Por isso, estendi o braço e eles começaram. A ideia de que o sangue de alguém entrava no meu corpo foi tão nojenta que vomitei na cama.
Mas não é isso que quero lhe contar. É o seguinte. Como mamãe não conseguiu assistir, ela ficou sentada do lado de fora do quarto e eu ouvia seu choro, o que me
deixou muito triste. Não sei quando papai apareceu. Acho que fiquei desmaiado algum tempo e, quando retomei os sentidos, os dois estavam ao lado da minha cama —
ambos chorando, e me senti ainda mais triste porque todos nós estávamos desobedecendo a Deus. Mas o importante, e levei algum tempo para entender isto, é que eles
estavam chorando de ALEGRIA! Estavam muito felizes, me abraçando e se abraçando, agradecendo a Deus e soluçando. Eu me senti muito esquisito e não entendi nada por
um ou dois dias. Nem pensava naquilo. Então comecei a pensar. Meus pais seguiram os ensinamentos, obedeceram aos anciãos, fizeram tudo certo e podem esperar ser
aceitos no paraíso aqui na Terra — e ao mesmo tempo podem me ter vivo sem que nenhum de nós seja expulso da Igreja. Transfusão feita, mas não por culpa nossa! Culpa
da juíza, culpa do sistema sem fé, culpa do que às vezes chamamos de “mundo”. Que alívio! Ainda temos nosso filho embora tivéssemos dito que ele devia morrer.
Não sei como interpretar isto. Foi uma fraude? Para mim foi uma mudança de direção. Estou resumindo a história. Quando eles me trouxeram para casa, tirei a Bíblia
do meu quarto, simbolicamente a botei virada para baixo numa cadeira do corredor e disse que eu não ia mais voltar ao Salão do Reino, que podiam me expulsar da igreja
se quisessem. Tivemos umas brigas horríveis. O sr. Crosby tem vindo me convencer. Nenhuma chance. Estou escrevendo para a senhora porque preciso mesmo falar com
a senhora, preciso ouvir sua voz calma e aproveitar sua mente clara para discutir comigo este assunto. Sinto que a senhora me levou para perto de alguma outra coisa,
alguma coisa de fato bonita e profunda, mas não sei bem o que é. A senhora nunca me disse no que acreditava, mas adorei quando sentou ao meu lado e executamos “The
Salley Gardens”. Ainda leio o poema todos os dias. Gosto de ser “jovem e tolo”, e, se não fosse pela senhora, eu não seria nem uma coisa nem outra, eu estaria morto!
Eu lhe escrevi uma porção de cartas bobas, penso na senhora o tempo todo e quero mesmo ver a senhora para nos falarmos outra vez. Sonho acordado sobre nós, fantasias
maravilhosas e impossíveis, como a de que vamos fazer uma viagem de volta ao mundo juntos num navio, em camarotes vizinhos, e que passeamos o dia todo pelo convés
conversando.
Meritíssima, me escreva por favor, apenas algumas palavras para dizer que leu esta carta e que não me odeia por tê-la escrito.
Sempre seu,
Adam Henry
P.S.: Esqueci de dizer que estou ficando cada dia mais forte.
Ela não respondeu, ou melhor, não pôs no correio o bilhete que levou mais de uma hora para escrever naquela noite. No quarto e último rascunho, pensou ter sido bastante
afetuosa, feliz de sabê-lo em casa e se sentindo melhor, contente por ele ter boas recordações da visita dela. Aconselhou-o a ser carinhoso com os pais. Era normal,
como adolescente, questionar as crenças com que havíamos sido criados, mas isso devia ser feito de modo respeitoso. Terminou dizendo, embora não fosse verdade, que
havia ficado atraída pela ideia de uma volta ao mundo num navio. Acrescentou que, quando jovem, tinha sonhos de fuga como o dele. Isso também não era verdade, pois
ela havia sido ambiciosa demais, mesmo com dezesseis anos, ávida demais por boas notas nos exames para pensar em escapar. As visitas como adolescente a seus primos
de Newcastle foram suas únicas aventuras. Olhando a cartinha no dia seguinte, não foi a afetuosidade que a impressionou, e sim a frieza, os conselhos esfarrapados,
a linguagem impessoal, as falsas lembranças. Releu a carta dele e foi mais uma vez tocada por sua inocência e calor humano. Melhor não mandar nada do que decepcioná-lo.
Se mudasse de opinião, poderia escrever mais tarde.
Estava se aproximando o momento em que realizaria o circuito itinerante, visitando cidades inglesas e antigos vilarejos na companhia de outro juiz especializado
em direito criminal e cível. Ela julgaria casos que, de outra forma, precisariam ser transferidos para os tribunais de Londres. Ela ficaria hospedada em locais especialmente
bem preservados, mansões impressionantes de interesse histórico e arquitetônico onde, em certos casos, as adegas eram lendárias e as cozinheiras provavelmente decentes.
As autoridades do lugar costumavam convidá-la para jantar. Ela e seu colega retribuiriam a gentileza nas casas onde estivessem instalados, convidando figuras eminentes
ou interessantes (havia uma clara distinção entre as duas categorias) da localidade. Os quartos de dormir eram bem mais sofisticados que o seu, as camas mais largas,
os lençóis de tecido mais fino. Em tempos mais felizes, havia, para uma mulher bem casada, um elemento de culpa e prazer sensual naquelas acomodações a sós. Agora,
ela ansiava escapar do silencioso e solene pas de deux em casa. E a primeira parada era sua cidade inglesa predileta.
Certa manhã no começo de setembro, uma semana antes de iniciar a viagem, ela recebeu uma segunda carta. Mesmo antes de lê-la sua preocupação desta vez foi maior,
porque o envelope azul se encontrava sobre o capacho do vestíbulo de seu apartamento, em meio a circulares e a uma conta de luz. Nenhum endereço, só o nome dela.
Bem simples para Adam Henry esperar no Strand ou na Carey Street e segui-la à distância.
Jack já tinha saído para o trabalho. Ela levou a carta para a cozinha e se sentou diante dos restos do café da manhã.
Meritíssima,
Nem sei o que escrevi porque não guardei uma cópia, mas tudo bem que a senhora não tenha respondido. Ainda preciso conversar com a senhora. Aqui estão minhas notícias
— grandes brigas com meus pais, fantástico estar de volta à escola, me sentindo melhor, me sentindo feliz e depois infeliz e feliz outra vez. Às vezes a ideia do
sangue de um estranho dentro de mim me causa enjoo, como se eu tivesse bebido a saliva de alguém. Ou pior. Não posso me livrar da ideia de que a transfusão é uma
coisa errada, mas não me importo mais. Tenho tantas perguntas para a senhora, mas nem tenho certeza de que se lembra de mim. A senhora deve ter tido dezenas de casos
desde o meu e feito um bocado de escolhas sobre outras pessoas. Sinto ciúme! Quis conversar com a senhora na rua, chegar perto e tocar no seu ombro. Não fiz isso
porque sou um covarde. Achei que a senhora podia não me reconhecer. A senhora também não precisa responder a esta carta — o que significa que espero que responda.
Por favor, não se preocupe, não quero atormentá-la ou nada parecido. Só sinto que a tampa da minha cabeça explodiu. Está saindo tudo!
Sinceramente seu,
Adam Henry
Fiona mandou imediatamente um e-mail para Marina Greene perguntando se ela podia encontrar um tempinho para visitar o rapaz num acompanhamento de rotina e depois
lhe enviar um relatório. Recebeu o retorno antes do fim do dia. Marina se encontrara com Adam durante a tarde na escola, onde ele estava começando um período de
estudos especiais a fim de se preparar para os exames antes do Natal. Ficou meia hora com ele, que havia engordado e estava corado. Mostrou-se animado, até mesmo
“engraçado e travesso”. Havia alguns problemas em casa, a maior parte sobre diferenças religiosas com os pais, mas ela não achou nada de estranho nisso. Em particular,
o diretor lhe disse que Adam, depois de voltar do hospital, havia trabalhado bastante para recuperar o tempo perdido. Seus professores consideravam que ele estava
progredindo otimamente. Contribuía bastante para as atividades em sala de aula, nenhum problema de comportamento. Em suma, tudo corria bem. Tranquilizada, Fiona
decidiu não escrever para ele.
Uma semana depois, na manhã da segunda-feira em que deveria viajar para o nordeste da Inglaterra, ocorreu um desvio minúsculo na falha geológica conjugal, um movimento
quase tão imperceptível quanto o deslocamento das placas tectônicas. Foi tácito, algo não reconhecido abertamente. Mais tarde, quando se encontrava no trem e repassou
tudo, o instante pareceu se situar na fronteira entre o real e o imaginado. Será que ela podia confiar em sua memória? Eram sete e meia quando entrara na cozinha.
Jack estava de pé junto ao balcão, de costas para ela, despejando grãos de café no moedor. A pasta dela já estava no corredor e Fiona cuidava de recolher uns poucos
documentos que faltavam. Como de hábito, ficou relutante em dividir um espaço pequeno com ele. Pegou a echarpe das costas da cadeira e saiu para continuar a busca
na sala de visitas.
Voltou alguns minutos depois. Jack tirava uma jarra de leite do micro-ondas. Eles eram exigentes em matéria de café da manhã e, no curso dos anos, seus gostos tinham
convergido. Gostavam de café forte feito com grãos colombianos de alta qualidade, servido em canecas brancas e altas de borda fina, com leite morno, e não quente.
Ainda de costas para ela, Jack derramou leite em seu café e depois se voltou com a caneca erguida e ligeiramente estendida na direção dela. Nada na expressão de
Jack sugeria que ele estava lhe oferecendo a caneca, e ela nem assentiu nem recusou com a cabeça. Os olhos dos dois se encontraram por um instante, e então ele depositou
a caneca na mesa de pinho e empurrou-a uns cinco centímetros na direção dela. Isso não significava necessariamente muito, pois, em suas tensas manobras para se evitar,
ambos permaneciam escrupulosamente corteses, como se cada qual estivesse procurando superar o outro em se mostrar razoável, os dois irrepreensíveis graças à ausência
de rancor. Não faria sentido preparar um bule de café só para uma pessoa. Mas há maneiras e maneiras de pôr uma caneca na mesa, desde a batidinha peremptória da
porcelana contra a madeira até o pouso silencioso e cuidadoso, assim como há maneiras e maneiras de aceitar uma caneca, coisa que ela fez mansamente, em câmera lenta,
sem se afastar tão logo tomou um gole, ou não tão de imediato quanto o teria feito em qualquer outra manhã. Passaram-se alguns segundos de silêncio, em seguida pareceu
que isso era o mais longe que ambos estavam preparados para ir, que o momento continha coisas demais para eles e que tentar algo além os faria recuar. Jack se afastou
a fim de preparar uma caneca para ele, enquanto Fiona se afastou para ir buscar alguma coisa no quarto. Moveram-se um pouco mais devagar do que era comum, talvez
quase com relutância.
No começo da tarde, ela chegou a Newcastle. Um motorista esperava do lado de lá das catracas para levá-la aos tribunais de Quayside. Nigel Pauling a aguardava na
entrada dos magistrados e a conduziu ao gabinete que ela ocuparia. Ele chegara de Londres de manhã com os documentos e as togas — os paramentos completos, como disse
—, porque Fiona participaria da Corte da Rainha além da Vara da Família. O assistente do tribunal apareceu para dar as boas-vindas formais, seguido do funcionário
que cuidava da agenda, com o qual ela repassou os casos a serem ouvidos nos dias seguintes.
Como havia outras pequenas matérias a tratar, só por volta das quatro da tarde Fiona ficou livre para sair. A previsão era de que uma tempestade de verão chegaria
do sudoeste no começo da noite. Ela mandou que o motorista esperasse e deu uma caminhada pelo calçadão junto ao rio, passando por baixo da ponte Tyne e ao longo
de Sandhill, pelos novos cafés ao ar livre e por jardins floridos junto a sólidos prédios comerciais com fachadas clássicas. Subiu as escadas até Castle Garth e
parou no alto para olhar o rio que ficara para trás. Ela tinha uma queda por aquela mistura exuberante de peças poderosas de ferro fundido, aço e vidro pós-industrial,
de velhos armazéns salvos da decrepitude por uma fantasia juvenil de cafés e bares. Compartilhava um passado com Newcastle e se sentia bem lá. Na adolescência, durante
as recorrentes doenças de sua mãe, ia passar algum tempo ali com suas primas prediletas. Tio Fred, dentista, era o homem mais rico que ela conhecia. Tia Simone ensinava
francês numa escola primária. A casa era agradavelmente caótica, uma libertação dos domínios de sua mãe em Finchley, encerados ao exagero e insuficientemente arejados.
As primas, de sua idade, eram alegres e aventurosas, obrigando-a a sair à noite em missões aterradoras que incluíam a ingestão de bebidas e quatro músicos dedicados
com cabelos até a cintura e bigodes de pontas caídas, que pareciam transviados mas provaram ser gente boa. Seus pais ficariam horrorizados de saber que a filha estudiosa
de dezesseis anos era presença assídua em certos bares, que bebia licor de cereja e cuba-libre, e tivera seu primeiro amante. E, juntamente com as primas, ela era
a tiete fiel, e tolerada como assistente novata, de uma banda de blues mal equipada e mal remunerada, ajudando a carregar amplificadores e peças da bateria numa
caminhonete enferrujada que vivia enguiçando. Com frequência afinava as guitarras. Sua emancipação tinha muito a ver com o fato de que aquelas visitas, além de ocasionais,
nunca duravam mais que três semanas. Se permanecesse por mais tempo — nunca uma possibilidade real —, talvez fosse até autorizada a cantar os blues. Poderia ter
se casado com Keith, o principal cantor do grupo e tocador de gaita, que tinha um braço atrofiado e a quem ela adorava timidamente.
Tio Fred mudou seu consultório para o sul do país quando ela tinha dezoito anos, o caso com Keith acabou em lágrimas e em alguns poemas de amor que ela não enviou.
Fiona jamais voltou a viver esse tipo de relacionamento arriscado e tremendamente divertido, o qual se tornou parte inseparável da ideia que fazia de Newcastle.
Não seria possível reproduzi-lo em Londres, a sede de suas ambições profissionais. Por vários anos ela voltara ao Nordeste sob diversos pretextos, além de quatro
vezes para cumprir o circuito judiciário. Sempre fazia bem ao seu espírito se aproximar da cidade pela alta ponte Stephenson sobre o rio Tyne, chegando com o espírito
excitado de uma adolescente, descendo do trem na gare central sob os três grandes arcos criados por John Dobson e saindo pela extravagante porte cochère neoclássica
desenhada por Thomas Prosser. Foi seu tio dentista, recebendo-a com seu Jaguar verde e suas primas impacientes, quem a ensinou a apreciar a gare e os tesouros arquitetônicos
da cidade. Ela nunca se desfizera da impressão de estar no exterior, de se encontrar numa cidade-Estado báltica caracterizada por um curioso otimismo e orgulho.
O ar era mais revigorante, a luz de um cinzento amplo e luminescente, os habitantes amistosos, porém mais incisivos, autoconscientes ou ironizando a si próprios
como atores numa comédia. Perto do sotaque deles, o dela parecia tenso e artificial. Se, como Jack insistia, a geologia moldava a variedade de tipos e de destinos
dos ingleses, então os moradores da cidade eram feitos de granito e ela de calcário friável. Mas, com sua paixonite juvenil pela cidade, com suas primas, a banda
e o primeiro namorado, acreditava que poderia mudar, se tornar mais autêntica, mais verdadeira, uma genuína cidadã daquela região. Anos depois, recordar-se de tal
ambição ainda a fazia sorrir. No entanto, o sentimento lá estava em cada regresso, uma vaga noção de renovação, de um potencial não explorado em outra vida — e isso
mesmo às vésperas de fazer sessenta anos.
O carro em cujo assento ela se reclinou era um Bentley da década de 1960, e seu destino o Leadman Hall, situado dentro de seu próprio parque a um quilômetro e meio
dos portões que ela agora transpunha. Logo passou por um campo de críquete, depois por uma alameda de faias com as copas já agitadas pelo vento que crescia, mais
tarde por um lago tomado por plantas aquáticas. O palacete, no estilo do arquiteto Andrea Palladio e havia pouco tempo pintado de um branco brilhante demais, tinha
doze quartos e nove empregados para servir a dois magistrados do Tribunal Superior em seu circuito itinerante. Pevsner, conhecido historiador da arte arquitetônica,
aprovara sem grande entusiasmo a estufa, e nada mais. Somente uma anomalia burocrática havia preservado Leadman de ser destruído por medida de economia do governo,
mas o jogo estava chegando ao fim porque aquele era o último ano em que a construção iria contar com o Judiciário. O palacete, alugado algumas semanas por ano de
uma família da região com interesses históricos na mineração de carvão, servia principalmente como centro de conferências e local para festas de casamento. Seu campo
de golfe, quadras de tênis e piscina externa aquecida eram, como agora se reconhecia, luxos desnecessários para juízes de passagem e muito atarefados. Do ano seguinte
em diante, uma empresa de táxi da cidade forneceria um espaçoso Vauxhall para substituir o Bentley. As acomodações seriam num hotel do centro de Newcastle. Os magistrados
da Vara Criminal, que às vezes mandavam para a prisão por longos períodos homens da região com parentes assustadores, tinham clara preferência pelo isolamento de
um palacete. Mas ninguém era capaz de argumentar em favor de Leadman sem dar a impressão de que o fazia por puro interesse.
Pauling esperava com a governanta no pátio de cascalho junto à entrada principal. Ele desejava dar um sentido especial àquela derradeira visita. Aproximou-se da
porta de trás do carro com um floreio irônico e bateu os calcanhares. Como sempre, a governanta era nova, uma polonesa de uns vinte e poucos anos, calculou Fiona,
mas seu olhar era direto e frio, e ela pegou com firmeza a mala mais pesada da juíza até que Pauling a tomou de sua mão. Lado a lado, o assistente e a governanta
conduziram Fiona ao quarto do primeiro andar que ela considerava como seu. Ficava na frente da casa, com três janelas altas que davam para a alameda de faias e para
o trecho do lago invadido por ervas. Além do quarto de quase dez metros de comprimento, havia a sala de estar com uma mesa de trabalho. O banheiro, no entanto, ficava
no fim de um corredor e três degraus atapetados abaixo do nível do quarto. Na última vez em que Leadman tinha sido modernizado, a proliferação generalizada de lavatórios
e chuveiros ainda não começara.
A tempestade chegou quando Fiona saiu do banho. Vestida com um penhoar, plantou-se diante da janela central observando as pancadas de chuva, cortinas fantasmagóricas
que corriam velozes e, por segundos, ocultavam os campos. Viu o galho mais alto de uma das faias próximas se partir e começar a cair, ficando de cabeça para baixo
e balançando ao ser contido pelos galhos mais baixos, até mergulhar de novo, voltar a se emaranhar e ser enfim liberado pelo vento para se chocar com um baque contra
o solo. Quase tão alto quanto o silvar da chuva no cascalho era o coro de gemidos nas calhas do telhado. Ela acendeu as luzes e começou a se vestir. Já estava atrasada
dez minutos para o xerez na sala de visitas.
Quatro homens de terno preto e gravata, cada qual com seu gim e sua tônica, pararam de conversar e se ergueram das poltronas quando ela entrou. Um garçom de paletó
branco engomado foi preparar o drinque dela, enquanto Caradoc Ball da Corte da Rainha, colega de Fiona encarregado dos casos criminais, apresentou-a aos demais —
um professor de jurisprudência, um homem que tinha negócios no setor de fibras ópticas e alguém que trabalhava para o governo na conservação da costa marítima. Todos
de alguma forma eram ligados a Ball. Ela não convidara ninguém para a primeira noite. Seguiu-se a conversa obrigatória sobre o clima tempestuoso. Depois, uma digressão
sobre como as pessoas de mais de cinquenta anos e todos os norte-americanos ainda viviam no mundo das temperaturas medidas em Fahrenheit. Depois, como os jornais
britânicos, para obter o máximo de impacto, noticiavam as baixas temperaturas em graus Celsius e as quentes em Fahrenheit. Durante todo o tempo ela se perguntava
por que o rapaz curvado sobre o carrinho de bebidas estava demorando tanto. Ele trouxe o drinque dela justamente quando estava sendo lembrada a já distante transição
para as moedas decimais.
Fiona já sabia pelo próprio Ball que ele estava em Newcastle para realizar o novo julgamento de um caso de assassinato no qual um homem era acusado de haver matado
sua mãe em casa com golpes de porrete devido aos maus-tratos que ela infligia à filha mais jovem, meia-irmã do réu. A arma do crime não tinha sido encontrada e a
prova de DNA era inconclusiva. A defesa argumentava que a mulher havia sido morta por um intruso. O julgamento fora anulado quando se descobriu que um jurado tinha
revelado aos outros membros do júri informações que colhera na internet pelo celular. Ele encontrara a reportagem de um jornal sensacionalista, publicada cinco anos
antes, sobre a prévia condenação do homem por agressão violenta. Na nova era de acesso digital, alguma coisa precisava ser feita para “esclarecer” certas questões
aos jurados. O professor de jurisprudência havia pouco tempo apresentara um estudo à Comissão Jurídica, possivelmente objeto da conversa que Fiona interrompera ao
entrar na sala. Agora ela foi retomada. O especialista em fibras ópticas perguntou como seria possível impedir que os jurados buscassem informações na privacidade
de suas casas ou conseguissem que um membro da família o fizesse por eles. Relativamente simples, segundo o professor. Os próprios jurados se policiariam. Seriam
obrigados, sob pena de prisão, a apontar qualquer um deles que discutisse matérias não apresentadas perante o tribunal. Dois anos no máximo pela divulgação de tais
matérias, seis meses no máximo por não informar a violação. A Comissão daria seu parecer conclusivo no ano seguinte.
Nesse momento, o mordomo os convidou a seguirem para a mesa de jantar. Embora não pudesse ter mais de trinta anos, seu rosto era doentiamente pálido, como se coberto
de talco. Tão branco quanto uma aspirina — Fiona certo dia ouvira uma proprietária rural francesa dizer. Mas o mordomo não parecia doente pois mantinha uma atitude
impessoal e segura. Enquanto aguardava à pequena distância, com a cabeça inclinada para a frente em sinal de atenção, eles terminaram seus drinques e, seguindo Fiona,
atravessaram uma porta de folha dupla rumo à sala de jantar. A mesa, que poderia comportar trinta pessoas, estava posta para cinco numa extremidade solitária. A
sala era recoberta de lambris, pintados de um laranja quase fluorescente, com desenhos de flamingos calculadamente espaçados. Os convivas encontravam-se agora no
lado norte da casa, atingido em cheio pelo vento e onde as três janelas de guilhotina sacudiam, produzindo um ruído surdo. O ar estava frio e úmido. Havia um buquê
de flores secas na lareira. O mordomo explicou que ela havia sido bloqueada muitos anos antes, mas que ele traria um aquecedor elétrico. Eles avaliaram a distribuição
dos assentos e, após alguns momentos de polida incerteza, concordaram que, em respeito à simetria, Fiona se sentaria à cabeceira.
Até então ela mal falara. O mordomo pálido serviu um vinho branco. Dois garçons trouxeram patê de arenque e torradas finas. À esquerda dela estava o perito em conservação,
Charlie, um cinquentão gordo, careca e bem-humorado. Enquanto os outros continuavam a falar sobre jurados, ele perguntou cortesmente sobre o trabalho dela. Resignada
a uma rodada de conversinha fiada, Fiona explicou em termos gerais o trabalho da Vara de Família. Mas Charlie queria detalhes. Que tipo de decisão iria tomar no
dia seguinte? Ela se sentia mais feliz falando sobre um caso específico. Uma instituição local desejava ficar com a guarda de duas crianças, um menino de dois anos
e uma menina de quatro. A mãe era alcoólatra e também viciada em anfetaminas. Sofria crises psicóticas durante as quais imaginava estar sendo espionada por lâmpadas
elétricas. Tornara-se incapaz de cuidar de si própria ou das crianças. O pai, separado dela, tinha permanecido distante, mas agora alegava que ele e sua namorada
podiam cuidar das crianças. Ele também enfrentava problemas com drogas e era fichado na polícia, embora tivesse direito sobre os filhos. Um assistente social se
pronunciaria no dia seguinte perante o tribunal acerca da adequação dele como pai. Os avós maternos adoravam as crianças, eram competentes e queriam cuidar delas,
porém não tinham amparo legal para isso. A instituição local, cujo serviço de atendimento a menores havia sido criticado num relatório oficial, se opunha aos avós
por razões que ainda não estavam claras. As três partes — mãe, pai e avós — estavam amargamente divididas. Outra complicação era existirem opiniões contraditórias
acerca da menina de quatro anos. Um pediatra disse que ela tinha necessidades especiais, outro, contratado pelos avós, acreditava que, conquanto a menina estivesse
perturbada pelo comportamento da mãe e abaixo do peso normal por causa das refeições em horários irregulares, seu desenvolvimento era normal.
Havia, Fiona disse, muitos outros casos similares agendados para aquela semana. Charlie levou a mão à testa e fechou os olhos. Que encrenca! Se ele tivesse de tomar
uma decisão na manhã seguinte em um só caso como aquele, ficaria acordado a noite toda, roendo as unhas e abusando das bebidas oferecidas no quarto do hotel. Fiona
perguntou por que ele estava lá. Charlie tinha vindo de Whitehall a fim de persuadir um grupo de fazendeiros da costa a se unir a algumas organizações de proteção
ambiental, para permitirem que suas pastagens voltassem a ser cobertas pela água do mar, retornando à condição de pântanos salgados. Essa era de longe a melhor e
mais barata forma de defesa contra a inundação da costa, maravilhosa para a vida selvagem, sobretudo pássaros, e boa também para o turismo de pequena escala. Mas
havia uma forte oposição de certos segmentos do setor agrícola, embora os fazendeiros fossem ser bem recompensados. Durante todo o dia o tinham calado aos berros
nas reuniões. Corria o rumor de que o plano era compulsório. Ninguém acreditava nele quando dizia que não era assim. Viam-no como um representante do governo central,
com o qual os fazendeiros estavam irritados por uma série de outras questões que não eram de sua alçada. No final, tinha levado uns trancos num corredor. Um indivíduo
“com metade da minha idade e o dobro da minha força” havia agarrado sua gola e murmurado alguma coisa com o sotaque local que ele não tinha entendido. Melhor assim.
Amanhã ele voltaria e tentaria de novo. Estava certo de que no final iria conseguir o que queria.
Bom, isso soava a ela como um dos círculos especiais do inferno, bem pior do que qualquer mãe psicótica. Os dois estavam dando umas risadinhas por conta dessa observação,
quando perceberam que os outros três tinham abandonado a conversa deles e os ouviam.
Caradoc Ball, que era um velho colega de escola de Charlie, disse: “Espero que você saiba que está falando com uma juíza muito eminente. Certamente se lembra do
caso dos irmãos siameses”.
Todos se lembravam e, à medida que os pratos foram retirados e o boeuf en croûte servido com um Château Latour, conversaram e fizeram perguntas a ela sobre o famoso
caso. Fiona lhes disse tudo o que queriam saber. Todos tinham uma opinião, mas, como era a mesma, logo passaram a discutir a paixão que a história suscitara nos
jornais e como eles a haviam disputado. Dali foi um passo para uma troca de fofocas sobre os lances mais recentes da Investigação Leveson.* Terminaram a carne. À
frente, como dizia o cartão com o menu, havia um pudim de pão. Logo, logo, pensou Fiona, estariam discutindo a sabedoria ou a loucura de o Ocidente não mandar tropas
para a Síria. Era impossível calar Caradoc sobre aquele tema. E, de fato, ele o introduzia quando se deram conta de vozes ecoando no corredor. Pauling e o mordomo
de rosto branco pararam no umbral da porta e depois se aproximaram dela.
O mordomo se pôs de lado, com um olhar contrariado, enquanto Pauling, depois de pedir desculpas a todos com um aceno de cabeça, inclinou-se por cima da cadeira de
Fiona e disse baixinho perto de seu ouvido: “Minha senhora, perdão por interromper, mas infelizmente há um assunto que exige sua atenção imediata”.
Ela limpou os lábios com o guardanapo e se pôs de pé. “Me desculpem, senhores.”
Sem mudar de expressão, todos se levantaram e ela atravessou a sala na frente dos dois homens. Já do lado de fora, ela disse ao mordomo: “Ainda estamos esperando
por aquele aquecedor”.
“Vou pegar agora.”
Havia algo impertinente em seu jeito ao dar meia-volta, e ela olhou para seu assistente com as sobrancelhas erguidas.
Mas ele simplesmente disse: “Por aqui”.
Ela o seguiu através do corredor e do que fora antes uma biblioteca. As estantes estavam repletas de livros comprados em lojas de objetos usados, do tipo que os
hotéis adquirem por metro para criar uma atmosfera respeitável em certos ambientes.
Pauling disse: “É o rapaz das testemunhas de Jeová, Adam Henry. A senhora se lembra do caso da transfusão? Parece que ele a seguiu até aqui. Andou na chuva, está
completamente encharcado. Queriam expulsá-lo, mas achei que a senhora precisava ser informada antes”.
“Onde ele está?”
“Na cozinha. É mais quentinho lá.”
“Melhor trazê-lo aqui.”
Tão logo Pauling saiu, ela se levantou e caminhou lentamente pela sala, consciente de que seu ritmo cardíaco tinha aumentado. Caso houvesse respondido às cartas,
não estaria agora defrontando aquilo. Defrontando o quê? O envolvimento desnecessário com um caso fechado. E mais que isso. Mas não havia tempo para refletir. Ouviu
passos se aproximando.
A porta se abriu e Pauling fez o rapaz passar. Ela nunca o vira fora da cama e se surpreendeu com sua altura, bem mais de um metro e oitenta. Vestia seu uniforme
escolar, calça de flanela cinza, suéter cinza, camisa branca, um blusão bem leve, encharcado da cabeça aos pés, o cabelo em desordem depois de ter sido enxugado.
Uma pequena mochila pendia frouxamente de sua mão. O toque patético era dado pela toalha de chá do Leadman, com ilustrações dos pontos turísticos locais, envolvendo
suas costas para aquecê-lo.
O assistente se manteve junto à porta enquanto o rapaz deu alguns passos para dentro da sala, parando perto de onde ela se encontrava e dizendo: “Sinto muito mesmo”.
Naqueles primeiros momentos, era mais fácil esconder a confusão de sentimentos sob um tom maternal. “Você parece estar congelado. É melhor trazermos o aquecedor
para cá.”
“Eu mesmo vou pegar”, disse Pauling, saindo.
“Bem”, ela disse após um silêncio. “Como você me achou aqui?”
Outra evasão, perguntar como em vez de por quê, mas àquela altura, conquanto sua presença ainda fosse um choque, Fiona não era capaz de entender o que Adam queria
dela.
O relato dele foi sóbrio. “Eu a segui num táxi desde King’s Cross, peguei seu trem e, como não tinha ideia de onde a senhora ia saltar, comprei passagem para Edinburgh.
Em Newcastle, a segui ao sair da estação, corri atrás da sua limusine e então a perdi de vista. Tive um palpite e perguntei onde eram os tribunais. Quando cheguei
lá, vi imediatamente o seu carro.”
Ela o observou falar, enquanto analisava a transformação. A magreza se fora, porém ele continuava esbelto. Novos músculos nos ombros e braços. O mesmo rosto delicadamente
estruturado, a pinta marrom na maçã do rosto quase invisível na pele bronzeada pela saúde juvenil. Tênues indícios das olheiras roxas. Lábios cheios e úmidos, olhos
que naquela luz eram demasiado escuros para revelar sua cor. Mesmo enquanto tentava se desculpar, ele se mostrava vívido demais, ávido demais para dar uma explicação
detalhada. Quando ele afastou o olhar para ordenar a sequência de fatos, Fiona se perguntou se aquele era um rosto que sua mãe chamaria de antiquado. Uma ideia sem
nexo. A noção generalizada do rosto de um poeta romântico, um primo de Keats ou Shelley.
“Esperei um tempão até a senhora sair e a segui ao atravessar a cidade e voltar na direção do rio, vendo quando saiu do carro. Levei mais de uma hora até descobrir
no meu celular onde os juízes se hospedavam, peguei uma carona, desci na estrada principal, pulei o muro para não passar pela casa do guarda e andei até aqui na
chuva. Esperei muito tempo nos fundos, perto das antigas estrebarias, me perguntando o que eu devia fazer, até que alguém me viu. Realmente sinto muito, eu...”
Pauling, irritado e com o rosto vermelho por causa do esforço, chegou com o aquecedor. Talvez tivesse sido necessário arrancá-lo das mãos do mordomo. Os dois ficaram
olhando enquanto o assistente se pôs de quatro com um grunhido e desapareceu parcialmente debaixo de uma mesinha de canto para encontrar a tomada. Depois que se
reergueu, pousou as mãos nos ombros do rapaz e o levou para a frente do ar aquecido. Antes de sair, disse a Fiona: “Estou esperando do lado de fora”.
Quando ficaram sozinhos, ela disse: “Eu não deveria pensar que tem alguma coisa de esquisito em você me seguir até minha casa e depois até aqui?”.
“Ah, não! Por favor, não pense isso. Não é nada disso.” Olhou em volta impaciente, como se nas paredes estivesse escrita alguma explicação. “Olha, a senhora salvou
minha vida. E não é só isso. Papai tentou esconder de mim, mas li sua sentença. A senhora disse que queria me proteger da minha religião. Pois bem, protegeu. Fui
salvo!”
Ele riu da própria piada e ela disse: “Não o salvei para que você me seguisse por todo canto”.
Nesse justo instante, uma peça fixa do aquecedor deve ter entrado na órbita de alguma peça móvel, pois um estalido regular tomou conta da sala. O volume aumentou,
baixou, se estabilizou. Ela sentiu uma onda de irritação com a casa toda. Um embuste. Um depósito de velharias. Como não tinha visto isso antes?
O momento passou e ela perguntou: “Seus pais sabem onde você está?”.
“Tenho dezoito anos. Posso estar onde quiser.”
“Não me interessa sua idade. Eles vão ficar preocupados.”
Adam soltou um arquejo de exasperação juvenil e depositou a mochila no chão. “Olha, Meritíssima...”
“Chega disso. Me chame de Fiona.” Enquanto pudesse mantê-lo em seu lugar, ela se sentiria melhor.
“Eu não quis ser sarcástico nem nada.”
“Ótimo. E quanto a seus pais?”
“Ontem tive uma briga feia com papai. Tivemos algumas desde que saí do hospital, mas essa foi realmente das grandes, os dois gritando, e eu lhe disse tudo o que
achava sobre sua religião idiota, mesmo que ele não estivesse escutando. No final, me afastei. Subi para o quarto, fiz a mala, peguei o dinheiro que tinha guardado
e me despedi de mamãe. Depois fui embora.”
“Você precisa telefonar para ela agora.”
“Não há necessidade. Mandei uma mensagem para o celular dela ontem à noite do lugar onde me hospedei.”
“Mande outra.”
Ele a olhou, ao mesmo tempo surpreso e desapontado.
“Vamos, diga que está são e salvo em Newcastle e que vai escrever outra vez amanhã. Depois disso conversamos.”
Ela se afastou alguns passos e observou enquanto seus dedos longos dançavam sobre o teclado virtual. Em segundos o celular voltara ao bolso dele.
“Pronto”, disse, olhando para ela com ar expectante, como se ela é que lhe devesse alguma explicação.
Fiona cruzou os braços. “Adam, por que você está aqui?” Seu olhar se desviou, ele hesitou. Não ia dizer a ela a razão, pelo menos não de forma direta.
“Olhe, eu não sou a mesma pessoa. Quando a senhora foi me ver eu estava realmente pronto para morrer. É impressionante que alguém como a senhora tivesse perdido
tempo comigo. Eu era um tremendo idiota!”
Ela apontou para duas cadeiras de madeira junto a uma mesa oval de nogueira, onde se sentaram frente a frente. A luz branca e sepulcral vinha de quatro lâmpadas
LED presas a uma roda rústica de madeira pintada. Por não estar situada diretamente acima da mesa, a iluminação acentuava os contornos das maçãs do rosto e dos lábios
de Adam, assim como as finas saliências gêmeas que separavam a parte acima de seu lábio superior. Tratava-se de uma bela face.
“Não achei você um idiota.”
“Mas eu era. Sempre que os médicos e as enfermeiras tentavam me dissuadir, eu me sentia nobre e heroico, dizendo para me deixarem em paz. Eu era bom e puro. Adorava
que eles não conseguissem entender como eu era profundo. Eu realmente me achava o tal. Gostava de ver o orgulho dos meus pais e dos anciãos. À noite, quando não
tinha ninguém por perto, ensaiei fazer um vídeo, como esses homens-bomba. Ia fazer no meu celular. Queria que fosse reproduzido nos noticiários de televisão e no
meu funeral. Acabei chorando no escuro, imaginando meu caixão sendo levado diante dos meus pais, dos meus colegas e professores, de toda a congregação, as flores,
as coroas, a música triste, todos chorando, todos orgulhosos de mim e me amando. Sinceramente, eu era um idiota.”
“E onde entrava Deus nessa história?”
“Por trás de tudo. Eu estava obedecendo às instruções dele. Mas era mais sobre a maravilhosa aventura que eu estava vivendo, como ia morrer gloriosamente e ser adorado.
Uma garota que eu conheci na escola sofria de anorexia três anos atrás, quando tinha quinze anos. O sonho dela era se transformar em nada — como uma folha seca soprada
pelo vento, foi o que ela disse, mergulhando devagarzinho na morte, todo mundo com pena dela e depois se culpando por não compreendê-la. O mesmo tipo de coisa.”
Agora que o via sentado, Fiona se lembrou dele no hospital, recostando-se nos travesseiros em meio àquela bagunça juvenil. Não era a enfermidade dele que lhe vinha
à mente, mas sua avidez, a inocência vulnerável. Até mesmo a palavra anorexia soava como uma diversão. Ele havia tirado do bolso uma tira estreita de tecido verde,
talvez parte de um forro, que enrolava e desenrolava entre o indicador e o polegar como as contas do colar de um muçulmano.
“Então, não era muito uma questão de religião; tinha mais a ver com seus outros sentimentos.”
Ele ergueu as mãos. “Meus sentimentos tinham origem na minha religião. Eu estava cumprindo a vontade de Deus, a senhora e todos os outros estavam claramente errados.
Como eu teria me metido numa confusão daquelas se não fosse testemunha de Jeová?”
“Parece que sua colega anoréxica conseguiu.”
“Bem, na verdade a anorexia é um pouco como uma religião.”
Diante do olhar cético de Fiona, ele improvisou. “Ah, a senhora sabe, querer sofrer, amar a dor e o sacrifício, pensar que todo mundo está te observando, preocupado
com você, que o universo gira em torno de você. E do seu peso!”
Ela não se conteve e riu da ironia contida na última frase. Ele sorriu por seu inesperado êxito em diverti-la.
Ouviram vozes e passos no corredor quando os convidados passaram da sala de jantar para a de visitas a fim de tomarem café, e depois uma sucessão de gargalhadas
que mais pareciam latidos perto da porta da biblioteca. O rapaz ficou tenso com a possibilidade de uma interrupção, e ambos mantiveram um silêncio conspiratório
enquanto aguardavam que os sons morressem. Adam olhava para baixo, para suas mãos entrelaçadas sobre a madeira envernizada da mesa. Ela imaginava todas as horas
de sua infância e juventude dedicadas a orações, hinos, sermões e as diversas restrições que jamais conheceria, a comunidade fechada mas amorosa que o sustentara
até quase matá-lo.
“Adam, vou perguntar outra vez. Por que você está aqui?”
“Para lhe agradecer.”
“Há maneiras mais fáceis.”
Ele suspirou com impaciência enquanto repunha no bolso a tira de tecido. Por um momento Fiona acreditou que ele se preparava para partir.
“Sua visita foi uma das melhores coisas que me aconteceram.” E então, rapidamente: “A religião de meus pais era um veneno e a senhora foi o antídoto”.
“Não me lembro de haver criticado a religião de seus pais.”
“Não criticou. A senhora foi calma, ouviu, fez perguntas e alguns comentários. Aí é que está. É essa coisa que a senhora tem. Fez diferença. A senhora não precisou
dizer. Um jeito de pensar e de falar. Se não sabe o que estou dizendo, trate de ouvir os anciãos. E quando tocamos a música...”
Ela disse com rapidez: “Você ainda está tocando violino?”.
Ele fez que sim com a cabeça.
“E a poesia?”
“Sim, muito. Mas odeio as coisas que eu escrevia.”
“Bom, você tem talento. Sei que vai escrever alguma coisa maravilhosa.”
Fiona percebeu o desalento nos olhos dele. Ela estava se distanciando, fazendo o papel da tia solícita. Repassou algumas etapas da conversa, se perguntando por que
estava tão ansiosa para não desapontá-lo.
“Mas seus professores devem ser bem diferentes dos anciãos.”
Ele deu de ombros. “Não sei.” Acrescentou à guisa de explicação: “A escola era enorme”.
“E o que é isso que você supõe que eu tenha?”, ela perguntou em tom sério, sem nenhum traço de ironia.
A pergunta não o embaraçou. “Quando vi meus pais chorando daquele jeito, chorando e quase urrando de alegria, tudo desmoronou. Mas aí que está. Desmoronou para cair
na verdade. Claro que eles não queriam que eu morresse! Eles me amam. Por que não disseram isso, em vez de falar e falar sobre as alegrias do céu? Foi então que
eu vi tudo aquilo como uma coisa humana comum. Comum e boa. Não tinha nada a ver com Deus. Isso era só uma bobagem. Como se um adulto entrasse numa sala cheia de
crianças que estão se infernizando e dissesse: ‘Chega, parem com isso, é hora do chá!’. A senhora foi esse adulto. Sabia desde o começo, mas não disse. Só fez perguntas
e escutou. Toda a vida e o amor que se abrem diante dele — foi o que a senhora escreveu. Essa foi a sua ‘coisa’. E a minha revelação. Começando com ‘The Salley Gardens’.”
Ainda em tom sério, ela disse: “E a tampa da sua cabeça explodiu”.
Ele riu gostosamente por também ser citado. “Fiona, quase consigo tocar uma composição de Bach sem cometer nenhum erro. Toco o tema de Coronation Street. Estou lendo
o livro de Berryman Dream Songs. Vou participar de uma peça teatral e tenho que terminar todos os exames antes do Natal. E, graças à senhora, estou entupido de Keats!”
“Muito bem”, ela disse em voz baixa.
Ele se inclinou para a frente, apoiado nos cotovelos, os olhos escuros brilhando na luz pavorosa, todo o rosto parecendo fremir de expectativa, com um apetite incontrolável.
Depois de refletir por um instante, Fiona disse num sussurro: “Espere aqui”. Levantou-se e hesitou, parecendo prestes a mudar de ideia e que voltaria a se sentar.
Mas deu as costas para ele, atravessou a sala e foi para o corredor. Pauling se encontrava de pé, a alguns passos de distância, fingindo interesse pelas páginas
do livro de visitantes aberto sobre uma mesa com tampo de mármore. Ela lhe deu rápidas instruções em voz baixa, voltou à biblioteca e fechou a porta atrás de si.
Adam havia retirado a toalha de chá do ombro e examinava a série de atrações locais. Quando ela se sentou de novo, ele comentou: “Eu nunca tinha ouvido falar em
nenhum desses lugares”.
“Há muita coisa a ser descoberta.”
Passados os efeitos da interrupção, ela disse: “Quer dizer que você perdeu sua fé”.
Adam pareceu se contorcer. “Sim, talvez. Não sei. Acho que tenho medo de dizer isso em voz alta. Realmente não sei onde estou. Quer dizer, o troço é que, quando
a gente se afasta um pouquinho das testemunhas de Jeová, talvez seja melhor sair de vez. Por que substituir um conto de fadas por outro?”
“Talvez todo mundo precise de contos de fadas.”
Ele lhe deu um sorriso benevolente. “Não acho que a senhora esteja dizendo isso pra valer.”
Fiona sucumbiu a seu hábito de resumir a opinião dos outros. “Você viu seus pais chorando e está confuso, pois suspeita que o amor deles por você é maior do que
a crença que têm em Deus ou na vida após a morte. Você precisa se afastar. Perfeitamente natural para alguém da sua idade. Talvez curse uma universidade. Isso vai
ajudar. Mas ainda não entendo o que está fazendo aqui. E, o que é mais importante, o que vai fazer agora. Para onde é que você vai?”
A segunda pergunta o perturbou mais. “Tenho uma tia em Birmingham. Irmã da minha mãe. Ela vai me receber por uma ou duas semanas.”
“Ela está te esperando?”
“Mais ou menos.”
Fiona estava prestes a obrigá-lo a enviar uma nova mensagem, quando ele estendeu a mão por cima da mesa, enquanto ela, com igual rapidez, recolheu a sua para o colo.
Adam não foi capaz de encará-la ou de ser olhado de frente quando voltou a falar. Pôs as mãos na testa como se protegesse os olhos da luz. “Tenho uma pergunta a
lhe fazer. Quando a senhora a ouvir vai achar que é uma idiotice. Mas, por favor, não a rejeite simplesmente. Diga por favor o que pensa sobre ela.”
“O que é?”
Ele se dirigiu ao tampo da mesa. “Quero ir morar com a senhora.”
Ela esperou por mais alguma coisa. Nunca poderia ter previsto tal pedido. Mas agora parecia óbvio.
Adam ainda era incapaz de olhá-la nos olhos. Falou depressa, como se envergonhado com sua própria voz. Ele havia pensado em tudo. “Eu podia ajudar a senhora a cuidar
da casa, prestar serviços na rua. E a senhora podia me dar livros para ler, sabe como é, tudo o que achar que eu preciso aprender...”
Ele a havia seguido por um bom pedaço do país, pelas ruas, atravessado uma tempestade para lhe pedir aquilo. Era uma extensão lógica de sua fantasia sobre uma longa
viagem marítima com ela, de falarem o dia todo caminhando no convés ao balanço das ondas. Lógica e insana. E inocente. O silêncio os envolveu e uniu. Até mesmo o
tilintar do aquecedor parecia ter se reduzido, nenhum som vinha do lado de fora. Ele continuou a proteger o rosto do olhar de Fiona. Ela contemplou o encaracolado
de seu cabelo escuro, jovem e saudável, agora totalmente seco e reluzente.
Fiona disse com suavidade: “Você sabe que isso não é possível”.
“Eu não ia atrapalhar, quer dizer, interferir com a senhora e seu marido.” Por fim, ele recolheu as mãos e olhou para ela. “A senhora sabe, como alguém que alugasse
um quarto. Quando eu terminar meus exames, posso arranjar um emprego e pagar algum aluguel.”
Ela viu o quarto de hóspedes e as duas camas de solteiro, os ursinhos e outros bichos de pelúcia na cesta de vime, o armário de brinquedos tão cheio que uma das
portas não fechava. Tossiu de repente e se pôs de pé, atravessando toda a sala até a janela para dar a impressão de que olhava com atenção para fora. Por fim, sem
se voltar, ela disse: “Só temos um quarto livre e uma porção de sobrinhos e sobrinhas”.
“Quer dizer que essa é sua única objeção?”
Ouviu-se uma batida na porta e Pauling entrou. “Estará aqui dentro de dois minutos, minha senhora”, ele disse e saiu.
Ela se afastou da janela e voltou a se aproximar de Adam, abaixando-se para pegar a mochila dele do chão.
“Meu assistente vai levá-lo de táxi até a estação e lhe comprar uma passagem com destino a Birmingham para amanhã de manhã; depois vai levá-lo para um hotel perto
de lá.”
Após uma pausa, ele se levantou devagar e pegou a mochila das mãos dela. Apesar de sua altura, parecia uma criança pequena em estado de choque.
“Então é isso?”
“Gostaria que me prometesse que vai entrar em contato outra vez com sua mãe antes de pegar o trem. Diga a ela para onde está indo.”
Adam não respondeu. Ela o conduziu à porta e os dois saíram para o corredor. Ninguém à vista. Caradoc Ball e seus convidados estavam instalados na sala de visitas
com as portas fechadas. Ela o deixou esperando na biblioteca e subiu ao quarto para pegar algum dinheiro na bolsa. Ao voltar, viu toda a cena de sua posição elevada
no topo da imponente escadaria. A porta da frente estava aberta e o mordomo falava com o motorista. Atrás dele, abaixo dos degraus do pórtico, estava o táxi, a porta
aberta para liberar os alegres e sinuosos acordes da música orquestral árabe. Seu assistente atravessava o vestíbulo às pressas, supostamente a fim de impedir que
o mordomo criasse algum problema. Quanto a Adam Henry, ele ainda continuava na biblioteca, abraçado à sua mochila. Quando Fiona se aproximou dele, o mordomo, o motorista
e o assistente estavam do lado de fora, no pátio de cascalho, conversando junto ao carro, segundo ela esperava, sobre um hotel apropriado.
O rapaz começou a dizer: “Mas nós nem...”, e ela levantou a mão para fazê-lo se calar.
“Você precisa ir.”
Ela segurou delicadamente a gola do blusão leve dele e o puxou para si. Pretendia lhe dar um beijo no rosto, mas, como ergueu o corpo e Adam se curvou um pouco,
seus rostos se aproximaram, ele girou a cabeça e os lábios deles se tocaram. Ela poderia ter recuado, ter dado um passo atrás, se afastando dele. Em vez disso, se
demorou, inerme diante daquele momento. A sensação de pele contra pele anulou qualquer possibilidade de escolha. Caso fosse possível dar um beijo casto na boca,
foi isso que ela fez. Um contato fugaz, porém mais do que a mera sugestão de um beijo, mais do que uma mãe daria no filho adulto. Durou dois segundos, quem sabe
três. Tempo suficiente para sentir, na maciez e elasticidade dos lábios dele, todos os anos, toda a vida que a separava de Adam. Ao se afastarem, uma leve adesão
de pele poderia tê-los atraído de volta. Mas soavam passos no cascalho e nos degraus de pedra, cada vez mais próximos. Ela largou a gola dele e repetiu: “Você precisa
ir”.
Adam apanhou a mochila, que havia deixado cair no chão, e seguiu-a através do vestíbulo até o lado de fora, onde foram recebidos pelo ar fresco da noite. Ao pé da
escada, o motorista fez uma saudação amistosa e abriu a porta traseira do carro. O rádio havia sido desligado. Ela tinha pensado em dar o dinheiro a Adam, mas, numa
súbita e gratuita mudança de ideia, o entregou a Pauling. Ele balançou a cabeça e forçou um leve sorriso ao pegar o rolinho de notas. Com um movimento brusco dos
ombros, Adam deu a impressão de se desvencilhar de todos e mergulhou no banco de trás, sentando-se com a mochila no colo e olhando para a frente. Já se arrependendo
do que havia posto em movimento, Fiona deu a volta no carro para trocar um último olhar com ele. Adam sem dúvida reparou em seu movimento, mas afastou o rosto. Pauling
se sentou na frente, ao lado do motorista. O mordomo fechou a porta de Adam, empurrando-a num gesto insolente com as costas da mão. Ombros encurvados, Fiona subiu
às pressas os degraus de pedra rachados enquanto o táxi se distanciava.
* Investigação pública conduzida por lorde Leveson em 2011 e 2012 acerca das práticas e da ética da imprensa britânica após o escândalo das escutas telefônicas feitas
pela News International. (N. T.)
5.
Ela partiu de Newcastle depois de uma semana, sentenças proferidas ou suspensas à espera de laudos técnicos, deixando para trás litigantes felizes ou amargurados,
alguns dos quais com o parco consolo de poderem recorrer. No caso que descrevera para Charlie no jantar, ela havia concedido a guarda aos avós e permitido visitas
semanais sob supervisão à mãe e ao pai, separadamente, tudo passível de revisão ao fim de seis meses. Até lá, quem quer que a substituísse teria a vantagem de receber
relatórios acerca do bem-estar das crianças, das promessas dos pais de frequentar um programa de tratamento de viciados em drogas e do estado mental da mãe. A menininha
continuaria em sua escola, um curso elementar organizado pela Igreja da Inglaterra, onde era bem conhecida. Fiona considerou exemplar, naquele caso, a conduta das
instituições de atendimento a menores da cidade.
No final da tarde de sexta-feira, ela disse adeus aos funcionários do tribunal. Na manhã de sábado, no Leadman Hall, Pauling encheu o porta-malas do carro com documentos
acondicionados em caixas de papelão e com as togas dela penduradas em cabides. As bagagens pessoais empilhadas no banco traseiro e a juíza instalada na frente, rumaram
para Oeste, na direção de Carlisle, passando pelo Tyne Gap e cruzando a Inglaterra de um lado a outro, as Cheviots à direita e as Pennines à esquerda. Mas os dramas
da geologia e da história eram embotados pelo tráfego, por seu volume, suas rotinas e pelas placas de sinalização rodoviária características das ilhas britânicas.
Enquanto atravessavam Hexham muito lentamente, Fiona mantinha o celular sem uso na mão e, como fizera durante vários interlúdios ao longo da semana, pensava no beijo.
Que loucura impulsiva não ter se afastado! Loucura profissional e social. Em suas recordações, o contato real, carne contra carne, tendia a se prolongar no tempo.
Ela então tentava encurtar o momento para que voltasse a ser um beijinho inocente nos lábios. Mas o beijinho logo voltava a se inflar, até ela não saber o que ele
era, o que havia acontecido ou por quanto tempo ela correra o risco de uma desgraça. Caradoc Ball poderia ter passado pelo corredor a qualquer momento. Pior ainda,
um de seus convidados, sem as peias da lealdade tribal, poderia tê-la visto e contado a todo mundo. Pauling poderia ter voltado depois de conversar com o motorista
de táxi e a apanhado em flagrante. Nesse caso, a distância sensatamente construída entre eles, que tornava possível seu trabalho, teria sido destruída.
Como não era dada a impulsos irrefletidos, Fiona não entendia seu próprio comportamento. Deu-se conta de que havia muito mais a confrontar em sua mistura de sentimentos
confusos, porém, no momento, era o horror do que podia ter ocorrido, a transgressão ridícula e vergonhosa da ética profissional, que ocupavam sua mente. A ignomínia
que poderia ter se abatido sobre ela. Difícil crer que ninguém a vira, que estava abandonando incólume a cena do crime. Mais fácil acreditar que a verdade, dura
e negra como uma semente amarga, estava prestes a ser revelada: que ela tinha sido observada sem saber. Que agora mesmo, a centenas de quilômetros de distância,
o caso estivesse sendo discutido em Londres. Que em breve ouviria no telefone a voz pouco à vontade de um colega mais antigo: Ah, Fiona, escute, sinto muito, mas
creio que preciso alertá-la de que, hã, de que surgiu um probleminha. E então, esperando por ela no apartamento da Gray’s Inn, uma carta formal do investigador do
departamento de reclamações judiciais.


CONTINUA
“Os pais se opõem à solicitação com base em sua fé religiosa, que é manifestada serenamente e fruto de profunda convicção. O filho deles também objeta e demonstra
boa compreensão dos princípios religiosos, possuindo considerável maturidade e capacidade de articulação verbal para a sua idade.”
Descreveu a seguir a evolução da enfermidade, a leucemia, o tratamento usual que em geral produzia bons resultados. Mas dois dos remédios comumente administrados
causavam anemia, que necessitava ser combatida mediante transfusões de sangue. Resumiu os argumentos do médico assistente, enfatizando a contagem declinante de hemoglobina
e os prognósticos sombrios caso isso não fosse revertido. Ela podia confirmar pessoalmente que a falta de ar de A era agora patente.
A contestação ao pedido se fundamentava em três argumentos principais. O primeiro era o de que, como lhe faltavam três meses para completar dezoito anos e ele era
muito inteligente, conhecendo as consequências de sua decisão, Adam devia ser tratado como possuidor da “competência de Gillick”. Em outras palavras, seria tão capaz
de ter suas decisões reconhecidas quanto qualquer adulto. Em segundo lugar, que a recusa de tratamento médico constituía um direito humano básico, razão por que
a corte deveria mostrar relutância em intervir. E que, por fim, a fé religiosa de A era genuína e devia ser respeitada.
Fiona abordou os seguintes pontos. Agradeceu ao advogado dos pais de A por ter chamado sua atenção para a seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: o consentimento
de uma pessoa de dezesseis anos “será tão eficaz como o seria se ele já houvesse alcançado a maioridade”. Listou as condições relativas à “competência de Gillick”,
citando Scarman no processo. Reconheceu a distinção entre a circunstância de uma criança competente com menos de dezesseis anos consentir num tratamento, possivelmente
contra a vontade dos pais, e de uma criança de menos de dezoito recusar um tratamento passível de salvar sua vida. Do que percebera naquela noite, estaria ela convencida
de que A tinha uma compreensão absoluta das implicações de serem aceitas sua vontade e a de seus pais?
“Ele é sem dúvida uma criança excepcional. Posso mesmo dizer, como o fez uma das enfermeiras hoje à noite, que se trata de um menino adorável, com o que certamente
concordam seus pais. Ele tem uma capacidade de compreensão excepcional para um jovem de dezessete anos. Mas creio que possui um entendimento limitado da provação
que deve confrontar, do pavor que o invadiria à medida que seu sofrimento e sua impotência aumentassem. Na verdade, ele tem uma noção romântica do que seja sofrer.
Entretanto...”
Deixou a palavra pendurada no ar, e o silêncio na sala se adensou enquanto ela passava os olhos pelas anotações.
“Entretanto, em última análise não me deixo influenciar pelo fato de que ele tenha ou não a compreensão absoluta de seu estado. Em vez disso, sou guiada pela decisão
do juiz Ward, como era chamado na época, com referência ao menor E, em julgamento que também envolveu um adolescente que pertencia às testemunhas de Jeová. Naquela
oportunidade, ele afirmou: ‘Assim, é o bem-estar da criança que preside a minha decisão, e cumpre a mim decidir o que dita o bem-estar de E’. Essa observação foi
cristalizada na clara prescrição da Lei da Criança de 1989, que garante nas duas primeiras linhas a primazia do bem-estar do menor. Entendo ‘bem-estar’ como englobando
‘felicidade’ e ‘interesses’. Também sou obrigada a levar em conta a vontade de A. Como já observei, ele a expressou claramente a mim, como o fez seu pai perante
esta corte. De acordo com as doutrinas de sua religião, derivadas de uma interpretação peculiar de três passagens da Bíblia, A se recusa a aceitar a transfusão de
sangue que provavelmente salvará sua vida.
“É um direito fundamental dos adultos recusarem qualquer tratamento médico. Tratar um adulto contra sua vontade significa cometer o crime de agressão. A está próximo
da idade em que pode tomar uma decisão por sua conta e risco. O fato de estar preparado para morrer por suas crenças religiosas demonstra quão profundas elas são.
O fato de que seus pais estão preparados para sacrificar um filho muito querido por causa de sua fé revela o poder da crença a que as testemunhas de Jeová obedecem.”
Mais uma vez ela parou e o público aguardou.
“É precisamente esse poder que me faz refletir, porque A, com seus dezessete anos, conheceu muito pouco fora do turbulento terreno das ideias religiosas e filosóficas.
Não faz parte dos métodos dessa seita cristã encorajar o debate aberto e a discordância na congregação, cujos membros são por eles chamados — de forma correta, alguém
poderia dizer — de ‘as outras ovelhas’. Não creio que a mente de A e suas opiniões lhe pertençam inteiramente. Durante toda a infância ele esteve exposto sem interrupção
a uma visão do mundo monocromática e poderosa, a cujo condicionamento não poderia escapar. Não promoverá seu bem-estar sofrer uma morte desnecessária e agonizante,
para assim se transformar num mártir de sua fé. As testemunhas de Jeová, como outras religiões, têm uma noção nítida do que nos aguarda após a morte, e as predições
deles sobre o fim dos dias, sua escatologia, são também rígidas e muito detalhadas. Este tribunal não tem opinião alguma sobre a vida no Além, que, de qualquer forma,
certo dia A descobrirá, ou deixará de descobrir, por conta própria. Até lá, presumindo uma boa recuperação, o bem-estar dele será mais bem servido por seu amor pela
poesia, por sua recém-descoberta paixão pelo violino, pelo aproveitamento de sua viva inteligência e pelas manifestações de uma natureza brincalhona e afetuosa,
por toda a vida e o amor que se abrem à sua frente. Em suma, entendo que A, seus pais e os anciãos da igreja tomaram uma decisão que é hostil ao bem-estar de A,
o qual constitui a principal consideração desta corte. Ele precisa ser protegido de tal decisão. Precisa ser protegido de sua religião e de si mesmo.
“Esta não foi uma questão simples de resolver. Ponderei cuidadosamente a idade de A, o respeito devido à sua fé e a dignidade do indivíduo contida no direito de
recusar tratamento. A meu juízo, sua vida é mais preciosa do que essa dignidade.
“Em consequência, nego a vontade de A e de seus pais. Minha ordem é que não seja necessário obter a concordância para a transfusão de sangue do primeiro e segundo
contestantes, que são os pais, e a concordância para a transfusão de sangue do terceiro contestante, que é o próprio A. Desse modo, o hospital demandante está legalmente
autorizado a aplicar em A os tratamentos médicos que julgue necessários, no entendimento de que podem administrar sangue e produtos dele derivados mediante transfusão.”
* * *
Eram quase onze da noite quando Fiona iniciou a caminhada para casa ao sair do tribunal. Àquela hora, os portões estavam trancados e não era possível cortar caminho
por dentro da Lincoln’s Inn. Antes de dobrar na Chancery Lane, ela desceu um pequeno trecho da Fleet Street para comprar uma refeição pronta numa loja de conveniência
que ficava aberta a noite inteira. Na noite anterior, isso teria sido uma missão deprimente, mas ela estava sentindo a cabeça leve, talvez porque não se alimentava
decentemente fazia dois dias. Na loja apertada e excessivamente iluminada, os alimentos com embalagens berrantes — vermelhos e roxos explosivos, amarelos de manchas
solares — pulsavam nas prateleiras em sintonia com seus batimentos cardíacos. Ela comprou uma torta de peixe congelada e examinou várias frutas antes de se decidir.
No caixa, atrapalhou-se com o dinheiro, deixando cair moedas no chão. O ágil rapaz asiático que trabalhava na máquina registradora impediu com o pé que as moedas
rolassem e, lhe dando um sorriso protetor, as pôs de volta na mão dela. Fiona se imaginou através dos olhos dele ao observar a expressão de grande cansaço dela,
ignorando ou sendo incapaz de apreciar o corte elegante do casaco e vendo apenas uma dessas velhotas inofensivas que viviam e comiam sozinhas, já um tanto incapazes,
andando pelas ruas tarde da noite.
Ela estava cantando “The Salley Gardens” com os lábios fechados enquanto seguia pela High Holborn. A sacola contendo as frutas e o sólido invólucro do jantar se
chocava agradavelmente contra sua perna. A torta seria aquecida no micro-ondas enquanto ela se preparava para ir se deitar, e a comeria já de camisola em frente
ao canal de notícias; depois disso, nada se interporia entre ela e o sono. Nenhum estímulo químico. No dia seguinte havia um divórcio de gente graúda — um guitarrista
famoso e uma esposa quase famosa, cantora de música romântica, com um excelente advogado e desejando abocanhar boa parte dos vinte e sete milhões de libras do marido.
Algodão-doce comparado com hoje, mas o interesse da imprensa seria igualmente intenso, a lei igualmente solene.
Dobrou na Gray’s Inn, seu santuário. Era sempre gostoso ver como o barulho do tráfego ia cessando à medida que caminhava. Uma comunidade fechada de certo valor histórico,
uma fortaleza de advogados e magistrados que também eram músicos, amantes do bom vinho, pseudoescritores, pescadores que usavam como iscas moscas artificiais, contadores
de histórias. Um ninho de fofocas e perícia profissional, além de um jardim delicioso ainda visitado pelo fantasma de Francis Bacon. Ela amava o lugar e não queria
sair dali nunca.
Entrou no prédio, verificou que a minuteria estava ligada, subiu até o segundo andar, ouviu o rangido costumeiro do quarto e sétimo degraus e, ao atingir o último
lance da escada, viu tudo e entendeu imediatamente. Seu marido estava lá, se levantando naquele momento com um livro na mão; atrás dele, a mala encostada à parede
havia servido como uma espécie de assento, tendo ao lado, no chão, o paletó junto à valise aberta de onde escapavam diversos papéis. Trancado do lado de fora, trabalhando
enquanto esperava. E por que não? Roupas amarrotadas, semblante irritado. Trancado do lado de fora e esperando fazia muito tempo. Sem dúvida não estava ali para
buscar camisas limpas e livros, não se trazia a mala. Seu primeiro pensamento, melancólico e egoísta, foi que agora teria de dividir o jantar calculado para uma
só pessoa. Então pensou que não seria necessário. Preferia não comer.
Subiu os últimos degraus até alcançar o patamar, sem dizer uma única palavra enquanto procurava na bolsa as chaves, as chaves novas, e o contornava a caminho da
porta. Ele que falasse primeiro.
O tom foi de queixume: “Telefonei a noite toda”.
Ela abriu a porta e entrou sem olhar para trás; deixou as compras na cozinha e parou. Seu coração batia forte demais. Ouviu a respiração mal-humorada dele ao trazer
a bagagem para dentro. Se era para haver uma confrontação, que ela não desejava, não agora, a cozinha era um espaço confinado demais. Pegou sua pasta e foi rapidamente
para a sala de visitas, ocupando seu lugar de sempre na chaise longue. Espalhar algumas páginas em volta de onde estava sentada era uma forma de proteção. Sem isso,
não saberia o que fazer de si.
O ruído da mala sendo arrastada pelo corredor e para dentro do quarto soou para ela como uma jogada de abertura. E um insulto. Pela força do hábito, tirou o sapato
e apanhou um documento ao acaso. O guitarrista tinha uma casa de alto padrão em Marbella. A crooner de canções românticas queria a casa. Mas, antes mesmo do casamento,
ele a adquirira da ex-mulher, dando em troca a casa da família no centro de Londres. E essa primeira esposa a havia ganho num acerto de divórcio com um ex-marido.
Irrelevante, Fiona não se furtou a declarar.
Um estalido no assoalho a fez olhar para cima. Jack parou na porta antes de preparar um drinque. Vestia uma calça jeans e uma camisa branca desabotoada no peito.
Será que se imaginava desejável? Reparou que ele não fizera a barba. Até mesmo do outro lado da sala os pelos pareciam grisalhos. Patético, ambos eram patéticos.
Ele se serviu de um uísque e levantou a garrafa na direção dela. Fiona disse não com a cabeça. Ele deu de ombros e atravessou a sala para se sentar em sua poltrona.
Ela era uma desmancha-prazeres, não sabia aproveitar o bom momento. Ele se acomodou com um suspiro de quem se sente em casa. A poltrona dele, a chaise longue dela,
outra vez a vida de casados. Ela olhou para a página em sua mão, a narrativa feita pela esposa do mundo desejável do guitarrista, impossível de absorver. Fez-se
silêncio enquanto ele bebia e ela olhava através da sala para nada em especial.
Então ele disse: “Olha, Fiona, eu te amo”.
Depois de alguns segundos, ela disse: “Prefiro que você durma no quarto de hóspedes”.
Ele baixou a cabeça em sinal de concordância. “Vou pegar minha mala.”
Jack não se levantou. Ambos conheciam a vitalidade do não dito, cujos espíritos invisíveis dançavam agora em volta deles. Ela não lhe dissera para se manter fora
do apartamento, aceitando tacitamente que ele podia dormir lá. Ele não lhe dissera ainda se a especialista em estatística o havia mandado embora, ou se ele tinha
mudado de opinião, ou se já havia experimentado um êxtase suficiente para durar até o túmulo. A mudança das fechaduras não fora comentada. Ele provavelmente achou
estranho Fiona ter chegado tão tarde. Ela mal suportava olhar para ele. O que se fazia necessário agora era uma briga, com vários capítulos se estendendo ao longo
do tempo. Talvez houvesse algumas digressões rancorosas, o arrependimento de Jack poderia vir embrulhado em reclamações, talvez demorasse meses até ela recebê-lo
na cama, o fantasma da outra mulher era capaz de pairar entre eles para sempre. Mas eles provavelmente encontrariam uma forma de recuperar, mais ou menos, o que
haviam tido antes.
A ideia do imenso esforço envolvido e da previsibilidade do processo a cansou ainda mais. No entanto, ela estava obrigada a segui-lo. Como se, por contrato, devesse
escrever um manual de direito enfadonho mas necessário. Achou que, afinal, gostaria de tomar um drinque, embora isso se parecesse demais com uma celebração. Estava
muito longe de uma reconciliação. Acima de tudo, não aguentaria ouvir outra vez que ele a amava. Queria estar sozinha na cama, de costas no escuro, mordiscando uma
fruta, deixando o resto cair no chão, até apagar de todo. O que a impedia de fazer isso? Ela se pôs de pé e começou a recolher seus documentos. Foi quando ele começou
a falar.
Foi uma torrente, em parte desculpas, em parte autojustificações, algumas das quais ela já ouvira. A mortalidade dele, os anos de total fidelidade, sua avassaladora
curiosidade de saber como seria, mas depois que saiu naquela noite, depois que chegou ao apartamento de Melanie, não demorou muito para se dar conta do erro. Ela
era uma estranha, ele não a entendia. E quando foram para o quarto dela...
Fiona levantou a mão em sinal de alerta. Não queria ouvir nada sobre o quarto. Ele fez uma pausa, refletiu, e continuou. Ele era um imbecil, ele percebeu, por se
deixar levar por uma necessidade sexual, quando deveria ter dado meia-volta naquela noite no momento em que ela abriu a porta, porém se sentiu envergonhado e obrigado
a ir adiante.
Apertando sua pasta contra o estômago, Fiona ficou no centro da sala observando-o, se perguntando como fazê-lo parar. Surpreendia-se que mesmo agora, com o dramalhão
conjugal em sua cena de abertura, a canção irlandesa continuasse girando em seu cérebro, o ritmo mais rápido para acompanhar o compasso da fala de Jack, soando ao
mesmo tempo mecânica e festiva como se tocada por um realejo de rua. Seus sentimentos eram confusos, obscurecidos pela fadiga e de difícil definição enquanto sobre
ela jorravam as palavras chorosas do marido. Sentiu nem tanto fúria ou um ressentimento amargo, conquanto algo mais que mera resignação.
Sim, disse Jack, ao chegar ao apartamento de Melanie ele se sentiu estupidamente obrigado a seguir em frente com o que começara. “E, quanto mais preso na armadilha
eu me sentia, mais me dava conta de como eu era um idiota por ameaçar tudo o que temos, tudo o que construímos juntos, este amor que...”
“Tive um dia longo”, ela disse ao atravessar a sala. “Vou pôr sua mala no corredor.”
Parou na cozinha para pegar uma maçã e uma banana em meio às compras postas sobre a mesa. Carregá-las no caminho para o quarto trouxe de volta a felicidade relativa
que sentira no trajeto entre o trabalho e a casa. Os primórdios de certa tranquilidade. Difícil de resgatar agora. Abriu a porta e viu a mala dele de pé sobre as
rodinhas, placidamente posta junto à cama. Então lhe ocorreu com clareza o que sentia com a volta de Jack. Tão simples. Era desapontamento por ele não ter continuado
longe. Só por mais algum tempo. Apenas isso. Desapontamento.
4.
Embora os fatos não o confirmassem, ela teve a impressão de que, no final do verão de 2012, os rompimentos e as crises conjugais ou crises entre parceiros na Grã-Bretanha
cresceram como uma maré aberrante de primavera, varrendo lares do mapa, espalhando bens e sonhos esperançosos, afogando quem não tinha um forte instinto de sobrevivência.
Promessas de amor foram negadas ou reformuladas, bons companheiros se transformaram em ardilosos combatentes escudados atrás de advogados, sem se importar com os
custos. Objetos da casa antes desdenhados eram motivo de amargas disputas, a tranquila confiança de outrora substituída por “acertos” redigidos com todo o cuidado.
Na mente dos envolvidos, a história do casamento era reescrita para que ele fosse visto como fadado ao insucesso desde o começo, o amor repaginado como mera ilusão.
E os filhos? Peças de um jogo, elementos de barganha a serem usados pelas mães; pretexto para acusações de abusos feitas em geral pelas mães, às vezes pelos pais,
embora fossem com frequência fantasiosas ou inventadas com todo o cinismo; crianças em estado de choque indo e vindo semanalmente de uma casa para a outra com base
em acordos de guarda compartilhada, o esquecimento de casacos e caixas de lápis sendo comunicado por meio de advogados; crianças condenadas a verem o pai uma ou
duas vezes por mês; ou nunca, pois os homens mais audaciosos desapareciam na oficina de ferreiro de um novo e quente matrimônio para forjar outros rebentos.
E o dinheiro? As novas moedas eram as meias verdades e os apelos especiais. Maridos gananciosos contra esposas gananciosas, manobrando como nações ao final de uma
guerra, tentando salvar das ruínas todos os despojos que podiam antes da retirada final. Homens ocultavam recursos em contas no exterior, mulheres exigiam para sempre
uma vida de conforto. Mães impediam crianças de ver os pais apesar de ordens judiciais; pais se negavam a oferecer sustento aos filhos apesar de ordens judiciais.
Maridos agrediam esposas e filhos, esposas mentiam ou maquinavam ardis, um ou outro, ou ambos, bêbados, viciados em drogas ou psicóticos; e crianças eram obrigadas
a tomar conta de pais incapazes, crianças de fato vítimas de abusos sexuais ou mentais, ou ambos, seus depoimentos transmitidos numa tela ao tribunal. E já fora
da área de competência de Fiona, em casos julgados pelas cortes criminais e não pelas varas de família, crianças torturadas, mortas de fome ou por espancamento,
espíritos maus arrancados de dentro delas em ritos animistas, padrastos jovens e cruéis quebrando ossos de bebês sob os olhares abobalhados e cúmplices das mães,
e drogas, álcool, sujeira doméstica extrema, vizinhos indiferentes e seletivamente surdos para não ouvir os gritos, assistentes sociais descuidados ou atarefados
demais para intervir.
O trabalho das varas de família não cessava. Era por simples acaso que tantos conflitos conjugais caíssem no colo de Fiona. Pura coincidência que ela própria estivesse
vivendo um conflito similar. Naquele setor do Judiciário, não era comum mandar gente para a cadeia, mas, apesar disso, em certos momentos ela tinha vontade de ordenar
que fossem encarcerados aqueles demandantes que, à custa dos filhos, desejavam uma mulher mais jovem, um marido mais rico ou menos enfadonho, um bairro mais elegante,
novas aventuras sexuais, novos amores, uma nova visão do mundo, um bom reinício antes que fosse tarde demais. A simples busca do prazer. Vulgaridade moral. Sua falta
de filhos e a situação com Jack davam forma a esses devaneios e, naturalmente, eles não eram para valer. Entretanto, embora mergulhasse bem fundo em seu reino mental,
ela nunca deixava que suas decisões fossem afetadas pelo desprezo puritano que devotava aos homens e às mulheres que destruíam sua família e se persuadiam de que
agiam altruisticamente pelo bem de todos. Nesses experimentos intelectuais, ela não teria poupado as pessoas sem filhos ou, pelo menos, não Jack. Um período de contrição
atrás das grades por contaminar o casamento deles em nome de uma novidade? Por que não?
Porque, depois do retorno dele, a vida no apartamento da Gray’s Inn era lúgubre e silenciosa. Tinha havido brigas durante as quais ela pusera para fora alguns sentimentos
amargos. Doze horas depois esses sentimentos se renovavam tão ardentemente quanto os votos matrimoniais, nada mudava, o ar não ficava mais “limpo”. Ela permanecia
traída. Ele apimentava suas desculpas com velhas recordações de que ela o isolara, de que era fria. Disse até, certa noite bem tarde, que ela era “uma chata” e havia
“perdido a arte de sentir prazer”. De todas as acusações, essas foram as que mais a incomodaram, porque ela percebia serem verdadeiras, o que em nada diminuiu sua
raiva.
Pelo menos ele deixara de dizer que a amava. Na troca de palavras mais recente, dez dias antes, fora reiterado tudo o que haviam se dito antes, todas as recriminações,
todas as defesas, todas as frases bem formuladas que eram fruto de uma longa elucubração prévia, até que depuseram as armas, cansados um do outro e de si próprios.
Desde então, nada. Moviam-se o dia todo, cada qual cuidando de seus afazeres em diferentes partes da cidade e, quando confinados no apartamento, evitavam cuidadosamente
se tocar, como dançarinos numa quadrilha. Eram sucintos e competiam em matéria de cortesia quando forçados a decidir sobre questões referentes à casa, buscavam não
comer juntos, trabalhavam em cômodos separados, com a atenção prejudicada pela vívida consciência, através das paredes, da presença radioativa do outro. Sem necessidade
de discuti-lo, declinavam todos os convites conjuntos. O único gesto conciliatório dela consistiu em lhe dar uma nova chave.
De comentários evasivos e taciturnos dele, ela deduziu que, no quarto da especialista em estatística, Jack não transpusera os portões do paraíso. O que não era tão
tranquilizador. Ele provavelmente iria tentar a sorte em outro lugar, talvez já estivesse tentando, desta vez livre das tristes amarras da honestidade. Suas “aulas
de geologia” poderiam ser um bom subterfúgio. Ela se lembrava de haver prometido abandoná-lo se ele fosse em frente com Melanie. Mas Fiona não tinha tempo para desfazer
aquele complexo nó. E ainda estava indecisa, não confiava em seu atual estado de espírito. Caso ele houvesse lhe dado mais tempo depois de sair de casa, ela teria
chegado a uma decisão clara e se empenhado em terminar o casamento ou reconstruí-lo. Por isso, se entregou ao trabalho na forma usual e resolveu sobreviver dia após
dia o drama agora serenado de sua vida com Jack.
Quando uma de suas sobrinhas deixou lá as filhas durante um fim de semana, gêmeas idênticas de oito anos, as coisas ficaram mais fáceis, o apartamento ficou maior,
porque as atenções se voltaram para fora. Por duas noites Jack dormiu no sofá da sala de visitas sem que as meninas fizessem perguntas. Pertenciam a um tipo antiquado
de crianças que mantinham as costas bem retas, com modos solenes e afetuosos, embora sujeitas a brigas repentinas e explosivas. Uma ou outra — era fácil distinguir
as duas — procurava Fiona onde ela estivesse lendo e, postada diante dela, descansando uma mão confiante em seu joelho, despejava uma torrente prateada de historinhas,
reflexões e fantasias. Fiona replicava com suas próprias historinhas. Duas vezes, durante aquela visita, aconteceu que, enquanto ela falava, uma onda de amor pela
menina contraiu sua garganta e marejou seus olhos. Ela estava se sentindo velha e tola. Incomodava-a relembrar como Jack era bom com as crianças. Correndo o risco
de ter uma crise de coluna, como aconteceu certa vez com os três filhos do irmão de Fiona, ele fazia brincadeiras pesadas, de que as meninas participavam com acessos
de gritos inumanos. Em casa, a mãe delas, ressentida por causa do divórcio, jamais as jogava para o alto de cabeça para baixo. Ele as levou aos jardins para ensinar
uma versão de críquete que tinha inventado, além de ler uma longa história para elas na cama com vibrante energia cômica e talento na imitação das vozes.
Mas um domingo à noite, depois que as gêmeas foram levadas, os aposentos se encolheram, o ar ficou pesado e Jack saiu sem dar explicações — sem dúvida um ato hostil.
Para um encontro amoroso, ela imaginou, enquanto se ocupava arrumando o quarto de hóspedes para impedir que seu moral baixasse ainda mais. Repondo os brinquedos
macios na cesta de vime onde residiam, recuperando as contas de vidro e os desenhos rejeitados debaixo da cama, ela sentiu a melancolia mansa e envolvente, uma forma
de nostalgia instantânea, que a ausência repentina de crianças pode causar. Aquele sentimento durou até a manhã de segunda-feira e cresceu até se transformar numa
tristeza generalizada, que a perseguiu na caminhada para o trabalho. Só começou a se dissipar quando ela se sentou à sua mesa a fim de se preparar para o primeiro
caso da semana.
Em algum momento Nigel Pauling deve ter trazido a correspondência, porque a pilha de cartas se encontrava subitamente perto de seu cotovelo. Vendo o pequeno envelope
azul-claro em cima de todos, ela quase chamou seu assistente para abri-lo. Não estava com vontade de ler mais uma profusão de agressões verbais de algum analfabeto
ou ameaças de violência. Voltou ao trabalho, mas não conseguiu se concentrar. O envelope absurdo, as letras arredondadas, a falta de um código postal, o selo ligeiramente
torto — era demais. Mas, olhando uma vez mais, ela reparou no carimbo postal e foi tomada por uma repentina suspeita. Sopesou a carta por um instante e a abriu.
No momento seguinte, viu pela saudação que estava certa. Tinha aguardado vagamente por aquilo durante semanas. Havia falado com Marina Greene e soubera que ele estava
progredindo bem, já fora do hospital, recuperando em casa o tempo de estudos perdido e esperando voltar à sala de aulas em breve.
Três páginas azul-claras, escritas em cinco lados. O primeiro tinha o número sete dentro de um círculo posto no centro e no alto da página. Acima da data.
Meritíssima!
Esta é minha sétima carta e acho que vai ser a que porei no correio.
As primeiras palavras do parágrafo seguinte tinham sido riscadas.
Vai ser a mais simples e a mais curta. Só quero lhe descrever um acontecimento. Entendo agora como ele foi importante. Mudou tudo. Estou feliz por ter esperado porque
não gostaria que a senhora visse as outras cartas. Muito embaraçosas! Mas não tão terríveis como os nomes que lhe chamei quando Donna me anunciou sua decisão. Eu
estava certo de que a senhora tinha visto as coisas do meu jeito. Na verdade, guardei perfeitamente o que me disse, que era óbvio que eu sabia o que queria, e lembro
que lhe agradeci. Eu ainda estava tendo um ataque de raiva e xingando quando aquele horrível médico assistente, o dr. “me chama de Rodney” Carter, entrou com meia
dúzia de pessoas e o equipamento. Eles pensaram que iam precisar me segurar. Mas eu estava fraco demais e, mesmo furioso, sabia o que a senhora queria que eu fizesse.
Por isso, estendi o braço e eles começaram. A ideia de que o sangue de alguém entrava no meu corpo foi tão nojenta que vomitei na cama.
Mas não é isso que quero lhe contar. É o seguinte. Como mamãe não conseguiu assistir, ela ficou sentada do lado de fora do quarto e eu ouvia seu choro, o que me
deixou muito triste. Não sei quando papai apareceu. Acho que fiquei desmaiado algum tempo e, quando retomei os sentidos, os dois estavam ao lado da minha cama —
ambos chorando, e me senti ainda mais triste porque todos nós estávamos desobedecendo a Deus. Mas o importante, e levei algum tempo para entender isto, é que eles
estavam chorando de ALEGRIA! Estavam muito felizes, me abraçando e se abraçando, agradecendo a Deus e soluçando. Eu me senti muito esquisito e não entendi nada por
um ou dois dias. Nem pensava naquilo. Então comecei a pensar. Meus pais seguiram os ensinamentos, obedeceram aos anciãos, fizeram tudo certo e podem esperar ser
aceitos no paraíso aqui na Terra — e ao mesmo tempo podem me ter vivo sem que nenhum de nós seja expulso da Igreja. Transfusão feita, mas não por culpa nossa! Culpa
da juíza, culpa do sistema sem fé, culpa do que às vezes chamamos de “mundo”. Que alívio! Ainda temos nosso filho embora tivéssemos dito que ele devia morrer.
Não sei como interpretar isto. Foi uma fraude? Para mim foi uma mudança de direção. Estou resumindo a história. Quando eles me trouxeram para casa, tirei a Bíblia
do meu quarto, simbolicamente a botei virada para baixo numa cadeira do corredor e disse que eu não ia mais voltar ao Salão do Reino, que podiam me expulsar da igreja
se quisessem. Tivemos umas brigas horríveis. O sr. Crosby tem vindo me convencer. Nenhuma chance. Estou escrevendo para a senhora porque preciso mesmo falar com
a senhora, preciso ouvir sua voz calma e aproveitar sua mente clara para discutir comigo este assunto. Sinto que a senhora me levou para perto de alguma outra coisa,
alguma coisa de fato bonita e profunda, mas não sei bem o que é. A senhora nunca me disse no que acreditava, mas adorei quando sentou ao meu lado e executamos “The
Salley Gardens”. Ainda leio o poema todos os dias. Gosto de ser “jovem e tolo”, e, se não fosse pela senhora, eu não seria nem uma coisa nem outra, eu estaria morto!
Eu lhe escrevi uma porção de cartas bobas, penso na senhora o tempo todo e quero mesmo ver a senhora para nos falarmos outra vez. Sonho acordado sobre nós, fantasias
maravilhosas e impossíveis, como a de que vamos fazer uma viagem de volta ao mundo juntos num navio, em camarotes vizinhos, e que passeamos o dia todo pelo convés
conversando.
Meritíssima, me escreva por favor, apenas algumas palavras para dizer que leu esta carta e que não me odeia por tê-la escrito.
Sempre seu,
Adam Henry
P.S.: Esqueci de dizer que estou ficando cada dia mais forte.
Ela não respondeu, ou melhor, não pôs no correio o bilhete que levou mais de uma hora para escrever naquela noite. No quarto e último rascunho, pensou ter sido bastante
afetuosa, feliz de sabê-lo em casa e se sentindo melhor, contente por ele ter boas recordações da visita dela. Aconselhou-o a ser carinhoso com os pais. Era normal,
como adolescente, questionar as crenças com que havíamos sido criados, mas isso devia ser feito de modo respeitoso. Terminou dizendo, embora não fosse verdade, que
havia ficado atraída pela ideia de uma volta ao mundo num navio. Acrescentou que, quando jovem, tinha sonhos de fuga como o dele. Isso também não era verdade, pois
ela havia sido ambiciosa demais, mesmo com dezesseis anos, ávida demais por boas notas nos exames para pensar em escapar. As visitas como adolescente a seus primos
de Newcastle foram suas únicas aventuras. Olhando a cartinha no dia seguinte, não foi a afetuosidade que a impressionou, e sim a frieza, os conselhos esfarrapados,
a linguagem impessoal, as falsas lembranças. Releu a carta dele e foi mais uma vez tocada por sua inocência e calor humano. Melhor não mandar nada do que decepcioná-lo.
Se mudasse de opinião, poderia escrever mais tarde.
Estava se aproximando o momento em que realizaria o circuito itinerante, visitando cidades inglesas e antigos vilarejos na companhia de outro juiz especializado
em direito criminal e cível. Ela julgaria casos que, de outra forma, precisariam ser transferidos para os tribunais de Londres. Ela ficaria hospedada em locais especialmente
bem preservados, mansões impressionantes de interesse histórico e arquitetônico onde, em certos casos, as adegas eram lendárias e as cozinheiras provavelmente decentes.
As autoridades do lugar costumavam convidá-la para jantar. Ela e seu colega retribuiriam a gentileza nas casas onde estivessem instalados, convidando figuras eminentes
ou interessantes (havia uma clara distinção entre as duas categorias) da localidade. Os quartos de dormir eram bem mais sofisticados que o seu, as camas mais largas,
os lençóis de tecido mais fino. Em tempos mais felizes, havia, para uma mulher bem casada, um elemento de culpa e prazer sensual naquelas acomodações a sós. Agora,
ela ansiava escapar do silencioso e solene pas de deux em casa. E a primeira parada era sua cidade inglesa predileta.
Certa manhã no começo de setembro, uma semana antes de iniciar a viagem, ela recebeu uma segunda carta. Mesmo antes de lê-la sua preocupação desta vez foi maior,
porque o envelope azul se encontrava sobre o capacho do vestíbulo de seu apartamento, em meio a circulares e a uma conta de luz. Nenhum endereço, só o nome dela.
Bem simples para Adam Henry esperar no Strand ou na Carey Street e segui-la à distância.
Jack já tinha saído para o trabalho. Ela levou a carta para a cozinha e se sentou diante dos restos do café da manhã.
Meritíssima,
Nem sei o que escrevi porque não guardei uma cópia, mas tudo bem que a senhora não tenha respondido. Ainda preciso conversar com a senhora. Aqui estão minhas notícias
— grandes brigas com meus pais, fantástico estar de volta à escola, me sentindo melhor, me sentindo feliz e depois infeliz e feliz outra vez. Às vezes a ideia do
sangue de um estranho dentro de mim me causa enjoo, como se eu tivesse bebido a saliva de alguém. Ou pior. Não posso me livrar da ideia de que a transfusão é uma
coisa errada, mas não me importo mais. Tenho tantas perguntas para a senhora, mas nem tenho certeza de que se lembra de mim. A senhora deve ter tido dezenas de casos
desde o meu e feito um bocado de escolhas sobre outras pessoas. Sinto ciúme! Quis conversar com a senhora na rua, chegar perto e tocar no seu ombro. Não fiz isso
porque sou um covarde. Achei que a senhora podia não me reconhecer. A senhora também não precisa responder a esta carta — o que significa que espero que responda.
Por favor, não se preocupe, não quero atormentá-la ou nada parecido. Só sinto que a tampa da minha cabeça explodiu. Está saindo tudo!
Sinceramente seu,
Adam Henry
Fiona mandou imediatamente um e-mail para Marina Greene perguntando se ela podia encontrar um tempinho para visitar o rapaz num acompanhamento de rotina e depois
lhe enviar um relatório. Recebeu o retorno antes do fim do dia. Marina se encontrara com Adam durante a tarde na escola, onde ele estava começando um período de
estudos especiais a fim de se preparar para os exames antes do Natal. Ficou meia hora com ele, que havia engordado e estava corado. Mostrou-se animado, até mesmo
“engraçado e travesso”. Havia alguns problemas em casa, a maior parte sobre diferenças religiosas com os pais, mas ela não achou nada de estranho nisso. Em particular,
o diretor lhe disse que Adam, depois de voltar do hospital, havia trabalhado bastante para recuperar o tempo perdido. Seus professores consideravam que ele estava
progredindo otimamente. Contribuía bastante para as atividades em sala de aula, nenhum problema de comportamento. Em suma, tudo corria bem. Tranquilizada, Fiona
decidiu não escrever para ele.
Uma semana depois, na manhã da segunda-feira em que deveria viajar para o nordeste da Inglaterra, ocorreu um desvio minúsculo na falha geológica conjugal, um movimento
quase tão imperceptível quanto o deslocamento das placas tectônicas. Foi tácito, algo não reconhecido abertamente. Mais tarde, quando se encontrava no trem e repassou
tudo, o instante pareceu se situar na fronteira entre o real e o imaginado. Será que ela podia confiar em sua memória? Eram sete e meia quando entrara na cozinha.
Jack estava de pé junto ao balcão, de costas para ela, despejando grãos de café no moedor. A pasta dela já estava no corredor e Fiona cuidava de recolher uns poucos
documentos que faltavam. Como de hábito, ficou relutante em dividir um espaço pequeno com ele. Pegou a echarpe das costas da cadeira e saiu para continuar a busca
na sala de visitas.
Voltou alguns minutos depois. Jack tirava uma jarra de leite do micro-ondas. Eles eram exigentes em matéria de café da manhã e, no curso dos anos, seus gostos tinham
convergido. Gostavam de café forte feito com grãos colombianos de alta qualidade, servido em canecas brancas e altas de borda fina, com leite morno, e não quente.
Ainda de costas para ela, Jack derramou leite em seu café e depois se voltou com a caneca erguida e ligeiramente estendida na direção dela. Nada na expressão de
Jack sugeria que ele estava lhe oferecendo a caneca, e ela nem assentiu nem recusou com a cabeça. Os olhos dos dois se encontraram por um instante, e então ele depositou
a caneca na mesa de pinho e empurrou-a uns cinco centímetros na direção dela. Isso não significava necessariamente muito, pois, em suas tensas manobras para se evitar,
ambos permaneciam escrupulosamente corteses, como se cada qual estivesse procurando superar o outro em se mostrar razoável, os dois irrepreensíveis graças à ausência
de rancor. Não faria sentido preparar um bule de café só para uma pessoa. Mas há maneiras e maneiras de pôr uma caneca na mesa, desde a batidinha peremptória da
porcelana contra a madeira até o pouso silencioso e cuidadoso, assim como há maneiras e maneiras de aceitar uma caneca, coisa que ela fez mansamente, em câmera lenta,
sem se afastar tão logo tomou um gole, ou não tão de imediato quanto o teria feito em qualquer outra manhã. Passaram-se alguns segundos de silêncio, em seguida pareceu
que isso era o mais longe que ambos estavam preparados para ir, que o momento continha coisas demais para eles e que tentar algo além os faria recuar. Jack se afastou
a fim de preparar uma caneca para ele, enquanto Fiona se afastou para ir buscar alguma coisa no quarto. Moveram-se um pouco mais devagar do que era comum, talvez
quase com relutância.
No começo da tarde, ela chegou a Newcastle. Um motorista esperava do lado de lá das catracas para levá-la aos tribunais de Quayside. Nigel Pauling a aguardava na
entrada dos magistrados e a conduziu ao gabinete que ela ocuparia. Ele chegara de Londres de manhã com os documentos e as togas — os paramentos completos, como disse
—, porque Fiona participaria da Corte da Rainha além da Vara da Família. O assistente do tribunal apareceu para dar as boas-vindas formais, seguido do funcionário
que cuidava da agenda, com o qual ela repassou os casos a serem ouvidos nos dias seguintes.
Como havia outras pequenas matérias a tratar, só por volta das quatro da tarde Fiona ficou livre para sair. A previsão era de que uma tempestade de verão chegaria
do sudoeste no começo da noite. Ela mandou que o motorista esperasse e deu uma caminhada pelo calçadão junto ao rio, passando por baixo da ponte Tyne e ao longo
de Sandhill, pelos novos cafés ao ar livre e por jardins floridos junto a sólidos prédios comerciais com fachadas clássicas. Subiu as escadas até Castle Garth e
parou no alto para olhar o rio que ficara para trás. Ela tinha uma queda por aquela mistura exuberante de peças poderosas de ferro fundido, aço e vidro pós-industrial,
de velhos armazéns salvos da decrepitude por uma fantasia juvenil de cafés e bares. Compartilhava um passado com Newcastle e se sentia bem lá. Na adolescência, durante
as recorrentes doenças de sua mãe, ia passar algum tempo ali com suas primas prediletas. Tio Fred, dentista, era o homem mais rico que ela conhecia. Tia Simone ensinava
francês numa escola primária. A casa era agradavelmente caótica, uma libertação dos domínios de sua mãe em Finchley, encerados ao exagero e insuficientemente arejados.
As primas, de sua idade, eram alegres e aventurosas, obrigando-a a sair à noite em missões aterradoras que incluíam a ingestão de bebidas e quatro músicos dedicados
com cabelos até a cintura e bigodes de pontas caídas, que pareciam transviados mas provaram ser gente boa. Seus pais ficariam horrorizados de saber que a filha estudiosa
de dezesseis anos era presença assídua em certos bares, que bebia licor de cereja e cuba-libre, e tivera seu primeiro amante. E, juntamente com as primas, ela era
a tiete fiel, e tolerada como assistente novata, de uma banda de blues mal equipada e mal remunerada, ajudando a carregar amplificadores e peças da bateria numa
caminhonete enferrujada que vivia enguiçando. Com frequência afinava as guitarras. Sua emancipação tinha muito a ver com o fato de que aquelas visitas, além de ocasionais,
nunca duravam mais que três semanas. Se permanecesse por mais tempo — nunca uma possibilidade real —, talvez fosse até autorizada a cantar os blues. Poderia ter
se casado com Keith, o principal cantor do grupo e tocador de gaita, que tinha um braço atrofiado e a quem ela adorava timidamente.
Tio Fred mudou seu consultório para o sul do país quando ela tinha dezoito anos, o caso com Keith acabou em lágrimas e em alguns poemas de amor que ela não enviou.
Fiona jamais voltou a viver esse tipo de relacionamento arriscado e tremendamente divertido, o qual se tornou parte inseparável da ideia que fazia de Newcastle.
Não seria possível reproduzi-lo em Londres, a sede de suas ambições profissionais. Por vários anos ela voltara ao Nordeste sob diversos pretextos, além de quatro
vezes para cumprir o circuito judiciário. Sempre fazia bem ao seu espírito se aproximar da cidade pela alta ponte Stephenson sobre o rio Tyne, chegando com o espírito
excitado de uma adolescente, descendo do trem na gare central sob os três grandes arcos criados por John Dobson e saindo pela extravagante porte cochère neoclássica
desenhada por Thomas Prosser. Foi seu tio dentista, recebendo-a com seu Jaguar verde e suas primas impacientes, quem a ensinou a apreciar a gare e os tesouros arquitetônicos
da cidade. Ela nunca se desfizera da impressão de estar no exterior, de se encontrar numa cidade-Estado báltica caracterizada por um curioso otimismo e orgulho.
O ar era mais revigorante, a luz de um cinzento amplo e luminescente, os habitantes amistosos, porém mais incisivos, autoconscientes ou ironizando a si próprios
como atores numa comédia. Perto do sotaque deles, o dela parecia tenso e artificial. Se, como Jack insistia, a geologia moldava a variedade de tipos e de destinos
dos ingleses, então os moradores da cidade eram feitos de granito e ela de calcário friável. Mas, com sua paixonite juvenil pela cidade, com suas primas, a banda
e o primeiro namorado, acreditava que poderia mudar, se tornar mais autêntica, mais verdadeira, uma genuína cidadã daquela região. Anos depois, recordar-se de tal
ambição ainda a fazia sorrir. No entanto, o sentimento lá estava em cada regresso, uma vaga noção de renovação, de um potencial não explorado em outra vida — e isso
mesmo às vésperas de fazer sessenta anos.
O carro em cujo assento ela se reclinou era um Bentley da década de 1960, e seu destino o Leadman Hall, situado dentro de seu próprio parque a um quilômetro e meio
dos portões que ela agora transpunha. Logo passou por um campo de críquete, depois por uma alameda de faias com as copas já agitadas pelo vento que crescia, mais
tarde por um lago tomado por plantas aquáticas. O palacete, no estilo do arquiteto Andrea Palladio e havia pouco tempo pintado de um branco brilhante demais, tinha
doze quartos e nove empregados para servir a dois magistrados do Tribunal Superior em seu circuito itinerante. Pevsner, conhecido historiador da arte arquitetônica,
aprovara sem grande entusiasmo a estufa, e nada mais. Somente uma anomalia burocrática havia preservado Leadman de ser destruído por medida de economia do governo,
mas o jogo estava chegando ao fim porque aquele era o último ano em que a construção iria contar com o Judiciário. O palacete, alugado algumas semanas por ano de
uma família da região com interesses históricos na mineração de carvão, servia principalmente como centro de conferências e local para festas de casamento. Seu campo
de golfe, quadras de tênis e piscina externa aquecida eram, como agora se reconhecia, luxos desnecessários para juízes de passagem e muito atarefados. Do ano seguinte
em diante, uma empresa de táxi da cidade forneceria um espaçoso Vauxhall para substituir o Bentley. As acomodações seriam num hotel do centro de Newcastle. Os magistrados
da Vara Criminal, que às vezes mandavam para a prisão por longos períodos homens da região com parentes assustadores, tinham clara preferência pelo isolamento de
um palacete. Mas ninguém era capaz de argumentar em favor de Leadman sem dar a impressão de que o fazia por puro interesse.
Pauling esperava com a governanta no pátio de cascalho junto à entrada principal. Ele desejava dar um sentido especial àquela derradeira visita. Aproximou-se da
porta de trás do carro com um floreio irônico e bateu os calcanhares. Como sempre, a governanta era nova, uma polonesa de uns vinte e poucos anos, calculou Fiona,
mas seu olhar era direto e frio, e ela pegou com firmeza a mala mais pesada da juíza até que Pauling a tomou de sua mão. Lado a lado, o assistente e a governanta
conduziram Fiona ao quarto do primeiro andar que ela considerava como seu. Ficava na frente da casa, com três janelas altas que davam para a alameda de faias e para
o trecho do lago invadido por ervas. Além do quarto de quase dez metros de comprimento, havia a sala de estar com uma mesa de trabalho. O banheiro, no entanto, ficava
no fim de um corredor e três degraus atapetados abaixo do nível do quarto. Na última vez em que Leadman tinha sido modernizado, a proliferação generalizada de lavatórios
e chuveiros ainda não começara.
A tempestade chegou quando Fiona saiu do banho. Vestida com um penhoar, plantou-se diante da janela central observando as pancadas de chuva, cortinas fantasmagóricas
que corriam velozes e, por segundos, ocultavam os campos. Viu o galho mais alto de uma das faias próximas se partir e começar a cair, ficando de cabeça para baixo
e balançando ao ser contido pelos galhos mais baixos, até mergulhar de novo, voltar a se emaranhar e ser enfim liberado pelo vento para se chocar com um baque contra
o solo. Quase tão alto quanto o silvar da chuva no cascalho era o coro de gemidos nas calhas do telhado. Ela acendeu as luzes e começou a se vestir. Já estava atrasada
dez minutos para o xerez na sala de visitas.
Quatro homens de terno preto e gravata, cada qual com seu gim e sua tônica, pararam de conversar e se ergueram das poltronas quando ela entrou. Um garçom de paletó
branco engomado foi preparar o drinque dela, enquanto Caradoc Ball da Corte da Rainha, colega de Fiona encarregado dos casos criminais, apresentou-a aos demais —
um professor de jurisprudência, um homem que tinha negócios no setor de fibras ópticas e alguém que trabalhava para o governo na conservação da costa marítima. Todos
de alguma forma eram ligados a Ball. Ela não convidara ninguém para a primeira noite. Seguiu-se a conversa obrigatória sobre o clima tempestuoso. Depois, uma digressão
sobre como as pessoas de mais de cinquenta anos e todos os norte-americanos ainda viviam no mundo das temperaturas medidas em Fahrenheit. Depois, como os jornais
britânicos, para obter o máximo de impacto, noticiavam as baixas temperaturas em graus Celsius e as quentes em Fahrenheit. Durante todo o tempo ela se perguntava
por que o rapaz curvado sobre o carrinho de bebidas estava demorando tanto. Ele trouxe o drinque dela justamente quando estava sendo lembrada a já distante transição
para as moedas decimais.
Fiona já sabia pelo próprio Ball que ele estava em Newcastle para realizar o novo julgamento de um caso de assassinato no qual um homem era acusado de haver matado
sua mãe em casa com golpes de porrete devido aos maus-tratos que ela infligia à filha mais jovem, meia-irmã do réu. A arma do crime não tinha sido encontrada e a
prova de DNA era inconclusiva. A defesa argumentava que a mulher havia sido morta por um intruso. O julgamento fora anulado quando se descobriu que um jurado tinha
revelado aos outros membros do júri informações que colhera na internet pelo celular. Ele encontrara a reportagem de um jornal sensacionalista, publicada cinco anos
antes, sobre a prévia condenação do homem por agressão violenta. Na nova era de acesso digital, alguma coisa precisava ser feita para “esclarecer” certas questões
aos jurados. O professor de jurisprudência havia pouco tempo apresentara um estudo à Comissão Jurídica, possivelmente objeto da conversa que Fiona interrompera ao
entrar na sala. Agora ela foi retomada. O especialista em fibras ópticas perguntou como seria possível impedir que os jurados buscassem informações na privacidade
de suas casas ou conseguissem que um membro da família o fizesse por eles. Relativamente simples, segundo o professor. Os próprios jurados se policiariam. Seriam
obrigados, sob pena de prisão, a apontar qualquer um deles que discutisse matérias não apresentadas perante o tribunal. Dois anos no máximo pela divulgação de tais
matérias, seis meses no máximo por não informar a violação. A Comissão daria seu parecer conclusivo no ano seguinte.
Nesse momento, o mordomo os convidou a seguirem para a mesa de jantar. Embora não pudesse ter mais de trinta anos, seu rosto era doentiamente pálido, como se coberto
de talco. Tão branco quanto uma aspirina — Fiona certo dia ouvira uma proprietária rural francesa dizer. Mas o mordomo não parecia doente pois mantinha uma atitude
impessoal e segura. Enquanto aguardava à pequena distância, com a cabeça inclinada para a frente em sinal de atenção, eles terminaram seus drinques e, seguindo Fiona,
atravessaram uma porta de folha dupla rumo à sala de jantar. A mesa, que poderia comportar trinta pessoas, estava posta para cinco numa extremidade solitária. A
sala era recoberta de lambris, pintados de um laranja quase fluorescente, com desenhos de flamingos calculadamente espaçados. Os convivas encontravam-se agora no
lado norte da casa, atingido em cheio pelo vento e onde as três janelas de guilhotina sacudiam, produzindo um ruído surdo. O ar estava frio e úmido. Havia um buquê
de flores secas na lareira. O mordomo explicou que ela havia sido bloqueada muitos anos antes, mas que ele traria um aquecedor elétrico. Eles avaliaram a distribuição
dos assentos e, após alguns momentos de polida incerteza, concordaram que, em respeito à simetria, Fiona se sentaria à cabeceira.
Até então ela mal falara. O mordomo pálido serviu um vinho branco. Dois garçons trouxeram patê de arenque e torradas finas. À esquerda dela estava o perito em conservação,
Charlie, um cinquentão gordo, careca e bem-humorado. Enquanto os outros continuavam a falar sobre jurados, ele perguntou cortesmente sobre o trabalho dela. Resignada
a uma rodada de conversinha fiada, Fiona explicou em termos gerais o trabalho da Vara de Família. Mas Charlie queria detalhes. Que tipo de decisão iria tomar no
dia seguinte? Ela se sentia mais feliz falando sobre um caso específico. Uma instituição local desejava ficar com a guarda de duas crianças, um menino de dois anos
e uma menina de quatro. A mãe era alcoólatra e também viciada em anfetaminas. Sofria crises psicóticas durante as quais imaginava estar sendo espionada por lâmpadas
elétricas. Tornara-se incapaz de cuidar de si própria ou das crianças. O pai, separado dela, tinha permanecido distante, mas agora alegava que ele e sua namorada
podiam cuidar das crianças. Ele também enfrentava problemas com drogas e era fichado na polícia, embora tivesse direito sobre os filhos. Um assistente social se
pronunciaria no dia seguinte perante o tribunal acerca da adequação dele como pai. Os avós maternos adoravam as crianças, eram competentes e queriam cuidar delas,
porém não tinham amparo legal para isso. A instituição local, cujo serviço de atendimento a menores havia sido criticado num relatório oficial, se opunha aos avós
por razões que ainda não estavam claras. As três partes — mãe, pai e avós — estavam amargamente divididas. Outra complicação era existirem opiniões contraditórias
acerca da menina de quatro anos. Um pediatra disse que ela tinha necessidades especiais, outro, contratado pelos avós, acreditava que, conquanto a menina estivesse
perturbada pelo comportamento da mãe e abaixo do peso normal por causa das refeições em horários irregulares, seu desenvolvimento era normal.
Havia, Fiona disse, muitos outros casos similares agendados para aquela semana. Charlie levou a mão à testa e fechou os olhos. Que encrenca! Se ele tivesse de tomar
uma decisão na manhã seguinte em um só caso como aquele, ficaria acordado a noite toda, roendo as unhas e abusando das bebidas oferecidas no quarto do hotel. Fiona
perguntou por que ele estava lá. Charlie tinha vindo de Whitehall a fim de persuadir um grupo de fazendeiros da costa a se unir a algumas organizações de proteção
ambiental, para permitirem que suas pastagens voltassem a ser cobertas pela água do mar, retornando à condição de pântanos salgados. Essa era de longe a melhor e
mais barata forma de defesa contra a inundação da costa, maravilhosa para a vida selvagem, sobretudo pássaros, e boa também para o turismo de pequena escala. Mas
havia uma forte oposição de certos segmentos do setor agrícola, embora os fazendeiros fossem ser bem recompensados. Durante todo o dia o tinham calado aos berros
nas reuniões. Corria o rumor de que o plano era compulsório. Ninguém acreditava nele quando dizia que não era assim. Viam-no como um representante do governo central,
com o qual os fazendeiros estavam irritados por uma série de outras questões que não eram de sua alçada. No final, tinha levado uns trancos num corredor. Um indivíduo
“com metade da minha idade e o dobro da minha força” havia agarrado sua gola e murmurado alguma coisa com o sotaque local que ele não tinha entendido. Melhor assim.
Amanhã ele voltaria e tentaria de novo. Estava certo de que no final iria conseguir o que queria.
Bom, isso soava a ela como um dos círculos especiais do inferno, bem pior do que qualquer mãe psicótica. Os dois estavam dando umas risadinhas por conta dessa observação,
quando perceberam que os outros três tinham abandonado a conversa deles e os ouviam.
Caradoc Ball, que era um velho colega de escola de Charlie, disse: “Espero que você saiba que está falando com uma juíza muito eminente. Certamente se lembra do
caso dos irmãos siameses”.
Todos se lembravam e, à medida que os pratos foram retirados e o boeuf en croûte servido com um Château Latour, conversaram e fizeram perguntas a ela sobre o famoso
caso. Fiona lhes disse tudo o que queriam saber. Todos tinham uma opinião, mas, como era a mesma, logo passaram a discutir a paixão que a história suscitara nos
jornais e como eles a haviam disputado. Dali foi um passo para uma troca de fofocas sobre os lances mais recentes da Investigação Leveson.* Terminaram a carne. À
frente, como dizia o cartão com o menu, havia um pudim de pão. Logo, logo, pensou Fiona, estariam discutindo a sabedoria ou a loucura de o Ocidente não mandar tropas
para a Síria. Era impossível calar Caradoc sobre aquele tema. E, de fato, ele o introduzia quando se deram conta de vozes ecoando no corredor. Pauling e o mordomo
de rosto branco pararam no umbral da porta e depois se aproximaram dela.
O mordomo se pôs de lado, com um olhar contrariado, enquanto Pauling, depois de pedir desculpas a todos com um aceno de cabeça, inclinou-se por cima da cadeira de
Fiona e disse baixinho perto de seu ouvido: “Minha senhora, perdão por interromper, mas infelizmente há um assunto que exige sua atenção imediata”.
Ela limpou os lábios com o guardanapo e se pôs de pé. “Me desculpem, senhores.”
Sem mudar de expressão, todos se levantaram e ela atravessou a sala na frente dos dois homens. Já do lado de fora, ela disse ao mordomo: “Ainda estamos esperando
por aquele aquecedor”.
“Vou pegar agora.”
Havia algo impertinente em seu jeito ao dar meia-volta, e ela olhou para seu assistente com as sobrancelhas erguidas.
Mas ele simplesmente disse: “Por aqui”.
Ela o seguiu através do corredor e do que fora antes uma biblioteca. As estantes estavam repletas de livros comprados em lojas de objetos usados, do tipo que os
hotéis adquirem por metro para criar uma atmosfera respeitável em certos ambientes.
Pauling disse: “É o rapaz das testemunhas de Jeová, Adam Henry. A senhora se lembra do caso da transfusão? Parece que ele a seguiu até aqui. Andou na chuva, está
completamente encharcado. Queriam expulsá-lo, mas achei que a senhora precisava ser informada antes”.
“Onde ele está?”
“Na cozinha. É mais quentinho lá.”
“Melhor trazê-lo aqui.”
Tão logo Pauling saiu, ela se levantou e caminhou lentamente pela sala, consciente de que seu ritmo cardíaco tinha aumentado. Caso houvesse respondido às cartas,
não estaria agora defrontando aquilo. Defrontando o quê? O envolvimento desnecessário com um caso fechado. E mais que isso. Mas não havia tempo para refletir. Ouviu
passos se aproximando.
A porta se abriu e Pauling fez o rapaz passar. Ela nunca o vira fora da cama e se surpreendeu com sua altura, bem mais de um metro e oitenta. Vestia seu uniforme
escolar, calça de flanela cinza, suéter cinza, camisa branca, um blusão bem leve, encharcado da cabeça aos pés, o cabelo em desordem depois de ter sido enxugado.
Uma pequena mochila pendia frouxamente de sua mão. O toque patético era dado pela toalha de chá do Leadman, com ilustrações dos pontos turísticos locais, envolvendo suas costas para aquecê-lo.


CONTINUA

Nesse momento, o mordomo os convidou a seguirem para a mesa de jantar. Embora não pudesse ter mais de trinta anos, seu rosto era doentiamente pálido, como se coberto
de talco. Tão branco quanto uma aspirina — Fiona certo dia ouvira uma proprietária rural francesa dizer. Mas o mordomo não parecia doente pois mantinha uma atitude
impessoal e segura. Enquanto aguardava à pequena distância, com a cabeça inclinada para a frente em sinal de atenção, eles terminaram seus drinques e, seguindo Fiona,
atravessaram uma porta de folha dupla rumo à sala de jantar. A mesa, que poderia comportar trinta pessoas, estava posta para cinco numa extremidade solitária. A
sala era recoberta de lambris, pintados de um laranja quase fluorescente, com desenhos de flamingos calculadamente espaçados. Os convivas encontravam-se agora no
lado norte da casa, atingido em cheio pelo vento e onde as três janelas de guilhotina sacudiam, produzindo um ruído surdo. O ar estava frio e úmido. Havia um buquê
de flores secas na lareira. O mordomo explicou que ela havia sido bloqueada muitos anos antes, mas que ele traria um aquecedor elétrico. Eles avaliaram a distribuição
dos assentos e, após alguns momentos de polida incerteza, concordaram que, em respeito à simetria, Fiona se sentaria à cabeceira.
Até então ela mal falara. O mordomo pálido serviu um vinho branco. Dois garçons trouxeram patê de arenque e torradas finas. À esquerda dela estava o perito em conservação,
Charlie, um cinquentão gordo, careca e bem-humorado. Enquanto os outros continuavam a falar sobre jurados, ele perguntou cortesmente sobre o trabalho dela. Resignada
a uma rodada de conversinha fiada, Fiona explicou em termos gerais o trabalho da Vara de Família. Mas Charlie queria detalhes. Que tipo de decisão iria tomar no
dia seguinte? Ela se sentia mais feliz falando sobre um caso específico. Uma instituição local desejava ficar com a guarda de duas crianças, um menino de dois anos
e uma menina de quatro. A mãe era alcoólatra e também viciada em anfetaminas. Sofria crises psicóticas durante as quais imaginava estar sendo espionada por lâmpadas
elétricas. Tornara-se incapaz de cuidar de si própria ou das crianças. O pai, separado dela, tinha permanecido distante, mas agora alegava que ele e sua namorada
podiam cuidar das crianças. Ele também enfrentava problemas com drogas e era fichado na polícia, embora tivesse direito sobre os filhos. Um assistente social se
pronunciaria no dia seguinte perante o tribunal acerca da adequação dele como pai. Os avós maternos adoravam as crianças, eram competentes e queriam cuidar delas,
porém não tinham amparo legal para isso. A instituição local, cujo serviço de atendimento a menores havia sido criticado num relatório oficial, se opunha aos avós
por razões que ainda não estavam claras. As três partes — mãe, pai e avós — estavam amargamente divididas. Outra complicação era existirem opiniões contraditórias
acerca da menina de quatro anos. Um pediatra disse que ela tinha necessidades especiais, outro, contratado pelos avós, acreditava que, conquanto a menina estivesse
perturbada pelo comportamento da mãe e abaixo do peso normal por causa das refeições em horários irregulares, seu desenvolvimento era normal.
Havia, Fiona disse, muitos outros casos similares agendados para aquela semana. Charlie levou a mão à testa e fechou os olhos. Que encrenca! Se ele tivesse de tomar
uma decisão na manhã seguinte em um só caso como aquele, ficaria acordado a noite toda, roendo as unhas e abusando das bebidas oferecidas no quarto do hotel. Fiona
perguntou por que ele estava lá. Charlie tinha vindo de Whitehall a fim de persuadir um grupo de fazendeiros da costa a se unir a algumas organizações de proteção
ambiental, para permitirem que suas pastagens voltassem a ser cobertas pela água do mar, retornando à condição de pântanos salgados. Essa era de longe a melhor e
mais barata forma de defesa contra a inundação da costa, maravilhosa para a vida selvagem, sobretudo pássaros, e boa também para o turismo de pequena escala. Mas
havia uma forte oposição de certos segmentos do setor agrícola, embora os fazendeiros fossem ser bem recompensados. Durante todo o dia o tinham calado aos berros
nas reuniões. Corria o rumor de que o plano era compulsório. Ninguém acreditava nele quando dizia que não era assim. Viam-no como um representante do governo central,
com o qual os fazendeiros estavam irritados por uma série de outras questões que não eram de sua alçada. No final, tinha levado uns trancos num corredor. Um indivíduo
“com metade da minha idade e o dobro da minha força” havia agarrado sua gola e murmurado alguma coisa com o sotaque local que ele não tinha entendido. Melhor assim.
Amanhã ele voltaria e tentaria de novo. Estava certo de que no final iria conseguir o que queria.
Bom, isso soava a ela como um dos círculos especiais do inferno, bem pior do que qualquer mãe psicótica. Os dois estavam dando umas risadinhas por conta dessa observação,
quando perceberam que os outros três tinham abandonado a conversa deles e os ouviam.
Caradoc Ball, que era um velho colega de escola de Charlie, disse: “Espero que você saiba que está falando com uma juíza muito eminente. Certamente se lembra do
caso dos irmãos siameses”.
Todos se lembravam e, à medida que os pratos foram retirados e o boeuf en croûte servido com um Château Latour, conversaram e fizeram perguntas a ela sobre o famoso
caso. Fiona lhes disse tudo o que queriam saber. Todos tinham uma opinião, mas, como era a mesma, logo passaram a discutir a paixão que a história suscitara nos
jornais e como eles a haviam disputado. Dali foi um passo para uma troca de fofocas sobre os lances mais recentes da Investigação Leveson.* Terminaram a carne. À
frente, como dizia o cartão com o menu, havia um pudim de pão. Logo, logo, pensou Fiona, estariam discutindo a sabedoria ou a loucura de o Ocidente não mandar tropas
para a Síria. Era impossível calar Caradoc sobre aquele tema. E, de fato, ele o introduzia quando se deram conta de vozes ecoando no corredor. Pauling e o mordomo
de rosto branco pararam no umbral da porta e depois se aproximaram dela.
O mordomo se pôs de lado, com um olhar contrariado, enquanto Pauling, depois de pedir desculpas a todos com um aceno de cabeça, inclinou-se por cima da cadeira de
Fiona e disse baixinho perto de seu ouvido: “Minha senhora, perdão por interromper, mas infelizmente há um assunto que exige sua atenção imediata”.
Ela limpou os lábios com o guardanapo e se pôs de pé. “Me desculpem, senhores.”
Sem mudar de expressão, todos se levantaram e ela atravessou a sala na frente dos dois homens. Já do lado de fora, ela disse ao mordomo: “Ainda estamos esperando
por aquele aquecedor”.
“Vou pegar agora.”
Havia algo impertinente em seu jeito ao dar meia-volta, e ela olhou para seu assistente com as sobrancelhas erguidas.
Mas ele simplesmente disse: “Por aqui”.
Ela o seguiu através do corredor e do que fora antes uma biblioteca. As estantes estavam repletas de livros comprados em lojas de objetos usados, do tipo que os
hotéis adquirem por metro para criar uma atmosfera respeitável em certos ambientes.
Pauling disse: “É o rapaz das testemunhas de Jeová, Adam Henry. A senhora se lembra do caso da transfusão? Parece que ele a seguiu até aqui. Andou na chuva, está
completamente encharcado. Queriam expulsá-lo, mas achei que a senhora precisava ser informada antes”.
“Onde ele está?”
“Na cozinha. É mais quentinho lá.”
“Melhor trazê-lo aqui.”
Tão logo Pauling saiu, ela se levantou e caminhou lentamente pela sala, consciente de que seu ritmo cardíaco tinha aumentado. Caso houvesse respondido às cartas,
não estaria agora defrontando aquilo. Defrontando o quê? O envolvimento desnecessário com um caso fechado. E mais que isso. Mas não havia tempo para refletir. Ouviu
passos se aproximando.
A porta se abriu e Pauling fez o rapaz passar. Ela nunca o vira fora da cama e se surpreendeu com sua altura, bem mais de um metro e oitenta. Vestia seu uniforme
escolar, calça de flanela cinza, suéter cinza, camisa branca, um blusão bem leve, encharcado da cabeça aos pés, o cabelo em desordem depois de ter sido enxugado.
Uma pequena mochila pendia frouxamente de sua mão. O toque patético era dado pela toalha de chá do Leadman, com ilustrações dos pontos turísticos locais, envolvendo
suas costas para aquecê-lo.
O assistente se manteve junto à porta enquanto o rapaz deu alguns passos para dentro da sala, parando perto de onde ela se encontrava e dizendo: “Sinto muito mesmo”.
Naqueles primeiros momentos, era mais fácil esconder a confusão de sentimentos sob um tom maternal. “Você parece estar congelado. É melhor trazermos o aquecedor
para cá.”
“Eu mesmo vou pegar”, disse Pauling, saindo.
“Bem”, ela disse após um silêncio. “Como você me achou aqui?”
Outra evasão, perguntar como em vez de por quê, mas àquela altura, conquanto sua presença ainda fosse um choque, Fiona não era capaz de entender o que Adam queria
dela.
O relato dele foi sóbrio. “Eu a segui num táxi desde King’s Cross, peguei seu trem e, como não tinha ideia de onde a senhora ia saltar, comprei passagem para Edinburgh.
Em Newcastle, a segui ao sair da estação, corri atrás da sua limusine e então a perdi de vista. Tive um palpite e perguntei onde eram os tribunais. Quando cheguei
lá, vi imediatamente o seu carro.”
Ela o observou falar, enquanto analisava a transformação. A magreza se fora, porém ele continuava esbelto. Novos músculos nos ombros e braços. O mesmo rosto delicadamente
estruturado, a pinta marrom na maçã do rosto quase invisível na pele bronzeada pela saúde juvenil. Tênues indícios das olheiras roxas. Lábios cheios e úmidos, olhos
que naquela luz eram demasiado escuros para revelar sua cor. Mesmo enquanto tentava se desculpar, ele se mostrava vívido demais, ávido demais para dar uma explicação
detalhada. Quando ele afastou o olhar para ordenar a sequência de fatos, Fiona se perguntou se aquele era um rosto que sua mãe chamaria de antiquado. Uma ideia sem
nexo. A noção generalizada do rosto de um poeta romântico, um primo de Keats ou Shelley.
“Esperei um tempão até a senhora sair e a segui ao atravessar a cidade e voltar na direção do rio, vendo quando saiu do carro. Levei mais de uma hora até descobrir
no meu celular onde os juízes se hospedavam, peguei uma carona, desci na estrada principal, pulei o muro para não passar pela casa do guarda e andei até aqui na
chuva. Esperei muito tempo nos fundos, perto das antigas estrebarias, me perguntando o que eu devia fazer, até que alguém me viu. Realmente sinto muito, eu...”
Pauling, irritado e com o rosto vermelho por causa do esforço, chegou com o aquecedor. Talvez tivesse sido necessário arrancá-lo das mãos do mordomo. Os dois ficaram
olhando enquanto o assistente se pôs de quatro com um grunhido e desapareceu parcialmente debaixo de uma mesinha de canto para encontrar a tomada. Depois que se
reergueu, pousou as mãos nos ombros do rapaz e o levou para a frente do ar aquecido. Antes de sair, disse a Fiona: “Estou esperando do lado de fora”.
Quando ficaram sozinhos, ela disse: “Eu não deveria pensar que tem alguma coisa de esquisito em você me seguir até minha casa e depois até aqui?”.
“Ah, não! Por favor, não pense isso. Não é nada disso.” Olhou em volta impaciente, como se nas paredes estivesse escrita alguma explicação. “Olha, a senhora salvou
minha vida. E não é só isso. Papai tentou esconder de mim, mas li sua sentença. A senhora disse que queria me proteger da minha religião. Pois bem, protegeu. Fui
salvo!”
Ele riu da própria piada e ela disse: “Não o salvei para que você me seguisse por todo canto”.
Nesse justo instante, uma peça fixa do aquecedor deve ter entrado na órbita de alguma peça móvel, pois um estalido regular tomou conta da sala. O volume aumentou,
baixou, se estabilizou. Ela sentiu uma onda de irritação com a casa toda. Um embuste. Um depósito de velharias. Como não tinha visto isso antes?
O momento passou e ela perguntou: “Seus pais sabem onde você está?”.
“Tenho dezoito anos. Posso estar onde quiser.”
“Não me interessa sua idade. Eles vão ficar preocupados.”
Adam soltou um arquejo de exasperação juvenil e depositou a mochila no chão. “Olha, Meritíssima...”
“Chega disso. Me chame de Fiona.” Enquanto pudesse mantê-lo em seu lugar, ela se sentiria melhor.
“Eu não quis ser sarcástico nem nada.”
“Ótimo. E quanto a seus pais?”
“Ontem tive uma briga feia com papai. Tivemos algumas desde que saí do hospital, mas essa foi realmente das grandes, os dois gritando, e eu lhe disse tudo o que
achava sobre sua religião idiota, mesmo que ele não estivesse escutando. No final, me afastei. Subi para o quarto, fiz a mala, peguei o dinheiro que tinha guardado
e me despedi de mamãe. Depois fui embora.”
“Você precisa telefonar para ela agora.”
“Não há necessidade. Mandei uma mensagem para o celular dela ontem à noite do lugar onde me hospedei.”
“Mande outra.”
Ele a olhou, ao mesmo tempo surpreso e desapontado.
“Vamos, diga que está são e salvo em Newcastle e que vai escrever outra vez amanhã. Depois disso conversamos.”
Ela se afastou alguns passos e observou enquanto seus dedos longos dançavam sobre o teclado virtual. Em segundos o celular voltara ao bolso dele.
“Pronto”, disse, olhando para ela com ar expectante, como se ela é que lhe devesse alguma explicação.
Fiona cruzou os braços. “Adam, por que você está aqui?” Seu olhar se desviou, ele hesitou. Não ia dizer a ela a razão, pelo menos não de forma direta.
“Olhe, eu não sou a mesma pessoa. Quando a senhora foi me ver eu estava realmente pronto para morrer. É impressionante que alguém como a senhora tivesse perdido
tempo comigo. Eu era um tremendo idiota!”
Ela apontou para duas cadeiras de madeira junto a uma mesa oval de nogueira, onde se sentaram frente a frente. A luz branca e sepulcral vinha de quatro lâmpadas
LED presas a uma roda rústica de madeira pintada. Por não estar situada diretamente acima da mesa, a iluminação acentuava os contornos das maçãs do rosto e dos lábios
de Adam, assim como as finas saliências gêmeas que separavam a parte acima de seu lábio superior. Tratava-se de uma bela face.
“Não achei você um idiota.”
“Mas eu era. Sempre que os médicos e as enfermeiras tentavam me dissuadir, eu me sentia nobre e heroico, dizendo para me deixarem em paz. Eu era bom e puro. Adorava
que eles não conseguissem entender como eu era profundo. Eu realmente me achava o tal. Gostava de ver o orgulho dos meus pais e dos anciãos. À noite, quando não
tinha ninguém por perto, ensaiei fazer um vídeo, como esses homens-bomba. Ia fazer no meu celular. Queria que fosse reproduzido nos noticiários de televisão e no
meu funeral. Acabei chorando no escuro, imaginando meu caixão sendo levado diante dos meus pais, dos meus colegas e professores, de toda a congregação, as flores,
as coroas, a música triste, todos chorando, todos orgulhosos de mim e me amando. Sinceramente, eu era um idiota.”
“E onde entrava Deus nessa história?”
“Por trás de tudo. Eu estava obedecendo às instruções dele. Mas era mais sobre a maravilhosa aventura que eu estava vivendo, como ia morrer gloriosamente e ser adorado.
Uma garota que eu conheci na escola sofria de anorexia três anos atrás, quando tinha quinze anos. O sonho dela era se transformar em nada — como uma folha seca soprada
pelo vento, foi o que ela disse, mergulhando devagarzinho na morte, todo mundo com pena dela e depois se culpando por não compreendê-la. O mesmo tipo de coisa.”
Agora que o via sentado, Fiona se lembrou dele no hospital, recostando-se nos travesseiros em meio àquela bagunça juvenil. Não era a enfermidade dele que lhe vinha
à mente, mas sua avidez, a inocência vulnerável. Até mesmo a palavra anorexia soava como uma diversão. Ele havia tirado do bolso uma tira estreita de tecido verde,
talvez parte de um forro, que enrolava e desenrolava entre o indicador e o polegar como as contas do colar de um muçulmano.
“Então, não era muito uma questão de religião; tinha mais a ver com seus outros sentimentos.”
Ele ergueu as mãos. “Meus sentimentos tinham origem na minha religião. Eu estava cumprindo a vontade de Deus, a senhora e todos os outros estavam claramente errados.
Como eu teria me metido numa confusão daquelas se não fosse testemunha de Jeová?”
“Parece que sua colega anoréxica conseguiu.”
“Bem, na verdade a anorexia é um pouco como uma religião.”
Diante do olhar cético de Fiona, ele improvisou. “Ah, a senhora sabe, querer sofrer, amar a dor e o sacrifício, pensar que todo mundo está te observando, preocupado
com você, que o universo gira em torno de você. E do seu peso!”
Ela não se conteve e riu da ironia contida na última frase. Ele sorriu por seu inesperado êxito em diverti-la.
Ouviram vozes e passos no corredor quando os convidados passaram da sala de jantar para a de visitas a fim de tomarem café, e depois uma sucessão de gargalhadas
que mais pareciam latidos perto da porta da biblioteca. O rapaz ficou tenso com a possibilidade de uma interrupção, e ambos mantiveram um silêncio conspiratório
enquanto aguardavam que os sons morressem. Adam olhava para baixo, para suas mãos entrelaçadas sobre a madeira envernizada da mesa. Ela imaginava todas as horas
de sua infância e juventude dedicadas a orações, hinos, sermões e as diversas restrições que jamais conheceria, a comunidade fechada mas amorosa que o sustentara
até quase matá-lo.
“Adam, vou perguntar outra vez. Por que você está aqui?”
“Para lhe agradecer.”
“Há maneiras mais fáceis.”
Ele suspirou com impaciência enquanto repunha no bolso a tira de tecido. Por um momento Fiona acreditou que ele se preparava para partir.
“Sua visita foi uma das melhores coisas que me aconteceram.” E então, rapidamente: “A religião de meus pais era um veneno e a senhora foi o antídoto”.
“Não me lembro de haver criticado a religião de seus pais.”
“Não criticou. A senhora foi calma, ouviu, fez perguntas e alguns comentários. Aí é que está. É essa coisa que a senhora tem. Fez diferença. A senhora não precisou
dizer. Um jeito de pensar e de falar. Se não sabe o que estou dizendo, trate de ouvir os anciãos. E quando tocamos a música...”
Ela disse com rapidez: “Você ainda está tocando violino?”.
Ele fez que sim com a cabeça.
“E a poesia?”
“Sim, muito. Mas odeio as coisas que eu escrevia.”
“Bom, você tem talento. Sei que vai escrever alguma coisa maravilhosa.”
Fiona percebeu o desalento nos olhos dele. Ela estava se distanciando, fazendo o papel da tia solícita. Repassou algumas etapas da conversa, se perguntando por que
estava tão ansiosa para não desapontá-lo.
“Mas seus professores devem ser bem diferentes dos anciãos.”
Ele deu de ombros. “Não sei.” Acrescentou à guisa de explicação: “A escola era enorme”.
“E o que é isso que você supõe que eu tenha?”, ela perguntou em tom sério, sem nenhum traço de ironia.
A pergunta não o embaraçou. “Quando vi meus pais chorando daquele jeito, chorando e quase urrando de alegria, tudo desmoronou. Mas aí que está. Desmoronou para cair
na verdade. Claro que eles não queriam que eu morresse! Eles me amam. Por que não disseram isso, em vez de falar e falar sobre as alegrias do céu? Foi então que
eu vi tudo aquilo como uma coisa humana comum. Comum e boa. Não tinha nada a ver com Deus. Isso era só uma bobagem. Como se um adulto entrasse numa sala cheia de
crianças que estão se infernizando e dissesse: ‘Chega, parem com isso, é hora do chá!’. A senhora foi esse adulto. Sabia desde o começo, mas não disse. Só fez perguntas
e escutou. Toda a vida e o amor que se abrem diante dele — foi o que a senhora escreveu. Essa foi a sua ‘coisa’. E a minha revelação. Começando com ‘The Salley Gardens’.”
Ainda em tom sério, ela disse: “E a tampa da sua cabeça explodiu”.
Ele riu gostosamente por também ser citado. “Fiona, quase consigo tocar uma composição de Bach sem cometer nenhum erro. Toco o tema de Coronation Street. Estou lendo
o livro de Berryman Dream Songs. Vou participar de uma peça teatral e tenho que terminar todos os exames antes do Natal. E, graças à senhora, estou entupido de Keats!”
“Muito bem”, ela disse em voz baixa.
Ele se inclinou para a frente, apoiado nos cotovelos, os olhos escuros brilhando na luz pavorosa, todo o rosto parecendo fremir de expectativa, com um apetite incontrolável.
Depois de refletir por um instante, Fiona disse num sussurro: “Espere aqui”. Levantou-se e hesitou, parecendo prestes a mudar de ideia e que voltaria a se sentar.
Mas deu as costas para ele, atravessou a sala e foi para o corredor. Pauling se encontrava de pé, a alguns passos de distância, fingindo interesse pelas páginas
do livro de visitantes aberto sobre uma mesa com tampo de mármore. Ela lhe deu rápidas instruções em voz baixa, voltou à biblioteca e fechou a porta atrás de si.
Adam havia retirado a toalha de chá do ombro e examinava a série de atrações locais. Quando ela se sentou de novo, ele comentou: “Eu nunca tinha ouvido falar em
nenhum desses lugares”.
“Há muita coisa a ser descoberta.”
Passados os efeitos da interrupção, ela disse: “Quer dizer que você perdeu sua fé”.
Adam pareceu se contorcer. “Sim, talvez. Não sei. Acho que tenho medo de dizer isso em voz alta. Realmente não sei onde estou. Quer dizer, o troço é que, quando
a gente se afasta um pouquinho das testemunhas de Jeová, talvez seja melhor sair de vez. Por que substituir um conto de fadas por outro?”
“Talvez todo mundo precise de contos de fadas.”
Ele lhe deu um sorriso benevolente. “Não acho que a senhora esteja dizendo isso pra valer.”
Fiona sucumbiu a seu hábito de resumir a opinião dos outros. “Você viu seus pais chorando e está confuso, pois suspeita que o amor deles por você é maior do que
a crença que têm em Deus ou na vida após a morte. Você precisa se afastar. Perfeitamente natural para alguém da sua idade. Talvez curse uma universidade. Isso vai
ajudar. Mas ainda não entendo o que está fazendo aqui. E, o que é mais importante, o que vai fazer agora. Para onde é que você vai?”
A segunda pergunta o perturbou mais. “Tenho uma tia em Birmingham. Irmã da minha mãe. Ela vai me receber por uma ou duas semanas.”
“Ela está te esperando?”
“Mais ou menos.”
Fiona estava prestes a obrigá-lo a enviar uma nova mensagem, quando ele estendeu a mão por cima da mesa, enquanto ela, com igual rapidez, recolheu a sua para o colo.
Adam não foi capaz de encará-la ou de ser olhado de frente quando voltou a falar. Pôs as mãos na testa como se protegesse os olhos da luz. “Tenho uma pergunta a
lhe fazer. Quando a senhora a ouvir vai achar que é uma idiotice. Mas, por favor, não a rejeite simplesmente. Diga por favor o que pensa sobre ela.”
“O que é?”
Ele se dirigiu ao tampo da mesa. “Quero ir morar com a senhora.”
Ela esperou por mais alguma coisa. Nunca poderia ter previsto tal pedido. Mas agora parecia óbvio.
Adam ainda era incapaz de olhá-la nos olhos. Falou depressa, como se envergonhado com sua própria voz. Ele havia pensado em tudo. “Eu podia ajudar a senhora a cuidar
da casa, prestar serviços na rua. E a senhora podia me dar livros para ler, sabe como é, tudo o que achar que eu preciso aprender...”
Ele a havia seguido por um bom pedaço do país, pelas ruas, atravessado uma tempestade para lhe pedir aquilo. Era uma extensão lógica de sua fantasia sobre uma longa
viagem marítima com ela, de falarem o dia todo caminhando no convés ao balanço das ondas. Lógica e insana. E inocente. O silêncio os envolveu e uniu. Até mesmo o
tilintar do aquecedor parecia ter se reduzido, nenhum som vinha do lado de fora. Ele continuou a proteger o rosto do olhar de Fiona. Ela contemplou o encaracolado
de seu cabelo escuro, jovem e saudável, agora totalmente seco e reluzente.
Fiona disse com suavidade: “Você sabe que isso não é possível”.
“Eu não ia atrapalhar, quer dizer, interferir com a senhora e seu marido.” Por fim, ele recolheu as mãos e olhou para ela. “A senhora sabe, como alguém que alugasse
um quarto. Quando eu terminar meus exames, posso arranjar um emprego e pagar algum aluguel.”
Ela viu o quarto de hóspedes e as duas camas de solteiro, os ursinhos e outros bichos de pelúcia na cesta de vime, o armário de brinquedos tão cheio que uma das
portas não fechava. Tossiu de repente e se pôs de pé, atravessando toda a sala até a janela para dar a impressão de que olhava com atenção para fora. Por fim, sem
se voltar, ela disse: “Só temos um quarto livre e uma porção de sobrinhos e sobrinhas”.
“Quer dizer que essa é sua única objeção?”
Ouviu-se uma batida na porta e Pauling entrou. “Estará aqui dentro de dois minutos, minha senhora”, ele disse e saiu.
Ela se afastou da janela e voltou a se aproximar de Adam, abaixando-se para pegar a mochila dele do chão.
“Meu assistente vai levá-lo de táxi até a estação e lhe comprar uma passagem com destino a Birmingham para amanhã de manhã; depois vai levá-lo para um hotel perto
de lá.”
Após uma pausa, ele se levantou devagar e pegou a mochila das mãos dela. Apesar de sua altura, parecia uma criança pequena em estado de choque.
“Então é isso?”
“Gostaria que me prometesse que vai entrar em contato outra vez com sua mãe antes de pegar o trem. Diga a ela para onde está indo.”
Adam não respondeu. Ela o conduziu à porta e os dois saíram para o corredor. Ninguém à vista. Caradoc Ball e seus convidados estavam instalados na sala de visitas
com as portas fechadas. Ela o deixou esperando na biblioteca e subiu ao quarto para pegar algum dinheiro na bolsa. Ao voltar, viu toda a cena de sua posição elevada
no topo da imponente escadaria. A porta da frente estava aberta e o mordomo falava com o motorista. Atrás dele, abaixo dos degraus do pórtico, estava o táxi, a porta
aberta para liberar os alegres e sinuosos acordes da música orquestral árabe. Seu assistente atravessava o vestíbulo às pressas, supostamente a fim de impedir que
o mordomo criasse algum problema. Quanto a Adam Henry, ele ainda continuava na biblioteca, abraçado à sua mochila. Quando Fiona se aproximou dele, o mordomo, o motorista
e o assistente estavam do lado de fora, no pátio de cascalho, conversando junto ao carro, segundo ela esperava, sobre um hotel apropriado.
O rapaz começou a dizer: “Mas nós nem...”, e ela levantou a mão para fazê-lo se calar.
“Você precisa ir.”
Ela segurou delicadamente a gola do blusão leve dele e o puxou para si. Pretendia lhe dar um beijo no rosto, mas, como ergueu o corpo e Adam se curvou um pouco,
seus rostos se aproximaram, ele girou a cabeça e os lábios deles se tocaram. Ela poderia ter recuado, ter dado um passo atrás, se afastando dele. Em vez disso, se
demorou, inerme diante daquele momento. A sensação de pele contra pele anulou qualquer possibilidade de escolha. Caso fosse possível dar um beijo casto na boca,
foi isso que ela fez. Um contato fugaz, porém mais do que a mera sugestão de um beijo, mais do que uma mãe daria no filho adulto. Durou dois segundos, quem sabe
três. Tempo suficiente para sentir, na maciez e elasticidade dos lábios dele, todos os anos, toda a vida que a separava de Adam. Ao se afastarem, uma leve adesão
de pele poderia tê-los atraído de volta. Mas soavam passos no cascalho e nos degraus de pedra, cada vez mais próximos. Ela largou a gola dele e repetiu: “Você precisa
ir”.
Adam apanhou a mochila, que havia deixado cair no chão, e seguiu-a através do vestíbulo até o lado de fora, onde foram recebidos pelo ar fresco da noite. Ao pé da
escada, o motorista fez uma saudação amistosa e abriu a porta traseira do carro. O rádio havia sido desligado. Ela tinha pensado em dar o dinheiro a Adam, mas, numa
súbita e gratuita mudança de ideia, o entregou a Pauling. Ele balançou a cabeça e forçou um leve sorriso ao pegar o rolinho de notas. Com um movimento brusco dos
ombros, Adam deu a impressão de se desvencilhar de todos e mergulhou no banco de trás, sentando-se com a mochila no colo e olhando para a frente. Já se arrependendo
do que havia posto em movimento, Fiona deu a volta no carro para trocar um último olhar com ele. Adam sem dúvida reparou em seu movimento, mas afastou o rosto. Pauling
se sentou na frente, ao lado do motorista. O mordomo fechou a porta de Adam, empurrando-a num gesto insolente com as costas da mão. Ombros encurvados, Fiona subiu
às pressas os degraus de pedra rachados enquanto o táxi se distanciava.
* Investigação pública conduzida por lorde Leveson em 2011 e 2012 acerca das práticas e da ética da imprensa britânica após o escândalo das escutas telefônicas feitas
pela News International. (N. T.)
5.
Ela partiu de Newcastle depois de uma semana, sentenças proferidas ou suspensas à espera de laudos técnicos, deixando para trás litigantes felizes ou amargurados,
alguns dos quais com o parco consolo de poderem recorrer. No caso que descrevera para Charlie no jantar, ela havia concedido a guarda aos avós e permitido visitas
semanais sob supervisão à mãe e ao pai, separadamente, tudo passível de revisão ao fim de seis meses. Até lá, quem quer que a substituísse teria a vantagem de receber
relatórios acerca do bem-estar das crianças, das promessas dos pais de frequentar um programa de tratamento de viciados em drogas e do estado mental da mãe. A menininha
continuaria em sua escola, um curso elementar organizado pela Igreja da Inglaterra, onde era bem conhecida. Fiona considerou exemplar, naquele caso, a conduta das
instituições de atendimento a menores da cidade.
No final da tarde de sexta-feira, ela disse adeus aos funcionários do tribunal. Na manhã de sábado, no Leadman Hall, Pauling encheu o porta-malas do carro com documentos
acondicionados em caixas de papelão e com as togas dela penduradas em cabides. As bagagens pessoais empilhadas no banco traseiro e a juíza instalada na frente, rumaram
para Oeste, na direção de Carlisle, passando pelo Tyne Gap e cruzando a Inglaterra de um lado a outro, as Cheviots à direita e as Pennines à esquerda. Mas os dramas
da geologia e da história eram embotados pelo tráfego, por seu volume, suas rotinas e pelas placas de sinalização rodoviária características das ilhas britânicas.
Enquanto atravessavam Hexham muito lentamente, Fiona mantinha o celular sem uso na mão e, como fizera durante vários interlúdios ao longo da semana, pensava no beijo.
Que loucura impulsiva não ter se afastado! Loucura profissional e social. Em suas recordações, o contato real, carne contra carne, tendia a se prolongar no tempo.
Ela então tentava encurtar o momento para que voltasse a ser um beijinho inocente nos lábios. Mas o beijinho logo voltava a se inflar, até ela não saber o que ele
era, o que havia acontecido ou por quanto tempo ela correra o risco de uma desgraça. Caradoc Ball poderia ter passado pelo corredor a qualquer momento. Pior ainda,
um de seus convidados, sem as peias da lealdade tribal, poderia tê-la visto e contado a todo mundo. Pauling poderia ter voltado depois de conversar com o motorista
de táxi e a apanhado em flagrante. Nesse caso, a distância sensatamente construída entre eles, que tornava possível seu trabalho, teria sido destruída.
Como não era dada a impulsos irrefletidos, Fiona não entendia seu próprio comportamento. Deu-se conta de que havia muito mais a confrontar em sua mistura de sentimentos
confusos, porém, no momento, era o horror do que podia ter ocorrido, a transgressão ridícula e vergonhosa da ética profissional, que ocupavam sua mente. A ignomínia
que poderia ter se abatido sobre ela. Difícil crer que ninguém a vira, que estava abandonando incólume a cena do crime. Mais fácil acreditar que a verdade, dura
e negra como uma semente amarga, estava prestes a ser revelada: que ela tinha sido observada sem saber. Que agora mesmo, a centenas de quilômetros de distância,
o caso estivesse sendo discutido em Londres. Que em breve ouviria no telefone a voz pouco à vontade de um colega mais antigo: Ah, Fiona, escute, sinto muito, mas
creio que preciso alertá-la de que, hã, de que surgiu um probleminha. E então, esperando por ela no apartamento da Gray’s Inn, uma carta formal do investigador do
departamento de reclamações judiciais.


CONTINUA
“Os pais se opõem à solicitação com base em sua fé religiosa, que é manifestada serenamente e fruto de profunda convicção. O filho deles também objeta e demonstra
boa compreensão dos princípios religiosos, possuindo considerável maturidade e capacidade de articulação verbal para a sua idade.”
Descreveu a seguir a evolução da enfermidade, a leucemia, o tratamento usual que em geral produzia bons resultados. Mas dois dos remédios comumente administrados
causavam anemia, que necessitava ser combatida mediante transfusões de sangue. Resumiu os argumentos do médico assistente, enfatizando a contagem declinante de hemoglobina
e os prognósticos sombrios caso isso não fosse revertido. Ela podia confirmar pessoalmente que a falta de ar de A era agora patente.
A contestação ao pedido se fundamentava em três argumentos principais. O primeiro era o de que, como lhe faltavam três meses para completar dezoito anos e ele era
muito inteligente, conhecendo as consequências de sua decisão, Adam devia ser tratado como possuidor da “competência de Gillick”. Em outras palavras, seria tão capaz
de ter suas decisões reconhecidas quanto qualquer adulto. Em segundo lugar, que a recusa de tratamento médico constituía um direito humano básico, razão por que
a corte deveria mostrar relutância em intervir. E que, por fim, a fé religiosa de A era genuína e devia ser respeitada.
Fiona abordou os seguintes pontos. Agradeceu ao advogado dos pais de A por ter chamado sua atenção para a seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: o consentimento
de uma pessoa de dezesseis anos “será tão eficaz como o seria se ele já houvesse alcançado a maioridade”. Listou as condições relativas à “competência de Gillick”,
citando Scarman no processo. Reconheceu a distinção entre a circunstância de uma criança competente com menos de dezesseis anos consentir num tratamento, possivelmente
contra a vontade dos pais, e de uma criança de menos de dezoito recusar um tratamento passível de salvar sua vida. Do que percebera naquela noite, estaria ela convencida
de que A tinha uma compreensão absoluta das implicações de serem aceitas sua vontade e a de seus pais?
“Ele é sem dúvida uma criança excepcional. Posso mesmo dizer, como o fez uma das enfermeiras hoje à noite, que se trata de um menino adorável, com o que certamente
concordam seus pais. Ele tem uma capacidade de compreensão excepcional para um jovem de dezessete anos. Mas creio que possui um entendimento limitado da provação
que deve confrontar, do pavor que o invadiria à medida que seu sofrimento e sua impotência aumentassem. Na verdade, ele tem uma noção romântica do que seja sofrer.
Entretanto...”
Deixou a palavra pendurada no ar, e o silêncio na sala se adensou enquanto ela passava os olhos pelas anotações.
“Entretanto, em última análise não me deixo influenciar pelo fato de que ele tenha ou não a compreensão absoluta de seu estado. Em vez disso, sou guiada pela decisão
do juiz Ward, como era chamado na época, com referência ao menor E, em julgamento que também envolveu um adolescente que pertencia às testemunhas de Jeová. Naquela
oportunidade, ele afirmou: ‘Assim, é o bem-estar da criança que preside a minha decisão, e cumpre a mim decidir o que dita o bem-estar de E’. Essa observação foi
cristalizada na clara prescrição da Lei da Criança de 1989, que garante nas duas primeiras linhas a primazia do bem-estar do menor. Entendo ‘bem-estar’ como englobando
‘felicidade’ e ‘interesses’. Também sou obrigada a levar em conta a vontade de A. Como já observei, ele a expressou claramente a mim, como o fez seu pai perante
esta corte. De acordo com as doutrinas de sua religião, derivadas de uma interpretação peculiar de três passagens da Bíblia, A se recusa a aceitar a transfusão de
sangue que provavelmente salvará sua vida.
“É um direito fundamental dos adultos recusarem qualquer tratamento médico. Tratar um adulto contra sua vontade significa cometer o crime de agressão. A está próximo
da idade em que pode tomar uma decisão por sua conta e risco. O fato de estar preparado para morrer por suas crenças religiosas demonstra quão profundas elas são.
O fato de que seus pais estão preparados para sacrificar um filho muito querido por causa de sua fé revela o poder da crença a que as testemunhas de Jeová obedecem.”
Mais uma vez ela parou e o público aguardou.
“É precisamente esse poder que me faz refletir, porque A, com seus dezessete anos, conheceu muito pouco fora do turbulento terreno das ideias religiosas e filosóficas.
Não faz parte dos métodos dessa seita cristã encorajar o debate aberto e a discordância na congregação, cujos membros são por eles chamados — de forma correta, alguém
poderia dizer — de ‘as outras ovelhas’. Não creio que a mente de A e suas opiniões lhe pertençam inteiramente. Durante toda a infância ele esteve exposto sem interrupção
a uma visão do mundo monocromática e poderosa, a cujo condicionamento não poderia escapar. Não promoverá seu bem-estar sofrer uma morte desnecessária e agonizante,
para assim se transformar num mártir de sua fé. As testemunhas de Jeová, como outras religiões, têm uma noção nítida do que nos aguarda após a morte, e as predições
deles sobre o fim dos dias, sua escatologia, são também rígidas e muito detalhadas. Este tribunal não tem opinião alguma sobre a vida no Além, que, de qualquer forma,
certo dia A descobrirá, ou deixará de descobrir, por conta própria. Até lá, presumindo uma boa recuperação, o bem-estar dele será mais bem servido por seu amor pela
poesia, por sua recém-descoberta paixão pelo violino, pelo aproveitamento de sua viva inteligência e pelas manifestações de uma natureza brincalhona e afetuosa,
por toda a vida e o amor que se abrem à sua frente. Em suma, entendo que A, seus pais e os anciãos da igreja tomaram uma decisão que é hostil ao bem-estar de A,
o qual constitui a principal consideração desta corte. Ele precisa ser protegido de tal decisão. Precisa ser protegido de sua religião e de si mesmo.
“Esta não foi uma questão simples de resolver. Ponderei cuidadosamente a idade de A, o respeito devido à sua fé e a dignidade do indivíduo contida no direito de
recusar tratamento. A meu juízo, sua vida é mais preciosa do que essa dignidade.
“Em consequência, nego a vontade de A e de seus pais. Minha ordem é que não seja necessário obter a concordância para a transfusão de sangue do primeiro e segundo
contestantes, que são os pais, e a concordância para a transfusão de sangue do terceiro contestante, que é o próprio A. Desse modo, o hospital demandante está legalmente
autorizado a aplicar em A os tratamentos médicos que julgue necessários, no entendimento de que podem administrar sangue e produtos dele derivados mediante transfusão.”
* * *
Eram quase onze da noite quando Fiona iniciou a caminhada para casa ao sair do tribunal. Àquela hora, os portões estavam trancados e não era possível cortar caminho
por dentro da Lincoln’s Inn. Antes de dobrar na Chancery Lane, ela desceu um pequeno trecho da Fleet Street para comprar uma refeição pronta numa loja de conveniência
que ficava aberta a noite inteira. Na noite anterior, isso teria sido uma missão deprimente, mas ela estava sentindo a cabeça leve, talvez porque não se alimentava
decentemente fazia dois dias. Na loja apertada e excessivamente iluminada, os alimentos com embalagens berrantes — vermelhos e roxos explosivos, amarelos de manchas
solares — pulsavam nas prateleiras em sintonia com seus batimentos cardíacos. Ela comprou uma torta de peixe congelada e examinou várias frutas antes de se decidir.
No caixa, atrapalhou-se com o dinheiro, deixando cair moedas no chão. O ágil rapaz asiático que trabalhava na máquina registradora impediu com o pé que as moedas
rolassem e, lhe dando um sorriso protetor, as pôs de volta na mão dela. Fiona se imaginou através dos olhos dele ao observar a expressão de grande cansaço dela,
ignorando ou sendo incapaz de apreciar o corte elegante do casaco e vendo apenas uma dessas velhotas inofensivas que viviam e comiam sozinhas, já um tanto incapazes,
andando pelas ruas tarde da noite.
Ela estava cantando “The Salley Gardens” com os lábios fechados enquanto seguia pela High Holborn. A sacola contendo as frutas e o sólido invólucro do jantar se
chocava agradavelmente contra sua perna. A torta seria aquecida no micro-ondas enquanto ela se preparava para ir se deitar, e a comeria já de camisola em frente
ao canal de notícias; depois disso, nada se interporia entre ela e o sono. Nenhum estímulo químico. No dia seguinte havia um divórcio de gente graúda — um guitarrista
famoso e uma esposa quase famosa, cantora de música romântica, com um excelente advogado e desejando abocanhar boa parte dos vinte e sete milhões de libras do marido.
Algodão-doce comparado com hoje, mas o interesse da imprensa seria igualmente intenso, a lei igualmente solene.
Dobrou na Gray’s Inn, seu santuário. Era sempre gostoso ver como o barulho do tráfego ia cessando à medida que caminhava. Uma comunidade fechada de certo valor histórico,
uma fortaleza de advogados e magistrados que também eram músicos, amantes do bom vinho, pseudoescritores, pescadores que usavam como iscas moscas artificiais, contadores
de histórias. Um ninho de fofocas e perícia profissional, além de um jardim delicioso ainda visitado pelo fantasma de Francis Bacon. Ela amava o lugar e não queria
sair dali nunca.
Entrou no prédio, verificou que a minuteria estava ligada, subiu até o segundo andar, ouviu o rangido costumeiro do quarto e sétimo degraus e, ao atingir o último
lance da escada, viu tudo e entendeu imediatamente. Seu marido estava lá, se levantando naquele momento com um livro na mão; atrás dele, a mala encostada à parede
havia servido como uma espécie de assento, tendo ao lado, no chão, o paletó junto à valise aberta de onde escapavam diversos papéis. Trancado do lado de fora, trabalhando
enquanto esperava. E por que não? Roupas amarrotadas, semblante irritado. Trancado do lado de fora e esperando fazia muito tempo. Sem dúvida não estava ali para
buscar camisas limpas e livros, não se trazia a mala. Seu primeiro pensamento, melancólico e egoísta, foi que agora teria de dividir o jantar calculado para uma
só pessoa. Então pensou que não seria necessário. Preferia não comer.
Subiu os últimos degraus até alcançar o patamar, sem dizer uma única palavra enquanto procurava na bolsa as chaves, as chaves novas, e o contornava a caminho da
porta. Ele que falasse primeiro.
O tom foi de queixume: “Telefonei a noite toda”.
Ela abriu a porta e entrou sem olhar para trás; deixou as compras na cozinha e parou. Seu coração batia forte demais. Ouviu a respiração mal-humorada dele ao trazer
a bagagem para dentro. Se era para haver uma confrontação, que ela não desejava, não agora, a cozinha era um espaço confinado demais. Pegou sua pasta e foi rapidamente
para a sala de visitas, ocupando seu lugar de sempre na chaise longue. Espalhar algumas páginas em volta de onde estava sentada era uma forma de proteção. Sem isso,
não saberia o que fazer de si.
O ruído da mala sendo arrastada pelo corredor e para dentro do quarto soou para ela como uma jogada de abertura. E um insulto. Pela força do hábito, tirou o sapato
e apanhou um documento ao acaso. O guitarrista tinha uma casa de alto padrão em Marbella. A crooner de canções românticas queria a casa. Mas, antes mesmo do casamento,
ele a adquirira da ex-mulher, dando em troca a casa da família no centro de Londres. E essa primeira esposa a havia ganho num acerto de divórcio com um ex-marido.
Irrelevante, Fiona não se furtou a declarar.
Um estalido no assoalho a fez olhar para cima. Jack parou na porta antes de preparar um drinque. Vestia uma calça jeans e uma camisa branca desabotoada no peito.
Será que se imaginava desejável? Reparou que ele não fizera a barba. Até mesmo do outro lado da sala os pelos pareciam grisalhos. Patético, ambos eram patéticos.
Ele se serviu de um uísque e levantou a garrafa na direção dela. Fiona disse não com a cabeça. Ele deu de ombros e atravessou a sala para se sentar em sua poltrona.
Ela era uma desmancha-prazeres, não sabia aproveitar o bom momento. Ele se acomodou com um suspiro de quem se sente em casa. A poltrona dele, a chaise longue dela,
outra vez a vida de casados. Ela olhou para a página em sua mão, a narrativa feita pela esposa do mundo desejável do guitarrista, impossível de absorver. Fez-se
silêncio enquanto ele bebia e ela olhava através da sala para nada em especial.
Então ele disse: “Olha, Fiona, eu te amo”.
Depois de alguns segundos, ela disse: “Prefiro que você durma no quarto de hóspedes”.
Ele baixou a cabeça em sinal de concordância. “Vou pegar minha mala.”
Jack não se levantou. Ambos conheciam a vitalidade do não dito, cujos espíritos invisíveis dançavam agora em volta deles. Ela não lhe dissera para se manter fora
do apartamento, aceitando tacitamente que ele podia dormir lá. Ele não lhe dissera ainda se a especialista em estatística o havia mandado embora, ou se ele tinha
mudado de opinião, ou se já havia experimentado um êxtase suficiente para durar até o túmulo. A mudança das fechaduras não fora comentada. Ele provavelmente achou
estranho Fiona ter chegado tão tarde. Ela mal suportava olhar para ele. O que se fazia necessário agora era uma briga, com vários capítulos se estendendo ao longo
do tempo. Talvez houvesse algumas digressões rancorosas, o arrependimento de Jack poderia vir embrulhado em reclamações, talvez demorasse meses até ela recebê-lo
na cama, o fantasma da outra mulher era capaz de pairar entre eles para sempre. Mas eles provavelmente encontrariam uma forma de recuperar, mais ou menos, o que
haviam tido antes.
A ideia do imenso esforço envolvido e da previsibilidade do processo a cansou ainda mais. No entanto, ela estava obrigada a segui-lo. Como se, por contrato, devesse
escrever um manual de direito enfadonho mas necessário. Achou que, afinal, gostaria de tomar um drinque, embora isso se parecesse demais com uma celebração. Estava
muito longe de uma reconciliação. Acima de tudo, não aguentaria ouvir outra vez que ele a amava. Queria estar sozinha na cama, de costas no escuro, mordiscando uma
fruta, deixando o resto cair no chão, até apagar de todo. O que a impedia de fazer isso? Ela se pôs de pé e começou a recolher seus documentos. Foi quando ele começou
a falar.
Foi uma torrente, em parte desculpas, em parte autojustificações, algumas das quais ela já ouvira. A mortalidade dele, os anos de total fidelidade, sua avassaladora
curiosidade de saber como seria, mas depois que saiu naquela noite, depois que chegou ao apartamento de Melanie, não demorou muito para se dar conta do erro. Ela
era uma estranha, ele não a entendia. E quando foram para o quarto dela...
Fiona levantou a mão em sinal de alerta. Não queria ouvir nada sobre o quarto. Ele fez uma pausa, refletiu, e continuou. Ele era um imbecil, ele percebeu, por se
deixar levar por uma necessidade sexual, quando deveria ter dado meia-volta naquela noite no momento em que ela abriu a porta, porém se sentiu envergonhado e obrigado
a ir adiante.
Apertando sua pasta contra o estômago, Fiona ficou no centro da sala observando-o, se perguntando como fazê-lo parar. Surpreendia-se que mesmo agora, com o dramalhão
conjugal em sua cena de abertura, a canção irlandesa continuasse girando em seu cérebro, o ritmo mais rápido para acompanhar o compasso da fala de Jack, soando ao
mesmo tempo mecânica e festiva como se tocada por um realejo de rua. Seus sentimentos eram confusos, obscurecidos pela fadiga e de difícil definição enquanto sobre
ela jorravam as palavras chorosas do marido. Sentiu nem tanto fúria ou um ressentimento amargo, conquanto algo mais que mera resignação.
Sim, disse Jack, ao chegar ao apartamento de Melanie ele se sentiu estupidamente obrigado a seguir em frente com o que começara. “E, quanto mais preso na armadilha
eu me sentia, mais me dava conta de como eu era um idiota por ameaçar tudo o que temos, tudo o que construímos juntos, este amor que...”
“Tive um dia longo”, ela disse ao atravessar a sala. “Vou pôr sua mala no corredor.”
Parou na cozinha para pegar uma maçã e uma banana em meio às compras postas sobre a mesa. Carregá-las no caminho para o quarto trouxe de volta a felicidade relativa
que sentira no trajeto entre o trabalho e a casa. Os primórdios de certa tranquilidade. Difícil de resgatar agora. Abriu a porta e viu a mala dele de pé sobre as
rodinhas, placidamente posta junto à cama. Então lhe ocorreu com clareza o que sentia com a volta de Jack. Tão simples. Era desapontamento por ele não ter continuado
longe. Só por mais algum tempo. Apenas isso. Desapontamento.
4.
Embora os fatos não o confirmassem, ela teve a impressão de que, no final do verão de 2012, os rompimentos e as crises conjugais ou crises entre parceiros na Grã-Bretanha
cresceram como uma maré aberrante de primavera, varrendo lares do mapa, espalhando bens e sonhos esperançosos, afogando quem não tinha um forte instinto de sobrevivência.
Promessas de amor foram negadas ou reformuladas, bons companheiros se transformaram em ardilosos combatentes escudados atrás de advogados, sem se importar com os
custos. Objetos da casa antes desdenhados eram motivo de amargas disputas, a tranquila confiança de outrora substituída por “acertos” redigidos com todo o cuidado.
Na mente dos envolvidos, a história do casamento era reescrita para que ele fosse visto como fadado ao insucesso desde o começo, o amor repaginado como mera ilusão.
E os filhos? Peças de um jogo, elementos de barganha a serem usados pelas mães; pretexto para acusações de abusos feitas em geral pelas mães, às vezes pelos pais,
embora fossem com frequência fantasiosas ou inventadas com todo o cinismo; crianças em estado de choque indo e vindo semanalmente de uma casa para a outra com base
em acordos de guarda compartilhada, o esquecimento de casacos e caixas de lápis sendo comunicado por meio de advogados; crianças condenadas a verem o pai uma ou
duas vezes por mês; ou nunca, pois os homens mais audaciosos desapareciam na oficina de ferreiro de um novo e quente matrimônio para forjar outros rebentos.
E o dinheiro? As novas moedas eram as meias verdades e os apelos especiais. Maridos gananciosos contra esposas gananciosas, manobrando como nações ao final de uma
guerra, tentando salvar das ruínas todos os despojos que podiam antes da retirada final. Homens ocultavam recursos em contas no exterior, mulheres exigiam para sempre
uma vida de conforto. Mães impediam crianças de ver os pais apesar de ordens judiciais; pais se negavam a oferecer sustento aos filhos apesar de ordens judiciais.
Maridos agrediam esposas e filhos, esposas mentiam ou maquinavam ardis, um ou outro, ou ambos, bêbados, viciados em drogas ou psicóticos; e crianças eram obrigadas
a tomar conta de pais incapazes, crianças de fato vítimas de abusos sexuais ou mentais, ou ambos, seus depoimentos transmitidos numa tela ao tribunal. E já fora
da área de competência de Fiona, em casos julgados pelas cortes criminais e não pelas varas de família, crianças torturadas, mortas de fome ou por espancamento,
espíritos maus arrancados de dentro delas em ritos animistas, padrastos jovens e cruéis quebrando ossos de bebês sob os olhares abobalhados e cúmplices das mães,
e drogas, álcool, sujeira doméstica extrema, vizinhos indiferentes e seletivamente surdos para não ouvir os gritos, assistentes sociais descuidados ou atarefados
demais para intervir.
O trabalho das varas de família não cessava. Era por simples acaso que tantos conflitos conjugais caíssem no colo de Fiona. Pura coincidência que ela própria estivesse
vivendo um conflito similar. Naquele setor do Judiciário, não era comum mandar gente para a cadeia, mas, apesar disso, em certos momentos ela tinha vontade de ordenar
que fossem encarcerados aqueles demandantes que, à custa dos filhos, desejavam uma mulher mais jovem, um marido mais rico ou menos enfadonho, um bairro mais elegante,
novas aventuras sexuais, novos amores, uma nova visão do mundo, um bom reinício antes que fosse tarde demais. A simples busca do prazer. Vulgaridade moral. Sua falta
de filhos e a situação com Jack davam forma a esses devaneios e, naturalmente, eles não eram para valer. Entretanto, embora mergulhasse bem fundo em seu reino mental,
ela nunca deixava que suas decisões fossem afetadas pelo desprezo puritano que devotava aos homens e às mulheres que destruíam sua família e se persuadiam de que
agiam altruisticamente pelo bem de todos. Nesses experimentos intelectuais, ela não teria poupado as pessoas sem filhos ou, pelo menos, não Jack. Um período de contrição
atrás das grades por contaminar o casamento deles em nome de uma novidade? Por que não?
Porque, depois do retorno dele, a vida no apartamento da Gray’s Inn era lúgubre e silenciosa. Tinha havido brigas durante as quais ela pusera para fora alguns sentimentos
amargos. Doze horas depois esses sentimentos se renovavam tão ardentemente quanto os votos matrimoniais, nada mudava, o ar não ficava mais “limpo”. Ela permanecia
traída. Ele apimentava suas desculpas com velhas recordações de que ela o isolara, de que era fria. Disse até, certa noite bem tarde, que ela era “uma chata” e havia
“perdido a arte de sentir prazer”. De todas as acusações, essas foram as que mais a incomodaram, porque ela percebia serem verdadeiras, o que em nada diminuiu sua
raiva.
Pelo menos ele deixara de dizer que a amava. Na troca de palavras mais recente, dez dias antes, fora reiterado tudo o que haviam se dito antes, todas as recriminações,
todas as defesas, todas as frases bem formuladas que eram fruto de uma longa elucubração prévia, até que depuseram as armas, cansados um do outro e de si próprios.
Desde então, nada. Moviam-se o dia todo, cada qual cuidando de seus afazeres em diferentes partes da cidade e, quando confinados no apartamento, evitavam cuidadosamente
se tocar, como dançarinos numa quadrilha. Eram sucintos e competiam em matéria de cortesia quando forçados a decidir sobre questões referentes à casa, buscavam não
comer juntos, trabalhavam em cômodos separados, com a atenção prejudicada pela vívida consciência, através das paredes, da presença radioativa do outro. Sem necessidade
de discuti-lo, declinavam todos os convites conjuntos. O único gesto conciliatório dela consistiu em lhe dar uma nova chave.
De comentários evasivos e taciturnos dele, ela deduziu que, no quarto da especialista em estatística, Jack não transpusera os portões do paraíso. O que não era tão
tranquilizador. Ele provavelmente iria tentar a sorte em outro lugar, talvez já estivesse tentando, desta vez livre das tristes amarras da honestidade. Suas “aulas
de geologia” poderiam ser um bom subterfúgio. Ela se lembrava de haver prometido abandoná-lo se ele fosse em frente com Melanie. Mas Fiona não tinha tempo para desfazer
aquele complexo nó. E ainda estava indecisa, não confiava em seu atual estado de espírito. Caso ele houvesse lhe dado mais tempo depois de sair de casa, ela teria
chegado a uma decisão clara e se empenhado em terminar o casamento ou reconstruí-lo. Por isso, se entregou ao trabalho na forma usual e resolveu sobreviver dia após
dia o drama agora serenado de sua vida com Jack.
Quando uma de suas sobrinhas deixou lá as filhas durante um fim de semana, gêmeas idênticas de oito anos, as coisas ficaram mais fáceis, o apartamento ficou maior,
porque as atenções se voltaram para fora. Por duas noites Jack dormiu no sofá da sala de visitas sem que as meninas fizessem perguntas. Pertenciam a um tipo antiquado
de crianças que mantinham as costas bem retas, com modos solenes e afetuosos, embora sujeitas a brigas repentinas e explosivas. Uma ou outra — era fácil distinguir
as duas — procurava Fiona onde ela estivesse lendo e, postada diante dela, descansando uma mão confiante em seu joelho, despejava uma torrente prateada de historinhas,
reflexões e fantasias. Fiona replicava com suas próprias historinhas. Duas vezes, durante aquela visita, aconteceu que, enquanto ela falava, uma onda de amor pela
menina contraiu sua garganta e marejou seus olhos. Ela estava se sentindo velha e tola. Incomodava-a relembrar como Jack era bom com as crianças. Correndo o risco
de ter uma crise de coluna, como aconteceu certa vez com os três filhos do irmão de Fiona, ele fazia brincadeiras pesadas, de que as meninas participavam com acessos
de gritos inumanos. Em casa, a mãe delas, ressentida por causa do divórcio, jamais as jogava para o alto de cabeça para baixo. Ele as levou aos jardins para ensinar
uma versão de críquete que tinha inventado, além de ler uma longa história para elas na cama com vibrante energia cômica e talento na imitação das vozes.
Mas um domingo à noite, depois que as gêmeas foram levadas, os aposentos se encolheram, o ar ficou pesado e Jack saiu sem dar explicações — sem dúvida um ato hostil.
Para um encontro amoroso, ela imaginou, enquanto se ocupava arrumando o quarto de hóspedes para impedir que seu moral baixasse ainda mais. Repondo os brinquedos
macios na cesta de vime onde residiam, recuperando as contas de vidro e os desenhos rejeitados debaixo da cama, ela sentiu a melancolia mansa e envolvente, uma forma
de nostalgia instantânea, que a ausência repentina de crianças pode causar. Aquele sentimento durou até a manhã de segunda-feira e cresceu até se transformar numa
tristeza generalizada, que a perseguiu na caminhada para o trabalho. Só começou a se dissipar quando ela se sentou à sua mesa a fim de se preparar para o primeiro
caso da semana.
Em algum momento Nigel Pauling deve ter trazido a correspondência, porque a pilha de cartas se encontrava subitamente perto de seu cotovelo. Vendo o pequeno envelope
azul-claro em cima de todos, ela quase chamou seu assistente para abri-lo. Não estava com vontade de ler mais uma profusão de agressões verbais de algum analfabeto
ou ameaças de violência. Voltou ao trabalho, mas não conseguiu se concentrar. O envelope absurdo, as letras arredondadas, a falta de um código postal, o selo ligeiramente
torto — era demais. Mas, olhando uma vez mais, ela reparou no carimbo postal e foi tomada por uma repentina suspeita. Sopesou a carta por um instante e a abriu.
No momento seguinte, viu pela saudação que estava certa. Tinha aguardado vagamente por aquilo durante semanas. Havia falado com Marina Greene e soubera que ele estava
progredindo bem, já fora do hospital, recuperando em casa o tempo de estudos perdido e esperando voltar à sala de aulas em breve.
Três páginas azul-claras, escritas em cinco lados. O primeiro tinha o número sete dentro de um círculo posto no centro e no alto da página. Acima da data.
Meritíssima!
Esta é minha sétima carta e acho que vai ser a que porei no correio.
As primeiras palavras do parágrafo seguinte tinham sido riscadas.
Vai ser a mais simples e a mais curta. Só quero lhe descrever um acontecimento. Entendo agora como ele foi importante. Mudou tudo. Estou feliz por ter esperado porque
não gostaria que a senhora visse as outras cartas. Muito embaraçosas! Mas não tão terríveis como os nomes que lhe chamei quando Donna me anunciou sua decisão. Eu
estava certo de que a senhora tinha visto as coisas do meu jeito. Na verdade, guardei perfeitamente o que me disse, que era óbvio que eu sabia o que queria, e lembro
que lhe agradeci. Eu ainda estava tendo um ataque de raiva e xingando quando aquele horrível médico assistente, o dr. “me chama de Rodney” Carter, entrou com meia
dúzia de pessoas e o equipamento. Eles pensaram que iam precisar me segurar. Mas eu estava fraco demais e, mesmo furioso, sabia o que a senhora queria que eu fizesse.
Por isso, estendi o braço e eles começaram. A ideia de que o sangue de alguém entrava no meu corpo foi tão nojenta que vomitei na cama.
Mas não é isso que quero lhe contar. É o seguinte. Como mamãe não conseguiu assistir, ela ficou sentada do lado de fora do quarto e eu ouvia seu choro, o que me
deixou muito triste. Não sei quando papai apareceu. Acho que fiquei desmaiado algum tempo e, quando retomei os sentidos, os dois estavam ao lado da minha cama —
ambos chorando, e me senti ainda mais triste porque todos nós estávamos desobedecendo a Deus. Mas o importante, e levei algum tempo para entender isto, é que eles
estavam chorando de ALEGRIA! Estavam muito felizes, me abraçando e se abraçando, agradecendo a Deus e soluçando. Eu me senti muito esquisito e não entendi nada por
um ou dois dias. Nem pensava naquilo. Então comecei a pensar. Meus pais seguiram os ensinamentos, obedeceram aos anciãos, fizeram tudo certo e podem esperar ser
aceitos no paraíso aqui na Terra — e ao mesmo tempo podem me ter vivo sem que nenhum de nós seja expulso da Igreja. Transfusão feita, mas não por culpa nossa! Culpa
da juíza, culpa do sistema sem fé, culpa do que às vezes chamamos de “mundo”. Que alívio! Ainda temos nosso filho embora tivéssemos dito que ele devia morrer.
Não sei como interpretar isto. Foi uma fraude? Para mim foi uma mudança de direção. Estou resumindo a história. Quando eles me trouxeram para casa, tirei a Bíblia
do meu quarto, simbolicamente a botei virada para baixo numa cadeira do corredor e disse que eu não ia mais voltar ao Salão do Reino, que podiam me expulsar da igreja
se quisessem. Tivemos umas brigas horríveis. O sr. Crosby tem vindo me convencer. Nenhuma chance. Estou escrevendo para a senhora porque preciso mesmo falar com
a senhora, preciso ouvir sua voz calma e aproveitar sua mente clara para discutir comigo este assunto. Sinto que a senhora me levou para perto de alguma outra coisa,
alguma coisa de fato bonita e profunda, mas não sei bem o que é. A senhora nunca me disse no que acreditava, mas adorei quando sentou ao meu lado e executamos “The
Salley Gardens”. Ainda leio o poema todos os dias. Gosto de ser “jovem e tolo”, e, se não fosse pela senhora, eu não seria nem uma coisa nem outra, eu estaria morto!
Eu lhe escrevi uma porção de cartas bobas, penso na senhora o tempo todo e quero mesmo ver a senhora para nos falarmos outra vez. Sonho acordado sobre nós, fantasias
maravilhosas e impossíveis, como a de que vamos fazer uma viagem de volta ao mundo juntos num navio, em camarotes vizinhos, e que passeamos o dia todo pelo convés
conversando.
Meritíssima, me escreva por favor, apenas algumas palavras para dizer que leu esta carta e que não me odeia por tê-la escrito.
Sempre seu,
Adam Henry
P.S.: Esqueci de dizer que estou ficando cada dia mais forte.
Ela não respondeu, ou melhor, não pôs no correio o bilhete que levou mais de uma hora para escrever naquela noite. No quarto e último rascunho, pensou ter sido bastante
afetuosa, feliz de sabê-lo em casa e se sentindo melhor, contente por ele ter boas recordações da visita dela. Aconselhou-o a ser carinhoso com os pais. Era normal,
como adolescente, questionar as crenças com que havíamos sido criados, mas isso devia ser feito de modo respeitoso. Terminou dizendo, embora não fosse verdade, que
havia ficado atraída pela ideia de uma volta ao mundo num navio. Acrescentou que, quando jovem, tinha sonhos de fuga como o dele. Isso também não era verdade, pois
ela havia sido ambiciosa demais, mesmo com dezesseis anos, ávida demais por boas notas nos exames para pensar em escapar. As visitas como adolescente a seus primos
de Newcastle foram suas únicas aventuras. Olhando a cartinha no dia seguinte, não foi a afetuosidade que a impressionou, e sim a frieza, os conselhos esfarrapados,
a linguagem impessoal, as falsas lembranças. Releu a carta dele e foi mais uma vez tocada por sua inocência e calor humano. Melhor não mandar nada do que decepcioná-lo.
Se mudasse de opinião, poderia escrever mais tarde.
Estava se aproximando o momento em que realizaria o circuito itinerante, visitando cidades inglesas e antigos vilarejos na companhia de outro juiz especializado
em direito criminal e cível. Ela julgaria casos que, de outra forma, precisariam ser transferidos para os tribunais de Londres. Ela ficaria hospedada em locais especialmente
bem preservados, mansões impressionantes de interesse histórico e arquitetônico onde, em certos casos, as adegas eram lendárias e as cozinheiras provavelmente decentes.
As autoridades do lugar costumavam convidá-la para jantar. Ela e seu colega retribuiriam a gentileza nas casas onde estivessem instalados, convidando figuras eminentes
ou interessantes (havia uma clara distinção entre as duas categorias) da localidade. Os quartos de dormir eram bem mais sofisticados que o seu, as camas mais largas,
os lençóis de tecido mais fino. Em tempos mais felizes, havia, para uma mulher bem casada, um elemento de culpa e prazer sensual naquelas acomodações a sós. Agora,
ela ansiava escapar do silencioso e solene pas de deux em casa. E a primeira parada era sua cidade inglesa predileta.
Certa manhã no começo de setembro, uma semana antes de iniciar a viagem, ela recebeu uma segunda carta. Mesmo antes de lê-la sua preocupação desta vez foi maior,
porque o envelope azul se encontrava sobre o capacho do vestíbulo de seu apartamento, em meio a circulares e a uma conta de luz. Nenhum endereço, só o nome dela.
Bem simples para Adam Henry esperar no Strand ou na Carey Street e segui-la à distância.
Jack já tinha saído para o trabalho. Ela levou a carta para a cozinha e se sentou diante dos restos do café da manhã.
Meritíssima,
Nem sei o que escrevi porque não guardei uma cópia, mas tudo bem que a senhora não tenha respondido. Ainda preciso conversar com a senhora. Aqui estão minhas notícias
— grandes brigas com meus pais, fantástico estar de volta à escola, me sentindo melhor, me sentindo feliz e depois infeliz e feliz outra vez. Às vezes a ideia do
sangue de um estranho dentro de mim me causa enjoo, como se eu tivesse bebido a saliva de alguém. Ou pior. Não posso me livrar da ideia de que a transfusão é uma
coisa errada, mas não me importo mais. Tenho tantas perguntas para a senhora, mas nem tenho certeza de que se lembra de mim. A senhora deve ter tido dezenas de casos
desde o meu e feito um bocado de escolhas sobre outras pessoas. Sinto ciúme! Quis conversar com a senhora na rua, chegar perto e tocar no seu ombro. Não fiz isso
porque sou um covarde. Achei que a senhora podia não me reconhecer. A senhora também não precisa responder a esta carta — o que significa que espero que responda.
Por favor, não se preocupe, não quero atormentá-la ou nada parecido. Só sinto que a tampa da minha cabeça explodiu. Está saindo tudo!
Sinceramente seu,
Adam Henry
Fiona mandou imediatamente um e-mail para Marina Greene perguntando se ela podia encontrar um tempinho para visitar o rapaz num acompanhamento de rotina e depois
lhe enviar um relatório. Recebeu o retorno antes do fim do dia. Marina se encontrara com Adam durante a tarde na escola, onde ele estava começando um período de
estudos especiais a fim de se preparar para os exames antes do Natal. Ficou meia hora com ele, que havia engordado e estava corado. Mostrou-se animado, até mesmo
“engraçado e travesso”. Havia alguns problemas em casa, a maior parte sobre diferenças religiosas com os pais, mas ela não achou nada de estranho nisso. Em particular,
o diretor lhe disse que Adam, depois de voltar do hospital, havia trabalhado bastante para recuperar o tempo perdido. Seus professores consideravam que ele estava
progredindo otimamente. Contribuía bastante para as atividades em sala de aula, nenhum problema de comportamento. Em suma, tudo corria bem. Tranquilizada, Fiona
decidiu não escrever para ele.
Uma semana depois, na manhã da segunda-feira em que deveria viajar para o nordeste da Inglaterra, ocorreu um desvio minúsculo na falha geológica conjugal, um movimento
quase tão imperceptível quanto o deslocamento das placas tectônicas. Foi tácito, algo não reconhecido abertamente. Mais tarde, quando se encontrava no trem e repassou
tudo, o instante pareceu se situar na fronteira entre o real e o imaginado. Será que ela podia confiar em sua memória? Eram sete e meia quando entrara na cozinha.
Jack estava de pé junto ao balcão, de costas para ela, despejando grãos de café no moedor. A pasta dela já estava no corredor e Fiona cuidava de recolher uns poucos
documentos que faltavam. Como de hábito, ficou relutante em dividir um espaço pequeno com ele. Pegou a echarpe das costas da cadeira e saiu para continuar a busca
na sala de visitas.
Voltou alguns minutos depois. Jack tirava uma jarra de leite do micro-ondas. Eles eram exigentes em matéria de café da manhã e, no curso dos anos, seus gostos tinham
convergido. Gostavam de café forte feito com grãos colombianos de alta qualidade, servido em canecas brancas e altas de borda fina, com leite morno, e não quente.
Ainda de costas para ela, Jack derramou leite em seu café e depois se voltou com a caneca erguida e ligeiramente estendida na direção dela. Nada na expressão de
Jack sugeria que ele estava lhe oferecendo a caneca, e ela nem assentiu nem recusou com a cabeça. Os olhos dos dois se encontraram por um instante, e então ele depositou
a caneca na mesa de pinho e empurrou-a uns cinco centímetros na direção dela. Isso não significava necessariamente muito, pois, em suas tensas manobras para se evitar,
ambos permaneciam escrupulosamente corteses, como se cada qual estivesse procurando superar o outro em se mostrar razoável, os dois irrepreensíveis graças à ausência
de rancor. Não faria sentido preparar um bule de café só para uma pessoa. Mas há maneiras e maneiras de pôr uma caneca na mesa, desde a batidinha peremptória da
porcelana contra a madeira até o pouso silencioso e cuidadoso, assim como há maneiras e maneiras de aceitar uma caneca, coisa que ela fez mansamente, em câmera lenta,
sem se afastar tão logo tomou um gole, ou não tão de imediato quanto o teria feito em qualquer outra manhã. Passaram-se alguns segundos de silêncio, em seguida pareceu
que isso era o mais longe que ambos estavam preparados para ir, que o momento continha coisas demais para eles e que tentar algo além os faria recuar. Jack se afastou
a fim de preparar uma caneca para ele, enquanto Fiona se afastou para ir buscar alguma coisa no quarto. Moveram-se um pouco mais devagar do que era comum, talvez
quase com relutância.
No começo da tarde, ela chegou a Newcastle. Um motorista esperava do lado de lá das catracas para levá-la aos tribunais de Quayside. Nigel Pauling a aguardava na
entrada dos magistrados e a conduziu ao gabinete que ela ocuparia. Ele chegara de Londres de manhã com os documentos e as togas — os paramentos completos, como disse
—, porque Fiona participaria da Corte da Rainha além da Vara da Família. O assistente do tribunal apareceu para dar as boas-vindas formais, seguido do funcionário
que cuidava da agenda, com o qual ela repassou os casos a serem ouvidos nos dias seguintes.
Como havia outras pequenas matérias a tratar, só por volta das quatro da tarde Fiona ficou livre para sair. A previsão era de que uma tempestade de verão chegaria
do sudoeste no começo da noite. Ela mandou que o motorista esperasse e deu uma caminhada pelo calçadão junto ao rio, passando por baixo da ponte Tyne e ao longo
de Sandhill, pelos novos cafés ao ar livre e por jardins floridos junto a sólidos prédios comerciais com fachadas clássicas. Subiu as escadas até Castle Garth e
parou no alto para olhar o rio que ficara para trás. Ela tinha uma queda por aquela mistura exuberante de peças poderosas de ferro fundido, aço e vidro pós-industrial,
de velhos armazéns salvos da decrepitude por uma fantasia juvenil de cafés e bares. Compartilhava um passado com Newcastle e se sentia bem lá. Na adolescência, durante
as recorrentes doenças de sua mãe, ia passar algum tempo ali com suas primas prediletas. Tio Fred, dentista, era o homem mais rico que ela conhecia. Tia Simone ensinava
francês numa escola primária. A casa era agradavelmente caótica, uma libertação dos domínios de sua mãe em Finchley, encerados ao exagero e insuficientemente arejados.
As primas, de sua idade, eram alegres e aventurosas, obrigando-a a sair à noite em missões aterradoras que incluíam a ingestão de bebidas e quatro músicos dedicados
com cabelos até a cintura e bigodes de pontas caídas, que pareciam transviados mas provaram ser gente boa. Seus pais ficariam horrorizados de saber que a filha estudiosa
de dezesseis anos era presença assídua em certos bares, que bebia licor de cereja e cuba-libre, e tivera seu primeiro amante. E, juntamente com as primas, ela era
a tiete fiel, e tolerada como assistente novata, de uma banda de blues mal equipada e mal remunerada, ajudando a carregar amplificadores e peças da bateria numa
caminhonete enferrujada que vivia enguiçando. Com frequência afinava as guitarras. Sua emancipação tinha muito a ver com o fato de que aquelas visitas, além de ocasionais,
nunca duravam mais que três semanas. Se permanecesse por mais tempo — nunca uma possibilidade real —, talvez fosse até autorizada a cantar os blues. Poderia ter
se casado com Keith, o principal cantor do grupo e tocador de gaita, que tinha um braço atrofiado e a quem ela adorava timidamente.
Tio Fred mudou seu consultório para o sul do país quando ela tinha dezoito anos, o caso com Keith acabou em lágrimas e em alguns poemas de amor que ela não enviou.
Fiona jamais voltou a viver esse tipo de relacionamento arriscado e tremendamente divertido, o qual se tornou parte inseparável da ideia que fazia de Newcastle.
Não seria possível reproduzi-lo em Londres, a sede de suas ambições profissionais. Por vários anos ela voltara ao Nordeste sob diversos pretextos, além de quatro
vezes para cumprir o circuito judiciário. Sempre fazia bem ao seu espírito se aproximar da cidade pela alta ponte Stephenson sobre o rio Tyne, chegando com o espírito
excitado de uma adolescente, descendo do trem na gare central sob os três grandes arcos criados por John Dobson e saindo pela extravagante porte cochère neoclássica
desenhada por Thomas Prosser. Foi seu tio dentista, recebendo-a com seu Jaguar verde e suas primas impacientes, quem a ensinou a apreciar a gare e os tesouros arquitetônicos
da cidade. Ela nunca se desfizera da impressão de estar no exterior, de se encontrar numa cidade-Estado báltica caracterizada por um curioso otimismo e orgulho.
O ar era mais revigorante, a luz de um cinzento amplo e luminescente, os habitantes amistosos, porém mais incisivos, autoconscientes ou ironizando a si próprios
como atores numa comédia. Perto do sotaque deles, o dela parecia tenso e artificial. Se, como Jack insistia, a geologia moldava a variedade de tipos e de destinos
dos ingleses, então os moradores da cidade eram feitos de granito e ela de calcário friável. Mas, com sua paixonite juvenil pela cidade, com suas primas, a banda
e o primeiro namorado, acreditava que poderia mudar, se tornar mais autêntica, mais verdadeira, uma genuína cidadã daquela região. Anos depois, recordar-se de tal
ambição ainda a fazia sorrir. No entanto, o sentimento lá estava em cada regresso, uma vaga noção de renovação, de um potencial não explorado em outra vida — e isso
mesmo às vésperas de fazer sessenta anos.
O carro em cujo assento ela se reclinou era um Bentley da década de 1960, e seu destino o Leadman Hall, situado dentro de seu próprio parque a um quilômetro e meio
dos portões que ela agora transpunha. Logo passou por um campo de críquete, depois por uma alameda de faias com as copas já agitadas pelo vento que crescia, mais
tarde por um lago tomado por plantas aquáticas. O palacete, no estilo do arquiteto Andrea Palladio e havia pouco tempo pintado de um branco brilhante demais, tinha
doze quartos e nove empregados para servir a dois magistrados do Tribunal Superior em seu circuito itinerante. Pevsner, conhecido historiador da arte arquitetônica,
aprovara sem grande entusiasmo a estufa, e nada mais. Somente uma anomalia burocrática havia preservado Leadman de ser destruído por medida de economia do governo,
mas o jogo estava chegando ao fim porque aquele era o último ano em que a construção iria contar com o Judiciário. O palacete, alugado algumas semanas por ano de
uma família da região com interesses históricos na mineração de carvão, servia principalmente como centro de conferências e local para festas de casamento. Seu campo
de golfe, quadras de tênis e piscina externa aquecida eram, como agora se reconhecia, luxos desnecessários para juízes de passagem e muito atarefados. Do ano seguinte
em diante, uma empresa de táxi da cidade forneceria um espaçoso Vauxhall para substituir o Bentley. As acomodações seriam num hotel do centro de Newcastle. Os magistrados
da Vara Criminal, que às vezes mandavam para a prisão por longos períodos homens da região com parentes assustadores, tinham clara preferência pelo isolamento de
um palacete. Mas ninguém era capaz de argumentar em favor de Leadman sem dar a impressão de que o fazia por puro interesse.
Pauling esperava com a governanta no pátio de cascalho junto à entrada principal. Ele desejava dar um sentido especial àquela derradeira visita. Aproximou-se da
porta de trás do carro com um floreio irônico e bateu os calcanhares. Como sempre, a governanta era nova, uma polonesa de uns vinte e poucos anos, calculou Fiona,
mas seu olhar era direto e frio, e ela pegou com firmeza a mala mais pesada da juíza até que Pauling a tomou de sua mão. Lado a lado, o assistente e a governanta
conduziram Fiona ao quarto do primeiro andar que ela considerava como seu. Ficava na frente da casa, com três janelas altas que davam para a alameda de faias e para
o trecho do lago invadido por ervas. Além do quarto de quase dez metros de comprimento, havia a sala de estar com uma mesa de trabalho. O banheiro, no entanto, ficava
no fim de um corredor e três degraus atapetados abaixo do nível do quarto. Na última vez em que Leadman tinha sido modernizado, a proliferação generalizada de lavatórios
e chuveiros ainda não começara.
A tempestade chegou quando Fiona saiu do banho. Vestida com um penhoar, plantou-se diante da janela central observando as pancadas de chuva, cortinas fantasmagóricas
que corriam velozes e, por segundos, ocultavam os campos. Viu o galho mais alto de uma das faias próximas se partir e começar a cair, ficando de cabeça para baixo
e balançando ao ser contido pelos galhos mais baixos, até mergulhar de novo, voltar a se emaranhar e ser enfim liberado pelo vento para se chocar com um baque contra
o solo. Quase tão alto quanto o silvar da chuva no cascalho era o coro de gemidos nas calhas do telhado. Ela acendeu as luzes e começou a se vestir. Já estava atrasada
dez minutos para o xerez na sala de visitas.
Quatro homens de terno preto e gravata, cada qual com seu gim e sua tônica, pararam de conversar e se ergueram das poltronas quando ela entrou. Um garçom de paletó
branco engomado foi preparar o drinque dela, enquanto Caradoc Ball da Corte da Rainha, colega de Fiona encarregado dos casos criminais, apresentou-a aos demais —
um professor de jurisprudência, um homem que tinha negócios no setor de fibras ópticas e alguém que trabalhava para o governo na conservação da costa marítima. Todos
de alguma forma eram ligados a Ball. Ela não convidara ninguém para a primeira noite. Seguiu-se a conversa obrigatória sobre o clima tempestuoso. Depois, uma digressão
sobre como as pessoas de mais de cinquenta anos e todos os norte-americanos ainda viviam no mundo das temperaturas medidas em Fahrenheit. Depois, como os jornais
britânicos, para obter o máximo de impacto, noticiavam as baixas temperaturas em graus Celsius e as quentes em Fahrenheit. Durante todo o tempo ela se perguntava
por que o rapaz curvado sobre o carrinho de bebidas estava demorando tanto. Ele trouxe o drinque dela justamente quando estava sendo lembrada a já distante transição
para as moedas decimais.
Fiona já sabia pelo próprio Ball que ele estava em Newcastle para realizar o novo julgamento de um caso de assassinato no qual um homem era acusado de haver matado
sua mãe em casa com golpes de porrete devido aos maus-tratos que ela infligia à filha mais jovem, meia-irmã do réu. A arma do crime não tinha sido encontrada e a
prova de DNA era inconclusiva. A defesa argumentava que a mulher havia sido morta por um intruso. O julgamento fora anulado quando se descobriu que um jurado tinha
revelado aos outros membros do júri informações que colhera na internet pelo celular. Ele encontrara a reportagem de um jornal sensacionalista, publicada cinco anos
antes, sobre a prévia condenação do homem por agressão violenta. Na nova era de acesso digital, alguma coisa precisava ser feita para “esclarecer” certas questões
aos jurados. O professor de jurisprudência havia pouco tempo apresentara um estudo à Comissão Jurídica, possivelmente objeto da conversa que Fiona interrompera ao
entrar na sala. Agora ela foi retomada. O especialista em fibras ópticas perguntou como seria possível impedir que os jurados buscassem informações na privacidade
de suas casas ou conseguissem que um membro da família o fizesse por eles. Relativamente simples, segundo o professor. Os próprios jurados se policiariam. Seriam
obrigados, sob pena de prisão, a apontar qualquer um deles que discutisse matérias não apresentadas perante o tribunal. Dois anos no máximo pela divulgação de tais
matérias, seis meses no máximo por não informar a violação. A Comissão daria seu parecer conclusivo no ano seguinte.
Nesse momento, o mordomo os convidou a seguirem para a mesa de jantar. Embora não pudesse ter mais de trinta anos, seu rosto era doentiamente pálido, como se coberto
de talco. Tão branco quanto uma aspirina — Fiona certo dia ouvira uma proprietária rural francesa dizer. Mas o mordomo não parecia doente pois mantinha uma atitude
impessoal e segura. Enquanto aguardava à pequena distância, com a cabeça inclinada para a frente em sinal de atenção, eles terminaram seus drinques e, seguindo Fiona,
atravessaram uma porta de folha dupla rumo à sala de jantar. A mesa, que poderia comportar trinta pessoas, estava posta para cinco numa extremidade solitária. A
sala era recoberta de lambris, pintados de um laranja quase fluorescente, com desenhos de flamingos calculadamente espaçados. Os convivas encontravam-se agora no
lado norte da casa, atingido em cheio pelo vento e onde as três janelas de guilhotina sacudiam, produzindo um ruído surdo. O ar estava frio e úmido. Havia um buquê
de flores secas na lareira. O mordomo explicou que ela havia sido bloqueada muitos anos antes, mas que ele traria um aquecedor elétrico. Eles avaliaram a distribuição
dos assentos e, após alguns momentos de polida incerteza, concordaram que, em respeito à simetria, Fiona se sentaria à cabeceira.
Até então ela mal falara. O mordomo pálido serviu um vinho branco. Dois garçons trouxeram patê de arenque e torradas finas. À esquerda dela estava o perito em conservação,
Charlie, um cinquentão gordo, careca e bem-humorado. Enquanto os outros continuavam a falar sobre jurados, ele perguntou cortesmente sobre o trabalho dela. Resignada
a uma rodada de conversinha fiada, Fiona explicou em termos gerais o trabalho da Vara de Família. Mas Charlie queria detalhes. Que tipo de decisão iria tomar no
dia seguinte? Ela se sentia mais feliz falando sobre um caso específico. Uma instituição local desejava ficar com a guarda de duas crianças, um menino de dois anos
e uma menina de quatro. A mãe era alcoólatra e também viciada em anfetaminas. Sofria crises psicóticas durante as quais imaginava estar sendo espionada por lâmpadas
elétricas. Tornara-se incapaz de cuidar de si própria ou das crianças. O pai, separado dela, tinha permanecido distante, mas agora alegava que ele e sua namorada
podiam cuidar das crianças. Ele também enfrentava problemas com drogas e era fichado na polícia, embora tivesse direito sobre os filhos. Um assistente social se
pronunciaria no dia seguinte perante o tribunal acerca da adequação dele como pai. Os avós maternos adoravam as crianças, eram competentes e queriam cuidar delas,
porém não tinham amparo legal para isso. A instituição local, cujo serviço de atendimento a menores havia sido criticado num relatório oficial, se opunha aos avós
por razões que ainda não estavam claras. As três partes — mãe, pai e avós — estavam amargamente divididas. Outra complicação era existirem opiniões contraditórias
acerca da menina de quatro anos. Um pediatra disse que ela tinha necessidades especiais, outro, contratado pelos avós, acreditava que, conquanto a menina estivesse
perturbada pelo comportamento da mãe e abaixo do peso normal por causa das refeições em horários irregulares, seu desenvolvimento era normal.
Havia, Fiona disse, muitos outros casos similares agendados para aquela semana. Charlie levou a mão à testa e fechou os olhos. Que encrenca! Se ele tivesse de tomar
uma decisão na manhã seguinte em um só caso como aquele, ficaria acordado a noite toda, roendo as unhas e abusando das bebidas oferecidas no quarto do hotel. Fiona
perguntou por que ele estava lá. Charlie tinha vindo de Whitehall a fim de persuadir um grupo de fazendeiros da costa a se unir a algumas organizações de proteção
ambiental, para permitirem que suas pastagens voltassem a ser cobertas pela água do mar, retornando à condição de pântanos salgados. Essa era de longe a melhor e
mais barata forma de defesa contra a inundação da costa, maravilhosa para a vida selvagem, sobretudo pássaros, e boa também para o turismo de pequena escala. Mas
havia uma forte oposição de certos segmentos do setor agrícola, embora os fazendeiros fossem ser bem recompensados. Durante todo o dia o tinham calado aos berros
nas reuniões. Corria o rumor de que o plano era compulsório. Ninguém acreditava nele quando dizia que não era assim. Viam-no como um representante do governo central,
com o qual os fazendeiros estavam irritados por uma série de outras questões que não eram de sua alçada. No final, tinha levado uns trancos num corredor. Um indivíduo
“com metade da minha idade e o dobro da minha força” havia agarrado sua gola e murmurado alguma coisa com o sotaque local que ele não tinha entendido. Melhor assim.
Amanhã ele voltaria e tentaria de novo. Estava certo de que no final iria conseguir o que queria.
Bom, isso soava a ela como um dos círculos especiais do inferno, bem pior do que qualquer mãe psicótica. Os dois estavam dando umas risadinhas por conta dessa observação,
quando perceberam que os outros três tinham abandonado a conversa deles e os ouviam.
Caradoc Ball, que era um velho colega de escola de Charlie, disse: “Espero que você saiba que está falando com uma juíza muito eminente. Certamente se lembra do
caso dos irmãos siameses”.
Todos se lembravam e, à medida que os pratos foram retirados e o boeuf en croûte servido com um Château Latour, conversaram e fizeram perguntas a ela sobre o famoso
caso. Fiona lhes disse tudo o que queriam saber. Todos tinham uma opinião, mas, como era a mesma, logo passaram a discutir a paixão que a história suscitara nos
jornais e como eles a haviam disputado. Dali foi um passo para uma troca de fofocas sobre os lances mais recentes da Investigação Leveson.* Terminaram a carne. À
frente, como dizia o cartão com o menu, havia um pudim de pão. Logo, logo, pensou Fiona, estariam discutindo a sabedoria ou a loucura de o Ocidente não mandar tropas
para a Síria. Era impossível calar Caradoc sobre aquele tema. E, de fato, ele o introduzia quando se deram conta de vozes ecoando no corredor. Pauling e o mordomo
de rosto branco pararam no umbral da porta e depois se aproximaram dela.
O mordomo se pôs de lado, com um olhar contrariado, enquanto Pauling, depois de pedir desculpas a todos com um aceno de cabeça, inclinou-se por cima da cadeira de
Fiona e disse baixinho perto de seu ouvido: “Minha senhora, perdão por interromper, mas infelizmente há um assunto que exige sua atenção imediata”.
Ela limpou os lábios com o guardanapo e se pôs de pé. “Me desculpem, senhores.”
Sem mudar de expressão, todos se levantaram e ela atravessou a sala na frente dos dois homens. Já do lado de fora, ela disse ao mordomo: “Ainda estamos esperando
por aquele aquecedor”.
“Vou pegar agora.”
Havia algo impertinente em seu jeito ao dar meia-volta, e ela olhou para seu assistente com as sobrancelhas erguidas.
Mas ele simplesmente disse: “Por aqui”.
Ela o seguiu através do corredor e do que fora antes uma biblioteca. As estantes estavam repletas de livros comprados em lojas de objetos usados, do tipo que os
hotéis adquirem por metro para criar uma atmosfera respeitável em certos ambientes.
Pauling disse: “É o rapaz das testemunhas de Jeová, Adam Henry. A senhora se lembra do caso da transfusão? Parece que ele a seguiu até aqui. Andou na chuva, está
completamente encharcado. Queriam expulsá-lo, mas achei que a senhora precisava ser informada antes”.
“Onde ele está?”
“Na cozinha. É mais quentinho lá.”
“Melhor trazê-lo aqui.”
Tão logo Pauling saiu, ela se levantou e caminhou lentamente pela sala, consciente de que seu ritmo cardíaco tinha aumentado. Caso houvesse respondido às cartas,
não estaria agora defrontando aquilo. Defrontando o quê? O envolvimento desnecessário com um caso fechado. E mais que isso. Mas não havia tempo para refletir. Ouviu
passos se aproximando.
A porta se abriu e Pauling fez o rapaz passar. Ela nunca o vira fora da cama e se surpreendeu com sua altura, bem mais de um metro e oitenta. Vestia seu uniforme
escolar, calça de flanela cinza, suéter cinza, camisa branca, um blusão bem leve, encharcado da cabeça aos pés, o cabelo em desordem depois de ter sido enxugado.
Uma pequena mochila pendia frouxamente de sua mão. O toque patético era dado pela toalha de chá do Leadman, com ilustrações dos pontos turísticos locais, envolvendo
suas costas para aquecê-lo.
O assistente se manteve junto à porta enquanto o rapaz deu alguns passos para dentro da sala, parando perto de onde ela se encontrava e dizendo: “Sinto muito mesmo”.
Naqueles primeiros momentos, era mais fácil esconder a confusão de sentimentos sob um tom maternal. “Você parece estar congelado. É melhor trazermos o aquecedor
para cá.”
“Eu mesmo vou pegar”, disse Pauling, saindo.
“Bem”, ela disse após um silêncio. “Como você me achou aqui?”
Outra evasão, perguntar como em vez de por quê, mas àquela altura, conquanto sua presença ainda fosse um choque, Fiona não era capaz de entender o que Adam queria
dela.
O relato dele foi sóbrio. “Eu a segui num táxi desde King’s Cross, peguei seu trem e, como não tinha ideia de onde a senhora ia saltar, comprei passagem para Edinburgh.
Em Newcastle, a segui ao sair da estação, corri atrás da sua limusine e então a perdi de vista. Tive um palpite e perguntei onde eram os tribunais. Quando cheguei
lá, vi imediatamente o seu carro.”
Ela o observou falar, enquanto analisava a transformação. A magreza se fora, porém ele continuava esbelto. Novos músculos nos ombros e braços. O mesmo rosto delicadamente
estruturado, a pinta marrom na maçã do rosto quase invisível na pele bronzeada pela saúde juvenil. Tênues indícios das olheiras roxas. Lábios cheios e úmidos, olhos
que naquela luz eram demasiado escuros para revelar sua cor. Mesmo enquanto tentava se desculpar, ele se mostrava vívido demais, ávido demais para dar uma explicação
detalhada. Quando ele afastou o olhar para ordenar a sequência de fatos, Fiona se perguntou se aquele era um rosto que sua mãe chamaria de antiquado. Uma ideia sem
nexo. A noção generalizada do rosto de um poeta romântico, um primo de Keats ou Shelley.
“Esperei um tempão até a senhora sair e a segui ao atravessar a cidade e voltar na direção do rio, vendo quando saiu do carro. Levei mais de uma hora até descobrir
no meu celular onde os juízes se hospedavam, peguei uma carona, desci na estrada principal, pulei o muro para não passar pela casa do guarda e andei até aqui na
chuva. Esperei muito tempo nos fundos, perto das antigas estrebarias, me perguntando o que eu devia fazer, até que alguém me viu. Realmente sinto muito, eu...”
Pauling, irritado e com o rosto vermelho por causa do esforço, chegou com o aquecedor. Talvez tivesse sido necessário arrancá-lo das mãos do mordomo. Os dois ficaram
olhando enquanto o assistente se pôs de quatro com um grunhido e desapareceu parcialmente debaixo de uma mesinha de canto para encontrar a tomada. Depois que se
reergueu, pousou as mãos nos ombros do rapaz e o levou para a frente do ar aquecido. Antes de sair, disse a Fiona: “Estou esperando do lado de fora”.
Quando ficaram sozinhos, ela disse: “Eu não deveria pensar que tem alguma coisa de esquisito em você me seguir até minha casa e depois até aqui?”.
“Ah, não! Por favor, não pense isso. Não é nada disso.” Olhou em volta impaciente, como se nas paredes estivesse escrita alguma explicação. “Olha, a senhora salvou
minha vida. E não é só isso. Papai tentou esconder de mim, mas li sua sentença. A senhora disse que queria me proteger da minha religião. Pois bem, protegeu. Fui
salvo!”
Ele riu da própria piada e ela disse: “Não o salvei para que você me seguisse por todo canto”.
Nesse justo instante, uma peça fixa do aquecedor deve ter entrado na órbita de alguma peça móvel, pois um estalido regular tomou conta da sala. O volume aumentou,
baixou, se estabilizou. Ela sentiu uma onda de irritação com a casa toda. Um embuste. Um depósito de velharias. Como não tinha visto isso antes?
O momento passou e ela perguntou: “Seus pais sabem onde você está?”.
“Tenho dezoito anos. Posso estar onde quiser.”
“Não me interessa sua idade. Eles vão ficar preocupados.”
Adam soltou um arquejo de exasperação juvenil e depositou a mochila no chão. “Olha, Meritíssima...”
“Chega disso. Me chame de Fiona.” Enquanto pudesse mantê-lo em seu lugar, ela se sentiria melhor.
“Eu não quis ser sarcástico nem nada.”
“Ótimo. E quanto a seus pais?”
“Ontem tive uma briga feia com papai. Tivemos algumas desde que saí do hospital, mas essa foi realmente das grandes, os dois gritando, e eu lhe disse tudo o que
achava sobre sua religião idiota, mesmo que ele não estivesse escutando. No final, me afastei. Subi para o quarto, fiz a mala, peguei o dinheiro que tinha guardado
e me despedi de mamãe. Depois fui embora.”
“Você precisa telefonar para ela agora.”
“Não há necessidade. Mandei uma mensagem para o celular dela ontem à noite do lugar onde me hospedei.”
“Mande outra.”
Ele a olhou, ao mesmo tempo surpreso e desapontado.
“Vamos, diga que está são e salvo em Newcastle e que vai escrever outra vez amanhã. Depois disso conversamos.”
Ela se afastou alguns passos e observou enquanto seus dedos longos dançavam sobre o teclado virtual. Em segundos o celular voltara ao bolso dele.
“Pronto”, disse, olhando para ela com ar expectante, como se ela é que lhe devesse alguma explicação.
Fiona cruzou os braços. “Adam, por que você está aqui?” Seu olhar se desviou, ele hesitou. Não ia dizer a ela a razão, pelo menos não de forma direta.
“Olhe, eu não sou a mesma pessoa. Quando a senhora foi me ver eu estava realmente pronto para morrer. É impressionante que alguém como a senhora tivesse perdido
tempo comigo. Eu era um tremendo idiota!”
Ela apontou para duas cadeiras de madeira junto a uma mesa oval de nogueira, onde se sentaram frente a frente. A luz branca e sepulcral vinha de quatro lâmpadas
LED presas a uma roda rústica de madeira pintada. Por não estar situada diretamente acima da mesa, a iluminação acentuava os contornos das maçãs do rosto e dos lábios
de Adam, assim como as finas saliências gêmeas que separavam a parte acima de seu lábio superior. Tratava-se de uma bela face.
“Não achei você um idiota.”
“Mas eu era. Sempre que os médicos e as enfermeiras tentavam me dissuadir, eu me sentia nobre e heroico, dizendo para me deixarem em paz. Eu era bom e puro. Adorava
que eles não conseguissem entender como eu era profundo. Eu realmente me achava o tal. Gostava de ver o orgulho dos meus pais e dos anciãos. À noite, quando não
tinha ninguém por perto, ensaiei fazer um vídeo, como esses homens-bomba. Ia fazer no meu celular. Queria que fosse reproduzido nos noticiários de televisão e no
meu funeral. Acabei chorando no escuro, imaginando meu caixão sendo levado diante dos meus pais, dos meus colegas e professores, de toda a congregação, as flores,
as coroas, a música triste, todos chorando, todos orgulhosos de mim e me amando. Sinceramente, eu era um idiota.”
“E onde entrava Deus nessa história?”
“Por trás de tudo. Eu estava obedecendo às instruções dele. Mas era mais sobre a maravilhosa aventura que eu estava vivendo, como ia morrer gloriosamente e ser adorado.
Uma garota que eu conheci na escola sofria de anorexia três anos atrás, quando tinha quinze anos. O sonho dela era se transformar em nada — como uma folha seca soprada
pelo vento, foi o que ela disse, mergulhando devagarzinho na morte, todo mundo com pena dela e depois se culpando por não compreendê-la. O mesmo tipo de coisa.”
Agora que o via sentado, Fiona se lembrou dele no hospital, recostando-se nos travesseiros em meio àquela bagunça juvenil. Não era a enfermidade dele que lhe vinha
à mente, mas sua avidez, a inocência vulnerável. Até mesmo a palavra anorexia soava como uma diversão. Ele havia tirado do bolso uma tira estreita de tecido verde,
talvez parte de um forro, que enrolava e desenrolava entre o indicador e o polegar como as contas do colar de um muçulmano.
“Então, não era muito uma questão de religião; tinha mais a ver com seus outros sentimentos.”
Ele ergueu as mãos. “Meus sentimentos tinham origem na minha religião. Eu estava cumprindo a vontade de Deus, a senhora e todos os outros estavam claramente errados.
Como eu teria me metido numa confusão daquelas se não fosse testemunha de Jeová?”
“Parece que sua colega anoréxica conseguiu.”
“Bem, na verdade a anorexia é um pouco como uma religião.”
Diante do olhar cético de Fiona, ele improvisou. “Ah, a senhora sabe, querer sofrer, amar a dor e o sacrifício, pensar que todo mundo está te observando, preocupado
com você, que o universo gira em torno de você. E do seu peso!”
Ela não se conteve e riu da ironia contida na última frase. Ele sorriu por seu inesperado êxito em diverti-la.
Ouviram vozes e passos no corredor quando os convidados passaram da sala de jantar para a de visitas a fim de tomarem café, e depois uma sucessão de gargalhadas
que mais pareciam latidos perto da porta da biblioteca. O rapaz ficou tenso com a possibilidade de uma interrupção, e ambos mantiveram um silêncio conspiratório
enquanto aguardavam que os sons morressem. Adam olhava para baixo, para suas mãos entrelaçadas sobre a madeira envernizada da mesa. Ela imaginava todas as horas
de sua infância e juventude dedicadas a orações, hinos, sermões e as diversas restrições que jamais conheceria, a comunidade fechada mas amorosa que o sustentara
até quase matá-lo.
“Adam, vou perguntar outra vez. Por que você está aqui?”
“Para lhe agradecer.”
“Há maneiras mais fáceis.”
Ele suspirou com impaciência enquanto repunha no bolso a tira de tecido. Por um momento Fiona acreditou que ele se preparava para partir.
“Sua visita foi uma das melhores coisas que me aconteceram.” E então, rapidamente: “A religião de meus pais era um veneno e a senhora foi o antídoto”.
“Não me lembro de haver criticado a religião de seus pais.”
“Não criticou. A senhora foi calma, ouviu, fez perguntas e alguns comentários. Aí é que está. É essa coisa que a senhora tem. Fez diferença. A senhora não precisou
dizer. Um jeito de pensar e de falar. Se não sabe o que estou dizendo, trate de ouvir os anciãos. E quando tocamos a música...”
Ela disse com rapidez: “Você ainda está tocando violino?”.
Ele fez que sim com a cabeça.
“E a poesia?”
“Sim, muito. Mas odeio as coisas que eu escrevia.”
“Bom, você tem talento. Sei que vai escrever alguma coisa maravilhosa.”
Fiona percebeu o desalento nos olhos dele. Ela estava se distanciando, fazendo o papel da tia solícita. Repassou algumas etapas da conversa, se perguntando por que
estava tão ansiosa para não desapontá-lo.
“Mas seus professores devem ser bem diferentes dos anciãos.”
Ele deu de ombros. “Não sei.” Acrescentou à guisa de explicação: “A escola era enorme”.
“E o que é isso que você supõe que eu tenha?”, ela perguntou em tom sério, sem nenhum traço de ironia.
A pergunta não o embaraçou. “Quando vi meus pais chorando daquele jeito, chorando e quase urrando de alegria, tudo desmoronou. Mas aí que está. Desmoronou para cair
na verdade. Claro que eles não queriam que eu morresse! Eles me amam. Por que não disseram isso, em vez de falar e falar sobre as alegrias do céu? Foi então que
eu vi tudo aquilo como uma coisa humana comum. Comum e boa. Não tinha nada a ver com Deus. Isso era só uma bobagem. Como se um adulto entrasse numa sala cheia de
crianças que estão se infernizando e dissesse: ‘Chega, parem com isso, é hora do chá!’. A senhora foi esse adulto. Sabia desde o começo, mas não disse. Só fez perguntas
e escutou. Toda a vida e o amor que se abrem diante dele — foi o que a senhora escreveu. Essa foi a sua ‘coisa’. E a minha revelação. Começando com ‘The Salley Gardens’.”
Ainda em tom sério, ela disse: “E a tampa da sua cabeça explodiu”.
Ele riu gostosamente por também ser citado. “Fiona, quase consigo tocar uma composição de Bach sem cometer nenhum erro. Toco o tema de Coronation Street. Estou lendo
o livro de Berryman Dream Songs. Vou participar de uma peça teatral e tenho que terminar todos os exames antes do Natal. E, graças à senhora, estou entupido de Keats!”
“Muito bem”, ela disse em voz baixa.
Ele se inclinou para a frente, apoiado nos cotovelos, os olhos escuros brilhando na luz pavorosa, todo o rosto parecendo fremir de expectativa, com um apetite incontrolável.
Depois de refletir por um instante, Fiona disse num sussurro: “Espere aqui”. Levantou-se e hesitou, parecendo prestes a mudar de ideia e que voltaria a se sentar.
Mas deu as costas para ele, atravessou a sala e foi para o corredor. Pauling se encontrava de pé, a alguns passos de distância, fingindo interesse pelas páginas
do livro de visitantes aberto sobre uma mesa com tampo de mármore. Ela lhe deu rápidas instruções em voz baixa, voltou à biblioteca e fechou a porta atrás de si.
Adam havia retirado a toalha de chá do ombro e examinava a série de atrações locais. Quando ela se sentou de novo, ele comentou: “Eu nunca tinha ouvido falar em
nenhum desses lugares”.
“Há muita coisa a ser descoberta.”
Passados os efeitos da interrupção, ela disse: “Quer dizer que você perdeu sua fé”.
Adam pareceu se contorcer. “Sim, talvez. Não sei. Acho que tenho medo de dizer isso em voz alta. Realmente não sei onde estou. Quer dizer, o troço é que, quando
a gente se afasta um pouquinho das testemunhas de Jeová, talvez seja melhor sair de vez. Por que substituir um conto de fadas por outro?”
“Talvez todo mundo precise de contos de fadas.”
Ele lhe deu um sorriso benevolente. “Não acho que a senhora esteja dizendo isso pra valer.”
Fiona sucumbiu a seu hábito de resumir a opinião dos outros. “Você viu seus pais chorando e está confuso, pois suspeita que o amor deles por você é maior do que
a crença que têm em Deus ou na vida após a morte. Você precisa se afastar. Perfeitamente natural para alguém da sua idade. Talvez curse uma universidade. Isso vai
ajudar. Mas ainda não entendo o que está fazendo aqui. E, o que é mais importante, o que vai fazer agora. Para onde é que você vai?”
A segunda pergunta o perturbou mais. “Tenho uma tia em Birmingham. Irmã da minha mãe. Ela vai me receber por uma ou duas semanas.”
“Ela está te esperando?”
“Mais ou menos.”
Fiona estava prestes a obrigá-lo a enviar uma nova mensagem, quando ele estendeu a mão por cima da mesa, enquanto ela, com igual rapidez, recolheu a sua para o colo.
Adam não foi capaz de encará-la ou de ser olhado de frente quando voltou a falar. Pôs as mãos na testa como se protegesse os olhos da luz. “Tenho uma pergunta a
lhe fazer. Quando a senhora a ouvir vai achar que é uma idiotice. Mas, por favor, não a rejeite simplesmente. Diga por favor o que pensa sobre ela.”
“O que é?”
Ele se dirigiu ao tampo da mesa. “Quero ir morar com a senhora.”
Ela esperou por mais alguma coisa. Nunca poderia ter previsto tal pedido. Mas agora parecia óbvio.
Adam ainda era incapaz de olhá-la nos olhos. Falou depressa, como se envergonhado com sua própria voz. Ele havia pensado em tudo. “Eu podia ajudar a senhora a cuidar
da casa, prestar serviços na rua. E a senhora podia me dar livros para ler, sabe como é, tudo o que achar que eu preciso aprender...”
Ele a havia seguido por um bom pedaço do país, pelas ruas, atravessado uma tempestade para lhe pedir aquilo. Era uma extensão lógica de sua fantasia sobre uma longa
viagem marítima com ela, de falarem o dia todo caminhando no convés ao balanço das ondas. Lógica e insana. E inocente. O silêncio os envolveu e uniu. Até mesmo o
tilintar do aquecedor parecia ter se reduzido, nenhum som vinha do lado de fora. Ele continuou a proteger o rosto do olhar de Fiona. Ela contemplou o encaracolado
de seu cabelo escuro, jovem e saudável, agora totalmente seco e reluzente.
Fiona disse com suavidade: “Você sabe que isso não é possível”.
“Eu não ia atrapalhar, quer dizer, interferir com a senhora e seu marido.” Por fim, ele recolheu as mãos e olhou para ela. “A senhora sabe, como alguém que alugasse
um quarto. Quando eu terminar meus exames, posso arranjar um emprego e pagar algum aluguel.”
Ela viu o quarto de hóspedes e as duas camas de solteiro, os ursinhos e outros bichos de pelúcia na cesta de vime, o armário de brinquedos tão cheio que uma das
portas não fechava. Tossiu de repente e se pôs de pé, atravessando toda a sala até a janela para dar a impressão de que olhava com atenção para fora. Por fim, sem
se voltar, ela disse: “Só temos um quarto livre e uma porção de sobrinhos e sobrinhas”.
“Quer dizer que essa é sua única objeção?”
Ouviu-se uma batida na porta e Pauling entrou. “Estará aqui dentro de dois minutos, minha senhora”, ele disse e saiu.
Ela se afastou da janela e voltou a se aproximar de Adam, abaixando-se para pegar a mochila dele do chão.
“Meu assistente vai levá-lo de táxi até a estação e lhe comprar uma passagem com destino a Birmingham para amanhã de manhã; depois vai levá-lo para um hotel perto
de lá.”
Após uma pausa, ele se levantou devagar e pegou a mochila das mãos dela. Apesar de sua altura, parecia uma criança pequena em estado de choque.
“Então é isso?”
“Gostaria que me prometesse que vai entrar em contato outra vez com sua mãe antes de pegar o trem. Diga a ela para onde está indo.”
Adam não respondeu. Ela o conduziu à porta e os dois saíram para o corredor. Ninguém à vista. Caradoc Ball e seus convidados estavam instalados na sala de visitas
com as portas fechadas. Ela o deixou esperando na biblioteca e subiu ao quarto para pegar algum dinheiro na bolsa. Ao voltar, viu toda a cena de sua posição elevada
no topo da imponente escadaria. A porta da frente estava aberta e o mordomo falava com o motorista. Atrás dele, abaixo dos degraus do pórtico, estava o táxi, a porta
aberta para liberar os alegres e sinuosos acordes da música orquestral árabe. Seu assistente atravessava o vestíbulo às pressas, supostamente a fim de impedir que
o mordomo criasse algum problema. Quanto a Adam Henry, ele ainda continuava na biblioteca, abraçado à sua mochila. Quando Fiona se aproximou dele, o mordomo, o motorista
e o assistente estavam do lado de fora, no pátio de cascalho, conversando junto ao carro, segundo ela esperava, sobre um hotel apropriado.
O rapaz começou a dizer: “Mas nós nem...”, e ela levantou a mão para fazê-lo se calar.
“Você precisa ir.”
Ela segurou delicadamente a gola do blusão leve dele e o puxou para si. Pretendia lhe dar um beijo no rosto, mas, como ergueu o corpo e Adam se curvou um pouco,
seus rostos se aproximaram, ele girou a cabeça e os lábios deles se tocaram. Ela poderia ter recuado, ter dado um passo atrás, se afastando dele. Em vez disso, se
demorou, inerme diante daquele momento. A sensação de pele contra pele anulou qualquer possibilidade de escolha. Caso fosse possível dar um beijo casto na boca,
foi isso que ela fez. Um contato fugaz, porém mais do que a mera sugestão de um beijo, mais do que uma mãe daria no filho adulto. Durou dois segundos, quem sabe
três. Tempo suficiente para sentir, na maciez e elasticidade dos lábios dele, todos os anos, toda a vida que a separava de Adam. Ao se afastarem, uma leve adesão
de pele poderia tê-los atraído de volta. Mas soavam passos no cascalho e nos degraus de pedra, cada vez mais próximos. Ela largou a gola dele e repetiu: “Você precisa
ir”.
Adam apanhou a mochila, que havia deixado cair no chão, e seguiu-a através do vestíbulo até o lado de fora, onde foram recebidos pelo ar fresco da noite. Ao pé da
escada, o motorista fez uma saudação amistosa e abriu a porta traseira do carro. O rádio havia sido desligado. Ela tinha pensado em dar o dinheiro a Adam, mas, numa
súbita e gratuita mudança de ideia, o entregou a Pauling. Ele balançou a cabeça e forçou um leve sorriso ao pegar o rolinho de notas. Com um movimento brusco dos
ombros, Adam deu a impressão de se desvencilhar de todos e mergulhou no banco de trás, sentando-se com a mochila no colo e olhando para a frente. Já se arrependendo
do que havia posto em movimento, Fiona deu a volta no carro para trocar um último olhar com ele. Adam sem dúvida reparou em seu movimento, mas afastou o rosto. Pauling
se sentou na frente, ao lado do motorista. O mordomo fechou a porta de Adam, empurrando-a num gesto insolente com as costas da mão. Ombros encurvados, Fiona subiu
às pressas os degraus de pedra rachados enquanto o táxi se distanciava.
* Investigação pública conduzida por lorde Leveson em 2011 e 2012 acerca das práticas e da ética da imprensa britânica após o escândalo das escutas telefônicas feitas
pela News International. (N. T.)
5.
Ela partiu de Newcastle depois de uma semana, sentenças proferidas ou suspensas à espera de laudos técnicos, deixando para trás litigantes felizes ou amargurados,
alguns dos quais com o parco consolo de poderem recorrer. No caso que descrevera para Charlie no jantar, ela havia concedido a guarda aos avós e permitido visitas
semanais sob supervisão à mãe e ao pai, separadamente, tudo passível de revisão ao fim de seis meses. Até lá, quem quer que a substituísse teria a vantagem de receber
relatórios acerca do bem-estar das crianças, das promessas dos pais de frequentar um programa de tratamento de viciados em drogas e do estado mental da mãe. A menininha
continuaria em sua escola, um curso elementar organizado pela Igreja da Inglaterra, onde era bem conhecida. Fiona considerou exemplar, naquele caso, a conduta das
instituições de atendimento a menores da cidade.
No final da tarde de sexta-feira, ela disse adeus aos funcionários do tribunal. Na manhã de sábado, no Leadman Hall, Pauling encheu o porta-malas do carro com documentos
acondicionados em caixas de papelão e com as togas dela penduradas em cabides. As bagagens pessoais empilhadas no banco traseiro e a juíza instalada na frente, rumaram
para Oeste, na direção de Carlisle, passando pelo Tyne Gap e cruzando a Inglaterra de um lado a outro, as Cheviots à direita e as Pennines à esquerda. Mas os dramas
da geologia e da história eram embotados pelo tráfego, por seu volume, suas rotinas e pelas placas de sinalização rodoviária características das ilhas britânicas.
Enquanto atravessavam Hexham muito lentamente, Fiona mantinha o celular sem uso na mão e, como fizera durante vários interlúdios ao longo da semana, pensava no beijo.
Que loucura impulsiva não ter se afastado! Loucura profissional e social. Em suas recordações, o contato real, carne contra carne, tendia a se prolongar no tempo.
Ela então tentava encurtar o momento para que voltasse a ser um beijinho inocente nos lábios. Mas o beijinho logo voltava a se inflar, até ela não saber o que ele
era, o que havia acontecido ou por quanto tempo ela correra o risco de uma desgraça. Caradoc Ball poderia ter passado pelo corredor a qualquer momento. Pior ainda,
um de seus convidados, sem as peias da lealdade tribal, poderia tê-la visto e contado a todo mundo. Pauling poderia ter voltado depois de conversar com o motorista
de táxi e a apanhado em flagrante. Nesse caso, a distância sensatamente construída entre eles, que tornava possível seu trabalho, teria sido destruída.
Como não era dada a impulsos irrefletidos, Fiona não entendia seu próprio comportamento. Deu-se conta de que havia muito mais a confrontar em sua mistura de sentimentos
confusos, porém, no momento, era o horror do que podia ter ocorrido, a transgressão ridícula e vergonhosa da ética profissional, que ocupavam sua mente. A ignomínia
que poderia ter se abatido sobre ela. Difícil crer que ninguém a vira, que estava abandonando incólume a cena do crime. Mais fácil acreditar que a verdade, dura
e negra como uma semente amarga, estava prestes a ser revelada: que ela tinha sido observada sem saber. Que agora mesmo, a centenas de quilômetros de distância,
o caso estivesse sendo discutido em Londres. Que em breve ouviria no telefone a voz pouco à vontade de um colega mais antigo: Ah, Fiona, escute, sinto muito, mas
creio que preciso alertá-la de que, hã, de que surgiu um probleminha. E então, esperando por ela no apartamento da Gray’s Inn, uma carta formal do investigador do
departamento de reclamações judiciais.


CONTINUA
“Os pais se opõem à solicitação com base em sua fé religiosa, que é manifestada serenamente e fruto de profunda convicção. O filho deles também objeta e demonstra
boa compreensão dos princípios religiosos, possuindo considerável maturidade e capacidade de articulação verbal para a sua idade.”
Descreveu a seguir a evolução da enfermidade, a leucemia, o tratamento usual que em geral produzia bons resultados. Mas dois dos remédios comumente administrados
causavam anemia, que necessitava ser combatida mediante transfusões de sangue. Resumiu os argumentos do médico assistente, enfatizando a contagem declinante de hemoglobina
e os prognósticos sombrios caso isso não fosse revertido. Ela podia confirmar pessoalmente que a falta de ar de A era agora patente.
A contestação ao pedido se fundamentava em três argumentos principais. O primeiro era o de que, como lhe faltavam três meses para completar dezoito anos e ele era
muito inteligente, conhecendo as consequências de sua decisão, Adam devia ser tratado como possuidor da “competência de Gillick”. Em outras palavras, seria tão capaz
de ter suas decisões reconhecidas quanto qualquer adulto. Em segundo lugar, que a recusa de tratamento médico constituía um direito humano básico, razão por que
a corte deveria mostrar relutância em intervir. E que, por fim, a fé religiosa de A era genuína e devia ser respeitada.
Fiona abordou os seguintes pontos. Agradeceu ao advogado dos pais de A por ter chamado sua atenção para a seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: o consentimento
de uma pessoa de dezesseis anos “será tão eficaz como o seria se ele já houvesse alcançado a maioridade”. Listou as condições relativas à “competência de Gillick”,
citando Scarman no processo. Reconheceu a distinção entre a circunstância de uma criança competente com menos de dezesseis anos consentir num tratamento, possivelmente
contra a vontade dos pais, e de uma criança de menos de dezoito recusar um tratamento passível de salvar sua vida. Do que percebera naquela noite, estaria ela convencida
de que A tinha uma compreensão absoluta das implicações de serem aceitas sua vontade e a de seus pais?
“Ele é sem dúvida uma criança excepcional. Posso mesmo dizer, como o fez uma das enfermeiras hoje à noite, que se trata de um menino adorável, com o que certamente
concordam seus pais. Ele tem uma capacidade de compreensão excepcional para um jovem de dezessete anos. Mas creio que possui um entendimento limitado da provação
que deve confrontar, do pavor que o invadiria à medida que seu sofrimento e sua impotência aumentassem. Na verdade, ele tem uma noção romântica do que seja sofrer.
Entretanto...”
Deixou a palavra pendurada no ar, e o silêncio na sala se adensou enquanto ela passava os olhos pelas anotações.
“Entretanto, em última análise não me deixo influenciar pelo fato de que ele tenha ou não a compreensão absoluta de seu estado. Em vez disso, sou guiada pela decisão
do juiz Ward, como era chamado na época, com referência ao menor E, em julgamento que também envolveu um adolescente que pertencia às testemunhas de Jeová. Naquela
oportunidade, ele afirmou: ‘Assim, é o bem-estar da criança que preside a minha decisão, e cumpre a mim decidir o que dita o bem-estar de E’. Essa observação foi
cristalizada na clara prescrição da Lei da Criança de 1989, que garante nas duas primeiras linhas a primazia do bem-estar do menor. Entendo ‘bem-estar’ como englobando
‘felicidade’ e ‘interesses’. Também sou obrigada a levar em conta a vontade de A. Como já observei, ele a expressou claramente a mim, como o fez seu pai perante
esta corte. De acordo com as doutrinas de sua religião, derivadas de uma interpretação peculiar de três passagens da Bíblia, A se recusa a aceitar a transfusão de
sangue que provavelmente salvará sua vida.
“É um direito fundamental dos adultos recusarem qualquer tratamento médico. Tratar um adulto contra sua vontade significa cometer o crime de agressão. A está próximo
da idade em que pode tomar uma decisão por sua conta e risco. O fato de estar preparado para morrer por suas crenças religiosas demonstra quão profundas elas são.
O fato de que seus pais estão preparados para sacrificar um filho muito querido por causa de sua fé revela o poder da crença a que as testemunhas de Jeová obedecem.”
Mais uma vez ela parou e o público aguardou.
“É precisamente esse poder que me faz refletir, porque A, com seus dezessete anos, conheceu muito pouco fora do turbulento terreno das ideias religiosas e filosóficas.
Não faz parte dos métodos dessa seita cristã encorajar o debate aberto e a discordância na congregação, cujos membros são por eles chamados — de forma correta, alguém
poderia dizer — de ‘as outras ovelhas’. Não creio que a mente de A e suas opiniões lhe pertençam inteiramente. Durante toda a infância ele esteve exposto sem interrupção
a uma visão do mundo monocromática e poderosa, a cujo condicionamento não poderia escapar. Não promoverá seu bem-estar sofrer uma morte desnecessária e agonizante,
para assim se transformar num mártir de sua fé. As testemunhas de Jeová, como outras religiões, têm uma noção nítida do que nos aguarda após a morte, e as predições
deles sobre o fim dos dias, sua escatologia, são também rígidas e muito detalhadas. Este tribunal não tem opinião alguma sobre a vida no Além, que, de qualquer forma,
certo dia A descobrirá, ou deixará de descobrir, por conta própria. Até lá, presumindo uma boa recuperação, o bem-estar dele será mais bem servido por seu amor pela
poesia, por sua recém-descoberta paixão pelo violino, pelo aproveitamento de sua viva inteligência e pelas manifestações de uma natureza brincalhona e afetuosa,
por toda a vida e o amor que se abrem à sua frente. Em suma, entendo que A, seus pais e os anciãos da igreja tomaram uma decisão que é hostil ao bem-estar de A,
o qual constitui a principal consideração desta corte. Ele precisa ser protegido de tal decisão. Precisa ser protegido de sua religião e de si mesmo.
“Esta não foi uma questão simples de resolver. Ponderei cuidadosamente a idade de A, o respeito devido à sua fé e a dignidade do indivíduo contida no direito de
recusar tratamento. A meu juízo, sua vida é mais preciosa do que essa dignidade.
“Em consequência, nego a vontade de A e de seus pais. Minha ordem é que não seja necessário obter a concordância para a transfusão de sangue do primeiro e segundo
contestantes, que são os pais, e a concordância para a transfusão de sangue do terceiro contestante, que é o próprio A. Desse modo, o hospital demandante está legalmente
autorizado a aplicar em A os tratamentos médicos que julgue necessários, no entendimento de que podem administrar sangue e produtos dele derivados mediante transfusão.”
* * *
Eram quase onze da noite quando Fiona iniciou a caminhada para casa ao sair do tribunal. Àquela hora, os portões estavam trancados e não era possível cortar caminho
por dentro da Lincoln’s Inn. Antes de dobrar na Chancery Lane, ela desceu um pequeno trecho da Fleet Street para comprar uma refeição pronta numa loja de conveniência
que ficava aberta a noite inteira. Na noite anterior, isso teria sido uma missão deprimente, mas ela estava sentindo a cabeça leve, talvez porque não se alimentava
decentemente fazia dois dias. Na loja apertada e excessivamente iluminada, os alimentos com embalagens berrantes — vermelhos e roxos explosivos, amarelos de manchas
solares — pulsavam nas prateleiras em sintonia com seus batimentos cardíacos. Ela comprou uma torta de peixe congelada e examinou várias frutas antes de se decidir.
No caixa, atrapalhou-se com o dinheiro, deixando cair moedas no chão. O ágil rapaz asiático que trabalhava na máquina registradora impediu com o pé que as moedas
rolassem e, lhe dando um sorriso protetor, as pôs de volta na mão dela. Fiona se imaginou através dos olhos dele ao observar a expressão de grande cansaço dela,
ignorando ou sendo incapaz de apreciar o corte elegante do casaco e vendo apenas uma dessas velhotas inofensivas que viviam e comiam sozinhas, já um tanto incapazes,
andando pelas ruas tarde da noite.
Ela estava cantando “The Salley Gardens” com os lábios fechados enquanto seguia pela High Holborn. A sacola contendo as frutas e o sólido invólucro do jantar se
chocava agradavelmente contra sua perna. A torta seria aquecida no micro-ondas enquanto ela se preparava para ir se deitar, e a comeria já de camisola em frente
ao canal de notícias; depois disso, nada se interporia entre ela e o sono. Nenhum estímulo químico. No dia seguinte havia um divórcio de gente graúda — um guitarrista
famoso e uma esposa quase famosa, cantora de música romântica, com um excelente advogado e desejando abocanhar boa parte dos vinte e sete milhões de libras do marido.
Algodão-doce comparado com hoje, mas o interesse da imprensa seria igualmente intenso, a lei igualmente solene.
Dobrou na Gray’s Inn, seu santuário. Era sempre gostoso ver como o barulho do tráfego ia cessando à medida que caminhava. Uma comunidade fechada de certo valor histórico,
uma fortaleza de advogados e magistrados que também eram músicos, amantes do bom vinho, pseudoescritores, pescadores que usavam como iscas moscas artificiais, contadores
de histórias. Um ninho de fofocas e perícia profissional, além de um jardim delicioso ainda visitado pelo fantasma de Francis Bacon. Ela amava o lugar e não queria
sair dali nunca.
Entrou no prédio, verificou que a minuteria estava ligada, subiu até o segundo andar, ouviu o rangido costumeiro do quarto e sétimo degraus e, ao atingir o último
lance da escada, viu tudo e entendeu imediatamente. Seu marido estava lá, se levantando naquele momento com um livro na mão; atrás dele, a mala encostada à parede
havia servido como uma espécie de assento, tendo ao lado, no chão, o paletó junto à valise aberta de onde escapavam diversos papéis. Trancado do lado de fora, trabalhando
enquanto esperava. E por que não? Roupas amarrotadas, semblante irritado. Trancado do lado de fora e esperando fazia muito tempo. Sem dúvida não estava ali para
buscar camisas limpas e livros, não se trazia a mala. Seu primeiro pensamento, melancólico e egoísta, foi que agora teria de dividir o jantar calculado para uma
só pessoa. Então pensou que não seria necessário. Preferia não comer.
Subiu os últimos degraus até alcançar o patamar, sem dizer uma única palavra enquanto procurava na bolsa as chaves, as chaves novas, e o contornava a caminho da
porta. Ele que falasse primeiro.
O tom foi de queixume: “Telefonei a noite toda”.
Ela abriu a porta e entrou sem olhar para trás; deixou as compras na cozinha e parou. Seu coração batia forte demais. Ouviu a respiração mal-humorada dele ao trazer
a bagagem para dentro. Se era para haver uma confrontação, que ela não desejava, não agora, a cozinha era um espaço confinado demais. Pegou sua pasta e foi rapidamente
para a sala de visitas, ocupando seu lugar de sempre na chaise longue. Espalhar algumas páginas em volta de onde estava sentada era uma forma de proteção. Sem isso,
não saberia o que fazer de si.
O ruído da mala sendo arrastada pelo corredor e para dentro do quarto soou para ela como uma jogada de abertura. E um insulto. Pela força do hábito, tirou o sapato
e apanhou um documento ao acaso. O guitarrista tinha uma casa de alto padrão em Marbella. A crooner de canções românticas queria a casa. Mas, antes mesmo do casamento,
ele a adquirira da ex-mulher, dando em troca a casa da família no centro de Londres. E essa primeira esposa a havia ganho num acerto de divórcio com um ex-marido.
Irrelevante, Fiona não se furtou a declarar.
Um estalido no assoalho a fez olhar para cima. Jack parou na porta antes de preparar um drinque. Vestia uma calça jeans e uma camisa branca desabotoada no peito.
Será que se imaginava desejável? Reparou que ele não fizera a barba. Até mesmo do outro lado da sala os pelos pareciam grisalhos. Patético, ambos eram patéticos.
Ele se serviu de um uísque e levantou a garrafa na direção dela. Fiona disse não com a cabeça. Ele deu de ombros e atravessou a sala para se sentar em sua poltrona.
Ela era uma desmancha-prazeres, não sabia aproveitar o bom momento. Ele se acomodou com um suspiro de quem se sente em casa. A poltrona dele, a chaise longue dela,
outra vez a vida de casados. Ela olhou para a página em sua mão, a narrativa feita pela esposa do mundo desejável do guitarrista, impossível de absorver. Fez-se
silêncio enquanto ele bebia e ela olhava através da sala para nada em especial.
Então ele disse: “Olha, Fiona, eu te amo”.
Depois de alguns segundos, ela disse: “Prefiro que você durma no quarto de hóspedes”.
Ele baixou a cabeça em sinal de concordância. “Vou pegar minha mala.”
Jack não se levantou. Ambos conheciam a vitalidade do não dito, cujos espíritos invisíveis dançavam agora em volta deles. Ela não lhe dissera para se manter fora
do apartamento, aceitando tacitamente que ele podia dormir lá. Ele não lhe dissera ainda se a especialista em estatística o havia mandado embora, ou se ele tinha
mudado de opinião, ou se já havia experimentado um êxtase suficiente para durar até o túmulo. A mudança das fechaduras não fora comentada. Ele provavelmente achou
estranho Fiona ter chegado tão tarde. Ela mal suportava olhar para ele. O que se fazia necessário agora era uma briga, com vários capítulos se estendendo ao longo
do tempo. Talvez houvesse algumas digressões rancorosas, o arrependimento de Jack poderia vir embrulhado em reclamações, talvez demorasse meses até ela recebê-lo
na cama, o fantasma da outra mulher era capaz de pairar entre eles para sempre. Mas eles provavelmente encontrariam uma forma de recuperar, mais ou menos, o que
haviam tido antes.
A ideia do imenso esforço envolvido e da previsibilidade do processo a cansou ainda mais. No entanto, ela estava obrigada a segui-lo. Como se, por contrato, devesse
escrever um manual de direito enfadonho mas necessário. Achou que, afinal, gostaria de tomar um drinque, embora isso se parecesse demais com uma celebração. Estava
muito longe de uma reconciliação. Acima de tudo, não aguentaria ouvir outra vez que ele a amava. Queria estar sozinha na cama, de costas no escuro, mordiscando uma
fruta, deixando o resto cair no chão, até apagar de todo. O que a impedia de fazer isso? Ela se pôs de pé e começou a recolher seus documentos. Foi quando ele começou
a falar.
Foi uma torrente, em parte desculpas, em parte autojustificações, algumas das quais ela já ouvira. A mortalidade dele, os anos de total fidelidade, sua avassaladora
curiosidade de saber como seria, mas depois que saiu naquela noite, depois que chegou ao apartamento de Melanie, não demorou muito para se dar conta do erro. Ela
era uma estranha, ele não a entendia. E quando foram para o quarto dela...
Fiona levantou a mão em sinal de alerta. Não queria ouvir nada sobre o quarto. Ele fez uma pausa, refletiu, e continuou. Ele era um imbecil, ele percebeu, por se
deixar levar por uma necessidade sexual, quando deveria ter dado meia-volta naquela noite no momento em que ela abriu a porta, porém se sentiu envergonhado e obrigado
a ir adiante.
Apertando sua pasta contra o estômago, Fiona ficou no centro da sala observando-o, se perguntando como fazê-lo parar. Surpreendia-se que mesmo agora, com o dramalhão
conjugal em sua cena de abertura, a canção irlandesa continuasse girando em seu cérebro, o ritmo mais rápido para acompanhar o compasso da fala de Jack, soando ao
mesmo tempo mecânica e festiva como se tocada por um realejo de rua. Seus sentimentos eram confusos, obscurecidos pela fadiga e de difícil definição enquanto sobre
ela jorravam as palavras chorosas do marido. Sentiu nem tanto fúria ou um ressentimento amargo, conquanto algo mais que mera resignação.
Sim, disse Jack, ao chegar ao apartamento de Melanie ele se sentiu estupidamente obrigado a seguir em frente com o que começara. “E, quanto mais preso na armadilha
eu me sentia, mais me dava conta de como eu era um idiota por ameaçar tudo o que temos, tudo o que construímos juntos, este amor que...”
“Tive um dia longo”, ela disse ao atravessar a sala. “Vou pôr sua mala no corredor.”
Parou na cozinha para pegar uma maçã e uma banana em meio às compras postas sobre a mesa. Carregá-las no caminho para o quarto trouxe de volta a felicidade relativa
que sentira no trajeto entre o trabalho e a casa. Os primórdios de certa tranquilidade. Difícil de resgatar agora. Abriu a porta e viu a mala dele de pé sobre as
rodinhas, placidamente posta junto à cama. Então lhe ocorreu com clareza o que sentia com a volta de Jack. Tão simples. Era desapontamento por ele não ter continuado
longe. Só por mais algum tempo. Apenas isso. Desapontamento.
4.
Embora os fatos não o confirmassem, ela teve a impressão de que, no final do verão de 2012, os rompimentos e as crises conjugais ou crises entre parceiros na Grã-Bretanha
cresceram como uma maré aberrante de primavera, varrendo lares do mapa, espalhando bens e sonhos esperançosos, afogando quem não tinha um forte instinto de sobrevivência.
Promessas de amor foram negadas ou reformuladas, bons companheiros se transformaram em ardilosos combatentes escudados atrás de advogados, sem se importar com os
custos. Objetos da casa antes desdenhados eram motivo de amargas disputas, a tranquila confiança de outrora substituída por “acertos” redigidos com todo o cuidado.
Na mente dos envolvidos, a história do casamento era reescrita para que ele fosse visto como fadado ao insucesso desde o começo, o amor repaginado como mera ilusão.
E os filhos? Peças de um jogo, elementos de barganha a serem usados pelas mães; pretexto para acusações de abusos feitas em geral pelas mães, às vezes pelos pais,
embora fossem com frequência fantasiosas ou inventadas com todo o cinismo; crianças em estado de choque indo e vindo semanalmente de uma casa para a outra com base
em acordos de guarda compartilhada, o esquecimento de casacos e caixas de lápis sendo comunicado por meio de advogados; crianças condenadas a verem o pai uma ou
duas vezes por mês; ou nunca, pois os homens mais audaciosos desapareciam na oficina de ferreiro de um novo e quente matrimônio para forjar outros rebentos.
E o dinheiro? As novas moedas eram as meias verdades e os apelos especiais. Maridos gananciosos contra esposas gananciosas, manobrando como nações ao final de uma
guerra, tentando salvar das ruínas todos os despojos que podiam antes da retirada final. Homens ocultavam recursos em contas no exterior, mulheres exigiam para sempre
uma vida de conforto. Mães impediam crianças de ver os pais apesar de ordens judiciais; pais se negavam a oferecer sustento aos filhos apesar de ordens judiciais.
Maridos agrediam esposas e filhos, esposas mentiam ou maquinavam ardis, um ou outro, ou ambos, bêbados, viciados em drogas ou psicóticos; e crianças eram obrigadas
a tomar conta de pais incapazes, crianças de fato vítimas de abusos sexuais ou mentais, ou ambos, seus depoimentos transmitidos numa tela ao tribunal. E já fora
da área de competência de Fiona, em casos julgados pelas cortes criminais e não pelas varas de família, crianças torturadas, mortas de fome ou por espancamento,
espíritos maus arrancados de dentro delas em ritos animistas, padrastos jovens e cruéis quebrando ossos de bebês sob os olhares abobalhados e cúmplices das mães,
e drogas, álcool, sujeira doméstica extrema, vizinhos indiferentes e seletivamente surdos para não ouvir os gritos, assistentes sociais descuidados ou atarefados
demais para intervir.
O trabalho das varas de família não cessava. Era por simples acaso que tantos conflitos conjugais caíssem no colo de Fiona. Pura coincidência que ela própria estivesse
vivendo um conflito similar. Naquele setor do Judiciário, não era comum mandar gente para a cadeia, mas, apesar disso, em certos momentos ela tinha vontade de ordenar
que fossem encarcerados aqueles demandantes que, à custa dos filhos, desejavam uma mulher mais jovem, um marido mais rico ou menos enfadonho, um bairro mais elegante,
novas aventuras sexuais, novos amores, uma nova visão do mundo, um bom reinício antes que fosse tarde demais. A simples busca do prazer. Vulgaridade moral. Sua falta
de filhos e a situação com Jack davam forma a esses devaneios e, naturalmente, eles não eram para valer. Entretanto, embora mergulhasse bem fundo em seu reino mental,
ela nunca deixava que suas decisões fossem afetadas pelo desprezo puritano que devotava aos homens e às mulheres que destruíam sua família e se persuadiam de que
agiam altruisticamente pelo bem de todos. Nesses experimentos intelectuais, ela não teria poupado as pessoas sem filhos ou, pelo menos, não Jack. Um período de contrição
atrás das grades por contaminar o casamento deles em nome de uma novidade? Por que não?
Porque, depois do retorno dele, a vida no apartamento da Gray’s Inn era lúgubre e silenciosa. Tinha havido brigas durante as quais ela pusera para fora alguns sentimentos
amargos. Doze horas depois esses sentimentos se renovavam tão ardentemente quanto os votos matrimoniais, nada mudava, o ar não ficava mais “limpo”. Ela permanecia
traída. Ele apimentava suas desculpas com velhas recordações de que ela o isolara, de que era fria. Disse até, certa noite bem tarde, que ela era “uma chata” e havia
“perdido a arte de sentir prazer”. De todas as acusações, essas foram as que mais a incomodaram, porque ela percebia serem verdadeiras, o que em nada diminuiu sua
raiva.
Pelo menos ele deixara de dizer que a amava. Na troca de palavras mais recente, dez dias antes, fora reiterado tudo o que haviam se dito antes, todas as recriminações,
todas as defesas, todas as frases bem formuladas que eram fruto de uma longa elucubração prévia, até que depuseram as armas, cansados um do outro e de si próprios.
Desde então, nada. Moviam-se o dia todo, cada qual cuidando de seus afazeres em diferentes partes da cidade e, quando confinados no apartamento, evitavam cuidadosamente
se tocar, como dançarinos numa quadrilha. Eram sucintos e competiam em matéria de cortesia quando forçados a decidir sobre questões referentes à casa, buscavam não
comer juntos, trabalhavam em cômodos separados, com a atenção prejudicada pela vívida consciência, através das paredes, da presença radioativa do outro. Sem necessidade
de discuti-lo, declinavam todos os convites conjuntos. O único gesto conciliatório dela consistiu em lhe dar uma nova chave.
De comentários evasivos e taciturnos dele, ela deduziu que, no quarto da especialista em estatística, Jack não transpusera os portões do paraíso. O que não era tão
tranquilizador. Ele provavelmente iria tentar a sorte em outro lugar, talvez já estivesse tentando, desta vez livre das tristes amarras da honestidade. Suas “aulas
de geologia” poderiam ser um bom subterfúgio. Ela se lembrava de haver prometido abandoná-lo se ele fosse em frente com Melanie. Mas Fiona não tinha tempo para desfazer
aquele complexo nó. E ainda estava indecisa, não confiava em seu atual estado de espírito. Caso ele houvesse lhe dado mais tempo depois de sair de casa, ela teria
chegado a uma decisão clara e se empenhado em terminar o casamento ou reconstruí-lo. Por isso, se entregou ao trabalho na forma usual e resolveu sobreviver dia após
dia o drama agora serenado de sua vida com Jack.
Quando uma de suas sobrinhas deixou lá as filhas durante um fim de semana, gêmeas idênticas de oito anos, as coisas ficaram mais fáceis, o apartamento ficou maior,
porque as atenções se voltaram para fora. Por duas noites Jack dormiu no sofá da sala de visitas sem que as meninas fizessem perguntas. Pertenciam a um tipo antiquado
de crianças que mantinham as costas bem retas, com modos solenes e afetuosos, embora sujeitas a brigas repentinas e explosivas. Uma ou outra — era fácil distinguir
as duas — procurava Fiona onde ela estivesse lendo e, postada diante dela, descansando uma mão confiante em seu joelho, despejava uma torrente prateada de historinhas,
reflexões e fantasias. Fiona replicava com suas próprias historinhas. Duas vezes, durante aquela visita, aconteceu que, enquanto ela falava, uma onda de amor pela
menina contraiu sua garganta e marejou seus olhos. Ela estava se sentindo velha e tola. Incomodava-a relembrar como Jack era bom com as crianças. Correndo o risco
de ter uma crise de coluna, como aconteceu certa vez com os três filhos do irmão de Fiona, ele fazia brincadeiras pesadas, de que as meninas participavam com acessos
de gritos inumanos. Em casa, a mãe delas, ressentida por causa do divórcio, jamais as jogava para o alto de cabeça para baixo. Ele as levou aos jardins para ensinar
uma versão de críquete que tinha inventado, além de ler uma longa história para elas na cama com vibrante energia cômica e talento na imitação das vozes.
Mas um domingo à noite, depois que as gêmeas foram levadas, os aposentos se encolheram, o ar ficou pesado e Jack saiu sem dar explicações — sem dúvida um ato hostil.
Para um encontro amoroso, ela imaginou, enquanto se ocupava arrumando o quarto de hóspedes para impedir que seu moral baixasse ainda mais. Repondo os brinquedos
macios na cesta de vime onde residiam, recuperando as contas de vidro e os desenhos rejeitados debaixo da cama, ela sentiu a melancolia mansa e envolvente, uma forma
de nostalgia instantânea, que a ausência repentina de crianças pode causar. Aquele sentimento durou até a manhã de segunda-feira e cresceu até se transformar numa
tristeza generalizada, que a perseguiu na caminhada para o trabalho. Só começou a se dissipar quando ela se sentou à sua mesa a fim de se preparar para o primeiro
caso da semana.
Em algum momento Nigel Pauling deve ter trazido a correspondência, porque a pilha de cartas se encontrava subitamente perto de seu cotovelo. Vendo o pequeno envelope
azul-claro em cima de todos, ela quase chamou seu assistente para abri-lo. Não estava com vontade de ler mais uma profusão de agressões verbais de algum analfabeto
ou ameaças de violência. Voltou ao trabalho, mas não conseguiu se concentrar. O envelope absurdo, as letras arredondadas, a falta de um código postal, o selo ligeiramente
torto — era demais. Mas, olhando uma vez mais, ela reparou no carimbo postal e foi tomada por uma repentina suspeita. Sopesou a carta por um instante e a abriu.
No momento seguinte, viu pela saudação que estava certa. Tinha aguardado vagamente por aquilo durante semanas. Havia falado com Marina Greene e soubera que ele estava
progredindo bem, já fora do hospital, recuperando em casa o tempo de estudos perdido e esperando voltar à sala de aulas em breve.
Três páginas azul-claras, escritas em cinco lados. O primeiro tinha o número sete dentro de um círculo posto no centro e no alto da página. Acima da data.
Meritíssima!
Esta é minha sétima carta e acho que vai ser a que porei no correio.
As primeiras palavras do parágrafo seguinte tinham sido riscadas.
Vai ser a mais simples e a mais curta. Só quero lhe descrever um acontecimento. Entendo agora como ele foi importante. Mudou tudo. Estou feliz por ter esperado porque
não gostaria que a senhora visse as outras cartas. Muito embaraçosas! Mas não tão terríveis como os nomes que lhe chamei quando Donna me anunciou sua decisão. Eu
estava certo de que a senhora tinha visto as coisas do meu jeito. Na verdade, guardei perfeitamente o que me disse, que era óbvio que eu sabia o que queria, e lembro
que lhe agradeci. Eu ainda estava tendo um ataque de raiva e xingando quando aquele horrível médico assistente, o dr. “me chama de Rodney” Carter, entrou com meia
dúzia de pessoas e o equipamento. Eles pensaram que iam precisar me segurar. Mas eu estava fraco demais e, mesmo furioso, sabia o que a senhora queria que eu fizesse.
Por isso, estendi o braço e eles começaram. A ideia de que o sangue de alguém entrava no meu corpo foi tão nojenta que vomitei na cama.
Mas não é isso que quero lhe contar. É o seguinte. Como mamãe não conseguiu assistir, ela ficou sentada do lado de fora do quarto e eu ouvia seu choro, o que me
deixou muito triste. Não sei quando papai apareceu. Acho que fiquei desmaiado algum tempo e, quando retomei os sentidos, os dois estavam ao lado da minha cama —
ambos chorando, e me senti ainda mais triste porque todos nós estávamos desobedecendo a Deus. Mas o importante, e levei algum tempo para entender isto, é que eles
estavam chorando de ALEGRIA! Estavam muito felizes, me abraçando e se abraçando, agradecendo a Deus e soluçando. Eu me senti muito esquisito e não entendi nada por
um ou dois dias. Nem pensava naquilo. Então comecei a pensar. Meus pais seguiram os ensinamentos, obedeceram aos anciãos, fizeram tudo certo e podem esperar ser
aceitos no paraíso aqui na Terra — e ao mesmo tempo podem me ter vivo sem que nenhum de nós seja expulso da Igreja. Transfusão feita, mas não por culpa nossa! Culpa
da juíza, culpa do sistema sem fé, culpa do que às vezes chamamos de “mundo”. Que alívio! Ainda temos nosso filho embora tivéssemos dito que ele devia morrer.
Não sei como interpretar isto. Foi uma fraude? Para mim foi uma mudança de direção. Estou resumindo a história. Quando eles me trouxeram para casa, tirei a Bíblia
do meu quarto, simbolicamente a botei virada para baixo numa cadeira do corredor e disse que eu não ia mais voltar ao Salão do Reino, que podiam me expulsar da igreja
se quisessem. Tivemos umas brigas horríveis. O sr. Crosby tem vindo me convencer. Nenhuma chance. Estou escrevendo para a senhora porque preciso mesmo falar com
a senhora, preciso ouvir sua voz calma e aproveitar sua mente clara para discutir comigo este assunto. Sinto que a senhora me levou para perto de alguma outra coisa,
alguma coisa de fato bonita e profunda, mas não sei bem o que é. A senhora nunca me disse no que acreditava, mas adorei quando sentou ao meu lado e executamos “The
Salley Gardens”. Ainda leio o poema todos os dias. Gosto de ser “jovem e tolo”, e, se não fosse pela senhora, eu não seria nem uma coisa nem outra, eu estaria morto!
Eu lhe escrevi uma porção de cartas bobas, penso na senhora o tempo todo e quero mesmo ver a senhora para nos falarmos outra vez. Sonho acordado sobre nós, fantasias
maravilhosas e impossíveis, como a de que vamos fazer uma viagem de volta ao mundo juntos num navio, em camarotes vizinhos, e que passeamos o dia todo pelo convés
conversando.
Meritíssima, me escreva por favor, apenas algumas palavras para dizer que leu esta carta e que não me odeia por tê-la escrito.
Sempre seu,
Adam Henry
P.S.: Esqueci de dizer que estou ficando cada dia mais forte.
Ela não respondeu, ou melhor, não pôs no correio o bilhete que levou mais de uma hora para escrever naquela noite. No quarto e último rascunho, pensou ter sido bastante
afetuosa, feliz de sabê-lo em casa e se sentindo melhor, contente por ele ter boas recordações da visita dela. Aconselhou-o a ser carinhoso com os pais. Era normal,
como adolescente, questionar as crenças com que havíamos sido criados, mas isso devia ser feito de modo respeitoso. Terminou dizendo, embora não fosse verdade, que
havia ficado atraída pela ideia de uma volta ao mundo num navio. Acrescentou que, quando jovem, tinha sonhos de fuga como o dele. Isso também não era verdade, pois
ela havia sido ambiciosa demais, mesmo com dezesseis anos, ávida demais por boas notas nos exames para pensar em escapar. As visitas como adolescente a seus primos
de Newcastle foram suas únicas aventuras. Olhando a cartinha no dia seguinte, não foi a afetuosidade que a impressionou, e sim a frieza, os conselhos esfarrapados,
a linguagem impessoal, as falsas lembranças. Releu a carta dele e foi mais uma vez tocada por sua inocência e calor humano. Melhor não mandar nada do que decepcioná-lo.
Se mudasse de opinião, poderia escrever mais tarde.
Estava se aproximando o momento em que realizaria o circuito itinerante, visitando cidades inglesas e antigos vilarejos na companhia de outro juiz especializado
em direito criminal e cível. Ela julgaria casos que, de outra forma, precisariam ser transferidos para os tribunais de Londres. Ela ficaria hospedada em locais especialmente
bem preservados, mansões impressionantes de interesse histórico e arquitetônico onde, em certos casos, as adegas eram lendárias e as cozinheiras provavelmente decentes.
As autoridades do lugar costumavam convidá-la para jantar. Ela e seu colega retribuiriam a gentileza nas casas onde estivessem instalados, convidando figuras eminentes
ou interessantes (havia uma clara distinção entre as duas categorias) da localidade. Os quartos de dormir eram bem mais sofisticados que o seu, as camas mais largas,
os lençóis de tecido mais fino. Em tempos mais felizes, havia, para uma mulher bem casada, um elemento de culpa e prazer sensual naquelas acomodações a sós. Agora,
ela ansiava escapar do silencioso e solene pas de deux em casa. E a primeira parada era sua cidade inglesa predileta.
Certa manhã no começo de setembro, uma semana antes de iniciar a viagem, ela recebeu uma segunda carta. Mesmo antes de lê-la sua preocupação desta vez foi maior,
porque o envelope azul se encontrava sobre o capacho do vestíbulo de seu apartamento, em meio a circulares e a uma conta de luz. Nenhum endereço, só o nome dela.
Bem simples para Adam Henry esperar no Strand ou na Carey Street e segui-la à distância.
Jack já tinha saído para o trabalho. Ela levou a carta para a cozinha e se sentou diante dos restos do café da manhã.
Meritíssima,
Nem sei o que escrevi porque não guardei uma cópia, mas tudo bem que a senhora não tenha respondido. Ainda preciso conversar com a senhora. Aqui estão minhas notícias
— grandes brigas com meus pais, fantástico estar de volta à escola, me sentindo melhor, me sentindo feliz e depois infeliz e feliz outra vez. Às vezes a ideia do
sangue de um estranho dentro de mim me causa enjoo, como se eu tivesse bebido a saliva de alguém. Ou pior. Não posso me livrar da ideia de que a transfusão é uma
coisa errada, mas não me importo mais. Tenho tantas perguntas para a senhora, mas nem tenho certeza de que se lembra de mim. A senhora deve ter tido dezenas de casos
desde o meu e feito um bocado de escolhas sobre outras pessoas. Sinto ciúme! Quis conversar com a senhora na rua, chegar perto e tocar no seu ombro. Não fiz isso
porque sou um covarde. Achei que a senhora podia não me reconhecer. A senhora também não precisa responder a esta carta — o que significa que espero que responda.
Por favor, não se preocupe, não quero atormentá-la ou nada parecido. Só sinto que a tampa da minha cabeça explodiu. Está saindo tudo!
Sinceramente seu,
Adam Henry
Fiona mandou imediatamente um e-mail para Marina Greene perguntando se ela podia encontrar um tempinho para visitar o rapaz num acompanhamento de rotina e depois
lhe enviar um relatório. Recebeu o retorno antes do fim do dia. Marina se encontrara com Adam durante a tarde na escola, onde ele estava começando um período de
estudos especiais a fim de se preparar para os exames antes do Natal. Ficou meia hora com ele, que havia engordado e estava corado. Mostrou-se animado, até mesmo
“engraçado e travesso”. Havia alguns problemas em casa, a maior parte sobre diferenças religiosas com os pais, mas ela não achou nada de estranho nisso. Em particular,
o diretor lhe disse que Adam, depois de voltar do hospital, havia trabalhado bastante para recuperar o tempo perdido. Seus professores consideravam que ele estava
progredindo otimamente. Contribuía bastante para as atividades em sala de aula, nenhum problema de comportamento. Em suma, tudo corria bem. Tranquilizada, Fiona
decidiu não escrever para ele.
Uma semana depois, na manhã da segunda-feira em que deveria viajar para o nordeste da Inglaterra, ocorreu um desvio minúsculo na falha geológica conjugal, um movimento
quase tão imperceptível quanto o deslocamento das placas tectônicas. Foi tácito, algo não reconhecido abertamente. Mais tarde, quando se encontrava no trem e repassou
tudo, o instante pareceu se situar na fronteira entre o real e o imaginado. Será que ela podia confiar em sua memória? Eram sete e meia quando entrara na cozinha.
Jack estava de pé junto ao balcão, de costas para ela, despejando grãos de café no moedor. A pasta dela já estava no corredor e Fiona cuidava de recolher uns poucos
documentos que faltavam. Como de hábito, ficou relutante em dividir um espaço pequeno com ele. Pegou a echarpe das costas da cadeira e saiu para continuar a busca
na sala de visitas.
Voltou alguns minutos depois. Jack tirava uma jarra de leite do micro-ondas. Eles eram exigentes em matéria de café da manhã e, no curso dos anos, seus gostos tinham
convergido. Gostavam de café forte feito com grãos colombianos de alta qualidade, servido em canecas brancas e altas de borda fina, com leite morno, e não quente.
Ainda de costas para ela, Jack derramou leite em seu café e depois se voltou com a caneca erguida e ligeiramente estendida na direção dela. Nada na expressão de
Jack sugeria que ele estava lhe oferecendo a caneca, e ela nem assentiu nem recusou com a cabeça. Os olhos dos dois se encontraram por um instante, e então ele depositou
a caneca na mesa de pinho e empurrou-a uns cinco centímetros na direção dela. Isso não significava necessariamente muito, pois, em suas tensas manobras para se evitar,
ambos permaneciam escrupulosamente corteses, como se cada qual estivesse procurando superar o outro em se mostrar razoável, os dois irrepreensíveis graças à ausência
de rancor. Não faria sentido preparar um bule de café só para uma pessoa. Mas há maneiras e maneiras de pôr uma caneca na mesa, desde a batidinha peremptória da
porcelana contra a madeira até o pouso silencioso e cuidadoso, assim como há maneiras e maneiras de aceitar uma caneca, coisa que ela fez mansamente, em câmera lenta,
sem se afastar tão logo tomou um gole, ou não tão de imediato quanto o teria feito em qualquer outra manhã. Passaram-se alguns segundos de silêncio, em seguida pareceu
que isso era o mais longe que ambos estavam preparados para ir, que o momento continha coisas demais para eles e que tentar algo além os faria recuar. Jack se afastou
a fim de preparar uma caneca para ele, enquanto Fiona se afastou para ir buscar alguma coisa no quarto. Moveram-se um pouco mais devagar do que era comum, talvez
quase com relutância.
No começo da tarde, ela chegou a Newcastle. Um motorista esperava do lado de lá das catracas para levá-la aos tribunais de Quayside. Nigel Pauling a aguardava na
entrada dos magistrados e a conduziu ao gabinete que ela ocuparia. Ele chegara de Londres de manhã com os documentos e as togas — os paramentos completos, como disse
—, porque Fiona participaria da Corte da Rainha além da Vara da Família. O assistente do tribunal apareceu para dar as boas-vindas formais, seguido do funcionário
que cuidava da agenda, com o qual ela repassou os casos a serem ouvidos nos dias seguintes.
Como havia outras pequenas matérias a tratar, só por volta das quatro da tarde Fiona ficou livre para sair. A previsão era de que uma tempestade de verão chegaria
do sudoeste no começo da noite. Ela mandou que o motorista esperasse e deu uma caminhada pelo calçadão junto ao rio, passando por baixo da ponte Tyne e ao longo
de Sandhill, pelos novos cafés ao ar livre e por jardins floridos junto a sólidos prédios comerciais com fachadas clássicas. Subiu as escadas até Castle Garth e
parou no alto para olhar o rio que ficara para trás. Ela tinha uma queda por aquela mistura exuberante de peças poderosas de ferro fundido, aço e vidro pós-industrial,
de velhos armazéns salvos da decrepitude por uma fantasia juvenil de cafés e bares. Compartilhava um passado com Newcastle e se sentia bem lá. Na adolescência, durante
as recorrentes doenças de sua mãe, ia passar algum tempo ali com suas primas prediletas. Tio Fred, dentista, era o homem mais rico que ela conhecia. Tia Simone ensinava
francês numa escola primária. A casa era agradavelmente caótica, uma libertação dos domínios de sua mãe em Finchley, encerados ao exagero e insuficientemente arejados.
As primas, de sua idade, eram alegres e aventurosas, obrigando-a a sair à noite em missões aterradoras que incluíam a ingestão de bebidas e quatro músicos dedicados
com cabelos até a cintura e bigodes de pontas caídas, que pareciam transviados mas provaram ser gente boa. Seus pais ficariam horrorizados de saber que a filha estudiosa
de dezesseis anos era presença assídua em certos bares, que bebia licor de cereja e cuba-libre, e tivera seu primeiro amante. E, juntamente com as primas, ela era
a tiete fiel, e tolerada como assistente novata, de uma banda de blues mal equipada e mal remunerada, ajudando a carregar amplificadores e peças da bateria numa
caminhonete enferrujada que vivia enguiçando. Com frequência afinava as guitarras. Sua emancipação tinha muito a ver com o fato de que aquelas visitas, além de ocasionais,
nunca duravam mais que três semanas. Se permanecesse por mais tempo — nunca uma possibilidade real —, talvez fosse até autorizada a cantar os blues. Poderia ter
se casado com Keith, o principal cantor do grupo e tocador de gaita, que tinha um braço atrofiado e a quem ela adorava timidamente.
Tio Fred mudou seu consultório para o sul do país quando ela tinha dezoito anos, o caso com Keith acabou em lágrimas e em alguns poemas de amor que ela não enviou.
Fiona jamais voltou a viver esse tipo de relacionamento arriscado e tremendamente divertido, o qual se tornou parte inseparável da ideia que fazia de Newcastle.
Não seria possível reproduzi-lo em Londres, a sede de suas ambições profissionais. Por vários anos ela voltara ao Nordeste sob diversos pretextos, além de quatro
vezes para cumprir o circuito judiciário. Sempre fazia bem ao seu espírito se aproximar da cidade pela alta ponte Stephenson sobre o rio Tyne, chegando com o espírito
excitado de uma adolescente, descendo do trem na gare central sob os três grandes arcos criados por John Dobson e saindo pela extravagante porte cochère neoclássica
desenhada por Thomas Prosser. Foi seu tio dentista, recebendo-a com seu Jaguar verde e suas primas impacientes, quem a ensinou a apreciar a gare e os tesouros arquitetônicos
da cidade. Ela nunca se desfizera da impressão de estar no exterior, de se encontrar numa cidade-Estado báltica caracterizada por um curioso otimismo e orgulho.
O ar era mais revigorante, a luz de um cinzento amplo e luminescente, os habitantes amistosos, porém mais incisivos, autoconscientes ou ironizando a si próprios
como atores numa comédia. Perto do sotaque deles, o dela parecia tenso e artificial. Se, como Jack insistia, a geologia moldava a variedade de tipos e de destinos
dos ingleses, então os moradores da cidade eram feitos de granito e ela de calcário friável. Mas, com sua paixonite juvenil pela cidade, com suas primas, a banda
e o primeiro namorado, acreditava que poderia mudar, se tornar mais autêntica, mais verdadeira, uma genuína cidadã daquela região. Anos depois, recordar-se de tal
ambição ainda a fazia sorrir. No entanto, o sentimento lá estava em cada regresso, uma vaga noção de renovação, de um potencial não explorado em outra vida — e isso
mesmo às vésperas de fazer sessenta anos.
O carro em cujo assento ela se reclinou era um Bentley da década de 1960, e seu destino o Leadman Hall, situado dentro de seu próprio parque a um quilômetro e meio
dos portões que ela agora transpunha. Logo passou por um campo de críquete, depois por uma alameda de faias com as copas já agitadas pelo vento que crescia, mais
tarde por um lago tomado por plantas aquáticas. O palacete, no estilo do arquiteto Andrea Palladio e havia pouco tempo pintado de um branco brilhante demais, tinha
doze quartos e nove empregados para servir a dois magistrados do Tribunal Superior em seu circuito itinerante. Pevsner, conhecido historiador da arte arquitetônica,
aprovara sem grande entusiasmo a estufa, e nada mais. Somente uma anomalia burocrática havia preservado Leadman de ser destruído por medida de economia do governo,
mas o jogo estava chegando ao fim porque aquele era o último ano em que a construção iria contar com o Judiciário. O palacete, alugado algumas semanas por ano de
uma família da região com interesses históricos na mineração de carvão, servia principalmente como centro de conferências e local para festas de casamento. Seu campo
de golfe, quadras de tênis e piscina externa aquecida eram, como agora se reconhecia, luxos desnecessários para juízes de passagem e muito atarefados. Do ano seguinte
em diante, uma empresa de táxi da cidade forneceria um espaçoso Vauxhall para substituir o Bentley. As acomodações seriam num hotel do centro de Newcastle. Os magistrados
da Vara Criminal, que às vezes mandavam para a prisão por longos períodos homens da região com parentes assustadores, tinham clara preferência pelo isolamento de
um palacete. Mas ninguém era capaz de argumentar em favor de Leadman sem dar a impressão de que o fazia por puro interesse.
Pauling esperava com a governanta no pátio de cascalho junto à entrada principal. Ele desejava dar um sentido especial àquela derradeira visita. Aproximou-se da
porta de trás do carro com um floreio irônico e bateu os calcanhares. Como sempre, a governanta era nova, uma polonesa de uns vinte e poucos anos, calculou Fiona,
mas seu olhar era direto e frio, e ela pegou com firmeza a mala mais pesada da juíza até que Pauling a tomou de sua mão. Lado a lado, o assistente e a governanta
conduziram Fiona ao quarto do primeiro andar que ela considerava como seu. Ficava na frente da casa, com três janelas altas que davam para a alameda de faias e para
o trecho do lago invadido por ervas. Além do quarto de quase dez metros de comprimento, havia a sala de estar com uma mesa de trabalho. O banheiro, no entanto, ficava
no fim de um corredor e três degraus atapetados abaixo do nível do quarto. Na última vez em que Leadman tinha sido modernizado, a proliferação generalizada de lavatórios
e chuveiros ainda não começara.
A tempestade chegou quando Fiona saiu do banho. Vestida com um penhoar, plantou-se diante da janela central observando as pancadas de chuva, cortinas fantasmagóricas
que corriam velozes e, por segundos, ocultavam os campos. Viu o galho mais alto de uma das faias próximas se partir e começar a cair, ficando de cabeça para baixo
e balançando ao ser contido pelos galhos mais baixos, até mergulhar de novo, voltar a se emaranhar e ser enfim liberado pelo vento para se chocar com um baque contra
o solo. Quase tão alto quanto o silvar da chuva no cascalho era o coro de gemidos nas calhas do telhado. Ela acendeu as luzes e começou a se vestir. Já estava atrasada
dez minutos para o xerez na sala de visitas.
Quatro homens de terno preto e gravata, cada qual com seu gim e sua tônica, pararam de conversar e se ergueram das poltronas quando ela entrou. Um garçom de paletó
branco engomado foi preparar o drinque dela, enquanto Caradoc Ball da Corte da Rainha, colega de Fiona encarregado dos casos criminais, apresentou-a aos demais —
um professor de jurisprudência, um homem que tinha negócios no setor de fibras ópticas e alguém que trabalhava para o governo na conservação da costa marítima. Todos
de alguma forma eram ligados a Ball. Ela não convidara ninguém para a primeira noite. Seguiu-se a conversa obrigatória sobre o clima tempestuoso. Depois, uma digressão
sobre como as pessoas de mais de cinquenta anos e todos os norte-americanos ainda viviam no mundo das temperaturas medidas em Fahrenheit. Depois, como os jornais
britânicos, para obter o máximo de impacto, noticiavam as baixas temperaturas em graus Celsius e as quentes em Fahrenheit. Durante todo o tempo ela se perguntava
por que o rapaz curvado sobre o carrinho de bebidas estava demorando tanto. Ele trouxe o drinque dela justamente quando estava sendo lembrada a já distante transição
para as moedas decimais.
Fiona já sabia pelo próprio Ball que ele estava em Newcastle para realizar o novo julgamento de um caso de assassinato no qual um homem era acusado de haver matado
sua mãe em casa com golpes de porrete devido aos maus-tratos que ela infligia à filha mais jovem, meia-irmã do réu. A arma do crime não tinha sido encontrada e a
prova de DNA era inconclusiva. A defesa argumentava que a mulher havia sido morta por um intruso. O julgamento fora anulado quando se descobriu que um jurado tinha
revelado aos outros membros do júri informações que colhera na internet pelo celular. Ele encontrara a reportagem de um jornal sensacionalista, publicada cinco anos
antes, sobre a prévia condenação do homem por agressão violenta. Na nova era de acesso digital, alguma coisa precisava ser feita para “esclarecer” certas questões
aos jurados. O professor de jurisprudência havia pouco tempo apresentara um estudo à Comissão Jurídica, possivelmente objeto da conversa que Fiona interrompera ao
entrar na sala. Agora ela foi retomada. O especialista em fibras ópticas perguntou como seria possível impedir que os jurados buscassem informações na privacidade
de suas casas ou conseguissem que um membro da família o fizesse por eles. Relativamente simples, segundo o professor. Os próprios jurados se policiariam. Seriam
obrigados, sob pena de prisão, a apontar qualquer um deles que discutisse matérias não apresentadas perante o tribunal. Dois anos no máximo pela divulgação de tais
matérias, seis meses no máximo por não informar a violação. A Comissão daria seu parecer conclusivo no ano seguinte.
Nesse momento, o mordomo os convidou a seguirem para a mesa de jantar. Embora não pudesse ter mais de trinta anos, seu rosto era doentiamente pálido, como se coberto
de talco. Tão branco quanto uma aspirina — Fiona certo dia ouvira uma proprietária rural francesa dizer. Mas o mordomo não parecia doente pois mantinha uma atitude
impessoal e segura. Enquanto aguardava à pequena distância, com a cabeça inclinada para a frente em sinal de atenção, eles terminaram seus drinques e, seguindo Fiona,
atravessaram uma porta de folha dupla rumo à sala de jantar. A mesa, que poderia comportar trinta pessoas, estava posta para cinco numa extremidade solitária. A
sala era recoberta de lambris, pintados de um laranja quase fluorescente, com desenhos de flamingos calculadamente espaçados. Os convivas encontravam-se agora no
lado norte da casa, atingido em cheio pelo vento e onde as três janelas de guilhotina sacudiam, produzindo um ruído surdo. O ar estava frio e úmido. Havia um buquê
de flores secas na lareira. O mordomo explicou que ela havia sido bloqueada muitos anos antes, mas que ele traria um aquecedor elétrico. Eles avaliaram a distribuição
dos assentos e, após alguns momentos de polida incerteza, concordaram que, em respeito à simetria, Fiona se sentaria à cabeceira.
Até então ela mal falara. O mordomo pálido serviu um vinho branco. Dois garçons trouxeram patê de arenque e torradas finas. À esquerda dela estava o perito em conservação,
Charlie, um cinquentão gordo, careca e bem-humorado. Enquanto os outros continuavam a falar sobre jurados, ele perguntou cortesmente sobre o trabalho dela. Resignada
a uma rodada de conversinha fiada, Fiona explicou em termos gerais o trabalho da Vara de Família. Mas Charlie queria detalhes. Que tipo de decisão iria tomar no
dia seguinte? Ela se sentia mais feliz falando sobre um caso específico. Uma instituição local desejava ficar com a guarda de duas crianças, um menino de dois anos
e uma menina de quatro. A mãe era alcoólatra e também viciada em anfetaminas. Sofria crises psicóticas durante as quais imaginava estar sendo espionada por lâmpadas
elétricas. Tornara-se incapaz de cuidar de si própria ou das crianças. O pai, separado dela, tinha permanecido distante, mas agora alegava que ele e sua namorada
podiam cuidar das crianças. Ele também enfrentava problemas com drogas e era fichado na polícia, embora tivesse direito sobre os filhos. Um assistente social se
pronunciaria no dia seguinte perante o tribunal acerca da adequação dele como pai. Os avós maternos adoravam as crianças, eram competentes e queriam cuidar delas,
porém não tinham amparo legal para isso. A instituição local, cujo serviço de atendimento a menores havia sido criticado num relatório oficial, se opunha aos avós
por razões que ainda não estavam claras. As três partes — mãe, pai e avós — estavam amargamente divididas. Outra complicação era existirem opiniões contraditórias
acerca da menina de quatro anos. Um pediatra disse que ela tinha necessidades especiais, outro, contratado pelos avós, acreditava que, conquanto a menina estivesse
perturbada pelo comportamento da mãe e abaixo do peso normal por causa das refeições em horários irregulares, seu desenvolvimento era normal.
Havia, Fiona disse, muitos outros casos similares agendados para aquela semana. Charlie levou a mão à testa e fechou os olhos. Que encrenca! Se ele tivesse de tomar
uma decisão na manhã seguinte em um só caso como aquele, ficaria acordado a noite toda, roendo as unhas e abusando das bebidas oferecidas no quarto do hotel. Fiona
perguntou por que ele estava lá. Charlie tinha vindo de Whitehall a fim de persuadir um grupo de fazendeiros da costa a se unir a algumas organizações de proteção
ambiental, para permitirem que suas pastagens voltassem a ser cobertas pela água do mar, retornando à condição de pântanos salgados. Essa era de longe a melhor e
mais barata forma de defesa contra a inundação da costa, maravilhosa para a vida selvagem, sobretudo pássaros, e boa também para o turismo de pequena escala. Mas
havia uma forte oposição de certos segmentos do setor agrícola, embora os fazendeiros fossem ser bem recompensados. Durante todo o dia o tinham calado aos berros
nas reuniões. Corria o rumor de que o plano era compulsório. Ninguém acreditava nele quando dizia que não era assim. Viam-no como um representante do governo central,
com o qual os fazendeiros estavam irritados por uma série de outras questões que não eram de sua alçada. No final, tinha levado uns trancos num corredor. Um indivíduo
“com metade da minha idade e o dobro da minha força” havia agarrado sua gola e murmurado alguma coisa com o sotaque local que ele não tinha entendido. Melhor assim.
Amanhã ele voltaria e tentaria de novo. Estava certo de que no final iria conseguir o que queria.
Bom, isso soava a ela como um dos círculos especiais do inferno, bem pior do que qualquer mãe psicótica. Os dois estavam dando umas risadinhas por conta dessa observação,
quando perceberam que os outros três tinham abandonado a conversa deles e os ouviam.
Caradoc Ball, que era um velho colega de escola de Charlie, disse: “Espero que você saiba que está falando com uma juíza muito eminente. Certamente se lembra do
caso dos irmãos siameses”.
Todos se lembravam e, à medida que os pratos foram retirados e o boeuf en croûte servido com um Château Latour, conversaram e fizeram perguntas a ela sobre o famoso
caso. Fiona lhes disse tudo o que queriam saber. Todos tinham uma opinião, mas, como era a mesma, logo passaram a discutir a paixão que a história suscitara nos
jornais e como eles a haviam disputado. Dali foi um passo para uma troca de fofocas sobre os lances mais recentes da Investigação Leveson.* Terminaram a carne. À
frente, como dizia o cartão com o menu, havia um pudim de pão. Logo, logo, pensou Fiona, estariam discutindo a sabedoria ou a loucura de o Ocidente não mandar tropas
para a Síria. Era impossível calar Caradoc sobre aquele tema. E, de fato, ele o introduzia quando se deram conta de vozes ecoando no corredor. Pauling e o mordomo
de rosto branco pararam no umbral da porta e depois se aproximaram dela.
O mordomo se pôs de lado, com um olhar contrariado, enquanto Pauling, depois de pedir desculpas a todos com um aceno de cabeça, inclinou-se por cima da cadeira de
Fiona e disse baixinho perto de seu ouvido: “Minha senhora, perdão por interromper, mas infelizmente há um assunto que exige sua atenção imediata”.
Ela limpou os lábios com o guardanapo e se pôs de pé. “Me desculpem, senhores.”
Sem mudar de expressão, todos se levantaram e ela atravessou a sala na frente dos dois homens. Já do lado de fora, ela disse ao mordomo: “Ainda estamos esperando
por aquele aquecedor”.
“Vou pegar agora.”
Havia algo impertinente em seu jeito ao dar meia-volta, e ela olhou para seu assistente com as sobrancelhas erguidas.
Mas ele simplesmente disse: “Por aqui”.
Ela o seguiu através do corredor e do que fora antes uma biblioteca. As estantes estavam repletas de livros comprados em lojas de objetos usados, do tipo que os
hotéis adquirem por metro para criar uma atmosfera respeitável em certos ambientes.
Pauling disse: “É o rapaz das testemunhas de Jeová, Adam Henry. A senhora se lembra do caso da transfusão? Parece que ele a seguiu até aqui. Andou na chuva, está
completamente encharcado. Queriam expulsá-lo, mas achei que a senhora precisava ser informada antes”.
“Onde ele está?”
“Na cozinha. É mais quentinho lá.”
“Melhor trazê-lo aqui.”
Tão logo Pauling saiu, ela se levantou e caminhou lentamente pela sala, consciente de que seu ritmo cardíaco tinha aumentado. Caso houvesse respondido às cartas,
não estaria agora defrontando aquilo. Defrontando o quê? O envolvimento desnecessário com um caso fechado. E mais que isso. Mas não havia tempo para refletir. Ouviu
passos se aproximando.
A porta se abriu e Pauling fez o rapaz passar. Ela nunca o vira fora da cama e se surpreendeu com sua altura, bem mais de um metro e oitenta. Vestia seu uniforme
escolar, calça de flanela cinza, suéter cinza, camisa branca, um blusão bem leve, encharcado da cabeça aos pés, o cabelo em desordem depois de ter sido enxugado.
Uma pequena mochila pendia frouxamente de sua mão. O toque patético era dado pela toalha de chá do Leadman, com ilustrações dos pontos turísticos locais, envolvendo suas costas para aquecê-lo.


CONTINUA

Nesse momento, o mordomo os convidou a seguirem para a mesa de jantar. Embora não pudesse ter mais de trinta anos, seu rosto era doentiamente pálido, como se coberto
de talco. Tão branco quanto uma aspirina — Fiona certo dia ouvira uma proprietária rural francesa dizer. Mas o mordomo não parecia doente pois mantinha uma atitude
impessoal e segura. Enquanto aguardava à pequena distância, com a cabeça inclinada para a frente em sinal de atenção, eles terminaram seus drinques e, seguindo Fiona,
atravessaram uma porta de folha dupla rumo à sala de jantar. A mesa, que poderia comportar trinta pessoas, estava posta para cinco numa extremidade solitária. A
sala era recoberta de lambris, pintados de um laranja quase fluorescente, com desenhos de flamingos calculadamente espaçados. Os convivas encontravam-se agora no
lado norte da casa, atingido em cheio pelo vento e onde as três janelas de guilhotina sacudiam, produzindo um ruído surdo. O ar estava frio e úmido. Havia um buquê
de flores secas na lareira. O mordomo explicou que ela havia sido bloqueada muitos anos antes, mas que ele traria um aquecedor elétrico. Eles avaliaram a distribuição
dos assentos e, após alguns momentos de polida incerteza, concordaram que, em respeito à simetria, Fiona se sentaria à cabeceira.
Até então ela mal falara. O mordomo pálido serviu um vinho branco. Dois garçons trouxeram patê de arenque e torradas finas. À esquerda dela estava o perito em conservação,
Charlie, um cinquentão gordo, careca e bem-humorado. Enquanto os outros continuavam a falar sobre jurados, ele perguntou cortesmente sobre o trabalho dela. Resignada
a uma rodada de conversinha fiada, Fiona explicou em termos gerais o trabalho da Vara de Família. Mas Charlie queria detalhes. Que tipo de decisão iria tomar no
dia seguinte? Ela se sentia mais feliz falando sobre um caso específico. Uma instituição local desejava ficar com a guarda de duas crianças, um menino de dois anos
e uma menina de quatro. A mãe era alcoólatra e também viciada em anfetaminas. Sofria crises psicóticas durante as quais imaginava estar sendo espionada por lâmpadas
elétricas. Tornara-se incapaz de cuidar de si própria ou das crianças. O pai, separado dela, tinha permanecido distante, mas agora alegava que ele e sua namorada
podiam cuidar das crianças. Ele também enfrentava problemas com drogas e era fichado na polícia, embora tivesse direito sobre os filhos. Um assistente social se
pronunciaria no dia seguinte perante o tribunal acerca da adequação dele como pai. Os avós maternos adoravam as crianças, eram competentes e queriam cuidar delas,
porém não tinham amparo legal para isso. A instituição local, cujo serviço de atendimento a menores havia sido criticado num relatório oficial, se opunha aos avós
por razões que ainda não estavam claras. As três partes — mãe, pai e avós — estavam amargamente divididas. Outra complicação era existirem opiniões contraditórias
acerca da menina de quatro anos. Um pediatra disse que ela tinha necessidades especiais, outro, contratado pelos avós, acreditava que, conquanto a menina estivesse
perturbada pelo comportamento da mãe e abaixo do peso normal por causa das refeições em horários irregulares, seu desenvolvimento era normal.
Havia, Fiona disse, muitos outros casos similares agendados para aquela semana. Charlie levou a mão à testa e fechou os olhos. Que encrenca! Se ele tivesse de tomar
uma decisão na manhã seguinte em um só caso como aquele, ficaria acordado a noite toda, roendo as unhas e abusando das bebidas oferecidas no quarto do hotel. Fiona
perguntou por que ele estava lá. Charlie tinha vindo de Whitehall a fim de persuadir um grupo de fazendeiros da costa a se unir a algumas organizações de proteção
ambiental, para permitirem que suas pastagens voltassem a ser cobertas pela água do mar, retornando à condição de pântanos salgados. Essa era de longe a melhor e
mais barata forma de defesa contra a inundação da costa, maravilhosa para a vida selvagem, sobretudo pássaros, e boa também para o turismo de pequena escala. Mas
havia uma forte oposição de certos segmentos do setor agrícola, embora os fazendeiros fossem ser bem recompensados. Durante todo o dia o tinham calado aos berros
nas reuniões. Corria o rumor de que o plano era compulsório. Ninguém acreditava nele quando dizia que não era assim. Viam-no como um representante do governo central,
com o qual os fazendeiros estavam irritados por uma série de outras questões que não eram de sua alçada. No final, tinha levado uns trancos num corredor. Um indivíduo
“com metade da minha idade e o dobro da minha força” havia agarrado sua gola e murmurado alguma coisa com o sotaque local que ele não tinha entendido. Melhor assim.
Amanhã ele voltaria e tentaria de novo. Estava certo de que no final iria conseguir o que queria.
Bom, isso soava a ela como um dos círculos especiais do inferno, bem pior do que qualquer mãe psicótica. Os dois estavam dando umas risadinhas por conta dessa observação,
quando perceberam que os outros três tinham abandonado a conversa deles e os ouviam.
Caradoc Ball, que era um velho colega de escola de Charlie, disse: “Espero que você saiba que está falando com uma juíza muito eminente. Certamente se lembra do
caso dos irmãos siameses”.
Todos se lembravam e, à medida que os pratos foram retirados e o boeuf en croûte servido com um Château Latour, conversaram e fizeram perguntas a ela sobre o famoso
caso. Fiona lhes disse tudo o que queriam saber. Todos tinham uma opinião, mas, como era a mesma, logo passaram a discutir a paixão que a história suscitara nos
jornais e como eles a haviam disputado. Dali foi um passo para uma troca de fofocas sobre os lances mais recentes da Investigação Leveson.* Terminaram a carne. À
frente, como dizia o cartão com o menu, havia um pudim de pão. Logo, logo, pensou Fiona, estariam discutindo a sabedoria ou a loucura de o Ocidente não mandar tropas
para a Síria. Era impossível calar Caradoc sobre aquele tema. E, de fato, ele o introduzia quando se deram conta de vozes ecoando no corredor. Pauling e o mordomo
de rosto branco pararam no umbral da porta e depois se aproximaram dela.
O mordomo se pôs de lado, com um olhar contrariado, enquanto Pauling, depois de pedir desculpas a todos com um aceno de cabeça, inclinou-se por cima da cadeira de
Fiona e disse baixinho perto de seu ouvido: “Minha senhora, perdão por interromper, mas infelizmente há um assunto que exige sua atenção imediata”.
Ela limpou os lábios com o guardanapo e se pôs de pé. “Me desculpem, senhores.”
Sem mudar de expressão, todos se levantaram e ela atravessou a sala na frente dos dois homens. Já do lado de fora, ela disse ao mordomo: “Ainda estamos esperando
por aquele aquecedor”.
“Vou pegar agora.”
Havia algo impertinente em seu jeito ao dar meia-volta, e ela olhou para seu assistente com as sobrancelhas erguidas.
Mas ele simplesmente disse: “Por aqui”.
Ela o seguiu através do corredor e do que fora antes uma biblioteca. As estantes estavam repletas de livros comprados em lojas de objetos usados, do tipo que os
hotéis adquirem por metro para criar uma atmosfera respeitável em certos ambientes.
Pauling disse: “É o rapaz das testemunhas de Jeová, Adam Henry. A senhora se lembra do caso da transfusão? Parece que ele a seguiu até aqui. Andou na chuva, está
completamente encharcado. Queriam expulsá-lo, mas achei que a senhora precisava ser informada antes”.
“Onde ele está?”
“Na cozinha. É mais quentinho lá.”
“Melhor trazê-lo aqui.”
Tão logo Pauling saiu, ela se levantou e caminhou lentamente pela sala, consciente de que seu ritmo cardíaco tinha aumentado. Caso houvesse respondido às cartas,
não estaria agora defrontando aquilo. Defrontando o quê? O envolvimento desnecessário com um caso fechado. E mais que isso. Mas não havia tempo para refletir. Ouviu
passos se aproximando.
A porta se abriu e Pauling fez o rapaz passar. Ela nunca o vira fora da cama e se surpreendeu com sua altura, bem mais de um metro e oitenta. Vestia seu uniforme
escolar, calça de flanela cinza, suéter cinza, camisa branca, um blusão bem leve, encharcado da cabeça aos pés, o cabelo em desordem depois de ter sido enxugado.
Uma pequena mochila pendia frouxamente de sua mão. O toque patético era dado pela toalha de chá do Leadman, com ilustrações dos pontos turísticos locais, envolvendo
suas costas para aquecê-lo.
O assistente se manteve junto à porta enquanto o rapaz deu alguns passos para dentro da sala, parando perto de onde ela se encontrava e dizendo: “Sinto muito mesmo”.
Naqueles primeiros momentos, era mais fácil esconder a confusão de sentimentos sob um tom maternal. “Você parece estar congelado. É melhor trazermos o aquecedor
para cá.”
“Eu mesmo vou pegar”, disse Pauling, saindo.
“Bem”, ela disse após um silêncio. “Como você me achou aqui?”
Outra evasão, perguntar como em vez de por quê, mas àquela altura, conquanto sua presença ainda fosse um choque, Fiona não era capaz de entender o que Adam queria
dela.
O relato dele foi sóbrio. “Eu a segui num táxi desde King’s Cross, peguei seu trem e, como não tinha ideia de onde a senhora ia saltar, comprei passagem para Edinburgh.
Em Newcastle, a segui ao sair da estação, corri atrás da sua limusine e então a perdi de vista. Tive um palpite e perguntei onde eram os tribunais. Quando cheguei
lá, vi imediatamente o seu carro.”
Ela o observou falar, enquanto analisava a transformação. A magreza se fora, porém ele continuava esbelto. Novos músculos nos ombros e braços. O mesmo rosto delicadamente
estruturado, a pinta marrom na maçã do rosto quase invisível na pele bronzeada pela saúde juvenil. Tênues indícios das olheiras roxas. Lábios cheios e úmidos, olhos
que naquela luz eram demasiado escuros para revelar sua cor. Mesmo enquanto tentava se desculpar, ele se mostrava vívido demais, ávido demais para dar uma explicação
detalhada. Quando ele afastou o olhar para ordenar a sequência de fatos, Fiona se perguntou se aquele era um rosto que sua mãe chamaria de antiquado. Uma ideia sem
nexo. A noção generalizada do rosto de um poeta romântico, um primo de Keats ou Shelley.
“Esperei um tempão até a senhora sair e a segui ao atravessar a cidade e voltar na direção do rio, vendo quando saiu do carro. Levei mais de uma hora até descobrir
no meu celular onde os juízes se hospedavam, peguei uma carona, desci na estrada principal, pulei o muro para não passar pela casa do guarda e andei até aqui na
chuva. Esperei muito tempo nos fundos, perto das antigas estrebarias, me perguntando o que eu devia fazer, até que alguém me viu. Realmente sinto muito, eu...”
Pauling, irritado e com o rosto vermelho por causa do esforço, chegou com o aquecedor. Talvez tivesse sido necessário arrancá-lo das mãos do mordomo. Os dois ficaram
olhando enquanto o assistente se pôs de quatro com um grunhido e desapareceu parcialmente debaixo de uma mesinha de canto para encontrar a tomada. Depois que se
reergueu, pousou as mãos nos ombros do rapaz e o levou para a frente do ar aquecido. Antes de sair, disse a Fiona: “Estou esperando do lado de fora”.
Quando ficaram sozinhos, ela disse: “Eu não deveria pensar que tem alguma coisa de esquisito em você me seguir até minha casa e depois até aqui?”.
“Ah, não! Por favor, não pense isso. Não é nada disso.” Olhou em volta impaciente, como se nas paredes estivesse escrita alguma explicação. “Olha, a senhora salvou
minha vida. E não é só isso. Papai tentou esconder de mim, mas li sua sentença. A senhora disse que queria me proteger da minha religião. Pois bem, protegeu. Fui
salvo!”
Ele riu da própria piada e ela disse: “Não o salvei para que você me seguisse por todo canto”.
Nesse justo instante, uma peça fixa do aquecedor deve ter entrado na órbita de alguma peça móvel, pois um estalido regular tomou conta da sala. O volume aumentou,
baixou, se estabilizou. Ela sentiu uma onda de irritação com a casa toda. Um embuste. Um depósito de velharias. Como não tinha visto isso antes?
O momento passou e ela perguntou: “Seus pais sabem onde você está?”.
“Tenho dezoito anos. Posso estar onde quiser.”
“Não me interessa sua idade. Eles vão ficar preocupados.”
Adam soltou um arquejo de exasperação juvenil e depositou a mochila no chão. “Olha, Meritíssima...”
“Chega disso. Me chame de Fiona.” Enquanto pudesse mantê-lo em seu lugar, ela se sentiria melhor.
“Eu não quis ser sarcástico nem nada.”
“Ótimo. E quanto a seus pais?”
“Ontem tive uma briga feia com papai. Tivemos algumas desde que saí do hospital, mas essa foi realmente das grandes, os dois gritando, e eu lhe disse tudo o que
achava sobre sua religião idiota, mesmo que ele não estivesse escutando. No final, me afastei. Subi para o quarto, fiz a mala, peguei o dinheiro que tinha guardado
e me despedi de mamãe. Depois fui embora.”
“Você precisa telefonar para ela agora.”
“Não há necessidade. Mandei uma mensagem para o celular dela ontem à noite do lugar onde me hospedei.”
“Mande outra.”
Ele a olhou, ao mesmo tempo surpreso e desapontado.
“Vamos, diga que está são e salvo em Newcastle e que vai escrever outra vez amanhã. Depois disso conversamos.”
Ela se afastou alguns passos e observou enquanto seus dedos longos dançavam sobre o teclado virtual. Em segundos o celular voltara ao bolso dele.
“Pronto”, disse, olhando para ela com ar expectante, como se ela é que lhe devesse alguma explicação.
Fiona cruzou os braços. “Adam, por que você está aqui?” Seu olhar se desviou, ele hesitou. Não ia dizer a ela a razão, pelo menos não de forma direta.
“Olhe, eu não sou a mesma pessoa. Quando a senhora foi me ver eu estava realmente pronto para morrer. É impressionante que alguém como a senhora tivesse perdido
tempo comigo. Eu era um tremendo idiota!”
Ela apontou para duas cadeiras de madeira junto a uma mesa oval de nogueira, onde se sentaram frente a frente. A luz branca e sepulcral vinha de quatro lâmpadas
LED presas a uma roda rústica de madeira pintada. Por não estar situada diretamente acima da mesa, a iluminação acentuava os contornos das maçãs do rosto e dos lábios
de Adam, assim como as finas saliências gêmeas que separavam a parte acima de seu lábio superior. Tratava-se de uma bela face.
“Não achei você um idiota.”
“Mas eu era. Sempre que os médicos e as enfermeiras tentavam me dissuadir, eu me sentia nobre e heroico, dizendo para me deixarem em paz. Eu era bom e puro. Adorava
que eles não conseguissem entender como eu era profundo. Eu realmente me achava o tal. Gostava de ver o orgulho dos meus pais e dos anciãos. À noite, quando não
tinha ninguém por perto, ensaiei fazer um vídeo, como esses homens-bomba. Ia fazer no meu celular. Queria que fosse reproduzido nos noticiários de televisão e no
meu funeral. Acabei chorando no escuro, imaginando meu caixão sendo levado diante dos meus pais, dos meus colegas e professores, de toda a congregação, as flores,
as coroas, a música triste, todos chorando, todos orgulhosos de mim e me amando. Sinceramente, eu era um idiota.”
“E onde entrava Deus nessa história?”
“Por trás de tudo. Eu estava obedecendo às instruções dele. Mas era mais sobre a maravilhosa aventura que eu estava vivendo, como ia morrer gloriosamente e ser adorado.
Uma garota que eu conheci na escola sofria de anorexia três anos atrás, quando tinha quinze anos. O sonho dela era se transformar em nada — como uma folha seca soprada
pelo vento, foi o que ela disse, mergulhando devagarzinho na morte, todo mundo com pena dela e depois se culpando por não compreendê-la. O mesmo tipo de coisa.”
Agora que o via sentado, Fiona se lembrou dele no hospital, recostando-se nos travesseiros em meio àquela bagunça juvenil. Não era a enfermidade dele que lhe vinha
à mente, mas sua avidez, a inocência vulnerável. Até mesmo a palavra anorexia soava como uma diversão. Ele havia tirado do bolso uma tira estreita de tecido verde,
talvez parte de um forro, que enrolava e desenrolava entre o indicador e o polegar como as contas do colar de um muçulmano.
“Então, não era muito uma questão de religião; tinha mais a ver com seus outros sentimentos.”
Ele ergueu as mãos. “Meus sentimentos tinham origem na minha religião. Eu estava cumprindo a vontade de Deus, a senhora e todos os outros estavam claramente errados.
Como eu teria me metido numa confusão daquelas se não fosse testemunha de Jeová?”
“Parece que sua colega anoréxica conseguiu.”
“Bem, na verdade a anorexia é um pouco como uma religião.”
Diante do olhar cético de Fiona, ele improvisou. “Ah, a senhora sabe, querer sofrer, amar a dor e o sacrifício, pensar que todo mundo está te observando, preocupado
com você, que o universo gira em torno de você. E do seu peso!”
Ela não se conteve e riu da ironia contida na última frase. Ele sorriu por seu inesperado êxito em diverti-la.
Ouviram vozes e passos no corredor quando os convidados passaram da sala de jantar para a de visitas a fim de tomarem café, e depois uma sucessão de gargalhadas
que mais pareciam latidos perto da porta da biblioteca. O rapaz ficou tenso com a possibilidade de uma interrupção, e ambos mantiveram um silêncio conspiratório
enquanto aguardavam que os sons morressem. Adam olhava para baixo, para suas mãos entrelaçadas sobre a madeira envernizada da mesa. Ela imaginava todas as horas
de sua infância e juventude dedicadas a orações, hinos, sermões e as diversas restrições que jamais conheceria, a comunidade fechada mas amorosa que o sustentara
até quase matá-lo.
“Adam, vou perguntar outra vez. Por que você está aqui?”
“Para lhe agradecer.”
“Há maneiras mais fáceis.”
Ele suspirou com impaciência enquanto repunha no bolso a tira de tecido. Por um momento Fiona acreditou que ele se preparava para partir.
“Sua visita foi uma das melhores coisas que me aconteceram.” E então, rapidamente: “A religião de meus pais era um veneno e a senhora foi o antídoto”.
“Não me lembro de haver criticado a religião de seus pais.”
“Não criticou. A senhora foi calma, ouviu, fez perguntas e alguns comentários. Aí é que está. É essa coisa que a senhora tem. Fez diferença. A senhora não precisou
dizer. Um jeito de pensar e de falar. Se não sabe o que estou dizendo, trate de ouvir os anciãos. E quando tocamos a música...”
Ela disse com rapidez: “Você ainda está tocando violino?”.
Ele fez que sim com a cabeça.
“E a poesia?”
“Sim, muito. Mas odeio as coisas que eu escrevia.”
“Bom, você tem talento. Sei que vai escrever alguma coisa maravilhosa.”
Fiona percebeu o desalento nos olhos dele. Ela estava se distanciando, fazendo o papel da tia solícita. Repassou algumas etapas da conversa, se perguntando por que
estava tão ansiosa para não desapontá-lo.
“Mas seus professores devem ser bem diferentes dos anciãos.”
Ele deu de ombros. “Não sei.” Acrescentou à guisa de explicação: “A escola era enorme”.
“E o que é isso que você supõe que eu tenha?”, ela perguntou em tom sério, sem nenhum traço de ironia.
A pergunta não o embaraçou. “Quando vi meus pais chorando daquele jeito, chorando e quase urrando de alegria, tudo desmoronou. Mas aí que está. Desmoronou para cair
na verdade. Claro que eles não queriam que eu morresse! Eles me amam. Por que não disseram isso, em vez de falar e falar sobre as alegrias do céu? Foi então que
eu vi tudo aquilo como uma coisa humana comum. Comum e boa. Não tinha nada a ver com Deus. Isso era só uma bobagem. Como se um adulto entrasse numa sala cheia de
crianças que estão se infernizando e dissesse: ‘Chega, parem com isso, é hora do chá!’. A senhora foi esse adulto. Sabia desde o começo, mas não disse. Só fez perguntas
e escutou. Toda a vida e o amor que se abrem diante dele — foi o que a senhora escreveu. Essa foi a sua ‘coisa’. E a minha revelação. Começando com ‘The Salley Gardens’.”
Ainda em tom sério, ela disse: “E a tampa da sua cabeça explodiu”.
Ele riu gostosamente por também ser citado. “Fiona, quase consigo tocar uma composição de Bach sem cometer nenhum erro. Toco o tema de Coronation Street. Estou lendo
o livro de Berryman Dream Songs. Vou participar de uma peça teatral e tenho que terminar todos os exames antes do Natal. E, graças à senhora, estou entupido de Keats!”
“Muito bem”, ela disse em voz baixa.
Ele se inclinou para a frente, apoiado nos cotovelos, os olhos escuros brilhando na luz pavorosa, todo o rosto parecendo fremir de expectativa, com um apetite incontrolável.
Depois de refletir por um instante, Fiona disse num sussurro: “Espere aqui”. Levantou-se e hesitou, parecendo prestes a mudar de ideia e que voltaria a se sentar.
Mas deu as costas para ele, atravessou a sala e foi para o corredor. Pauling se encontrava de pé, a alguns passos de distância, fingindo interesse pelas páginas
do livro de visitantes aberto sobre uma mesa com tampo de mármore. Ela lhe deu rápidas instruções em voz baixa, voltou à biblioteca e fechou a porta atrás de si.
Adam havia retirado a toalha de chá do ombro e examinava a série de atrações locais. Quando ela se sentou de novo, ele comentou: “Eu nunca tinha ouvido falar em
nenhum desses lugares”.
“Há muita coisa a ser descoberta.”
Passados os efeitos da interrupção, ela disse: “Quer dizer que você perdeu sua fé”.
Adam pareceu se contorcer. “Sim, talvez. Não sei. Acho que tenho medo de dizer isso em voz alta. Realmente não sei onde estou. Quer dizer, o troço é que, quando
a gente se afasta um pouquinho das testemunhas de Jeová, talvez seja melhor sair de vez. Por que substituir um conto de fadas por outro?”
“Talvez todo mundo precise de contos de fadas.”
Ele lhe deu um sorriso benevolente. “Não acho que a senhora esteja dizendo isso pra valer.”
Fiona sucumbiu a seu hábito de resumir a opinião dos outros. “Você viu seus pais chorando e está confuso, pois suspeita que o amor deles por você é maior do que
a crença que têm em Deus ou na vida após a morte. Você precisa se afastar. Perfeitamente natural para alguém da sua idade. Talvez curse uma universidade. Isso vai
ajudar. Mas ainda não entendo o que está fazendo aqui. E, o que é mais importante, o que vai fazer agora. Para onde é que você vai?”
A segunda pergunta o perturbou mais. “Tenho uma tia em Birmingham. Irmã da minha mãe. Ela vai me receber por uma ou duas semanas.”
“Ela está te esperando?”
“Mais ou menos.”
Fiona estava prestes a obrigá-lo a enviar uma nova mensagem, quando ele estendeu a mão por cima da mesa, enquanto ela, com igual rapidez, recolheu a sua para o colo.
Adam não foi capaz de encará-la ou de ser olhado de frente quando voltou a falar. Pôs as mãos na testa como se protegesse os olhos da luz. “Tenho uma pergunta a
lhe fazer. Quando a senhora a ouvir vai achar que é uma idiotice. Mas, por favor, não a rejeite simplesmente. Diga por favor o que pensa sobre ela.”
“O que é?”
Ele se dirigiu ao tampo da mesa. “Quero ir morar com a senhora.”
Ela esperou por mais alguma coisa. Nunca poderia ter previsto tal pedido. Mas agora parecia óbvio.
Adam ainda era incapaz de olhá-la nos olhos. Falou depressa, como se envergonhado com sua própria voz. Ele havia pensado em tudo. “Eu podia ajudar a senhora a cuidar
da casa, prestar serviços na rua. E a senhora podia me dar livros para ler, sabe como é, tudo o que achar que eu preciso aprender...”
Ele a havia seguido por um bom pedaço do país, pelas ruas, atravessado uma tempestade para lhe pedir aquilo. Era uma extensão lógica de sua fantasia sobre uma longa
viagem marítima com ela, de falarem o dia todo caminhando no convés ao balanço das ondas. Lógica e insana. E inocente. O silêncio os envolveu e uniu. Até mesmo o
tilintar do aquecedor parecia ter se reduzido, nenhum som vinha do lado de fora. Ele continuou a proteger o rosto do olhar de Fiona. Ela contemplou o encaracolado
de seu cabelo escuro, jovem e saudável, agora totalmente seco e reluzente.
Fiona disse com suavidade: “Você sabe que isso não é possível”.
“Eu não ia atrapalhar, quer dizer, interferir com a senhora e seu marido.” Por fim, ele recolheu as mãos e olhou para ela. “A senhora sabe, como alguém que alugasse
um quarto. Quando eu terminar meus exames, posso arranjar um emprego e pagar algum aluguel.”
Ela viu o quarto de hóspedes e as duas camas de solteiro, os ursinhos e outros bichos de pelúcia na cesta de vime, o armário de brinquedos tão cheio que uma das
portas não fechava. Tossiu de repente e se pôs de pé, atravessando toda a sala até a janela para dar a impressão de que olhava com atenção para fora. Por fim, sem
se voltar, ela disse: “Só temos um quarto livre e uma porção de sobrinhos e sobrinhas”.
“Quer dizer que essa é sua única objeção?”
Ouviu-se uma batida na porta e Pauling entrou. “Estará aqui dentro de dois minutos, minha senhora”, ele disse e saiu.
Ela se afastou da janela e voltou a se aproximar de Adam, abaixando-se para pegar a mochila dele do chão.
“Meu assistente vai levá-lo de táxi até a estação e lhe comprar uma passagem com destino a Birmingham para amanhã de manhã; depois vai levá-lo para um hotel perto
de lá.”
Após uma pausa, ele se levantou devagar e pegou a mochila das mãos dela. Apesar de sua altura, parecia uma criança pequena em estado de choque.
“Então é isso?”
“Gostaria que me prometesse que vai entrar em contato outra vez com sua mãe antes de pegar o trem. Diga a ela para onde está indo.”
Adam não respondeu. Ela o conduziu à porta e os dois saíram para o corredor. Ninguém à vista. Caradoc Ball e seus convidados estavam instalados na sala de visitas
com as portas fechadas. Ela o deixou esperando na biblioteca e subiu ao quarto para pegar algum dinheiro na bolsa. Ao voltar, viu toda a cena de sua posição elevada
no topo da imponente escadaria. A porta da frente estava aberta e o mordomo falava com o motorista. Atrás dele, abaixo dos degraus do pórtico, estava o táxi, a porta
aberta para liberar os alegres e sinuosos acordes da música orquestral árabe. Seu assistente atravessava o vestíbulo às pressas, supostamente a fim de impedir que
o mordomo criasse algum problema. Quanto a Adam Henry, ele ainda continuava na biblioteca, abraçado à sua mochila. Quando Fiona se aproximou dele, o mordomo, o motorista
e o assistente estavam do lado de fora, no pátio de cascalho, conversando junto ao carro, segundo ela esperava, sobre um hotel apropriado.
O rapaz começou a dizer: “Mas nós nem...”, e ela levantou a mão para fazê-lo se calar.
“Você precisa ir.”
Ela segurou delicadamente a gola do blusão leve dele e o puxou para si. Pretendia lhe dar um beijo no rosto, mas, como ergueu o corpo e Adam se curvou um pouco,
seus rostos se aproximaram, ele girou a cabeça e os lábios deles se tocaram. Ela poderia ter recuado, ter dado um passo atrás, se afastando dele. Em vez disso, se
demorou, inerme diante daquele momento. A sensação de pele contra pele anulou qualquer possibilidade de escolha. Caso fosse possível dar um beijo casto na boca,
foi isso que ela fez. Um contato fugaz, porém mais do que a mera sugestão de um beijo, mais do que uma mãe daria no filho adulto. Durou dois segundos, quem sabe
três. Tempo suficiente para sentir, na maciez e elasticidade dos lábios dele, todos os anos, toda a vida que a separava de Adam. Ao se afastarem, uma leve adesão
de pele poderia tê-los atraído de volta. Mas soavam passos no cascalho e nos degraus de pedra, cada vez mais próximos. Ela largou a gola dele e repetiu: “Você precisa
ir”.
Adam apanhou a mochila, que havia deixado cair no chão, e seguiu-a através do vestíbulo até o lado de fora, onde foram recebidos pelo ar fresco da noite. Ao pé da
escada, o motorista fez uma saudação amistosa e abriu a porta traseira do carro. O rádio havia sido desligado. Ela tinha pensado em dar o dinheiro a Adam, mas, numa
súbita e gratuita mudança de ideia, o entregou a Pauling. Ele balançou a cabeça e forçou um leve sorriso ao pegar o rolinho de notas. Com um movimento brusco dos
ombros, Adam deu a impressão de se desvencilhar de todos e mergulhou no banco de trás, sentando-se com a mochila no colo e olhando para a frente. Já se arrependendo
do que havia posto em movimento, Fiona deu a volta no carro para trocar um último olhar com ele. Adam sem dúvida reparou em seu movimento, mas afastou o rosto. Pauling
se sentou na frente, ao lado do motorista. O mordomo fechou a porta de Adam, empurrando-a num gesto insolente com as costas da mão. Ombros encurvados, Fiona subiu
às pressas os degraus de pedra rachados enquanto o táxi se distanciava.
* Investigação pública conduzida por lorde Leveson em 2011 e 2012 acerca das práticas e da ética da imprensa britânica após o escândalo das escutas telefônicas feitas
pela News International. (N. T.)
5.
Ela partiu de Newcastle depois de uma semana, sentenças proferidas ou suspensas à espera de laudos técnicos, deixando para trás litigantes felizes ou amargurados,
alguns dos quais com o parco consolo de poderem recorrer. No caso que descrevera para Charlie no jantar, ela havia concedido a guarda aos avós e permitido visitas
semanais sob supervisão à mãe e ao pai, separadamente, tudo passível de revisão ao fim de seis meses. Até lá, quem quer que a substituísse teria a vantagem de receber
relatórios acerca do bem-estar das crianças, das promessas dos pais de frequentar um programa de tratamento de viciados em drogas e do estado mental da mãe. A menininha
continuaria em sua escola, um curso elementar organizado pela Igreja da Inglaterra, onde era bem conhecida. Fiona considerou exemplar, naquele caso, a conduta das
instituições de atendimento a menores da cidade.
No final da tarde de sexta-feira, ela disse adeus aos funcionários do tribunal. Na manhã de sábado, no Leadman Hall, Pauling encheu o porta-malas do carro com documentos
acondicionados em caixas de papelão e com as togas dela penduradas em cabides. As bagagens pessoais empilhadas no banco traseiro e a juíza instalada na frente, rumaram
para Oeste, na direção de Carlisle, passando pelo Tyne Gap e cruzando a Inglaterra de um lado a outro, as Cheviots à direita e as Pennines à esquerda. Mas os dramas
da geologia e da história eram embotados pelo tráfego, por seu volume, suas rotinas e pelas placas de sinalização rodoviária características das ilhas britânicas.
Enquanto atravessavam Hexham muito lentamente, Fiona mantinha o celular sem uso na mão e, como fizera durante vários interlúdios ao longo da semana, pensava no beijo.
Que loucura impulsiva não ter se afastado! Loucura profissional e social. Em suas recordações, o contato real, carne contra carne, tendia a se prolongar no tempo.
Ela então tentava encurtar o momento para que voltasse a ser um beijinho inocente nos lábios. Mas o beijinho logo voltava a se inflar, até ela não saber o que ele
era, o que havia acontecido ou por quanto tempo ela correra o risco de uma desgraça. Caradoc Ball poderia ter passado pelo corredor a qualquer momento. Pior ainda,
um de seus convidados, sem as peias da lealdade tribal, poderia tê-la visto e contado a todo mundo. Pauling poderia ter voltado depois de conversar com o motorista
de táxi e a apanhado em flagrante. Nesse caso, a distância sensatamente construída entre eles, que tornava possível seu trabalho, teria sido destruída.
Como não era dada a impulsos irrefletidos, Fiona não entendia seu próprio comportamento. Deu-se conta de que havia muito mais a confrontar em sua mistura de sentimentos
confusos, porém, no momento, era o horror do que podia ter ocorrido, a transgressão ridícula e vergonhosa da ética profissional, que ocupavam sua mente. A ignomínia
que poderia ter se abatido sobre ela. Difícil crer que ninguém a vira, que estava abandonando incólume a cena do crime. Mais fácil acreditar que a verdade, dura
e negra como uma semente amarga, estava prestes a ser revelada: que ela tinha sido observada sem saber. Que agora mesmo, a centenas de quilômetros de distância,
o caso estivesse sendo discutido em Londres. Que em breve ouviria no telefone a voz pouco à vontade de um colega mais antigo: Ah, Fiona, escute, sinto muito, mas
creio que preciso alertá-la de que, hã, de que surgiu um probleminha. E então, esperando por ela no apartamento da Gray’s Inn, uma carta formal do investigador do
departamento de reclamações judiciais.


CONTINUA
“Os pais se opõem à solicitação com base em sua fé religiosa, que é manifestada serenamente e fruto de profunda convicção. O filho deles também objeta e demonstra
boa compreensão dos princípios religiosos, possuindo considerável maturidade e capacidade de articulação verbal para a sua idade.”
Descreveu a seguir a evolução da enfermidade, a leucemia, o tratamento usual que em geral produzia bons resultados. Mas dois dos remédios comumente administrados
causavam anemia, que necessitava ser combatida mediante transfusões de sangue. Resumiu os argumentos do médico assistente, enfatizando a contagem declinante de hemoglobina
e os prognósticos sombrios caso isso não fosse revertido. Ela podia confirmar pessoalmente que a falta de ar de A era agora patente.
A contestação ao pedido se fundamentava em três argumentos principais. O primeiro era o de que, como lhe faltavam três meses para completar dezoito anos e ele era
muito inteligente, conhecendo as consequências de sua decisão, Adam devia ser tratado como possuidor da “competência de Gillick”. Em outras palavras, seria tão capaz
de ter suas decisões reconhecidas quanto qualquer adulto. Em segundo lugar, que a recusa de tratamento médico constituía um direito humano básico, razão por que
a corte deveria mostrar relutância em intervir. E que, por fim, a fé religiosa de A era genuína e devia ser respeitada.
Fiona abordou os seguintes pontos. Agradeceu ao advogado dos pais de A por ter chamado sua atenção para a seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: o consentimento
de uma pessoa de dezesseis anos “será tão eficaz como o seria se ele já houvesse alcançado a maioridade”. Listou as condições relativas à “competência de Gillick”,
citando Scarman no processo. Reconheceu a distinção entre a circunstância de uma criança competente com menos de dezesseis anos consentir num tratamento, possivelmente
contra a vontade dos pais, e de uma criança de menos de dezoito recusar um tratamento passível de salvar sua vida. Do que percebera naquela noite, estaria ela convencida
de que A tinha uma compreensão absoluta das implicações de serem aceitas sua vontade e a de seus pais?
“Ele é sem dúvida uma criança excepcional. Posso mesmo dizer, como o fez uma das enfermeiras hoje à noite, que se trata de um menino adorável, com o que certamente
concordam seus pais. Ele tem uma capacidade de compreensão excepcional para um jovem de dezessete anos. Mas creio que possui um entendimento limitado da provação
que deve confrontar, do pavor que o invadiria à medida que seu sofrimento e sua impotência aumentassem. Na verdade, ele tem uma noção romântica do que seja sofrer.
Entretanto...”
Deixou a palavra pendurada no ar, e o silêncio na sala se adensou enquanto ela passava os olhos pelas anotações.
“Entretanto, em última análise não me deixo influenciar pelo fato de que ele tenha ou não a compreensão absoluta de seu estado. Em vez disso, sou guiada pela decisão
do juiz Ward, como era chamado na época, com referência ao menor E, em julgamento que também envolveu um adolescente que pertencia às testemunhas de Jeová. Naquela
oportunidade, ele afirmou: ‘Assim, é o bem-estar da criança que preside a minha decisão, e cumpre a mim decidir o que dita o bem-estar de E’. Essa observação foi
cristalizada na clara prescrição da Lei da Criança de 1989, que garante nas duas primeiras linhas a primazia do bem-estar do menor. Entendo ‘bem-estar’ como englobando
‘felicidade’ e ‘interesses’. Também sou obrigada a levar em conta a vontade de A. Como já observei, ele a expressou claramente a mim, como o fez seu pai perante
esta corte. De acordo com as doutrinas de sua religião, derivadas de uma interpretação peculiar de três passagens da Bíblia, A se recusa a aceitar a transfusão de
sangue que provavelmente salvará sua vida.
“É um direito fundamental dos adultos recusarem qualquer tratamento médico. Tratar um adulto contra sua vontade significa cometer o crime de agressão. A está próximo
da idade em que pode tomar uma decisão por sua conta e risco. O fato de estar preparado para morrer por suas crenças religiosas demonstra quão profundas elas são.
O fato de que seus pais estão preparados para sacrificar um filho muito querido por causa de sua fé revela o poder da crença a que as testemunhas de Jeová obedecem.”
Mais uma vez ela parou e o público aguardou.
“É precisamente esse poder que me faz refletir, porque A, com seus dezessete anos, conheceu muito pouco fora do turbulento terreno das ideias religiosas e filosóficas.
Não faz parte dos métodos dessa seita cristã encorajar o debate aberto e a discordância na congregação, cujos membros são por eles chamados — de forma correta, alguém
poderia dizer — de ‘as outras ovelhas’. Não creio que a mente de A e suas opiniões lhe pertençam inteiramente. Durante toda a infância ele esteve exposto sem interrupção
a uma visão do mundo monocromática e poderosa, a cujo condicionamento não poderia escapar. Não promoverá seu bem-estar sofrer uma morte desnecessária e agonizante,
para assim se transformar num mártir de sua fé. As testemunhas de Jeová, como outras religiões, têm uma noção nítida do que nos aguarda após a morte, e as predições
deles sobre o fim dos dias, sua escatologia, são também rígidas e muito detalhadas. Este tribunal não tem opinião alguma sobre a vida no Além, que, de qualquer forma,
certo dia A descobrirá, ou deixará de descobrir, por conta própria. Até lá, presumindo uma boa recuperação, o bem-estar dele será mais bem servido por seu amor pela
poesia, por sua recém-descoberta paixão pelo violino, pelo aproveitamento de sua viva inteligência e pelas manifestações de uma natureza brincalhona e afetuosa,
por toda a vida e o amor que se abrem à sua frente. Em suma, entendo que A, seus pais e os anciãos da igreja tomaram uma decisão que é hostil ao bem-estar de A,
o qual constitui a principal consideração desta corte. Ele precisa ser protegido de tal decisão. Precisa ser protegido de sua religião e de si mesmo.
“Esta não foi uma questão simples de resolver. Ponderei cuidadosamente a idade de A, o respeito devido à sua fé e a dignidade do indivíduo contida no direito de
recusar tratamento. A meu juízo, sua vida é mais preciosa do que essa dignidade.
“Em consequência, nego a vontade de A e de seus pais. Minha ordem é que não seja necessário obter a concordância para a transfusão de sangue do primeiro e segundo
contestantes, que são os pais, e a concordância para a transfusão de sangue do terceiro contestante, que é o próprio A. Desse modo, o hospital demandante está legalmente
autorizado a aplicar em A os tratamentos médicos que julgue necessários, no entendimento de que podem administrar sangue e produtos dele derivados mediante transfusão.”
* * *
Eram quase onze da noite quando Fiona iniciou a caminhada para casa ao sair do tribunal. Àquela hora, os portões estavam trancados e não era possível cortar caminho
por dentro da Lincoln’s Inn. Antes de dobrar na Chancery Lane, ela desceu um pequeno trecho da Fleet Street para comprar uma refeição pronta numa loja de conveniência
que ficava aberta a noite inteira. Na noite anterior, isso teria sido uma missão deprimente, mas ela estava sentindo a cabeça leve, talvez porque não se alimentava
decentemente fazia dois dias. Na loja apertada e excessivamente iluminada, os alimentos com embalagens berrantes — vermelhos e roxos explosivos, amarelos de manchas
solares — pulsavam nas prateleiras em sintonia com seus batimentos cardíacos. Ela comprou uma torta de peixe congelada e examinou várias frutas antes de se decidir.
No caixa, atrapalhou-se com o dinheiro, deixando cair moedas no chão. O ágil rapaz asiático que trabalhava na máquina registradora impediu com o pé que as moedas
rolassem e, lhe dando um sorriso protetor, as pôs de volta na mão dela. Fiona se imaginou através dos olhos dele ao observar a expressão de grande cansaço dela,
ignorando ou sendo incapaz de apreciar o corte elegante do casaco e vendo apenas uma dessas velhotas inofensivas que viviam e comiam sozinhas, já um tanto incapazes,
andando pelas ruas tarde da noite.
Ela estava cantando “The Salley Gardens” com os lábios fechados enquanto seguia pela High Holborn. A sacola contendo as frutas e o sólido invólucro do jantar se
chocava agradavelmente contra sua perna. A torta seria aquecida no micro-ondas enquanto ela se preparava para ir se deitar, e a comeria já de camisola em frente
ao canal de notícias; depois disso, nada se interporia entre ela e o sono. Nenhum estímulo químico. No dia seguinte havia um divórcio de gente graúda — um guitarrista
famoso e uma esposa quase famosa, cantora de música romântica, com um excelente advogado e desejando abocanhar boa parte dos vinte e sete milhões de libras do marido.
Algodão-doce comparado com hoje, mas o interesse da imprensa seria igualmente intenso, a lei igualmente solene.
Dobrou na Gray’s Inn, seu santuário. Era sempre gostoso ver como o barulho do tráfego ia cessando à medida que caminhava. Uma comunidade fechada de certo valor histórico,
uma fortaleza de advogados e magistrados que também eram músicos, amantes do bom vinho, pseudoescritores, pescadores que usavam como iscas moscas artificiais, contadores
de histórias. Um ninho de fofocas e perícia profissional, além de um jardim delicioso ainda visitado pelo fantasma de Francis Bacon. Ela amava o lugar e não queria
sair dali nunca.
Entrou no prédio, verificou que a minuteria estava ligada, subiu até o segundo andar, ouviu o rangido costumeiro do quarto e sétimo degraus e, ao atingir o último
lance da escada, viu tudo e entendeu imediatamente. Seu marido estava lá, se levantando naquele momento com um livro na mão; atrás dele, a mala encostada à parede
havia servido como uma espécie de assento, tendo ao lado, no chão, o paletó junto à valise aberta de onde escapavam diversos papéis. Trancado do lado de fora, trabalhando
enquanto esperava. E por que não? Roupas amarrotadas, semblante irritado. Trancado do lado de fora e esperando fazia muito tempo. Sem dúvida não estava ali para
buscar camisas limpas e livros, não se trazia a mala. Seu primeiro pensamento, melancólico e egoísta, foi que agora teria de dividir o jantar calculado para uma
só pessoa. Então pensou que não seria necessário. Preferia não comer.
Subiu os últimos degraus até alcançar o patamar, sem dizer uma única palavra enquanto procurava na bolsa as chaves, as chaves novas, e o contornava a caminho da
porta. Ele que falasse primeiro.
O tom foi de queixume: “Telefonei a noite toda”.
Ela abriu a porta e entrou sem olhar para trás; deixou as compras na cozinha e parou. Seu coração batia forte demais. Ouviu a respiração mal-humorada dele ao trazer
a bagagem para dentro. Se era para haver uma confrontação, que ela não desejava, não agora, a cozinha era um espaço confinado demais. Pegou sua pasta e foi rapidamente
para a sala de visitas, ocupando seu lugar de sempre na chaise longue. Espalhar algumas páginas em volta de onde estava sentada era uma forma de proteção. Sem isso,
não saberia o que fazer de si.
O ruído da mala sendo arrastada pelo corredor e para dentro do quarto soou para ela como uma jogada de abertura. E um insulto. Pela força do hábito, tirou o sapato
e apanhou um documento ao acaso. O guitarrista tinha uma casa de alto padrão em Marbella. A crooner de canções românticas queria a casa. Mas, antes mesmo do casamento,
ele a adquirira da ex-mulher, dando em troca a casa da família no centro de Londres. E essa primeira esposa a havia ganho num acerto de divórcio com um ex-marido.
Irrelevante, Fiona não se furtou a declarar.
Um estalido no assoalho a fez olhar para cima. Jack parou na porta antes de preparar um drinque. Vestia uma calça jeans e uma camisa branca desabotoada no peito.
Será que se imaginava desejável? Reparou que ele não fizera a barba. Até mesmo do outro lado da sala os pelos pareciam grisalhos. Patético, ambos eram patéticos.
Ele se serviu de um uísque e levantou a garrafa na direção dela. Fiona disse não com a cabeça. Ele deu de ombros e atravessou a sala para se sentar em sua poltrona.
Ela era uma desmancha-prazeres, não sabia aproveitar o bom momento. Ele se acomodou com um suspiro de quem se sente em casa. A poltrona dele, a chaise longue dela,
outra vez a vida de casados. Ela olhou para a página em sua mão, a narrativa feita pela esposa do mundo desejável do guitarrista, impossível de absorver. Fez-se
silêncio enquanto ele bebia e ela olhava através da sala para nada em especial.
Então ele disse: “Olha, Fiona, eu te amo”.
Depois de alguns segundos, ela disse: “Prefiro que você durma no quarto de hóspedes”.
Ele baixou a cabeça em sinal de concordância. “Vou pegar minha mala.”
Jack não se levantou. Ambos conheciam a vitalidade do não dito, cujos espíritos invisíveis dançavam agora em volta deles. Ela não lhe dissera para se manter fora
do apartamento, aceitando tacitamente que ele podia dormir lá. Ele não lhe dissera ainda se a especialista em estatística o havia mandado embora, ou se ele tinha
mudado de opinião, ou se já havia experimentado um êxtase suficiente para durar até o túmulo. A mudança das fechaduras não fora comentada. Ele provavelmente achou
estranho Fiona ter chegado tão tarde. Ela mal suportava olhar para ele. O que se fazia necessário agora era uma briga, com vários capítulos se estendendo ao longo
do tempo. Talvez houvesse algumas digressões rancorosas, o arrependimento de Jack poderia vir embrulhado em reclamações, talvez demorasse meses até ela recebê-lo
na cama, o fantasma da outra mulher era capaz de pairar entre eles para sempre. Mas eles provavelmente encontrariam uma forma de recuperar, mais ou menos, o que
haviam tido antes.
A ideia do imenso esforço envolvido e da previsibilidade do processo a cansou ainda mais. No entanto, ela estava obrigada a segui-lo. Como se, por contrato, devesse
escrever um manual de direito enfadonho mas necessário. Achou que, afinal, gostaria de tomar um drinque, embora isso se parecesse demais com uma celebração. Estava
muito longe de uma reconciliação. Acima de tudo, não aguentaria ouvir outra vez que ele a amava. Queria estar sozinha na cama, de costas no escuro, mordiscando uma
fruta, deixando o resto cair no chão, até apagar de todo. O que a impedia de fazer isso? Ela se pôs de pé e começou a recolher seus documentos. Foi quando ele começou
a falar.
Foi uma torrente, em parte desculpas, em parte autojustificações, algumas das quais ela já ouvira. A mortalidade dele, os anos de total fidelidade, sua avassaladora
curiosidade de saber como seria, mas depois que saiu naquela noite, depois que chegou ao apartamento de Melanie, não demorou muito para se dar conta do erro. Ela
era uma estranha, ele não a entendia. E quando foram para o quarto dela...
Fiona levantou a mão em sinal de alerta. Não queria ouvir nada sobre o quarto. Ele fez uma pausa, refletiu, e continuou. Ele era um imbecil, ele percebeu, por se
deixar levar por uma necessidade sexual, quando deveria ter dado meia-volta naquela noite no momento em que ela abriu a porta, porém se sentiu envergonhado e obrigado
a ir adiante.
Apertando sua pasta contra o estômago, Fiona ficou no centro da sala observando-o, se perguntando como fazê-lo parar. Surpreendia-se que mesmo agora, com o dramalhão
conjugal em sua cena de abertura, a canção irlandesa continuasse girando em seu cérebro, o ritmo mais rápido para acompanhar o compasso da fala de Jack, soando ao
mesmo tempo mecânica e festiva como se tocada por um realejo de rua. Seus sentimentos eram confusos, obscurecidos pela fadiga e de difícil definição enquanto sobre
ela jorravam as palavras chorosas do marido. Sentiu nem tanto fúria ou um ressentimento amargo, conquanto algo mais que mera resignação.
Sim, disse Jack, ao chegar ao apartamento de Melanie ele se sentiu estupidamente obrigado a seguir em frente com o que começara. “E, quanto mais preso na armadilha
eu me sentia, mais me dava conta de como eu era um idiota por ameaçar tudo o que temos, tudo o que construímos juntos, este amor que...”
“Tive um dia longo”, ela disse ao atravessar a sala. “Vou pôr sua mala no corredor.”
Parou na cozinha para pegar uma maçã e uma banana em meio às compras postas sobre a mesa. Carregá-las no caminho para o quarto trouxe de volta a felicidade relativa
que sentira no trajeto entre o trabalho e a casa. Os primórdios de certa tranquilidade. Difícil de resgatar agora. Abriu a porta e viu a mala dele de pé sobre as
rodinhas, placidamente posta junto à cama. Então lhe ocorreu com clareza o que sentia com a volta de Jack. Tão simples. Era desapontamento por ele não ter continuado
longe. Só por mais algum tempo. Apenas isso. Desapontamento.
4.
Embora os fatos não o confirmassem, ela teve a impressão de que, no final do verão de 2012, os rompimentos e as crises conjugais ou crises entre parceiros na Grã-Bretanha
cresceram como uma maré aberrante de primavera, varrendo lares do mapa, espalhando bens e sonhos esperançosos, afogando quem não tinha um forte instinto de sobrevivência.
Promessas de amor foram negadas ou reformuladas, bons companheiros se transformaram em ardilosos combatentes escudados atrás de advogados, sem se importar com os
custos. Objetos da casa antes desdenhados eram motivo de amargas disputas, a tranquila confiança de outrora substituída por “acertos” redigidos com todo o cuidado.
Na mente dos envolvidos, a história do casamento era reescrita para que ele fosse visto como fadado ao insucesso desde o começo, o amor repaginado como mera ilusão.
E os filhos? Peças de um jogo, elementos de barganha a serem usados pelas mães; pretexto para acusações de abusos feitas em geral pelas mães, às vezes pelos pais,
embora fossem com frequência fantasiosas ou inventadas com todo o cinismo; crianças em estado de choque indo e vindo semanalmente de uma casa para a outra com base
em acordos de guarda compartilhada, o esquecimento de casacos e caixas de lápis sendo comunicado por meio de advogados; crianças condenadas a verem o pai uma ou
duas vezes por mês; ou nunca, pois os homens mais audaciosos desapareciam na oficina de ferreiro de um novo e quente matrimônio para forjar outros rebentos.
E o dinheiro? As novas moedas eram as meias verdades e os apelos especiais. Maridos gananciosos contra esposas gananciosas, manobrando como nações ao final de uma
guerra, tentando salvar das ruínas todos os despojos que podiam antes da retirada final. Homens ocultavam recursos em contas no exterior, mulheres exigiam para sempre
uma vida de conforto. Mães impediam crianças de ver os pais apesar de ordens judiciais; pais se negavam a oferecer sustento aos filhos apesar de ordens judiciais.
Maridos agrediam esposas e filhos, esposas mentiam ou maquinavam ardis, um ou outro, ou ambos, bêbados, viciados em drogas ou psicóticos; e crianças eram obrigadas
a tomar conta de pais incapazes, crianças de fato vítimas de abusos sexuais ou mentais, ou ambos, seus depoimentos transmitidos numa tela ao tribunal. E já fora
da área de competência de Fiona, em casos julgados pelas cortes criminais e não pelas varas de família, crianças torturadas, mortas de fome ou por espancamento,
espíritos maus arrancados de dentro delas em ritos animistas, padrastos jovens e cruéis quebrando ossos de bebês sob os olhares abobalhados e cúmplices das mães,
e drogas, álcool, sujeira doméstica extrema, vizinhos indiferentes e seletivamente surdos para não ouvir os gritos, assistentes sociais descuidados ou atarefados
demais para intervir.
O trabalho das varas de família não cessava. Era por simples acaso que tantos conflitos conjugais caíssem no colo de Fiona. Pura coincidência que ela própria estivesse
vivendo um conflito similar. Naquele setor do Judiciário, não era comum mandar gente para a cadeia, mas, apesar disso, em certos momentos ela tinha vontade de ordenar
que fossem encarcerados aqueles demandantes que, à custa dos filhos, desejavam uma mulher mais jovem, um marido mais rico ou menos enfadonho, um bairro mais elegante,
novas aventuras sexuais, novos amores, uma nova visão do mundo, um bom reinício antes que fosse tarde demais. A simples busca do prazer. Vulgaridade moral. Sua falta
de filhos e a situação com Jack davam forma a esses devaneios e, naturalmente, eles não eram para valer. Entretanto, embora mergulhasse bem fundo em seu reino mental,
ela nunca deixava que suas decisões fossem afetadas pelo desprezo puritano que devotava aos homens e às mulheres que destruíam sua família e se persuadiam de que
agiam altruisticamente pelo bem de todos. Nesses experimentos intelectuais, ela não teria poupado as pessoas sem filhos ou, pelo menos, não Jack. Um período de contrição
atrás das grades por contaminar o casamento deles em nome de uma novidade? Por que não?
Porque, depois do retorno dele, a vida no apartamento da Gray’s Inn era lúgubre e silenciosa. Tinha havido brigas durante as quais ela pusera para fora alguns sentimentos
amargos. Doze horas depois esses sentimentos se renovavam tão ardentemente quanto os votos matrimoniais, nada mudava, o ar não ficava mais “limpo”. Ela permanecia
traída. Ele apimentava suas desculpas com velhas recordações de que ela o isolara, de que era fria. Disse até, certa noite bem tarde, que ela era “uma chata” e havia
“perdido a arte de sentir prazer”. De todas as acusações, essas foram as que mais a incomodaram, porque ela percebia serem verdadeiras, o que em nada diminuiu sua
raiva.
Pelo menos ele deixara de dizer que a amava. Na troca de palavras mais recente, dez dias antes, fora reiterado tudo o que haviam se dito antes, todas as recriminações,
todas as defesas, todas as frases bem formuladas que eram fruto de uma longa elucubração prévia, até que depuseram as armas, cansados um do outro e de si próprios.
Desde então, nada. Moviam-se o dia todo, cada qual cuidando de seus afazeres em diferentes partes da cidade e, quando confinados no apartamento, evitavam cuidadosamente
se tocar, como dançarinos numa quadrilha. Eram sucintos e competiam em matéria de cortesia quando forçados a decidir sobre questões referentes à casa, buscavam não
comer juntos, trabalhavam em cômodos separados, com a atenção prejudicada pela vívida consciência, através das paredes, da presença radioativa do outro. Sem necessidade
de discuti-lo, declinavam todos os convites conjuntos. O único gesto conciliatório dela consistiu em lhe dar uma nova chave.
De comentários evasivos e taciturnos dele, ela deduziu que, no quarto da especialista em estatística, Jack não transpusera os portões do paraíso. O que não era tão
tranquilizador. Ele provavelmente iria tentar a sorte em outro lugar, talvez já estivesse tentando, desta vez livre das tristes amarras da honestidade. Suas “aulas
de geologia” poderiam ser um bom subterfúgio. Ela se lembrava de haver prometido abandoná-lo se ele fosse em frente com Melanie. Mas Fiona não tinha tempo para desfazer
aquele complexo nó. E ainda estava indecisa, não confiava em seu atual estado de espírito. Caso ele houvesse lhe dado mais tempo depois de sair de casa, ela teria
chegado a uma decisão clara e se empenhado em terminar o casamento ou reconstruí-lo. Por isso, se entregou ao trabalho na forma usual e resolveu sobreviver dia após
dia o drama agora serenado de sua vida com Jack.
Quando uma de suas sobrinhas deixou lá as filhas durante um fim de semana, gêmeas idênticas de oito anos, as coisas ficaram mais fáceis, o apartamento ficou maior,
porque as atenções se voltaram para fora. Por duas noites Jack dormiu no sofá da sala de visitas sem que as meninas fizessem perguntas. Pertenciam a um tipo antiquado
de crianças que mantinham as costas bem retas, com modos solenes e afetuosos, embora sujeitas a brigas repentinas e explosivas. Uma ou outra — era fácil distinguir
as duas — procurava Fiona onde ela estivesse lendo e, postada diante dela, descansando uma mão confiante em seu joelho, despejava uma torrente prateada de historinhas,
reflexões e fantasias. Fiona replicava com suas próprias historinhas. Duas vezes, durante aquela visita, aconteceu que, enquanto ela falava, uma onda de amor pela
menina contraiu sua garganta e marejou seus olhos. Ela estava se sentindo velha e tola. Incomodava-a relembrar como Jack era bom com as crianças. Correndo o risco
de ter uma crise de coluna, como aconteceu certa vez com os três filhos do irmão de Fiona, ele fazia brincadeiras pesadas, de que as meninas participavam com acessos
de gritos inumanos. Em casa, a mãe delas, ressentida por causa do divórcio, jamais as jogava para o alto de cabeça para baixo. Ele as levou aos jardins para ensinar
uma versão de críquete que tinha inventado, além de ler uma longa história para elas na cama com vibrante energia cômica e talento na imitação das vozes.
Mas um domingo à noite, depois que as gêmeas foram levadas, os aposentos se encolheram, o ar ficou pesado e Jack saiu sem dar explicações — sem dúvida um ato hostil.
Para um encontro amoroso, ela imaginou, enquanto se ocupava arrumando o quarto de hóspedes para impedir que seu moral baixasse ainda mais. Repondo os brinquedos
macios na cesta de vime onde residiam, recuperando as contas de vidro e os desenhos rejeitados debaixo da cama, ela sentiu a melancolia mansa e envolvente, uma forma
de nostalgia instantânea, que a ausência repentina de crianças pode causar. Aquele sentimento durou até a manhã de segunda-feira e cresceu até se transformar numa
tristeza generalizada, que a perseguiu na caminhada para o trabalho. Só começou a se dissipar quando ela se sentou à sua mesa a fim de se preparar para o primeiro
caso da semana.
Em algum momento Nigel Pauling deve ter trazido a correspondência, porque a pilha de cartas se encontrava subitamente perto de seu cotovelo. Vendo o pequeno envelope
azul-claro em cima de todos, ela quase chamou seu assistente para abri-lo. Não estava com vontade de ler mais uma profusão de agressões verbais de algum analfabeto
ou ameaças de violência. Voltou ao trabalho, mas não conseguiu se concentrar. O envelope absurdo, as letras arredondadas, a falta de um código postal, o selo ligeiramente
torto — era demais. Mas, olhando uma vez mais, ela reparou no carimbo postal e foi tomada por uma repentina suspeita. Sopesou a carta por um instante e a abriu.
No momento seguinte, viu pela saudação que estava certa. Tinha aguardado vagamente por aquilo durante semanas. Havia falado com Marina Greene e soubera que ele estava
progredindo bem, já fora do hospital, recuperando em casa o tempo de estudos perdido e esperando voltar à sala de aulas em breve.
Três páginas azul-claras, escritas em cinco lados. O primeiro tinha o número sete dentro de um círculo posto no centro e no alto da página. Acima da data.
Meritíssima!
Esta é minha sétima carta e acho que vai ser a que porei no correio.
As primeiras palavras do parágrafo seguinte tinham sido riscadas.
Vai ser a mais simples e a mais curta. Só quero lhe descrever um acontecimento. Entendo agora como ele foi importante. Mudou tudo. Estou feliz por ter esperado porque
não gostaria que a senhora visse as outras cartas. Muito embaraçosas! Mas não tão terríveis como os nomes que lhe chamei quando Donna me anunciou sua decisão. Eu
estava certo de que a senhora tinha visto as coisas do meu jeito. Na verdade, guardei perfeitamente o que me disse, que era óbvio que eu sabia o que queria, e lembro
que lhe agradeci. Eu ainda estava tendo um ataque de raiva e xingando quando aquele horrível médico assistente, o dr. “me chama de Rodney” Carter, entrou com meia
dúzia de pessoas e o equipamento. Eles pensaram que iam precisar me segurar. Mas eu estava fraco demais e, mesmo furioso, sabia o que a senhora queria que eu fizesse.
Por isso, estendi o braço e eles começaram. A ideia de que o sangue de alguém entrava no meu corpo foi tão nojenta que vomitei na cama.
Mas não é isso que quero lhe contar. É o seguinte. Como mamãe não conseguiu assistir, ela ficou sentada do lado de fora do quarto e eu ouvia seu choro, o que me
deixou muito triste. Não sei quando papai apareceu. Acho que fiquei desmaiado algum tempo e, quando retomei os sentidos, os dois estavam ao lado da minha cama —
ambos chorando, e me senti ainda mais triste porque todos nós estávamos desobedecendo a Deus. Mas o importante, e levei algum tempo para entender isto, é que eles
estavam chorando de ALEGRIA! Estavam muito felizes, me abraçando e se abraçando, agradecendo a Deus e soluçando. Eu me senti muito esquisito e não entendi nada por
um ou dois dias. Nem pensava naquilo. Então comecei a pensar. Meus pais seguiram os ensinamentos, obedeceram aos anciãos, fizeram tudo certo e podem esperar ser
aceitos no paraíso aqui na Terra — e ao mesmo tempo podem me ter vivo sem que nenhum de nós seja expulso da Igreja. Transfusão feita, mas não por culpa nossa! Culpa
da juíza, culpa do sistema sem fé, culpa do que às vezes chamamos de “mundo”. Que alívio! Ainda temos nosso filho embora tivéssemos dito que ele devia morrer.
Não sei como interpretar isto. Foi uma fraude? Para mim foi uma mudança de direção. Estou resumindo a história. Quando eles me trouxeram para casa, tirei a Bíblia
do meu quarto, simbolicamente a botei virada para baixo numa cadeira do corredor e disse que eu não ia mais voltar ao Salão do Reino, que podiam me expulsar da igreja
se quisessem. Tivemos umas brigas horríveis. O sr. Crosby tem vindo me convencer. Nenhuma chance. Estou escrevendo para a senhora porque preciso mesmo falar com
a senhora, preciso ouvir sua voz calma e aproveitar sua mente clara para discutir comigo este assunto. Sinto que a senhora me levou para perto de alguma outra coisa,
alguma coisa de fato bonita e profunda, mas não sei bem o que é. A senhora nunca me disse no que acreditava, mas adorei quando sentou ao meu lado e executamos “The
Salley Gardens”. Ainda leio o poema todos os dias. Gosto de ser “jovem e tolo”, e, se não fosse pela senhora, eu não seria nem uma coisa nem outra, eu estaria morto!
Eu lhe escrevi uma porção de cartas bobas, penso na senhora o tempo todo e quero mesmo ver a senhora para nos falarmos outra vez. Sonho acordado sobre nós, fantasias
maravilhosas e impossíveis, como a de que vamos fazer uma viagem de volta ao mundo juntos num navio, em camarotes vizinhos, e que passeamos o dia todo pelo convés
conversando.
Meritíssima, me escreva por favor, apenas algumas palavras para dizer que leu esta carta e que não me odeia por tê-la escrito.
Sempre seu,
Adam Henry
P.S.: Esqueci de dizer que estou ficando cada dia mais forte.
Ela não respondeu, ou melhor, não pôs no correio o bilhete que levou mais de uma hora para escrever naquela noite. No quarto e último rascunho, pensou ter sido bastante
afetuosa, feliz de sabê-lo em casa e se sentindo melhor, contente por ele ter boas recordações da visita dela. Aconselhou-o a ser carinhoso com os pais. Era normal,
como adolescente, questionar as crenças com que havíamos sido criados, mas isso devia ser feito de modo respeitoso. Terminou dizendo, embora não fosse verdade, que
havia ficado atraída pela ideia de uma volta ao mundo num navio. Acrescentou que, quando jovem, tinha sonhos de fuga como o dele. Isso também não era verdade, pois
ela havia sido ambiciosa demais, mesmo com dezesseis anos, ávida demais por boas notas nos exames para pensar em escapar. As visitas como adolescente a seus primos
de Newcastle foram suas únicas aventuras. Olhando a cartinha no dia seguinte, não foi a afetuosidade que a impressionou, e sim a frieza, os conselhos esfarrapados,
a linguagem impessoal, as falsas lembranças. Releu a carta dele e foi mais uma vez tocada por sua inocência e calor humano. Melhor não mandar nada do que decepcioná-lo.
Se mudasse de opinião, poderia escrever mais tarde.
Estava se aproximando o momento em que realizaria o circuito itinerante, visitando cidades inglesas e antigos vilarejos na companhia de outro juiz especializado
em direito criminal e cível. Ela julgaria casos que, de outra forma, precisariam ser transferidos para os tribunais de Londres. Ela ficaria hospedada em locais especialmente
bem preservados, mansões impressionantes de interesse histórico e arquitetônico onde, em certos casos, as adegas eram lendárias e as cozinheiras provavelmente decentes.
As autoridades do lugar costumavam convidá-la para jantar. Ela e seu colega retribuiriam a gentileza nas casas onde estivessem instalados, convidando figuras eminentes
ou interessantes (havia uma clara distinção entre as duas categorias) da localidade. Os quartos de dormir eram bem mais sofisticados que o seu, as camas mais largas,
os lençóis de tecido mais fino. Em tempos mais felizes, havia, para uma mulher bem casada, um elemento de culpa e prazer sensual naquelas acomodações a sós. Agora,
ela ansiava escapar do silencioso e solene pas de deux em casa. E a primeira parada era sua cidade inglesa predileta.
Certa manhã no começo de setembro, uma semana antes de iniciar a viagem, ela recebeu uma segunda carta. Mesmo antes de lê-la sua preocupação desta vez foi maior,
porque o envelope azul se encontrava sobre o capacho do vestíbulo de seu apartamento, em meio a circulares e a uma conta de luz. Nenhum endereço, só o nome dela.
Bem simples para Adam Henry esperar no Strand ou na Carey Street e segui-la à distância.
Jack já tinha saído para o trabalho. Ela levou a carta para a cozinha e se sentou diante dos restos do café da manhã.
Meritíssima,
Nem sei o que escrevi porque não guardei uma cópia, mas tudo bem que a senhora não tenha respondido. Ainda preciso conversar com a senhora. Aqui estão minhas notícias
— grandes brigas com meus pais, fantástico estar de volta à escola, me sentindo melhor, me sentindo feliz e depois infeliz e feliz outra vez. Às vezes a ideia do
sangue de um estranho dentro de mim me causa enjoo, como se eu tivesse bebido a saliva de alguém. Ou pior. Não posso me livrar da ideia de que a transfusão é uma
coisa errada, mas não me importo mais. Tenho tantas perguntas para a senhora, mas nem tenho certeza de que se lembra de mim. A senhora deve ter tido dezenas de casos
desde o meu e feito um bocado de escolhas sobre outras pessoas. Sinto ciúme! Quis conversar com a senhora na rua, chegar perto e tocar no seu ombro. Não fiz isso
porque sou um covarde. Achei que a senhora podia não me reconhecer. A senhora também não precisa responder a esta carta — o que significa que espero que responda.
Por favor, não se preocupe, não quero atormentá-la ou nada parecido. Só sinto que a tampa da minha cabeça explodiu. Está saindo tudo!
Sinceramente seu,
Adam Henry
Fiona mandou imediatamente um e-mail para Marina Greene perguntando se ela podia encontrar um tempinho para visitar o rapaz num acompanhamento de rotina e depois
lhe enviar um relatório. Recebeu o retorno antes do fim do dia. Marina se encontrara com Adam durante a tarde na escola, onde ele estava começando um período de
estudos especiais a fim de se preparar para os exames antes do Natal. Ficou meia hora com ele, que havia engordado e estava corado. Mostrou-se animado, até mesmo
“engraçado e travesso”. Havia alguns problemas em casa, a maior parte sobre diferenças religiosas com os pais, mas ela não achou nada de estranho nisso. Em particular,
o diretor lhe disse que Adam, depois de voltar do hospital, havia trabalhado bastante para recuperar o tempo perdido. Seus professores consideravam que ele estava
progredindo otimamente. Contribuía bastante para as atividades em sala de aula, nenhum problema de comportamento. Em suma, tudo corria bem. Tranquilizada, Fiona
decidiu não escrever para ele.
Uma semana depois, na manhã da segunda-feira em que deveria viajar para o nordeste da Inglaterra, ocorreu um desvio minúsculo na falha geológica conjugal, um movimento
quase tão imperceptível quanto o deslocamento das placas tectônicas. Foi tácito, algo não reconhecido abertamente. Mais tarde, quando se encontrava no trem e repassou
tudo, o instante pareceu se situar na fronteira entre o real e o imaginado. Será que ela podia confiar em sua memória? Eram sete e meia quando entrara na cozinha.
Jack estava de pé junto ao balcão, de costas para ela, despejando grãos de café no moedor. A pasta dela já estava no corredor e Fiona cuidava de recolher uns poucos
documentos que faltavam. Como de hábito, ficou relutante em dividir um espaço pequeno com ele. Pegou a echarpe das costas da cadeira e saiu para continuar a busca
na sala de visitas.
Voltou alguns minutos depois. Jack tirava uma jarra de leite do micro-ondas. Eles eram exigentes em matéria de café da manhã e, no curso dos anos, seus gostos tinham
convergido. Gostavam de café forte feito com grãos colombianos de alta qualidade, servido em canecas brancas e altas de borda fina, com leite morno, e não quente.
Ainda de costas para ela, Jack derramou leite em seu café e depois se voltou com a caneca erguida e ligeiramente estendida na direção dela. Nada na expressão de
Jack sugeria que ele estava lhe oferecendo a caneca, e ela nem assentiu nem recusou com a cabeça. Os olhos dos dois se encontraram por um instante, e então ele depositou
a caneca na mesa de pinho e empurrou-a uns cinco centímetros na direção dela. Isso não significava necessariamente muito, pois, em suas tensas manobras para se evitar,
ambos permaneciam escrupulosamente corteses, como se cada qual estivesse procurando superar o outro em se mostrar razoável, os dois irrepreensíveis graças à ausência
de rancor. Não faria sentido preparar um bule de café só para uma pessoa. Mas há maneiras e maneiras de pôr uma caneca na mesa, desde a batidinha peremptória da
porcelana contra a madeira até o pouso silencioso e cuidadoso, assim como há maneiras e maneiras de aceitar uma caneca, coisa que ela fez mansamente, em câmera lenta,
sem se afastar tão logo tomou um gole, ou não tão de imediato quanto o teria feito em qualquer outra manhã. Passaram-se alguns segundos de silêncio, em seguida pareceu
que isso era o mais longe que ambos estavam preparados para ir, que o momento continha coisas demais para eles e que tentar algo além os faria recuar. Jack se afastou
a fim de preparar uma caneca para ele, enquanto Fiona se afastou para ir buscar alguma coisa no quarto. Moveram-se um pouco mais devagar do que era comum, talvez
quase com relutância.
No começo da tarde, ela chegou a Newcastle. Um motorista esperava do lado de lá das catracas para levá-la aos tribunais de Quayside. Nigel Pauling a aguardava na
entrada dos magistrados e a conduziu ao gabinete que ela ocuparia. Ele chegara de Londres de manhã com os documentos e as togas — os paramentos completos, como disse
—, porque Fiona participaria da Corte da Rainha além da Vara da Família. O assistente do tribunal apareceu para dar as boas-vindas formais, seguido do funcionário
que cuidava da agenda, com o qual ela repassou os casos a serem ouvidos nos dias seguintes.
Como havia outras pequenas matérias a tratar, só por volta das quatro da tarde Fiona ficou livre para sair. A previsão era de que uma tempestade de verão chegaria
do sudoeste no começo da noite. Ela mandou que o motorista esperasse e deu uma caminhada pelo calçadão junto ao rio, passando por baixo da ponte Tyne e ao longo
de Sandhill, pelos novos cafés ao ar livre e por jardins floridos junto a sólidos prédios comerciais com fachadas clássicas. Subiu as escadas até Castle Garth e
parou no alto para olhar o rio que ficara para trás. Ela tinha uma queda por aquela mistura exuberante de peças poderosas de ferro fundido, aço e vidro pós-industrial,
de velhos armazéns salvos da decrepitude por uma fantasia juvenil de cafés e bares. Compartilhava um passado com Newcastle e se sentia bem lá. Na adolescência, durante
as recorrentes doenças de sua mãe, ia passar algum tempo ali com suas primas prediletas. Tio Fred, dentista, era o homem mais rico que ela conhecia. Tia Simone ensinava
francês numa escola primária. A casa era agradavelmente caótica, uma libertação dos domínios de sua mãe em Finchley, encerados ao exagero e insuficientemente arejados.
As primas, de sua idade, eram alegres e aventurosas, obrigando-a a sair à noite em missões aterradoras que incluíam a ingestão de bebidas e quatro músicos dedicados
com cabelos até a cintura e bigodes de pontas caídas, que pareciam transviados mas provaram ser gente boa. Seus pais ficariam horrorizados de saber que a filha estudiosa
de dezesseis anos era presença assídua em certos bares, que bebia licor de cereja e cuba-libre, e tivera seu primeiro amante. E, juntamente com as primas, ela era
a tiete fiel, e tolerada como assistente novata, de uma banda de blues mal equipada e mal remunerada, ajudando a carregar amplificadores e peças da bateria numa
caminhonete enferrujada que vivia enguiçando. Com frequência afinava as guitarras. Sua emancipação tinha muito a ver com o fato de que aquelas visitas, além de ocasionais,
nunca duravam mais que três semanas. Se permanecesse por mais tempo — nunca uma possibilidade real —, talvez fosse até autorizada a cantar os blues. Poderia ter
se casado com Keith, o principal cantor do grupo e tocador de gaita, que tinha um braço atrofiado e a quem ela adorava timidamente.
Tio Fred mudou seu consultório para o sul do país quando ela tinha dezoito anos, o caso com Keith acabou em lágrimas e em alguns poemas de amor que ela não enviou.
Fiona jamais voltou a viver esse tipo de relacionamento arriscado e tremendamente divertido, o qual se tornou parte inseparável da ideia que fazia de Newcastle.
Não seria possível reproduzi-lo em Londres, a sede de suas ambições profissionais. Por vários anos ela voltara ao Nordeste sob diversos pretextos, além de quatro
vezes para cumprir o circuito judiciário. Sempre fazia bem ao seu espírito se aproximar da cidade pela alta ponte Stephenson sobre o rio Tyne, chegando com o espírito
excitado de uma adolescente, descendo do trem na gare central sob os três grandes arcos criados por John Dobson e saindo pela extravagante porte cochère neoclássica
desenhada por Thomas Prosser. Foi seu tio dentista, recebendo-a com seu Jaguar verde e suas primas impacientes, quem a ensinou a apreciar a gare e os tesouros arquitetônicos
da cidade. Ela nunca se desfizera da impressão de estar no exterior, de se encontrar numa cidade-Estado báltica caracterizada por um curioso otimismo e orgulho.
O ar era mais revigorante, a luz de um cinzento amplo e luminescente, os habitantes amistosos, porém mais incisivos, autoconscientes ou ironizando a si próprios
como atores numa comédia. Perto do sotaque deles, o dela parecia tenso e artificial. Se, como Jack insistia, a geologia moldava a variedade de tipos e de destinos
dos ingleses, então os moradores da cidade eram feitos de granito e ela de calcário friável. Mas, com sua paixonite juvenil pela cidade, com suas primas, a banda
e o primeiro namorado, acreditava que poderia mudar, se tornar mais autêntica, mais verdadeira, uma genuína cidadã daquela região. Anos depois, recordar-se de tal
ambição ainda a fazia sorrir. No entanto, o sentimento lá estava em cada regresso, uma vaga noção de renovação, de um potencial não explorado em outra vida — e isso
mesmo às vésperas de fazer sessenta anos.
O carro em cujo assento ela se reclinou era um Bentley da década de 1960, e seu destino o Leadman Hall, situado dentro de seu próprio parque a um quilômetro e meio
dos portões que ela agora transpunha. Logo passou por um campo de críquete, depois por uma alameda de faias com as copas já agitadas pelo vento que crescia, mais
tarde por um lago tomado por plantas aquáticas. O palacete, no estilo do arquiteto Andrea Palladio e havia pouco tempo pintado de um branco brilhante demais, tinha
doze quartos e nove empregados para servir a dois magistrados do Tribunal Superior em seu circuito itinerante. Pevsner, conhecido historiador da arte arquitetônica,
aprovara sem grande entusiasmo a estufa, e nada mais. Somente uma anomalia burocrática havia preservado Leadman de ser destruído por medida de economia do governo,
mas o jogo estava chegando ao fim porque aquele era o último ano em que a construção iria contar com o Judiciário. O palacete, alugado algumas semanas por ano de
uma família da região com interesses históricos na mineração de carvão, servia principalmente como centro de conferências e local para festas de casamento. Seu campo
de golfe, quadras de tênis e piscina externa aquecida eram, como agora se reconhecia, luxos desnecessários para juízes de passagem e muito atarefados. Do ano seguinte
em diante, uma empresa de táxi da cidade forneceria um espaçoso Vauxhall para substituir o Bentley. As acomodações seriam num hotel do centro de Newcastle. Os magistrados
da Vara Criminal, que às vezes mandavam para a prisão por longos períodos homens da região com parentes assustadores, tinham clara preferência pelo isolamento de
um palacete. Mas ninguém era capaz de argumentar em favor de Leadman sem dar a impressão de que o fazia por puro interesse.
Pauling esperava com a governanta no pátio de cascalho junto à entrada principal. Ele desejava dar um sentido especial àquela derradeira visita. Aproximou-se da
porta de trás do carro com um floreio irônico e bateu os calcanhares. Como sempre, a governanta era nova, uma polonesa de uns vinte e poucos anos, calculou Fiona,
mas seu olhar era direto e frio, e ela pegou com firmeza a mala mais pesada da juíza até que Pauling a tomou de sua mão. Lado a lado, o assistente e a governanta
conduziram Fiona ao quarto do primeiro andar que ela considerava como seu. Ficava na frente da casa, com três janelas altas que davam para a alameda de faias e para
o trecho do lago invadido por ervas. Além do quarto de quase dez metros de comprimento, havia a sala de estar com uma mesa de trabalho. O banheiro, no entanto, ficava
no fim de um corredor e três degraus atapetados abaixo do nível do quarto. Na última vez em que Leadman tinha sido modernizado, a proliferação generalizada de lavatórios
e chuveiros ainda não começara.
A tempestade chegou quando Fiona saiu do banho. Vestida com um penhoar, plantou-se diante da janela central observando as pancadas de chuva, cortinas fantasmagóricas
que corriam velozes e, por segundos, ocultavam os campos. Viu o galho mais alto de uma das faias próximas se partir e começar a cair, ficando de cabeça para baixo
e balançando ao ser contido pelos galhos mais baixos, até mergulhar de novo, voltar a se emaranhar e ser enfim liberado pelo vento para se chocar com um baque contra
o solo. Quase tão alto quanto o silvar da chuva no cascalho era o coro de gemidos nas calhas do telhado. Ela acendeu as luzes e começou a se vestir. Já estava atrasada
dez minutos para o xerez na sala de visitas.
Quatro homens de terno preto e gravata, cada qual com seu gim e sua tônica, pararam de conversar e se ergueram das poltronas quando ela entrou. Um garçom de paletó
branco engomado foi preparar o drinque dela, enquanto Caradoc Ball da Corte da Rainha, colega de Fiona encarregado dos casos criminais, apresentou-a aos demais —
um professor de jurisprudência, um homem que tinha negócios no setor de fibras ópticas e alguém que trabalhava para o governo na conservação da costa marítima. Todos
de alguma forma eram ligados a Ball. Ela não convidara ninguém para a primeira noite. Seguiu-se a conversa obrigatória sobre o clima tempestuoso. Depois, uma digressão
sobre como as pessoas de mais de cinquenta anos e todos os norte-americanos ainda viviam no mundo das temperaturas medidas em Fahrenheit. Depois, como os jornais
britânicos, para obter o máximo de impacto, noticiavam as baixas temperaturas em graus Celsius e as quentes em Fahrenheit. Durante todo o tempo ela se perguntava
por que o rapaz curvado sobre o carrinho de bebidas estava demorando tanto. Ele trouxe o drinque dela justamente quando estava sendo lembrada a já distante transição
para as moedas decimais.
Fiona já sabia pelo próprio Ball que ele estava em Newcastle para realizar o novo julgamento de um caso de assassinato no qual um homem era acusado de haver matado
sua mãe em casa com golpes de porrete devido aos maus-tratos que ela infligia à filha mais jovem, meia-irmã do réu. A arma do crime não tinha sido encontrada e a
prova de DNA era inconclusiva. A defesa argumentava que a mulher havia sido morta por um intruso. O julgamento fora anulado quando se descobriu que um jurado tinha
revelado aos outros membros do júri informações que colhera na internet pelo celular. Ele encontrara a reportagem de um jornal sensacionalista, publicada cinco anos
antes, sobre a prévia condenação do homem por agressão violenta. Na nova era de acesso digital, alguma coisa precisava ser feita para “esclarecer” certas questões
aos jurados. O professor de jurisprudência havia pouco tempo apresentara um estudo à Comissão Jurídica, possivelmente objeto da conversa que Fiona interrompera ao
entrar na sala. Agora ela foi retomada. O especialista em fibras ópticas perguntou como seria possível impedir que os jurados buscassem informações na privacidade
de suas casas ou conseguissem que um membro da família o fizesse por eles. Relativamente simples, segundo o professor. Os próprios jurados se policiariam. Seriam
obrigados, sob pena de prisão, a apontar qualquer um deles que discutisse matérias não apresentadas perante o tribunal. Dois anos no máximo pela divulgação de tais
matérias, seis meses no máximo por não informar a violação. A Comissão daria seu parecer conclusivo no ano seguinte.
Nesse momento, o mordomo os convidou a seguirem para a mesa de jantar. Embora não pudesse ter mais de trinta anos, seu rosto era doentiamente pálido, como se coberto
de talco. Tão branco quanto uma aspirina — Fiona certo dia ouvira uma proprietária rural francesa dizer. Mas o mordomo não parecia doente pois mantinha uma atitude
impessoal e segura. Enquanto aguardava à pequena distância, com a cabeça inclinada para a frente em sinal de atenção, eles terminaram seus drinques e, seguindo Fiona,
atravessaram uma porta de folha dupla rumo à sala de jantar. A mesa, que poderia comportar trinta pessoas, estava posta para cinco numa extremidade solitária. A
sala era recoberta de lambris, pintados de um laranja quase fluorescente, com desenhos de flamingos calculadamente espaçados. Os convivas encontravam-se agora no
lado norte da casa, atingido em cheio pelo vento e onde as três janelas de guilhotina sacudiam, produzindo um ruído surdo. O ar estava frio e úmido. Havia um buquê
de flores secas na lareira. O mordomo explicou que ela havia sido bloqueada muitos anos antes, mas que ele traria um aquecedor elétrico. Eles avaliaram a distribuição
dos assentos e, após alguns momentos de polida incerteza, concordaram que, em respeito à simetria, Fiona se sentaria à cabeceira.
Até então ela mal falara. O mordomo pálido serviu um vinho branco. Dois garçons trouxeram patê de arenque e torradas finas. À esquerda dela estava o perito em conservação,
Charlie, um cinquentão gordo, careca e bem-humorado. Enquanto os outros continuavam a falar sobre jurados, ele perguntou cortesmente sobre o trabalho dela. Resignada
a uma rodada de conversinha fiada, Fiona explicou em termos gerais o trabalho da Vara de Família. Mas Charlie queria detalhes. Que tipo de decisão iria tomar no
dia seguinte? Ela se sentia mais feliz falando sobre um caso específico. Uma instituição local desejava ficar com a guarda de duas crianças, um menino de dois anos
e uma menina de quatro. A mãe era alcoólatra e também viciada em anfetaminas. Sofria crises psicóticas durante as quais imaginava estar sendo espionada por lâmpadas
elétricas. Tornara-se incapaz de cuidar de si própria ou das crianças. O pai, separado dela, tinha permanecido distante, mas agora alegava que ele e sua namorada
podiam cuidar das crianças. Ele também enfrentava problemas com drogas e era fichado na polícia, embora tivesse direito sobre os filhos. Um assistente social se
pronunciaria no dia seguinte perante o tribunal acerca da adequação dele como pai. Os avós maternos adoravam as crianças, eram competentes e queriam cuidar delas,
porém não tinham amparo legal para isso. A instituição local, cujo serviço de atendimento a menores havia sido criticado num relatório oficial, se opunha aos avós
por razões que ainda não estavam claras. As três partes — mãe, pai e avós — estavam amargamente divididas. Outra complicação era existirem opiniões contraditórias
acerca da menina de quatro anos. Um pediatra disse que ela tinha necessidades especiais, outro, contratado pelos avós, acreditava que, conquanto a menina estivesse
perturbada pelo comportamento da mãe e abaixo do peso normal por causa das refeições em horários irregulares, seu desenvolvimento era normal.
Havia, Fiona disse, muitos outros casos similares agendados para aquela semana. Charlie levou a mão à testa e fechou os olhos. Que encrenca! Se ele tivesse de tomar
uma decisão na manhã seguinte em um só caso como aquele, ficaria acordado a noite toda, roendo as unhas e abusando das bebidas oferecidas no quarto do hotel. Fiona
perguntou por que ele estava lá. Charlie tinha vindo de Whitehall a fim de persuadir um grupo de fazendeiros da costa a se unir a algumas organizações de proteção
ambiental, para permitirem que suas pastagens voltassem a ser cobertas pela água do mar, retornando à condição de pântanos salgados. Essa era de longe a melhor e
mais barata forma de defesa contra a inundação da costa, maravilhosa para a vida selvagem, sobretudo pássaros, e boa também para o turismo de pequena escala. Mas
havia uma forte oposição de certos segmentos do setor agrícola, embora os fazendeiros fossem ser bem recompensados. Durante todo o dia o tinham calado aos berros
nas reuniões. Corria o rumor de que o plano era compulsório. Ninguém acreditava nele quando dizia que não era assim. Viam-no como um representante do governo central,
com o qual os fazendeiros estavam irritados por uma série de outras questões que não eram de sua alçada. No final, tinha levado uns trancos num corredor. Um indivíduo
“com metade da minha idade e o dobro da minha força” havia agarrado sua gola e murmurado alguma coisa com o sotaque local que ele não tinha entendido. Melhor assim.
Amanhã ele voltaria e tentaria de novo. Estava certo de que no final iria conseguir o que queria.
Bom, isso soava a ela como um dos círculos especiais do inferno, bem pior do que qualquer mãe psicótica. Os dois estavam dando umas risadinhas por conta dessa observação,
quando perceberam que os outros três tinham abandonado a conversa deles e os ouviam.
Caradoc Ball, que era um velho colega de escola de Charlie, disse: “Espero que você saiba que está falando com uma juíza muito eminente. Certamente se lembra do
caso dos irmãos siameses”.
Todos se lembravam e, à medida que os pratos foram retirados e o boeuf en croûte servido com um Château Latour, conversaram e fizeram perguntas a ela sobre o famoso
caso. Fiona lhes disse tudo o que queriam saber. Todos tinham uma opinião, mas, como era a mesma, logo passaram a discutir a paixão que a história suscitara nos
jornais e como eles a haviam disputado. Dali foi um passo para uma troca de fofocas sobre os lances mais recentes da Investigação Leveson.* Terminaram a carne. À
frente, como dizia o cartão com o menu, havia um pudim de pão. Logo, logo, pensou Fiona, estariam discutindo a sabedoria ou a loucura de o Ocidente não mandar tropas
para a Síria. Era impossível calar Caradoc sobre aquele tema. E, de fato, ele o introduzia quando se deram conta de vozes ecoando no corredor. Pauling e o mordomo
de rosto branco pararam no umbral da porta e depois se aproximaram dela.
O mordomo se pôs de lado, com um olhar contrariado, enquanto Pauling, depois de pedir desculpas a todos com um aceno de cabeça, inclinou-se por cima da cadeira de
Fiona e disse baixinho perto de seu ouvido: “Minha senhora, perdão por interromper, mas infelizmente há um assunto que exige sua atenção imediata”.
Ela limpou os lábios com o guardanapo e se pôs de pé. “Me desculpem, senhores.”
Sem mudar de expressão, todos se levantaram e ela atravessou a sala na frente dos dois homens. Já do lado de fora, ela disse ao mordomo: “Ainda estamos esperando
por aquele aquecedor”.
“Vou pegar agora.”
Havia algo impertinente em seu jeito ao dar meia-volta, e ela olhou para seu assistente com as sobrancelhas erguidas.
Mas ele simplesmente disse: “Por aqui”.
Ela o seguiu através do corredor e do que fora antes uma biblioteca. As estantes estavam repletas de livros comprados em lojas de objetos usados, do tipo que os
hotéis adquirem por metro para criar uma atmosfera respeitável em certos ambientes.
Pauling disse: “É o rapaz das testemunhas de Jeová, Adam Henry. A senhora se lembra do caso da transfusão? Parece que ele a seguiu até aqui. Andou na chuva, está
completamente encharcado. Queriam expulsá-lo, mas achei que a senhora precisava ser informada antes”.
“Onde ele está?”
“Na cozinha. É mais quentinho lá.”
“Melhor trazê-lo aqui.”
Tão logo Pauling saiu, ela se levantou e caminhou lentamente pela sala, consciente de que seu ritmo cardíaco tinha aumentado. Caso houvesse respondido às cartas,
não estaria agora defrontando aquilo. Defrontando o quê? O envolvimento desnecessário com um caso fechado. E mais que isso. Mas não havia tempo para refletir. Ouviu
passos se aproximando.
A porta se abriu e Pauling fez o rapaz passar. Ela nunca o vira fora da cama e se surpreendeu com sua altura, bem mais de um metro e oitenta. Vestia seu uniforme
escolar, calça de flanela cinza, suéter cinza, camisa branca, um blusão bem leve, encharcado da cabeça aos pés, o cabelo em desordem depois de ter sido enxugado.
Uma pequena mochila pendia frouxamente de sua mão. O toque patético era dado pela toalha de chá do Leadman, com ilustrações dos pontos turísticos locais, envolvendo
suas costas para aquecê-lo.
O assistente se manteve junto à porta enquanto o rapaz deu alguns passos para dentro da sala, parando perto de onde ela se encontrava e dizendo: “Sinto muito mesmo”.
Naqueles primeiros momentos, era mais fácil esconder a confusão de sentimentos sob um tom maternal. “Você parece estar congelado. É melhor trazermos o aquecedor
para cá.”
“Eu mesmo vou pegar”, disse Pauling, saindo.
“Bem”, ela disse após um silêncio. “Como você me achou aqui?”
Outra evasão, perguntar como em vez de por quê, mas àquela altura, conquanto sua presença ainda fosse um choque, Fiona não era capaz de entender o que Adam queria
dela.
O relato dele foi sóbrio. “Eu a segui num táxi desde King’s Cross, peguei seu trem e, como não tinha ideia de onde a senhora ia saltar, comprei passagem para Edinburgh.
Em Newcastle, a segui ao sair da estação, corri atrás da sua limusine e então a perdi de vista. Tive um palpite e perguntei onde eram os tribunais. Quando cheguei
lá, vi imediatamente o seu carro.”
Ela o observou falar, enquanto analisava a transformação. A magreza se fora, porém ele continuava esbelto. Novos músculos nos ombros e braços. O mesmo rosto delicadamente
estruturado, a pinta marrom na maçã do rosto quase invisível na pele bronzeada pela saúde juvenil. Tênues indícios das olheiras roxas. Lábios cheios e úmidos, olhos
que naquela luz eram demasiado escuros para revelar sua cor. Mesmo enquanto tentava se desculpar, ele se mostrava vívido demais, ávido demais para dar uma explicação
detalhada. Quando ele afastou o olhar para ordenar a sequência de fatos, Fiona se perguntou se aquele era um rosto que sua mãe chamaria de antiquado. Uma ideia sem
nexo. A noção generalizada do rosto de um poeta romântico, um primo de Keats ou Shelley.
“Esperei um tempão até a senhora sair e a segui ao atravessar a cidade e voltar na direção do rio, vendo quando saiu do carro. Levei mais de uma hora até descobrir
no meu celular onde os juízes se hospedavam, peguei uma carona, desci na estrada principal, pulei o muro para não passar pela casa do guarda e andei até aqui na
chuva. Esperei muito tempo nos fundos, perto das antigas estrebarias, me perguntando o que eu devia fazer, até que alguém me viu. Realmente sinto muito, eu...”
Pauling, irritado e com o rosto vermelho por causa do esforço, chegou com o aquecedor. Talvez tivesse sido necessário arrancá-lo das mãos do mordomo. Os dois ficaram
olhando enquanto o assistente se pôs de quatro com um grunhido e desapareceu parcialmente debaixo de uma mesinha de canto para encontrar a tomada. Depois que se
reergueu, pousou as mãos nos ombros do rapaz e o levou para a frente do ar aquecido. Antes de sair, disse a Fiona: “Estou esperando do lado de fora”.
Quando ficaram sozinhos, ela disse: “Eu não deveria pensar que tem alguma coisa de esquisito em você me seguir até minha casa e depois até aqui?”.
“Ah, não! Por favor, não pense isso. Não é nada disso.” Olhou em volta impaciente, como se nas paredes estivesse escrita alguma explicação. “Olha, a senhora salvou
minha vida. E não é só isso. Papai tentou esconder de mim, mas li sua sentença. A senhora disse que queria me proteger da minha religião. Pois bem, protegeu. Fui
salvo!”
Ele riu da própria piada e ela disse: “Não o salvei para que você me seguisse por todo canto”.
Nesse justo instante, uma peça fixa do aquecedor deve ter entrado na órbita de alguma peça móvel, pois um estalido regular tomou conta da sala. O volume aumentou,
baixou, se estabilizou. Ela sentiu uma onda de irritação com a casa toda. Um embuste. Um depósito de velharias. Como não tinha visto isso antes?
O momento passou e ela perguntou: “Seus pais sabem onde você está?”.
“Tenho dezoito anos. Posso estar onde quiser.”
“Não me interessa sua idade. Eles vão ficar preocupados.”
Adam soltou um arquejo de exasperação juvenil e depositou a mochila no chão. “Olha, Meritíssima...”
“Chega disso. Me chame de Fiona.” Enquanto pudesse mantê-lo em seu lugar, ela se sentiria melhor.
“Eu não quis ser sarcástico nem nada.”
“Ótimo. E quanto a seus pais?”
“Ontem tive uma briga feia com papai. Tivemos algumas desde que saí do hospital, mas essa foi realmente das grandes, os dois gritando, e eu lhe disse tudo o que
achava sobre sua religião idiota, mesmo que ele não estivesse escutando. No final, me afastei. Subi para o quarto, fiz a mala, peguei o dinheiro que tinha guardado
e me despedi de mamãe. Depois fui embora.”
“Você precisa telefonar para ela agora.”
“Não há necessidade. Mandei uma mensagem para o celular dela ontem à noite do lugar onde me hospedei.”
“Mande outra.”
Ele a olhou, ao mesmo tempo surpreso e desapontado.
“Vamos, diga que está são e salvo em Newcastle e que vai escrever outra vez amanhã. Depois disso conversamos.”
Ela se afastou alguns passos e observou enquanto seus dedos longos dançavam sobre o teclado virtual. Em segundos o celular voltara ao bolso dele.
“Pronto”, disse, olhando para ela com ar expectante, como se ela é que lhe devesse alguma explicação.
Fiona cruzou os braços. “Adam, por que você está aqui?” Seu olhar se desviou, ele hesitou. Não ia dizer a ela a razão, pelo menos não de forma direta.
“Olhe, eu não sou a mesma pessoa. Quando a senhora foi me ver eu estava realmente pronto para morrer. É impressionante que alguém como a senhora tivesse perdido
tempo comigo. Eu era um tremendo idiota!”
Ela apontou para duas cadeiras de madeira junto a uma mesa oval de nogueira, onde se sentaram frente a frente. A luz branca e sepulcral vinha de quatro lâmpadas
LED presas a uma roda rústica de madeira pintada. Por não estar situada diretamente acima da mesa, a iluminação acentuava os contornos das maçãs do rosto e dos lábios
de Adam, assim como as finas saliências gêmeas que separavam a parte acima de seu lábio superior. Tratava-se de uma bela face.
“Não achei você um idiota.”
“Mas eu era. Sempre que os médicos e as enfermeiras tentavam me dissuadir, eu me sentia nobre e heroico, dizendo para me deixarem em paz. Eu era bom e puro. Adorava
que eles não conseguissem entender como eu era profundo. Eu realmente me achava o tal. Gostava de ver o orgulho dos meus pais e dos anciãos. À noite, quando não
tinha ninguém por perto, ensaiei fazer um vídeo, como esses homens-bomba. Ia fazer no meu celular. Queria que fosse reproduzido nos noticiários de televisão e no
meu funeral. Acabei chorando no escuro, imaginando meu caixão sendo levado diante dos meus pais, dos meus colegas e professores, de toda a congregação, as flores,
as coroas, a música triste, todos chorando, todos orgulhosos de mim e me amando. Sinceramente, eu era um idiota.”
“E onde entrava Deus nessa história?”
“Por trás de tudo. Eu estava obedecendo às instruções dele. Mas era mais sobre a maravilhosa aventura que eu estava vivendo, como ia morrer gloriosamente e ser adorado.
Uma garota que eu conheci na escola sofria de anorexia três anos atrás, quando tinha quinze anos. O sonho dela era se transformar em nada — como uma folha seca soprada
pelo vento, foi o que ela disse, mergulhando devagarzinho na morte, todo mundo com pena dela e depois se culpando por não compreendê-la. O mesmo tipo de coisa.”
Agora que o via sentado, Fiona se lembrou dele no hospital, recostando-se nos travesseiros em meio àquela bagunça juvenil. Não era a enfermidade dele que lhe vinha
à mente, mas sua avidez, a inocência vulnerável. Até mesmo a palavra anorexia soava como uma diversão. Ele havia tirado do bolso uma tira estreita de tecido verde,
talvez parte de um forro, que enrolava e desenrolava entre o indicador e o polegar como as contas do colar de um muçulmano.
“Então, não era muito uma questão de religião; tinha mais a ver com seus outros sentimentos.”
Ele ergueu as mãos. “Meus sentimentos tinham origem na minha religião. Eu estava cumprindo a vontade de Deus, a senhora e todos os outros estavam claramente errados.
Como eu teria me metido numa confusão daquelas se não fosse testemunha de Jeová?”
“Parece que sua colega anoréxica conseguiu.”
“Bem, na verdade a anorexia é um pouco como uma religião.”
Diante do olhar cético de Fiona, ele improvisou. “Ah, a senhora sabe, querer sofrer, amar a dor e o sacrifício, pensar que todo mundo está te observando, preocupado
com você, que o universo gira em torno de você. E do seu peso!”
Ela não se conteve e riu da ironia contida na última frase. Ele sorriu por seu inesperado êxito em diverti-la.
Ouviram vozes e passos no corredor quando os convidados passaram da sala de jantar para a de visitas a fim de tomarem café, e depois uma sucessão de gargalhadas
que mais pareciam latidos perto da porta da biblioteca. O rapaz ficou tenso com a possibilidade de uma interrupção, e ambos mantiveram um silêncio conspiratório
enquanto aguardavam que os sons morressem. Adam olhava para baixo, para suas mãos entrelaçadas sobre a madeira envernizada da mesa. Ela imaginava todas as horas
de sua infância e juventude dedicadas a orações, hinos, sermões e as diversas restrições que jamais conheceria, a comunidade fechada mas amorosa que o sustentara
até quase matá-lo.
“Adam, vou perguntar outra vez. Por que você está aqui?”
“Para lhe agradecer.”
“Há maneiras mais fáceis.”
Ele suspirou com impaciência enquanto repunha no bolso a tira de tecido. Por um momento Fiona acreditou que ele se preparava para partir.
“Sua visita foi uma das melhores coisas que me aconteceram.” E então, rapidamente: “A religião de meus pais era um veneno e a senhora foi o antídoto”.
“Não me lembro de haver criticado a religião de seus pais.”
“Não criticou. A senhora foi calma, ouviu, fez perguntas e alguns comentários. Aí é que está. É essa coisa que a senhora tem. Fez diferença. A senhora não precisou
dizer. Um jeito de pensar e de falar. Se não sabe o que estou dizendo, trate de ouvir os anciãos. E quando tocamos a música...”
Ela disse com rapidez: “Você ainda está tocando violino?”.
Ele fez que sim com a cabeça.
“E a poesia?”
“Sim, muito. Mas odeio as coisas que eu escrevia.”
“Bom, você tem talento. Sei que vai escrever alguma coisa maravilhosa.”
Fiona percebeu o desalento nos olhos dele. Ela estava se distanciando, fazendo o papel da tia solícita. Repassou algumas etapas da conversa, se perguntando por que
estava tão ansiosa para não desapontá-lo.
“Mas seus professores devem ser bem diferentes dos anciãos.”
Ele deu de ombros. “Não sei.” Acrescentou à guisa de explicação: “A escola era enorme”.
“E o que é isso que você supõe que eu tenha?”, ela perguntou em tom sério, sem nenhum traço de ironia.
A pergunta não o embaraçou. “Quando vi meus pais chorando daquele jeito, chorando e quase urrando de alegria, tudo desmoronou. Mas aí que está. Desmoronou para cair
na verdade. Claro que eles não queriam que eu morresse! Eles me amam. Por que não disseram isso, em vez de falar e falar sobre as alegrias do céu? Foi então que
eu vi tudo aquilo como uma coisa humana comum. Comum e boa. Não tinha nada a ver com Deus. Isso era só uma bobagem. Como se um adulto entrasse numa sala cheia de
crianças que estão se infernizando e dissesse: ‘Chega, parem com isso, é hora do chá!’. A senhora foi esse adulto. Sabia desde o começo, mas não disse. Só fez perguntas
e escutou. Toda a vida e o amor que se abrem diante dele — foi o que a senhora escreveu. Essa foi a sua ‘coisa’. E a minha revelação. Começando com ‘The Salley Gardens’.”
Ainda em tom sério, ela disse: “E a tampa da sua cabeça explodiu”.
Ele riu gostosamente por também ser citado. “Fiona, quase consigo tocar uma composição de Bach sem cometer nenhum erro. Toco o tema de Coronation Street. Estou lendo
o livro de Berryman Dream Songs. Vou participar de uma peça teatral e tenho que terminar todos os exames antes do Natal. E, graças à senhora, estou entupido de Keats!”
“Muito bem”, ela disse em voz baixa.
Ele se inclinou para a frente, apoiado nos cotovelos, os olhos escuros brilhando na luz pavorosa, todo o rosto parecendo fremir de expectativa, com um apetite incontrolável.
Depois de refletir por um instante, Fiona disse num sussurro: “Espere aqui”. Levantou-se e hesitou, parecendo prestes a mudar de ideia e que voltaria a se sentar.
Mas deu as costas para ele, atravessou a sala e foi para o corredor. Pauling se encontrava de pé, a alguns passos de distância, fingindo interesse pelas páginas
do livro de visitantes aberto sobre uma mesa com tampo de mármore. Ela lhe deu rápidas instruções em voz baixa, voltou à biblioteca e fechou a porta atrás de si.
Adam havia retirado a toalha de chá do ombro e examinava a série de atrações locais. Quando ela se sentou de novo, ele comentou: “Eu nunca tinha ouvido falar em
nenhum desses lugares”.
“Há muita coisa a ser descoberta.”
Passados os efeitos da interrupção, ela disse: “Quer dizer que você perdeu sua fé”.
Adam pareceu se contorcer. “Sim, talvez. Não sei. Acho que tenho medo de dizer isso em voz alta. Realmente não sei onde estou. Quer dizer, o troço é que, quando
a gente se afasta um pouquinho das testemunhas de Jeová, talvez seja melhor sair de vez. Por que substituir um conto de fadas por outro?”
“Talvez todo mundo precise de contos de fadas.”
Ele lhe deu um sorriso benevolente. “Não acho que a senhora esteja dizendo isso pra valer.”
Fiona sucumbiu a seu hábito de resumir a opinião dos outros. “Você viu seus pais chorando e está confuso, pois suspeita que o amor deles por você é maior do que
a crença que têm em Deus ou na vida após a morte. Você precisa se afastar. Perfeitamente natural para alguém da sua idade. Talvez curse uma universidade. Isso vai
ajudar. Mas ainda não entendo o que está fazendo aqui. E, o que é mais importante, o que vai fazer agora. Para onde é que você vai?”
A segunda pergunta o perturbou mais. “Tenho uma tia em Birmingham. Irmã da minha mãe. Ela vai me receber por uma ou duas semanas.”
“Ela está te esperando?”
“Mais ou menos.”
Fiona estava prestes a obrigá-lo a enviar uma nova mensagem, quando ele estendeu a mão por cima da mesa, enquanto ela, com igual rapidez, recolheu a sua para o colo.
Adam não foi capaz de encará-la ou de ser olhado de frente quando voltou a falar. Pôs as mãos na testa como se protegesse os olhos da luz. “Tenho uma pergunta a
lhe fazer. Quando a senhora a ouvir vai achar que é uma idiotice. Mas, por favor, não a rejeite simplesmente. Diga por favor o que pensa sobre ela.”
“O que é?”
Ele se dirigiu ao tampo da mesa. “Quero ir morar com a senhora.”
Ela esperou por mais alguma coisa. Nunca poderia ter previsto tal pedido. Mas agora parecia óbvio.
Adam ainda era incapaz de olhá-la nos olhos. Falou depressa, como se envergonhado com sua própria voz. Ele havia pensado em tudo. “Eu podia ajudar a senhora a cuidar
da casa, prestar serviços na rua. E a senhora podia me dar livros para ler, sabe como é, tudo o que achar que eu preciso aprender...”
Ele a havia seguido por um bom pedaço do país, pelas ruas, atravessado uma tempestade para lhe pedir aquilo. Era uma extensão lógica de sua fantasia sobre uma longa
viagem marítima com ela, de falarem o dia todo caminhando no convés ao balanço das ondas. Lógica e insana. E inocente. O silêncio os envolveu e uniu. Até mesmo o
tilintar do aquecedor parecia ter se reduzido, nenhum som vinha do lado de fora. Ele continuou a proteger o rosto do olhar de Fiona. Ela contemplou o encaracolado
de seu cabelo escuro, jovem e saudável, agora totalmente seco e reluzente.
Fiona disse com suavidade: “Você sabe que isso não é possível”.
“Eu não ia atrapalhar, quer dizer, interferir com a senhora e seu marido.” Por fim, ele recolheu as mãos e olhou para ela. “A senhora sabe, como alguém que alugasse
um quarto. Quando eu terminar meus exames, posso arranjar um emprego e pagar algum aluguel.”
Ela viu o quarto de hóspedes e as duas camas de solteiro, os ursinhos e outros bichos de pelúcia na cesta de vime, o armário de brinquedos tão cheio que uma das
portas não fechava. Tossiu de repente e se pôs de pé, atravessando toda a sala até a janela para dar a impressão de que olhava com atenção para fora. Por fim, sem
se voltar, ela disse: “Só temos um quarto livre e uma porção de sobrinhos e sobrinhas”.
“Quer dizer que essa é sua única objeção?”
Ouviu-se uma batida na porta e Pauling entrou. “Estará aqui dentro de dois minutos, minha senhora”, ele disse e saiu.
Ela se afastou da janela e voltou a se aproximar de Adam, abaixando-se para pegar a mochila dele do chão.
“Meu assistente vai levá-lo de táxi até a estação e lhe comprar uma passagem com destino a Birmingham para amanhã de manhã; depois vai levá-lo para um hotel perto
de lá.”
Após uma pausa, ele se levantou devagar e pegou a mochila das mãos dela. Apesar de sua altura, parecia uma criança pequena em estado de choque.
“Então é isso?”
“Gostaria que me prometesse que vai entrar em contato outra vez com sua mãe antes de pegar o trem. Diga a ela para onde está indo.”
Adam não respondeu. Ela o conduziu à porta e os dois saíram para o corredor. Ninguém à vista. Caradoc Ball e seus convidados estavam instalados na sala de visitas
com as portas fechadas. Ela o deixou esperando na biblioteca e subiu ao quarto para pegar algum dinheiro na bolsa. Ao voltar, viu toda a cena de sua posição elevada
no topo da imponente escadaria. A porta da frente estava aberta e o mordomo falava com o motorista. Atrás dele, abaixo dos degraus do pórtico, estava o táxi, a porta
aberta para liberar os alegres e sinuosos acordes da música orquestral árabe. Seu assistente atravessava o vestíbulo às pressas, supostamente a fim de impedir que
o mordomo criasse algum problema. Quanto a Adam Henry, ele ainda continuava na biblioteca, abraçado à sua mochila. Quando Fiona se aproximou dele, o mordomo, o motorista
e o assistente estavam do lado de fora, no pátio de cascalho, conversando junto ao carro, segundo ela esperava, sobre um hotel apropriado.
O rapaz começou a dizer: “Mas nós nem...”, e ela levantou a mão para fazê-lo se calar.
“Você precisa ir.”
Ela segurou delicadamente a gola do blusão leve dele e o puxou para si. Pretendia lhe dar um beijo no rosto, mas, como ergueu o corpo e Adam se curvou um pouco,
seus rostos se aproximaram, ele girou a cabeça e os lábios deles se tocaram. Ela poderia ter recuado, ter dado um passo atrás, se afastando dele. Em vez disso, se
demorou, inerme diante daquele momento. A sensação de pele contra pele anulou qualquer possibilidade de escolha. Caso fosse possível dar um beijo casto na boca,
foi isso que ela fez. Um contato fugaz, porém mais do que a mera sugestão de um beijo, mais do que uma mãe daria no filho adulto. Durou dois segundos, quem sabe
três. Tempo suficiente para sentir, na maciez e elasticidade dos lábios dele, todos os anos, toda a vida que a separava de Adam. Ao se afastarem, uma leve adesão
de pele poderia tê-los atraído de volta. Mas soavam passos no cascalho e nos degraus de pedra, cada vez mais próximos. Ela largou a gola dele e repetiu: “Você precisa
ir”.
Adam apanhou a mochila, que havia deixado cair no chão, e seguiu-a através do vestíbulo até o lado de fora, onde foram recebidos pelo ar fresco da noite. Ao pé da
escada, o motorista fez uma saudação amistosa e abriu a porta traseira do carro. O rádio havia sido desligado. Ela tinha pensado em dar o dinheiro a Adam, mas, numa
súbita e gratuita mudança de ideia, o entregou a Pauling. Ele balançou a cabeça e forçou um leve sorriso ao pegar o rolinho de notas. Com um movimento brusco dos
ombros, Adam deu a impressão de se desvencilhar de todos e mergulhou no banco de trás, sentando-se com a mochila no colo e olhando para a frente. Já se arrependendo
do que havia posto em movimento, Fiona deu a volta no carro para trocar um último olhar com ele. Adam sem dúvida reparou em seu movimento, mas afastou o rosto. Pauling
se sentou na frente, ao lado do motorista. O mordomo fechou a porta de Adam, empurrando-a num gesto insolente com as costas da mão. Ombros encurvados, Fiona subiu
às pressas os degraus de pedra rachados enquanto o táxi se distanciava.
* Investigação pública conduzida por lorde Leveson em 2011 e 2012 acerca das práticas e da ética da imprensa britânica após o escândalo das escutas telefônicas feitas
pela News International. (N. T.)
5.
Ela partiu de Newcastle depois de uma semana, sentenças proferidas ou suspensas à espera de laudos técnicos, deixando para trás litigantes felizes ou amargurados,
alguns dos quais com o parco consolo de poderem recorrer. No caso que descrevera para Charlie no jantar, ela havia concedido a guarda aos avós e permitido visitas
semanais sob supervisão à mãe e ao pai, separadamente, tudo passível de revisão ao fim de seis meses. Até lá, quem quer que a substituísse teria a vantagem de receber
relatórios acerca do bem-estar das crianças, das promessas dos pais de frequentar um programa de tratamento de viciados em drogas e do estado mental da mãe. A menininha
continuaria em sua escola, um curso elementar organizado pela Igreja da Inglaterra, onde era bem conhecida. Fiona considerou exemplar, naquele caso, a conduta das
instituições de atendimento a menores da cidade.
No final da tarde de sexta-feira, ela disse adeus aos funcionários do tribunal. Na manhã de sábado, no Leadman Hall, Pauling encheu o porta-malas do carro com documentos
acondicionados em caixas de papelão e com as togas dela penduradas em cabides. As bagagens pessoais empilhadas no banco traseiro e a juíza instalada na frente, rumaram
para Oeste, na direção de Carlisle, passando pelo Tyne Gap e cruzando a Inglaterra de um lado a outro, as Cheviots à direita e as Pennines à esquerda. Mas os dramas
da geologia e da história eram embotados pelo tráfego, por seu volume, suas rotinas e pelas placas de sinalização rodoviária características das ilhas britânicas.
Enquanto atravessavam Hexham muito lentamente, Fiona mantinha o celular sem uso na mão e, como fizera durante vários interlúdios ao longo da semana, pensava no beijo.
Que loucura impulsiva não ter se afastado! Loucura profissional e social. Em suas recordações, o contato real, carne contra carne, tendia a se prolongar no tempo.
Ela então tentava encurtar o momento para que voltasse a ser um beijinho inocente nos lábios. Mas o beijinho logo voltava a se inflar, até ela não saber o que ele
era, o que havia acontecido ou por quanto tempo ela correra o risco de uma desgraça. Caradoc Ball poderia ter passado pelo corredor a qualquer momento. Pior ainda,
um de seus convidados, sem as peias da lealdade tribal, poderia tê-la visto e contado a todo mundo. Pauling poderia ter voltado depois de conversar com o motorista
de táxi e a apanhado em flagrante. Nesse caso, a distância sensatamente construída entre eles, que tornava possível seu trabalho, teria sido destruída.
Como não era dada a impulsos irrefletidos, Fiona não entendia seu próprio comportamento. Deu-se conta de que havia muito mais a confrontar em sua mistura de sentimentos
confusos, porém, no momento, era o horror do que podia ter ocorrido, a transgressão ridícula e vergonhosa da ética profissional, que ocupavam sua mente. A ignomínia
que poderia ter se abatido sobre ela. Difícil crer que ninguém a vira, que estava abandonando incólume a cena do crime. Mais fácil acreditar que a verdade, dura
e negra como uma semente amarga, estava prestes a ser revelada: que ela tinha sido observada sem saber. Que agora mesmo, a centenas de quilômetros de distância,
o caso estivesse sendo discutido em Londres. Que em breve ouviria no telefone a voz pouco à vontade de um colega mais antigo: Ah, Fiona, escute, sinto muito, mas
creio que preciso alertá-la de que, hã, de que surgiu um probleminha. E então, esperando por ela no apartamento da Gray’s Inn, uma carta formal do investigador do
departamento de reclamações judiciais.


CONTINUA
“Os pais se opõem à solicitação com base em sua fé religiosa, que é manifestada serenamente e fruto de profunda convicção. O filho deles também objeta e demonstra
boa compreensão dos princípios religiosos, possuindo considerável maturidade e capacidade de articulação verbal para a sua idade.”
Descreveu a seguir a evolução da enfermidade, a leucemia, o tratamento usual que em geral produzia bons resultados. Mas dois dos remédios comumente administrados
causavam anemia, que necessitava ser combatida mediante transfusões de sangue. Resumiu os argumentos do médico assistente, enfatizando a contagem declinante de hemoglobina
e os prognósticos sombrios caso isso não fosse revertido. Ela podia confirmar pessoalmente que a falta de ar de A era agora patente.
A contestação ao pedido se fundamentava em três argumentos principais. O primeiro era o de que, como lhe faltavam três meses para completar dezoito anos e ele era
muito inteligente, conhecendo as consequências de sua decisão, Adam devia ser tratado como possuidor da “competência de Gillick”. Em outras palavras, seria tão capaz
de ter suas decisões reconhecidas quanto qualquer adulto. Em segundo lugar, que a recusa de tratamento médico constituía um direito humano básico, razão por que
a corte deveria mostrar relutância em intervir. E que, por fim, a fé religiosa de A era genuína e devia ser respeitada.
Fiona abordou os seguintes pontos. Agradeceu ao advogado dos pais de A por ter chamado sua atenção para a seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: o consentimento
de uma pessoa de dezesseis anos “será tão eficaz como o seria se ele já houvesse alcançado a maioridade”. Listou as condições relativas à “competência de Gillick”,
citando Scarman no processo. Reconheceu a distinção entre a circunstância de uma criança competente com menos de dezesseis anos consentir num tratamento, possivelmente
contra a vontade dos pais, e de uma criança de menos de dezoito recusar um tratamento passível de salvar sua vida. Do que percebera naquela noite, estaria ela convencida
de que A tinha uma compreensão absoluta das implicações de serem aceitas sua vontade e a de seus pais?
“Ele é sem dúvida uma criança excepcional. Posso mesmo dizer, como o fez uma das enfermeiras hoje à noite, que se trata de um menino adorável, com o que certamente
concordam seus pais. Ele tem uma capacidade de compreensão excepcional para um jovem de dezessete anos. Mas creio que possui um entendimento limitado da provação
que deve confrontar, do pavor que o invadiria à medida que seu sofrimento e sua impotência aumentassem. Na verdade, ele tem uma noção romântica do que seja sofrer.
Entretanto...”
Deixou a palavra pendurada no ar, e o silêncio na sala se adensou enquanto ela passava os olhos pelas anotações.
“Entretanto, em última análise não me deixo influenciar pelo fato de que ele tenha ou não a compreensão absoluta de seu estado. Em vez disso, sou guiada pela decisão
do juiz Ward, como era chamado na época, com referência ao menor E, em julgamento que também envolveu um adolescente que pertencia às testemunhas de Jeová. Naquela
oportunidade, ele afirmou: ‘Assim, é o bem-estar da criança que preside a minha decisão, e cumpre a mim decidir o que dita o bem-estar de E’. Essa observação foi
cristalizada na clara prescrição da Lei da Criança de 1989, que garante nas duas primeiras linhas a primazia do bem-estar do menor. Entendo ‘bem-estar’ como englobando
‘felicidade’ e ‘interesses’. Também sou obrigada a levar em conta a vontade de A. Como já observei, ele a expressou claramente a mim, como o fez seu pai perante
esta corte. De acordo com as doutrinas de sua religião, derivadas de uma interpretação peculiar de três passagens da Bíblia, A se recusa a aceitar a transfusão de
sangue que provavelmente salvará sua vida.
“É um direito fundamental dos adultos recusarem qualquer tratamento médico. Tratar um adulto contra sua vontade significa cometer o crime de agressão. A está próximo
da idade em que pode tomar uma decisão por sua conta e risco. O fato de estar preparado para morrer por suas crenças religiosas demonstra quão profundas elas são.
O fato de que seus pais estão preparados para sacrificar um filho muito querido por causa de sua fé revela o poder da crença a que as testemunhas de Jeová obedecem.”
Mais uma vez ela parou e o público aguardou.
“É precisamente esse poder que me faz refletir, porque A, com seus dezessete anos, conheceu muito pouco fora do turbulento terreno das ideias religiosas e filosóficas.
Não faz parte dos métodos dessa seita cristã encorajar o debate aberto e a discordância na congregação, cujos membros são por eles chamados — de forma correta, alguém
poderia dizer — de ‘as outras ovelhas’. Não creio que a mente de A e suas opiniões lhe pertençam inteiramente. Durante toda a infância ele esteve exposto sem interrupção
a uma visão do mundo monocromática e poderosa, a cujo condicionamento não poderia escapar. Não promoverá seu bem-estar sofrer uma morte desnecessária e agonizante,
para assim se transformar num mártir de sua fé. As testemunhas de Jeová, como outras religiões, têm uma noção nítida do que nos aguarda após a morte, e as predições
deles sobre o fim dos dias, sua escatologia, são também rígidas e muito detalhadas. Este tribunal não tem opinião alguma sobre a vida no Além, que, de qualquer forma,
certo dia A descobrirá, ou deixará de descobrir, por conta própria. Até lá, presumindo uma boa recuperação, o bem-estar dele será mais bem servido por seu amor pela
poesia, por sua recém-descoberta paixão pelo violino, pelo aproveitamento de sua viva inteligência e pelas manifestações de uma natureza brincalhona e afetuosa,
por toda a vida e o amor que se abrem à sua frente. Em suma, entendo que A, seus pais e os anciãos da igreja tomaram uma decisão que é hostil ao bem-estar de A,
o qual constitui a principal consideração desta corte. Ele precisa ser protegido de tal decisão. Precisa ser protegido de sua religião e de si mesmo.
“Esta não foi uma questão simples de resolver. Ponderei cuidadosamente a idade de A, o respeito devido à sua fé e a dignidade do indivíduo contida no direito de
recusar tratamento. A meu juízo, sua vida é mais preciosa do que essa dignidade.
“Em consequência, nego a vontade de A e de seus pais. Minha ordem é que não seja necessário obter a concordância para a transfusão de sangue do primeiro e segundo
contestantes, que são os pais, e a concordância para a transfusão de sangue do terceiro contestante, que é o próprio A. Desse modo, o hospital demandante está legalmente
autorizado a aplicar em A os tratamentos médicos que julgue necessários, no entendimento de que podem administrar sangue e produtos dele derivados mediante transfusão.”
* * *
Eram quase onze da noite quando Fiona iniciou a caminhada para casa ao sair do tribunal. Àquela hora, os portões estavam trancados e não era possível cortar caminho
por dentro da Lincoln’s Inn. Antes de dobrar na Chancery Lane, ela desceu um pequeno trecho da Fleet Street para comprar uma refeição pronta numa loja de conveniência
que ficava aberta a noite inteira. Na noite anterior, isso teria sido uma missão deprimente, mas ela estava sentindo a cabeça leve, talvez porque não se alimentava
decentemente fazia dois dias. Na loja apertada e excessivamente iluminada, os alimentos com embalagens berrantes — vermelhos e roxos explosivos, amarelos de manchas
solares — pulsavam nas prateleiras em sintonia com seus batimentos cardíacos. Ela comprou uma torta de peixe congelada e examinou várias frutas antes de se decidir.
No caixa, atrapalhou-se com o dinheiro, deixando cair moedas no chão. O ágil rapaz asiático que trabalhava na máquina registradora impediu com o pé que as moedas
rolassem e, lhe dando um sorriso protetor, as pôs de volta na mão dela. Fiona se imaginou através dos olhos dele ao observar a expressão de grande cansaço dela,
ignorando ou sendo incapaz de apreciar o corte elegante do casaco e vendo apenas uma dessas velhotas inofensivas que viviam e comiam sozinhas, já um tanto incapazes,
andando pelas ruas tarde da noite.
Ela estava cantando “The Salley Gardens” com os lábios fechados enquanto seguia pela High Holborn. A sacola contendo as frutas e o sólido invólucro do jantar se
chocava agradavelmente contra sua perna. A torta seria aquecida no micro-ondas enquanto ela se preparava para ir se deitar, e a comeria já de camisola em frente
ao canal de notícias; depois disso, nada se interporia entre ela e o sono. Nenhum estímulo químico. No dia seguinte havia um divórcio de gente graúda — um guitarrista
famoso e uma esposa quase famosa, cantora de música romântica, com um excelente advogado e desejando abocanhar boa parte dos vinte e sete milhões de libras do marido.
Algodão-doce comparado com hoje, mas o interesse da imprensa seria igualmente intenso, a lei igualmente solene.
Dobrou na Gray’s Inn, seu santuário. Era sempre gostoso ver como o barulho do tráfego ia cessando à medida que caminhava. Uma comunidade fechada de certo valor histórico,
uma fortaleza de advogados e magistrados que também eram músicos, amantes do bom vinho, pseudoescritores, pescadores que usavam como iscas moscas artificiais, contadores
de histórias. Um ninho de fofocas e perícia profissional, além de um jardim delicioso ainda visitado pelo fantasma de Francis Bacon. Ela amava o lugar e não queria
sair dali nunca.
Entrou no prédio, verificou que a minuteria estava ligada, subiu até o segundo andar, ouviu o rangido costumeiro do quarto e sétimo degraus e, ao atingir o último
lance da escada, viu tudo e entendeu imediatamente. Seu marido estava lá, se levantando naquele momento com um livro na mão; atrás dele, a mala encostada à parede
havia servido como uma espécie de assento, tendo ao lado, no chão, o paletó junto à valise aberta de onde escapavam diversos papéis. Trancado do lado de fora, trabalhando
enquanto esperava. E por que não? Roupas amarrotadas, semblante irritado. Trancado do lado de fora e esperando fazia muito tempo. Sem dúvida não estava ali para
buscar camisas limpas e livros, não se trazia a mala. Seu primeiro pensamento, melancólico e egoísta, foi que agora teria de dividir o jantar calculado para uma
só pessoa. Então pensou que não seria necessário. Preferia não comer.
Subiu os últimos degraus até alcançar o patamar, sem dizer uma única palavra enquanto procurava na bolsa as chaves, as chaves novas, e o contornava a caminho da
porta. Ele que falasse primeiro.
O tom foi de queixume: “Telefonei a noite toda”.
Ela abriu a porta e entrou sem olhar para trás; deixou as compras na cozinha e parou. Seu coração batia forte demais. Ouviu a respiração mal-humorada dele ao trazer
a bagagem para dentro. Se era para haver uma confrontação, que ela não desejava, não agora, a cozinha era um espaço confinado demais. Pegou sua pasta e foi rapidamente
para a sala de visitas, ocupando seu lugar de sempre na chaise longue. Espalhar algumas páginas em volta de onde estava sentada era uma forma de proteção. Sem isso,
não saberia o que fazer de si.
O ruído da mala sendo arrastada pelo corredor e para dentro do quarto soou para ela como uma jogada de abertura. E um insulto. Pela força do hábito, tirou o sapato
e apanhou um documento ao acaso. O guitarrista tinha uma casa de alto padrão em Marbella. A crooner de canções românticas queria a casa. Mas, antes mesmo do casamento,
ele a adquirira da ex-mulher, dando em troca a casa da família no centro de Londres. E essa primeira esposa a havia ganho num acerto de divórcio com um ex-marido.
Irrelevante, Fiona não se furtou a declarar.
Um estalido no assoalho a fez olhar para cima. Jack parou na porta antes de preparar um drinque. Vestia uma calça jeans e uma camisa branca desabotoada no peito.
Será que se imaginava desejável? Reparou que ele não fizera a barba. Até mesmo do outro lado da sala os pelos pareciam grisalhos. Patético, ambos eram patéticos.
Ele se serviu de um uísque e levantou a garrafa na direção dela. Fiona disse não com a cabeça. Ele deu de ombros e atravessou a sala para se sentar em sua poltrona.
Ela era uma desmancha-prazeres, não sabia aproveitar o bom momento. Ele se acomodou com um suspiro de quem se sente em casa. A poltrona dele, a chaise longue dela,
outra vez a vida de casados. Ela olhou para a página em sua mão, a narrativa feita pela esposa do mundo desejável do guitarrista, impossível de absorver. Fez-se
silêncio enquanto ele bebia e ela olhava através da sala para nada em especial.
Então ele disse: “Olha, Fiona, eu te amo”.
Depois de alguns segundos, ela disse: “Prefiro que você durma no quarto de hóspedes”.
Ele baixou a cabeça em sinal de concordância. “Vou pegar minha mala.”
Jack não se levantou. Ambos conheciam a vitalidade do não dito, cujos espíritos invisíveis dançavam agora em volta deles. Ela não lhe dissera para se manter fora
do apartamento, aceitando tacitamente que ele podia dormir lá. Ele não lhe dissera ainda se a especialista em estatística o havia mandado embora, ou se ele tinha
mudado de opinião, ou se já havia experimentado um êxtase suficiente para durar até o túmulo. A mudança das fechaduras não fora comentada. Ele provavelmente achou
estranho Fiona ter chegado tão tarde. Ela mal suportava olhar para ele. O que se fazia necessário agora era uma briga, com vários capítulos se estendendo ao longo
do tempo. Talvez houvesse algumas digressões rancorosas, o arrependimento de Jack poderia vir embrulhado em reclamações, talvez demorasse meses até ela recebê-lo
na cama, o fantasma da outra mulher era capaz de pairar entre eles para sempre. Mas eles provavelmente encontrariam uma forma de recuperar, mais ou menos, o que
haviam tido antes.
A ideia do imenso esforço envolvido e da previsibilidade do processo a cansou ainda mais. No entanto, ela estava obrigada a segui-lo. Como se, por contrato, devesse
escrever um manual de direito enfadonho mas necessário. Achou que, afinal, gostaria de tomar um drinque, embora isso se parecesse demais com uma celebração. Estava
muito longe de uma reconciliação. Acima de tudo, não aguentaria ouvir outra vez que ele a amava. Queria estar sozinha na cama, de costas no escuro, mordiscando uma
fruta, deixando o resto cair no chão, até apagar de todo. O que a impedia de fazer isso? Ela se pôs de pé e começou a recolher seus documentos. Foi quando ele começou
a falar.
Foi uma torrente, em parte desculpas, em parte autojustificações, algumas das quais ela já ouvira. A mortalidade dele, os anos de total fidelidade, sua avassaladora
curiosidade de saber como seria, mas depois que saiu naquela noite, depois que chegou ao apartamento de Melanie, não demorou muito para se dar conta do erro. Ela
era uma estranha, ele não a entendia. E quando foram para o quarto dela...
Fiona levantou a mão em sinal de alerta. Não queria ouvir nada sobre o quarto. Ele fez uma pausa, refletiu, e continuou. Ele era um imbecil, ele percebeu, por se
deixar levar por uma necessidade sexual, quando deveria ter dado meia-volta naquela noite no momento em que ela abriu a porta, porém se sentiu envergonhado e obrigado
a ir adiante.
Apertando sua pasta contra o estômago, Fiona ficou no centro da sala observando-o, se perguntando como fazê-lo parar. Surpreendia-se que mesmo agora, com o dramalhão
conjugal em sua cena de abertura, a canção irlandesa continuasse girando em seu cérebro, o ritmo mais rápido para acompanhar o compasso da fala de Jack, soando ao
mesmo tempo mecânica e festiva como se tocada por um realejo de rua. Seus sentimentos eram confusos, obscurecidos pela fadiga e de difícil definição enquanto sobre
ela jorravam as palavras chorosas do marido. Sentiu nem tanto fúria ou um ressentimento amargo, conquanto algo mais que mera resignação.
Sim, disse Jack, ao chegar ao apartamento de Melanie ele se sentiu estupidamente obrigado a seguir em frente com o que começara. “E, quanto mais preso na armadilha
eu me sentia, mais me dava conta de como eu era um idiota por ameaçar tudo o que temos, tudo o que construímos juntos, este amor que...”
“Tive um dia longo”, ela disse ao atravessar a sala. “Vou pôr sua mala no corredor.”
Parou na cozinha para pegar uma maçã e uma banana em meio às compras postas sobre a mesa. Carregá-las no caminho para o quarto trouxe de volta a felicidade relativa
que sentira no trajeto entre o trabalho e a casa. Os primórdios de certa tranquilidade. Difícil de resgatar agora. Abriu a porta e viu a mala dele de pé sobre as
rodinhas, placidamente posta junto à cama. Então lhe ocorreu com clareza o que sentia com a volta de Jack. Tão simples. Era desapontamento por ele não ter continuado
longe. Só por mais algum tempo. Apenas isso. Desapontamento.
4.
Embora os fatos não o confirmassem, ela teve a impressão de que, no final do verão de 2012, os rompimentos e as crises conjugais ou crises entre parceiros na Grã-Bretanha
cresceram como uma maré aberrante de primavera, varrendo lares do mapa, espalhando bens e sonhos esperançosos, afogando quem não tinha um forte instinto de sobrevivência.
Promessas de amor foram negadas ou reformuladas, bons companheiros se transformaram em ardilosos combatentes escudados atrás de advogados, sem se importar com os
custos. Objetos da casa antes desdenhados eram motivo de amargas disputas, a tranquila confiança de outrora substituída por “acertos” redigidos com todo o cuidado.
Na mente dos envolvidos, a história do casamento era reescrita para que ele fosse visto como fadado ao insucesso desde o começo, o amor repaginado como mera ilusão.
E os filhos? Peças de um jogo, elementos de barganha a serem usados pelas mães; pretexto para acusações de abusos feitas em geral pelas mães, às vezes pelos pais,
embora fossem com frequência fantasiosas ou inventadas com todo o cinismo; crianças em estado de choque indo e vindo semanalmente de uma casa para a outra com base
em acordos de guarda compartilhada, o esquecimento de casacos e caixas de lápis sendo comunicado por meio de advogados; crianças condenadas a verem o pai uma ou
duas vezes por mês; ou nunca, pois os homens mais audaciosos desapareciam na oficina de ferreiro de um novo e quente matrimônio para forjar outros rebentos.
E o dinheiro? As novas moedas eram as meias verdades e os apelos especiais. Maridos gananciosos contra esposas gananciosas, manobrando como nações ao final de uma
guerra, tentando salvar das ruínas todos os despojos que podiam antes da retirada final. Homens ocultavam recursos em contas no exterior, mulheres exigiam para sempre
uma vida de conforto. Mães impediam crianças de ver os pais apesar de ordens judiciais; pais se negavam a oferecer sustento aos filhos apesar de ordens judiciais.
Maridos agrediam esposas e filhos, esposas mentiam ou maquinavam ardis, um ou outro, ou ambos, bêbados, viciados em drogas ou psicóticos; e crianças eram obrigadas
a tomar conta de pais incapazes, crianças de fato vítimas de abusos sexuais ou mentais, ou ambos, seus depoimentos transmitidos numa tela ao tribunal. E já fora
da área de competência de Fiona, em casos julgados pelas cortes criminais e não pelas varas de família, crianças torturadas, mortas de fome ou por espancamento,
espíritos maus arrancados de dentro delas em ritos animistas, padrastos jovens e cruéis quebrando ossos de bebês sob os olhares abobalhados e cúmplices das mães,
e drogas, álcool, sujeira doméstica extrema, vizinhos indiferentes e seletivamente surdos para não ouvir os gritos, assistentes sociais descuidados ou atarefados
demais para intervir.
O trabalho das varas de família não cessava. Era por simples acaso que tantos conflitos conjugais caíssem no colo de Fiona. Pura coincidência que ela própria estivesse
vivendo um conflito similar. Naquele setor do Judiciário, não era comum mandar gente para a cadeia, mas, apesar disso, em certos momentos ela tinha vontade de ordenar
que fossem encarcerados aqueles demandantes que, à custa dos filhos, desejavam uma mulher mais jovem, um marido mais rico ou menos enfadonho, um bairro mais elegante,
novas aventuras sexuais, novos amores, uma nova visão do mundo, um bom reinício antes que fosse tarde demais. A simples busca do prazer. Vulgaridade moral. Sua falta
de filhos e a situação com Jack davam forma a esses devaneios e, naturalmente, eles não eram para valer. Entretanto, embora mergulhasse bem fundo em seu reino mental,
ela nunca deixava que suas decisões fossem afetadas pelo desprezo puritano que devotava aos homens e às mulheres que destruíam sua família e se persuadiam de que
agiam altruisticamente pelo bem de todos. Nesses experimentos intelectuais, ela não teria poupado as pessoas sem filhos ou, pelo menos, não Jack. Um período de contrição
atrás das grades por contaminar o casamento deles em nome de uma novidade? Por que não?
Porque, depois do retorno dele, a vida no apartamento da Gray’s Inn era lúgubre e silenciosa. Tinha havido brigas durante as quais ela pusera para fora alguns sentimentos
amargos. Doze horas depois esses sentimentos se renovavam tão ardentemente quanto os votos matrimoniais, nada mudava, o ar não ficava mais “limpo”. Ela permanecia
traída. Ele apimentava suas desculpas com velhas recordações de que ela o isolara, de que era fria. Disse até, certa noite bem tarde, que ela era “uma chata” e havia
“perdido a arte de sentir prazer”. De todas as acusações, essas foram as que mais a incomodaram, porque ela percebia serem verdadeiras, o que em nada diminuiu sua
raiva.
Pelo menos ele deixara de dizer que a amava. Na troca de palavras mais recente, dez dias antes, fora reiterado tudo o que haviam se dito antes, todas as recriminações,
todas as defesas, todas as frases bem formuladas que eram fruto de uma longa elucubração prévia, até que depuseram as armas, cansados um do outro e de si próprios.
Desde então, nada. Moviam-se o dia todo, cada qual cuidando de seus afazeres em diferentes partes da cidade e, quando confinados no apartamento, evitavam cuidadosamente
se tocar, como dançarinos numa quadrilha. Eram sucintos e competiam em matéria de cortesia quando forçados a decidir sobre questões referentes à casa, buscavam não
comer juntos, trabalhavam em cômodos separados, com a atenção prejudicada pela vívida consciência, através das paredes, da presença radioativa do outro. Sem necessidade
de discuti-lo, declinavam todos os convites conjuntos. O único gesto conciliatório dela consistiu em lhe dar uma nova chave.
De comentários evasivos e taciturnos dele, ela deduziu que, no quarto da especialista em estatística, Jack não transpusera os portões do paraíso. O que não era tão
tranquilizador. Ele provavelmente iria tentar a sorte em outro lugar, talvez já estivesse tentando, desta vez livre das tristes amarras da honestidade. Suas “aulas
de geologia” poderiam ser um bom subterfúgio. Ela se lembrava de haver prometido abandoná-lo se ele fosse em frente com Melanie. Mas Fiona não tinha tempo para desfazer
aquele complexo nó. E ainda estava indecisa, não confiava em seu atual estado de espírito. Caso ele houvesse lhe dado mais tempo depois de sair de casa, ela teria
chegado a uma decisão clara e se empenhado em terminar o casamento ou reconstruí-lo. Por isso, se entregou ao trabalho na forma usual e resolveu sobreviver dia após
dia o drama agora serenado de sua vida com Jack.
Quando uma de suas sobrinhas deixou lá as filhas durante um fim de semana, gêmeas idênticas de oito anos, as coisas ficaram mais fáceis, o apartamento ficou maior,
porque as atenções se voltaram para fora. Por duas noites Jack dormiu no sofá da sala de visitas sem que as meninas fizessem perguntas. Pertenciam a um tipo antiquado
de crianças que mantinham as costas bem retas, com modos solenes e afetuosos, embora sujeitas a brigas repentinas e explosivas. Uma ou outra — era fácil distinguir
as duas — procurava Fiona onde ela estivesse lendo e, postada diante dela, descansando uma mão confiante em seu joelho, despejava uma torrente prateada de historinhas,
reflexões e fantasias. Fiona replicava com suas próprias historinhas. Duas vezes, durante aquela visita, aconteceu que, enquanto ela falava, uma onda de amor pela
menina contraiu sua garganta e marejou seus olhos. Ela estava se sentindo velha e tola. Incomodava-a relembrar como Jack era bom com as crianças. Correndo o risco
de ter uma crise de coluna, como aconteceu certa vez com os três filhos do irmão de Fiona, ele fazia brincadeiras pesadas, de que as meninas participavam com acessos
de gritos inumanos. Em casa, a mãe delas, ressentida por causa do divórcio, jamais as jogava para o alto de cabeça para baixo. Ele as levou aos jardins para ensinar
uma versão de críquete que tinha inventado, além de ler uma longa história para elas na cama com vibrante energia cômica e talento na imitação das vozes.
Mas um domingo à noite, depois que as gêmeas foram levadas, os aposentos se encolheram, o ar ficou pesado e Jack saiu sem dar explicações — sem dúvida um ato hostil.
Para um encontro amoroso, ela imaginou, enquanto se ocupava arrumando o quarto de hóspedes para impedir que seu moral baixasse ainda mais. Repondo os brinquedos
macios na cesta de vime onde residiam, recuperando as contas de vidro e os desenhos rejeitados debaixo da cama, ela sentiu a melancolia mansa e envolvente, uma forma
de nostalgia instantânea, que a ausência repentina de crianças pode causar. Aquele sentimento durou até a manhã de segunda-feira e cresceu até se transformar numa
tristeza generalizada, que a perseguiu na caminhada para o trabalho. Só começou a se dissipar quando ela se sentou à sua mesa a fim de se preparar para o primeiro
caso da semana.
Em algum momento Nigel Pauling deve ter trazido a correspondência, porque a pilha de cartas se encontrava subitamente perto de seu cotovelo. Vendo o pequeno envelope
azul-claro em cima de todos, ela quase chamou seu assistente para abri-lo. Não estava com vontade de ler mais uma profusão de agressões verbais de algum analfabeto
ou ameaças de violência. Voltou ao trabalho, mas não conseguiu se concentrar. O envelope absurdo, as letras arredondadas, a falta de um código postal, o selo ligeiramente
torto — era demais. Mas, olhando uma vez mais, ela reparou no carimbo postal e foi tomada por uma repentina suspeita. Sopesou a carta por um instante e a abriu.
No momento seguinte, viu pela saudação que estava certa. Tinha aguardado vagamente por aquilo durante semanas. Havia falado com Marina Greene e soubera que ele estava
progredindo bem, já fora do hospital, recuperando em casa o tempo de estudos perdido e esperando voltar à sala de aulas em breve.
Três páginas azul-claras, escritas em cinco lados. O primeiro tinha o número sete dentro de um círculo posto no centro e no alto da página. Acima da data.
Meritíssima!
Esta é minha sétima carta e acho que vai ser a que porei no correio.
As primeiras palavras do parágrafo seguinte tinham sido riscadas.
Vai ser a mais simples e a mais curta. Só quero lhe descrever um acontecimento. Entendo agora como ele foi importante. Mudou tudo. Estou feliz por ter esperado porque
não gostaria que a senhora visse as outras cartas. Muito embaraçosas! Mas não tão terríveis como os nomes que lhe chamei quando Donna me anunciou sua decisão. Eu
estava certo de que a senhora tinha visto as coisas do meu jeito. Na verdade, guardei perfeitamente o que me disse, que era óbvio que eu sabia o que queria, e lembro
que lhe agradeci. Eu ainda estava tendo um ataque de raiva e xingando quando aquele horrível médico assistente, o dr. “me chama de Rodney” Carter, entrou com meia
dúzia de pessoas e o equipamento. Eles pensaram que iam precisar me segurar. Mas eu estava fraco demais e, mesmo furioso, sabia o que a senhora queria que eu fizesse.
Por isso, estendi o braço e eles começaram. A ideia de que o sangue de alguém entrava no meu corpo foi tão nojenta que vomitei na cama.
Mas não é isso que quero lhe contar. É o seguinte. Como mamãe não conseguiu assistir, ela ficou sentada do lado de fora do quarto e eu ouvia seu choro, o que me
deixou muito triste. Não sei quando papai apareceu. Acho que fiquei desmaiado algum tempo e, quando retomei os sentidos, os dois estavam ao lado da minha cama —
ambos chorando, e me senti ainda mais triste porque todos nós estávamos desobedecendo a Deus. Mas o importante, e levei algum tempo para entender isto, é que eles
estavam chorando de ALEGRIA! Estavam muito felizes, me abraçando e se abraçando, agradecendo a Deus e soluçando. Eu me senti muito esquisito e não entendi nada por
um ou dois dias. Nem pensava naquilo. Então comecei a pensar. Meus pais seguiram os ensinamentos, obedeceram aos anciãos, fizeram tudo certo e podem esperar ser
aceitos no paraíso aqui na Terra — e ao mesmo tempo podem me ter vivo sem que nenhum de nós seja expulso da Igreja. Transfusão feita, mas não por culpa nossa! Culpa
da juíza, culpa do sistema sem fé, culpa do que às vezes chamamos de “mundo”. Que alívio! Ainda temos nosso filho embora tivéssemos dito que ele devia morrer.
Não sei como interpretar isto. Foi uma fraude? Para mim foi uma mudança de direção. Estou resumindo a história. Quando eles me trouxeram para casa, tirei a Bíblia
do meu quarto, simbolicamente a botei virada para baixo numa cadeira do corredor e disse que eu não ia mais voltar ao Salão do Reino, que podiam me expulsar da igreja
se quisessem. Tivemos umas brigas horríveis. O sr. Crosby tem vindo me convencer. Nenhuma chance. Estou escrevendo para a senhora porque preciso mesmo falar com
a senhora, preciso ouvir sua voz calma e aproveitar sua mente clara para discutir comigo este assunto. Sinto que a senhora me levou para perto de alguma outra coisa,
alguma coisa de fato bonita e profunda, mas não sei bem o que é. A senhora nunca me disse no que acreditava, mas adorei quando sentou ao meu lado e executamos “The
Salley Gardens”. Ainda leio o poema todos os dias. Gosto de ser “jovem e tolo”, e, se não fosse pela senhora, eu não seria nem uma coisa nem outra, eu estaria morto!
Eu lhe escrevi uma porção de cartas bobas, penso na senhora o tempo todo e quero mesmo ver a senhora para nos falarmos outra vez. Sonho acordado sobre nós, fantasias
maravilhosas e impossíveis, como a de que vamos fazer uma viagem de volta ao mundo juntos num navio, em camarotes vizinhos, e que passeamos o dia todo pelo convés
conversando.
Meritíssima, me escreva por favor, apenas algumas palavras para dizer que leu esta carta e que não me odeia por tê-la escrito.
Sempre seu,
Adam Henry
P.S.: Esqueci de dizer que estou ficando cada dia mais forte.
Ela não respondeu, ou melhor, não pôs no correio o bilhete que levou mais de uma hora para escrever naquela noite. No quarto e último rascunho, pensou ter sido bastante
afetuosa, feliz de sabê-lo em casa e se sentindo melhor, contente por ele ter boas recordações da visita dela. Aconselhou-o a ser carinhoso com os pais. Era normal,
como adolescente, questionar as crenças com que havíamos sido criados, mas isso devia ser feito de modo respeitoso. Terminou dizendo, embora não fosse verdade, que
havia ficado atraída pela ideia de uma volta ao mundo num navio. Acrescentou que, quando jovem, tinha sonhos de fuga como o dele. Isso também não era verdade, pois
ela havia sido ambiciosa demais, mesmo com dezesseis anos, ávida demais por boas notas nos exames para pensar em escapar. As visitas como adolescente a seus primos
de Newcastle foram suas únicas aventuras. Olhando a cartinha no dia seguinte, não foi a afetuosidade que a impressionou, e sim a frieza, os conselhos esfarrapados,
a linguagem impessoal, as falsas lembranças. Releu a carta dele e foi mais uma vez tocada por sua inocência e calor humano. Melhor não mandar nada do que decepcioná-lo.
Se mudasse de opinião, poderia escrever mais tarde.
Estava se aproximando o momento em que realizaria o circuito itinerante, visitando cidades inglesas e antigos vilarejos na companhia de outro juiz especializado
em direito criminal e cível. Ela julgaria casos que, de outra forma, precisariam ser transferidos para os tribunais de Londres. Ela ficaria hospedada em locais especialmente
bem preservados, mansões impressionantes de interesse histórico e arquitetônico onde, em certos casos, as adegas eram lendárias e as cozinheiras provavelmente decentes.
As autoridades do lugar costumavam convidá-la para jantar. Ela e seu colega retribuiriam a gentileza nas casas onde estivessem instalados, convidando figuras eminentes
ou interessantes (havia uma clara distinção entre as duas categorias) da localidade. Os quartos de dormir eram bem mais sofisticados que o seu, as camas mais largas,
os lençóis de tecido mais fino. Em tempos mais felizes, havia, para uma mulher bem casada, um elemento de culpa e prazer sensual naquelas acomodações a sós. Agora,
ela ansiava escapar do silencioso e solene pas de deux em casa. E a primeira parada era sua cidade inglesa predileta.
Certa manhã no começo de setembro, uma semana antes de iniciar a viagem, ela recebeu uma segunda carta. Mesmo antes de lê-la sua preocupação desta vez foi maior,
porque o envelope azul se encontrava sobre o capacho do vestíbulo de seu apartamento, em meio a circulares e a uma conta de luz. Nenhum endereço, só o nome dela.
Bem simples para Adam Henry esperar no Strand ou na Carey Street e segui-la à distância.
Jack já tinha saído para o trabalho. Ela levou a carta para a cozinha e se sentou diante dos restos do café da manhã.
Meritíssima,
Nem sei o que escrevi porque não guardei uma cópia, mas tudo bem que a senhora não tenha respondido. Ainda preciso conversar com a senhora. Aqui estão minhas notícias
— grandes brigas com meus pais, fantástico estar de volta à escola, me sentindo melhor, me sentindo feliz e depois infeliz e feliz outra vez. Às vezes a ideia do
sangue de um estranho dentro de mim me causa enjoo, como se eu tivesse bebido a saliva de alguém. Ou pior. Não posso me livrar da ideia de que a transfusão é uma
coisa errada, mas não me importo mais. Tenho tantas perguntas para a senhora, mas nem tenho certeza de que se lembra de mim. A senhora deve ter tido dezenas de casos
desde o meu e feito um bocado de escolhas sobre outras pessoas. Sinto ciúme! Quis conversar com a senhora na rua, chegar perto e tocar no seu ombro. Não fiz isso
porque sou um covarde. Achei que a senhora podia não me reconhecer. A senhora também não precisa responder a esta carta — o que significa que espero que responda.
Por favor, não se preocupe, não quero atormentá-la ou nada parecido. Só sinto que a tampa da minha cabeça explodiu. Está saindo tudo!
Sinceramente seu,
Adam Henry
Fiona mandou imediatamente um e-mail para Marina Greene perguntando se ela podia encontrar um tempinho para visitar o rapaz num acompanhamento de rotina e depois
lhe enviar um relatório. Recebeu o retorno antes do fim do dia. Marina se encontrara com Adam durante a tarde na escola, onde ele estava começando um período de
estudos especiais a fim de se preparar para os exames antes do Natal. Ficou meia hora com ele, que havia engordado e estava corado. Mostrou-se animado, até mesmo
“engraçado e travesso”. Havia alguns problemas em casa, a maior parte sobre diferenças religiosas com os pais, mas ela não achou nada de estranho nisso. Em particular,
o diretor lhe disse que Adam, depois de voltar do hospital, havia trabalhado bastante para recuperar o tempo perdido. Seus professores consideravam que ele estava
progredindo otimamente. Contribuía bastante para as atividades em sala de aula, nenhum problema de comportamento. Em suma, tudo corria bem. Tranquilizada, Fiona
decidiu não escrever para ele.
Uma semana depois, na manhã da segunda-feira em que deveria viajar para o nordeste da Inglaterra, ocorreu um desvio minúsculo na falha geológica conjugal, um movimento
quase tão imperceptível quanto o deslocamento das placas tectônicas. Foi tácito, algo não reconhecido abertamente. Mais tarde, quando se encontrava no trem e repassou
tudo, o instante pareceu se situar na fronteira entre o real e o imaginado. Será que ela podia confiar em sua memória? Eram sete e meia quando entrara na cozinha.
Jack estava de pé junto ao balcão, de costas para ela, despejando grãos de café no moedor. A pasta dela já estava no corredor e Fiona cuidava de recolher uns poucos
documentos que faltavam. Como de hábito, ficou relutante em dividir um espaço pequeno com ele. Pegou a echarpe das costas da cadeira e saiu para continuar a busca
na sala de visitas.
Voltou alguns minutos depois. Jack tirava uma jarra de leite do micro-ondas. Eles eram exigentes em matéria de café da manhã e, no curso dos anos, seus gostos tinham
convergido. Gostavam de café forte feito com grãos colombianos de alta qualidade, servido em canecas brancas e altas de borda fina, com leite morno, e não quente.
Ainda de costas para ela, Jack derramou leite em seu café e depois se voltou com a caneca erguida e ligeiramente estendida na direção dela. Nada na expressão de
Jack sugeria que ele estava lhe oferecendo a caneca, e ela nem assentiu nem recusou com a cabeça. Os olhos dos dois se encontraram por um instante, e então ele depositou
a caneca na mesa de pinho e empurrou-a uns cinco centímetros na direção dela. Isso não significava necessariamente muito, pois, em suas tensas manobras para se evitar,
ambos permaneciam escrupulosamente corteses, como se cada qual estivesse procurando superar o outro em se mostrar razoável, os dois irrepreensíveis graças à ausência
de rancor. Não faria sentido preparar um bule de café só para uma pessoa. Mas há maneiras e maneiras de pôr uma caneca na mesa, desde a batidinha peremptória da
porcelana contra a madeira até o pouso silencioso e cuidadoso, assim como há maneiras e maneiras de aceitar uma caneca, coisa que ela fez mansamente, em câmera lenta,
sem se afastar tão logo tomou um gole, ou não tão de imediato quanto o teria feito em qualquer outra manhã. Passaram-se alguns segundos de silêncio, em seguida pareceu
que isso era o mais longe que ambos estavam preparados para ir, que o momento continha coisas demais para eles e que tentar algo além os faria recuar. Jack se afastou
a fim de preparar uma caneca para ele, enquanto Fiona se afastou para ir buscar alguma coisa no quarto. Moveram-se um pouco mais devagar do que era comum, talvez
quase com relutância.
No começo da tarde, ela chegou a Newcastle. Um motorista esperava do lado de lá das catracas para levá-la aos tribunais de Quayside. Nigel Pauling a aguardava na
entrada dos magistrados e a conduziu ao gabinete que ela ocuparia. Ele chegara de Londres de manhã com os documentos e as togas — os paramentos completos, como disse
—, porque Fiona participaria da Corte da Rainha além da Vara da Família. O assistente do tribunal apareceu para dar as boas-vindas formais, seguido do funcionário
que cuidava da agenda, com o qual ela repassou os casos a serem ouvidos nos dias seguintes.
Como havia outras pequenas matérias a tratar, só por volta das quatro da tarde Fiona ficou livre para sair. A previsão era de que uma tempestade de verão chegaria
do sudoeste no começo da noite. Ela mandou que o motorista esperasse e deu uma caminhada pelo calçadão junto ao rio, passando por baixo da ponte Tyne e ao longo
de Sandhill, pelos novos cafés ao ar livre e por jardins floridos junto a sólidos prédios comerciais com fachadas clássicas. Subiu as escadas até Castle Garth e
parou no alto para olhar o rio que ficara para trás. Ela tinha uma queda por aquela mistura exuberante de peças poderosas de ferro fundido, aço e vidro pós-industrial,
de velhos armazéns salvos da decrepitude por uma fantasia juvenil de cafés e bares. Compartilhava um passado com Newcastle e se sentia bem lá. Na adolescência, durante
as recorrentes doenças de sua mãe, ia passar algum tempo ali com suas primas prediletas. Tio Fred, dentista, era o homem mais rico que ela conhecia. Tia Simone ensinava
francês numa escola primária. A casa era agradavelmente caótica, uma libertação dos domínios de sua mãe em Finchley, encerados ao exagero e insuficientemente arejados.
As primas, de sua idade, eram alegres e aventurosas, obrigando-a a sair à noite em missões aterradoras que incluíam a ingestão de bebidas e quatro músicos dedicados
com cabelos até a cintura e bigodes de pontas caídas, que pareciam transviados mas provaram ser gente boa. Seus pais ficariam horrorizados de saber que a filha estudiosa
de dezesseis anos era presença assídua em certos bares, que bebia licor de cereja e cuba-libre, e tivera seu primeiro amante. E, juntamente com as primas, ela era
a tiete fiel, e tolerada como assistente novata, de uma banda de blues mal equipada e mal remunerada, ajudando a carregar amplificadores e peças da bateria numa
caminhonete enferrujada que vivia enguiçando. Com frequência afinava as guitarras. Sua emancipação tinha muito a ver com o fato de que aquelas visitas, além de ocasionais,
nunca duravam mais que três semanas. Se permanecesse por mais tempo — nunca uma possibilidade real —, talvez fosse até autorizada a cantar os blues. Poderia ter
se casado com Keith, o principal cantor do grupo e tocador de gaita, que tinha um braço atrofiado e a quem ela adorava timidamente.
Tio Fred mudou seu consultório para o sul do país quando ela tinha dezoito anos, o caso com Keith acabou em lágrimas e em alguns poemas de amor que ela não enviou.
Fiona jamais voltou a viver esse tipo de relacionamento arriscado e tremendamente divertido, o qual se tornou parte inseparável da ideia que fazia de Newcastle.
Não seria possível reproduzi-lo em Londres, a sede de suas ambições profissionais. Por vários anos ela voltara ao Nordeste sob diversos pretextos, além de quatro
vezes para cumprir o circuito judiciário. Sempre fazia bem ao seu espírito se aproximar da cidade pela alta ponte Stephenson sobre o rio Tyne, chegando com o espírito
excitado de uma adolescente, descendo do trem na gare central sob os três grandes arcos criados por John Dobson e saindo pela extravagante porte cochère neoclássica
desenhada por Thomas Prosser. Foi seu tio dentista, recebendo-a com seu Jaguar verde e suas primas impacientes, quem a ensinou a apreciar a gare e os tesouros arquitetônicos
da cidade. Ela nunca se desfizera da impressão de estar no exterior, de se encontrar numa cidade-Estado báltica caracterizada por um curioso otimismo e orgulho.
O ar era mais revigorante, a luz de um cinzento amplo e luminescente, os habitantes amistosos, porém mais incisivos, autoconscientes ou ironizando a si próprios
como atores numa comédia. Perto do sotaque deles, o dela parecia tenso e artificial. Se, como Jack insistia, a geologia moldava a variedade de tipos e de destinos
dos ingleses, então os moradores da cidade eram feitos de granito e ela de calcário friável. Mas, com sua paixonite juvenil pela cidade, com suas primas, a banda
e o primeiro namorado, acreditava que poderia mudar, se tornar mais autêntica, mais verdadeira, uma genuína cidadã daquela região. Anos depois, recordar-se de tal
ambição ainda a fazia sorrir. No entanto, o sentimento lá estava em cada regresso, uma vaga noção de renovação, de um potencial não explorado em outra vida — e isso
mesmo às vésperas de fazer sessenta anos.
O carro em cujo assento ela se reclinou era um Bentley da década de 1960, e seu destino o Leadman Hall, situado dentro de seu próprio parque a um quilômetro e meio
dos portões que ela agora transpunha. Logo passou por um campo de críquete, depois por uma alameda de faias com as copas já agitadas pelo vento que crescia, mais
tarde por um lago tomado por plantas aquáticas. O palacete, no estilo do arquiteto Andrea Palladio e havia pouco tempo pintado de um branco brilhante demais, tinha
doze quartos e nove empregados para servir a dois magistrados do Tribunal Superior em seu circuito itinerante. Pevsner, conhecido historiador da arte arquitetônica,
aprovara sem grande entusiasmo a estufa, e nada mais. Somente uma anomalia burocrática havia preservado Leadman de ser destruído por medida de economia do governo,
mas o jogo estava chegando ao fim porque aquele era o último ano em que a construção iria contar com o Judiciário. O palacete, alugado algumas semanas por ano de
uma família da região com interesses históricos na mineração de carvão, servia principalmente como centro de conferências e local para festas de casamento. Seu campo
de golfe, quadras de tênis e piscina externa aquecida eram, como agora se reconhecia, luxos desnecessários para juízes de passagem e muito atarefados. Do ano seguinte
em diante, uma empresa de táxi da cidade forneceria um espaçoso Vauxhall para substituir o Bentley. As acomodações seriam num hotel do centro de Newcastle. Os magistrados
da Vara Criminal, que às vezes mandavam para a prisão por longos períodos homens da região com parentes assustadores, tinham clara preferência pelo isolamento de
um palacete. Mas ninguém era capaz de argumentar em favor de Leadman sem dar a impressão de que o fazia por puro interesse.
Pauling esperava com a governanta no pátio de cascalho junto à entrada principal. Ele desejava dar um sentido especial àquela derradeira visita. Aproximou-se da
porta de trás do carro com um floreio irônico e bateu os calcanhares. Como sempre, a governanta era nova, uma polonesa de uns vinte e poucos anos, calculou Fiona,
mas seu olhar era direto e frio, e ela pegou com firmeza a mala mais pesada da juíza até que Pauling a tomou de sua mão. Lado a lado, o assistente e a governanta
conduziram Fiona ao quarto do primeiro andar que ela considerava como seu. Ficava na frente da casa, com três janelas altas que davam para a alameda de faias e para
o trecho do lago invadido por ervas. Além do quarto de quase dez metros de comprimento, havia a sala de estar com uma mesa de trabalho. O banheiro, no entanto, ficava
no fim de um corredor e três degraus atapetados abaixo do nível do quarto. Na última vez em que Leadman tinha sido modernizado, a proliferação generalizada de lavatórios
e chuveiros ainda não começara.
A tempestade chegou quando Fiona saiu do banho. Vestida com um penhoar, plantou-se diante da janela central observando as pancadas de chuva, cortinas fantasmagóricas
que corriam velozes e, por segundos, ocultavam os campos. Viu o galho mais alto de uma das faias próximas se partir e começar a cair, ficando de cabeça para baixo
e balançando ao ser contido pelos galhos mais baixos, até mergulhar de novo, voltar a se emaranhar e ser enfim liberado pelo vento para se chocar com um baque contra
o solo. Quase tão alto quanto o silvar da chuva no cascalho era o coro de gemidos nas calhas do telhado. Ela acendeu as luzes e começou a se vestir. Já estava atrasada
dez minutos para o xerez na sala de visitas.
Quatro homens de terno preto e gravata, cada qual com seu gim e sua tônica, pararam de conversar e se ergueram das poltronas quando ela entrou. Um garçom de paletó
branco engomado foi preparar o drinque dela, enquanto Caradoc Ball da Corte da Rainha, colega de Fiona encarregado dos casos criminais, apresentou-a aos demais —
um professor de jurisprudência, um homem que tinha negócios no setor de fibras ópticas e alguém que trabalhava para o governo na conservação da costa marítima. Todos
de alguma forma eram ligados a Ball. Ela não convidara ninguém para a primeira noite. Seguiu-se a conversa obrigatória sobre o clima tempestuoso. Depois, uma digressão
sobre como as pessoas de mais de cinquenta anos e todos os norte-americanos ainda viviam no mundo das temperaturas medidas em Fahrenheit. Depois, como os jornais
britânicos, para obter o máximo de impacto, noticiavam as baixas temperaturas em graus Celsius e as quentes em Fahrenheit. Durante todo o tempo ela se perguntava
por que o rapaz curvado sobre o carrinho de bebidas estava demorando tanto. Ele trouxe o drinque dela justamente quando estava sendo lembrada a já distante transição
para as moedas decimais.
Fiona já sabia pelo próprio Ball que ele estava em Newcastle para realizar o novo julgamento de um caso de assassinato no qual um homem era acusado de haver matado
sua mãe em casa com golpes de porrete devido aos maus-tratos que ela infligia à filha mais jovem, meia-irmã do réu. A arma do crime não tinha sido encontrada e a
prova de DNA era inconclusiva. A defesa argumentava que a mulher havia sido morta por um intruso. O julgamento fora anulado quando se descobriu que um jurado tinha
revelado aos outros membros do júri informações que colhera na internet pelo celular. Ele encontrara a reportagem de um jornal sensacionalista, publicada cinco anos
antes, sobre a prévia condenação do homem por agressão violenta. Na nova era de acesso digital, alguma coisa precisava ser feita para “esclarecer” certas questões
aos jurados. O professor de jurisprudência havia pouco tempo apresentara um estudo à Comissão Jurídica, possivelmente objeto da conversa que Fiona interrompera ao
entrar na sala. Agora ela foi retomada. O especialista em fibras ópticas perguntou como seria possível impedir que os jurados buscassem informações na privacidade
de suas casas ou conseguissem que um membro da família o fizesse por eles. Relativamente simples, segundo o professor. Os próprios jurados se policiariam. Seriam
obrigados, sob pena de prisão, a apontar qualquer um deles que discutisse matérias não apresentadas perante o tribunal. Dois anos no máximo pela divulgação de tais
matérias, seis meses no máximo por não informar a violação. A Comissão daria seu parecer conclusivo no ano seguinte.
Nesse momento, o mordomo os convidou a seguirem para a mesa de jantar. Embora não pudesse ter mais de trinta anos, seu rosto era doentiamente pálido, como se coberto
de talco. Tão branco quanto uma aspirina — Fiona certo dia ouvira uma proprietária rural francesa dizer. Mas o mordomo não parecia doente pois mantinha uma atitude
impessoal e segura. Enquanto aguardava à pequena distância, com a cabeça inclinada para a frente em sinal de atenção, eles terminaram seus drinques e, seguindo Fiona,
atravessaram uma porta de folha dupla rumo à sala de jantar. A mesa, que poderia comportar trinta pessoas, estava posta para cinco numa extremidade solitária. A
sala era recoberta de lambris, pintados de um laranja quase fluorescente, com desenhos de flamingos calculadamente espaçados. Os convivas encontravam-se agora no
lado norte da casa, atingido em cheio pelo vento e onde as três janelas de guilhotina sacudiam, produzindo um ruído surdo. O ar estava frio e úmido. Havia um buquê
de flores secas na lareira. O mordomo explicou que ela havia sido bloqueada muitos anos antes, mas que ele traria um aquecedor elétrico. Eles avaliaram a distribuição
dos assentos e, após alguns momentos de polida incerteza, concordaram que, em respeito à simetria, Fiona se sentaria à cabeceira.
Até então ela mal falara. O mordomo pálido serviu um vinho branco. Dois garçons trouxeram patê de arenque e torradas finas. À esquerda dela estava o perito em conservação,
Charlie, um cinquentão gordo, careca e bem-humorado. Enquanto os outros continuavam a falar sobre jurados, ele perguntou cortesmente sobre o trabalho dela. Resignada
a uma rodada de conversinha fiada, Fiona explicou em termos gerais o trabalho da Vara de Família. Mas Charlie queria detalhes. Que tipo de decisão iria tomar no
dia seguinte? Ela se sentia mais feliz falando sobre um caso específico. Uma instituição local desejava ficar com a guarda de duas crianças, um menino de dois anos
e uma menina de quatro. A mãe era alcoólatra e também viciada em anfetaminas. Sofria crises psicóticas durante as quais imaginava estar sendo espionada por lâmpadas
elétricas. Tornara-se incapaz de cuidar de si própria ou das crianças. O pai, separado dela, tinha permanecido distante, mas agora alegava que ele e sua namorada
podiam cuidar das crianças. Ele também enfrentava problemas com drogas e era fichado na polícia, embora tivesse direito sobre os filhos. Um assistente social se
pronunciaria no dia seguinte perante o tribunal acerca da adequação dele como pai. Os avós maternos adoravam as crianças, eram competentes e queriam cuidar delas,
porém não tinham amparo legal para isso. A instituição local, cujo serviço de atendimento a menores havia sido criticado num relatório oficial, se opunha aos avós
por razões que ainda não estavam claras. As três partes — mãe, pai e avós — estavam amargamente divididas. Outra complicação era existirem opiniões contraditórias
acerca da menina de quatro anos. Um pediatra disse que ela tinha necessidades especiais, outro, contratado pelos avós, acreditava que, conquanto a menina estivesse
perturbada pelo comportamento da mãe e abaixo do peso normal por causa das refeições em horários irregulares, seu desenvolvimento era normal.
Havia, Fiona disse, muitos outros casos similares agendados para aquela semana. Charlie levou a mão à testa e fechou os olhos. Que encrenca! Se ele tivesse de tomar
uma decisão na manhã seguinte em um só caso como aquele, ficaria acordado a noite toda, roendo as unhas e abusando das bebidas oferecidas no quarto do hotel. Fiona
perguntou por que ele estava lá. Charlie tinha vindo de Whitehall a fim de persuadir um grupo de fazendeiros da costa a se unir a algumas organizações de proteção
ambiental, para permitirem que suas pastagens voltassem a ser cobertas pela água do mar, retornando à condição de pântanos salgados. Essa era de longe a melhor e
mais barata forma de defesa contra a inundação da costa, maravilhosa para a vida selvagem, sobretudo pássaros, e boa também para o turismo de pequena escala. Mas
havia uma forte oposição de certos segmentos do setor agrícola, embora os fazendeiros fossem ser bem recompensados. Durante todo o dia o tinham calado aos berros
nas reuniões. Corria o rumor de que o plano era compulsório. Ninguém acreditava nele quando dizia que não era assim. Viam-no como um representante do governo central,
com o qual os fazendeiros estavam irritados por uma série de outras questões que não eram de sua alçada. No final, tinha levado uns trancos num corredor. Um indivíduo
“com metade da minha idade e o dobro da minha força” havia agarrado sua gola e murmurado alguma coisa com o sotaque local que ele não tinha entendido. Melhor assim.
Amanhã ele voltaria e tentaria de novo. Estava certo de que no final iria conseguir o que queria.
Bom, isso soava a ela como um dos círculos especiais do inferno, bem pior do que qualquer mãe psicótica. Os dois estavam dando umas risadinhas por conta dessa observação,
quando perceberam que os outros três tinham abandonado a conversa deles e os ouviam.
Caradoc Ball, que era um velho colega de escola de Charlie, disse: “Espero que você saiba que está falando com uma juíza muito eminente. Certamente se lembra do
caso dos irmãos siameses”.
Todos se lembravam e, à medida que os pratos foram retirados e o boeuf en croûte servido com um Château Latour, conversaram e fizeram perguntas a ela sobre o famoso
caso. Fiona lhes disse tudo o que queriam saber. Todos tinham uma opinião, mas, como era a mesma, logo passaram a discutir a paixão que a história suscitara nos
jornais e como eles a haviam disputado. Dali foi um passo para uma troca de fofocas sobre os lances mais recentes da Investigação Leveson.* Terminaram a carne. À
frente, como dizia o cartão com o menu, havia um pudim de pão. Logo, logo, pensou Fiona, estariam discutindo a sabedoria ou a loucura de o Ocidente não mandar tropas
para a Síria. Era impossível calar Caradoc sobre aquele tema. E, de fato, ele o introduzia quando se deram conta de vozes ecoando no corredor. Pauling e o mordomo
de rosto branco pararam no umbral da porta e depois se aproximaram dela.
O mordomo se pôs de lado, com um olhar contrariado, enquanto Pauling, depois de pedir desculpas a todos com um aceno de cabeça, inclinou-se por cima da cadeira de
Fiona e disse baixinho perto de seu ouvido: “Minha senhora, perdão por interromper, mas infelizmente há um assunto que exige sua atenção imediata”.
Ela limpou os lábios com o guardanapo e se pôs de pé. “Me desculpem, senhores.”
Sem mudar de expressão, todos se levantaram e ela atravessou a sala na frente dos dois homens. Já do lado de fora, ela disse ao mordomo: “Ainda estamos esperando
por aquele aquecedor”.
“Vou pegar agora.”
Havia algo impertinente em seu jeito ao dar meia-volta, e ela olhou para seu assistente com as sobrancelhas erguidas.
Mas ele simplesmente disse: “Por aqui”.
Ela o seguiu através do corredor e do que fora antes uma biblioteca. As estantes estavam repletas de livros comprados em lojas de objetos usados, do tipo que os
hotéis adquirem por metro para criar uma atmosfera respeitável em certos ambientes.
Pauling disse: “É o rapaz das testemunhas de Jeová, Adam Henry. A senhora se lembra do caso da transfusão? Parece que ele a seguiu até aqui. Andou na chuva, está
completamente encharcado. Queriam expulsá-lo, mas achei que a senhora precisava ser informada antes”.
“Onde ele está?”
“Na cozinha. É mais quentinho lá.”
“Melhor trazê-lo aqui.”
Tão logo Pauling saiu, ela se levantou e caminhou lentamente pela sala, consciente de que seu ritmo cardíaco tinha aumentado. Caso houvesse respondido às cartas,
não estaria agora defrontando aquilo. Defrontando o quê? O envolvimento desnecessário com um caso fechado. E mais que isso. Mas não havia tempo para refletir. Ouviu
passos se aproximando.
A porta se abriu e Pauling fez o rapaz passar. Ela nunca o vira fora da cama e se surpreendeu com sua altura, bem mais de um metro e oitenta. Vestia seu uniforme
escolar, calça de flanela cinza, suéter cinza, camisa branca, um blusão bem leve, encharcado da cabeça aos pés, o cabelo em desordem depois de ter sido enxugado.
Uma pequena mochila pendia frouxamente de sua mão. O toque patético era dado pela toalha de chá do Leadman, com ilustrações dos pontos turísticos locais, envolvendo suas costas para aquecê-lo.

 


                                      CONTINUA