Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.
CONTINUA
Seguiu vagarosamente pela Theobald’s Road, ainda adiando o momento da volta, perguntando-se de novo se não era uma forma moderna de respeitabilidade que ela havia
perdido em vez do amor, se não eram o desprezo e o ostracismo aquilo que temia, como nos romances de Flaubert e de Tolstói, e sim a piedade. Ser objeto de uma piedade
generalizada também era uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres imaginava. Ser flagrada desempenhando um papel
naquele lugar-comum significava mau gosto, mais que um deslize moral. Marido impaciente envolvido num último romance, mulher corajosa mantendo sua dignidade, mulher
mais jovem distante e sem culpa. E ela havia pensado que seus dias como atriz haviam terminado num gramado em pleno verão, pouco antes de se apaixonar.
No final das contas, chegar em casa não foi assim tão difícil. De vez em quando ela voltava do trabalho antes de Jack, e se surpreendeu por se sentir aliviada ao
penetrar na semiobscuridade de santuário do vestíbulo com seu cheiro de cera de lavanda, fazendo um pouco de conta que nada mudara ou que estava prestes a voltar
ao normal. Antes de acender as luzes, se desfez da bolsa e prestou atenção. O aquecimento central tinha sido acionado pela friagem do verão. Agora, ao resfriarem,
os radiadores estalavam em ritmos irregulares. Ouviu o som tênue de música orquestral vindo de algum apartamento num andar inferior, Mahler, langsam und ruhig. Menos
tênue, um tordo canoro repetia pedantemente cada frase ornamental, o som chegando nítido pela chaminé. Em seguida, percorreu os quartos, acendendo as luzes, embora
não fossem ainda nem sete e meia. De volta ao vestíbulo para pegar a bolsa, notou que o chaveiro não havia deixado o menor sinal de sua visita. Nem mesmo uma raspa
de madeira. E por que haveria de deixar algo assim se apenas mudara o tambor da fechadura? E por que ela devia se importar? Mas a falta de algum sinal de sua passagem
por ali era uma lembrança da ausência de Jack, um empurrãozinho para baixo no moral dela. A fim de neutralizar isso, levou os documentos para a cozinha e passou
os olhos por um dos casos do dia seguinte enquanto esperava que a água do chá fervesse.
Poderia ter telefonado para uma das três amigas, porém não se sentia capaz de se ouvir explicando a situação e a tornando irreversivelmente real. Cedo demais para
comiseração ou conselhos, cedo demais para ouvir Jack execrado por amigas leais. Em vez disso, passou a noite se sentindo vazia, entorpecida. Comeu pão, queijo e
azeitonas com um copo de vinho branco, e ficou um bom tempo no piano. Primeiro, num gesto de desafio, tocou a partita de Bach. Às vezes ela acompanhava um advogado,
Mark Berner, tendo visto naquela tarde que ele, no dia seguinte, ia representar o hospital no caso da testemunha de Jeová. O próximo concerto deles seria dali a
muitos meses, pouco antes do Natal, no Great Hall da Gray’s Inn, e precisavam ainda acertar o programa. Mas, como tinham algumas peças decoradas para atender aos
pedidos de bis, ela repassou todas imaginando a parte do tenor, demorando-se na triste canção de Schubert “Der Leiermann”, o tocador de realejo que é pobre, infeliz
e desprezado. Quando finalmente se levantou da banqueta, seus joelhos e quadris estavam duros. No banheiro, mordeu metade de um sonífero, olhou fixamente para o
resto irregular em sua mão e o engoliu também.
Vinte minutos depois estava deitada no seu lado da cama ouvindo com olhos cerrados o noticiário do rádio, o aviso aos navegantes, o hino nacional e depois as notícias
internacionais. Enquanto esperava pelo esquecimento que viria com o sono, ouviu o noticiário pela segunda e possivelmente pela terceira vez, as vozes calmas discutindo
a selvageria do dia — homens-bomba em logradouros apinhados no Paquistão e no Iraque, o bombardeio de blocos de apartamentos na Síria, a guerra do Islão consigo
próprio conduzida em meio a carros retorcidos e prédios destroçados, pedaços de corpos sendo atirados de um lado ao outro de mercados de rua, gente simples chorando
de tristeza, em estado de choque. Mais tarde, as vozes passaram a discutir os aviões não tripulados norte-americanos no Vaziristão, o sangrento ataque que atingira
uma festa de casamento. Enquanto vozes racionais continuaram a soar noite adentro, ela se enroscou para dormir um sono agitado.
A manhã transcorreu como centenas de outras. Petições, requerimentos rapidamente assimilados, arrazoados ouvidos, sentenças proferidas, ordens expedidas, Fiona se
movendo entre seu gabinete e o tribunal, encontrando colegas pelo caminho, algo até mesmo festivo em suas rápidas trocas de palavras, o assistente anunciando com
voz cansada que todos se levantassem, seu aceno de cabeça quase imperceptível para o primeiro advogado, suas piadinhas ocasionais recebidas pelos advogados de ambas
as partes com manifestações bajulatórias que não chegavam a ocultar sua insinceridade, e os litigantes, se fossem um casal se divorciando, como eram todos naquela
manhã de terça-feira, sentados bem longe um do outro, por trás de seus defensores e em nada inclinados a sorrir.
E o estado de espírito dela? Fiona se achava razoavelmente capaz de monitorá-lo, defini-lo, e percebeu uma mudança significativa. No dia anterior, concluiu, estivera
em estado de choque, com uma postura irreal de aceitação, preparada para se dizer que, na pior das hipóteses, teria de suportar a comiseração da família e dos amigos,
além de um grave inconveniente social — aqueles convites com letras em relevo a serem recusados enquanto esperava esconder seu embaraço. Naquela manhã, ao acordar
com uma parte fria da cama à sua esquerda — uma forma de amputação —, ela sentiu a primeira dor convencional do abandono. Pensou no que Jack tinha de melhor e sentiu
saudade, os tornozelos ossudos e cabeludos dele pelos quais, semiadormecida, ela deixava que a sola macia de seu pé deslizasse ao primeiro assalto do despertador,
quando rolava por cima do braço estendido dele e modorrava debaixo do calor do edredom, o rosto contra o peito de Jack, até a segunda chamada do despertador. Aquela
entrega total, em que se sentia como uma criança antes de pular da cama para vestir a armadura de mulher adulta, pareceu ao despertar uma necessidade básica da qual
estava sendo privada. Quando chegou ao banheiro e despiu o pijama, achou seu corpo grotesco ao se ver no espelho. Milagrosamente encolhido em algumas partes, inchado
em outras. Traseiros pesados. Um pacote ridículo. Frágil. Este lado para cima. Por que alguém não a abandonaria?
O ato de se lavar, vestir e tomar café, além de deixar um bilhete e uma chave nova para a sua diarista, a fizeram pôr sob controle esses sentimentos pungentes. E
assim ela iniciou sua manhã, procurou pelo marido em e-mails, mensagens de texto e cartas, não encontrou nada, juntou seus documentos, o guarda-chuva e o celular,
e foi caminhando para o trabalho. O silêncio dele lhe pareceu cruel e a chocou. Ela sabia apenas que Melanie, a especialista em estatística, morava pelos lados de
Muswell Hill. Não era impossível localizá-la ou procurar por Jack na universidade. Mas que humilhação seria dar de cara com ele num corredor, caminhando em sua direção
de braços dados com a amante. Ou encontrá-lo a sós. O que ela poderia fazer senão uma proposta inútil e ignominiosa para que ele voltasse? Poderia exigir uma confirmação
de que abandonara o casamento, e ele lhe diria o que ela já sabia e não desejava ouvir. Por isso iria esperar até que determinado livro, camisa ou raquete de tênis
o atraísse de volta ao apartamento trancado. Então caberia a ele procurá-la e, quando conversassem, ela estaria em seu território, a dignidade intacta — ao menos
externamente.
Não perceptível, porém seu moral estava baixo quando iniciou a lista de terça-feira. O último caso da manhã foi prolongado por um complexo debate sobre a lei de
comércio. Um marido que se divorciava alegava que não podia dispor dos três milhões de libras que fora obrigado a pagar à esposa. Pertenciam à empresa. Tornou-se
claro, embora lentamente demais, que ele era o único executivo e o único empregado de uma firma que nunca fizera nada — uma folha de figueira para ocultar um arranjo
fiscal que o beneficiava. Fiona decidiu em favor da esposa. A tarde agora estava livre para a petição de emergência do hospital no caso da testemunha de Jeová. De
novo em seu gabinete, ela comeu um sanduíche e uma maçã sentada à sua mesa enquanto lia os arrazoados. Naquela hora seus colegas almoçavam esplendidamente no restaurante
da Lincoln’s Inn. Quarenta minutos depois, um pensamento iluminador a acompanhou ao caminhar para a sala de audiência número 8. Ali a questão era de vida e morte.
Ela entrou, todos se puseram de pé; sentou-se e observou enquanto as partes se acomodavam abaixo de onde ela se encontrava. Perto de seu cotovelo havia um pequeno
monte de papéis cor de creme, ao lado do qual depositou sua caneta. Foi só então, ao ver aquelas folhas em branco, que os últimos vestígios, as marcas de sua própria
situação desapareceram por completo. Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida.
À sua frente estavam as três partes. Representando o hospital, seu amigo Mark Berner e dois outros advogados. Representando Adam Henry e seu guardião, o funcionário
do serviço de assistência da Vara de Família, um advogado idoso, John Tovey, que Fiona não conhecia, e outro causídico. Representando os pais, Leslie Grieve, outro
advogado especializado em defender causas perante os tribunais, e dois colegas. Sentados ao lado deles, estavam o sr. e a sra. Henry. Ele era um homem magro e musculoso,
de tez morena, vestindo um terno bem cortado e gravata que o fariam passar por um exitoso membro do Judiciário. A sra. Henry tinha ossos largos e usava enormes óculos
de aros vermelhos que reduziam seus olhos a dois pontinhos. Estava sentada com as costas retas, os braços cruzados bem junto ao corpo. Nenhum dos dois parecia em
nada intimidado. Nos corredores, Fiona supôs, os jornalistas se reuniam para aguardar, até que ela lhes permitisse ouvir sua decisão.
Ela começou: “Todos os senhores sabem que estamos diante de uma matéria de extrema urgência. O tempo é essencial. Peço-lhes que tenham isso em mente e sejam breves,
apresentando seus argumentos sem digressões. Sr. Berner”.
Inclinou a cabeça na direção dele, que se ergueu. Berner era totalmente calvo, corpulento e de pés delicados — tamanho 38, se dizia — que eram alvo de gozação pelas
suas costas. Possuía uma boa voz de tenor, e o melhor momento dos dois juntos tinha sido no ano anterior, quando executaram a canção de Schubert “Der Erlkönig” num
jantar no apartamento da Gray’s Inn em homenagem a um eminente magistrado que se aposentava e devotava grande paixão a Goethe.
“Eu realmente serei breve, Meritíssima, pois, como a senhora apontou, a situação é urgente. O demandante no caso é o Hospital Geral Edith Cavell, de Wandsworth,
que pede a autorização desta corte para tratar de um rapaz, identificado nos autos como A, que completará dezoito anos em menos de três meses. No dia 14 de maio,
ele sentiu fortes dores no estômago, quando colocava seus protetores de perna para jogar como primeiro rebatedor do time de críquete de sua escola. Nos dois dias
seguintes, as dores se tornaram violentas, até mesmo insuportáveis.”
“Eu li os documentos, sr. Berner.”
O advogado continuou. “Desse modo, Meritíssima, acredito que todas as partes concordam que Adam está sofrendo de leucemia. O hospital deseja tratá-lo da forma usual,
com quatro medicamentos, um procedimento terapêutico reconhecido universalmente e adotado por hematologistas, como posso comprovar...”
“Não é necessário, sr. Berner.”
“Obrigado, Meritíssima.”
Berner prosseguiu rapidamente, descrevendo o curso normal do tratamento sem que Fiona interviesse. Dois dos quatro medicamentos atacavam diretamente as células da
leucemia, enquanto os outros dois atingiam em particular a medula óssea, afetando assim o sistema autoimune e sua capacidade de produzir hemácias, leucócitos e plaquetas.
Em consequência, é comum fazer transfusões de sangue durante o tratamento. Neste caso, contudo, o hospital foi impedido de fazê-lo. Adam e seus pais são testemunhas
de Jeová e, segundo sua crença, não podem aceitar produtos derivados de sangue em seus corpos. Exceto por isso, o rapaz e seus pais concordavam com todo o tratamento
que o hospital pudesse oferecer.
“E o que foi oferecido?”
“Meritíssima, em respeito aos desejos da família, apenas foram administrados os medicamentos específicos para leucemia. Eles não são considerados suficientes. Neste
ponto, gostaria de passar a palavra ao hematologista que nos tem prestado orientação.”
“Muito bem.”
O sr. Rodney Carter sentou-se no banco das testemunhas e prestou juramento. Alto, encurvado, ar severo, grossas sobrancelhas brancas sob as quais seus olhos faiscavam
com feroz desdém. Um lenço de seda azul despontava do bolso superior do paletó de seu terno cinza-pálido, com um colete do mesmo tecido. Dava a impressão de considerar
o procedimento judicial um absurdo e que o rapaz deveria ser levado imediatamente pelo cangote para receber a transfusão.
Seguiram-se as perguntas de praxe para estabelecer a capacitação de Carter, sua experiência e tempo de serviço. Quando Fiona limpou a garganta baixinho, Berner entendeu
o sinal e prosseguiu, pedindo ao médico que resumisse o estado do paciente para conhecimento da juíza.
“Nem um pouquinho bom.”
Foi-lhe solicitado que explicasse melhor.
Carter respirou fundo, olhou em volta, viu os pais e virou o rosto. Seu paciente estava fraco, ele disse, e, como era de esperar, mostrando os primeiros sinais de
falta de ar. Se ele, Carter, tivesse liberdade de conduzir o tratamento, via de uns oitenta a noventa por cento de probabilidade de uma cura total. Mantidas as atuais
circunstâncias, as chances eram muito remotas.
Berner solicitou dados precisos sobre o sangue de Adam.
Quando o rapaz foi internado, disse Carter, a contagem de hemoglobina era de 8,3 gramas por decilitro, sendo o padrão algo em torno de 12,5. Ela declinara seguidamente.
Três dias antes chegara a 6,4. Na manhã de hoje, era de 4,5. Se caísse ainda mais, para 3, a situação se tornaria extremamente grave.
Mark Berner estava prestes a fazer outra pergunta, mas Carter foi adiante.
“A contagem de glóbulos brancos se situa em geral entre 5 e 9. Agora está em 1,7. Quanto às plaquetas...”
Fiona o interrompeu. “O senhor poderia, por favor, nos lembrar qual a função delas?”
“Necessárias para a coagulação, Meritíssima.”
O padrão, o consultor explicou ao tribunal, era 250. A contagem do rapaz, 34. Abaixo de 20 era provável que ocorresse um sangramento espontâneo. Nesse ponto, o sr.
Carter afastou um pouco os olhos, parecendo encarar os pais. “O último exame”, disse em tom grave, “nos mostra que não está sendo produzido nenhum sangue novo. O
que se espera é que um adolescente saudável produza quinhentos bilhões de células sanguíneas por dia.”
“E se a transfusão pudesse ser feita, sr. Carter?”
“O rapaz teria uma chance decente. Embora não tão boa quanto se houvesse recebido a transfusão desde o começo.”
Berner fez uma breve pausa e, quando voltou a falar, baixou a voz, como se dramatizasse a possibilidade de Adam Henry ouvi-lo. “O senhor conversou com o seu paciente
sobre o que lhe acontecerá se ele não receber a transfusão?”
“Somente de forma muito geral. Ele sabe que pode morrer.”
“Ele não tem ideia de como morreria. O senhor se importa de dizer à corte como isso se daria?”
“Se o senhor quiser.”
Berner e Carter pareciam estar conspirando a fim de trazer os fatos horríveis ao conhecimento dos pais. Era uma abordagem razoável e Fiona não interferiu.
Carter disse lentamente: “Vai ser angustiante, não apenas para ele mas também para a equipe médica que o vem tratando. Alguns profissionais estão bem furiosos. Eles
fazem transfusões de forma rotineira, o dia todo. Simplesmente não conseguem entender por que devem aceitar o risco de perder esse paciente. Uma característica de
seu declínio será a luta para respirar, uma luta que vai lhe causar pânico e que ele está fadado a perder. Terá a sensação de estar se afogando muito devagar. Antes
disso, pode sofrer hemorragias internas. O colapso dos rins é uma possibilidade. Alguns pacientes perdem a visão. Ou ele pode ter um derrame cerebral, com uma série
de consequências neurológicas. Nenhum caso é igual ao outro. A única coisa certa é que seria uma morte horrível”.
“Obrigado, sr. Carter.”
Leslie Grieve levantou-se para interrogá-lo, representando os pais. Fiona conhecia Grieve um pouco por sua boa reputação, mas naquele momento não se recordava se
ele já havia se apresentado diante dela. Tinha visto sua atuação em outros tribunais — jeito de dândi, cabelo prateado repartido no meio, maçãs do rosto salientes,
nariz fino e comprido com narinas que lhe davam um ar arrogante. Seus braços e pernas tinham uma liberdade de movimento que contrastava agradavelmente com os gestos
contidos de seus colegas mais solenes. Todo esse efeito impressionante e alegre era atrapalhado por um problema de visão, uma espécie de estrabismo que o fazia parecer
nunca estar olhando para onde seu rosto apontava. Essa deficiência contribuía para o fascínio que ele exercia. Ela às vezes desorientava testemunhas que estavam
sendo interrogadas, e agora podia ser a causa da irritabilidade do médico.
Grieve disse: “O senhor concorda, não é mesmo, sr. Carter, que a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental de todo adulto?”.
“Concordo.”
“E que o tratamento sem consentimento representaria uma violação da pessoa, na verdade uma agressão a essa pessoa.”
“De acordo.”
“E Adam está prestes a se transformar num adulto, tal como a lei o define.”
Carter disse: “Se ele fizesse dezoito anos amanhã de manhã, ainda não teria atingido a maioridade hoje”.
Isso foi dito com veemência. Grieve não perdeu a serenidade. “Adam é quase um adulto. Não é fato que manifestou sua opinião sobre o tratamento de modo inteligente
e bem articulado?”
Neste ponto, os ombros caídos do médico se endireitaram e ele cresceu alguns centímetros. “As opiniões dele são as de seus pais. Não são dele. Sua recusa em receber
a transfusão é baseada nas doutrinas de uma seita religiosa para a qual ele pode muito bem se tornar um mártir à toa.”
“Seita é uma palavra forte, sr. Carter”, disse Grieve sem se alterar. “O senhor tem alguma crença religiosa?”
“Sou anglicano.”
“A Igreja anglicana é uma seita?”
Fiona ergueu os olhos do papel onde tomava notas. Grieve entendeu o gesto dela franzindo os lábios e fazendo uma pausa para respirar fundo. O médico dava a impressão
de estar prestes a se levantar do banco, mas o advogado não acabara sua arguição.
“O senhor tem conhecimento de que a Organização Mundial de Saúde estima que entre quinze e vinte por cento dos novos casos de aids são causados por transfusões de
sangue?”
“Nenhum desses casos ocorreu no meu hospital.”
“As comunidades hemofílicas de vários países viveram uma tragédia com a infecção de aids em larga escala, não é verdade?”
“Isso aconteceu há bastante tempo e não acontece mais.”
“E outras infecções são possíveis por causa da transfusão, não é verdade? Hepatite, doença de Lyme, malária, sífilis, doença de Chagas, rejeição de tecidos, doenças
pulmonares. E, obviamente, a nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob.”
“Todas raríssimas.”
“Mas que sabidamente ocorrem. E há também as reações hemolíticas em virtude de grupos sanguíneos incompatíveis.”
“Também raras.”
“Verdade? Deixe-me citar, sr. Carter, um trecho do altamente respeitado Manual de conservação do sangue: ‘Há pelo menos vinte e sete estágios entre a coleta de uma
amostra de sangue e sua transfusão no paciente, existindo certo potencial de erro em cada estágio do processo’.”
“Nosso pessoal é muito bem treinado e cuidadoso. Não me recordo de uma única reação hemolítica em anos.”
“Levando em conta todos esses riscos, o senhor não diria que eles são o suficiente para que uma pessoa racional tenha suas hesitações, sr. Carter, sem que essa pessoa
precise ser membro do que o senhor chama de seita?”
“Hoje em dia, os produtos derivados de sangue são testados de modo extremamente rigoroso.”
“Apesar disso, não seria de todo irracional hesitar antes de aceitar uma transfusão.”
Carter refletiu por um momento. “Hesitar talvez seja possível. Mas recusar, num caso como o de Adam, seria irracional.”
“O senhor admite que a hesitação é razoável. Sendo assim, certamente não seria absurdo, à luz de todas as possibilidades de infecção e erro, que o paciente insistisse
em que se procurasse obter seu consentimento.”
O médico deixou entrever o esforço que fazia para se controlar. “O senhor está jogando com as palavras. Se não me for permitido fazer a transfusão nesse paciente,
ele pode não se recuperar. No mínimo, poderá ficar cego.”
Grieve disse: “Dados os riscos, não haverá um modismo imprudente na sua profissão em favor das transfusões? Não há provas factuais que as sustentem, não é fato,
sr. Carter? É como as sangrias de antigamente, embora, é claro, agora ao contrário. Os pacientes que perdem cento e sessenta mililitros de sangue durante uma cirurgia
recebem rotineiramente uma transfusão, não é verdade? No entanto, um doador cede três vezes esse volume e vai trabalhar sem que isso lhe cause o menor malefício”.
“Não posso comentar sobre a opinião clínica das outras pessoas. A opinião geral, eu suponho, é que um paciente enfraquecido pela cirurgia deveria ter todo o sangue
que Deus lhe concedeu.”
“Não é fato que os pacientes que são testemunhas de Jeová recebem agora um tratamento chamado cirurgia sem sangue que tornou desnecessárias as transfusões? Permita-me
citar uma frase do American Journal of Otolaryngology: ‘A cirurgia sem sangue passou a representar um boa prática, sendo perfeitamente possível que no futuro venha
a ser aceita como o tratamento-padrão’.”
O médico se mostrou indiferente. “Não estamos falando aqui de cirurgia. Este paciente precisa de sangue porque seu tratamento o impede de produzi-lo normalmente.
Simples assim.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Grieve se sentou e John Tovey, que era o advogado de Adam Henry e parecia necessitar do apoio de uma bengala com cabo de prata, se pôs de pé, ofegante, para arguir
o médico.
“O senhor sem dúvida passou algum tempo conversando a sós com Adam.”
“Sim.”
“Que impressão teve de sua inteligência?”
“É um rapaz extremamente inteligente.”
“Ele sabe se expressar bem?”
“Sim.”
“Seu raciocínio e sua cognição estão afetados pelo seu estado de saúde?”
“Ainda não.”
“O senhor sugeriu que ele necessita de uma transfusão?”
“Sim.”
“E qual foi a resposta dele?”
“Ele se recusa terminantemente por causa de sua religião.”
“O senhor sabe qual é a idade exata dele em anos e meses?”
“Dezessete anos e nove meses.”
“Obrigado, sr. Carter.”
Berner levantou-se para fazer a arguição.
“Sr. Carter, poderia nos dizer mais uma vez há quanto tempo é especialista em hematologia?”
“Há vinte e sete anos.”
“Quais são os riscos de uma reação adversa numa transfusão de sangue?”
“Muito baixos. Nada comparado com o mal inevitável que será feito neste caso por não ocorrer a transfusão.”
Berner indicou que não tinha mais nada a perguntar.
Fiona disse: “Na sua opinião, sr. Carter, quanto tempo temos para resolver essa questão?”.
“Se não se puder dar sangue a esse rapaz até amanhã de manhã, entraremos em um território muito perigoso.”
Berner se sentou. Fiona agradeceu ao médico, que se afastou com um breve aceno de cabeça, talvez desgostoso, para a juíza. Grieve se pôs de pé e disse que chamaria
imediatamente o pai. No banco de testemunhas, o sr. Henry perguntou se poderia fazer o juramento usando a tradução moderna da Bíblia. O funcionário da corte lhe
disse que só tinham a versão do rei Jaime. O sr. Henry concordou com a cabeça e fez o juramento, passando então a olhar pacientemente na direção de Grieve.
Kevin Henry media um metro e sessenta e oito, parecendo tão flexível e forte quanto um trapezista. Podia de fato ser habilidoso no manejo de uma escavadeira mecânica,
mas dava a impressão de estar igualmente à vontade em seu elegante terno cinza com gravata de seda verde-clara. O propósito das perguntas de Leslie Grieve foi permitir
que ele relatasse seu começo difícil e o desabrochar posterior de uma família amorosa, estável e feliz. Quem poderia duvidar disso? Os dois haviam se casado cedo,
dezessete anos antes, quando tinham dezenove anos. No duro início de vida em comum, Kevin trabalhava como operário braçal. Era “um pouco doidivanas”, bebia demais,
tratava mal sua mulher, Naomi, embora nunca tivesse batido nela. Foi mandado embora do emprego porque com frequência chegava tarde demais. O aluguel vivia atrasado,
o bebê chorava a noite inteira, os dois brigavam, os vizinhos reclamavam. Foram ameaçados de despejo do apartamento de um quarto em Streatham.
A salvação veio na forma de dois corteses jovens americanos que bateram à porta de Naomi certa tarde. Voltaram no dia seguinte e falaram com Kevin, inicialmente
hostil. Por fim, uma visita ao Salão do Reino mais próximo, uma boa acolhida e então aos poucos a ordem e a paz chegaram à vida deles graças aos encontros com pessoas
simpáticas que logo se tornaram amigas, bem como úteis conversas com os anciãos da congregação e o estudo da Bíblia, que no começo julgaram difícil.
Kevin e Naomi começaram a viver a verdade. Aprenderam o futuro que Deus guardava para a humanidade e desempenharam seu dever ao trabalhar para divulgar a palavra.
Descobriram que haveria um paraíso na Terra e que poderiam participar dele caso pertencessem ao grupo privilegiado conhecido pelas testemunhas como “outras ovelhas”.
Passaram a compreender a preciosidade da vida. Ao se tornarem pais melhores, o filho ficou mais calmo. Kevin fez um curso patrocinado pelo governo em que aprendeu
a operar maquinaria pesada. Não muito depois de terminar o curso, foi oferecido a ele um emprego. A caminho do Salão do Reino para agradecer na companhia de Adam,
ele e a esposa confessaram que estavam mais uma vez apaixonados. Deram-se as mãos na rua, coisa que jamais haviam feito. Desde então, passados vários anos, tinham
vivido a verdade e criado Adam à luz da verdade com o apoio de um círculo íntimo de amigos que também eram testemunhas. Cinco anos antes, Kevin fundara sua própria
empresa. Possuía algumas escavadeiras, caminhões basculantes e uma grua, e empregava nove homens. Agora Deus havia infligido a leucemia ao filho deles, confrontando
Kevin e Naomi com um supremo teste de fé.
A cada pergunta sugestiva do advogado, o sr. Henry dava uma resposta bem ponderada. Mostrou respeito à corte sem revelar nenhum temor, como ocorria com outras pessoas.
Falou claramente sobre seus fracassos iniciais, não demonstrou embaraço ao recordar o momento em que ambos se deram as mãos, não hesitou em usar a palavra amor naquele
ambiente. Muitas vezes, após ouvir a pergunta de Grieve, dirigia-se à Fiona e a olhava nos olhos. Ela tentou automaticamente localizar sua pronúncia. Um toque de
cockney, um vestígio ainda mais tênue do sudoeste da Inglaterra — a voz confiante de um homem tranquilo acerca de sua própria competência e bastante acostumado a
dar ordens. Falavam daquele modo alguns músicos de jazz ingleses, um treinador de tênis que ela conhecia, sargentos das Forças Armadas, policiais de alta patente,
paramédicos, o capataz de uma plataforma de petróleo que certa vez comparecera diante dela. Não era um dos homens que governavam o mundo, mas um dos que o faziam
andar.
Grieve fez uma pausa para assinalar o fim da história de cinco minutos, perguntando a seguir em tom suave: “Sr. Henry, diga, por favor, à corte por que Adam está
recusando a transfusão de sangue”.
O sr. Henry hesitou, como se refletisse sobre a questão pela primeira vez. Virou-se e respondeu diretamente a Fiona: “A senhora precisa entender”, disse, “que o
sangue constitui a essência daquilo que é humano. É a alma, é a própria vida. E, assim como a vida é sagrada, o sangue também é”. Parecia haver terminado, mas acrescentou
rapidamente: “O sangue representa a dádiva de vida pela qual todas as almas vivas deveriam ser gratas”. Ele pronunciou essas frases não como crenças a que se aferrasse,
e sim como demonstrações de um fato, como um engenheiro descrevendo a construção de uma ponte.
Grieve aguardou, indicando com seu silêncio que a pergunta não havia sido respondida. Mas Kevin Henry tinha acabado e olhava diretamente para a frente.
Grieve sugeriu: “Sendo assim, se o sangue é uma dádiva, por que seu filho a recusaria quando oferecida pelos médicos?”.
“Misturar seu próprio sangue com o sangue de um animal ou de outro ser humano significa poluição, contaminação. É a rejeição de um maravilhoso presente do Criador.
É por isso que Deus especificamente proíbe isso no Gênesis, no Levítico e nos Atos.”
Grieve assentia com a cabeça. O sr. Henry acrescentou simplesmente: “A Bíblia é a palavra de Deus. Adam sabe que ela deve ser obedecida”.
“O senhor e sua esposa amam seu filho, sr. Henry?”
“Sim, nós o amamos.” Disse isso de modo tranquilo, olhando para Fiona com ar desafiador.
“E se a recusa da transfusão causar a morte dele?”
Mais uma vez Kevin Henry olhou fixamente para a parede coberta de lambris de madeira. Respondeu com um nó na garganta: “Ele ocupará seu lugar no paraíso que voltará
a ser restaurado na Terra”.
“E como o senhor e a sua esposa vão se sentir?”
Naomi Henry continuava empertigada em seu assento, sua expressão por trás dos óculos impossível de ser interpretada. O rosto estava voltado para o advogado e não
para o marido no banco de testemunhas. De onde Fiona se encontrava, não era claro se os olhos da sra. Henry, reduzidos pelas lentes, estavam abertos.
Kevin Henry disse: “Ele terá feito a coisa certa e verdadeira, o que nosso Senhor mandou”.
Grieve esperou de novo, dizendo então num tom pesaroso: “O senhor sofrerá muito, não é verdade, sr. Henry?”.
Nesse ponto, a bondade artificial do tom de voz do advogado emudeceu o pai, que se limitou a acenar com a cabeça. Fiona viu que os músculos de sua garganta se retesaram
enquanto recuperava o controle.
O advogado disse: “Essa recusa é uma decisão de Adam ou realmente sua?”.
“Não poderíamos impedir que ele recusasse, nem se quiséssemos.”
Durante vários minutos Grieve seguiu essa linha de arguição, buscando deixar claro que o rapaz não estava sendo indevidamente influenciado. Dois altos membros da
congregação haviam visitado o rapaz. O sr. Henry não foi convidado a estar presente. Mas, depois, num corredor do hospital, eles lhe disseram que haviam ficado impressionados
e emocionados com a compreensão da situação pelo rapaz e seu conhecimento das escrituras. Estavam convencidos de que ele sabia o que queria e, além de estar vivendo
a verdade, se mostrava pronto a morrer por ela.
Fiona sentiu que Berner ia fazer uma objeção. Mas o advogado sabia que ela não ia perder tempo para desmerecer testemunhos transmitidos por terceiros.
Um conjunto final de perguntas de Leslie Grieve teve como propósito permitir ao sr. Henry expor a maturidade emocional do filho. Isso foi feito com orgulho, nada
em seu tom de voz sugeria que ele imaginava poder perdê-lo em breve.
Já eram três e meia da tarde quando Mark Berner se pôs de pé para fazer a contra-arguição. Começou expressando ao casal sua comiseração pela enfermidade do filho
e a esperança de sua completa recuperação — um claro sinal, ao menos para Fiona, de que o advogado estava prestes a bater forte. Kevin Henry inclinou a cabeça.
“Vamos começar esclarecendo uma coisa simples, sr. Henry. Os livros da Bíblia que o senhor cita — Gênesis, Levítico e Atos — o proíbem de comer sangue ou, em um
dos casos, recomendam que se abstenha de fazê-lo. A tradução moderna do Gênesis, por exemplo, diz: ‘Porém não comereis a carne com sua alma, isto é, seu sangue’.”
“É verdade.”
“Sendo assim, não há nada sobre transfusão.”
O sr. Henry disse com paciência: “Acho que o senhor verá que, em grego e hebreu, o original tem o sentido de ‘aceitar no seu corpo’”.
“Muito bem. Mas, na época desses textos da Idade do Ferro, a transfusão não existia. Como podia ser proibida?”
Kevin Henry balançou a cabeça. Havia pena ou uma generosa tolerância em sua voz. “Com certeza existia na mente de Deus. O senhor precisa entender que esses livros
constituem sua palavra. Ele inspirou os profetas de sua escolha para escreverem o seu testamento. Não importa em que idade isso foi feito, pedra, bronze ou qualquer outra.”
“É possível que seja assim, sr. Henry. Mas muitas testemunhas de Jeová questionam essa ideia sobre a transfusão exatamente nos termos em que a coloquei. Estão preparadas
para aceitar produtos derivados de sangue, ou alguns desses produtos, sem abandonar sua fé. Não é verdade que outras opções estão abertas para o jovem Adam e que
o senhor poderia desempenhar seu papel persuadindo-o a aceitá-las a fim de salvar a vida dele?”
Henry se voltou para Fiona. “Há alguns poucos que se afastam dos ensinamentos do Corpo Governante. Não conheço ninguém que faça isso em nossa congregação, e nossos
líderes são muito claros sobre isso.”
As luzes do teto brilhavam na calva bem polida de Berner. Numa paródia virtual de um arguidor intimidante, ele segurou a lapela do casaco com a mão direita. “Esses
líderes estritos têm visitado seu filho todos os dias, não é verdade? Estão ansiosos para se certificar de que ele não mudará de ideia.”
Kevin Henry demonstrou o primeiro indício de irritação. Encarou Berner, agarrando-se à beirada do banco de testemunhas e se inclinando um pouco para a frente como
se apenas uma amarra invisível o contivesse. Seu tom de voz, no entanto, permaneceu controlado. “São homens bondosos e decentes. Há sacerdotes de outras igrejas
visitando as enfermarias. Meu filho recebe aconselhamento e consolo dos anciãos. Se não fosse assim, me diria.”
“Não é verdade que, se ele concordasse com a transfusão, seria expulso da comunidade?”
“Desassociado. Mas isso não vai acontecer. Ele não vai mudar de ideia.”
“Ele é ainda tecnicamente uma criança, sr. Henry, e está sob seus cuidados. Por isso, são as suas ideias que eu desejo modificar. Ele está temeroso de cair no ostracismo
por não fazer o que os anciãos querem. O único mundo que ele conhece lhe daria as costas por preferir a vida a uma morte terrível. Será essa uma escolha livre para
um jovem?”
Kevin Henry parou para pensar. Pela primeira vez olhou para a esposa. “Se o senhor ficar cinco minutos com ele verá como ele é alguém capaz de saber o que se passa
a seu redor e de tomar uma decisão baseada em sua fé.”
“Eu acredito que encontraríamos um rapaz aterrorizado e gravemente enfermo que está desesperado para obter a aprovação de seus pais. Sr. Henry, o senhor disse a
Adam que ele está livre para receber a transfusão caso queira? E que continuaria a amá-lo?”
“Eu disse a ele que o amo.”
“Só isso?”
“É o bastante.”
“O senhor sabe quando as testemunhas de Jeová receberam a ordem de recusar transfusões de sangue?”
“Está no Gênesis. Data da Criação.”
“Data de 1945, sr. Henry, antes era perfeitamente aceitável. O senhor está satisfeito que, nos tempos atuais, tenha sido um comitê do Brooklyn que decidiu o destino
de seu filho?”
Kevin Henry baixou a voz, talvez em sinal de respeito ao assunto ou devido às dificuldades que ele impunha. Mais uma vez incluiu Fiona em sua resposta, havendo calor
em seu tom de voz. “O Espírito Santo guia os representantes escolhidos — nós os chamamos de escravos, Meritíssima —, ajudando-os a descobrir verdades profundas que
antes não eram compreendidas.” Voltou-se de novo para Berner e disse com naturalidade: “O Corpo Governante é o canal de comunicação entre Jeová e nós. É sua voz.
Se há mudanças nos ensinamentos, é porque Deus só revela seus propósitos aos poucos”.
“Essa voz não tolera muita dissensão. Neste exemplar de A Sentinela, se diz que o pensamento independente foi criado por Satã ao começar sua rebelião em outubro
de 1914, e que tal pensamento devia ser evitado pelos seguidores. É isso que o senhor está dizendo a Adam, sr. Henry? Que ele precisa se prevenir contra a influência
de Satã?”
“Gostamos de evitar as dissensões e as disputas nos mantendo unidos.” A confiança do sr. Henry estava crescendo. Parecia se dirigir exclusivamente ao advogado. “O
senhor talvez não faça ideia do que significa se submeter a uma autoridade superior. Precisa entender que fazemos isso por nossa livre e espontânea vontade.”
Havia a sugestão de um sorriso meio torto no rosto de Mark Berner. Quem sabe pela admiração por seu adversário. “O senhor disse há pouco ao meu eminente colega que
quando tinha vinte anos sua vida era muito desregrada. Que o senhor era um doidivanas. É pouco provável, não é mesmo, sr. Henry, que alguns anos antes, com a idade
de Adam, o senhor estivesse seguro de seus pensamentos.”
“Ele conheceu a verdade a vida inteira. Eu não tive esse privilégio.”
“E depois, pelo que me recordo, o senhor disse ter descoberto que a vida era preciosa. Isso se referia à vida de outras pessoas ou apenas à sua?”
“Toda vida é uma dádiva de Deus. Que pode tomá-la de volta.”
“Fácil de dizer, sr. Henry, quando não se trata da sua vida.”
“Mais difícil de dizer quando é a vida do seu próprio filho.”
“Adam escreve poesia. O senhor aprova isso?”
“Não creio que seja particularmente relevante para a vida dele.”
“O senhor brigou com ele por causa disso, não foi?”
“Tivemos algumas conversas sérias.”
“A masturbação é um pecado, sr. Henry?”
“Sim.”
“E o aborto? A homossexualidade?”
“Sim.”
“É nisso que Adam foi ensinado a crer?”
“É o que ele sabe ser verdadeiro.”
“Obrigado, sr. Henry.”
John Tovey se ergueu e, algo ofegante, disse a Fiona que, dado o adiantado da hora, não tinha nenhuma pergunta a fazer ao sr. Henry, mas que chamaria para depor
a assistente social, funcionária do serviço de apoio à Vara de Família. Marina Greene era uma mulher pequena com cabelo cor de areia, que se expressou com frases
curtas e precisas. Coisa útil àquela altura da tarde. Adam, ela disse, era muito inteligente. Conhecia a Bíblia. Conhecia os argumentos. Tinha declarado estar pronto
para morrer por sua fé.
Ele havia dito o seguinte — autorizada pela juíza, Marina Greene leu em seu caderno de notas: “Tenho ideias próprias. Sou uma pessoa independente de meus pais. Quaisquer
que sejam as ideias deles, estou tomando decisões por mim mesmo”.
Fiona perguntou à sra. Greene que orientação a corte deveria seguir. Ela respondeu que sua opinião era simples e se desculpou por não conhecer os meandros da lei.
O rapaz era inteligente e se exprimia muito bem, mas ainda era muito jovem. “Uma criança não deveria se matar por razões religiosas.”
Tanto Berner quanto Grieve abriram mão de interrogá-la.
Antes de ouvir os argumentos finais, Fiona permitiu um breve recesso. Todos se levantaram e ela foi rapidamente para o seu gabinete, bebeu um copo de água sentada
à sua mesa, verificou e-mails e mensagens de texto. Muito dos dois, mas nada de Jack. Procurou de novo. Não sentia agora tristeza nem raiva, e sim um negrume interior,
um abismo a suas costas que ameaçava aniquilar seu passado. Outra fase. Não parecia possível que a pessoa que ela conhecia mais intimamente pudesse ser tão cruel.
Foi um alívio voltar ao tribunal alguns minutos depois. Quando Berner se pôs de pé, era inevitável que explorasse o argumento da “competência de Gillick” — um ponto
de referência sobre menores no Direito da Família e na pediatria. Lorde Scarman fizera a formulação e o advogado o citava agora. Uma criança, isto é, uma pessoa
com menos de dezesseis anos, pode dar consentimento sobre seu tratamento médico “se e quando a criança demonstra suficiente compreensão e inteligência para entender
inteiramente o que lhe é proposto”. Se, defendendo a solicitação do hospital para tratar Adam Henry contra o seu desejo, Berner invocava Gillick naquele momento,
seu propósito consistia em esvaziar a possibilidade de que Grieve o fizesse em favor dos pais. Chegue primeiro e estabeleça as regras do jogo. Ele se valeu de frases
curtas e rápidas, sua voz suave de tenor tão clara e precisa como quando cantava o trágico poema de Goethe.
Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência
dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura. Ele ganhara um concurso de poesia organizado por um jornal sério e de circulação
nacional. Era capaz de recitar longos trechos de uma ode de Horácio. Era sem dúvida uma criança excepcional. O tribunal tinha ouvido a assistente social declarar
que se tratava de um rapaz inteligente e bem-falante. Decisivamente, contudo, o médico havia acabado de confirmar que Adam tinha apenas uma vaga noção do que lhe
aconteceria se recusasse o sangue. Uma ideia geral, e algo romântica, da morte que o aguardava. Dessa forma, não se podia dizer que ele preenchia as condições estabelecidas
por lorde Scarman. Adam sem a menor dúvida não entendia de todo o que lhe estava sendo proposto. Compreensivelmente, a equipe médica do hospital não desejava explicar
tudo a ele. O profissional de saúde mais graduado estava em melhor posição para julgar, e sua conclusão era cristalina. Adam não tinha a “competência de Gillick”.
Em segundo lugar, mesmo se a tivesse, e portanto gozasse do direito de concordar com o tratamento, isso era muito diferente do direito de recusar um tratamento capaz
de salvar sua vida. Nesse ponto a lei era clara. Ele não tinha autonomia em tal questão até fazer dezoito anos. Em terceiro lugar, continuou Berner, era óbvio que
os riscos de infecção resultantes da transfusão eram mínimos, enquanto as consequências de não receber a transfusão eram inevitáveis e pavorosas, provavelmente fatais.
Em quarto lugar, não era coincidência que Adam tinha a mesma fé específica dos pais. Tratava-se de um filho amoroso e devotado que crescera numa atmosfera caracterizada
pela crença sincera e fortemente arraigada de seus pais. As opiniões não convencionais que mantinha sobre os produtos derivados de sangue, como o médico sugerira
com grande ênfase, não eram suas. Todos nós, sem dúvida, acreditamos em coisas aos dezessete anos que hoje nos deixariam envergonhados.
Berner fez um resumo rápido. Adam não tinha dezoito anos, não entendia a provação que o aguardava se não recebesse a transfusão, fora indevidamente influenciado
pela seita dentro da qual havia sido criado e estava consciente das consequências negativas caso se afastasse dela. As opiniões das testemunhas de Jeová estavam
muito distantes daquelas que se esperava de pais modernos e razoáveis.
Quando Mark Berner deu meia-volta para se sentar, Leslie Grieve já estava de pé. Em seus primeiros comentários, feitos perto de Fiona e do lado esquerdo da juíza,
ele também manifestou o desejo de chamar a atenção dela para a formulação de lorde Scarman. “A existência do direito do paciente de tomar sua própria decisão pode
ser encarada como um direito humano básico, protegido pela legislação pertinente.” Em consequência, a corte deveria se mostrar extremamente relutante em interferir
numa decisão sobre tratamento médico feita por uma pessoa dotada de evidente inteligência e capacidade de julgamento. Sem dúvida não era cabível querer validar um
argumento com base nos dois ou três meses que separavam Adam de seus dezoito anos. Numa questão que afetava tão gravemente o direito humano básico de um indivíduo,
era inaceitável apelar para a mágica dos números. Aquele paciente, que repetida e consistentemente havia deixado claros seus desejos, estava muito mais próximo dos
dezoito anos que dos dezessete.
Num esforço de memória, Grieve fechou os olhos e citou um trecho da seção 8 da emenda de 1969 à Lei da Família: “O consentimento de um menor que atingiu a idade
de dezesseis anos a qualquer tratamento cirúrgico, médico ou dentário que, na falta de tal consentimento, constituiria um invasão de sua pessoa, será tão eficaz
como o seria se ele já houvesse atingido a maioridade”.
Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e a maturidade dele. “A senhora decerto gostará de saber que ele leu em voz alta
alguns de seus poemas para o pessoal da enfermagem. Com grande sucesso.” Ele tinha uma capacidade de raciocínio bem superior à da maioria dos rapazes de dezessete
anos. Era necessário a corte levar em conta a situação como se ele tivesse nascido alguns meses antes, quando então seu direito fundamental estaria assegurado. Com
o apoio integral dos pais amorosos, ele deixara clara sua objeção ao tratamento e expusera em detalhe os princípios religiosos em que se baseava a recusa.
Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível
que o sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente. Mas tal
profissionalismo prejudicava sua avaliação de que Adam não possuía a “competência de Gillick”. Em última análise, não se tratava de uma questão médica, e sim legal
e moral. Tinha a ver com o direito inalienável de um jovem. Ele entendia perfeitamente aonde sua decisão poderia levá-lo: a uma morte prematura. Deixara isso claro
muitas vezes. Que ele não soubesse o modo preciso como morreria não importava. Ninguém que fosse considerado possuidor da “competência de Gillick” teria pleno conhecimento
desse tipo de informação. Na verdade, ninguém tinha. Todos sabíamos que morreríamos um dia. Nenhum de nós sabia como. E o sr. Carter já havia admitido que a equipe
encarregada de tratar de Adam não gostaria de lhe transmitir tal conhecimento. A “competência de Gillick” do jovem derivava de outra coisa, de sua inquestionável
compreensão de que a recusa ao tratamento poderia provocar sua morte. E Gillick, naturalmente, tornava sem efeito a questão de sua idade.
Até então a juíza havia enchido três páginas de anotações. Uma delas, em separado, dizia apenas: “Poesia?”. Sobressaindo em meio à corrente de depoimentos, havia
uma bela imagem — recostado nos travesseiros, um adolescente lia seus versos para uma enfermeira fatigada, que sabia ser necessária em outro lugar, mas era bondosa
demais para dizer isso a ele.
Fiona havia escrito poesia na idade de Adam Henry, embora nunca tivesse tido a presunção de ler seus versos em voz alta nem para si própria. Lembrava-se de quartetos
ousadamente sem rima. Um deles era até sobre uma morte por afogamento, o corpo afundando deliciosamente de costas em meio aos juncos de um rio, uma fantasia improvável
baseada na pintura de Ofélia feita por Millais diante da qual ela se postara encantada ao fazer uma visita à Tate Gallery. O audacioso poema constava de um caderno
de notas em petição de miséria, em cuja capa havia rabiscos em tinta vermelha de penteados desejáveis. Tanto quanto sabia, o caderno estava em casa, no fundo de
uma caixa de papelão enfiada em algum canto de um quartinho sem janelas. Se é que ela ainda podia dizer que tinha uma casa.
Grieve fechou sua intervenção afirmando que Adam estava muito perto de fazer dezoito anos que a idade dele não tinha o menor significado. Ele preenchia as condições
estabelecidas por Scarman e possuía a “competência de Gillick”. O advogado citou lorde Balcombe: “À medida que se aproximam da maioridade, as crianças vão sendo
cada vez mais capazes de tomar decisões acerca de seus tratamentos clínicos. Normalmente, os melhores interesses de um menor de idade suficiente e com capacidade
de compreensão serão atendidos se ele tomar uma decisão informada que a corte deve respeitar”. O tribunal não deve julgar religiões específicas, limitando-se a respeitar
as manifestações de fé. Nem deve o tribunal se sentir tentado a entrar no perigoso terreno em que seja minado o direito básico de um indivíduo de recusar tratamento.
Por fim, chegou a vez de Tovey, que foi breve. Ergueu-se com a ajuda da bengala. Como representava tanto o rapaz quanto Marina Greene, sua guardiã perante a corte,
ele se manteve cuidadosamente neutro. Os argumentos dos dois lados tinham sido bem apresentados por seus colegas, todas as questões legais relevantes devidamente
suscitadas. A inteligência de Adam não estava em discussão. Seu domínio da Bíblia, tal como entendida e difundida por sua seita, era total. Cumpria considerar que
ele tinha quase dezoito anos, mas de fato continuava sendo um menor. Por conseguinte, dependia inteiramente da Meritíssima Juíza decidir o peso que daria aos desejos
do rapaz.
Quando o advogado se sentou, fez-se silêncio enquanto Fiona examinava suas anotações, organizando os pensamentos. Tovey fizera o favor de apontá-los no caminho de
uma decisão. Dirigindo-se a ele, Fiona disse: “Dadas as circunstâncias especiais deste caso, decidi que gostaria de ouvir Adam Henry. Não é o seu conhecimento das
escrituras que me interessa, e sim sua compreensão da situação em que se encontra e o que deverá confrontar caso eu tome uma decisão contrária ao hospital. Ele também
precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão levando em conta seus melhores interesses”.
Disse ainda que se deslocaria agora na companhia da sra. Greene até o hospital em Wandsworth e, na presença dela, se sentaria à beira do leito de Adam. Assim, a
sessão foi suspensa até a volta de Fiona, quando ela iria proferir sua sentença diante de todos.
3.
Quando seu táxi parou devido ao trânsito pesado da ponte de Waterloo, Fiona decidiu que aquela excursão tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso
que cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita mediante a intervenção
direta de uma corte laica. Não acreditava que podia ser as duas coisas. A questão permaneceu em suspenso enquanto ela olhava para a esquerda, a jusante do rio e
na direção da catedral de St. Paul. A maré vazava rapidamente. O poeta Wordsworth, descrevendo o que vira de uma ponte próxima, tinha razão: para qualquer lado que
se olhasse, a melhor paisagem urbana do mundo. Até mesmo sob a chuva constante. Ao lado dela estava Marina Greene. Exceto por algumas palavras à toa, não haviam
conversado depois de saírem do tribunal. O que era inteiramente apropriado para manter a distância. E Greene, desinteressada ou muito acostumada com a vista rio
acima, à sua direita, estava concentrada no celular, lendo, teclando, franzindo a testa como é comum nos dias de hoje.
Alcançando enfim a margem sul, viraram à direita, rumando bem devagar para a montante do rio e levando quase quinze minutos para chegarem a Lambeth Palace. O telefone
de Fiona estava desligado, sua única defesa contra a compulsão de conferir mensagens de texto e e-mails a cada cinco minutos. Ela tinha escrito uma mensagem que
não enviara: Você não pode fazer isso!. Mas ele estava fazendo aquilo, e o ponto de exclamação dizia tudo — ela era uma idiota. O emocionalismo de seu estado de
espírito, que gostava de monitorar, era inteiramente novo. Uma mistura de tristeza e indignação. Ou de carência e fúria. Ela o queria de volta, ela nunca mais queria
vê-lo de novo. A vergonha também estava presente. Mas o que ela havia feito? Afundado no trabalho, negligenciado o marido, deixado que um caso a absorvesse demais?
Porém ele tinha seu próprio trabalho, seus estados de espírito variados. Ela fora humilhada e não queria que ninguém soubesse, ia fingir que estava tudo bem. Sentia-se
conspurcada pela necessidade de manter segredo. O que era aquilo, a vergonha? Ao saber do que acontecera, uma de suas amigas sensatas certamente insistiria com ela
para que telefonasse a Jack e exigisse uma explicação. Impossível. Ainda temia ouvir o pior. Tudo o que pensava agora sobre a situação já havia lhe ocorrido muitas
vezes antes, mas, não obstante, ela começava de novo. Como se caminhasse na direção contrária em uma esteira rolante, um estado do qual só escapava pelo sono artificialmente
induzido. Sono — ou por essa excursão muito pouco ortodoxa.
Chegaram por fim à Wandsworth Road a menos de quarenta quilômetros por hora, a velocidade de um cavalo a galope. Passaram à direita por um velho cinema transformado
em quadras de squash, onde, muitos anos atrás, Jack jogara até o limite de sua resistência física para terminar em décimo primeiro lugar numa competição aberta a
todos os londrinos. E ela, esposa jovem e leal, algo enfastiada, assistiu a tudo um pouco distante da parede de vidro, consultando de tempos em tempos suas anotações
sobre um caso de estupro que estava defendendo e que acabaria por perder. Oito anos de cadeia para o cliente indignado. Quase certamente sem culpa. Com razão, ele
nunca a perdoou.
Ela tinha a ignorância e o desdém de uma habitante da parte norte de Londres pelo labirinto interminável de ruas pobres que se estendia ao sul do Tâmisa. Nenhuma
estação de metrô que desse significado a um emaranhado de vilarejos engolidos pela cidade fazia muito tempo, lojas tristes e garagens desonestas entremeadas de casas
mambembes do período eduardiano e blocos horríveis de apartamentos, covis dominados por traficantes de drogas. As multidões de pedestres, absortas em preocupações
que lhe pareceriam estranhas, pertenciam a outra cidade, a uma longínqua cidade que não era a dela. Como saber que estavam atravessando Clapham Junction não fosse
uma tabuleta desbotada e engraçada na fachada de uma loja de produtos elétricos fechada com tábuas? Reconhecendo em seu íntimo uma misantropia crescente, obrigou-se
a relembrar o propósito da missão. Ia visitar um menino gravemente enfermo.
Fiona gostava de hospitais. Com treze anos, quando seguia prazerosamente de bicicleta para a escola, um bueiro mal tampado a fez voar por cima do guidão. Uma leve
concussão e vestígios de sangue na urina a mantiveram no hospital para observação. Não havia vagas na ala pediátrica — um ônibus cheio de estudantes voltara da Espanha
com um vírus intestinal desconhecido. Ela foi posta na enfermaria feminina e lá ficou por uma semana, fazendo exames em nada exigentes. Isso aconteceu em meados
da década de 1960, quando o espírito da época não havia ainda começado a questionar e a desestruturar as pomposas hierarquias médicas. A enfermaria vitoriana, com
seu teto alto, era limpa e bem organizada, a assustadora irmã que supervisionava as pacientes protegia as mais novas, porém as velhas senhoras (algumas das quais,
pensando agora, tinham uns trinta anos) gostaram e cuidaram dela, que nunca perguntou de que elas sofriam. Era a queridinha de todas e se entregou a uma nova existência.
As antigas rotinas da casa e da escola sumiram de todo. Quando uma ou duas senhoras desapareceram de suas camas durante a noite, ela não pensou muito sobre aquilo.
Estava totalmente a salvo de histerectomias, câncer e morte, passando uma semana gloriosa sem sustos ou dores.
À tarde, depois da escola, chegavam suas amigas, impressionadas por visitarem um hospital sem a presença de nenhum adulto. Passada a novidade, três ou quatro meninas
ficavam em volta da cama de Fiona prendendo o riso por qualquer bobagenzinha — uma enfermeira passando de cara amarrada, a saudação exagerada de uma velhinha sem
dentes, alguém no fundo da enfermaria vomitando ruidosamente por trás de um biombo.
Antes e depois do almoço, Fiona se sentava a sós na sala de estar com um caderno de exercícios no colo, planejando seus possíveis futuros — concertista de piano,
veterinária, jornalista, cantora. Fazia diagramas dessas vidas possíveis. Nas linhas que se separavam do tronco estavam a universidade, um marido parrudo e heroico,
filhos maravilhosos, uma fazenda de criação de ovelhas, uma profissão de sucesso. Até aquela altura, nunca havia pensado em direito.
No dia em que recebeu alta, circulou pela enfermaria com seu uniforme escolar, a mochila pendurada no ombro e observada por sua mãe, se despedindo chorosamente e
fazendo promessas de manter contato. Nas décadas que se seguiram teve sorte em matéria de saúde, só voltando a hospitais nos horários de visita. Mas ficou marcada
para sempre. Todo o sofrimento e a dor que via em familiares e amigos não eram capazes de destruir uma associação improvável entre hospitais e bondade, com o fato
de ser notada como alguém especial e protegida do pior. Por isso, quando o prédio de vinte e seis andares do hospital geral Edith Cavell surgiu em meio à névoa que
envolvia os carvalhos e do outro lado da praça central de Wandsworth, Fiona teve, erroneamente e por um instante, uma expectativa agradável.
Ela e a assistente social olharam para a frente, mais além dos gaguejantes limpadores de para-brisas, quando o táxi se aproximou de um sinal de neon azul que anunciava
ainda haver vagas para seiscentos e quinze carros. Num morrote coberto de grama, tal qual um forte da Idade da Pedra, levantava-se a torre circular de vidro desenhada
por um arquiteto japonês e com revestimento de azulejos de um verde semelhante ao dos aventais dos cirurgiões, construído com base em empréstimos caríssimos durante
o governo trabalhista de meados da década de 1990. As nuvens baixas de verão encobriam os andares superiores.
Ao caminharem em direção à entrada, um gato saiu debaixo de um carro estacionado e correu na frente delas, levando Marina Greene a retomar a conversa, fazendo um
minucioso relato de como seu gato, um corajoso felino inglês de pelo curto, botava para correr os cachorros da vizinhança. Fiona sentiu simpatia por aquela jovem
e solene mulher de cabelo ralo cor de areia, que vivia num conjunto habitacional com três filhos de menos de cinco anos e o marido policial. O gato não tinha maior
relevância. Não queria que nada prejudicial se interpusesse entre elas, agudamente consciente da preocupação compartilhada com o que iriam em breve se confrontar.
Fiona permitiu-se uma maior liberdade: “Um gato que não se amedronta. Espero que você tenha contado essa história ao Adam”.
Marina respondeu baixinho: “Na verdade, contei”, e voltou a ficar em silêncio.
Entraram num átrio envidraçado da altura do prédio. Árvores inglesas, já maduras mas pouco viçosas, se esforçavam para crescer no saguão em meio às alegres cadeiras
e mesas de estabelecimentos que competiam entre si para oferecer café e sanduíches. Mais acima, e depois ainda mais para o alto, outras árvores cresciam em plataformas
que se projetavam das paredes curvas. As plantas mais distantes pareciam arbustos vistos em silhueta contra o teto de vidro a cem metros de altura. As duas mulheres
atravessaram o assoalho de tábuas claras, contornaram um balcão de informações e uma mostra de desenhos de crianças enfermas. Uma longa escada rolante as levou ao
mezanino, onde uma livraria, uma floricultura, uma banca de jornais, uma loja de lembrancinhas e um business center circundavam uma fonte. Música new age, etérea
e sem modulações, se mesclava com o som da água que jorrava. Tudo típico de um aeroporto moderno. Com destinos diferentes. Naquele andar, havia pouco sinal de doenças,
nenhum equipamento médico. Os pacientes se misturavam agradavelmente com os visitantes e os funcionários. Aqui e ali viam-se pessoas de camisola, dando uma impressão
algo dissoluta. Fiona e Marina seguiram placas semelhantes às que se usam nas estradas: Oncologia pediátrica, Medicina nuclear, Flebotomia. Entraram por um largo
corredor de piso reluzente que as levou a um conjunto de elevadores, e elas subiram em silêncio até o nono andar, onde a partir de um corredor idêntico, depois de
virarem três vezes à esquerda, elas chegaram à unidade de tratamento intensivo. Passaram por um alegre mural de macacos pulando através dos galhos de uma floresta.
Agora, por fim, o ar parado tinha o cheiro de hospital: de comida levada dali havia algum tempo, antissépticos e, mais tênue, de alguma coisa doce. Nem frutas nem
flores.
O posto das enfermeiras estava estrategicamente localizado diante de uma série semicircular de portas fechadas mas dotadas de portinholas de observação. O silêncio,
só quebrado por um zumbido elétrico, e a falta de luz natural davam a impressão de que já era de madrugada. As duas jovens enfermeiras atrás do balcão — como Fiona
soube depois, uma filipina e a outra caribenha — soltaram gritinhos de boas-vindas quando viram Marina, trocando com ela batidas de mão acima da cabeça. De repente,
a assistente social era outra pessoa, transformando-se numa animada mulher negra sob a pele branca. Deu meia-volta para apresentar a juíza às enfermeiras como alguém
“muitíssimo importante”. Fiona estendeu a mão. Não poderia ter executado aquela batida de mãos sem se sentir desmoralizada, e isso pareceu ficar bem entendido. Sua
mão foi apertada afetuosamente. Numa troca rápida de palavras diante do balcão, combinaram que Fiona ficaria do lado de fora enquanto a assistente social entrava
e explicava tudo a Adam.
Quando Marina entrou por uma porta na extremidade direita, Fiona se voltou para as enfermeiras e perguntou pelo jovem paciente.
“Ele está aprendendo a tocar violino”, disse a moça filipina. “E nos deixando malucas!”
Sua amiga deu um tapa teatral na coxa. “Está fazendo uma bagunça dos diabos lá dentro!”
As enfermeiras se entreolharam e começaram a rir, embora baixinho para não incomodar os pacientes. Essa era claramente uma piada que faziam com frequência. Fiona
esperou. Estava se sentindo à vontade, mas sabia que não ia durar.
Por fim, disse: “E esse problema da transfusão?”.
Todo o bom humor desapareceu. A enfermeira caribenha respondeu: “Rezo por ele todos os dias. Digo a Adam: ‘Deus não precisa que você faça isso, meu querido. Ele
te ama de qualquer maneira. Deus quer que você viva’”.
A amiga dela disse com tristeza: “Ele tomou uma decisão. A gente tem que respeitar ele por isso. Viver de acordo com seus princípios”.
“Morrer, não é mesmo? Ele não sabe de nada. É um menininho confuso.”
Fiona perguntou: “O que ele diz quando você fala que Deus quer que ele viva?”.
“Nada. É como se não tivesse nenhuma razão para me ouvir.”
Nesse momento, Marina abriu a porta, ergueu a mão e voltou para dentro.
Fiona disse: “Bem, obrigada”.
Indo atender a uma campainha, a enfermeira filipina caminhou às pressas para outra porta.
“A senhora pode ir lá”, disse a amiga dela, “e, por favor, faz ele mudar de ideia. É um rapaz muito simpático.”
Fiona tinha uma recordação confusa de sua entrada no quarto de Adam Henry devido a uma série de contrastes desorientadores. Havia muita coisa para absorver. O aposento
estava mergulhado na semiobscuridade, com exceção de uma luz intensa focalizada sobre a cama. A um canto, Marina se instalava numa cadeira com uma revista que possivelmente
não seria capaz de ler no escuro. Os equipamentos de ventilação assistida e monitoramento em volta do leito, os altos suportes com seus tubos e os monitores brilhantes
irradiavam uma presença atenta, quase um silêncio. Mas não havia silêncio, porque o rapaz já estava lhe dirigindo a palavra, tudo se desenrolando ou irrompendo sem
a participação dela, deixando-a para trás, perplexa. Ele estava sentado bem empertigado, apoiado em travesseiros escorados por uma cabeceira de metal e iluminado
por uma única lâmpada como num palco teatral. Espalhados em torno dele e se perdendo nas sombras, havia livros, panfletos, um arco de violino, um laptop, fones de
ouvido, cascas de laranja, embalagens de bombons, uma caixa de lenços de papel, uma meia, um caderno de notas e diversas páginas escritas de cima a baixo. Bagunça
típica de adolescente, que ela conhecia das visitas de seus parentes.
Era um rosto comprido e magro, fantasmagoricamente pálido mas bonito, com crescentes roxos que se esmaeciam delicadamente debaixo dos olhos, bem como lábios cheios
que também pareciam roxos sob a luz forte. Os próprios olhos, que eram grandes, davam a impressão de ser violeta. Um sinal acima da maçã do rosto parecia ter sido
pintado com fins estéticos. O corpo era frágil, os braços se projetando como finos bastões para fora da camisola de hospital. Ele falava rapidamente, em tom sério,
e naqueles primeiros segundos ela não entendeu nada. Depois, quando a porta se fechou com um suspiro pneumático, Fiona compreendeu que ele estava dizendo como aquilo
era estranho, que sempre soube que ela iria visitá-lo, que achava que ele tinha esse dom, essas premonições, que na aula de estudos religiosos tinha sido lido um
poema que dizia que o futuro, o presente e o passado formavam uma unidade, coisa que a Bíblia também dizia. Seu professor de química tinha dito que a relatividade
provava que o tempo era uma ilusão. E, se Deus, a poesia e a ciência diziam todos a mesma coisa, só podia ser verdade, ela não achava?
Ele se recostou nos travesseiros para recuperar o fôlego. Fiona se mantivera ao pé da cama, sem se sentar. Agora se aproximou do lado do leito onde havia uma cadeira
de plástico, disse seu nome e estendeu a mão. A dele era fria e úmida. Sentou-se e esperou que ele falasse mais. Mas a cabeça de Adam estava inclinada para trás,
ele contemplava o teto, ainda se recuperando, e, ela entendeu, aguardando uma resposta. Teve consciência do silvo de uma das máquinas a suas costas, assim como de
um bipe rápido e baixinho, no limite ao menos da sua capacidade auditiva. O monitor cardíaco, com o volume reduzido para não incomodar o paciente, revelava a excitação
do rapaz.
Ela se inclinou para a frente e disse que achava que ele tinha razão. Em sua experiência no tribunal, se testemunhas que nunca haviam conversado entre si diziam
todas a mesma coisa sobre um fato, era mais provável que fosse verdade.
E então acrescentou: “Mas nem sempre. Pode haver fantasias coletivas. Pessoas que não se conhecem podem se sentir fascinadas pela mesma ideia falsa. Isso certamente
acontece nos tribunais”.
“Quando, por exemplo?”
Como ele ainda estava recuperando o fôlego, mesmo essas três palavras representaram um esforço. Continuou a olhar para o alto, evitando encará-la, enquanto ela buscava
um exemplo.
“Alguns anos atrás neste país algumas crianças foram afastadas de seus pais pelas autoridades e os pais processados pelo que se chamou de depravação satânica, por
fazerem coisas terríveis com seus filhos em rituais secretos de veneração ao demônio. Todos atacaram os pais. Policiais, assistentes sociais, promotores, jornais,
até mesmo juízes. Mas acabou se descobrindo que não havia nada. Nenhum ritual secreto, nenhum diabo, nenhuma depravação. Nada tinha acontecido. Era uma fantasia.
Todos aqueles peritos e pessoas importantes estavam compartilhando uma ilusão, um sonho. Passado algum tempo, todos recobraram a razão e ficaram muito envergonhados,
ou deveriam ter ficado. E aos poucos as crianças voltaram a seus lares.”
Fiona falou como se ela própria estivesse sonhando. Sentiu-se agradavelmente tranquila, embora suspeitasse que Marina, acompanhando com atenção a conversa, ficara
perplexa com suas observações. Que estaria fazendo a juíza ao falar com o rapaz sobre maus-tratos infantis minutos depois de conhecê-lo? Será que desejava sugerir
que a religião, a religião dele, era uma fantasia coletiva? Marina havia imaginado que, depois de uma conversinha amável, os importantíssimos comentários iniciais
da juíza consistiriam em perguntar se ele sabia por que ela estava lá. Em vez disso, Fiona estava fazendo uma digressão, como se conversasse com um colega acerca
de um escândalo institucional da década de 1980 já esquecido. Mas o que Marina poderia pensar não a preocupava. Ela faria aquilo do seu jeito.
Adam ficou quieto, absorvendo o que ela havia dito. Por fim, virou a cabeça no travesseiro e seus olhos se encontraram. Ela já esbanjara bastante de sua autoridade
e estava decidida a não afastar o rosto. A respiração dele estava mais ou menos sob controle, sua aparência era sombria e solene, impossível de ler. Isso pouco importava,
porque ela agora se sentia mais calma do que estivera no dia todo. Nada que merecesse comemoração. Se não calma, sem precipitação. A pressão de um tribunal que esperava
por seu retorno, a necessidade de uma decisão rápida, o prognóstico urgente do consultor médico — tudo isso estava em suspenso no quarto hermeticamente fechado e
penumbroso enquanto ela contemplava o rapaz e esperava que ele falasse. Fizera bem em ter vindo.
Teria sido inadequado olhar no fundo dos olhos dele por cerca de trinta segundos ou mais, mas ela teve tempo de imaginar, graças à capacidade do pensamento de condensar
impressões variadas, que ele via sentada na cadeira à beira de sua cama outra pessoa adulta cheia de opiniões, uma pessoa adulta ainda menos significativa pela irrelevância
especial que cerca uma senhora idosa.
Ele afastou o olhar pouco antes de dizer: “O problema com Satã é que ele é extraordinariamente sofisticado. Põe na cabeça das pessoas uma ideia idiota, como sei
lá o quê satânico, depravação satânica, deixa que a refutem para todo mundo pensar que afinal ele não existe, e então fica livre para fazer tudo de ruim”.
Outra característica de sua abertura pouco convencional — Fiona entrara no território dele. Satã era uma figura ativa na construção do mundo, de acordo com as testemunhas
de Jeová. Viera à Terra em outubro de 1914, assim ela lera ao folhear o material informativo, a fim de se preparar para os dias finais, e estava trabalhando maliciosamente
através dos governos, da Igreja católica e em especial das Nações Unidas, encorajando-as a espalhar a concórdia entre todos os países no momento em que eles deveriam
estar se preparando para o Armagedão.
“Ele está livre para tentar matá-lo de leucemia?”
Ela se perguntou se tinha falado de modo demasiado direto, mas Adam possuía a resiliência que os adolescentes gostam de exibir. De bancar o durão. “É, esse tipo
de coisa.”
“E vai deixar que ele faça isso?”
Adam empurrou o corpo contra os travesseiros para se sentar com as costas retas, passando depois a mão pelo queixo com ar pensativo, numa paródia de um pomposo professor
ou comentarista de televisão. Estava zombando dela.
“Bem, já que a senhora pergunta, pretendo esmagá-lo obedecendo aos mandamentos de Deus.”
“Isso significa um sim?”
Ele ignorou essa observação, esperou um momento e disse: “A senhora veio para mudar minha cabeça, me endireitar?”.
“De maneira nenhuma.”
“Ah, veio! Eu acho que sim!” De repente ele se transformara numa criança travessa e provocadora, abraçando os joelhos por cima das cobertas, embora fracamente, e
voltou a se excitar, adotando um tom sardônico: “Por favor, minha senhora, me aponte o caminho da retidão”.
“Vou lhe dizer por que estou aqui, Adam. Quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo. Algumas pessoas acham que você é jovem demais para tomar uma decisão
como essa e que foi influenciado por seus pais e pelos líderes da congregação. E outros acham que, como você é extremamente inteligente e capaz, deveríamos apenas
deixar que siga em frente.”
Sob a luz cruel, ele cresceu vividamente diante dela, o cabelo negro e despenteado escapando por cima da gola, os olhos grandes e escuros varrendo o rosto de Fiona
com movimentos rápidos, alertas para captar qualquer logro ou notas falsas. Das cobertas subiu um aroma de talco ou sabão, e de seu hálito algo tênue e metálico.
Sua dieta de remédios.
“Bom”, ele disse com entusiasmo. “Qual é a sua impressão até agora? Como estou me saindo?”
Estava mesmo brincando com ela, atraindo-a para outro terreno, para uma região mais rústica, onde poderia dançar em volta dela, instigá-la a dizer outra vez algo
inapropriado e interessante. Ocorreu a Fiona que aquele jovem precoce pudesse estar apenas entediado, insuficientemente estimulado e que, ao ameaçar a própria vida,
passara a encenar um drama fascinante no qual era o principal ator de cada cena, conseguindo trazer para a beira de seu leito um cortejo de adultos importantes e
importunos. Fosse esse o caso, ela gostaria ainda mais dele. Uma grave doença não era capaz de sufocar sua vitalidade.
Assim, como ele estaria se saindo? “Muito bem até agora”, ela disse, consciente de que assumia um risco. “Você dá a impressão de ser alguém que sabe o que quer.”
“Obrigado”, ele disse com uma voz ironicamente doce.
“Mas pode ser apenas impressão.”
“Eu gosto de dar uma boa impressão.”
Seu estilo e seu humor tinham um coeficiente de tolice que de fato às vezes acompanha uma grande inteligência. E que lhe servia de proteção. Ele sem dúvida estava
muito assustado. Era chegada a hora de fazê-lo pôr os pés no chão.
“E, se você sabe o que quer, não vai se recusar a discutir questões práticas.”
“Pode começar.”
“O consultor médico diz que, se puder fazer a transfusão e elevar sua contagem sanguínea, vai acrescentar a seu tratamento dois remédios muito eficazes que lhe darão
uma boa chance de se recuperar por completo e relativamente em pouco tempo.”
“Sei.”
“E que sem a transfusão você pode morrer. Entende isso, não entende?”
“Estou sabendo.”
“E há outra possibilidade. Preciso estar certa de que você a considerou. Não a morte, Adam, mas uma recuperação parcial. Você poderia ficar cego, poderia sofrer
um dano cerebral ou seus rins poderiam falhar. Será que agradaria a Deus ter você cego ou mentalmente incapaz, ou fazendo diálise pelo resto da sua vida?”
Sua pergunta ia além do limite, do limite legal. Ela deu uma olhada para o canto sombrio onde Marina estava sentada. Ela usava a revista para apoiar um caderno de
notas e escrevia se valendo só do tato. Não levantou a vista.
Adam olhava fixamente para um ponto acima da cabeça de Fiona. Com um estalido molhado, umedeceu os lábios com a língua coberta por uma película branca. Agora havia
um quê amuado em sua voz.
“Se a senhora não crê em Deus, não devia estar falando sobre o que agrada a ele ou não.”
“Eu não disse que não acredito. Gostaria de saber se você considerou isso com todo o cuidado, o fato de que pode ficar pelo resto da vida doente e incapaz, mentalmente,
fisicamente ou as duas coisas.”
“Eu odiaria isso, odiaria.” Ele virou o rosto depressa, numa tentativa de esconder as lágrimas que subitamente marejaram seus olhos. “Mas, se é isso que acontece,
tenho que aceitar.”
Ficou nervoso, evitando olhá-la nos olhos, envergonhado por deixá-la ver como tinha sido fácil esvaziar sua convicção. O cotovelo dobrado era ossudo e frágil. Sabe-se
lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeiramente fritas em azeite. Levar
aquele menino para casa e alimentá-lo.
Tinham feito um bom progresso, atingido um novo patamar, e ela estava prestes a dar seguimento com uma nova pergunta quando a enfermeira caribenha entrou e escancarou
a porta. Do lado de fora, como se convocado por sua fantasia de preparar comida, estava um jovem com um paletó de algodão marrom, pouco mais velho que Adam, ao lado
de um carrinho cheio de recipientes de aço escovado.
“Posso trazer seu jantar depois”, disse a enfermeira. “Mas só daqui a meia hora.”
“Se der para você aguentar”, disse Fiona a Adam.
“Dá, sim.”
Fiona se levantou da cadeira para permitir que a enfermeira fizesse uma verificação de rotina no paciente e em seus monitores. Deve ter notado seu estado emocional
e a umidade em torno dos olhos, porque secou o rosto dele com a mão antes de sair, sussurrando de forma audível: “Trata de prestar atenção no que essa senhora tem
pra te dizer”.
A interrupção alterou o clima no quarto. Quando Fiona voltou a se sentar, não fez a pergunta que tencionava. Em vez disso, apontou com a cabeça na direção dos papéis
em meio à mixórdia sobre a cama. “Ouvi dizer que você tem escrito poesia.”
Ela imaginou que Adam rejeitaria a deixa por achá-la intrometida ou condescendente, mas ele deu a impressão de se sentir aliviado com a mudança de assunto, uma reação
sincera, sem intenções defensivas. Fiona notou também como seu estado de espírito se alterava velozmente.
“Acabei uma coisa não faz muito tempo. Posso ler para a senhora, se quiser. É bem pequeno. Mas espera um minuto.” Ajeitou o corpo de lado para encará-la. Antes de
falar, umedeceu os lábios ressequidos. Outra vez a língua recoberta com uma película branca. Em outro contexto poderia ser algo bonito, uma novidade cosmética.
Ele perguntou em tom de confidência: “Como é que chamam a senhora no tribunal? É ‘Sua Excelência’?”.
“Geralmente é ‘Meritíssima’.”
“Meritíssima? Isso é fantástico! Posso chamá-la assim?”
“Fiona seria melhor.”
“Mas quero chamá-la de Meritíssima. Por favor.”
“Tudo bem. E o poema?”
Ele se recostou de novo nos travesseiros para recuperar o fôlego, e ela esperou. Por fim, o esforço para alcançar uma folha de papel perto de seu joelho provocou
uma tosse debilitada. Terminado o acesso, sua voz estava fraca e roufenha. Fiona não percebeu nenhuma ironia na forma em que agora se dirigia a ela.
“A coisa estranha, Meritíssima, é que só comecei a escrever minhas melhores poesias depois que fiquei doente. Por que a senhora acha que isso aconteceu?”
“Você é que tem de me dizer.”
Ele deu de ombros. “Gosto de escrever no meio da noite. Todo o prédio para de funcionar, só se ouve um zumbido estranho e profundo, impossível de ouvir durante o
dia. Escuta.”
Os dois escutaram. Lá fora ainda haveria mais quatro horas de luz, àquela altura o trânsito estava no auge. Ali parecia ser de madrugada, mas ela não conseguiu ouvir
o zumbido. Estava começando a se dar conta de que a qualidade que o definia era a inocência, uma inocência pura e excitável, uma franqueza infantil que podia ter
algo a ver com a natureza fechada da seita. A congregação, de acordo com o que lera, era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto possível de pessoas
de fora. Muito semelhante aos judeus ultraortodoxos. Os adolescentes da família de Fiona, tanto as garotas quanto os rapazes, bem cedo se tinham protegido com uma
dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exagerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a vida adulta. A falta de
traquejo de Adam inspirava carinho, mas o deixava vulnerável. Ela se emocionou com sua delicadeza, com o modo como olhava ferozmente para o papel, talvez tentando
ouvir antecipadamente o poema através dos ouvidos dela. Fiona concluiu que ele devia ser muito amado em casa.
Adam olhou de relance para ela, respirou fundo e começou.
Eu era feliz até cair no mais negro abismo
Quando o martelo de Satã feriu minh’alma
Com golpes longos e lentos como os de um ferreiro,
E me esmagou.
Mas Satã fez com isso um tecido de ouro batido
Que refletiu sobre todo o rebanho o amor de Deus.
Na áurea luz o caminho se iluminou
E me salvei.
Ela esperou no caso de haver mais, porém ele deixou o papel na cama, recostou-se e olhou para o teto enquanto falava:
“Escrevi esse poema depois que um dos anciãos, o sr. Crosby, me disse que, se acontecesse o pior, isso teria um efeito fantástico sobre todo mundo.”
Fiona murmurou: “Ele disse isso?”.
“Ia encher nossa igreja de amor.”
Ela resumiu para ele. “Quer dizer que Satã golpeia você com seu martelo e, sem querer, esmaga sua alma até transformá-la numa folha de ouro batido que reflete o
amor de Deus sobre todo mundo. Por isso você é salvo, não importando muito que esteja morto.”
“Meritíssima, a senhora entendeu perfeitamente”, o rapaz exclamou, muito excitado. Precisou parar de novo para recobrar o fôlego. “Acho que as enfermeiras não entenderam,
exceto a Donna, a que veio aqui agorinha mesmo. O sr. Crosby vai tentar publicar o poema na revista A Sentinela.”
“Seria maravilhoso. Você pode ter um belo futuro como poeta.”
Ele sorriu, sem se deixar iludir pelo sentido da frase.
“O que seus pais acham dos seus poemas?”
“Minha mãe gosta muito, papai acha que estão bem mas que gastam a energia de que preciso para ficar bom.” Virou-se outra vez de lado para encará-la. “Mas o que é
que a Meritíssima acha? O título deste é ‘O martelo’.”
Havia tanta fome em seu olhar, um tamanho desejo de contar com a aprovação dela, que ela hesitou. Por fim, disse: “Acho que ele tem uma ponta, mas uma pontinha bem
pequena, veja bem, de um verdadeiro talento poético”.
Ele continuou a olhá-la fixamente, o semblante inalterado, querendo mais. Ela achou que soubesse o que estava fazendo, porém naquele instante sua mente se esvaziou.
Não queria desapontá-lo e não tinha o hábito de falar sobre poesia.
“Por que a senhora diz isso?”
Ela não sabia de pronto. Teria ficado contente se Donna voltasse para se ocupar do equipamento e do paciente, enquanto ela iria até a janela impossível de abrir
e contemplaria o gramado central de Wandsworth decidindo o que dizer. Mas a enfermeira não voltaria nos próximos quinze minutos. Fiona teve a esperança de que, se
começasse a falar, descobriria o que pensava. Era como quando estava na escola. Naquela época, em geral se saía bem.
“O formato, aquelas duas frases curtas que equilibram as coisas, você está amassado e está salvo, a segunda superando a primeira — gostei disso. E gostei dos golpes
do ferreiro...”
“Longos e lentos.”
“Isso mesmo, longos e lentos é bom. E é bastante conciso, como costumam ser alguns dos melhores poemas curtos.” Ela sentiu que sua confiança retornava. “Suponho
que esteja nos dizendo que da adversidade, de um momento terrível, alguma coisa de bom pode resultar. Não é isso?”
“É.”
“E não acho que alguém precise acreditar em Deus para compreender ou apreciar esse poema.”
Ele refletiu por alguns segundos e disse: “Acho que precisa”.
“Você acha que deve sofrer para ser um bom poeta?”
“Acho que todos os grandes poetas têm que sofrer.”
“Entendo.”
Fingindo ajustar a manga, ela esticou o braço para baixo e deu uma olhada rápida no relógio. Necessitava voltar em breve para o tribunal a fim de proferir a sentença.
Mas ele tinha notado o gesto. “Não vai embora ainda”, ele disse baixinho. “Espera o meu jantar chegar.”
“Está bem. Adam, me diga, o que seus pais acham?”
“Mamãe está lidando melhor com tudo isso. Aceita as coisas, sabe? Obediência a Deus. E é muito prática, tomou todas as providências, falou com os médicos, arranjou
esse quarto maior do que os outros, encontrou um violino para mim. Mas papai está se arrebentando. Está acostumado a tomar conta de máquinas pesadas, de fazer as
coisas funcionarem.”
“E recusando uma transfusão?”
“O que é que tem isso?”
“O que seus pais dizem a você?”
“Não há muito o que dizer. Nós sabemos o que é certo.”
Ao dizer isso olhando nos olhos de Fiona e sem nenhum desafio na voz, ela acreditou totalmente que Adam e seus pais, a congregação e os anciãos sabiam o que era
certo para eles. Sentiu-se desagradavelmente inconsequente, esvaziada, sem rumo. Ocorreu-lhe a noção sacrílega de que não importava muito uma coisa ou outra, que
o menino vivesse ou morresse. Tudo continuaria essencialmente como antes. Tristeza profunda, talvez um amargo remorso, doces recordações, e então a vida se lançaria
de novo para a frente, e esses três sentimentos iriam se esvaindo à medida que os que o amavam envelhecessem e morressem, até tudo perder o sentido. Religiões e
sistemas morais, inclusive os dela, eram como picos numa majestosa cordilheira vista muito ao longe, nenhum deles claramente mais alto, mais importante, mais verdadeiro
que os outros. Julgar o quê?
Ela balançou a cabeça para dissipar tal pensamento. Esperando na fila estava a pergunta que se aprestava a fazer quando Donna chegou. Tão logo a fez, se sentiu melhor.
“Seu pai explicou alguns argumentos religiosos, mas quero ouvi-los com suas próprias palavras. Por que exatamente você não quer receber uma transfusão de sangue?”
“Porque é errado.”
“Continue.”
“E Deus nos disse que é errado.”
“Por que é errado?”
“Por que uma coisa é errada? Porque sabemos que é. Tortura, assassinato, mentira, roubo. Mesmo que a gente obtenha boas informações de uma pessoa má porque as torturamos,
sabemos que isso está errado. Sabemos porque Deus nos ensinou. Mesmo que...”
“A transfusão é o mesmo que uma tortura?”
Marina se mexeu em seu canto. Adam, falando aos solavancos, arquejante, avançou na explicação. A transfusão e a tortura só eram semelhantes por serem ambas erradas.
Sabíamos disso em nosso coração. Citou o Levítico e os Atos, dissertou sobre o sangue como essência, sobre a palavra literal de Deus, sobre contaminação, falando
como um aluno inteligente do ensino médio, o mais brilhante debatedor do colégio. Os olhos escuros, cor de violeta, brilhavam sob o efeito de suas palavras. Fiona
reconheceu certas frases ditas pelo pai. Mas Adam as pronunciou como se fosse o descobridor de fatos elementares, o formulador da doutrina, e não seu destinatário.
Ela estava ouvindo um sermão reproduzido fiel e apaixonadamente. Ele se apresentou como porta-voz de sua seita quando disse que ele e a congregação só desejavam
ser deixados em paz para viver segundo o que sabiam ser verdades evidentes.
Fiona se mostrou atenta, sustentando o olhar do rapaz, vez por outra assentindo com a cabeça; quando por fim houve uma pausa natural, ela se pôs de pé e disse: “Só
para ficar claro, Adam. Você entende que só depende de mim decidir o que melhor serve a seus interesses? Se eu decidir que o hospital pode legalmente fazer a transfusão
contra sua vontade, o que é que você vai achar?”.
Ele estava se empertigando na cama e respirando fundo, e deu a impressão de se encolher um pouco ao ouvir a pergunta, mas sorriu: “Eu ia achar que a Meritíssima
era muito intrometida”.
Foi uma mudança tão inesperada de timbre, um comentário tão absurdamente brando, e a surpresa de Fiona tão óbvia para ele, que ambos começaram a rir. Marina, que
no momento recolhia a bolsa e seu caderno de notas, parecia perplexa.
Fiona olhou para o relógio, desta vez abertamente, e disse: “Acho que você deixou bem claro que sabe o que quer, tanto quanto qualquer um de nós seria capaz de fazê-lo”.
Ele retrucou com a necessária solenidade: “Muito obrigado. Vou dizer a meus pais hoje à noite. Mas não vá embora. Meu jantar ainda não chegou. Que tal outro poema?”.
“Adam, preciso voltar ao tribunal.” No entanto, ela também estava desejosa de desviar a conversa sobre o estado de saúde dele. Viu o arco sobre a cama, parcialmente
na sombra.
“Depressa, antes que eu vá, me mostre seu violino.”
O estojo estava no chão perto de um armário e debaixo da cama. Ela o pegou e pôs no colo dele.
“É só um violino para iniciantes.” Mas o retirou com extremo cuidado, mostrou a ela e juntos admiraram a madeira torneada, marrom-escura com bordas pretas e volutas
delicadas.
Ela pôs a mão na superfície envernizada e Adam pousou a dele ao lado. Fiona disse: “São belos instrumentos. Sempre penso que há algo de humano no formato deles”.