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Series & Trilogias Literarias
O GINÁSIO ESTAVA EM ABSOLUTO SILÊNCIO. Nenhum barulho – nem das doze barras de madeira que subiam perfiladas pelas paredes, nem do velho cavalo com alças e seu estofado de couro rasgado, nem das oito cordas cinzentas e já bem gastas que pendiam do teto, nem dos dezesseis meninos e meninas da banda escolar de Dølgen, que, agora, encaravam o maestro Madsen.
– Atenção... – gritou Madsen. Ergueu a batuta e os sondou com olhos semicerrados por trás dos óculos escuros de aviador. O olhar aflito procurava Bumbão. Sabia que o resto da banda implicava com o trompetista ruivo por ele ser pequenino, o que era verdade. Mas, ao contrário dos outros, Bumbão levava jeito para a música. Talvez aquele fosse o dia de virar o jogo. Como Madsen não conseguiu achá-lo, o olhar pousou na única amiga que Bumbão tinha: Lise, a clarinetista. Era também a única da banda que sempre praticava em casa. Talvez ainda houvesse esperança.
– Preparados?
Todos levaram os instrumentos à boca. O silêncio era tal, que dava para ouvir, lá fora, os sons da agradável tarde de outubro: o canto dos pássaros, o ronco do cortador de grama e a risada das criancinhas remelentas que brincavam. Mas, dentro do ginásio, o ambiente era sombrio. E a coisa estava para ficar ainda pior.
– Vamos lá! – gritou Madsen, descrevendo um majestoso arco com a batuta.
A princípio, nada aconteceu, e o que se continuou ouvindo foi o canto dos pássaros, o cortador de grama, a risada das criancinhas remelentas. Então um trompete emitiu um ruído trêmulo, um clarinete guinchou timidamente, e o bumbo ensaiou um baque surdo hesitante. Uma batida inesperada na caixa de rufo fez uma trompa explodir em um som de arroto e, lá atrás, nas últimas fileiras, algo grande bufou, fazendo Lise pensar em uma baleia-azul vindo à tona após passar uma semana debaixo d’água. Mas aquele amontoado de sons não produzira nenhuma nota musical, e o rosto de Madsen passou a se tingir com aquele vermelho que advertia a proximidade de uma explosão.
– Dois-três! – berrou ele, brandindo a batuta como se empunhasse um chicote e os membros da banda fossem escravos remando em uma galé romana. – Vamos! Toquem, pelo amor de Deus! Isto deveria ser a Marselhesa, o hino da França! Toquem com dignidade!
Mas não havia dignidade nenhuma ali. Os rostos diante de Madsen estavam paralisados atrás de estantes de música e partituras, os olhos estreitados, como se fizessem força, sentados na privada.
Madsen desistiu e baixou os braços, e foi nesse momento que a tuba enfim soou – um mugido grave e desolador.
– Parem, parem! – gritou Madsen, e esperou a tuba silenciar. – Se algum francês ouvisse isso, vocês seriam decapitados e depois queimados em uma fogueira. Devemos respeitar a Marselhesa!
Enquanto Madsen prosseguia com a bronca, Lise inclinou-se para o assento ao lado e sussurrou:
– Trouxe o cartão-postal do doutor Proktor. Achei estranho.
A voz que respondeu saiu de trás de um trompete estropiado:
– Se for como o último, não vejo nada de estranho. “Queridos Lise e Bumbão, saudações de Paris. Atenciosamente, doutor Proktor.” Não foi mais ou menos isso que ele escreveu?
– Foi, mas...
– A única coisa estranha é uma pessoa excêntrica como o doutor Proktor escrever um cartão-postal tão comum.
Foram interrompidos pela voz trovejante de Madsen:
– Bumbão, é você que está aí embaixo?
Por trás de um trompete surrado, uma voz respondeu:
– Sou eu sim, sargento!
– Levante-se para que possamos vê-lo!
– Sim, senhor, grande comandante de maravilhosas melodias e de todas as notas do universo!
E um ruivo pequenino, de sardas grandes e sorriso largo, saiu de trás da estante de música e subiu na cadeira. Aliás, pequenino é pouco: ele era minúsculo. E não era apenas ruivo: tinha o cabelo vermelho cor de fogo. E o sorriso não era apenas largo: praticamente dividia a cabecinha em duas. E as sardas não eram apenas grandes, eram... bom, está certo, eram apenas grandes.
– Toque a Marselhesa para a gente, Bumbão! – rosnou Madsen. – Do jeito que deve ser tocada.
– Pois não, grande pai de todos os condutores e rei de todas as bandas escolares ao norte do Saara e a leste do...
– Vamos logo com isso!
Então Bumbão começou a tocar. Uma melodia sonora e vibrante foi ondulando sob o teto do ginásio e saiu pela janela, espalhando-se pela tarde agradável de outono. Quando ouviram a bela música, os pássaros emudeceram, envergonhados das próprias canções. Pelo menos era isso que Lise pensava enquanto ouvia o pequeno vizinho e melhor amigo tocar o trompete do avô. Lise gostava de seu clarinete, mas o trompete tinha algo de especial. E não era muito difícil de tocar. Bumbão havia ensinado a ela uma música no trompete: o hino da Noruega. É claro que não era tão boa quanto ele, mas tinha o sonho secreto de tocar o hino para uma grande plateia. Imaginem só! Mas imaginar é imaginar, e sonhar é apenas sonhar.
– Muito bem, Bumbão! – exclamou Madsen. – Agora, vamos todos tocar com ele! Um, dois, três!
E a banda escolar de Dølgen atacou. Entrou cambaleante, trôpega, aos trambolhões. Tambores, saxofones, trompa, vibrafone e pratos. Parecia que alguém havia virado uma cozinha de ponta-cabeça e que tudo despencava para fora dos armários. Então o bumbo e a tuba se juntaram a eles, e o ginásio inteiro passou a tremer. As barras de madeira perfiladas nas paredes trepidavam, as cordas ondulavam como se à mercê de um vendaval, e o velho cavalo com alças saltitava pelo salão, avançando centímetro a centímetro rumo à porta de saída, como se quisesse fugir.
Quando por fim terminaram de tocar a Marselhesa, tudo era silêncio, dentro e fora do ginásio. Já não se ouvia o canto dos pássaros, já não se ouvia a risada das crianças – apenas o eco das batidas descontroladas dos gêmeos malvados, Truls e Trym, nos tímpanos e tambores.
– Obrigado – gemeu Madsen. – Acho que por hoje é só. Vejo vocês na segunda.
– É sério. O último cartão me parece mais estranho do que os anteriores! – disse Lise, caminhando com Bumbão pela rua dos Canhões.
O sol se punha cada vez mais cedo à medida que o inverno se aproximava, e os dois gostavam disso, principalmente Bumbão. Ele achava as noites claras de verão da Noruega uma chatice, uma invenção medíocre. Já as noites de outono, amenas e escuras, que lhe davam cobertura para roubar maçãs na vizinhança... estas, sim, eram uma invenção brilhante. De fato, quase tão boas quanto as invenções do doutor Proktor. Para Bumbão, o professor era o melhor inventor do mundo. É bem verdade que o resto do mundo não dava importância às invenções dele, mas é que ninguém entendia as coisas direito. Quem havia inventado o Pó de Soltar Pum mais potente do mundo, por exemplo?
Sem dúvida, o mais importante é que o doutor Proktor fazia a melhor gelatina do mundo, era o melhor amigo e vizinho do mundo, e tinha ensinado Bumbão e Lise a não se incomodarem com a opinião alheia, que os considerava uma equipe patética de fracassados. Uma equipe composta por um tampinha de costeletas vermelhas, uma menina tímida de maria-chiquinha e um professor mais maluco que o normal, de óculos de motoqueiro sujo de fuligem.
– Sabemos uma coisa que eles desconhecem – dizia o doutor Proktor. – Sabemos que, quando amigos prometem se ajudar sempre, um, mais um e mais um dá muito mais que três.
Não poderia ter dito nada mais verdadeiro. Se bem que, como amigo, o professor era um péssimo escritor de cartas. Haviam recebido apenas dois ou três míseros cartões-postais naqueles últimos três meses, desde que o professor montara na motocicleta, colocara o capacete de hóquei e se despedira, decidido a viajar para Paris a fim de encontrar o grande amor de sua vida, Juliette Margarina.
O doutor Proktor perdera contato com Juliette em circunstâncias misteriosas, muitos, muitos anos antes, quando ainda estudava na França. Bumbão e Lise tinham visto uma foto dela na parede do laboratório do professor. Era uma fotografia da época em que namoravam, e os dois pareciam tão felizes que os olhos de Lise se encheram de lágrimas. Aliás, Lise é quem havia convencido o doutor Proktor a procurar seu grande amor.
– É estranho demais! – insistiu ela. – Dá só uma olhada.
Bumbão olhou o cartão-postal.
– Hum – murmurou. Parou debaixo do poste de luz mais próximo e examinou a mensagem atentamente, murmurando “hum” várias vezes em tom significativo, como se compreendesse tudo muito bem.
– Veio de Paris – explicou Lise, apontando para a foto em preto e branco que parecia ter sido tirada em uma manhã enevoada. Era de uma grande praça que, não fossem algumas pessoas perambulando com sombrinhas e cartolas, estaria estranhamente deserta. A única indicação de que a praça ficava, de fato, na mundialmente famosa capital da França era a palavra PARIS impressa na parte de baixo da foto.
– Está vendo o mesmo que eu? – murmurou Bumbão, pensativo.
– O quê?
– Parece que falta alguma coisa nesta praça. Quero dizer, na foto como um todo.
– Pode ser – concordou Lise. E, depois de refletir um pouco mais, achou que Bumbão tinha razão, mas não sabia dizer exatamente o que faltava.
– Além disso, o cartão está um pouco amassado – comentou Bumbão, manuseando-o com cuidado. – Como se alguém o tivesse umedecido e depois fosse posto para secar. Por acaso, você não o leu debaixo do chuveiro, não é?
– Claro que não – respondeu Lise. – Já estava assim quando recebi.
– Ah-ah! – exclamou o menino, erguendo o pequeno indicador de unha roída. – Eu, Bumbão, o Gênio, usando de grande raciocínio lógico, cheguei mais uma vez à solução do enigma. Este cartão deve ter molhado no laboratório do professor em Paris!
Lise revirou os olhos.
– E como sabe disso?
– Elementar, minha cara Lise. Está escrito no próprio cartão. Leia você mesma. – E Bumbão o devolveu à menina.
Lise já tinha lido o cartão umas doze vezes e sabia a mensagem de cor. Mas, como vocês ainda não leram, aqui vai:
– Ele diz que está trabalhando com DNA, não é? Tenho certeza de que há várias substâncias líquidas no laboratório que poderiam ter umedecido o cartão. É isso aí! – disse Bumbão. Satisfeito consigo mesmo, concentrou-se nas unhas roídas, procurando algum resquício no qual pudesse cravar os dentes.
– O estranho não é o cartão estar amassado – falou Lise. – É o que está escrito nele! Por exemplo, quem são Esil e Oab Mub?
– Talvez ele tenha esquecido nosso nome – sugeriu Bumbão.
– Claro que não é isso. No endereço, ele escreveu certo: Lise Pedersen.
– Hum – murmurou Bumbão, desta vez em um tom de quem não compreendia tão bem assim.
– Esil é Lise ao contrário – observou ela.
– Elementar, minha cara – respondeu Bumbão, e rapidamente leu a palavra de trás para a frente. Esil, de fato, era Lise. – Mas quem é Oab Mub? – perguntou.
– Chuta – resmungou Lise, revirando os olhos.
– Hum... Talvez seja Lise de ponta-cabeça?
– É Bumbão de trás para a frente!
– Ah-ah! – exclamou Bumbão, exibindo uma fileira de dentes minúsculos em zigue-zague. – Estava brincando. É elementar! – Mas as pontas das orelhas ficaram um tanto vermelhas. – Caso resolvido. Qual é o problema agora?
– O mais estranho não é isso! – gritou Lise, irritada.
– E o que é, então?
– O resto do que o professor escreveu!
Bumbão lançou para o alto os braços curtinhos.
– Ele diz que está trabalhando com DNA. É um cientista maluco, não é? Um inventor? Deve estar inventando uma nova fórmula de DNA. É algo relativo a osso, um “ossim oca”, como está escrito. Tradução: um osso oco. Quem sabe não sejam ossos de um pássaro, ou de um réptil... Talvez de um mamífero aquático pequeno. Já sei! Os ornitorrincos são animais singulares e de difícil classificação. São mamíferos, mas têm bico de pássaro e são venenosos como répteis. Tenho certeza de que o professor gostaria de estudar o DNA deles. São comuns na Austrália, mas, na França, são raros. Havia muitos deles no Sena, mas o tráfego marítimo os levou à extinção. É que sempre batiam a cuca no casco de algum navio panorâmico. Quem sabe o professor não deseja criar ossos pneumáticos para eles, como os dos pássaros, para que possam voar para longe e sobreviver? Seja como for, não acho estranho que um cientista queira aproveitar a estadia em Paris para estudar o DNA dos ornitorrincos franceses!
– Ornitorrincos franceses? – indagou Lise, meio descrente.
– É – disse Bumbão. – Está na página 620 de ANIMAIS QUE VOCÊ GOSTARIA QUE NÃO EXISTISSEM.
Lise soltou um suspiro. Volta e meia, Bumbão citava o calhamaço que o avô dele guardava na estante de livros: ANIMAIS QUE VOCÊ GOSTARIA QUE NÃO EXISTISSEM.
– E o resto? O que quer dizer “IU QASO SER P SOMAT SESON”?
– Muito simples – retrucou Bumbão. – “IU QASO SER” e “SOMAT” estão em italiano. “P” é o número pi. E “SESON”, se não me engano, é sessenta em francês. Ou seja: é preciso somar pi a sessenta! Talvez, com isso, o professor consiga alterar a fórmula do DNA dos ornitorrincos, e eles serão salvos da extinção!
Lise lançou para ele um olhar cheio de dúvida.
– E quem é Ravlasson Mahnev?
Bumbão deu de ombros.
– Talvez seja um amigo ou um companheiro de pesquisa.
– Bobagem! Um monte de bobagem! – rosnou Lise. – Primeiro: por que o professor perderia tempo com alguém chamado Ravlasson se o propósito da viagem era encontrar seu grande amor, Juliette? Segundo: essas palavras não parecem de origem estrangeira. Aliás, nem parecem palavras. E, se o professor estivesse estudando essas coisas, não acha que ele saberia escrever as palavras direito?
– Hum – disse Bumbão, coçando a costeleta direita, em tom de quem compreendia menos ainda que antes, quando murmurara “hum” pela primeira vez.
Lise voltou a suspirar, desanimada.
– E o que significa a última parte: “OSSI MAIEL”?
Bumbão soltou uma risadinha desdenhosa.
– É elementar, minha cara cabeça de ervilha. “Maiel” é o nome do ornitorrinco cujo ossi, ou osso, está em estudo. O doutor Proktor deve ter adestrado um dos orrintornincos... Orrintornincos? Or-ni-tor-rin-cos! Está vendo? Vai ver foi por isso que o professor deu um nome para ele, só para não ter de dizer or-ni-tor-rin-co toda vez! Você entendeu? O professor deve ter pedido a ele que se sentasse após um mergulho no Sena, e o bicho acabou sentando em cima do cartão-postal. Bom, pode ser meio nojento imaginar que um ornitorrinco molhado desabou em cima do cartão, mas não creio que seja perigoso.
– Chega, Bumbão – interrompeu Lise.
Bumbão a encarou com uma indagação no rosto, mas resolveu se calar, obediente.
– Tem mais alguma coisa neste cartão – ela disse.
– É mesmo? – questionou Bumbão. – O quê?
– Não sei. Mas que tem, tem. O selo, por exemplo. Não acha estranho?
– Nem um pouco. Um selo quadrado, com bordas picotadas e a foto de um homem sério não é o que eu chamaria de estranho.
– Mas você viu o que está escrito nele?
– Não – admitiu, contrariado.
Lise devolveu-lhe o cartão.
– Felix Faure – leu Bumbão. – Bom, esse deve ser o nome do sujeito. E 1888 deve ser o ano de impressão do selo. Eca!
– Eca o quê? – perguntou Lise.
– Imagine só, lamber um selo com mais de cem anos...
– Pois é... Você acha que ele parece ter mais de cem anos?
Bumbão examinou o selo e foi obrigado a admitir que Lise tinha razão. Apesar de meio amarrotado, o selo parecia novinho em folha. As cores não tinham desbotado e as bordas picotadas estavam perfeitas.
– Talvez seja uma falsificação, ou uma cópia – sugeriu, mas já não estava tão convencido quanto antes.
– Acha mesmo?
Bumbão balançou a cabeça como quem diz não.
– É. Tem alguma coisa neste cartão – concordou.
– Está tudo de pernas para o ar – acrescentou Lise.
– Pensei que você tivesse dito que estava de trás para a frente – lembrou Bumbão.
– Como? – perguntou Lise.
– Só repeti o que você disse.
– E o que foi que eu disse?
– Que estava tudo de trás para a frente – repetiu Bumbão. – As palavras, quero dizer.
– É isso! – exclamou Lise, tomando o cartão das mãos do amigo. – É isso!
Examinou-o atentamente. Em seguida, começou a ofegar.
– O que foi? – perguntou Bumbão, preocupado.
– Acho... Acho que o doutor Proktor está em perigo – gaguejou a menina, muito pálida. – Leia o cartão de trás para a frente.
Foi o que Bumbão fez. E vocês, é claro, podem fazer o mesmo. Agora, por exemplo, seria uma boa hora...
Terminaram de ler? Entenderam alguma coisa?
Bumbão leu, mas não entendeu nada.
– BUMBÃO E LISE, LEIAM ISSO. VENHAM NOS SALVAR. NÓS ESTAMOS PRESOS AQUI. ANDACO MISSO!
– Exatamente o que diz a mensagem – gemeu Lise. – Alguma coisa está muito errada.
– Claro que está – respondeu Bumbão. – “Maiel” não é o nome do ornitorrinco. E eu deveria ter dito “anda com isso”, em vez de “andaco misso”.
– Não estou falando disso – gritou Lise. – Será que você não entende?
– Hum, para falar a verdade, acho que não – admitiu Bumbão, coçando a costeleta. – Por exemplo, não entendo o que o professor quis dizer com “leiam isso”. Isso o quê? A mensagem? Não foi o que acabamos de fazer?
Lise olhava fixamente para o cartão-postal, em total estado de concentração.
– Veja a seta – murmurou ela. – Está indicando o selo.
Bumbão enfiou o dedo indicador na orelha e o girou, semicerrando os olhos. Isso o ajudava a pensar melhor. Era como dar partida no carro – fazia o cérebro dele pegar no tranco. Ouviu-se um sonoro plop! quando ele tirou o dedo da orelha.
– Já sei – falou Bumbão, estudando o dedo com um olhar fascinado. – O cartão é uma mensagem secreta, algo que apenas nós poderemos decifrar. O doutor Proktor tinha certeza de que um menino inteligente como eu perceberia algo de errado neste cartão.
Lise revirou os olhos, e Bumbão fingiu não perceber.
– “LEIAM” e uma seta que aponta para o selo – prosseguiu. – Só pode significar que o resto da mensagem está atrás do selo! Precisamos descolá-lo.
– Foi exatamente o que me passou pela cabeça minutos atrás – concordou Lise.
Bumbão entregou o cartão para Lise, com uma expressão de satisfação no rosto.
– Ainda bem que eu estava por aqui para decifrar esses códigos secretos, não é mesmo?
Capítulo 2.
O porão do doutor Proktor
O COMANDANTE, PAI DE LISE, acordou com gosto de jornal na boca. Isso porque havia cochilado no sofá, como de costume, com o jornal sobre o rosto, e roncara com tanta força, que fizera a cortina da janela balançar e a página do jornal – com as previsões do tempo – ser sugada para dentro da própria boca a cada inspiração. Deu uma olhadela para o relógio e suspirou, satisfeito, ao ver que já estava quase na hora de ir para a cama. Não antes, porém, de um sanduíche de frango. Ou dois. Atirou o jornal sobre a mesinha de centro, empurrou a barriga pesada para fora do sofá e automaticamente ficou de pé.
– Oi – disse ao entrar na cozinha. Lise estava de pé, debruçada sobre o balcão, e Bumbão se encontrava sobre uma cadeira, ao lado dela. O comandante lembrou que aquele era o menininho estranho que se mudara para a casa da frente na primavera. A chaleira diante de Lise e Bumbão trepidava e cuspia vapor pelo bico.
– Não são jovens demais para tomar café? – perguntou o comandante, bocejando. – E a esta hora da noite?
– Não, não, comandante – respondeu Bumbão. – Não estamos fazendo café.
Foi nesse momento que o pai de Lise percebeu que a filha segurava algo parecido com um cartão-postal em meio à nuvem de fumaça que subia da chaleira.
– O que estão aprontando?
– Volte para a sala, papai – pediu Lise.
– Ei! O comandante aqui sou eu! – disse ele. – E exijo saber o que estão fazendo!
– Desculpe, comandante – replicou Bumbão. – É confidencial. Se contarmos, o senhor terá informações demais. Sabe o que acontece com quem tem informações demais, não sabe?
– O que acontece? – perguntou o comandante, as mãos na cintura.
– Perde a língua, para não contar nada a ninguém. E todos os dedos da mão direita, para não escrever o que sabe.
– E se eu for canhoto? – indagou o comandante.
– Aí vai ser pior. Vão cortar os dedos da outra mão também.
– E se eu conseguir escrever com os dedos do pé?
– Aí o senhor perde as pernas, comandante. Sinto muito, mas espionagem é coisa séria.
– Parece que sim – suspirou o pai de Lise.
– Mas veja pelo lado positivo – sugeriu Bumbão. – Se perder as pernas, o senhor poderá ficar deitado no sofá até a Páscoa, sem se preocupar em encerar os esquis, lavar as meias, amarrar os cadarços.
– Talvez tenha razão – respondeu o comandante. – Mas e se eu descobrir uma maneira de escrever com a boca ou de enviar sinais piscando os olhos, em código Morse?
– É uma pena que tenha tido essa ideia, comandante. Agora, seremos obrigados a cortar sua cabeça.
O comandante riu tanto que a enorme barriga chacoalhou.
– Parem de brincadeira vocês dois – pediu Lise. – E você, papai, saia já daqui! É uma ordem!
Assim que o comandante saiu, Lise afastou o cartão-postal do vapor. Os dois se sentaram à mesa, e Lise descolou o selo cuidadosamente com uma pinça.
– Deu certo! – exclamou ela. – Como sabia que o vapor descolaria o selo?
– Conhecimentos básicos de espionagem – respondeu Bumbão, também parecendo um pouco surpreso.
– Tem alguma coisa escrita no cartão, onde ficava o selo, mas a letra é muito pequena – disse Lise, segurando o cartão perto da luz. – Talvez você consiga ler. Afinal, você também é... quero dizer... pequenino, não é?
– Como assim? – perguntou Bumbão, arqueando uma das sobrancelhas.
Lise deu de ombros.
– Gente pequenina tem roupa pequenina e carro pequenino. Por que não teria também letra pequenina?
– Vamos ver – resmungou Bumbão, arrancando o cartão das mãos da menina e apertando os olhos para enxergar melhor. – Nada – disse, e estendeu a mão, sem desviar o olhar para Lise. – Lupa, por favor.
Lise correu até a gaveta, pegou a lupa da mãe e a entregou a Bumbão. Quando ele leu o que estava escrito, disse: Ah-ah, pois o que estava escrito era o seguinte:
– Entendi – Bumbão murmurou, correndo a lupa para a parte de baixo.
EM PARIS, DIRIJAM-SE IMEDIATAMENTE AO HÔTEL BATTANT-DORÉ. QUANDO CHEGAREM LÁ...
... CORDIALMENTE, DOUTOR PROKTOR.
– Ei! – guinchou Bumbão. – O que aconteceu? Está faltando um pedaço!
– O vapor desbotou a tinta – sussurrou Lise por cima do ombro do menino. – Continue.
Bumbão desceu um pouco mais a lupa.
P.S.: ESCONDI A CHAVE DO LABORATÓRIO EM UM LUGAR MUITO INTELIGENTE: DEBAIXO DO CAPACHO.
– O que estamos esperando? – gritou Bumbão.
– Todos a postos! Preparar... – berrou Lise.
– Já! – esgoelaram os dois em uníssono.
E saltaram da cadeira. Lise revirou as gavetas da cozinha à procura da lanterna do comandante, e os dois correram para fora.
Na rua dos Canhões, as casas e os jardins estavam imersos em sombra e silêncio. A lua, curiosa, havia aparecido para espiá-los enquanto saltavam a cerca da casa mais modesta, com o jardim mais maltratado. (O doutor Proktor tinha ficado muito tempo ausente.) Correram até a porta do porão, passando pela pereira, e levantaram o capacho.
E lá estava a chave, reluzindo ao luar.
Colocaram-na na fechadura, giraram a maçaneta, e a velha porta fez um barulho horripilante ao se abrir um pouco.
Os dois continuaram imóveis, o olhar fixo nela.
– Você primeiro – sussurrou Lise.
– Tudo bem – concordou Bumbão, engolindo em seco. Respirou fundo e chutou a porta o mais forte que podia. As dobradiças emitiram um rangido medonho, e ela se escancarou. Uma lufada de ar frio e úmido atingiu o exterior, e algo passou voando sobre a cabeça de ambos, desaparecendo noite adentro – possivelmente uma mariposa gigante ou um morcego de tamanho normal.
– Puxa! – disse Lise.
– Puxa digo eu! – acrescentou Bumbão, ligando a lanterna e transpondo a porta.
Lise examinou o espaço ao redor, ainda do lado de fora. Até mesmo a pereira, imagem geralmente reconfortante, parecia arranhar a lua com garras de bruxa. Apertou o casaco contra o corpo e correu atrás de Bumbão.
Mas o amigo havia desaparecido, e tudo o que viu foi total escuridão.
– Bumbão? – sussurrou, pois sabia que falar alto no escuro só fazia aumentar o sentimento de solidão.
– Estou aqui – Bumbão murmurou. Ela seguiu o som da voz e percebeu que o facho da lanterna mirava algo na parede.
– Encontrou o Sabão? – perguntou ela.
– Não – Bumbão respondeu. – Mas encontrei a maior aranha do hemisfério Norte. Ela tem sete pernas cabeludas e uma boca tão grande que dá para ver os beiços. Dá só uma olhada.
Lise viu uma aranha comum, de tamanho normal, agarrada à parede do porão.
– É uma sete-patas peruana sugadora de cérebro. São muito raras! – sussurrou Bumbão, empolgado. – Capturam outros insetos e sugam o cérebro deles para sobreviver.
– O cérebro? – Lise indagou, olhando para Bumbão. – Não sabia que insetos tinham cérebro.
– Bom, é exatamente por isso que a sete-patas peruana é tão rara – explicou Bumbão. – É muito difícil encontrar insetos com cérebro para sugar.
– E como você sabe disso? – perguntou Lise.
– Eu li em...
– Não diga – interrompeu Lise. – Você leu em ANIMAIS QUE VOCÊ GOSTARIA QUE NÃO EXISTISSEM?
– Isso mesmo – disse Bumbão. – Enquanto você procura o Sabão Temporizador e os Prendedores de Nariz Franceses, vou tentar capturar esse espécime raro de aranha, certo?
– Mas só temos uma lanterna.
– Por que não acendemos as luzes?
– As lu... – começou Lise, batendo com a palma da mão na testa, como quem diz “dã”. – Por que não pensamos nisso antes?
– Porque, de luz acesa, a aventura não teria sido tão deliciosamente assustadora – explicou Bumbão, apontando a lanterna para o interruptor ao lado da porta. Lise o ligou, e o laboratório do doutor Proktor foi inundado por uma luz branca.
Havia chaleiras, panelas de pressão, baldes e prateleiras repletas de potes de conserva com produtos químicos e misturas em pó. Havia ainda tubos de aço, tubos de vidro, tubos de ensaio e tantos outros tipos de tubos. Também um velho rifle com um puck de hóquei soldado ao cano. E, ao lado do rifle, na parede, o retrato de que Lise tanto gostava – uma versão jovem do doutor Proktor montado em sua motocicleta, na França. No sidecar, ela: a bela Juliette Margarina, com seu longo cabelo castanho-avermelhado. O grande amor do professor. Sorriam e pareciam tão felizes, que o coração de Lise se encheu de um calor gostoso. Nos cartões-postais anteriores, o professor informara que seguia o rastro de Juliette. Quem sabe já não estariam juntos agora?
Lise continuou explorando o local, até encontrar um pote de conserva com um pó vermelho-morango no fundo. Mas não era a cor que chamava a atenção, era o rótulo, que dizia mais ou menos o seguinte:
Lise pegou o pote e se dirigiu a uma grande estante enferrujada. Puxou a gaveta de Invenções Não Patenteadas e correu o dedo pelos arquivos até a letra “P”. Como o professor havia dito, lá estava a pasta de “Prendedores de Nariz Franceses”.
Abriu a pasta, virou-a de ponta-cabeça, e dois prendedores azuis, aparentemente normais, caíram lá de dentro. Mas não havia nenhuma instrução. Enfiou-os no bolso do casaco.
– Encontrei! – falou. – Vamos embora.
Virou-se e deparou com Bumbão em cima da bancada, o braço direito enfiado em um pote.
– O que está fazendo aí?
– Levando um pouco do Pó de Soltar Pum, claro.
– Bumbão, além de perigoso, isso é ilegal!
– Então me processe – retrucou Bumbão. – É perfeitamente aceitável querer soltar uma pequena quantidade de puns de vez em quando.
– Pequena quantidade? Da última vez que você tomou uma colherada dessa coisa, soltou tanto pum que foi parar no espaço!
– Deixe os exageros para mim, está bem? – disse Bumbão, despejando um punhado de Pó de Pumponauta em um saquinho plástico. Depois fechou o saquinho e o colocou no bolso do casaco. – Devo ter subido uns quarenta e cinco metros, no máximo. Não é tão alto assim, se você comparar com... com a Torre Eiffel, por exemplo. Você é uma garota, não sabe soltar pum direito. Vocês, garotas, são péssimas nisso.
Bumbão soltou um pum só para provar sua tese.
– Ouviu? – perguntou. – Agora é sua vez.
– Por favor! – protestou Lise. – Também solto pum, mas só quando é estritamente necessário.
– Minha cara Pum de Fada – disse Bumbão, fechando o pote com cuidado e saltando para o chão –, aposto uma tonelada de balas de caramelo que você jamais conseguirá soltar um pum alto o bastante para ser detectado por ouvidos humanos. É melhor deixar o Pó de Soltar Pum para nós, garotos.
– Você vai ver só – disse Lise.
– Ver ou ouvir? – retrucou Bumbão, colocando a mão em concha atrás da orelha. – E o que é que eu vou ouvir?... Nada!
Apagaram as luzes, trancaram a porta, recolocaram a chave debaixo do capacho, saíram para o jardim e se sentaram sob a pereira para admirar a lua.
– Acho que vamos ter que ir para Paris – disse Lise. – Sozinhos.
– Sozinhos, mas juntos – corrigiu Bumbão. – E Paris não é tão longe assim.
– É mais longe do que Sarpsborg – respondeu Lise. Sua melhor amiga tinha se mudado para lá.
– Um pouquinho mais longe, só – comentou Bumbão.
– E vou ter que pedir permissão para os meus pais – ela acrescentou.
– Não faça isso – aconselhou Bumbão. – Eles não vão permitir. Vão mandar você registrar um boletim de ocorrência junto à polícia francesa, comunicando o desaparecimento do doutor Proktor. E você sabe o que vai acontecer.
– Sei? – perguntou Lise, em dúvida. – E o que vai acontecer?
– Nada – falou Bumbão. – Nenhum adulto vai acreditar na história do doutor Proktor. “Ele desapareceu sob efeito do Sabão Temporizador?”, vão perguntar. “Mas que tolice!” Foi por isso que o professor nos enviou o cartão-postal. Ele sabe que ninguém mais acreditaria nele!
– Pode ser – respondeu Lise, cautelosa. – Mas... tem certeza de que nós acreditamos nele? Ele é legal, eu sei, mas é meio... como direi... maluco.
– É claro que tenho certeza – respondeu Bumbão. – E o professor não é só meio maluco. Ele é completamente maluco.
– Pois é – concordou Lise. – Como pode acreditar nele?
– É elementar, minha cara Lise. O doutor Proktor é nosso amigo, e amigos acreditam uns nos outros.
Lise fitou a lua por um longo tempo, depois concordou com a cabeça.
– Essa é a coisa mais verdadeira que você disse nos últimos tempos. O que faremos?
– Bom, amanhã é sexta-feira, certo? Agora, você vai voltar para casa e dizer a seus pais que sua amiga, Anna, aquela que se mudou para Sarpsborg, convidou-a para passar o fim de semana com ela, e que vai tomar o trem para Sarpsborg depois da escola, e que a família dela vai pegá-la na estação de trem.
– Hum, talvez funcione – Lise respondeu, mordendo o lábio. – E você?
– Eu vou dizer para mamãe que a banda vai fazer uma excursão para Arvika no fim de semana.
– Uma excursão? Assim de repente?
Bumbão deu de ombros.
– Mamãe não vai desconfiar. Ela não liga para esse tipo de coisa. Para dizer a verdade, acho que vai até gostar de se ver livre de mim por alguns dias. Bom, seja como for, acho que amanhã você deve colocar umas coisinhas a mais na mochila, quando for para a escola. Nada de mais, sabe, apenas coisas que comecem com a letra “P”: um pijama, um pouco de paçoca, o passaporte... Então vamos para a escola, fingimos que está tudo bem e, quando a aula acabar, corremos para o centro, para a Relojoaria Cascão...
– O nome é Relojoaria Casacão – corrigiu Lise.
– Que seja. Vendemos o selo, pegamos o ônibus até o aeroporto, compramos passagens para Paris, fazemos o check in e... voilà!
Lise mastigava o lábio enquanto refletia sobre as palavras de Bumbão. “Voilà isso, voilà aquilo”, pensou. Bumbão falava de um jeito que fazia coisas complicadas parecerem muito simples.
– E então? – perguntou Bumbão. – O que me diz?
Lise observou o pote que trazia na mão. O pó vermelho-morango brilhava à luz do luar, belo e misterioso. Viagem no tempo? Sabão Temporizador? Prendedores de Nariz Franceses? Era tudo muito estranho.
– Acho melhor mostrar o cartão para o meu pai – comentou, com uma expressão de dúvida no rosto.
– Ora essa! – exclamou Bumbão. – Se fosse melhor, o doutor Proktor teria dito isso no cartão!
– Eu sei. Mas sejamos realistas. Somos apenas duas crianças.
Bumbão suspirou de modo solene. Colocou uma das mãos no ombro de Lise e a encarou com seriedade. Então respirou fundo e falou com voz açucarada:
– Ouça, Lise: somos uma equipe. E não importa se o resto do mundo pensa que somos uma equipe patética de segunda divisão. Pois sabemos uma coisa que eles não sabem. – Bumbão ficou tão emocionado que a voz começou a tremer. – Sabemos, minha cara Lise... sabemos que... o que é mesmo que sabemos?
– Sabemos que, quando amigos prometem se ajudar sempre – ela acrescentou –, um, mais um e mais um dá muito mais que três.
– Isso mesmo! – disse Bumbão. – O que me diz? Topa?
Lise olhou demoradamente para Bumbão e pronunciou uma única palavra:
– Poncho.
– Poncho? – repetiu Bumbão, sem entender.
– Vou levar meu poncho. Você falou para levar coisas que comecem com a letra “P”, e ouvi dizer que Paris está infestada de ornitorrincos molhados. Não quero ficar encharcada de respingos de ornitorrinco toda vez que um deles sair do Sena e começar a se sacudir.
Bumbão piscou algumas vezes, até enfim entender que ela havia aceitado.
– Oba! – gritou ele, e passou a dar pulos de alegria. – Vamos para Paris! Cancã! Croissant! Crepe! Crème brûlée! Champs-Élysées! – E continuou falando nomes de coisas parisienses que começavam com a letra “C”, até que Lise se cansou e pediu que parasse, pois estava na hora de ir para a cama.
Depois que Lise desejou boa-noite aos pais e o comandante fechou a porta de seu quarto ao sair, sentou-se na cama, como costumava fazer, e fitou a cortina cinzenta do segundo andar da casa amarela que ficava do outro lado da rua. Sabia que, a qualquer momento, um spot de luz se acenderia ali dentro, voltado para a cortina. Então Bumbão daria início ao teatro de sombras noturno, tendo Lise como única espectadora.
Naquela noite, os dedinhos minúsculos de Bumbão projetaram sombras na cortina que se transformaram em uma fila de dançarinas de cancã. Enquanto assistia ao espetáculo, Lise pensava na história que o doutor Proktor havia contado sobre o misterioso desaparecimento de Juliette, ocorrido muitos anos atrás. A história dizia mais ou menos o seguinte: Juliette e o doutor Proktor tinham se conhecido em Paris e se apaixonado. Certa noite, depois de algumas semanas de namoro, Juliette foi à casa dele e pediu sua mão em casamento. O professor ficou muito feliz, mas também surpreso, pois Juliette queria subir no sidecar da motocicleta e partir para Roma naquele mesmo dia, ansiosa para se casar o mais cedo possível. Ela não tinha explicado o porquê da pressa, e o professor pegou o único terno que tinha e deu partida na moto, sem lhe perguntar absolutamente mais nada.
Na verdade, tinha uma vaga ideia do que devia estar acontecendo. O pai de Juliette era barão. E, sendo a família Margarina tradicional e poderosa, o barão achava que um inventor norueguês relativamente malsucedido não estava à altura da nobre Juliette. Mas não importava, Juliette e o doutor Proktor agora viajavam sob o céu noturno, atravessando a França, para se casar. Tinham acabado de encher o tanque em uma aldeia perto da fronteira, quando depararam com uma ponte. Foi nela que tudo aconteceu. Exatamente o que aconteceu o doutor Proktor nunca soube. Tudo escureceu e, ao recobrar os sentidos, viu-se deitado no asfalto, a garganta dolorida. Uma Juliette chorosa estava curvada sobre ele e, atrás dela, o professor viu uma limusine preta se aproximando. Juliette disse que era o carro do pai e que precisava falar com ele a sós. Pediu ao professor que atravessasse a ponte e a esperasse do outro lado da fronteira. Ele obedeceu sem questionar, pois estava desnorteado e confuso. Quando se virou na motocicleta, já no outro lado da ponte, viu Juliette entrando na limusine. Ela deu marcha à ré e partiu. E essa foi a última vez que o doutor Proktor viu Juliette.
Lise suspirou. O resto da história era igualmente triste.
Depois de esperar três dias por Juliette no outro lado da fronteira, o professor decidiu ligar para a casa dela de um telefone público. O próprio barão atendeu e explicou que Juliette havia recobrado o juízo e percebido que não seria apropriado se casar com o professor. Disse ainda que Juliette sentia muito, mas a situação era tão embaraçosa que ela preferia não falar com ele – e, é claro, não queria vê-lo nunca mais. Era melhor assim.
Exausto e de coração partido, o doutor Proktor pegou a motocicleta e voltou para Paris. Depois de alguns dias, um policial lhe entregou uma carta. Ela dizia que o professor havia sido expulso da universidade e do país por suspeita de terrorismo e de fabricação de armas de destruição em massa. Tudo começara com um experimento realizado no laboratório de química da universidade cujo prédio o doutor Proktor e outro estudante norueguês por pouco não haviam explodido.
O doutor Proktor tentou explicar ao policial que aquilo tudo não passava de uma fatalidade, dessas que ocorrem quando tentamos inventar um pó para viagens no tempo – era nesse projeto que ele trabalhava –, e que havia sido apenas “uma explosãozinha que ganhara muita repercussão”. Por algum motivo incompreensível ao professor, a explicação não teve o efeito desejado, e o policial o mandou subir ao seu quarto para fazer as malas. Ele tinha quase certeza de que o barão fora o responsável por aquela expulsão, mas não havia muito mais a fazer.
E foi assim que o jovem rapaz, carregando o peso de um coração partido, chegou a Oslo, tarde da noite, e depois se mudou para a casinha torta e abandonada no final da rua dos Canhões. A casinha era simples, não tinha telefone e jamais recebera visitas. Era perfeita para quem quisesse viver sozinho, inventando coisas, sem falar com ninguém além de si mesmo.
De sua casa vermelha, Lise olhava a casinha azul do professor e cismava que tudo aquilo acontecera por sua culpa. Afinal, havia convencido o doutor Proktor a procurar Juliette Margarina em Paris. Não era verdade? Tinha praticamente guiado o professor na direção dos problemas, fossem quais fossem.
As sombras de Bumbão pararam de dançar do outro lado da rua e fizeram uma reverência. Ele fez o sinal de boa-noite, duas orelhas de coelho subindo e descendo, e a luz se apagou.
Lisa soltou um suspiro.
Não dormiu bem naquela noite. Ficou deitada na cama, pensando em porões escuros demais, em aranhas peludas demais, em cidades grandes demais, e em tudo o que com certeza daria errado.
Enquanto isso, no outro lado da rua, Bumbão teve uma das melhores noites de sono de sua vida. Sonhou que flutuava alegremente no espaço, impulsionado por um rastro de puns, desvendando códigos misteriosos, resgatando professores geniais e fazendo todas as coisas que, a seu ver, com certeza – ou quase – dariam certo. E o melhor de tudo: sonhou que dançava o cancã enquanto bailarinas aplaudiam e gritavam: “Bum-bão! Bum-bão!”
Capítulo 3.
Relojoaria Casacão
O OLHAR DA SENHORA STROBE ESPREITAVA do alto de um nariz muito longo, por trás de lentes grossas apoiadas na ponta do nariz, e percorria as criaturinhas perfiladas na sala de aula, até pousar na menor delas.
– Senhor Bumbão! – A voz estalou como um chicote.
– Senhora Strobe! – A resposta voltou estalando de onde estava o aluno. – O que posso fazer pela senhora nesta agradável manhã de sexta-feira, cuja beleza, ó mestra e fornecedora de alimento intelectual, só não excede a do seu magnífico rosto?
As palavras de Bumbão deixaram a senhora Strobe furiosa. As respostas dele, em geral, tinham esse efeito, porque a faziam sempre se sentir culpada. Além de um pouco lisonjeada.
– Pode começar parando de assoviar essa musiquinha ridícula... – disse ela.
– Fale mais baixo, senhora Strobe! – sussurrou Bumbão, os olhos arregalados de espanto. – Essa musiquinha ridícula é a Marselhesa. Não estamos estudando a história da França? Se alguém da Embaixada ouvir a senhora chamar o hino francês de musiquinha ridícula, sem dúvida o comentário chegará aos ouvidos do presidente francês, que será obrigado a declarar guerra à Noruega. Os franceses adoram uma guerra, mas não são muito bons nisso. Já ouviu falar da Guerra dos Cem Anos, que travaram contra os ingleses, senhora Strobe?
A turma inteira se esbaldou de rir, enquanto a senhora Strobe tamborilava as unhas sobre a mesa, contemplando o estranho menino que se matriculara na primavera.
– Se prestasse atenção à aula, em vez de ficar aí assoviando, teria percebido que a Guerra dos Cem Anos é exatamente a matéria da aula de hoje, senhor Bumbão. O que foi que acabei de dizer sobre Joana d’Arc?
– Joana d’Arc – repetiu Bumbão, coçando a costeleta esquerda, pensativo. – Hum, já ouvi falar desse nome. É uma mulher, não é?
– É.
– Uma dançarina de cancã famosa?
– BUMBÃO!
– Está bem, está bem. Não pode me dar uma ajudinha?
A senhora Strobe soltou um suspiro.
– Joana d’Arc era uma mocinha muito religiosa que vivia no campo. Certo dia, recebeu uma mensagem estranha e saiu à procura do príncipe herdeiro, que estava escondido em algum lugar na França.
– Essa história não me é estranha – falou Bumbão. – Por acaso ela recebeu a mensagem em um cartão-postal de Paris, com selo de 1888?
– Do que está falando? A mensagem de Joana d’Arc foi enviada pelos anjos, que falavam dentro da cabeça dela!
– Desculpe, senhora Strobe. Ocorreu um leve curto-circuito no meu pequenino, porém eficiente cérebro.
Bumbão olhou de relance para Lise, que continuava de cabeça baixa, as mãos entrelaçadas atrás da nuca.
– Não vai acontecer de novo, senhora Strobe – prometeu Bumbão. – Mas que fim levou Joana d’Arc?
A senhora Strobe se inclinou sobre a mesa.
– Era exatamente isso que eu ia explicar quando você me interrompeu. Joana d’Arc encontrou o príncipe herdeiro e, juntos, eles enfrentaram os ingleses. Ela vestiu uma armadura, pegou uma espada e liderou as tropas francesas em batalha. Até hoje, é considerada a maior heroína da França. Anotem isso no caderno.
– Excelente! – exclamou Bumbão. – Ela venceu. Adoro histórias com final feliz!
A senhora Strobe baixou o nariz longo e protuberante, quase esbarrando-o na mesa, e encarou a turma por cima dos óculos.
– Nem todas as histórias têm final feliz. Joana d’Arc foi capturada e vendida aos ingleses, que a sentenciaram à morte por bruxaria. Chamaram os moradores de Rouen para o Velho Mercado, amarraram a pobre mocinha em um poste, juntaram combustível, atearam fogo e...
Ouviu-se uma voz aguda, quase melancólica:
– E, na última hora, o príncipe herdeiro salvou Joana d’Arc!
Todos se viraram para Lise, que tampara a boca com as mãos, horrorizada.
– Olhe bem para a gravura do livro de História, Lise – sugeriu a senhora Strobe. – Dá para ver as chamas lambendo o vestido branco de Joana d’Arc. Ela parece ter sido salva?
– Não – gritaram os alunos a uma só voz.
– Pois é – disse a senhora Strobe. – Joana d’Arc morreu queimada, e seu corpo chamuscado e retorcido foi atirado ao rio. Ela tinha apenas dezenove anos.
Lisa olhou a gravura do livro de História. O rosto de Joana d’Arc lembrava-lhe o rosto de outra pessoa, visto em uma fotografia: o rosto de Juliette Margarina, ainda jovem, no sidecar da motocicleta do doutor Proktor. Os olhos de Lise marejaram de lágrimas diante das coisas horríveis que haviam acontecido com Joana d’Arc.
– É claro que a garota tinha que morrer – afirmou Bumbão.
A senhora Strobe tirou os óculos.
– Por que diz isso, Bumbão?
– Para ser herói, é preciso estar morto.
A turma riu, mas a senhora Strobe meneou a cabeça em concordância.
– É verdade – murmurou. – É verdade.
Então o sinal tocou e, antes mesmo que a senhora Strobe pudesse dizer o a de “aproveitem o fim de semana”, o primeiro aluno já tinha saído pela porta. Era a última aula de sexta-feira, e estavam livres.
Lise vestia o casaco no corredor quando ouviu um grupinho de garotas tagarelando sobre uma festa para a qual todas haviam sido convidadas, menos ela. E Bumbão, é claro. As garotas também cochichavam sobre ele. Diziam que era pequeno e esquisito demais e que fazia coisas malucas que ninguém entendia.
– Oi!
Bumbão subiu em um banco para alcançar o casaco pendurado no cabide do corredor.
As garotas se juntaram, cochicharam e soltaram risadinhas. Então a mais atrevida virou-se para Lise e Bumbão, enquanto as outras se escondiam atrás dela, sorrisinhos querendo escapar dos rostos:
– Os dois pombinhos têm planos para o fim de semana?
– Em primeiro lugar, querida, você não sabe nada sobre pombos – afirmou Bumbão, prendendo com rapidez os dois botões do casaco. – Mas, se ainda houver espaço nessa sua cabecinha, talvez possa armazenar algum conhecimento sobre eles. A pomba-cascavel, por exemplo, é uma ave estrigiforme com rabo de serpente que se alimenta dos olhos dos próprios filhotes. Ah, sim, quanto à sua pergunta: fomos convidados para uma festinha terrivelmente chata, mas não pretendemos ir. Oslo é muito deprimente.
– Você é um boboca! – respondeu a garota, a voz irritada. E, em um estado de pane criativa, acrescentou apenas: – Dã!
– É! Dã! – repetiram as garotas atrás dela. Mas uma não se conteve e perguntou:
– Mas... o que é que vocês vão fazer?
– Nós? – falou Bumbão, saltando do banco e aterrissando ao lado de Lise. – Nós vamos dançar cancã no Moulin Rouge, em Paris. Tenham um ótimo fim de semana em Oslo, crianças.
Lise não olhou para trás, mas sabia que as garotas haviam ficado imóveis, de boca aberta, enquanto ela e Bumbão davam as costas e sumiam na claridade brilhante do outono.
Bumbão e Lise caminharam até o ponto do bonde e pegaram o carro 17 até a prefeitura de Oslo. Chegando lá, saltaram e seguiram para a Rosenkratz, uma rua estreita com muitas lojas e gente nas calçadas. Em um dos trechos mais estreitos, em cima de uma porta pintada de vermelho berrante, havia uma pequena vitrine repleta de relógios e um letreiro em que se lia Relojoaria Casacão.
A mola que abria e fechava a porta da frente estava tão envelhecida que tiveram de empregar toda a força para abri-la. E, mesmo assim, quase não conseguiram entrar. Ela gemeu em sinal de protesto, como se não quisesse receber Bumbão nem Lise. E, quando os dois enfim passaram para o lado de dentro e largaram a porta, ela se fechou com um solavanco zangado. No mesmo instante, a algazarra da rua silenciou. Só se ouvia o tique-taque dos relógios. Tique-taque-tique-taque, e por aí vai. Bumbão e Lise olharam ao seu redor. Apesar do sol que fazia lá fora, o interior da loja encontrava-se estranhamente escuro e deserto. Era como se tivessem entrado em um mundo diferente. Devia haver centenas de relógios ali! Relógios por toda parte – nas paredes, nas prateleiras, nas bancadas.
– Ô de casa! – chamou Bumbão.
Ninguém respondeu.
– Esses relógios parecem antigos e estranhos – sussurrou Lise. – Está vendo aquele ali, com dois ponteiros? Está andando para trás!
Nesse momento, um gemido triste de engrenagem mal lubrificada sobressaiu em meio aos tique-taques.
Com o olhar, Bumbão e Lise seguiram o gemido até o fundo da loja, onde havia uma cortina laranja com um elefante no centro.
– O que...? – Lise fez menção de dizer, mas se calou assim que a cortina se abriu.
Bumbão e Lise ficaram imóveis, boquiabertos. Alguém vinha deslizando com rapidez na direção deles. Era uma mulher alta – a mais alta que já haviam visto –, e tudo nela era fino e anguloso. Tudo, menos o penteado, que mais parecia um arbusto desses que rolam no deserto e fincam raízes onde quer que o vento pare. Mas aquele arbusto em especial tinha fincado raízes em um rosto tão esticado que era impossível presumir sua idade. Estava carregado de forte maquiagem, os lábios muito vermelhos. Além disso, ela trajava, aberto, um longo casacão de couro preto reluzente, de modo que era possível vislumbrar pela abertura o motivo tanto do rangido quanto de sua velocidade. Ela se equilibrava em uma perna de pau com patim, e era evidente que o patim precisava de lubrificação. Com o outro pé, tomou impulso para deslizar até os meninos. Então parou bruscamente, encarou os dois e falou em uma voz tão rouca e sussurrada, que parecia um vendaval sacudindo uma velha cabana:
– Vieram ao lugar errado, crianças. Fora daqui.
Lise ameaçou correr para a porta, tanto pela aparência desagradável da mulher quanto por causa de seu hálito, que fedia a carne podre e meias sujas. Mas Bumbão não se moveu, permaneceu fitando a mulher de casacão com um olhar de curiosidade.
– Por que o relógio está andando para trás? – perguntou, apontando para o relógio atrás dela.
A mulher respondeu sem se virar:
– Está fazendo contagem regressiva para o fim do mundo. Para vocês, esse momento é agora.
– E aquele ali? – perguntou Bumbão, apontando para outro relógio. – Não está funcionando. Você vende relógios quebrados?
– Pelas barbas de Netuno! – ela respondeu. – Aquele relógio tenta provar que o tempo é estático. Talvez esteja certo. Quem sabe?
– O tempo não pode ser estático – retrucou Lise, já se refazendo do choque inicial.
A mulher lançou um olhar feio para ela.
– Você obviamente não sabe nada sobre o tempo, garotinha burra, então é melhor fechar a matraca. Todos os fatos históricos acontecem simultaneamente, o tempo todo, em um ciclo interminável de repetição. Mas a maioria das pessoas é tão burra que não consegue enxergar isso, então acredita que uma coisa vem antes da outra. Agora, tique-taque, tique-taque, deu a hora de vocês. Não me façam perder tempo. Fooora! – Girou sobre o patim e tomou impulso para voltar para dentro.
– Está se contradizendo – disse Bumbão. – Se o tempo é estático, você tem todo o tempo do mundo.
A mulher virou-se devagar.
– Hum... Talvez o cérebro do anãozinho não seja tão minúsculo quanto parece. Mas não importa, está na hora de ir. Xô!
– Temos um selo para vender – falou Bumbão.
– Não estou interessada. Fora.
– É de 1888 – acrescentou Lise. – Mas parece novo.
– Você disse “novo”? – A mulher arqueou uma das sobrancelhas, que parecia ter sido desenhada com um lápis preto bem fino. – Deixe-me ver.
Lise estendeu a mão que segurava o selo.
A mulher tateou até achar uma lupa no bolso e se debruçou sobre a mão de Lise.
– Hum – murmurou. – Felix Faure. Onde conseguiram isso?
– É segredo – respondeu Lise.
A mulher ergueu a outra sobrancelha, igualmente fina.
– Segredo?
– Claro – afirmou Bumbão.
– Está úmido – a mulher disse em sua voz rouca e sussurrada. – O que é esse resíduo branco nas beiradas? Por acaso lavaram o selo com água e sabão?
– Não – respondeu Bumbão, sem perceber o sinal de alerta que Lise lhe lançou com o olhar.
A mulher esticou o dedo indicador, raspou o selo com a unha vermelha e comprida e o levou à boca, que não passava de uma fissura no rosto esticado. Estalou os lábios. Então as duas sobrancelhas saltaram para cima.
– Camarões me mordam! – sussurrou.
– O que foi? – indagou Bumbão.
– Eu compro. Quanto querem por ele?
– Não muito – respondeu Bumbão. – Apenas o suficiente para comprar duas passagens para... Ai!
Lançou um olhar irritado para Lise, que tinha chutado sua perna.
– Setecentos dólares – acrescentou Lise.
– Ora, sua sardinha enlatada! – berrou a mulher, ofendida. – Setecentos dólares por um selo com a cara insossa de um presidente francês que já morreu?
– Está bem, quinhen... – começou Bumbão, e soltou um grito ao levar outro chute na perna.
– Setecentos. Agora. Senão vamos embora – decretou Lise.
– Quinhentos... mais um relógio para cada um de vocês – contrapôs a mulher. – Podem escolher. Tenho relógios que andam devagar, para pessoas sem tempo. Tenho relógios que andam depressa, para pessoas entediadas.
– Fechado! – gritou Bumbão.
– Não! – insistiu Lise. – Setecentos dólares. E, se não aceitar nos próximos cinco segundos, vai ter que pagar oitocentos.
A mulher lançou um olhar de ódio para Lise. Fez menção de falar alguma coisa, mas desistiu ao ver a determinação no semblante da garota. Soltou um suspiro, revirou os olhos e disse resignadamente:
– Está bem, sua comedora de caranguejo!
A mulher deslizou para trás da cortina e desapareceu. Depois voltou com um calhamaço de notas e o entregou a Bumbão. Ele lambeu o polegar e passou a contar as notas.
– Vamos ver se você sabe somar – resmungou a mulher.
– Matemática elementar – respondeu Bumbão. – Vinte e cinco notas de vinte mais duas velhas notas de cem... São setecentos dólares. Foi um prazer fazer negócio com você... Qual é mesmo seu nome?
– É Raspa – disse a mulher, abrindo um sorriso fino e cauteloso, como se temesse partir o rosto ao meio se o esticasse um pouco mais. – E vocês? Como se chamam, meus queridos?
– Bumbão e Lise – respondeu Bumbão, entregando o dinheiro para Lise, que o guardou na mochila.
– Então está certo, Bumbão e Lise. Cada um de vocês vai ganhar um relógio de ouro. Que tal? – Ela sacudiu os objetos de ouro diante dos olhos deles.
– Legal! – disse Bumbão, segurando um deles, mas Raspa o tomou de volta.
– Antes, tenho de acertar o fuso horário – disse ela. – Para onde vão?
– Vamos para Paris! – respondeu Bumbão, mal se contendo de tanta excitação. – A capital da França... Ai! – Os olhos dele se arregalaram de dor.
– Ah, desculpe. Chutei sua perna, não foi? – falou Lise. – Deixe-me ver se fez dodói.
Lise se inclinou para Bumbão e rosnou baixinho no ouvido dele, de modo que Raspa não escutasse:
– O cartão diz para não contarmos a ninguém aonde estamos indo!
– Então me processe – replicou Bumbão, zangado.
– Ah, Paris – zombou a mulher, exibindo uma fileira de dentes brancos afiados. – Já estive lá. É uma cidade maravilhosa.
– Não é tão legal assim – grunhiu Bumbão, e esfregou a perna. – Na verdade, mudamos de ideia. Não vamos mais para lá.
– Jura? Por que não? – Raspa soltou um risinho rouco.
– É muito perigoso. Ouvi dizer que os rios de Paris estão repletos de ornitorrincos molhados e pegajosos que ficam se sacudindo perto das pessoas.
Raspa baixou o rosto para Bumbão e exalou seu hálito fedido de carne podre e meias sujas.
– É mesmo? Mas os relógios são à prova d’água.
– À prova d-d-d’água? – surpreendeu-se Bumbão, que jamais havia gaguejado antes.
– É – sussurrou Raspa, em uma voz tão baixa que podiam ouvir o tique-taque dos relógios. – Significa que funcionam na piscina, no chuveiro e até mesmo na banheira. Entenderam?
– Ba-ba-banheira? – indagou Bumbão, perguntando-se de onde viera aquela gagueira.
– Pescaram o que estou querendo dizer? – perguntou Raspa, e lhes deu uma piscadela, como se soubesse de alguma coisa.
– Nã-nã-não – replicou Bumbão. Puxa! Será que a gagueira não iria mais embora?
A mulher empertigou-se e pegou os relógios de volta em um gesto irritado.
– Pensando melhor, acho que vou dar um conselho para vocês, um conselho que vale mais do que estes relógios. – O sussurro rouco de Raspa ecoou pela loja. – Lembrem-se de que só a morte é capaz de mudar a história.
– Só a mo-mo-morte?
– Isso mesmo. A história está escrita em pedra, e vocês só conseguirão mudá-la se estiverem dispostos a morrer. Então, adeus, crianças. – Raspa deu meia-volta e, em meio aos rangidos e guinchos do patim, saiu flutuando como um navio-fantasma, até desaparecer atrás da cortina laranja.
– Ade-de... – ensaiou Bumbão.
– Adeus – disse Lise, e arrastou Bumbão para fora da loja.
Capítulo 4.
A viagem para Paris
LISE E BUMBÃO SAÍRAM DA RELOJOARIA CASACÃO e correram para a praça da prefeitura, onde tomaram um ônibus expresso para o aeroporto. Uma hora depois, saltaram em frente ao Aeroporto Internacional de Oslo, entraram no gigantesco saguão de embarque, apinhado de gente, e encaminharam-se para o guichê da Air France. Enquanto esperavam na fila, Lise pensou ter ouvido um som familiar em meio ao tumulto de vozes, passos e anúncios feitos nos alto-falantes – rangido de rodas mal lubrificadas. Olhou ao redor, mas viu apenas um mar de rostos desconhecidos e pessoas apressadas. Farejou o ar à procura do fedor de carne podre e meias sujas, mas não conseguiu detectá-lo. “Deve ter sido uma dessas malas com rodinhas”, pensou Lise. E sobressaltou-se quando sentiu um dedo em riste cutucando-lhe as costas. Virou-se. Era Bumbão.
– Vai, vai! É a sua vez – ele falou.
Foram atendidos por uma mulher incrivelmente bonita, com pele incrivelmente bronzeada e cabelos incrivelmente brancos.
– Posso ajudar, senhorita? – perguntou a mulher.
– Duas passagens para Paris, por favor – pediu Lise.
– Para quem é a outra passagem?
Uma voz irritada respondeu atrás do balcão.
– Para mim, ora!
A mulher se levantou e espiou por cima do balcão.
– Ah, sim. Seiscentos dólares.
Lise colocou o dinheiro em cima do balcão. A mulher contou as notas de vinte primeiro, então parou e ergueu as sobrancelhas ao ver as duas notas de cem.
– É pegadinha? – perguntou ela.
– Pegadinha? – estranhou Lise.
– É. Estas notas de cem caíram em desuso, querida. São de... – A mulher examinou uma delas de perto. – De 1905. Foram tiradas de circulação há muito tempo. Por acaso não teria uma nota deste século?
Lise fez que não com a cabeça.
– Sinto muito. Dá para comprar apenas uma passagem para Paris.
– Mas... – protestou Lise, desesperada. – Mas...
– Está bem – disse uma voz atrás do balcão. – Pode nos dar uma passagem só.
Lise olhou para baixo, encarando Bumbão, que balançava a cabeça de modo encorajador.
Quando olhou para cima de novo, a mulher lhe estendeu a passagem.
– Bon voyage. Divirtam-se. Imagino que algum adulto esteja esperando por vocês em Paris.
– Espero que sim – respondeu a menina. Suspirou e meneou a cabeça, ainda olhando para as notas de cem dólares que haviam recebido de Raspa. – O que faremos agora? – perguntou a Bumbão, ansiosa, enquanto caminhavam até a barreira de segurança.
– Relaxa – disse Bumbão. – Tenho uma ideia.
– E qual é?
– Você vai sozinha – respondeu o garoto.
Lise o encarou, espantada.
– So-so-sozinha?
Pronto. Agora ela também estava gaguejando.
Quando Lise embarcou no avião, uma aeromoça cheirosa de lábios pintados sorriu para ela e disse:
– Bem-vinda a bordo. Puxa, duas mochilas!
– Pois é. Estou cheia de dever de casa para fazer – resmungou Lise, que parecia um tanto melancólica e solitária.
– Eu ajudo você – disse a aeromoça. Pegou uma das mochilas, depositou-a no bagageiro, entre duas malas de rodinha, e fechou o compartimento com força.
Lise encontrou seu assento, colocou o cinto de segurança e bocejou. O dia fora agitado demais, e quase não dormira na noite anterior. Fechou os olhos e, no mesmo instante, as palavras da dona da Relojoaria Casacão começaram a ecoar em sua mente: Só a morte é capaz de mudar a história. Vocês só conseguirão mudá-la se estiverem dispostos a morrer.
Então Lise adormeceu e só acordou ao ouvir a voz do comandante pedindo que apertassem o cinto para a aterrissagem. Tinha anoitecido, e milhares de luzes parisienses piscavam e reluziam lá embaixo. Lise sabia que havia milhões de pessoas ali. E ela era apenas uma só, uma menininha da rua dos Canhões. De repente, sentiu-se terrivelmente sozinha, e teve de morder o lábio para parar de tremer.
Depois que o avião pousou em um enorme aeroporto, cujo nome era de um presidente falecido chamado Charles Alguma Coisa, a aeromoça ajudou Lise com as mochilas, fez-lhe um carinho na bochecha e desejou-lhe uma boa estadia em Paris. Lise caminhou por um longo corredor, desceu uma interminável escada rolante, entrou em uma imensa fila para mostrar o passaporte e trocou o resto das economias por dinheiro francês. Estava completamente exausta quando enfim saiu do terminal do aeroporto, empurrou a mochila para dentro do táxi e se sentou ao lado dela, no banco de trás.
– Ú-alê-vú? – perguntou o taxista.
Embora não falasse francês, Lise imaginou que a primeira pergunta do taxista seria aonde desejava ir. Foi então que se deu conta: havia esquecido o nome do hotel. Tudo de que se lembrava é que tinha a ver com batatas.
– Hotel Batata! – respondeu, abraçando as mochilas.
– Quesque-vusavê-dí? – perguntou o taxista, olhando para a menina pelo retrovisor.
– É... – ensaiou Lise. – Hotel Purê?
O taxista virou-se para encará-la e perguntou novamente: Hã?, só que dessa vez mais alto e com um tom de irritação na voz.
A cabeça de Lise, que costumava ser bem organizada, estava uma grande bagunça.
– Batata frita? – tentou, sentindo um nó na garganta, prestes a chorar.
O taxista balançou a cabeça negativamente.
– Batata-doce?
O taxista cuspiu com raiva algumas palavras em francês que não pareciam nada educadas. Depois se virou, esticou a mão até a maçaneta de trás, abriu a porta e disse: “Fora!”, apontando para a rua.
– Battant-Doré! – disse uma voz no assento de trás.
O taxista enrijeceu e cravou os olhos em Lise. Provavelmente porque a voz que dissera “Battant-Doré” não se parecia em nada com a voz de uma menina, tampouco parecia ter saído de sua boca, e sim de uma das mochilas que abraçava.
– Ah...! – exclamou o taxista, mais relaxado. – L’Hôtel Battant-Doré?
Lise acenou que sim com a cabeça.
– Isso mesmo. Hotel Batata Dorê.
Com um resmungo, o taxista fechou a porta de novo, deu partida no carro e se pôs a dirigir.
Lise se recostou no assento e suspirou, aliviada. Então ouviu um sussurro a seu lado:
– Ei! Que tal me tirar daqui?
A garota tirou o cadeado e abriu a mochila. Um pequenino menino ruivo, com sardas grandes e penteado à Elvis Presley, saltou para fora dela.
– Ah, o delicioso aroma da liberdade: gás carbônico, partículas de poeira... – falou Bumbão, acomodando-se alegremente ao lado de Lise, as mãos entrelaçadas atrás da cabeça. A menina notou que o amigo parecia um pouco amarrotado, mas, fora esse detalhe, estava inteirinho. – Lise, minha amiga, ficou muito preocupada comigo durante o voo?
– Para dizer a verdade, não – confessou Lise. – Eu dormi. E você, o que fez?
– Li ANIMAIS QUE VOCÊ GOSTARIA QUE NÃO EXISTISSEM até a pilha da lanterna acabar. Já que falou em sono, o livro tem um capítulo inteiro sobre o elefante congolês tsé-tsé.
– Elefante congolês tsé-tsé? – perguntou Lise, mas logo se arrependeu.
– Ele é enorme, do tamanho de uma casa, e sofre de narcolepsia – explicou Bumbão. – Significa que, às vezes, sem dar nenhum aviso, ele adormece e cai de lado. Se não mantiver uma distância segura, você corre o risco de ser esmagado por um elefante congolês de dezoito toneladas. Muito tempo atrás, alguém convenceu o circo a comprar um elefante gigantesco em uma lojinha em Lillesand. O que não sabiam é que era um...
– ... elefante congolês tsé-tsé. – Lise terminou a frase de Bumbão, suspirou e olhou pela janela, resignada.
– Isso mesmo – respondeu Bumbão. – O elefante adormeceu justo na primeira apresentação, e tiveram que escavar três gerações de trapezistas russos dos escombros do picadeiro.
– Corta essa! Elefante congolês tsé-tsé não existe!
– Existe sim! Meu avô disse que viu dois deles em um zoológico em Tóquio. Tinham acabado de chegar de avião e ainda estavam um pouco grogues. Teve uma vez que caíram no sono...
A boca de Bumbão continuou se movendo sem parar, até que o taxista estacionou e disse:
– Madã... Messiê... L’Hôtel Battant-Doré.
Estacionaram em frente a um edifício alto e estreito, cujas paredes eram tão tortas que os pedreiros provavelmente haviam abusado do vinho tinto ao construí-lo. Mas o hotel tinha sacadas pequenas e graciosas, e um letreiro com o seu nome: “L’HÔTEL BATTANT-DORÉ”. Bem, na verdade, dizia: “L ÔT L BATT -D R”, pois boa parte das letras já tinha desbotado.
Lise pagou o taxista, e os dois amigos saltaram do carro. Ao longe se ouviam o som de um acordeão e o ruído de garrafas de champanhe sendo abertas.
– Ah! – disse Bumbão, fechando os olhos e inspirando com força. – Paris!
Passaram pelo vestíbulo e entraram no saguão do hotel. Atrás do balcão, havia uma mulher sorridente de faces rosadas e um homem robusto e simpático que fizeram Lise se lembrar dos próprios pais, lá na rua dos Canhões.
– Bom suar – cumprimentou a mulher. E, embora Lise não soubesse o que significava, percebeu que era algo bacana e disse boa-noite, fazendo uma breve reverência. Então deu uma cotovelada em Bumbão, que se curvou longamente. Lise achava que um pouquinho de educação não machucava ninguém. Pelo visto, os franceses também pensavam assim, pois, agora, as duas figuras atrás do balcão sorriam, ainda mais calorosas.
– Doutor Proktor? – perguntou Lise, hesitante, preparando-se para mais uma rodada de equívocos linguísticos. Mas, para sua alegria, a mulher de faces rosadas entendeu.
– Ah, le professeur?
– Isso mesmo! – disseram Lise e Bumbão em coro, sacudindo a cabeça com entusiasmo. – Viemos falar com ele.
– Vuzéte-famí? – perguntou a mulher, mas Lise e Bumbão continuaram encarando-a, sem compreender.
– Parlê-vú-francé? – perguntou o homem lentamente.
– Por que está balançando a cabeça? – Bumbão sussurrou para Lise.
– Porque tenho quase certeza de que ele perguntou se falamos francês – sussurrou Lise de volta.
O homem e a mulher atrás do balcão trocaram algumas palavras, e Bumbão e Lise perceberam que francês devia ser difícil até mesmo para os franceses, pois, para se comunicarem, os dois precisavam usar o rosto, os dois braços, todos os dedos e, bem... o corpo inteiro.
Enfim a mulher pegou uma das chaves penduradas no quadro, deu a volta no balcão e fez sinal para que Bumbão e Lise a seguissem até uma escadaria de madeira.
Vinte e seis degraus e meio corredor mais tarde, ela abriu uma porta e mostrou o quarto para os dois.
Era um quarto simples, com duas camas de solteiro, um sofá pequeno, um guarda-roupa e uma mesa entulhada de papéis. O banheiro parecia estar em reforma: na prateleira abaixo do espelho – entre dois copos – havia um martelo, uma chave de fenda e um tubo de cola. E a banheira estava encostada em um dos cantos, junto a um cano gotejante. Enquanto Bumbão desfazia as malas e colocava os produtos de higiene na prateleira do espelho, Lise foi guardar a mochila ao lado da mesa. E ali – entre os papéis espalhados – avistou um desenho. Pegou-o. Era de uma banheira, igualzinha à que tinha no quarto. Na parte inferior do desenho havia uma série de números. Pareciam equações, e daquelas bem complicadas, que envolviam comutação, distribuição, multiplicação e divisão, pensou Lise.
– O que é isso? – perguntou Bumbão, que havia acabado de voltar do banheiro.
– Não sei – a amiga respondeu. – Mas parece a letra do professor, não parece?
– E esse parece o capacete do professor – observou Bumbão, que abrira a porta do guarda-roupa e pegara um capacete de hóquei marrom. – Então esta deve ser a ceroula branca dele.
A mulher de faces rosadas, que parecia, em tudo, muito francesa, passou a falar em francês. Gesticulou dramaticamente com as mãos, repetiu várias vezes a palavra “evaporrê!” e mostrou, com mímicas, um pássaro voando para longe.
– Ele desapareceu – disse Lise.
– Essa parte eu entendi – confirmou Bumbão.
A mulher apontou para Bumbão, depois para Lise, depois para a própria boca com os cinco dedos.
– E agora, o que você acha que ela quer? – perguntou Lise.
– Ela quer saber quantos dedos conseguimos enfiar na boca – respondeu Bumbão.
– Seu tonto, ela está perguntando se queremos comer.
Lise fez uma reverência e assentiu com a cabeça, depois deu uma forte cotovelada em Bumbão, que se curvou e também assentiu.
A simpática mulher conduziu os dois à cozinha e os acomodou à mesa. Depois serviu coxa de galinha, ou asa, ou algo parecido com isso. Fosse o que fosse, Bumbão achou gostoso e comeu até ficar de barriga cheia, sem conseguir fazer outra coisa senão arrotar. Em seguida, levantou-se, inclinou-se educadamente, tendo pegado já o jeito da coisa, e iniciou um longo pedido de desculpas rimado que fez o homem e a mulher gargalharem, embora não entendessem uma só palavra. Então Bumbão bocejou tão alto que sua cabeça pareceu perigosamente próxima de se partir ao meio.
A mulher saiu para buscar dois jogos de lençóis limpos e os entregou a Bumbão e Lise, junto com a chave do quarto do doutor Proktor.
Enquanto cada um fazia sua cama, Bumbão comentou que aquelas coxas de galinha pareciam tão pequenas que poderiam ser de rã. E os dois riram bastante: quem no mundo pensaria em comer coxas de rã?
– Hum, por que a sua cama ficou mais arrumada que a minha? – perguntou Bumbão depois de um tempo.
– Porque você colocou o edredom dentro da fronha, o que não faz o menor sentido – suspirou Lise, dando uma mãozinha.
Depois foram para o banheiro escovar os dentes.
– Como vamos encontrar o professor? – perguntou Lise.
– Estou cansado demais para pensar nisso agora – bocejou Bumbão, os olhos pesados de sono, afastando a chave de fenda para pegar a pasta de dente na prateleira. – Amanhã daremos um jeito.
– Mas como vamos conseguir encontrá-lo se ninguém fala a nossa língua, e também não falamos a deles?
– Amanhã aprenderemos a falar francês – falou Bumbão.
– Amanhã? Impossível!
– Até as criancinhas daqui sabem falar francês. Não pode ser muito difícil, concorda? – retrucou Bumbão. Espremeu o tubo, enfiou a escova na boca e passou a escovar os dentes.
– Isso leva semanas, meses até – disse Lise. – E tenho a sensação de que não temos muito tempo.
– É verdade. Temos ensaio com a banda na segunda-feira.
– Não é brincadeira, Bumbão! É sério.
Lise virou-se e encarou o amigo, que sorriu de volta com dentes brancos e brilhantes. Na verdade, incrivelmente brancos e brilhantes. Sim, mais brancos e brilhantes do que se lembrava – embora Bumbão não fosse conhecido por ser um grande escovador de dentes.
– Bumbão, o que houve com seus dentes? Hein? – ela perguntou.
Mas Bumbão continuava a sorrir, um sorriso tão estático que os dentes de baixo pareciam colados aos de cima. E, quando Lise viu o olhar de desespero e a movimentação frenética do amigo, deu-se conta de que era exatamente isso o que acontecera. Olhou para a prateleira. Lá estava: o tubo de pasta de dente parecia intacto, mas o tubo de cola, ao lado, fora aberto.
Ela o pegou e leu em voz alta:
– “Supercola Instantânea do Doutor Proktor.” Você pegou o tubo errado, Bumbão!
O garoto deu de ombros, pedindo desculpas, e continuou sorrindo bestamente.
Lise suspirou e começou a revirar a nécessaire à procura de uma lixa de unha.
– Não se mexa! – ordenou. – E vê se colabora!
Bumbão usou as mãos para afastar os lábios. Lise inseriu a lixa entre os dentes do canto esquerdo e passou a esfregá-la, indo para a direita. Bumbão murmurava a Marselhesa enquanto Lise separava, bem devagar, os dentes de cima dos de baixo.
– Ufa! – exclamou Bumbão, quando enfim a amiga terminou, e olhou-se no espelho. – Dá só uma olhada nesses dentes perolados! A Supercola vai protegê-los das cáries! Nem preciso ir ao dentista! – Pegou o tubo de cola e o ofereceu à amiga. – Quer experimentar?
– Não, obrigado. O que será que o tubo de Supercola Instantânea do Doutor Proktor fazia aqui na prateleira, junto com as ferramentas?
– Elementar, minha cara Lise – respondeu o menino. O professor estava reformando o banheiro.
– Pode ser – disse Lise em meio a um bocejo. – Bom, chega de pensar por hoje.
Mas, depois que foram para a cama, Lise continuou acordada, ouvindo o cano gotejante pingar melancolicamente. Escutava-se lá fora o clamor distante do tráfego e o lamento de um acordeão – além de um ruído que não conseguia identificar. Podia ser tanto o angido de um balanço ao vento quanto o som de um patim sob uma perna de madeira.
Coisas estranhas passam pela nossa cabeça quando estamos sozinhos na escuridão de uma cidade grande. Virou-se para Bumbão. Bem, quase sozinha.
Com certeza, tudo ficaria mais excitante pela manhã.
E ela tinha razão.
Capítulo 5.
Cancã, lesmas e Margarina
BUMBÃO ACORDOU COM LISE SACUDINDO-O. Estreitou os olhos contra a luz do dia que entrava pela janela e viu que ela já se encontrava vestida.
– São nove horas – disse a menina. – Vou procurar uma livraria para ver se encontro um guia de conversação em francês.
– Um o quê?
– Um dicionário de bolso com frases em francês para facilitar a comunicação.
Bumbão sentou-se na cama.
– E como vai conseguir encontrar uma livraria?
– Vou perguntar no caminho. Tenho certeza de que, se falar com sotaque, as pessoas vão entender: livrrarrriê.
– Claro que vão entender... – confirmou Bumbão. – O que tem para comer?
– Nada – respondeu Lise. – Só servem vento e café au lait a esta hora. Na volta, compro uma baguete.
– Não demore – pediu Bumbão, colocando os pés para fora da cama. Ficaram balançando pouco acima do chão de linóleo, como se indagando se o chão estava frio.
Assim que Lise bateu a porta ao sair, saltou para o chão – que não estava apenas frio, mas muito frio – e correu até o banheiro. Tremendo, subiu em uma cadeira e se olhou no espelho da pia. E, do outro lado, um ruivinho bonito, de proporções reduzidas, embora inteligente e estiloso, olhou para ele. Bumbão ficou tão satisfeito com o rapazinho no espelho que decidiu lhe dar um banho quente e gostoso naquela manhã fria de outubro.
Abriu o registro da banheira e deixou a água correr enquanto procurava algum tipo de sabão que fizesse bolhas. Sem encontrar nada parecido, lembrou-se de que Lise havia trazido algo semelhante. Abriu a mochila da amiga, e lá estava, ao lado de dois prendedores de nariz, um pote intitulado SABÃO TEMPORIZADOR. Bumbão pegou um dos prendedores de nariz e o pote de sabão, voltou correndo para o banheiro e despejou um pouco do pó vermelho-morango na banheira.
“Cada coisa a seu tempo”, pensou, enquanto olhava para as bolhas que se formavam quase instantaneamente, crescendo e ganhando volume como um monte de neve branca. Tirou a roupa, subiu na borda da banheira, colocou o prendedor de nariz e gritou: “Lá vou eu!”
Então, abraçando os joelhos, saltou, caindo sobre as bolhas. A colisão foi perfeita, causando o efeito desejado. Bolhas de sabão e água voaram para todos os lados, nas paredes e até no teto. Satisfeito, deixou-se afundar lentamente e ficou ali embaixo, segurando a respiração e olhando a superfície. Havia tantas bolhas que apenas um fiozinho de luz chegava ao fundo. E, nesse fiozinho de luz, Bumbão viu um belo arco-íris, que mais parecia uma fila multicolorida de dançarinas de cancã levantando as pernas bem alto no Moulin Rouge de 1909. Ah, como queria estar lá!
Nesse momento, Bumbão sentiu a banheira trepidar e a superfície da água oscilar, como se o teto se mexesse. Puxa! Será que o prédio ia cair? E aquele som? Era música?
De repente, a trepidação cessou. Bumbão se apoiou na banheira e levantou-se. E ficou ali parado – completamente nu – enquanto as bolhas lhe escorriam pelo corpo. Não havia mais música. E uma fileira de dançarinas de cancã vestidas de vermelho o encarava, os rostos quase tão espantados quanto o dele.
– De onde ele saiu? – uma das dançarinas sussurrou.
– De onde veio a banheira? – perguntou outra.
– O que é aquilo no nariz dele? – gritou uma terceira.
– Ele é tão bonitinho – comentou outra, entre risos.
Bumbão piscou contra a luz ofuscante dos refletores, e a plateia ficou ali, boquiaberta, sem saber o que dizer, como se acabasse de assistir a uma inesperada aterrissagem lunar. O menino não entendia o que estava acontecendo. A única coisa que podia afirmar era isto: aquele era o palco do Moulin Rouge.
Lise desceu uma larga avenida de três pistas, ladeada por lojinhas de roupa e perfumarias, mas não encontrou nenhuma livraria. Tinha pensado em perguntar à mulher de faces rosadas no hotel, antes de sair, mas não havia ninguém na recepção, apenas um senhor gordo no saguão, que mais parecia um hipopótamo sentado em uma poltrona. Ele lia o jornal, e a havia observado com o canto dos olhos, um olhar de suspeita e cautela. E, agora, sentia-se ainda mais rejeitada, pois, toda vez que se aproximava de alguém para pedir informações, as pessoas empinavam o nariz e davam-lhe as costas ao perceberem que não falava francês.
Lise começou a suspeitar de que nem todos os franceses eram cordiais com estrangeiros como o homem e a mulher do Battant-Doré. Correu o olhar pelas vitrines à procura de algum lugar que vendesse livros. Mas a maioria das lojas era de roupas. Roupas bonitas, é claro. Lise parou para admirar um vestido particularmente chamativo. De repente, notou algo refletido na vitrine da loja – uma mulher parada do outro lado da rua, com casacão e óculos escuros. Estava distante demais para ser reconhecida, mas havia alguma coisa estranhamente familiar nela. E, embora Lise não a conhecesse, a estranha a encarava.
Lise voltou a caminhar, fingindo estar entretida com as vitrines. Foi então que a suspeita se confirmou: a mulher a seguia.
A garota sentiu o coração bater apressado, e os pés acompanharam o ritmo. Quem era aquela mulher, e o que queria? Será que... Será que...?
A mulher atravessou a rua.
Lise começou a correr.
Havia muita gente na calçada. Lise tentou ziguezaguear por entre os pedestres, mantendo a cabeça baixa para não ser reconhecida. Mas, ao olhar para trás, viu de relance o casacão. Entrou em um beco estreito e disparou à frente. Correu apenas alguns metros, até se dar conta de que era um beco sem saída. Encostou na parede, atrás do cano de escoamento de uma calha, e aguardou, os olhos grudados na avenida principal. Lá estava o casacão! Ela... ela... Passou sem olhar para os lados. Lise suspirou, aliviada. Agora, tinha de se apressar na volta para o hotel. O guia de conversação e a baguete iam ficar para outra hora. Mas, justo quando fez menção de voltar para a avenida, avistou de novo o casacão. Tinha retornado, e agora estava parado bem na saída do beco! Parecia farejar, à espreita. Lise notou uma escada de porão ali perto e desceu rapidamente. A escada dava em uma porta, e a garota ficou ali, esperando, sem ousar respirar.
Passaram-se segundos.
Então ouviu um barulho lá em cima. Alguém se aproximava.
Lise forçou a porta. Para sua completa alegria, ela abriu! A menina entrou no cômodo escuro, fechou a porta e apoiou as costas nela. O coração palpitava como um coelho sapateando. Não lhe pareceu estranho que a porta estivesse aberta – até onde sabia, o lugar estava vazio. Mas havia sons, e um cheiro estranho. Era como uma sinfonia de mastigação, como se dezenas de pais como o dela, invisíveis, devorassem cozido de carneiro com repolho. E o lugar fedia... fedia a carne podre e meias sujas. Então ela gritou. Algo úmido, gosmento e gelado tocou sua nuca. Lise disparou para o centro do cômodo e olhou ao redor. Àquela altura, os olhos já tinham se acostumado à escuridão, e notou que havia alguma coisa nas paredes... Algo que se mexia, ondulando o corpo e percebendo o ambiente com enormes antenas. E não era uma só. Eram várias. Estavam aqui e ali também... Em toda parte, fazendo todo tipo de ruído. As paredes estavam vivas!
Lise estava paralisada pelo terror. A porta do porão se abriu devagar. Delineada contra a iluminação de fora, viu a silhueta da mulher que a perseguia.
– Oi, Lise – disse ela, fechando a porta e ligando o interruptor. A luz se acendeu. Lise olhou ao redor e quase desmaiou. – Por que está tão pálida? – continuou a mulher, aproximando-se da menina. – Ficou com medo dessas lesmas gigantescas? Não tem perigo. Isso aqui é como um viveiro. Quando ficam grandes, são servidas nos restaurantes lá em cima. Lesma é iguaria neste país.
– É mesmo? – foi tudo o que Lise conseguiu dizer, pois agora a mulher estava tão perto que era possível ver seu rosto. E, definitivamente, era um rosto conhecido.
– Bom, Lise – ela falou –, talvez esteja se perguntando o que as lesmas comem aqui embaixo...
– O quê? – perguntou Lise, sentindo os dentes baterem de medo.
A mulher riu.
– Grama, alface, esse tipo de coisa. Por quê? O que pensou que eu fosse dizer?
Lise suspirou, aliviada.
– Meu nome é... – começou a mulher.
– Sei quem você é – Lise a interrompeu.
– Sabe? – perguntou a outra, obviamente surpresa.
– Sei. Já vi fotos suas. Na casa do professor. Vocês estavam em uma moto com sidecar. Você é a ex-namorada dele, Juliette Margarina.
A mulher abriu um largo sorriso.
– Impressionante. E me reconheceu logo de cara?
Lise sorriu.
– Não. No começo, pensei que fosse Joana d’Arc.
– Joana d’Arc? – Juliette indagou, surpresa. – A santa?
Lise sorriu.
– No livro de História, tem uma foto de Joana d’Arc sendo queimada em uma fogueira, e achei que você se parecia com ela.
– Obrigada pelo voto de confiança, Lise – respondeu ela em um norueguês capenga, pegando uma mecha do cabelo castanho-avermelhado. – Podemos até ser parecidas, mas, infelizmente, não sou nenhum heroína, apenas Juliette Margarina. Em francês, dizemos: Marrr-ga-rrri-na.
– Marrr-ga-rrri-na – repetiu Lise. – Mas como sabe o meu nome?
– Viktor me contou sobre você e Bumbão – explicou Juliette.
– Viktor?
– O doutor Proktor.
– Doutor Viktor Proktor? – Lise jamais havia pensado no primeiro nome do professor.
Juliette sorriu.
– Além disso, fui eu que enviei o cartão-postal. Desde então, tenho espreitado o hotel, aguardando sua chegada. Não sabe como fiquei feliz quando vi você hoje de manhã. “Eles chegaram; enfim, chegaram!”, pensei.
– Mas... por que não foi ao hotel? Por que preferiu me seguir? E onde está o doutor Proktor? Para que tanto mistério?
– Clichê – observou Juliette.
– O quê?
A mulher suspirou.
– A resposta para a maioria das suas perguntas é: clichê, clichê, clichê. Um nome muito feio, infelizmente. Mas é uma longa história, e você me parece faminta. Por que não procuramos um lugarzinho que sirva croissant e café au lait?
– Ótima ideia – concordou Lise. Passou o olhar pelo local mais uma vez e sentiu um calafrio. Por menos perigoso que fosse, era muito desagradável ficar em um cômodo cheio de lesmas gigantescas nas paredes.
– Mas... – começou Juliette, abrindo a porta. Colocou a cabeça para fora e olhou cautelosamente de um lado para o outro. – Acho melhor escolher um lugar onde não sejamos vistas.
Capítulo 6.
A impressionante história
de Juliette Margarina
JULIETTE MARGARINA E LISE encontraram um café em estilo antigo na calçada de uma ruazinha tranquila, e cada uma pediu um croissant – além do que Lise levaria para Bumbão. Só que Bumbão teria de esperar, pois, primeiro, Lise queria ouvir toda a história de Juliette Margarina.
– Não sei aonde Viktor foi – explicou Juliette. – Mas estava presente quando ele partiu, e sei no que estava pensando. É uma longa história. Acho melhor começar pelo início.
– Excelente ideia – concordou Lise, dando uma mordida voraz no croissant.
– Tudo começou em um domingo, muitos anos atrás. Passeava em Montmartre, um bairro de Paris. Há sempre muitos artistas por lá que se oferecem para pintar turistas por alguns trocados. Entre eles, topei com um rapazinho excêntrico que eu conhecia da universidade. Era estudante de química, como eu. Sabia o nome dele: Viktor Proktor. E também sabia que era um inventor talentoso da Noruega. Às vezes, tinha a impressão de que ele queria falar comigo na universidade, mas não tinha coragem. Porém, naquele dia, em Montmartre, ele se aproximou e apontou para um estranho aparato que tinha inventado: uma máquina que pintava retratos mais rápido que os próprios pintores, e pela metade do preço. Então deixei que ele, ou melhor, que a máquina dele me pintasse. Mas, quando tudo terminou, ele olhou para a tela por alguns segundos e depois a destruiu com um rugido de desespero. Perguntei o que tinha acontecido, e ele explicou que aquele era mais um de seus fracassos como inventor. A máquina não conseguira sequer chegar perto de capturar a beleza do meu rosto. Viktor devolveu o dinheiro e já estava de partida, quando perguntei se não poderia, ao menos, lhe pagar um café au lait para compensar seu esforço. Viemos então para este mesmo café onde você e eu estamos agora, e conversamos sobre química até anoitecer. Depois pedimos vinho e continuamos falando sobre a vida, gostos pessoais, os sonhos que tínhamos. E, quando enfim Viktor me acompanhou até a estação de metrô, estava perdidamente apaixonada e sabia que ele era o amor da minha vida. Imagine só. Eu tinha certeza! – Juliette riu. – Depois daquele dia, meus pensamentos foram todos dominados pelo inventor bonitão da Escandinávia.
– Bonitão? – perguntou Lise um tanto confusa. – O doutor Proktor?
– Ah, sim, ele era muito bonito. Naquela semana, eu o procurei todos os dias na universidade, mas não consegui encontrá-lo. No domingo, fui de novo para Montmartre, e lá estava ele, parado no exato local da última vez, só que sem a máquina de pintar rostos. Ele tremia de frio, tanto que chegava a bater os dentes. Mas se alegrou ao me ver. Nós nos cumprimentamos com um beijo no rosto, à maneira dos franceses. Quando perguntei o que havia feito durante a semana, ele respondeu que tinha esperado. “Onde?”, perguntei. “Bem aqui”, disse ele. “Esperado o quê?”, indaguei. “Você”, foi a resposta. E, depois daquele dia, Viktor e eu nos tornamos um casal.
– Oh – suspirou Lise. – Que romântico!
– Pois é. – Juliette balançou a cabeça, abriu um sorriso triste e bebericou o café. – Mas, infelizmente, alguém tinha outros planos para mim.
– Seu pai, o barão – acrescentou Lise. – Ele não queria que você se casasse com um inventor pobre. Estou certa?
– De certa maneira, sim. Mas não é dele que estou falando. Veja bem, a família Margarina é uma família muito antiga e aristocrática. Somos nobres. Meu pai é barão. Minha mãe era baronesa. Meu tataratataratataravô foi o conde de Monte Crisco, decapitado por Banho de Sangue, o Carrasco, durante a Revolução Francesa, mais de duzentos anos atrás. Infelizmente, sua fortuna passou para o irmão, o barão Leufat Margarina. Leufat era um patife beberrão. Perdeu todo o dinheiro em uma partida de Uno.
– Uno?
– Leufat foi perdendo o dinheiro, até que, em uma fatídica rodada de Uno, em uma taverna em Toulouse, após ter recebido quatro cartas de “Muda de cor e compra quatro”, convenceu-se de que sua sorte havia mudado e apostou o resto da fortuna da família. Para sua infelicidade, um dos oponentes no jogo, um vigarista chamado Elgamelle Clichê, também tinha recebido quatro cartas de “Muda de cor e compra quatro”...
– Mas...
– Leufat perdeu. Enfurecido, acusou Elgamelle Clichê de trapaça e o desafiou para um duelo ao amanhecer. Mas, quando amanheceu, Leufat estava tão bêbado que mal conseguia parar em pé. E, quando Clichê o perfurou com seu florete, dizem que jorrou mais conhaque do que sangue de seu corpo.
– Eca.
– Pois é. Ficamos sem dinheiro nenhum. Nossa família mal conseguia arcar com as despesas do Castelo de Margarina, que estava soterrado de hipotecas até a chaminé. Tudo o que tínhamos era o título de nobreza, mas éramos pobres.
– Mas, se não eram ricos, por que seu pai não deixou que se casasse com um inventor pobre?
Juliette balançou a cabeça com tristeza.
– Certa noite, meu pai veio falar comigo e disse que tinha ótimas notícias para me dar: eu tinha um pretendente. E não era um pretendente qualquer, era um empresário rico. Fiquei horrorizada e expliquei que já tinha um namorado. Bem, ele já sabia... Claro, claro, disse meu pai, mas o pretendente havia prometido pagar as dívidas do Castelo de Margarina e restabelecer o nome da família. O meu Proktor poderia fazer o mesmo por mim?, ele perguntou. O pretendente já pedira minha mão em casamento e meu pai concordara, então não havia muito mais a fazer. O nome do sujeito, aliás, era Claude Clichê, disse meu pai, e pareceu bastante assustado quando gritei a plenos pulmões. Meu pai não era má pessoa, veja bem, era apenas um pouco ingênuo. Devia ser o único em Paris que não ouvira falar de Claude Clichê e sua gangue de hipopótamos.
– Gangue de hipopótamos?
– Clichê é um mafioso. Enriqueceu usando capangas para intimidar os outros. Os hipopótamos não são hipopótamos de verdade, são bandidos de uma aldeia em Provença chamada Innebrède. Quase todos são aparentados e parecem hipopótamos. Não são lá muito inteligentes, mas são grandes e fortes e dirigem limusines pretas. O trabalho deles é encher o saco.
– Encher o saco?
– Se você recusar uma das ofertas de Claude Clichê, como a de vender seu restaurante a um preço ridículo, vai receber uma visitinha dos hipopótamos. Eles vão encher um saco de cimento, vão amarrar suas mãos e pernas, vão agradecer a preferência e jogá-la no Sena com o saco de cimento amarrado ao tornozelo, e você vai afundar como uma bola de ferro. E vai ficar lá meses e meses até alguém encontrá-la.
– Puxa! E você não contou para o seu pai que Clichê era um bandido?
– Contei, é claro, mas meu pai riu e disse que aquilo era boato, que Claude era um empresário como outro qualquer. Não podia ser tão mau. Meu pai tinha visto Claude e eu dançando juntos no baile de Natal.
– Vocês dançaram juntos?
– Apenas uma vez. E só aceitei porque estávamos na mesma mesa. Não quis parecer mal-educada. Mas nunca o suportei. Ele tinha olhos esbugalhados de peixe, um bigodinho fino e beiços gordos e úmidos que soltavam cuspe para todo canto enquanto se gabava de como havia entrado no mundo dos negócios: algo a respeito de dois irmãos inventores que tinham criado os prendedores de suspensório.
– Prendedores de suspensório? Pensei que sempre tivessem existido.
– Não, não. Antigamente, as pessoas usavam botões para segurar o suspensório. Os prendedores foram considerados um grande avanço para a humanidade, assim como... como escadas rolantes e escovas elétricas. Mas, depois que os hipopótamos aplicaram o plano “encher o saco” aos irmãos inventores, Clichê se apossou da patente e ficou multimilionário. É por isso que sempre usa suspensório.
– Mas não é estranho? – perguntou Lise. – Você não o suportava e, no entanto, ele estava tão apaixonado que quis se casar com você depois de um único encontro.
– Apaixonado? – exclamou Juliette. – Clichê não sabe o que é paixão. Ele só queria se casar comigo por causa do meu título de nobreza. Se casasse comigo, isso faria dele um barão. Disse isso ao meu pai, mas ele deixou claro que, se não aceitasse o pretendente, seríamos despejados e levados à bancarrota. E mandou que me vestisse, pois Claude vinha me pedir em casamento naquela mesma noite.
– Puxa vida! – lamentou Lise. – E o que você fez?
– Eu me tranquei no quarto e fiquei pensando. Então cheguei a uma conclusão quanto ao que precisava ser feito.
– E qual era?
– Tinha de me casar com Viktor antes que me impedissem. Só o primeiro marido da filha de um barão é considerado barão. Se alguém se casa com a filha de um barão que já foi casada, não tem direito ao título de nobreza. Se me apressasse em casar com Viktor, seria tarde demais para Clichê, e ele nos deixaria em paz. Esse era meu plano. Também pensei que criminosos poderosos como Clichê teriam espiões em toda parte e que seria mais inteligente atravessarmos a fronteira para a Itália, onde Viktor e eu poderíamos nos casar em segredo. Então desci pela janela, fui até o Hôtel Battant-Doré, onde Viktor estava hospedado, e pedi sua mão em casamento.
Lise soltou uma risadinha.
– O professor nos contou essa parte da história. Como foi o pedido?
Juliette deu de ombros.
– Bati à porta. Ele abriu e disse: “Oi”, e eu falei: “Quer se casar comigo?”, e ele respondeu: “Quero”, e eu: “Então vá pegar o capacete. Vamos nos casar em Roma, agora.” Não lhe dei nenhuma explicação. Caso contrário, teria de contar que meu pai, seu futuro sogro, não queria tê-lo como genro e havia me prometido a outro homem.
– Qual foi a reação do professor?
– Viktor apenas riu e obedeceu. Subimos na motocicleta, e ele arrancou. Seguimos para o sul de Paris, rumo à Provença, na direção da fronteira com a Itália. Viajamos a noite inteira, e estava frio, mas o cachecol de Viktor, feito em uma de suas máquinas de costura, tinha vinte metros de comprimento e nos abrigava confortavelmente.
– Que... fofo.
– Pois é. Mas eu sabia que, àquela altura, Clichê já teria feito soar o alarme e enviado os hipopótamos em nosso encalço. Não tinha contado nada a Viktor. Por que contaria? Ele parecia contente. Estávamos longe de Paris e, em pouco tempo, deixaríamos tudo para trás. Quando o sol começou a raiar, passamos por uma placa com o nome de uma aldeia e tomamos o desvio para abastecer. Viktor tinha visto um posto de gasolina. Eu disse que deveríamos continuar, que poderíamos abastecer na Itália, que faltavam apenas alguns quilômetros até a fronteira. Mas o motor e o cachecol ondulando ao vento faziam tanto barulho que Viktor não me escutou e parou ao lado de um homem grande de macacão, que fumava um cigarro encostado à única bomba de gasolina do posto. Atrás dele, estava outro homem, igualzinho ao primeiro, sentado em uma cadeira perigosamente inclinada para trás, lendo uma revista. Viktor disse: “Enche o tanque”, sem perceber que eu havia me desvencilhado do cachecol e me encolhido no sidecar.
– Por que fez isso?
– Porque eu tinha lido o nome da aldeia na placa. E havia dado uma boa examinada nos dois homens. Tinham dentões grandes que mais pareciam chifres naquelas bocas enormes. Pareciam...
– Não diga – ofegou Lise. – Pareciam hipopótamos! Você estava em Innebrède. Que coisa horrível!
– O homem de macacão passou a encher o tanque, olhando de esguelha para Viktor, e chamou o irmão por cima do ombro: “Ei, como foi que o patrão descreveu aquele professor?” “Alto e magro... Uma vareta com óculos de motoqueiro”, falou o outro, sem tirar os olhos da revista. “O nome dele era Proktor.” Fiquei com medo, pois aquilo significava que Clichê sabia da minha fuga e com quem eu estava. Viktor, que não fazia ideia do que estava acontecendo, à menção do seu nome respondeu: “Puxa! Já ouviram falar de mim? Sei que publicaram meu artigo no jornal da escola sobre a banheira de viagem no tempo e até tiraram uma foto minha, mas ser reconhecido tão longe de Paris é... puxa...”
– E depois, o que aconteceu? – indagou Lise, mal podendo respirar de ansiedade.
– Nesse momento, interrompi Viktor e sussurrei o mais alto que pude: “Acelera! Acelera, vai!” “Mas, querida Juliette, esses moços simpáticos só queriam...” “Acelera! Vai! Senão vamos perder o compromisso com o padre!” “Mas tenho de pagar pela gasolina...” Viktor não tinha percebido que os hipopótamos fechavam o cerco. Então me levantei no sidecar, pisei na embreagem da motocicleta e acelerei. O veículo saltou para a frente e eu dei uma cambalhota para trás, despencando do sidecar. Caí de cabeça no chão, enquanto a mangueira dançava no ar, descrevendo arcos e respingando gasolina nos hipopótamos e em mim.
– Puxa ao quadrado! – exclamou Lise, inclinando-se para a frente e quase derrubando a xícara de café.
– Pois é – disse Juliette, salvando a xícara no último instante. – Vi estrelas, mas consegui me levantar e saí correndo, ou melhor, saí mancando atrás da motocicleta, com dois hipopótamos no meu encalço. Eu chamava por Viktor com a boca toda respingada de gasolina, mas ele não podia me ouvir, tampouco me ver. Ria e conversava com o sidecar, como se eu ainda estivesse lá. Provavelmente, havia achado o máximo ter saído sem pagar pela gasolina.
– Puxa!
– Pensei que não conseguiria. Os dois hipopótamos já quase me alcançavam. O de macacão, com cigarro na boca, segurou-me pelo cabelo. Então ouvi um puf!, e ele sumiu.
– O que houve?
– Cigarro e gasolina: péssima combinação. Mas o outro vinha logo atrás. Dava para sentir o cheiro de pó de cimento e ouvir a respiração de hipopótamo, pesada e ofegante. E Viktor continuava acelerando, ficando cada vez menor, cada vez mais distante.
– Puxa ao quadrado!
– Já pensava em desistir quando vi o cachecol de Viktor, dançando ao sabor do vento, atrás da motocicleta. Senti dedos de hipopótamo me agarrando as costas. Com minhas últimas forças, dei um derradeiro salto, segurei-me no cachecol e fui arrastada.
– Você foi arrastada?
– Fui, sim. O asfalto rasgou os joelhos da calça. Fiquei toda ralada, você nem imagina. Depois lutei para me levantar e me equilibrei sobre a sola dos sapatos, atrás da motocicleta, como se fossem esquis.
– Que coisa horrível!
– E essa não foi a pior parte – contou Juliette. – Viktor continuava distraído, e eu quase largando o cachecol, quando fizemos uma curva e seguimos para uma ponte. Ao lado dela, havia uma placa que dizia: “Ponte Gustav Eiffel.” Sabia que aquela seria minha última chance. Então, sem largar o cachecol, lancei-me contra a placa no canto da pista. No momento seguinte, eu e o cachecol dávamos voltas em torno dela. Foi o passeio de carrossel mais frenético de toda a minha vida. Fiquei tão tonta que continuei girando, mesmo em pé. Então vi Viktor estirado no meio da ponte. A motocicleta havia parado um pouco à frente. Corri até meu querido Viktor. O rosto dele estava azul, coitado, os olhos esbugalhados. Queria falar, mas eu não entendia nada...
– Ele ficou ferido?
– Não. É que o cachecol estava enrolado em seu pescoço. Quando o afrouxei, e Viktor conseguiu respirar de novo, começou a falar, mas com uma voz estranha, é verdade. Mais ou menos assim... – Juliette o imitou, falando com uma voz fina e esganiçada: “Juliette, o que aconteceu?”
Lise soltou uma risadinha, e Juliette a acompanhou.
– Disse que não era nada e que, agora, estávamos a caminho de nos casar em Roma. Peguei sua mão e nos dirigimos apressados para a motocicleta. Ele deu a partida, mas uma válvula havia sido danificada, por isso não poderíamos ir tão rápido; o padre teria de esperar. Foi então que avistei uma limusine preta descendo a colina, a caminho da estrada.
– Limusine preta? – falou Lise. – Hipopótamos à vista!
– A limusine era tão larga que, por um segundo, pensei que não passaria na ponte. Mas, embora com dificuldade, ela manobrou e veio em nossa direção.
– Foi o fim, não foi?
– Foi, Lise. Foi o fim. Com a válvula danificada, não podíamos mais despistá-los. Embaixo da ponte, passava um rio escuro e profundo. Sabia muito bem o que os hipopótamos fariam se nos pegassem juntos.
– Claro – falou Lise, a respiração ofegante. – Jogariam vocês da ponte com sacos de cimento no tornozelo.
– Fariam isso com Viktor – disse Juliette. – Mas não comigo. Eu seria levada a Paris, forçada a colocar um vestido branco e conduzida até a igreja, onde Clichê me aguardaria em um smoking, com seu suspensório e seu bigodinho fino, esperando que eu dissesse “aceito” para enfim se tornar... UM BARÃO!
Juliette bateu o punho fechado na mesa, fazendo o café au lait transbordar da xícara, depois continuou, à beira das lágrimas:
– Mas também estava ciente de que, se os hipopótamos me capturassem, não se dariam o trabalho de perseguir Viktor. Ele não seria de grande importância se eu fosse retida. Então eu... fiz o que tinha de fazer. – Juliette enfiou a mão na bolsa e puxou um lenço branco bordado, exatamente como seria de esperar de um lenço aristocrático. Enxugou uma lágrima grossa, brilhante. – Menti para Viktor. Falei que a limusine era do meu pai, que ele devia ter nos seguido e que precisava ter uma conversa com ele. Disse também que Viktor tinha de seguir viagem e me esperar do outro lado da fronteira. Ele protestou, mas insisti. Eu o obriguei a montar na motocicleta, disse au revoir e adeusinho, e ele partiu.
Capítulo 7.
Juliette continua sua história
O OLHAR DE JULIETTE SE PERDEU NO HORIZONTE. Pegou o lenço e assoou o nariz de maneira escandalosa, como se tocasse um trompete, o que não era exatamente algo a se esperar de uma assoada de nariz aristocrática.
– Três dias depois, casei-me com Claude Clichê em Notre Dame, uma catedral de Paris. As pessoas ficaram jogando UNO até altas horas, e Claude perdeu dinheiro para um dos convidados do meu pai. Esse convidado foi encontrado uma semana depois no fundo do Sena, com um saco de cimento amarrado ao tornozelo. Acho que esse fato por fim abriu os olhos do meu pai para o tipo de pessoa que Claude realmente era. O barão me chamou para um canto, perguntou se eu estava feliz, disse-me que podia pedir o divórcio, que não precisávamos do castelo, que podíamos morar em um apartamento pequeno e que ele podia procurar emprego. Coitado! Ele não entendia que Claude jamais perdoaria tamanha humilhação e que, se apenas mencionássemos a palavra “divórcio”, acabaríamos no fundo do Sena, papai e eu. Falei que não, que estava tudo bem. Claro que, se fosse lhe contar a verdade, diria que não suportava viver nem mais um dia ao lado daquele monstro.
– Eca... eca... eca...!
– Nem me fale. E, assim, os anos passaram. Papai envelheceu antes do tempo, ficou doente e morreu de pneumonia dois anos atrás. Enquanto salpicávamos terra no caixão, Claude sussurrou em meu ouvido que, agora que meu pai estava fora da jogada, talvez eu pensasse em fugir para encontrar meu querido professorzinho, mas que, se tentasse fazer isso, acabaria descobrindo como é afundar no Sena com um saco de cimento no tornozelo. Depois deu um tapinha no meu rosto e disse que os hipopótamos ficariam de olho em mim.
– Mas que... brutamontes! – sussurrou Lise, sentindo os olhos marejarem.
– Eu já tinha desistido de ser feliz – continuou Juliette. – Mas então o verão chegou, e recebi um cartão-postal muito estranho. Tinha um selo de Paris e, fora meu nome, tudo nele parecia sem sentido. Mas reconheci a letra de imediato. Era do meu querido Viktor. Imagine só! Ele não havia me esquecido durante todos aqueles anos! Meu coração se alegrou. Então tentei decifrar o que estava escrito no cartão. E sabe o que descobri?
Lise fez que sim com a cabeça.
– Acho que sim. Estava escrito de trás para a frente, não é?
– Isso mesmo! – exclamou Juliette. – Como sabe? Ah... é claro, esqueci que vocês também receberam uma mensagem de trás para a frente.
– Como...? – Lise fez menção de falar, mas Juliette colocou a mão no ombro da menina.
– Já chego lá, querida. Lendo a mensagem de trás para a frente, compreendi que Viktor queria que eu saísse de fininho para encontrá-lo no Hôtel Battant-Doré, na noite seguinte. Ele estava no mesmo quarto em que havia morado muitos anos antes. Disse que madame Trottoir, a dona do hotel, contara-lhe que eu fora forçada a me casar com o pior criminoso de Paris, Claude Clichê. Eu estava tão nervosa que tremia em frente à porta dele. Então bati. E, quando ele abriu, lancei-me em seus braços. Foi como se nunca tivéssemos nos separado! – Juliette fechou os olhos e sussurrou, encantada: “Ahh!”
– Ahh! – sussurrou Lise, igualmente fascinada.
– Viktor queria fugir comigo, por isso tive de explicar que Clichê estava ainda mais poderoso, mais rico, e tinha mais sacos de cimento do que nunca. Iria até o fim do mundo para nos encontrar se fosse preciso e, no final, acabaria nos encontrando. Foi então que Viktor teve uma ideia maluca, maluca mesmo...
– Qual?
– Usar a banheira de viagem no tempo do doutor Proktor.
– Banheira de quê?
Quando Juliette ia responder, alguma coisa atraiu sua atenção do outro lado da rua.
– Temos de sair daqui, Lise.
– O que foi?
– Hipopótamo à vista. – Juliette colocou os óculos escuros e deixou umas moedinhas na mesa. – Vamos. Temos de nos esconder em algum lugar.
Lise seguiu o olhar de Juliette e percebeu dois homens de aspecto hipopotesco à espreita.
– Bumbão! – falou Lise, correndo atrás de Juliette, que caminhava a passos largos pela calçada. – Temos que avisar Bumbão!
– Siga-me – disse Juliette, entregando para Lise um pequeno papelzinho grosso que parecia um bilhete e voltando a descer uma escada que parecia levar para o subsolo.
Era mesmo um bilhete e as escadas levavam mesmo para o subsolo.
– Esse é o metrô – disse Juliette entrando em um salão subterrâneo e colocando os dois bilhetes em uma máquina de metal amarela para empurrar as barras giratórias. Correram por túneis úmidos e frios e desceram escadas que levavam mais e mais para o subsolo, até chegarem a uma plataforma cavernosa e sepulcral. O trem parou e abriu as portas. Ambas correram para dentro. Enquanto esperavam as portas se fecharem, ouviram baques distantes, como se algo pesado corresse na direção delas. Juliette não precisava explicar a Lise, mas fez questão de dizer:
– São passos de hipopótamo.
Lise manteve o olhar fixo nas escadas. Primeiro, viu pés de hipopótamo, depois corpos e rostos de hipopótamo. Tinham parado de correr e, agora, olhavam ao redor. Um deles gritou alguma coisa e apontou para o trem. Na direção de Lise. Ela se abaixou com rapidez e grudou o olhar nas portas corrediças, ainda abertas.
– Fechem, fechem! – implorou em um sussurro.
Voltou a escutar passos pesados de hipopótamo.
Uma voz metálica disse algo pelo alto-falante, e Lise ouviu – até que enfim! – o ruído das portas se fechando. Ouviu gritos raivosos, batidas na lateral do trem e um soco violento que estilhaçou o vidro da janela.
O trem começou a se mover lentamente. Ela olhou para cima. A janela fora tomada por um tecido branco. Do outro lado, um rosto zangado a encarava, mas não era de hipopótamo. O rosto tinha olhos esbugalhados e beiços de lesma, grossos e úmidos, sob um bigodinho fino. Viam-se suspensórios largos em seus ombros. Juliette não precisava explicar a Lise, mas disse mesmo assim, em um sussurro trêmulo de pavor:
– Claude.
Capítulo 8.
Bumbão conhece Juliette
e vice-versa
JULIETTE OLHOU, BOQUIABERTA, para o menininho ruivo que acabara de abrir a porta para ela e Lise, não apenas porque o menininho – que devia ser o Bumbão de quem Viktor falava – parecia ainda menor visto de cima, mas também porque estava ensopado e minimamente vestido com uma toalha na cintura e um prendedor de nariz azul. E o mais estranho é que dissera “Bonjour, madame” (que significa “Bom dia, senhora”, em francês) com espantosa naturalidade e uma pronúncia perfeita.
– Je suis Juliette Margarine – disse a mulher. – Et tu es Bumbão? – Também era francês e queria dizer: “Eu sou Juliette Margarina. E você é o Bumbão?”
– Oui, madame Juliette – respondeu Bumbão em uma voz nasalada. Fez uma reverência e abriu a porta para as duas passarem.
Juliette e Lise se apressaram a entrar. Lise trancou a porta rapidamente enquanto Juliette se posicionava na janela para espreitar a rua lá embaixo.
– Os hipopótamos de Clichê estão nos seguindo – explicou a menina. – Conseguimos despistá-los, mas tenho certeza de que vão voltar. Aquele homem sentado no saguão, lendo jornal, parecia estranhamente hipopotesco.
– Excuse-moi? – falou Bumbão.
– Depois eu explico. Vista-se logo. Temos que dar o fora daqui.
Bumbão parecia um ponto de interrogação em miniatura, todo molhado, com bolhas de sabão no cabelo.
– Qu’est-ce que tu dis là? – perguntou naquele tom nasalado.
– Pare com isso! Não temos tempo para essa bobagem – retrucou Lise, irritada, e arrancou o prendedor de nariz de Bumbão.
– Então me processe, espertalhona. Não entendi nada do que falou.
– O que você não entendeu? – perguntou Lise.
– Opa, essa frase eu entendi! – respondeu Bumbão.
– Já era hora – murmurou Lise, que tinha começado a enfiar seus pertences na mochila. – Juliette vai nos levar para outro hotel. Claude Clichê e seus hipopótamos andaram nos espionando. Colocaram o Hôtel Battant-Doré sob vigilância, só porque ela foi vista aqui algumas vezes.
– Foi por isso que eu não quis entrar no hotel para falar com vocês – explicou Juliette. – Sabia que haveria sempre um hipopótamo plantado no saguão, para o caso de eu aparecer. Então me escondi no edifício do outro lado da rua e esperei vocês saírem para fazer contato. Acho que deixei Lise um pouco assustada.
– É, mas só um pouco – falou a menina. – Vamos, Bumbão. O hipopótamo do saguão nos viu. Devem estar vindo para cá.
– Claro, claro. Deixe-me pensar por um momento – disse Bumbão, olhando fixamente para as roupas em cima da cama. – Vejamos. Primeiro a calça, depois os sapatos. PRIMEIRO a calça, DEPOIS os sapatos. Isso mesmo.
Vestiu a calça. Depois, os sapatos.
– Hum, e as meias? – perguntou Lise.
– Droga! – resmungou Bumbão, chutando os sapatos para longe e colocando as meias.
– O que andou aprontando, hein? – perguntou Lise.
– Tomei banho – respondeu Bumbão. – E dancei cancã no Moulin Rouge. Uma das dançarinas me achou bonitinho.
– Corta essa! – retrucou Lise.
– É verdade – insistiu Bumbão. – Tudo o que fiz foi afundar na banheira. Depois, quando voltei à superfície, estava no Moulin Rouge. E era estranho, porque todos usavam roupas de uma época antiga.
– Nunca se cansa de inventar histórias? – perguntou Lise, fechando um dos compartimentos da mochila. Estava pronta para partir.
– E lá estava eu – continuou Bumbão. – Nuzinho, como no dia em que vim ao mundo, de frente para uma plateia enorme e ao lado de oito dançarinas de cancã belíssimas. Puxa, que vergonha!
Lise notou que Juliette ria tanto, que o corpo chegava a sacudir enquanto vigiava a rua pela janela.
– Então pulei de volta na banheira e afundei. Segurei a respiração e desejei voltar para este quarto de hotel, aqui e agora. E adivinha só o que aconteceu? Quando vim à tona, estava de volta, como se nada tivesse acontecido!
– Deve ser porque nada aconteceu – falou Lise. – Foi só excesso de vento que entrou nessa sua cabeça oca. Mas, enquanto você sonhava, aconteceu muita coisa no mundo real. Vamos logo!
Antes de guardar as coisas, Bumbão tirou de dentro da mochila um potinho todo furado e o colocou no bolso.
– O que é isso? – perguntou Lise, ríspida.
– É uma sete-patas peruana sugadora de cérebro.
– O quê? Não me diga que trouxe...?
Bumbão deu de ombros.
– Ela parecia tão solitária no porão, sem o professor para lhe fazer companhia, longe das amigas peruanas. Sabe como é... Resolvi chamá-la de Perua. Algum problema? Não tínhamos concordado em trazer coisas que começassem com a letra “P”?
– Acho que sim – resmungou Lise. – Vamos logo com isso! E pare de inventar histórias.
– Não inventei história nenhuma...
– Ah, não? Como fez para se comunicar com a dançarina de cancã que achou você bonitinho?
– Aprendeu a falar francês de uma hora para outra?
Foram interrompidos pela voz calma de Juliette, que continuava parada junto à janela:
– Ei, gente! Tenho boas e más notícias.
Bumbão e Lise voltaram-se para ela.
– A boa notícia é que Bumbão não precisa se apressar. A má notícia é que os hipopótamos cercaram o hotel, portanto não vamos a lugar nenhum.
– Oh-oh! – falou Lise, baixinho.
– Oh-oh! – repetiu Bumbão.
– E agora, o que vamos fazer? – perguntou Lise. – Os hipopótamos vão encher sacos de cimento, amarrar no nosso tornozelo e nos jogar no Sena.
– Como é que é? – protestou Bumbão. – Sacos de cimento? Que falta de criatividade! Se é para afundar no Sena, que seja com sacos de batatas!
– Silêncio, crianças – pediu Juliette. – Acho que podemos escapar. Mas vocês têm de prestar muita atenção. Combinado?
Bumbão e Lise concordaram. Fecharam a boca e observaram Juliette atentamente, as orelhas inclinadas em um ângulo estranho, como para aguçar a audição. Melhor assim, pois Juliette estava prestes a explicar o que acontecera com Bumbão na banheira, como aprendera a falar francês de uma hora para outra, por que o professor desaparecera, e como Bumbão e Lise poderiam – com um pouco de sorte – escapar dos hipopótamos e das profundezas do Sena.
Mas isso fica para o próximo capítulo.
Capítulo 9.
A banheira de viagem no
tempo do doutor Proktor
JULIETTE ABRIU A PORTA COM UM DOS PÉS e apontou dramaticamente para a banheira. Estava cheia até a borda de água e bolhas de sabão, embora a quantidade de bolhas tivesse diminuído depois do “Lá vou eu!”.
– Isto – disse Juliette, a voz trêmula de emoção – é uma banheira de viagem no tempo. Com ela, vocês podem ir para onde quiserem no infinito espaço-tempo. Tudo o que precisam fazer é enchê-la de água, esperar que borbulhe e então mergulhar. Pensem em um lugar, com data e hora. Depois de sete segundos, voltem à superfície e... voilà!, estarão nesse lugar! Podem ir para onde quiserem, mas não ao mesmo lugar mais de uma vez. Em outras palavras: só há uma chance de mudar o passado em determinado lugar.
– Legal! – exclamou Bumbão. – Quando foi que o professor inventou essa geringonça?
– Foi na época em que vivia em Paris, pouco antes de me conhecer. Na verdade, Viktor...
– Viktor?
– O doutor Proktor – explicou Lise. – Doutor Viktor Proktor.
– Viktor Proktor? – balbuciou Bumbão, incrédulo.
– Ele tinha que ter um primeiro nome, não é mesmo? – disse Lise.
– Claro... – concordou Bumbão. – Mas pensei que fosse “Doutor”. “Doutor” é um ótimo primeiro nome.
– Como eu ia dizendo... – continuou Juliette em um tom paciente –, Viktor inventou a banheira de viagem no tempo, e sua assistente, o Sabão Temporizador.
– Incrível – sussurrou Lise.
– Ah! – exclamou Bumbão, cruzando os braços sobre o peito. – Agora acredita em mim? Estava deitado no fundo da banheira, pensando no Moulin Rouge de 1909, quando, de repente...
– ... você foi transportado – Lise concluiu. – Puxa! Desculpe ter duvidado, Bumbão. Você sempre diz a verdade.
Bumbão semicerrou os olhos e se voltou para Lise com uma expressão gentil estampada no rosto.
– Não sou do tipo que guarda rancor, minha querida. Se amarrar meus cadarços todos os dias na próxima semana, acho que posso perdoá-la.
Lise lhe devolveu um olhar de esguelha.
– Muito bem, crianças. Entrem na banheira – pediu Juliette. – Clichê está a caminho.
– Tem certeza de que vai funcionar com duas pessoas dentro dela? – perguntou Lise, desconfiada, entrando na água cautelosamente atrás de Bumbão.
– Tenho – afirmou Juliette. – Viktor e sua assistente fizeram testes.
– Estranho... – comentou Lise. – Se o professor inventou esta maravilha faz tanto tempo, por que nunca contou ao resto do mundo?
– Boa pergunta! – falou Bumbão. – Ele poderia ter ficado rico e famoso.
– Porque a banheira de viagem no tempo só funciona com o Sabão Temporizador – disse Juliette. – E a assistente de Viktor era a única que sabia fabricá-lo. Eles brigaram, e Viktor não pôde patentear a invenção. Tudo o que restou do Sabão Temporizador Viktor levou em um pote para a Noruega, quando foi expulso da França.
– O pote estava no porão do professor, na rua dos Canhões – falou Lise.
Juliette disse que não com a cabeça e ergueu o pote cheio de pó vermelho-morango.
– Viktor trouxe um pouco do Sabão Temporizador quando veio a Paris dois meses atrás, e foi esse sabão que ele usou semanas depois, ao se deitar na banheira. Despediu-se de mim e voltou no dia 3 de julho de 1969 para a aldeia de Innebrède, nas montanhas de Provença, para mudar a história.
– Mudar a história? – perguntaram Bumbão e Lise em coro, ofegando de expectativa.
– É claro – respondeu Juliette. – O plano era viajar no tempo até Innebrède e esperar no posto de gasolina onde paramos para abastecer. Ele ficaria segurando uma placa enorme com palavras em norueguês, que ninguém além de nós entenderia, mandando-nos seguir em frente para abastecer na Itália, ainda que a gasolina fosse seis centavos mais cara.
– Faz sentido! – concordou Lise. – Isso evitaria muita confusão.
– Pois é – falou Juliette. – Se tivéssemos feito dessa maneira, não teríamos sido vistos pelos hipopótamos, teríamos nos casado em Roma, Clichê teria desistido de se tornar barão, Viktor e sua assistente teriam feito as pazes e patenteado a banheira de viagem no tempo e o Sabão Temporizador e teriam se tornado ricos e famosos. Assim, Viktor poderia ter saldado a hipoteca da família Margarina.
– Mas, se tudo tivesse dado certo, o professor já teria voltado, não é? – perguntou Lise. – O que será que aconteceu?
– Elementar – respondeu Bumbão. – O Sabão Temporizador acabou, e o professor não conseguiu voltar. Foi por isso que nos mandou o cartão-postal. Mas como fez para...
– Fui eu que mandei o cartão – esclareceu Juliette, despejando um pouco do sabão em pó na banheira.
– Você? – estranhou Bumbão.
– Na verdade, apenas repassei o cartão-postal. Costumava entrar de fininho no hotel todos os dias para ver se Viktor já tinha voltado. Sentava-me na banheira, mas nada acontecia. Até que um dia, de repente, um cartão subiu à tona e flutuou na superfície. Estava endereçado a Lise, um nome conhecido.
– E a Bumbão – acrescentou Bumbão.
– E a Bumbão – concordou Juliette.
– Então foi por isso que o cartão ficou meio amassado. Algumas palavras estavam manchadas e havia restos de sabão no selo – explicou Lise.
– Hum – refletiu Bumbão. – Tenho comigo que foi por isso que o cartão ficou amassado. Algumas palavras estavam manchadas e havia restos de sabão no selo.
Juliette colocou um pouco mais do pó vermelho-morango na água.
– Mexam até fazer bolhas. Vamos, os hipopótamos chegarão a qualquer instante.
Bumbão passou a agitar os braços como se batesse ovos para um omelete.
– Por que o professor não entrou em contato com a assistente para arranjar mais Sabão Temporizador? – perguntou.
Juliette soltou um suspiro.
– A assistente de Viktor era uma pessoa bem estranha. Depois que ele e eu começamos a sair, os dois brigaram. Não sei bem o que aconteceu, mas, quando Viktor sumiu, a assistente tentou se apropriar da banheira de viagem no tempo. Por sorte, ele não havia deixado nenhum esboço para trás. Guardava tudo na cabeça e era o único que sabia como a banheira funcionava. Além disso...
Juliette parou de falar, pois tinham ouvido um rangido do lado de fora, no corredor.
– O que... foi isso? – perguntou Bumbão.
Juliette estendeu a mão. Segurava dois Prendedores de Nariz Franceses.
– Coloquem isto e mergulhem.
– Não é preciso – falou Lise, mostrando que podia prender o nariz entre o polegar e o indicador.
Juliette abriu um dos prendedores e o soltou bem em cima do nariz de Lise, com um sonoro plop!
– Ai! – a menina protestou.
Juliette entregou a Bumbão o outro prendedor.
– Usem isso. Vão entender por quê.
Ouviu-se uma batida forte à porta.
– Mergulhem! Agora! – sussurrou Juliette, fechando a tampa do pote de sabão e o entregando a Lise.
– Você não vem? – a garota indagou.
– Não, eu fico.
– Por quê? – sussurrou Lise. – Clichê vai prender você de novo! Precisamos da sua ajuda para encontrar o professor!
Ouviu-se outra batida à porta, desta vez mais violenta.
Juliette se inclinou e beijou a testa de Lise e Bumbão.
– Viktor disse que vocês eram crianças espertas. Vejo que tinha razão. Apressem-se! Achem meu Viktor e voltem logo.
Ouviram um grito enfurecido no corredor do hotel e passos apressados. No instante seguinte, a porta envergou para dentro do quarto, como se alguém tivesse se lançado contra ela. Quando a porta voltou ao normal, as tábuas do corredor rangeram – alguém se preparava para uma nova investida.
Lise e Bumbão respiraram fundo e mergulharam nas bolhas de sabão.
Então se viram em um lusco-fusco aquático, cercados de silêncio.
Bumbão sentiu Lise apertar sua mão enquanto ele se concentrava. Naturalmente, o que mais desejava era voltar no tempo para o Moulin Rouge, para a dançarina de cancã que o achava bonitinho, mas não era possível viajar para o mesmo lugar mais de uma vez. Por isso deveria ir para... para onde mesmo? Ah, sim, para as montanhas da Provença. Dia 3 de julho... de 1969! Mais especificamente, para Inne... Inne... Como era o nome da aldeia que Juliette tinha mencionado? Era Inne... Começava com Inne... Inne...
Não aguentava mais segurar a respiração.
Inne... Inne...
Preciso respirar!
Inne... DROGA!
Bumbão se levantou, buscando o ar.
Estava de pé na banheira em pleno campo florido. O sol brilhava, as abelhas zumbiam e os pássaros gorjeavam ao redor. Por todos os lados, viam-se montanhas muito altas. Do outro lado do campo, avistou um grupo de pessoas sentadas à beira da estrada em cadeiras dobráveis, desfraldando bandeiras francesas enquanto torciam, brindavam batendo copos e incentivavam as bicicletas que passavam. Era uma bela manhã de verão no interior. Só duas coisas incomodavam Bumbão. Uma delas era que Lise não estava com ele. A outra era que um touro enorme, com chifres que mais pareciam presas de um elefante congolês tsé-tsé, vinha em sua direção.
Capítulo 10.
A Volta da França
O TOURO ERA DO TAMANHO DE UM PEQUENO TRATOR, mas incrivelmente mais rápido. Bumbão sabia que, por mais que suas pequenas pernas corressem, o touro o alcançaria. O chão tremia devido à força do animal, e podia ouvir, de onde estava, sua terrível respiração. Abelhas e borboletas voaram para longe, amedrontadas, e Bumbão passou a correr pelo campo de flores que, segundos atrás, parecera tão belo e pacífico.
– Socorro – murmurou Bumbão, quase sem emitir ruído algum. Sabia que ninguém iria ajudá-lo e precisaria de fôlego para alcançar a cerca antes que a montanha de músculos chifruda que o perseguia o atropelasse. Gritou por socorro outra vez, bem baixinho, antes de admitir que, por mais que tivesse fôlego, jamais chegaria à cerca antes do touro. Provavelmente seria transpassado pelos chifres como uma linguiça no espeto. Então resolveu tomar impulso e saltar, abraçando os joelhos e gritando (já quase sem fôlego): “Lá vou eu!”
E, com isso, o menininho desapareceu. O touro parou e olhou para a encosta coberta de capim-de-burro, begônias, lírios-do-vale e outras plantas que crescem nos campos franceses e que o touro não saberia classificar. Vasculhou toda aquela salada com o chifre, sentindo-se cada vez mais zangado. Onde estava o bezerro desmamado?
Bumbão foi ziguezagueando pela grama e só tornou a se levantar quando teve certeza de que tinha passado por baixo da cerca. Virou-se então para o touro, ainda parado do outro lado e farejando.
– U-huu! Ei, Bife Malpassado!
O touro ergueu a cabeça e encarou Bumbão, que levou o polegar à têmpora e agitou os dedos, como quem diz “Você não me pega...”. Depois botou a língua para fora e fez tremer o beiço inferior. O touro respondeu com um bramido irritado. Expeliu o ar com força pelas narinas dilatadas, fincou as patas no chão e baixou a cabeça. “Jovenzinho malcriado”, pensou. E disparou. Mas não chegou a atingir Bumbão. Segundos depois, os enormes chifres colidiram com uma banheira idiota que, por algum motivo, aparecera no meio do campo florido. A banheira foi lançada para o alto, girou e caiu virada para baixo, derramando toda a água e as bolhas de sabão.
Bumbão ia dar uma gargalhada, mas, em vez disso, sentiu o corpo enrijecer. Procurou desesperadamente nos bolsos, porém só encontrou coisas pequenas que começavam com a letra “P”: uma passagem de ônibus, um palito de dentes e um punhado de Pó de Pumponauta em um saquinho plástico. Mas nada do que procurava. É claro! O pote de Sabão Temporizador estava com Lise. Tudo o que tinha em mãos agora era uma banheira de viagem no tempo vazia! E agora, como faria para voltar?
Bumbão enfiou o dedo indicador na orelha, girou e puxou. Plop! Mas nem isso pareceu funcionar. Seu cérebro não tinha respostas. Estava perdido. E, desta vez, não havia a menor graça.
Embora alguém estivesse rindo.
Bumbão se virou para ver de onde vinham as risadas. E avistou um homem baixinho, magro, deitado de barriga para cima com um pedaço de grama no canto da boca. Usava uma camiseta azul de ciclista com número na frente.
– Gostei da corrida – riu-se o homem. – Devia praticar ciclismo, filho.
– Obrigado – falou Bumbão. Como era um otimista incansável e adorava uma boa conversa, sua perspectiva sobre os fatos começou a melhorar aos poucos. – Por que os touros são tão esquentadinhos? – perguntou. – Por acaso fiz alguma coisa para aquele amontoado de bife?
– Cabelo vermelho – respondeu o homem, e apontou para a cabeça de Bumbão. – Os touros ficam doidinhos quando veem algo vermelho.
Bumbão inclinou a cabeleira vermelha para o lado e encarou o homem.
– Hum, e por que cargas d’água está falando em norueguês?
O homem riu de novo.
– Estou falando em francês, meu caro. E você também.
– Estou?
– Você é um palhaço muito engraçado. Como se chama?
– Bumbão. Mas não sou palhaço.
– Não é? – comentou o homem. – Desculpe, Bumbão. Pensei ter visto um nariz de palhaço.
Bumbão apalpou o rosto. Tinha se esquecido do Prendedor de Nariz Francês. De repente, a ficha começou a cair. Removeu o prendedor e iniciou sua experiência:
– Ei, homem de camiseta azul, como se chama?
O homem o observou com cara de quem não estava entendendo nada.
– Quesque-tu-a-dí?
– Ah-ah! – gritou Bumbão, triunfante, quando a ficha enfim caiu por completo. Tinha compreendido tudo. Bem, quase tudo. Pelo menos, havia entendido o que Juliette quisera dizer com: “Usem isso. Vão entender por quê.” É que aquele prendedor de nariz era um autêntico Prendedor de Nariz Francês e, como tal, falava francês, ou melhor, fazia a pessoa que o usasse falar francês. Era mais uma engenhosa invenção do professor!
Bumbão, como de costume, ficou tão empolgado que se esqueceu dos problemas. Colocou o prendedor de nariz e perguntou como o homem se chamava e o que fazia deitado na grama enquanto os outros ciclistas pedalavam freneticamente como se quisessem tirar o pai da forca.
– Meu nome é Eddy, e o pneu da minha bicicleta furou três vezes hoje. – Apontou para o outro lado da estrada, onde uma bicicleta estava caída no chão. – Desisti. A linha de chegada fica no alto daquela montanha.
Eddy apontou de novo, e Bumbão teve de inclinar a cabeça para trás a fim de enxergar o pico nevado que se erguia à frente deles.
– E você, Bumbão?
– Eu vim do futuro – o menino explicou. – Acho que cheguei na hora certa, mas no lugar errado. Em que ano estamos? Que lugar é este?
O homem soltou uma risada alta.
– Obrigado, Bumbão. Pelo menos, você me fez rir!
– Estou falando sério.
– Se é assim... – disse Eddy. – Estamos em 1969, e o nome deste lugar é Innedròga. Onde era para você estar?
– Innedròga? – resmungou Bumbão, coçando a costeleta esquerda. – Sei que o lugar se chamava Inne... alguma coisa, só não lembro o resto. Lise, com certeza, já está lá.
– Lise?
– É. Estamos procurando o doutor Proktor. Talvez Lise já o tenha encontrado; talvez só estejam esperando por mim. Preciso falar com eles, senão vou ficar preso aqui, em 1969.
– Isso é ruim – concordou Eddy. Bebeu um pouco de água e passou o cantil para Bumbão. – O ano está sendo péssimo.
– Está? – perguntou Bumbão.
– A cada corrida, um pneu furado – explicou Eddy. – Este ano está sendo tão ruim para mim quanto 1815 foi para Napoleão.
– Mil oitocentos e quinze? Napoleão?
– Não se lembra?
Bumbão pensou um pouco.
– Acho que ainda não era nascido.
– Estou falando das aulas de História, seu bobo! Em 18 de julho de 1815, Napoleão liderou as tropas...
– ... pelos Alpes? – arriscou Bumbão.
– Não – respondeu Eddy, afastando uma abelha tamanho família. – Foi nesse ano que ele levou uma surra na Batalha de Waterloo. Sei disso porque Waterloo fica a minutos da Eddycicletas, a bicicletaria do meu pai, na Bélgica. Um país completamente plano. Agora que desisti de ser ciclista, acho que vou voltar para casa e ver se arrumo emprego por lá.
– Boa ideia – concordou Bumbão, tomando um gole d’água. – Qual é a graça de subir e descer montanhas de bicicleta? Parece muito cansativo.
– Qual é a graça? – Eddy encarava Bumbão como se o menino o fizesse recordar de algo há muito tempo esquecido.
– É – disse Bumbão, bebendo mais água. Toda aquela viagem no tempo o deixara com uma sede fora do comum.
– É a Volta da França – respondeu Eddy. – O vencedor desta etapa recebe prêmios, ganha beijos de moças bonitas e é visto por todos na França.
Bumbão refletiu melhor e decidiu que aquilo realmente fazia sentido, sobretudo a parte das moças bonitas. E ser visto por todos na França também não era um mau negócio...
– Ei! – gritou Bumbão. – Você disse “ser visto por todos na França”?
– Isso mesmo – respondeu Eddy. – Todas as televisões ficam sintonizadas na Volta da França. É impossível alguém não assistir.
– E se a pessoa não tiver televisão em casa?
– Eles colocam televisões em todos os cafés, restaurantes e lojas. Merde! Você precisa parar de me perguntar sobre essas coisas, Bumbão! Agora fiquei com vontade de montar na bicicleta e ganhar essa porcaria de corrida.
– É exatamente isso que você vai fazer! – gritou Bumbão. Correu até Eddy e o colocou de pé.
– Como assim? – perguntou Eddy.
– Vou ajudá-lo a consertar o pneu, depois vamos explodir feito um pum montanha acima, para sermos vistos na TV.
– Nós dois? – perguntou Eddy, enquanto Bumbão o empurrava pelas costas.
– Isso mesmo. Quero aparecer na entrevista. Vou pedir a Lise e ao doutor Proktor que venham me buscar para que possamos voltar para o tempo de que venho.
– Você diz cada coisa! – resmungou Eddy, pegando o kit de reparos. – Mas, pelo menos, me devolveu a vontade de ganhar.
Dois minutos depois, duas ovelhas ruminantes ergueram a cabeça quando uma bicicleta passou por elas, na estrada, do outro lado da cerca.
– Você viu? – uma delas perguntou à outra. – Duas pessoas na bicicleta. Não é trapaça?
A outra piscou os olhos, sonolenta.
– Béééé! Trapaça nada. O peso extra até dificulta na subida. E estão muito atrás.
– A questão não é essa – replicou a primeira. – Será que isso vale?
A outra ruminou um pouco enquanto pensava na pergunta.
– Não sei – respondeu por fim. – Sou uma ovelha. Não somos muito entendidas no assunto.
Eddy vinha de pé na bicicleta, pedalando o mais rápido que podia, não só porque a posição era confortável, mas também porque o selim estava ocupado por um minúsculo rapazinho de cabelo vermelho com um Prendedor de Nariz Francês, que lhe berrava ao ouvido:
– Vai, Eddy! Mais rápido, Eddy! Você é o melhor, Eddy!
E quando Eddy diminuía um pouco o ritmo:
– Não pare, Eddy! Quer perder? Quer que esta seja sua Waterloo, Eddy? Quer consertar pneus em tempo integral, Eddy? Você pode mais que isso! A dor é sua amiga!
E, verdade seja dita, aquilo funcionava. Logo começaram a ultrapassar os outros competidores, que olhavam, espantados, para a dupla de ciclistas com um menininho aos gritos.
– Força, Eddy! Eles estão mais cansados que você! Pense nas moças bonitas, Eddy. Elas aguardam lá em cima com seus lábios macios. Lábios macios, Eddy! Mais rápido, mais rápido, senão vou lhe dar um cascudo! E não vai ser de brincadeira, viu? Vai ser pra valer, um cascudo de lenhador!
Eddy, que não sabia o que era um cascudo, mas tampouco pretendia descobrir, pedalava com toda a força. A língua pendia para fora, a respiração ofegante começando a produzir um estranho chiado. Mas continuavam passando os ciclistas, um por um, e já tinham subido um bom pedaço da montanha. A neve se acumulava à sombra. E, embora as roupas de Bumbão tivessem secado à luz do sol, sentia tanto frio que os dentes batiam, enquanto entoava sua sinfonia de gritos de incentivo mesclados a ameaças. Até que um Eddy resfolegante o interrompeu:
– Não consigo...
– Como é que é? – gritou Bumbão por entre os dentes que batiam. – Quer levar um cascudo, seu waffle belga?!
– A linha de chegada está muito próxima – arquejou Eddy. – Não vamos conseguir passar os outros.
– Bobagem! – falou Bumbão. – Eu disse que íamos explodir feito um pum montanha acima, e é o que vamos fazer!
– Pode explodir feito um pum à vontade... – resmungou Eddy. A língua quase encostava no guidão, e a bicicleta agora balançava ameaçadoramente. – Veja como a subida é íngreme.
Bumbão lançou um olhar para a estrada. Era tão íngreme que mais parecia uma parede. E, lá em cima, bem à frente, via-se a camiseta amarela do primeiro colocado.
– Hum – murmurou Bumbão.
– “Hum” o quê? – arquejou Eddy.
– Vou soltar um pum. – Bumbão tirou um saquinho plástico do bolso e despejou o conteúdo na boca.
– O que é isso? – perguntou Eddy.
– É uma coisinha que gosto de trazer comigo e que começa com a letra “P” – explicou Bumbão, soltando um arroto. – Segure bem firme. Seis, cinco, quatro, três, dois...
– Segure bem firme...?
Eddy não teve chance de completar a frase. Houve uma explosão tão violenta que sentiu a cera de ouvido ser empurrada para dentro da cabeça, e os olhos pareceram saltar das órbitas. Então se ouviu um estrondo, como o de um foguete decolando. A comparação com um foguete era bastante adequada, já que estavam subindo a montanha a uma velocidade vertiginosa, exatamente como um foguete!
– Iupi! – exclamou Bumbão na orelha do companheiro.
– Iupi! – exclamou Eddy quando ultrapassaram os outros competidores, restando apenas o ciclista de amarelo. E lá estava a linha de chegada. O primeiro colocado só tinha de percorrer alguns metros. – Força, Bumbão! – gritou Eddy, manobrando a bicicleta o melhor que podia para não despencar pela encosta da montanha. – A todo vapor! Senão vai levar um cascudo!
– Estou tentando – grunhiu Bumbão, o rosto vermelho.
– Mais rápido, Bumbão. Não vamos conseguir! Pense nos lábios macios!
Bumbão pensou. Pensou que, se perdesse a corrida, nunca mais veria Lise nem o doutor Proktor. Esse pensamento fez seu intestino revirar em um último esforço, e deixou escapar um pum para ganhar velocidade. As pessoas ali presentes discutiriam o episódio nos anos seguintes, tendo testemunhado um fantástico sprint nas montanhas da Provença, na Volta da França de 1969, quando o legendário Eddy e seu estranho passageiro de cabelos vermelhos, cujo nome ninguém lembrava, atravessaram a linha de chegada como um foguete. Alguns diriam que a bicicleta levantara voo. Outros, que tinham visto uma fumaça branca saindo da calça do menino empoleirado no selim. Embora parecesse impossível, no finalzinho da prova, Eddy e o companheiro haviam ultrapassado o ciclista de amarelo e vencido por um milionésimo de segundo. Fora a primeira vitória da carreira de Eddy, que mais tarde ficaria famoso por vencer corridas mundo afora e diria, em suas memórias, que a vitória na Provença fora fundamental para ganhar confiança e continuar participando das competições.
Mas tudo isso estava no futuro (ou no passado, como preferir). Agora (ou antes de agora), Eddy e Bumbão comemoravam a primeira colocação. Estavam sendo carregados pela multidão em polvorosa até o pódio, onde cada um receberia uma medalha, um ursinho de pelúcia e um beijo no rosto – ofertado por lábios macios. Então alguém apareceu com um microfone, e Bumbão imediatamente se adiantou:
– Oi – disse. – É para a TV?
– É – respondeu a mulher com o microfone. – Não gostaria de contar ao povo francês quem é você?
– Claro que sim! – disse Bumbão. – Onde está a câmera?
– Ali. – A mulher apontou para a enorme câmera apoiada na carroceria de um caminhão. Bumbão virou-se para ela e se endireitou.
– Oi, povo francês – começou. – Eu sou Bumbão, e acho que deveriam guardar esse nome. Se algum de vocês se chamar Lise ou doutor Proktor, sugiro que ouça com atenção. Eu, Bumbão, falo ao vivo do alto de uma montanha chamada...
– Já sabemos o nome da montanha – disse a mulher do microfone, um tanto impaciente. – O senhor entrou no mundo do ciclismo como um cometa, messiê Bumbão. E agora, pretende permanecer nesse mundo?
– Não – respondeu Bumbão. – Na verdade, gostaria de sair daqui o mais rápido possível. Então, se Lise ou o doutor Proktor vierem me buscar, vou aguardá-los no topo da... Como se chama esta montanha?
– Mõ Blã – sussurrou Eddy em sua orelha.
– Mõ Blã – gritou Bumbão. – Para ser mais preciso, no...
– Hotel Mõ Blã – murmurou Eddy.
– Hotel Mõ Blã – repetiu Bumbão.
– Eu e meu amigo vamos ficar na suíte da torre – disse Eddy para a câmera. – O vencedor sempre fica na suíte da torre. Venham logo, Lise e doutor Proktor!
Terminada a entrevista, Eddy e Bumbão foram conduzidos com rapidez à suíte da torre, onde receberam massagem e tomaram um agradável banho quente de banheira. Um alfaiate foi ao quarto, tomou as medidas de Bumbão e balançou a cabeça, rindo, antes de desaparecer. Quando voltou, horas mais tarde, trouxe terno, camisa e sapatos para Bumbão usar no jantar da vitória.
– Legal! – falou Bumbão ao se olhar no espelho. – Será que vai ter cancã?
Eddy riu e balançou a cabeça, exatamente como o alfaiate havia feito.
– A próxima etapa começa amanhã de manhã, às oito em ponto. Vou comer quatro batatinhas fritas, depois vou para a cama.
– Estraga prazeres! – queixou-se Bumbão, sapateando com seus novíssimos calçados de verniz no piso de mármore. – Vamos para a festa!
O jantar da vitória aconteceu no restaurante do hotel Mõ Blã. Havia muita gente elegante, com traje de festa, querendo cumprimentar Bumbão, mas nada de cancã. Alguns ciclistas indagaram sobre o pó que ele colocara na boca, perguntando se poderiam comprar uma pequena quantidade dele. E, quando Bumbão negou com a cabeça, gritaram: “Seu trapaceiro!”
Na verdade, a festa estava chata. Bumbão mal conseguia manter os olhos abertos quando começaram a servir a entrada. Escorregou na cadeira, sem ser visto, e desapareceu sob a mesa. Eddy descobriu que Bumbão dormia. Após três tentativas de acordá-lo, pegou-o no colo e subiu as escadas até a suíte da torre. Deitou-o na cama maior e se arrastou para a menor. Bocejou duas vezes e apagou as luzes.
Bumbão acordou e abriu os olhos. Uma faixa de luz entrava pela fresta entre as cortinas, iluminando o rosto sardento. Espreguiçou e percebeu que alguém colocara uma camisetinha amarela minúscula na mesa de cabeceira. Nela estava escrito: “Volta da França, 1969.” Ao lado, havia um bilhete:
Bom dia, Bumbão! Obrigado pela ajuda. Não quis acordá-lo. Então, quando você ler isto, já terei saído para disputar a próxima etapa. Espero que Lise e o doutor Proktor não demorem.
Seu eterno amigo,
Eddy.
Bumbão espreguiçou mais uma vez, sentindo-se forte e bem-disposto. Mas, verdade seja dita, tudo o que desejava era continuar dormindo. Pensou um pouco, bocejou e voltou a fechar os olhos. Então se lembrou do café da manhã. Nesse momento, ouviu a porta se abrir silenciosamente e sentiu o aroma de comida. Sorriu, imaginando os pratos que seriam trazidos para ele em um carrinho. Nem precisou abrir os olhos para ver o carrinho. Dava para ouvir o rangido das rodas mal lubrificadas.
Rodas mal lubrificadas...
Os olhos de Bumbão se abriram em um estalo, e ele fitou o teto. Voltara a sentir aroma de comida. Mas não era de bacon com ovos. Era... de carne podre, e também de meias sujas.
Levantou-se da cama assim que a porta bateu e a chave girou na fechadura. E lá estava ela: a mulher alta de casacão preto e perna de pau.
Os lábios estavam abertos em um sorriso estranhamente largo, que exibia uma fileira de dentes brancos afiados. Em uma das mãos, segurava uma pistola comprida que parecia ter sido roubada de um museu. A voz era rouca como o vento no deserto:
– Bom dia, Bumbão. Onde está ele? Onde está o doutor Proktor?
– N-n-não... – gaguejou Bumbão. – N-não...
Não restava dúvida. A gagueira voltara.
Capítulo 11.
A ponte da Provença
LISE SE ERGUEU NA BANHEIRA, as roupas pingando, e apertou os olhos para enxugar as bolhas de sabão. Olhou ao redor. A primeira coisa que percebeu foi que estava cercada por montanhas altas e sombrias, que encobriam o sol; a segunda foi que a banheira estava em uma encosta coberta de grama; a terceira, que estava de frente para uma ponte de aço cinzenta e enferrujada; e a quarta: estava completamente sozinha. Ou seja, Bumbão havia desaparecido.
– Bumbão! – gritou Lise.
– Bumbão! – respondeu o eco, primeiro de um lado da montanha, depois de outro, e de outro.
Saiu da banheira e caminhou até a saliência rochosa. Um desfiladeiro se abria sob ela e a ponte.
– Bumbão!
– Bumbão! Bumbão! Bumbão! – repetiram os ecos, sumindo aos poucos.
– Ei!
O “Ei!” veio da ponte. Lise protegeu os olhos contra a luz e se encheu de esperança quando viu alguém acenar para ela do outro lado. Talvez fosse Bumbão? Ou o professor?
– Ei! – gritou Lise em resposta, também acenando e descendo a encosta até a estrada. Ao descer, ouviu um barulho, o zumbido de um motor se aproximando. Então percebeu que a voz do outro lado da ponte gritava alguma coisa. Parou para ouvir melhor.
– Corra! Eles estão vindo!
A voz não se parecia nem com a de Bumbão nem com a do doutor Proktor. Era uma voz de garota. Lise percebeu que o ruído do motor ficava mais alto. Era melhor fazer o que a voz mandava. E foi o que fez. Saiu correndo. Correu tanto quanto podia, o ruído do motor tornando-se mais alto à medida que se aproximava. Quando Lise chegou ao final da ponte, viu que a garota era pouco mais nova do que ela. Tinha cabelos negros, olhos castanhos e vestia um poncho vermelho. Pegou Lise pela mão e a puxou para a vala que margeava a estrada, justamente quando uma motocicleta apontava na esquina.
Lise logo reconheceu a motocicleta. Tinha um sidecar, e o piloto era alto e magro, usava óculos de motoqueiro, capacete de hóquei e um cachecol extraordinariamente comprido, que tremulava atrás dele, desaparecendo curva adentro. Foi então que a ponta do cachecol apareceu. Uma mulher vinha se segurando nela, arrastada como se deslizasse em um esqui. Os sapatos soltavam uma fumaça escura de sola queimada. Lise abriu a boca, incrédula. Já sabia o que ia acontecer!
E foi exatamente o que aconteceu. Só que aconteceu muito mais rápido do que Lise imaginara ao ouvir a história de Juliette: a mulher vinha deslizando pela margem da estrada quando se lançou contra a placa de sinalização, o cachecol enroscando-se ali. O piloto foi puxado para trás e caiu com o cachecol preso no pescoço. Enquanto isso, a mulher dava voltas cada vez mais curtas na placa. Faíscas voaram da motocicleta até que ela enfim parou do outro lado da ponte, e o silêncio voltou às montanhas.
– Juliette! – Lisa gritou para a mulher, que finalmente largou o cachecol e estava obviamente muito tonta depois de todas as voltas que deu, porque saiu cambaleando sobre a ponte sem prestar a menor atenção ao grito de Lise.
– Juliette! – gritou Lise para a mulher, e fez menção de correr atrás dela. Mas foi impedida pela garota do poncho.
– Ele pediu para ficarmos aqui – disse ela.
– Ele quem?
– O doutor Proktor – respondeu a garota.
O corpo de Lise enrijeceu.
– O doutor Proktor esteve aqui?
– Esteve – respondeu a garota. – E pediu que deixássemos as coisas acontecerem naturalmente. Qualquer interferência pode estragar os planos dele. Esconda-se, os hipopótamos estão vindo!
Foi só quando ouviu a palavra “hipopótamo” que Lise percebeu o barulho de outro motor e previu o que aconteceria, tendo em mente a história de Juliette. A limusine preta fez a curva e manobrou devagar ao passar pela ponte, quase esbarrando nas laterais.
Lise permaneceu agachada e viu a mulher na ponte ajudando o homem a ficar em pé.
– A qualquer momento, o professor vai subir na motocicleta e fugir para a Itália – sussurrou Lise. – Juliette vai se entregar aos hipopótamos, será levada até Claude Clichê e obrigada a se casar com ele.
– Eu sei – replicou a garota e, quando Lise a encarou, perguntando-se como poderia saber tudo aquilo, ela acrescentou: – Ele me contou. De que tempo você vem?
– Do tempo do doutor Proktor. Como sabe que vim de outro tempo?
– Vi a banheira. Qual é seu nome?
– Lise. Lise Pedersen. Estou procurando o doutor Proktor. Você também veio de outro tempo?
A garota riu e balançou a cabeça.
– Sou daqui e de agora. Meu nome é Anna. Anna Showli.
– Que engraçado! – comentou Lise. – O nome da minha melhor amiga também é Anna. Ela mora em Sarpsborg, na Noruega. Meus pais acham que fui visitá-la. – Lise sentiu os olhos marejarem ao se lembrar do pai e da mãe.
Anna sorriu e fez um carinho confortador no rosto de Lise, embora parecesse pelo menos um ano mais nova. Por outro lado, se Lise voltasse para o seu tempo e encontrasse a Anna do presente, ela seria tão velha quanto a mãe de Lise.
– Está sozinha? – perguntou Anna.
– Pelo visto, sim – respondeu Lise. – Acho que Bumbão se esqueceu do nome do lugar. Às vezes, ele tem dificuldade para se concentrar.
A motocicleta na ponte deu partida e foi embora.
– Ei! – gritou Lise, levantando-se. – Doutor Proktor! Não vá embora!
– Psiu! – Anna falou, puxando Lise para baixo. – Aquele é o jovem doutor Proktor. Ele não entenderia o que você está dizendo.
– Ah, é? – perguntou Lise. – O que aconteceu com o velho doutor Proktor?
Anna suspirou.
– Ele partiu de novo.
– Mas esteve aqui? Você o conheceu?
Anna acenou que sim com a cabeça.
– Ele chegou à aldeia hoje de manhã. Estava mais ensopado que maiô de banho. Veio falar comigo porque os primos Trann haviam me jogado de novo no riacho de Innebrède.
– Os primos Trann?
– São dois garotos insuportáveis que moram no final da minha rua. Eles me derrubaram da bicicleta, tiraram minha mochila e encheram meus bolsos de pregos. Estão treinando para se tornarem hipopótamos.
– Puxa! – suspirou Lise.
– Mas acho que se assustaram com a cara de louco do professor. Pelo menos, foi o que pareceu. Até porque ele foi tirar satisfação com os dois, gritando em uma língua estrangeira e agitando os punhos. Os Trann fugiram, mas disseram que avisariam os pais. Então o professor me ajudou a pegar meus livros e materiais escolares. E, quando viu que eu tinha canetinhas coloridas, perguntou se poderia pegá-las emprestadas para escrever uma mensagem no posto de gasolina.
– Uma mensagem?
– É. Disse que queria deixar um aviso para si mesmo, que o alertasse para não parar no posto. Daí me contou toda a história.
– E você acreditou nele? – perguntou Lise, surpresa.
– Claro que não – riu-se Anna. – Ele me pareceu um professor legal, mas muito, muito maluco. Até me mostrou a banheira na qual dizia ter viajado no tempo. Estava largada no meio do ferro-velho dos hipopótamos. Aí eu ouvi o sino da escola ao longe e expliquei como ele poderia chegar ao posto de gasolina sem dar de cara com os Trann. Depois corri para não me atrasar para a aula.
– Entendo – falou Lise. – Mas por que não está na escola agora?
– Não consegui chegar lá. Quando virei a esquina, os pais dos Trann me aguardavam. Sacudiram-me e perguntaram sobre o estrangeiro maluco que havia ameaçado os adoráveis garotos. Fiquei tão assustada que contei tudo. Eles fizeram caretas estranhas quando mencionei o jovem professor que fugia de motocicleta com Juliette Margarina. Comentaram que devia ser o homem que o patrão, o senhor Clichê, procurava. Perguntaram se eu sabia onde o estrangeiro estava, mas fingi não saber de nada. Então me soltaram e começaram a discutir. Concordaram em alertar os outros hipopótamos contra estrangeiros suspeitos. E decidiram reforçar a área do posto de gasolina, uma vez que era ali que a maioria dos estrangeiros parava. Depois entraram na limusine e foram embora.
– O que você fez?
– Imaginei que o professor podia estar falando a verdade. Então corri o mais rápido que pude atrás dele. Puxa, como corri! Felizmente, consegui alcançá-lo. Ele estava escondido perto do posto de gasolina. Ficamos ali, à espreita, e vimos que a limusine já havia chegado e que os pais dos Trann conversavam com dois hipopótamos no posto.
– Isso explica a atitude que tiveram quando o professor e Juliette pararam lá – comentou Lise.
Os olhos de Anna se encheram de lágrimas.
– A culpa é minha, não é?
– Claro que não – respondeu Lise, e agora foi a vez dela fazer um carinho no rosto de Anna. – Como poderia saber que o professor não era apenas um maluco? Para ser sincera, às vezes até eu me pergunto isso...
Anna enxugou as lágrimas.
– O professor disse que o plano havia falhado, mas que tinha outro em vista.
– Ele deu uma dica do que era?
– Falou que só temos uma chance para mudar a história e que precisava fazer alguma coisa em outra época.
– Que época? – perguntou Lise.
– Ele disse que tinha uma ideia brilhante em mente.
– Que ideia?
– Esconda-se! – disse Anna.
A larga limusine havia dado ré para fora da ponte e, agora, manobrava na frente delas. Lise espiou com cautela por cima da vala e viu de relance um rosto pálido do outro lado das janelas escuras. Era Juliette. Em seguida, a limusine acelerou e desapareceu em uma nuvem de poeira.
– Que tipo de ideia? – repetiu Lise, tossindo.
– O professor queria voltar no tempo para falar com o engenheiro que havia construído a ponte, antes de ela ter sido construída, para convencê-lo a mudar a planta.
– Mudar? Por quê?
– Porque a limusine tem exatamente a mesma largura dos tanques americanos que cruzaram a ponte para libertar a França do domínio de Hitler na Segunda Guerra Mundial. Você mesma disse que ela quase esbarrou nas laterais, não foi?
– É verdade – concordou Lise.
– O professor disse que, se conseguisse convencer o engenheiro a desenhar a ponte um pouco mais estreita, a limusine não passaria, e os hipopótamos teriam de desistir da perseguição. Ele e Juliette estariam livres e viveriam felizes para sempre...
– Genial! – exclamou Lise. – Muito inteligente! Mas... mas como ele descobriu o nome do engenheiro e a data?
– Simples! Está escrito na placa, bem ali. – Anna apontou com o dedo, e as duas saíram da vala e caminharam até a placa onde o cachecol se enroscara.
– Projetada pelo engenheiro Gustave Eiffel em 1888 – leu Lise. – Concluída em 1894. Espera! Eiffel? Esse não é o cara que...
– Esse mesmo – respondeu Anna. – É o cara que projetou a Torre Eiffel. O que aconteceu foi isto: o professor decidiu fazer uma visita a Gustave Eiffel, em 1888. Despediu-se de mim, afundou na banheira e... voilà: desapareceu! Procurei-o na banheira, e foi então que percebi que talvez não fosse um maluco. Em vez de voltar para casa, vim para cá, pois queria conferir se o professor havia dito a verdade. E tudo o que ele disse que ia acontecer, aconteceu mesmo.
Anna voltou a ficar triste.
– Coitada da namorada do professor. Imagine ter que se casar com o canalha do Claude Clichê. – Deu um soco na palma da mão – Não acredito que aqueles juízes covardes de Paris tiveram a ousadia de inocentar o cafajeste! Que raiva! Todo o mundo faz o que ele manda.
– Infelizmente, não podemos fazer nada contra essa gente – lamentou Lise. – Mas, agora, tenho que procurar o doutor Proktor. Estou com o Sabão Temporizador que ele pediu – a menina bateu no bolso do casaco.
Anna foi em seu encalço. Lise saltara da vala e voltava às pressas ao local onde deixara a banheira de viagem no tempo. Quando chegaram lá, sentiu-se aliviada ao ver que ainda restavam algumas bolhas.
– Obrigada pela ajuda, Anna – Lise falou, entrando na banheira. – Você vai ver: no final, o que fez vai acabar ajudando a salvar o professor.
– Espero que sim – respondeu Anna. – Mas espero também que esteja errada quanto à outra coisa.
– Que outra coisa?
– Aquilo que falou, que não podemos fazer nada contra essa gente.
– Então prove o contrário – sugeriu Lise. – Boa sorte, Anna Showli.
– Boa sorte para você também, Lise Pedersen. Mande um alô ao professor quando encontrá-lo.
– Vou fazer isso, prometo. – Lise fez menção de apertar o nariz para mergulhar quando percebeu que ainda usava o Prendedor de Nariz Francês.
– Ei, o professor disse mais uma coisa – lembrou Anna. – Que eu devia tomar cuidado se a assistente dele aparecesse. Pelo visto, ela é capaz de rastrear as pessoas analisando resíduos de Sabão Temporizador e pode segui-las em qualquer época.
– É, tive a impressão mesmo de que essa assistente é uma peste – concordou Lise. – Agora, tenho que ir. Tchau!
– Mas... – começou Anna.
Foi tarde demais, porém. Lise já havia desaparecido em meio às bolhas.
– ... você nem me deixou terminar – balbuciou Anna, a voz trêmula. – O professor disse que ela era um tipo estranho... Muito estranho...
Enquanto isso, debaixo d’água, Lise se concentrava no escritório de Gustave Eiffel e no ano de 1888. Mas e a data? Escolheu a primeira que lhe veio à cabeça: 17 de maio, o dia da independência da Noruega. Uma boa data, não?
Deitado na cama da suíte da torre, no hotel Mõ Blã, Bumbão olhava para o cano de uma velha pistola e pensava como seria melhor olhar para um prato de bacon com ovos. Não só porque estava morrendo de fome, mas também porque era loucura olhar para um cano de pistola. Uma bala poderia sair dali a qualquer instante.
– Atenção! De pé! Vestido! – ordenou a mulher atrás da pistola.
– Po-po-por quê? – gaguejou Bumbão, puxando a coberta até o queixo.
– Você vai me ajudar a encontrar o homem que arruinou a minha vida.
– Que-que-quem?
Os olhos de Raspa cintilaram de raiva, e ela sussurrou, a voz rouca:
– O doutor Proktor, é claro.
Capítulo 12.
A história de Raspa
VAMOS VOLTAR NO TEMPO ALGUNS SEGUNDOS, para retomar de onde paramos.
– Você vai me ajudar a encontrar o homem que arruinou a minha vida – rugiu Raspa, apontando a pistola para a cama, onde nosso herói, Bumbão, estava deitado com a coberta puxada até o queixo.
– Que-que-quem? – gaguejou Bumbão, que talvez não agisse, afinal, tão heroicamente assim.
Os olhos de Raspa fervilharam de raiva, e ela acrescentou:
– O doutor Proktor, é claro.
Bumbão engoliu em seco.
– Nã-nã-não posso simplesmente dar um alô para ele da próxima vez que a gente se encontrar? – perguntou o menino.
– DE PÉ, marujo! – berrou Raspa, a pistola tremendo na mão.
– Está bem, está bem – concordou Bumbão, atirando as cobertas para o lado e saltando da cama. – Não precisa gritar desse jeito. O que você quer com o professor, hein?
– Nada de mais – respondeu Raspa, sentando-se em uma poltrona enquanto Bumbão trocava de roupa. – Apenas o que é meu.
– E o que seria?
– Elementar, meu caro peixinho. Estou falando do esboço da minha banheira de viagem no tempo.
– Sua banheira? Mas não foi o professor que...
– Mas fui eu que inventei o Sabão Temporizador! – rosnou Raspa, respingando o ar de gotículas de saliva. – Aquele idiota me traiu! Estragou tudo ao se apaixonar por Juliette Margarina. Só de falar o nome dela, sinto gosto de manteiga azeda na boca. Ele estragou tudo!
– Então você... você era...
– Sim, eu era a assistente do doutor Proktor, mas tão genial quanto ele!
– E, agora, quer roubar a parte dele da invenção?
– Vamos logo!
Bumbão se deu conta de que tinha calçado os sapatos antes de vestir as calças, então teve de começar tudo de novo. – E por que eu o ajudaria a encontrar o professor se você vai roubá-lo?
Raspa brandiu a pistola.
– Ah, sim, claro – murmurou Bumbão ao vestir a calça. – E que vai acontecer conosco depois que você puser as garras no esboço?
– Se eu fosse você – sugeriu Raspa, coçando a lateral do nariz com a pistola –, não me preocuparia com isso. Onde está o professor?
– Não faço a menor ideia – respondeu Bumbão. – Se quiser, me processe, mas realmente não faço ideia.
– Quem é que iria processar um anãozinho morto? – indagou Raspa, sacudindo mais uma vez a pistola.
– Bem, para dizer a verdade, sei que o lugar começa com “In” – respondeu Bumbão. – Mas isso não diz muito. Pode ser Índia, Indonésia, Império Inca, a ilha de Inishshark, na Irlanda...
– Chega! – rosnou a mulher, apontando-lhe a arma. – Pelo visto, você não sabe de nada, seu melequento. Então, adeus!
Bumbão viu o longo dedo indicador de Raspa se enroscar no gatilho, pronto para puxá-lo.
– Espere! – gritou. – Acabei de me lembrar!
Raspa estreitou os olhos, desconfiada, sem baixar a pistola.
– Lembrou, é?
– Lembrei, lembrei, lembrei! – falou Bumbão, sacudindo a cabeça tão energicamente que as mechas de cabelo criavam riscos vermelhos no ar.
– Onde ele está?
– Precisamos de uma banheira de viagem no tempo para chegar lá – disse Bumbão. Correu ao banheiro e abriu a porta. – Consegue programar aquela ali?
– Não, seu idiota! – xingou Raspa. – Não sem o esboço do professor. Temos que usar a banheira que ficou no campo florido. E pensar que aterrissei de cabeça... – queixou-se Raspa, massageando a testa, e só então Bumbão viu o galo roxo perto da linha do cabelo.
– Você veio na mesma banheira que eu?
– É claro – resmungou Raspa.
– Como?
– Chega de conversa. Temos que ir embora – ordenou. Abriu a porta e fez sinal com a pistola para Bumbão sair.
Bumbão arfou, incrédulo.
– De barriga vazia? Sabia que o café da manhã está incluso na diária do hotel? É de graça!
– AGORA!
Bumbão deu de ombros.
– Está bem – disse de um jeito inocente, aliás, do mesmo jeito inocente com que pessoas manhosas ocultam ideias nada inocentes. Sim, porque Bumbão havia acabado de perceber que sua melhor saída seria fugir para a rua e usar sua pequena estatura para desaparecer em meio à multidão. – Vamos – concordou, saindo para o corredor.
Raspa caminhou atrás dele, escondendo a pistola no bolso do casaco enquanto desciam as escadas. Quando ganharam a rua, Bumbão olhou ao redor, confuso. As nuvens tinham se amontoado durante a noite e, agora, a chuva parecia prestes a cair. Mas não era isso que o deixara confuso.
– Aonde foi todo o mundo? Ontem, o lugar estava cheio.
– A multidão seguiu os ciclistas para a próxima etapa – respondeu Raspa, mirando o fim da rua. – Que pena! Isso frustrou seus planos de fugir e usar sua pequena estatura para desaparecer em meio à multidão?
Bumbão não respondeu. Agora, ela também lia pensamentos?
Raspa sorriu.
– Vamos lá, tampinha, suba nas minhas costas.
– Nas suas costas?
– Está vendo algum táxi por aqui?
– Não – respondeu Bumbão, um tanto relutante.
Raspa se agachou.
– Suba. Vamos descer a montanha antes que comece a chover.
Bumbão hesitou, mas obedeceu. Quando Raspa sentiu que ele estava bem seguro, começou a deslizar pela superfície. As rodas mal lubrificadas do patim gemiam. Raspa e Bumbão foram patinando pelo asfalto, até a linha de chegada, e depois aceleraram.
– Segure-se bem firme – avisou Raspa por cima do ombro. – Vamos seguir a todo vapor!
Ela se curvou para a frente. Trovões ribombavam ao longe. O vento batia no rosto de Bumbão enquanto ele e Raspa desciam a estrada em alta velocidade, o mesmo caminho íngreme que Eddy e Bumbão tinham escalado com dificuldade no dia anterior. Raspa inclinava-se para o lado a cada curva, fazendo as rodinhas de borracha do patim rangerem terrivelmente.
E Bumbão, sendo quem era, esqueceu-se do perigo e passou a berrar alegremente:
– Iupi! Iupi! Mais rápido!
Seu pedido foi uma ordem. No fim, moviam-se tão rápido que a força do vento deformava bochechas, cílios e narizes. Bumbão parou de gritar de repente quando a língua entrou pela garganta, e ele teve de tossir para cuspi-la de volta.
Duas ovelhas ruminantes encaravam aquela mulher, digamos, esquisita (falemos assim para não parecermos indelicados) e o garoto que trazia às costas – o mesmo menino que passara por elas no dia anterior, só que no sentido contrário.
– Já não vimos o ruivinho antes? – uma delas perguntou.
– Não sei – respondeu a outra. – Somos ovelhas, sabe. Não guardamos esse tipo de informação.
Raspa e Bumbão estavam quase na horizontal quando chegaram à última curva. Então a estrada se nivelou, e Bumbão avistou o campo florido e a banheira virada para baixo.
Naquele instante, as nuvens despencaram. E, puxa, como choveu! Era como se as gotas de chuva mais robustas do mundo tivessem se concentrado naquele campo florido para realizar o Campeonato Mundial de A Última Gota a Cair é a Mulher do Padre.
– Ótimo – gritou Raspa. Saltou a cerca e caminhou com dificuldade em direção à banheira.
– Ó-ó-ótimo? – duvidou Bumbão, quicando nas costas de Raspa. A chuva lhe escorria pela nuca e pelas costas.
Raspa obrigou Bumbão a descer e segurou um dos pés da banheira.
– Vamos, ajude!
Bumbão ajudou. Juntos, viraram a banheira e ficaram olhando a chuva acumular-se no fundo esmaltado. Raspa tirou um pote do casaco e o virou de cabeça para baixo. Um pó vermelho-morango caiu na banheira e, com a ajuda da chuva, transformou-se em bolhas.
– Agora só temos que esperar encher – disse, entrando e se sentando em uma das extremidades. Bumbão fez o mesmo na outra.
– Como foi que nos encontrou? – o menino quis saber.
– Fácil – respondeu Raspa. – Quando vi que o selo de 1888 que tinham me trazido estava novinho em folha e que havia restos de sabão nas beiradas, fiquei alerta. Aí, quando senti o gosto de morango, percebi que aquilo só podia significar uma coisa: o doutor Proktor havia conseguido fazer a banheira do tempo funcionar. E você também não é muito bom em guardar segredos, marujo. Quando disse que ia para Paris com sua amiga, vi logo que me conduziriam diretamente a ele.
– Você nos seguiu.
– Segui. Fiquei plantada do lado de fora do Hôtel Battant-Doré. Quando vi sua amiga voltar com aquela mulher horrível...
– Juliette Margarina é horrível?
– Não diga esse nome! – rosnou Raspa. – Elas subiram para o quarto. E eu sabia que você também estaria lá. Então bati à porta...
– Ah, então não eram os hipopótamos – surpreendeu-se Bumbão, sentindo o nível da água subir aos poucos. Até mesmo uma chuvarada como aquela levava algum tempo para encher uma banheira de viagem no tempo.
– Tentei derrubar a porta, mas não consegui. Então desci para falar com aquele boboca da recepção para pedir a chave do quarto.
– E ele deu a chave? – perguntou Bumbão, mal podendo acreditar.
– Eu pedi muito educadamente – explicou Raspa. – Além do mais, tinha uma pistola apontada para ele.
– Ah – exclamou Bumbão. – Bem pensado.
– Mas, quando entrei, o quarto estava vazio – suspirou Raspa. – Proktor e vocês não estavam lá. Revirei tudo. Não havia mais ninguém. Só uma aranha de sete patas idiota. Sete patas, veja só! Se acreditasse nesse tipo de coisa, poderia até pensar que era uma sete-patas peruana sugadora de sangue!
Bumbão não comentou nada.
– Então imaginei que tivessem escapado na banheira de viagem no tempo e comecei a analisar os restos de Sabão...
– Você realmente consegue rastrear as pessoas analisando o Sabão?
– Claro que sim – desdenhou Raspa com irritação. A chuva fazia sua maquiagem escorrer em filetes negros pelo rosto. – Fui eu que inventei o Sabão Temporizador. Sei tudo o que há para saber sobre ele. O único problema é que havia mais de um rastro. Tive de escolher um deles. E acabei vindo parar aqui. Caminhei até o café e vi você na TV. Foi legal da sua parte ter dito exatamente onde estava. E, agora, vai ser legal de novo me levando até o doutor Proktor. Vamos lá, sem travessuras. Posso seguir seu rastro para qualquer lugar. Lembre-se disso.
– Mas eu... – começou Bumbão, enfiando o dedo indicador na orelha e girando.
– Agora! – ordenou Raspa, levantando a pistola. O cano da arma pingava. – Tire o dedo da orelha!
Um trovão se manifestou perto dali, fazendo o chão vibrar.
– Está beeeem! – falou Bumbão, e ouviu-se um pequenino plop! quando puxou o dedo da orelha. O garoto chegou a estremecer.
Mas não fora a pistola que fizera Bumbão tremer, nem a água fria, tampouco o plano que ganhara forma em sua cabeça com um plop! Bumbão estremecera porque o estouro que fizera o chão vibrar não viera do céu, mas de trás de Raspa. Algo vinha na direção deles, um enorme touro preto com cara de poucos amigos.
– Agora! – disse Bumbão, mergulhando na banheira. Prendeu a respiração e se concentrou. Lembrou-se do que Eddy lhe dissera, pois isso fazia parte do plano. Só não sabia se era um bom plano. Concentrou-se em um lugar próximo à bicicletaria do pai de Eddy, na Bélgica. O lugar se chamava Waterloo. O dia era 18 de julho de 1815. “No quarto de Napoleão Bonaparte”, mentalizou Bumbão.
Quando voltou à superfície, imaginou que tivesse feito algo errado, pois continuava ouvindo trovões. Foi então que percebeu que estava em uma tenda mal iluminada e sombria e que os trovões não tinham relação nem com relâmpagos, tampouco com touros. Um ruído grave e prolongado invadiu o ar. Era noite, e Bumbão estava em plena Batalha de Waterloo, a mais famosa da história. E conhecia o suficiente para saber que estava do lado dos derrotados, que seria trucidado, esmigalhado e destruído.
Bumbão não tinha mais dúvidas: aquele não era um bom plano.
Capítulo 13.
Waterloo
BUMBÃO PISCOU OS OLHOS NA ESCURIDÃO. Estava molhado, com medo e ainda não tinha tomado café da manhã. ão podia dizer que o dia começara exatamente como desejava. E, agora, para piorar, aquele seria o pior dia da história para o exército francês – o dia em que seriam dizimados por malditos ingleses e indesejáveis alemães.
Os olhos de Bumbão se ajustaram à penumbra, e percebeu que os ruídos que lembravam trovões vinham de uma cama localizada no centro da tenda. Ao lado da cama, havia uma cadeira com um uniforme cuidadosamente pendurado. Bumbão tremia de frio. É claro que o uniforme ficaria grande, mas, pelo menos, estaria seco. Saiu da banheira sem fazer barulho e caminhou furtivamente até a cadeira, já tirando as roupas molhadas. Vestiu o uniforme, que – como era possível? – coube direitinho!
Os olhos de Bumbão desviaram para a cama, pousando no homem deitado de barriga para cima, roncando com a boca aberta. Será que aquele realmente era o grande general e ditador Napoleão Bonaparte? Puxa! Ele era tão pequenino quanto Bumbão! Mas não havia tempo para pensar nisso agora. Bumbão fechou depressa os botões reluzentes do uniforme, amarrou o cinto com o sabre cintilante, que quase arrastava no chão, e pegou o estranho chapéu de três pontas que estava no assento da cadeira. Como saber qual era a frente de um chapéu como aquele? Também não havia tempo para pensar nisso, pois Raspa logo examinaria os restos de sabão e viria atrás dele. Colocou o chapéu e tirou o saquinho de Pó de Pumponauta do bolso da calça molhada. Então se virou, pois alguém espirrara atrás dele. Mas não fora Raspa – ela ainda estava na banheira. O espirro viera de fora da tenda.
– Saúde – disse uma voz do lado de fora.
Bumbão suspirou, aliviado, abriu o saquinho de Pó de Pumponauta, segurou-o com cuidado sobre a boca do general roncador e despejou seu conteúdo nela. Mas, justamente nesse instante, o pequeno homem soltou um longo suspiro e soprou o pó de volta no rosto de Bumbão. Os olhos do garoto começaram a lacrimejar. Havia pó também no nariz e, antes que pudesse impedir, ele espirrou. Quando abriu os olhos de novo, viu que o rosto do general estava coberto de manchas de Pó de Pumponauta. O menino reteve a respiração.
– Saúde para você também – disse outra voz do lado de fora.
Então, qualquer tipo de barulho foi abafado de novo pelo rufo dos roncos de Napoleão, e Bumbão aproveitou a oportunidade para despejar mais Pó de Pumponauta em sua boca. Os roncos pararam de repente, e o coração de Bumbão também. Por alguns segundos, tudo o que se ouviu foi o som de um grilo do lado de fora. Em seguida, os roncos recomeçaram, e o coração de Bumbão voltou a bater. Agora, era só esperar. Bumbão caminhou para o fundo da tenda, fechou os olhos, tapou os ouvidos e iniciou a contagem regressiva.
Seis, cinco, quatro, três, dois, um...
CABUUUM!!!
Dois homens da guarda pessoal de Napoleão vigiavam a tenda do lado de fora. Estavam semiacordados e um tanto surdos, devido aos tiros de canhão que haviam sido obrigados a ouvir durante a longa carreira de soldado. Mas tomaram posição de sentido tão logo ouviram a enorme explosão.
– Que diabos foi isso? – disse um dos guardas, tirando o rifle do ombro e soltando um suspiro nervoso por baixo do bigode farto.
– Pensei que você tivesse dado outro espirro – comentou o outro, tirando o rifle do ombro e soltando um suspiro nervoso por baixo do bigode retorcido.
– Olha – falou Bigode Farto, apontando para o céu.
E, lá no alto, delineado contra uma grande lua amarelada, viram algo bater as asas e voar para longe até desaparecer em meio à escuridão do outro lado da estrada de Bruxelas, o lado onde os ingleses acampavam.
– O que era aquilo? – perguntou Bigode Retorcido.
– Se não soubesse das coisas, diria que era um homem em um camisolão de dormir – disse Bigode Retorcido. – Mas estamos em 1815, e as pessoas ainda não sabem voar.
– É verdade. Mesmo assim, acho que deveríamos dar uma olhada para ter certeza de que está tudo bem com o generaldo.
Afastaram a lona e entraram. A primeira coisa que viram foi a lua brilhando através de um rasgo no teto, depois pedacinhos de um edredom caro flutuando à luz da lua.
– Mas o que... – Bigode Farto começou a dizer. Levantou o rifle com a baioneta longa, correu para a cama e gritou: – O generaldo não está aqui!
– O edredom dele também sumiu! – observou Bigode Retorcido a seu lado.
– Oi – disse Bumbão, iluminado agora sob um feixe de luar.
Os guardas tomaram posição de sentido mais uma vez, os rifles pendurados no ombro.
– Desculpe, senhor generaldo. Não vimos o senhor – gritou Bigode Farto.
– Descansar, soldados – falou Bumbão. – Sabem o que foi esse estrondo?
– Não fazemos ideia, senhor generaldo – gritou Bigode Retorcido.
– Os ingleses tentaram me assassinar. Colocaram uma bomba debaixo da minha cama. Felizmente, sou do tipo galáctico...
– Do tipo o quê?
– Do tipo que acorda cedo, com os galos. Escovava os dentes quando...
– Como é? – indagou Bigode Retorcido. – Todo o mundo sabe que os franceses não escovam os dentes...
– Silêncio, Jacques – falou Bigode Farto, apontando o rifle para a escuridão. – Para onde foram os ingleses?
– Como entraram aqui?
– Só havia um deles – explicou Bumbão. – Na verdade, uma inglesa. Ela está escondida na banheira.
Os guardas deram meia-volta e apontaram os rifles para a banheira, que parecia vazia.
– Pensei que os franceses também não tomassem banho – murmurou Bigode Retorcido, embaixo dos pelos tortos sobre a boca.
– Silêncio, Jacques – sussurrou Bigode Farto. – Você ouviu. Ela é inglesa.
– Psiu! – ordenou Bumbão. – Prendam esta mulher!
Os três se aproximaram da banheira com cautela.
– O que estamos esperando? – perguntou Bigode Farto.
– Que ela fique sem ar e volte à superfície – respondeu Bumbão.
– Não podemos arrancá-la daí? – perguntou Bigode Retorcido.
– Podemos tentar – concordou Bumbão. – Mas estamos falando da espiã inglesa Zero-Zero-Ponto-Sete, Raspa Hari, que trespassou 26 esgrimistas franceses em duelo honesto, estrangulou uma jiboia-constritora e prensou quatro russos com um supino. Vocês é que sabem...
– Melhor esperar – sugeriu Bigode Farto. – Não estamos com pressa, não é, Jacques?
– Temos todo o tempo do mundo – concordou Bigode Retorcido.
Então os três permaneceram ali, atentos, muito atentos, os olhos cravados na banheira.
– Esta mulher tem pulmões enormes – sussurrou Bigode Retorcido.
– Pulmões de baleia – afirmou Bumbão, que percebera que a luz da lua começara a esmorecer e que a escuridão ganhara a tonalidade acinzentada da alvorada.
Então um véu d’água se abriu, e eis que ela apareceu: alta e magra em um casacão preto, os olhos arregalados, a boca aberta revelando dentes afiados de peixe.
– Camarões me mordam! – disse Bigode Retorcido, saltando para trás com o susto.
– Não se mova, ó terrível bruxa do mar! – gritou Bigode Farto. – Se mexer um pelo do nariz que seja, vou atirar!
Raspa abriu a boca. Depois fechou. Abriu, fechou, e assim sucessivamente. Mas não se moveu.
– Ponham as algemas nela! – gritou Bumbão.
– Algemas? – perguntou Bigode Farto, ainda bastante impressionado.
– Tem razão, ainda não foram inventadas – falou Bumbão, coçando a cabeça por cima do estranho chapéu. Cordas, então. Amarrem a espiã inglesa Zero-Zero-Ponto-Sete, Raspa Hari. Agora. É uma... uma ordem!
Ao ouvir isso, os guardas levantaram Raspa e a amarraram até que parecesse uma espiga de milho. Ela gritou, esperneou, protestou.
– Mas que gritalhona! – comentou Bigode Farto. Livrou-se do coturno velho, puxou a meia esburacada e enfiou na boca da mulher.
– E agora, generaldo?
– Podem revistar a mulher!
Bigode Farto obedeceu.
– Um pote cheio de pó – constatou ele. – Hum, tem cheiro de morango.
– Jogue para cá – pediu Bumbão, pegando o pote no ar. – E atire a espiã em uma masmorra. Já inventamos as masmorras?
– Ah, já, sim – falou Bigode Retorcido, colocando Raspa de pé, ou melhor, sobre o patim, e a empurrando para fora da tenda. – Venha comigo, bela espiã.
– É melhor você ir junto para ficar de olho nela – sugeriu Bumbão ao outro, que continuava parado.
– Mas, generaldo, recebemos ordens do marechal Grouchy para vigiá-lo o tempo todo.
– É mesmo? – disse Bumbão. – Então estou revogando as ordens dele. Afinal, eu sou o... generaldo, não é?
– É claro, senhor generaldo! – Bigode Farto ficou em posição de sentido, bateu continência, virou o rosto para o lado e saiu marchando para fora da tenda.
Assim que o soldado saiu, Bumbão correu até a banheira e despejou um pouco do pó vermelho nela. Tirou o sabre da cintura, enfiou-o na água e misturou o sabão. Uma nova camada de bolhas começou a se formar. Bumbão pegou o pote de Sabão Temporizador e se equilibrou na beirada da banheira. Queria fazer outro “Lá vou eu!” e esperar ali no fundo, desejando voltar ao Hôtel Battant-Doré, onde todos estariam esperando por ele: Lise, o doutor Proktor e Juliette Margarina. Claude Clichê seria coisa do passado; nem sequer saberia da existência deles. Bumbão dobrou os joelhos, pronto para saltar.
– Pê-je entrê? – indagou uma voz severa.
Bumbão ergueu os olhos. Um homem vestido com um uniforme quase tão legal quanto o dele estava parado à entrada da tenda. Era magro, alto, e tinha uma cicatriz em forma de V na bochecha.
– Bom dia, generaldo Napoleão.
– Já é dia? – perguntou Bumbão, e guardou o pote de Sabão Temporizador no bolso interno do casaco.
O homem adentrou a tenda.
– A noite de sono lhe fez bem, generaldo. O senhor parece mais jovem do que ontem.
– Ah, muito obrigado – disse Bumbão, pensando na melhor maneira de despachar o homem dali. – É a roupa. É nova.
– Então essa é a nova roupa do imperador? – perguntou o homem com um sorriso, e desabou em uma cadeira.
– O imperador sou eu? – Bumbão abriu a boca, surpreso.
O homem riu.
– Se quiser... Mas, até onde sei, o senhor prefere ser chamado de generaldo.
– Foi o que pensei. Mas por que “generaldo”?
– Já esqueceu? Generaldo significa “general com respaldo”. Na verdade, a ideia foi minha, assim como a maioria delas, ultimamente. – Soltou um suspiro, contemplando as luvas brancas. – Vamos trabalhar?
– Trabalhar? – perguntou Bumbão. – Como pode ver, ainda estou me aprontando. Mal tive tempo de tomar café da manhã. Então, se puder me dar licença, senhor... senhor...?
O homem arqueou uma das sobrancelhas.
– Sou eu, o marechal Grouchy.
– Sim, claro – falou Bumbão, soltando uma risadinha nervosa e um pouco esganiçada. – Isso mesmo, Emannuel de Grouchy. Desculpe. É que tenho tantos generais...
– Tem dois – respondeu Grouchy, a voz áspera. – O outro morreu ontem, perfurado por baionetas inglesas. Está se sentindo bem, generaldo?
– Estou, estou. É que, sabe... – começou Bumbão. – É que... é que...
Grouchy se levantou.
– Se tiver acabado de dar banho no seu sabre, senhor generaldo, temos uma batalha a vencer.
– Uma batalha? – perguntou Bumbão, confuso. – Que batalha?
– O exército inglês está esperando do outro lado da estrada. Não está ansioso, senhor generaldo?
– Muito ansioso – respondeu Bumbão, engolindo em seco.
– Então vamos lá. Estamos todos prontos.
– Quem está pronto?– perguntou Bumbão, pensando se não seria melhor saltar logo na banheira. Nada deteria aquele homem.
– Você, eu, seu cavalo e... – puxou a lona para o lado – ... cerca de 70 mil homens.
Bumbão ficou boquiaberto, o queixo caído. Lá estava, à primeira luz da manhã, do lado de fora da tenda, um magnífico cavalo branco, com sela e tudo. Mas não foi isso que deixou Bumbão tão admirado. Atrás do cavalo havia intermináveis fileiras de soldados em uniformes azuis, armados com rifles e baionetas.
O marechal Grouchy passou pela abertura da tenda.
– Homens, saúdem o seu generaldo! – gritou ele.
A resposta foi o rugido sincronizado de 70 mil homens ecoando pela planície:
– Vive Napoléon! Vive la France!
Bumbão olhou para baixo e viu as bolhas de sabão bem abaixo dele. Ele ainda podia fazer aquilo.
– Homens, estão prontos para morrer pelo generaldo? – gritou Grouchy.
– Oui! – berraram os soldados.
Bumbão já fazia menção de saltar banheira adentro, quando um pensamento pipocou em um dos lados de seu cérebro – algo que Juliette dissera sobre só termos uma chance para mudar a história. “E daí?”, disse o outro lado. “Fuja enquanto ainda é tempo!” Bumbão se preparou para mergulhar na banheira. Isto é, imaginou que houvesse se preparado, mas, quando olhou para baixo, viu que ainda estava de pé na beirada. Não podia fazer aquilo. Simplesmente não podia. Suspirou, desceu, embainhou o sabre e saiu da tenda.
Um soldado esperava para ajudá-lo a montar o cavalo. Infelizmente, quando Bumbão foi sentar, machucou-se com o sabre entre as pernas e sentiu tanta dor que teve de respirar fundo para não gritar. Quando enfim engoliu o choro, percebeu que o exército de 70 mil soldados o encarava, o que dava um total de 140 mil olhos – exceto os dos soldados que haviam perdido um ou dois olhos nas batalhas russo-prussianas, é claro. Mas todos os soldados, quer tivessem um olho, dois ou nenhum, tinham algo em comum – todos pareciam durões, a barriga para dentro e o peito para fora.
– Descansar – gritou Bumbão.
Setenta mil homens soltaram a respiração ao mesmo tempo, relaxando os ombros e inclinando-se sobre os rifles.
“Hum”, pensou Bumbão. “Fascinante. Imagine o que aconteceria se eu...”
– Sorriam! – gritou Bumbão.
Setenta mil sorrisos confusos se abriram diante dele.
– Pulem! – berrou o menino.
Setenta mil homens pularam, e o chão tremeu sob os pés deles.
Do alto do cavalo branco em que estava sentado, ainda segurando o pote de Sabão Temporizador com a mão enfiada no bolso interno, Bumbão tinha de admitir que aquilo tudo era muito legal. Sentia que seria capaz de liderar 70 mil homens sem problemas – contanto que pudesse tomar café da manhã primeiro.
Um cavalo emparelhou com o dele: era o marechal Grouchy.
– Seu chapéu, senhor... – sussurrou o marechal pelo canto da boca.
– O que tem ele? – perguntou Bumbão.
– Está ao contrário.
– Ao contrário?
– A ponta fica para a frente, generaldo. Do jeito que está, parece meio... meio bobo.
– Deixa disso! – disse Bumbão. – Se posso me intitular imperador e fazer 70 mil homens pularem, acho que posso usar o chapéu como quiser. Não concorda, Grouchy?
A pele do marechal Emmanuel de Grouchy ficou pálida e retesada, como se houvesse sido esticada à força.
– Não concorda? – repetiu Bumbão, um pouco mais alto.
– Sim, claro, senhor generaldo – respondeu Grouchy, inclinando-se para a frente, mas Bumbão podia notar que os maxilares estavam tensos de ódio. – O senhor vai discursar para as tropas antes da batalha?
– Deixe comigo – disse Bumbão, e virou-se para o exército. Respirou fundo e deixou a voz ecoar pela manhã silenciosa: – Meus queridos, leais e corajosos homens!
– Oui! – berraram os soldados.
– Estamos lutando há muito tempo! – gritou Bumbão.
– Oui! – berraram os soldados.
– Tempo demais, se querem saber.
– Oui! – gritaram os soldados, embora alguns se entreolhassem, sem entender muito bem.
– Muitos de nós nem sequer tomamos café da manhã! – berrou Bumbão.
Os soldados gritaram oui!, mas, desta vez, menos entusiasmados, e um burburinho se ergueu em meio à multidão. Com o canto dos olhos, Bumbão viu o cavalo do marechal Grouchy se aproximar.
– Pelo que estamos lutando e morrendo? – perguntou gritando Bumbão. – Ora, por um generaldo mesquinho que só quer saber de ter mais terras para governar!
Alguns gritaram oui!, outros se calaram.
– Que honra existe em morrer pela pátria, pelo imperador? O que é que eles já fizeram por nós?
A voz de Grouchy sibilou baixinho ao lado de Bumbão:
– O que pensa que está fazendo, seu tolo! Vai estragar tudo!
Mas Bumbão continuou:
– Cá estamos, meus queridos, neste país minúsculo que, um dia, vai se chamar Bélgica e que não vai ser nem dos franceses nem dos ingleses, mas dos pacatos fazendeiros locais, que vão governá-lo sozinhos, elegendo primeiros-ministros, preparando batatas fritas e promovendo competições de bicicleta. Qual é o sentido de toda essa matança de soldados que lutam em nome de outros reis idiotas que se divertem conquistando o máximo possível de terras, mas que não se importam com o fato de os súditos serem felizes ou terem o que comer no café da manhã?
Com exceção da voz de Bumbão e do ruído de um grilo, a planície de Waterloo caiu no mais absoluto silêncio.
– Tenho uma proposta! – gritou Bumbão. – Por que não voltamos para casa para tomar café da manhã?
– Oui! – berrou uma voz em meio à multidão.
– O senhor enlouqueceu? – sibilou Grouchy, recuando com o cavalo. – Considere-se dispensado do comando, generaldo!
– Façam o que estou dizendo! – berrou Bumbão aos soldados confusos. – Vejam bem: não é uma ordem, é uma sugestão! Voltem para casa, abracem esposas e filhos, e não fumem na cama!
– Oui! – berraram mais alguns homens.
– Pratiquem alguma atividade física! – gritou Bumbão. – Votem livremente e usem o cinto de segurança!
– Oui! – gritaram outros.
– E não se preocupem! Não seremos chamados de covardes! – gritou Bumbão. – O marechal Grouchy vai dizer à corte real que lutamos até o fim, como idiotas, e que fomos obrigados a nos render a um exército superior!
O cavalo de Grouchy recuou tão desastradamente que o marechal amedrontado escorregou e caiu sentado no chão.
– Então, o que me dizem? – gritou Bumbão. – Vamos para CASA?
Desta vez, a resposta foi tão clamorosa e sincronizada que o céu de Waterloo praticamente desabou. Os ingleses do outro lado da estrada pensaram que os franceses tivessem disparado a primeira salva de canhões. Ou a segunda, uma vez que tinham catapultado pela manhã aquele homenzinho esquisito de camisolão que afirmava ser Napoleão!
– OUI! – berraram os soldados franceses. – OUI!
– Ótimo! – gritou Bumbão. – Mas não contem a ninguém a verdade sobre Waterloo, está bem?
– Está bem! – berraram de volta os 70 mil soldados.
– Vão para casa! – gritou Bumbão, e, quando deu meia-volta com o cavalo, ouviu o som dos rifles desabando no chão atrás dele. Mas, à frente, encontrava-se o marechal Emmanuel de Grouchy.
– O que pensa que está fazendo? – rosnou o marechal, massageando o cóccix. – Por acaso está cancelando a batalha de Waterloo?
– E se estiver? – bocejou Bumbão. – Vai me processar?
– Processar? Vou mandá-lo para a corte marcial! – Grouchy estava tão zangado que seus olhos pareciam prestes a despencar para fora das órbitas a qualquer instante.
– Que seja – falou Bumbão, deslizando para o chão. – Mas, antes, vou tomar um banho.
Correu para a tenda, mas foi só colocar o pé na banheira que sentiu algo muito afiado lhe cutucar as costas. Virou-se e deparou com Grouchy e seu florete. Soltou um grunhido irritado, a lâmina letal quase lhe furando a testa.
– Desembuche – disse Grouchy. – Quem é você? Tire essa coisa do nariz para que eu possa vê-lo.
– Sentido! – ordenou Bumbão. – Pule!
Mas as ordens ríspidas pareceram não surtir efeito no marechal.
– Guardas! – gritou Grouchy, sem desviar os olhos de Bumbão. – Guardas, venham aqui, agora!
– Alguém chamou? – Bigode Farto e Bigode Retorcido entraram na tenda e se colocaram atrás de Grouchy.
– Prendam esse impostor! – gritou o marechal. – Que ele seja amarrado e queime na fogueira lentamente, até admitir que é um espião inglês! Depois podem enforcá-lo.
– Está bem – disse Bigode Farto. – Puxa, vai ser um trabalho e tanto!
– Vamos queimá-lo primeiro? – perguntou Bigode Retorcido. – Por que não o enforcamos de uma vez? Ainda nem tomamos café da manhã.
– Andem com isso! – rugiu Grouchy.
– Sim, senhor, marechal – suspiraram os soldados, e caminharam até Bumbão.
– Esperem! – falou Bumbão. – O marechal é que deve ir preso.
– Interessante – comentou Bigode Farto, detendo-se no meio do caminho. – E o que mais?
– Façam cócegas nos pés dele até ele prometer que vai ser um sujeito legal. Depois podem mandá-lo para casa com uma advertência.
– Prendam-no! – rosnou Grouchy. – Senão vou mandá-los para a forca.
– Vai? – disse Bigode Farto, virando o rifle na direção do marechal.
Grouchy empalideceu.
– Ouçam bem, meus bons homens – falou ele –, vou promovê-los a tenente se me obedecerem. Pensem nisso. Oficiais do exército francês. Prometo que não vou enforcá-los. O que me dizem?
Bigode Farto e Bigode Retorcido se entreolharam. Depois, olharam para o marechal. E, por fim, para Bumbão.
– O que me diz, generaldo? Tem uma oferta melhor?
– Tenho – apressou-se Bumbão, coçando a orelha com o dedo indicador esquerdo. – Café da manhã. Pãozinho fresco com geleia de morango.
– Pãozinho fresco – repetiu Bigode Farto, lançando um olhar para Bigode Retorcido.
– Geleia de morango? – repetiu Bigode Retorcido, consultando com o olhar Bigode Farto.
– Ouçam bem, meus bons homens... – falou Grouchy, mas foi só o que teve tempo de dizer, pois, no instante seguinte, enfiaram-lhe uma meia rasgada na boca e o amarraram da cabeça aos pés, de modo que ficou parecendo uma espiga de milho.
– Levem o marechal para fora e façam cócegas nele – ordenou Bumbão. – E, se não for pedir muito, pendurem uma placa de “NÃO PERTURBE” na porta. Quero tomar meu banho matinal.
Os ingleses e o duque de Wellington não encontraram resistência em Waterloo naquele dia. Simplesmente entraram marchando pelo acampamento deserto dos franceses e, lá, depararam com incontáveis rifles e canhões abandonados, uma masmorra com uma mulher maluca com perna de pau e casacão preto e uma tenda com uma placa que dizia: “NÃO PERTURBE” em francês. Os ingleses, sempre muito educados, teriam respeitado o aviso se o tivessem entendido, mas, como não sabiam ler em francês, acabaram entrando na tenda. E tudo o que viram foi uma banheira em que as últimas bolhas desapareciam.
– É constrangedor! – disse o duque de Wellington aos oficiais, e chutou a banheira com raiva. – Queria ser o herói de uma guerra com muitas baixas, mas acabei vencendo sem dar um único tiro!
Um dos oficiais de Wellington sussurrou alguma coisa em seu ouvido.
– Já sei! – exclamou Wellington. – Tive uma ideia! Quando chegarmos em casa, diremos ao rei que enfrentamos e trucidamos os franceses com bravura. Vamos contar que foi a maior batalha de todos os tempos! E sabe aquele homenzinho estranho de camisolão que caiu do céu e pensa que é Napoleão? Pois bem. Vamos dizer que ele é Napoleão! – E soltou uma gargalhada. – Nós o mandaremos a uma ilha remota, para que não revele nossas mentiras caso recobre a sanidade! – O duque inclinou-se para os oficiais e, em tom conspiratório, sussurrou: – E ninguém vai contar a verdade sobre Waterloo. Entendido?
Os oficiais responderam em uma só voz:
– Entendido!
Bumbão estava sentado junto à banheira no quarto do Battant-Doré. Vestia calças folgadas demais e uma camisa que pegara emprestada de madame Trottoir no guichê de recepção. Pelo menos, as roupas estavam secas, ao contrário do uniforme azul encharcado que, agora, pingava nas costas da cadeira. Apoiou a cabeça entre as mãos e olhou, tristonho, para a água escura. Os outros não haviam chegado! Estava sozinho. Só Perua lhe fazia companhia, a aranha sugadora de sangue. Estava sentada em um copinho de escovas de dente ao lado do tubo de Supercola Instantânea do Doutor Proktor, na prateleira da pia. Perua não dizia nada; apenas ouvia as queixas desesperadas de Bumbão com declarado desinteresse.
– E agora, o que eu faço? Não aguento mais. Sabe o que eu queria? Queria poder voltar no tempo e impedir minha mudança para a rua dos Canhões! Queria nunca ter conhecido Lise nem o doutor Proktor! Poderia ter feito amigos que criassem menos encrenca!
Bumbão pensou melhor.
– Tem razão. Não queria ter feito novos amigos. Quem sabe seria melhor ter ficado sozinho... como agora. Desculpe, Perua, você não é grande companhia.
Bumbão chutou a lateral da banheira, produzindo um ruído surdo e prolongado.
Saltou da cadeira, saiu do banheiro e se arrastou para a cama.
O último pensamento que teve antes de cair no sono foi que, no dia seguinte, quando acordasse, poderia ao menos tomar café da manhã.
Bumbão sonhava com ovos estrelados do tamanho de bueiros e fatias de bacon tão frescas que ainda faziam oinc! quando acordou.
Ouvira alguma coisa.
Alguma coisa no banheiro.
Bolhas... como se algo surgisse das profundezas... das entranhas do tempo-espaço... como se algo houvesse chegado... à superfície da banheira de viagem no tempo?! Bumbão sentou na cama e olhou para a porta do banheiro, em meio à penumbra, tentando ouvir algo, o coração batendo forte. Mas não escutou nada.
Chamou, cauteloso:
– Lise?
Sua voz parecia ecoar, solitária, no escuro. Nenhuma resposta do banheiro.
– Doutor Proktor?
Nada.
– Juliette?
Silêncio.
Bumbão se encolheu sob a coberta. Não sentia a menor vontade de chamar o quarto nome, não queria sequer pensar nele. Mesmo seus pensamentos já gaguejavam diante de Ra-Ra-Raspa.
Ficou ali deitado por alguns minutos. Nada aconteceu. E, para pessoas como Bumbão, só existe uma coisa pior do que acontecerem coisas ruins: nada acontecer. Pulou da cama, esgueirou-se seminu até a cadeira onde pendurara o uniforme, desembainhou o sabre, caminhou na ponta dos pés até o banheiro e abriu a porta, gritando:
– Banzai, Englischer Schweinehund!
Invadiu o banheiro brandindo o sabre e cortando a escuridão em três, quatro, talvez até cinco pedaços. Só quando teve certeza de que a penumbra e tudo o que havia nela tinham sido devidamente retalhados foi que ligou o interruptor. Do copinho de escovas de dente, Perua o encarava, horrorizada, com seus múltiplos olhos negros. Mas, fora a aranha, não havia nada ali. Nada que já não estivesse ali antes.
Puro engano.
Uma garrafa de vinho vazia flutuava na água da banheira.
Bumbão examinou a garrafa de perto. Puro engano de novo: não estava vazia.
Pegou a garrafa da água, abocanhou a rolha e a puxou com um sonoro plop! Virou a garrafa de cabeça para baixo, sacudiu, e um rolinho de papel caiu no chão do banheiro.
Abriu o rolinho e passou a ler. Os olhos correram logo para o fim. O sorriso no rosto só fazia aumentar.
A mensagem era de Lise.
– Ora, ora, Perua, minha velha amiga – falou, enrolando o papel e se mirando no espelho. – Voltamos ao jogo. Sinto muito por ter que privá-la da minha companhia, mas novas aventuras me aguardam. Por falar nisso, o que sabe sobre a Revolução Francesa e decapitações?
Capítulo 14.
Gustave Eiffel
UM HOMEM DE FARTA BIGODEIRA E BARRIGA ainda mais farta fumava seu cachimbo e olhava para a menina que aparecera de repente no escritório, dentro de uma banheira. Estreitou o olho por trás do monóculo, soltou um ah! de surpresa, e uma nuvem de fumaça subiu até o alto da estante de livros.
Lise olhou ao redor. As paredes estavam cobertas de plantas de prédios, pontes, praças e outras coisas que começavam com a letra “P”, mas eram grandes demais para caber em uma mala de viagem. Na mesa, junto à janela, havia dois desenhos, duas garrafas de vinho tinto vazias e uma tabaqueira. A janela dava para uma praça ampla que parecia um pouco vazia. Na verdade, parecia bastante vazia. Estaria deserta, não fossem algumas pessoas que perambulavam com suas sombrinhas e cartolas. Havia algo de familiar naquela praça, Lise pensou.
– Quem é você? – perguntou o homem. – De onde veio?
– Meu nome é Lise – respondeu, torcendo a manga do suéter. – Vim da rua dos Canhões, na Noruega. Sou do próximo milênio. Você é Gustave Eiffel?
O homem acenou que sim com a cabeça e teve um acesso de tosse.
– Não se assuste, senhor Eiffel – falou Lise, saindo da banheira.
O homem gesticulou com desdém e tossiu. Então se fez ouvir em uma voz que era pouco mais que um sussurro sibilante:
– Claro que não.
Seu rosto estava vermelho como um tomate. O homem sufocava. Quando enfim conseguiu respirar, a garganta chiou e os pulmões emitiram um ruído gorgolejante. Ele colocou o cachimbo na boca, tragou e disse com um sorriso de satisfação:
– Não se preocupe. É a asma.
Ocorreu a Lise que o senhor Eiffel não parecia nem de perto tão assustado quanto seria de esperar de alguém que tivesse testemunhado a aparição repentina de uma menina que dizia ser do próximo milênio em uma banheira em seu escritório. Mas, no instante seguinte, Lise compreendeu o motivo.
– O professor disse que haveria dois de vocês – observou o senhor Eiffel. – Parece-me que o senhor Bumbão está ausente.
– Você falou com o doutor Proktor? – perguntou Lise. – Onde ele está?
O senhor Eiffel meteu um dedo contemplativo entre os botões do colete e coçou a barriga.
– Não sei dizer ao certo, mon-ami. Nós nos conhecemos aqui, neste escritório. Batemos um papo e nos despedimos. Ele chegou em uma banheira, em uma banheira de viagem no tempo, assim como você.
– E você acreditou nele? – indagou Lise. – Acreditou que ele tivesse inventado uma maneira de viajar no tempo?
– É claro. Para mim, seria mais difícil acreditar no contrário: que ninguém jamais inventaria uma maneira de viajar no tempo. Veja bem, eu sou engenheiro e acredito na capacidade inventiva das pessoas. Você só precisa ter imaginação e um pouco de inteligência. – Eiffel lhe lançou um sorriso tristonho. – Infelizmente, tenho muita inteligência e pouca imaginação. Imaginação nunca é demais.
– Conheço um menino que, às vezes, passa dos limites – comentou Lise, torcendo o cabelo em cima da banheira.
– É mesmo? Se, ao menos, pudesse ser como ele...
– Por quê?
Eiffel tossiu e inclinou a cabeça na direção da janela.
– Paris vai sediar a Exposição Mundial no ano que vem. A prefeitura me chamou para projetar uma torre para a praça que você está vendo. Só fizeram três exigências: que fosse bonita, engenhosa e de tirar o fôlego. Até aí, tudo bem... – Eiffel deixou o monóculo cair na palma da mão, fechou os olhos e esfregou o cachimbo na testa. – O problema é que não tenho imaginação para criar algo que seja bonito e engenhoso. E a única coisa que me tira o fôlego é este tabaco, que nem forte é. As obras começam no mês que vem e, agora, todos aguardam pela planta. Mas não consigo pensar em nada. Vão me demitir e me colocar para fazer bagageiros de bicicleta.
Teve outro acesso de tosse. Sua cabeça foi ficando vermelha, do queixo para cima, como um termômetro.
– Ora essa! – disse Lise. – É claro que você sabe fazer coisas bonitas e engenhosas.
– Infelizmente, não é verdade – protestou Eiffel, engasgando um pouco. – Só sei fazer pontes largas, pesadas e feias. Como a ponte sobre a qual o professor veio falar...
– Sim?
– Estava fazendo o projeto para uma ponte em Provença. Ia entregá-lo semana que vem. Mas o professor quis fazer uns ajustes para deixá-la um pouco mais estreita. Alguma coisa sobre hipopótamos e limusines...
– Sim, sim – gritou Lise. – Mais estreita para o doutor Proktor e Juliette fugirem para Roma e se casarem!
– Foi isso mesmo que ele disse. Uma história comovente. Devo admitir que fiquei bastante emocionado e não me opus a deixar mais estreita aquela terrível monstruosidade.
– Iupi! – exclamou Lise, dando pulinhos. – Então vai dar certo! Tudo vai ficar bem! Muito obrigado, senhor Eiffel! Adeus! – E voltou para a banheira.
– Espere um mo... – começou Eiffel.
– Tenho que aproveitar as bolhas de sabão para voltar à minha época. Meus amigos devem estar me esperando.
– O professor não voltou para a sua época. E também não me deixou alterar o projeto da ponte.
– Como é? – Lise abriu a boca e arregalou os olhos. – Por que não?
– Bebíamos vinho, e ele começou a falar sobre as coisas que iam acontecer. Então se lembrou de um detalhe importante: se a ponte fosse mais estreita, os tanques americanos que libertaram a França do domínio de Hitler não conseguiriam passar. E isso seria ainda mais desastroso do que uma possível separação entre ele e Juliette. Sim, pois esse Hitler vai nascer daqui a alguns meses e será uma pessoa horrível. Não queremos que ele domine a França.
– Não mesmo – concordou Lise. – Mas então... está tudo perdido. Claude Clichê venceu.
– O professor também reagiu dessa maneira – contou Eiffel, balançando a cabeça. – Então abrimos outra garrafa de vinho, bebemos mais um pouco e acabamos ficando um pouco deprimidos.
– E daí? – disse Lise.
– E daí que fiz a única coisa que sei fazer direito – respondeu Eiffel. – Usei minha inteligência.
– Como assim?
– O professor disse que, quando o tataratataratataravô de Juliette, o conde de Monte Crisco, foi decapitado na Revolução Francesa, a fortuna da família passou para Leufat Margarina, um viciado em jogos que perdeu tudo em uma partida de Uno. Mas, se o conde não tivesse sido decapitado, muito provavelmente teria tido filhos, certo? E os filhos teriam herdado a fortuna no lugar do beberrão do Leufat, de modo que ela teria continuado em família e o pai de Juliette não teria sido obrigado a entregar a filha a Claude Clichê para preservar o castelo. Então sugeri ao professor viajar para o tempo da Revolução Francesa, para salvar o conde da guilhotina. Muito inteligente, não acha?
– Muito – concordou Lise. – Mas, hum... o que é uma guilhotina?
– Ah, sim – falou Eiffel com entusiasmo. – É uma invenção muito engenhosa utilizada por revolucionários para cortar a cabeça de condes e barões. Mas também serve para condessas e baronesas. É rápida e eficiente: tá-tá! Tenho uma cópia do projeto original em algum lugar... – Eiffel puxou a gaveta.
– Não precisa mostrar – Lise apressou-se em responder. – Então foi isso... O doutor Proktor viajou para o tempo da Revolução Francesa?
– É, mas não vamos esquecer que ele precisava encontrar o conde no meio da bagunçada Paris de 1793. Então não sei onde ele está. Ou esteve. Ou vai estar. Ai, esse negócio de viagem no tempo é muito complicado! – Eiffel teve outro acesso de tosse. Os olhos quase saltaram das órbitas.
Lise olhou para as bolhas de sabão, que começavam a desaparecer na banheira. Teria de se apressar para sair dali.
– Ele não deixou uma mensagem para que eu pudesse encontrá-lo? – perguntou ela.
– Não, nada – respondeu Eiffel, balançando a cabeça, um pouco chateado. – O professor pensou por alguns minutos, depois perguntou se eu tinha um cartão-postal e um selo de 1888 com o retrato de Felix Faure. É claro que eu tinha. Afinal, estamos em 1888, e Felix Faure é nosso atual presidente! – Eiffel riu. – O professor disse que o selo seria muito valioso no futuro. O que é uma sandice, se você parar para pensar. O selo é bastante comum, pode ser encontrado em qualquer lugar. Mas não importa, eu lhe dei o selo e um cartão-postal com a foto desta praça.
– Eu sabia que a conhecia de algum lugar! – exclamou Lise. Lembrou-se da foto no cartão-postal e de como a praça lhe parecera vazia, como se algo estivesse faltando. Foi então que percebeu o que era...
– Ele escreveu uma mensagem codificada no cartão e o mandou para dois amigos de Oslo – disse Eiffel. – O senhor Bumbão e a senhora Lise. Queria encontrá-los lá.
– Lá onde?... Ah, sim, na Revolução Francesa.
– É claro, você não sabia? Ele falou que tinha escrito no cartão.
– Essa deve ter sido a parte que foi apagada pela água. Mas não sei por onde começar a procurá-lo. Alguma sugestão?
– Bem... – Eiffel torceu o bigode. – Se eu fosse você, procuraria na Place de La Révolution, que ficava em frente à temida prisão da Bastilha, em Paris. Era lá que a guilhotina era mais usada, então deve ter sido lá que o conde de Monte Crisco foi executado.
– Obrigado – agradeceu Lise. – Vou me concentrar no ano de 1793, no conde de Monte Crisco, na Pastilha de Paris. Só uma coisa: como o doutor Proktor enviou o cartão-postal?
Eiffel riu-se da lembrança.
– Ele mergulhou a cabeça e o cartão-postal na água, pensou em um lugar, em uma data e... voilà!, o cartão desapareceu. Acho que, para viajar no tempo, é preciso estar completamente imerso. Foi por isso que ele permaneceu aqui.
– Interessante – comentou Lise, e apontou para as garrafas de vinho vazias em cima da mesa. – Pode me emprestar uma garrafa, um pedaço de papel e um lápis?
Gustave Eiffel inclinou a cabeça na direção da mesa e falou:
– Fique à vontade.
Lise caminhou até a mesa, pegou um lápis e escreveu alguma coisa em um pedacinho de papel. Então dobrou o papel, meteu-o em uma das garrafas de vinho, catou uma rolha na lata de lixo e tampou a garrafa.
– O que está fazendo? – perguntou Eiffel.
– Estou escrevendo uma mensagem – disse Lise. – Se o doutor Proktor consegue usar a banheira como correio, eu também posso.
– Faz sentido. Para quem é?
– Pode ser tanto para Bumbão quanto para Juliette. Não sei onde eles estão, então, vou mandar a mensagem para o nosso quarto de hotel no Battant-Doré.
Eiffel não entendeu a última parte, pois Lise enfiara a cabeça dentro d’água junto com a garrafa e suas palavras subiram à superfície como pequenas bolhas de discurso.
– Pronto! – falou a menina, levantando a cabeça. – Foi enviado! Agora estou atrasada, tenho que ir. – E entrou na banheira.
– Também estou atrasado – comentou Eiffel, deprimido. – Mas foi um prazer conhecê-la, Lise. Se encontrar o professor, mande um abraço para ele. E, por favor, não mude muito a história.
Lise se despediu com um aceno de mão e afundou na banheira.
Assim que ela sumiu, Eiffel debruçou-se sobre os desenhos e resmungou:
– Merde! Por que não me pediram para projetar outra ponte feia e medíocre? – Então ouviu uma pingadeira nas tábuas do chão e ergueu o olhar. Lá estava Lise, coberta de bolhas de sabão. – Não foi embora, mon-ami?
– Acho que você merece um pouco de inspiração – disse ela, pegando um lápis e começando a desenhar.
Eiffel arregalou os olhos. A mão de Lise subia e descia como se soubesse exatamente como era a coisa que desenhava. Os arcos, a treliça, os quatro pés suavemente curvados para fora, quase como pés de banheira. Era bonito, era engenhoso, era... de tirar o fôlego.
– Pronto – falou Lise. – O que acha?
Eiffel ficou maravilhado.
– O que... o que é isso?
– É uma torre.
– Isso eu sei. Mas não é uma torre qualquer, é uma maravilha. É perfeita! Como se chama? Torre Lise?
Lise pensou por um instante.
– Acho que Torre Eiffel soa melhor.
– Torre Eiffel? – O engenheiro começou a tossir, empolgado. – Jura? Muito obrigado!
– Não precisa agradecer. Boa sorte! – desejou-lhe Lise. Marchou até a banheira, concentrou-se na Pastilha de Paris, mergulhou e... voilà!, desapareceu.
De volta à superfície, a primeira coisa que percebeu foi o fedor. A segunda foram os guinchos e roncos histéricos. E, se Lise pensasse como Bumbão, a terceira teria sido o potencial para um bom café da manhã: bacon fresco!
A quarta foi uma tábua de madeira que lhe acertou a nuca. Um fazendeiro de boina vermelha listrada brandia a tábua, zangado.
– Cai fora do meu chiqueiro, sua bestalhona! – rosnou ele. – Calma! Porquinho, porquinho! Calma!
Capítulo 15.
A Revolução Francesa
LISE AGACHOU-SE QUANDO A TÁBUA PASSOU ZUNINDO por cima da sua cabeça pela segunda vez.
Levantou-se e subiu na beirada da banheira.
Ao redor, um tapete vivo de corpos rosados batia-se contra as laterais da banheira de viagem no tempo.
– Calma! Porquinho, porquinho! Calma! – dizia o fazendeiro, fechando o cerco sobre Lise com a tábua na mão.
Lise deu um salto e caiu montada em um dos porcos. Um guincho elevou-se acima do barulho de mastigação e roncos. A menina agarrou-se instintivamente às orelhas do porco, que abriu caminho por entre a vara e avançou sobre a cerca, chapinhando o esterco. Próximo da cerca, parou de modo brusco e coiceou. Lise foi arremessada para longe, voou por cima da cerca, da forquilha e de um porquinho desgarrado, fechou os olhos e esperou a dolorosa aterrissagem.
Quando isso não aconteceu, abriu os olhos, surpresa, e viu que tinha caído em cima de um fardo de feno macio. Levantou-se, sacudiu o feno do cabelo e da roupa e olhou para o fazendeiro que corria em sua direção.
Lise sentia-se cansada. Cansada de ser perseguida, cansada de ter medo, cansada de viajar e não encontrar o que procurava, cansada de ficar longe de casa, da mãe e do pai, cansada de não poder abraçar o seu ursinho de pelúcia. Estava cansada de tudo aquilo. Precisava fazer alguma coisa. Pulou para o chão, afastou o porquinho desgarrado com o pé, pegou a forquilha, apontou-a para o fazendeiro e gritou em uma voz trêmula de raiva:
– Vou fazer espetinho de você e dar para os porcos, seu troglodita!
O fazendeiro parou de repente e deixou a tábua cair no chão.
– O que... o que... o que você quer? – perguntou, com uma voz suave.
– Quero meu ursinho de pelúcia! – rugiu Lise, caminhando na direção do fazendeiro. – Fora isso, quero que me diga onde fica a Pastilha! Agora! Quero ouvir já!
– A Pa-Pa-Pastilha? – gaguejou o fazendeiro amedrontado, recuando diante da forquilha. – Bem... a Pastilha fica aqui.
– Não estou vendo nenhuma prisão! Onde fica a Place de La Révolution?
– Ah, sim... Acho que você quis dizer a Bastilha, com “B”.
O olhar de Lise perdeu um pouco da fúria incontrolável.
– A Bastilha?
– É. Fica no centro da cidade, em frente à Place de La Révolution.
– É muito longe?
– Mais ou menos. Você... você está com pressa?
– Tenho que chegar lá antes que cortem a cabeça do conde de Monte Crisco.
– Ai, ai! – falou o fazendeiro. – Então... então não tem muito tempo.
Lise baixou a forquilha.
– Por que não?
– Porque a execução de Monte Crisco está marcada para hoje.
Lise atirou a forquilha para o lado.
– Rápido! Pode me emprestar um cavalo?
– Um cavalo? – debochou o fazendeiro. – Eu crio porcos, não cavalos.
Lise suspirou. Olhou ao redor. Um enorme porco preto de presas afiadas rolou no esterco, levantou-se e a encarou ameaçadoramente. Lise suspirou de novo. Aquilo não seria nada bonito, tampouco agradável. Seria uma longa cavalgada no lombo de um porco.
Naquele dia, um garoto chamado Marcel fora à Place de La Révolution com os pais para assistir às execuções. “Para se certificar de que os carrascos fariam seu trabalho”, dissera seu pai.
A mãe preparara uma cesta de almoço deliciosa, e Marcel estava ansioso para comer queijo brie e pão francês. Marcel não dizia pão francês, é claro, assim como os sírios não dizem pão sírio, os italianos não dizem pão italiano, os portugueses... bom, você entendeu.
Ele simplesmente dizia pão.
E queijo brie.
E talvez um pouco de vinho tinto diluído em água.
Sua mãe estendera uma colcha sobre os paralelepípedos, e os três estavam sentados no chão, no meio da plateia. Marcel olhava para a cesta avidamente enquanto os pais e os outros adultos fitavam o cadafalso montado na praça. O carrasco – um homem descamisado, com o tronco suado e um capuz preto com dois furinhos para os olhos – lia a sentença de morte de cada condenado com um vibrato grave e imponente. Depois puxava uma corda. Com um silvo cortante, a lâmina afiada despencava de uma altura de quatro metros e... nhoc!, decepava a cabeça do pobre coitado que estivesse deitado ali embaixo. E, a cada nhoc!, a multidão delirava.
– Viram só? – disse o pai, aprovando com a cabeça. – Isso é o que eu chamo de uma boa decapitação. Você viu, Marcel?
Marcel não tinha visto. Sentia-se entediado. As decapitações se alongavam desde o verão. Era um corta-corta insuportável. As cabeças giravam e caíam no cesto de vime em frente à guilhotina, então o sangue espirrava para todos os lados e empoçava o chão. Vez ou outra, quando alguém tinha feito alguma monstruosidade fora do comum, ou quando era demasiado rico e aristocrático, sua cabeça era costurada ao corpo e fazia-se uma nova decapitação.
Não, Marcel preferia os domingos anteriores à Revolução, quando os pais o levavam à praça para assistir aos concertos realizados no palco em frente à Bastilha. Marcel adorava música e queria ser instrumentista quando crescesse. Levava o trompete do seu avô para todo lugar. Aquele dia não era exceção. Enquanto os outros assistiam às execuções, Marcel levou o trompete à boca para tocar uma música que ele mesmo compusera. Mas não chegou a tocá-la, pois se distraiu. Uma silhueta vinha descendo a rua na direção deles. Não era nada bonito, tampouco agradável. Na verdade, era uma menina cavalgando um enorme porco preto!
O porco estancou. A menina saltou para o chão e começou a gritar:
– Doutor Proktor! Doutor Proktor! Sou eu, Lise! Onde está você, doutor Proktor?!
Mas sua voz sumia em meio ao silvo da lâmina e aos vivas da multidão. Ela parou e gritou de novo, mas não houve resposta. É claro. Não se ouvia a voz suave em meio àquela algazarra. Ela desistiu. Marcel viu lágrimas encherem os olhos da menina, que corria desesperadamente pela multidão. Como Marcel era um garotinho sensível, que preferia a música e a felicidade coletiva às decapitações, pegou o trompete e caminhou até ela.
– Oi – falou ele.
Mas a menina estava ocupada demais para lhe dar atenção.
Marcel limpou a garganta.
– Oi, Lixe.
Ela se virou, surpresa.
– Você disse Lise? – perguntou.
– Ixo, Lixe. Foi o que eu dixe. Prexixa de axuda? – indagou Marcel.
– Como sabe o meu nome? – perguntou a menina.
– Ora, voxê gritou: “Xou eu, Lise!” várias vexes.
– Ah, sim – falou Lise, e sorriu, mas não foi um sorriso de alegria, e sim de quem está prestes a chorar.
– Não dá para ouvir a xua vox com todo exe barulho – disse Marcel. – Xe quixer que o doutor Proktor excute, voxê prexixa faxer extardalhaxo. Axim, ó. – Marcel soprou o trompete. – Uma dica: tira exe prendedor de narix.
Lise olhou para o trompete.
– Não dá para gritar o nome dele com essa coisa.
– É claro que não – falou Marcel. – Max talvex eu poxa tocar uma múxica que faxa ele entender que voxê extá aqui.
– Que música?
– Não xei. Não exixte uma canxão do doutor Proktor? Ou uma canxão da Lixe?
Lise balançou a cabeça, tristonha.
Marcel inclinou a cabeça para o lado.
– Não exixte uma canxão do lugar onde voxês moram?
– Quer dizer uma canxão da rua dos Canhões? – perguntou Lise. – Acho que não.
– Então paxiênxia. Axeita uma fatia de pão? Temox patê e brie.
Lise ficou olhando para o trompete de Marcel. “Imaginar é imaginar”, pensou. “E sonhar é apenas sonhar. Ou talvez não.”
– Pode me emprestar o trompete? – pediu.
Marcel olhou para ela, depois para o trompete. Hesitou. Por fim, meneou a cabeça e entregou o instrumento. Lise colou os lábios no bocal e tentou ignorar outro xiiim!, nhoc!, viva! Aquele era o seu sonho. Não que desejasse estar em um lugar onde as cabeças rolassem aos montes. Queria apenas tocar para uma grande plateia.
Posicionou os dedos sobre as chaves, como Bumbão ensinara, e soprou. A primeira nota soou trêmula e tímida. A segunda, um pouco desafinada. A terceira errou o alvo. Mas a quarta acertou em cheio. Marcel cabeceou positivamente quando a sexta nota se ergueu, clara e forte, no céu azulado da Place de La Révolution, em Paris. Puxa, como é estranho! Já parou para pensar que ninguém além de mim e você sabe que aquela foi a primeira vez que se ouviu uma canção que só seria composta sessenta anos mais tarde, uma canção que seria do conhecimento de todo norueguês: o hino da Noruega, “Ja, vi elsker”?
A melodia calou a multidão e fez todos se virarem para escutar. Até mesmo o carrasco, que não se chamava Banho de Sangue à toa, interrompeu seu trabalho, aguçou os ouvidos sob o capuz preto e coçou o barrigão desnudo. A melodia era do seu agrado. Só faltava... faltava o quê?... Talvez um acordeão? Banho de Sangue despertou de sua pausa contemplativa. O homem que estava preso na guilhotina, um varapau de óculos estranhos, começou a gritar em uma língua estrangeira:
– Bumbão! Lise! Estou aqui!
Lise parou de tocar e olhou ao redor, o coração palpitando. Tinha certeza de que conhecia o dono daquela voz. Às vezes ele pronunciava as palavras com um sotaque que lembrava um cortador de grama enferrujado. Era o doutor Proktor! Lise tentou pular para descobrir de onde vinha a voz.
– Por que não xobe no meu ombro para enxergar melhor? – ofereceu Marcel.
– Tem certeza de que aguenta? – perguntou Lise, olhando duvidosamente para o garoto magricelo.
– É claro – falou Marcel, ajoelhando-se.
Lise subiu nos ombros dele. Marcel se levantou com dificuldade, as pernas trêmulas.
– Aqui! – gritou o doutor Proktor. – Rápido! A situação é meio... urgente!
– Ah, não... – lamentou Lise, perdendo a esperança. No cadafalso, viu um homem magricelo e ossudo, todo descabelado, com óculos de motocicleta, gritando em uma língua que ela supunha ser norueguês (sim, pois Lise continuava com o Prendedor de Nariz Francês). Doutor Proktor!
– O que foi? – grunhiu Marcel, embaixo dela.
– O doutor Proktor vai ser guilhotinado! Temos que fazer alguma coisa!
Lise escorregou para o chão e saiu correndo na direção do cadafalso.
– Não faxa ixo! – gritou Marcel. – Eles matam qualquer um que tente impedir uma decapitaxão.
Mas Lise não ouviu, estava ocupada demais empurrando as pessoas.
O vibrato da voz de Banho de Sangue ergueu-se solenemente.
– O Tribunal Revolucionário de Paris sentencia o doutor Viktor Proktor à decapitação por tentar impedir a decapitação do seu amigo...
Banho de Sangue meteu a mão no cesto, puxou uma cabeça pelo cabelo e a exibiu para a plateia.
– ... o recém-falecido conde de Monte Crisco!
A multidão explodiu de alegria.
Lise estava bem perto do cadafalso quando esbarrou em uma mulher alta que não quis dar passagem.
– Com licença! – gritou Lise, usando o trompete para cutucá-la no ombro.
A mulher se virou para encará-la, abriu um sorriso largo e sussurrou em uma voz rouca como o vento no deserto:
– Camarões me belisquem! É você! Venha me dar um abraço!
Lise sentiu tudo congelar: o sangue que corria nas veias, o grito preso na garganta, até o tempo pareceu congelar quando dois braços magros, porém fortes como o aço, a envolveram. O hálito da mulher fustigava-lhe o rosto como um vendaval de carne podre e meias sujas.
Banho de Sangue atirou a cabeça do conde de Monte Crisco de volta ao cesto, colocou os óculos sobre o capuz preto e começou a ler em voz alta:
– O júri declarou o seguinte a respeito do condenado: “O doutor Viktor Proktor é um homem divertido e articulado, mas escolheu a tática errada ao alegar que inventara uma banheira de viagem no tempo...”
A multidão caiu na gargalhada. Banho de Sangue teve que esperar alguns minutos antes de continuar.
Enquanto isso, Lise tentava em vão se soltar do abraço da mulher.
– Me solta! – gritava Lise, mas ela não soltava.
– Calma, querida – sussurrava a mulher em seu ouvido. – Vamos apreciar o show. A invenção será toda minha!
Raspa exibia os mesmos dentes afiados, os mesmos olhos carregados de maquiagem escura, mas o que a deixava verdadeiramente assustadora era o seu olhar desvairado e ameaçador.
– Lise, Lise, quer salvar o amiguinho, é? – perguntou Raspa, apontando a guilhotina com a cabeça. O doutor Proktor corria a multidão com o olhar desesperado, enquanto Banho de Sangue lia o resto da sentença em meio aos deboches da plateia entediada.
– Tanto faz – resmungou Lise. – Se cortarem a cabeça dele, posso voltar algumas horas no tempo para salvá-lo.
Raspa riu e balançou a cabeça.
– Mudar a história não é tão simples quanto vocês, idiotas, pensam. Será possível que ainda não perceberam? Nem mesmo Viktor parece entender que é impossível mudar o que aconteceu sem abrir mão da própria vida. Ou já se esqueceu do que eu disse na loja? A história está escrita em pedra, e vocês só conseguirão mudá-la se estiverem dispostos a morrer.
Lise se lembrou. Seria por isso que haviam fracassado?
– Como pode saber mais sobre mudar a história do que o próprio doutor Proktor? – perguntou Lise, para ganhar tempo, enquanto tentava soltar a mão que segurava o trompete.
– Porque ninguém conhece mais ou estudou tanto o assunto quanto eu, querida. Afinal de contas, fui eu que inventei o Sabão Temporizador.
– Sabão Temporizador? – resmungou Lise. Lembrou-se dos relógios na Relojoaria Casacão e soube instintivamente que Raspa dizia a verdade. Mas algo não se encaixava.
– Mas... se a história está escrita em pedra, então o doutor Proktor não pode morrer agora! Se ele morrer, o Pó de Pumponauta jamais será inventado, e isso mudará a história, o que é impossível! Pelo menos, segundo você.
– Você não entendeu, sua garotinha burra – falou Raspa, baixando os cílios postiços sobre os grandes olhos saltados e diminuindo a voz. – A morte é a exceção. Só a morte é capaz de mudar a história. Quem morre desaparece do tempo para sempre e nunca mais retorna. E olha só. Vai acontecer agora. Viktor vai morrer, vai desaparecer para sempre, e isso vai mudar a história. – Os olhos estavam esbugalhados, e havia uma alegria fria em sua voz: – A invenção será minha! Só minha!
Lise conseguira libertar parte do braço, mas não o suficiente para se soltar por definitivo.
– Como assim será sua?
– Se Viktor morrer em 1793, quem você acha que vai patentear a banheira de viagem no tempo? Quem vai se tornar a maior inventora do mundo?
No cadafalso, Banho de Sangue interrompeu a leitura. Correu o olhar para o final da página e gritou para o coro de vaias:
– Calma, minha gente. Tem um monte de coisa aqui, mas é tudo a mesma coisa. Por que não pulamos essa parte?
Vivas de alegria.
Raspa jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada absolutamente medonha.
Lise aproveitou o momento para dar um vigoroso safanão e livrar uma das mãos das garras de Raspa.
– Ei, sua vigarista... – começou Raspa, mas não chegou ao fim. Um trompete acertou sua cabeça, e aquela torre de mulher se inclinou para o lado e tombou.
Lise saiu correndo, driblou os guardas que vigiavam cada um dos lados da escada e subiu os degraus até o palco. Chegando lá, pulou nas costas de Banho de Sangue justo no momento em que ele ia puxar a cordinha e soltar a lâmina.
– Não faz isso! – gritou ela. – O doutor Proktor é inocente! Você está cometendo um equívoco!
Banho de Sangue sacudiu os ombros como quem afasta um mosquito.
– Guardas! – gritou ele.
– Estamos indo! – respondeu uma voz.
– Desculpe, senhor Banho de Sangue – disse outra voz.
Lise foi puxada das costas de Banho de Sangue e envolvida por braços fortes. Três rostos olhavam para ela.
Um rosto pustulento com um bigode retorcido.
Um rosto pustulento com um bigode farto.
E outro que não era bem um rosto, mas um capuz com buracos para os olhos.
– A senhorita foi pega tentando impedir uma decapitação – rosnou Banho de Sangue, apontando um dedo acusador na direção da menina. – A senhorita será indiciada e acusada. Tem algo a dizer?
Lise abriu a boca:
– Eu, é... o professor, é... somos inocentes!
– E o que diz o júri? – rosnou Banho de Sangue, olhando para Bigode Farto e Bigode Retorcido.
– Eu, é... Eu... – gaguejou Bigode Farto. – Ela é só uma garotinha.
– É só uma garotinha – repetiu Bigode Retorcido. – Então, por mim...
Banho de Sangue os fitou.
– Alguém mais vai tentar impedir uma decapitação? – rosnou em uma voz grave.
– Ela é culpada! – gritou Bigode Farto.
– Culpada! – gritou Bigode Retorcido.
Banho de Sangue caminhou até a guilhotina e levantou a armação de madeira, segurando o doutor Proktor contra o chão para ele não fugir.
– Cabe mais uma cabeça. Tragam a menina. Vamos fazer uma decapitação dupla!
Os guardas empurraram Lise, de modo que sua cabeça ficasse colada à do professor. Então a armação de madeira se fechou sobre os dois.
– Oi, professor – disse Lise. – Estava com saudades. – Tentou virar a cabeça para o lado, mas era difícil com o pescoço preso.
– Oi, Lise – respondeu o doutor Proktor. – Sinto muito por tê-la metido nesta furada. Sinto muito mesmo.
– Não esquenta com isso. É a vida – disse Lise, inclinando a cabeça para trás para ver um pedaço do céu sobre a multidão. Lá no alto, o sol brilhava em uma lâmina muito fina e afiada.
– Vamos soletrar nhoc! – gritou Banho de Sangue, segurando a corda. – Todos prontos?
– OUI! – soou a resposta na Place de La Révolution.
– Me deem um “N”! – gritou Banho de Sangue.
– “N”! – gritou a plateia.
– Me deem um “H”!
– “H”!
– Muitas pessoas mandaram lembranças – falou Lise. – Anna de Innebrède, Gustave Eiffel e Juliette, é claro.
– Ah, Juliette – sussurrou o professor, fechando os olhos marejados de lágrimas. – Sinto que decepcionei Juliette...
Lise também ficou com os olhos cheios d’água. Por isso, quando avistou Raspa na segunda fila, duvidou do que os próprios olhos viam. Raspa parecia chorar.
– Me deem um “O”!
– “O”!
– Me deem um “C”! – gritou Banho de Sangue.
– “C”!
Nos bastidores do cadafalso, Lise ouviu Banho de Sangue sussurrar apressadamente para os guardas:
– “NHOC” é com “C” ou com “Q”?
– Acho que é com “C” – sussurrou Bigode Farto.
– Acho que é com “Q” – disse Bigode Retorcido.
Lise apertou os olhos para enxugar as lágrimas. Então era assim que acabaria. O sol brilhava, o ar cheirava a jasmim e pão fresco. Podia ouvir os pássaros cantando, os porcos guinchando ao longe. Seus olhos marejaram novamente. Será que nunca mais veria o pai, a mãe, Bumbão? Piscou outras duas vezes. Alguma coisa dançava em cima da cabeça das pessoas, talvez uma borboleta.
– Me deem um “Q”! – gritou Banho de Sangue.
– “Q”!
Uma borboleta azul. Com calça branca. E chapéu de três pontas virado ao contrário. Ela avançava na direção deles.
– Isso dá o quê? – gritou Banho de Sangue.
– NHOC-Q!
– Não ouvi!
– NHOC-Q!
A borboleta foi ficando cada vez maior. E mais próxima. Lise percebeu que ela não voava, mas saltava de cabeça em cabeça em meio à multidão. E tinha... sardas?
– Como se pronuncia? – rugiu Banho de Sangue.
– NHOC!
Era... Não podia ser... Mas era... ERA BUMBÃO!
Que maravilha! Ah, não, que horror! Era tarde demais! Lise ouviu Banho de Sangue puxar a corda. Os pássaros pararam de cantar. Os porcos se calaram. Só se ouvia o silvo da lâmina cortando o ar.
Capítulo 16.
De cabeça para baixo
UMA NOTA SOOU NO AR, o som da lâmina caindo sobre Lise e o doutor Proktor. Logo seriam mortos, decapitados, e a história seria mudada. Nenhuma Lise viveria na casa vermelha da rua dos Canhões, nenhum doutor Proktor viveria na casa azul. O Pó de Soltar Pum, o Pó de Pumponauta e os Prendedores de Nariz Franceses não seriam inventados. A banheira de viagem no tempo seria patenteada por outra pessoa, no caso, a assistente malvada do professor, Raspa. Bumbão corria para o cadafalso, era verdade, mas estava atrasado. Banho de Sangue já acionara a guilhotina.
O futuro parecia um tanto breve, digamos assim.
Lise fechou os olhos.
A lâmina bateu em alguma coisa. O silvo foi interrompido por um baque metálico.
Lise estava morta. É claro que estava. Acabara de ser decapitada. Tudo ao redor submergira em um silêncio sepulcral. Era um tanto ou quanto estranho que o som feito pela lâmina ao se chocar com o pescoço fosse um baque metálico e não um nhoc!, mas e daí? Também era estranho que tivesse ouvido o barulho, que pensasse em tudo aquilo, estando decapitada e tudo mais. Lise abriu os olhos, hesitante, em parte esperando ver o interior de um cesto de vime e o corpo descabeçado. Em vez disso, viu uma multidão de rostos encarando-a, e ao professor, sem dizer uma única palavra, as bocas abertas e um olhar de descrença.
Foi então que ouviu uma voz conhecida:
– Caros cidadãos de Paris! É chegado o dia da liberdade! Acabo de salvar duas crianças da Revolução. Agora, vou libertar vocês. Sim, VOCÊS! Vou libertá-los da tirania, da exploração, da erosão e de outras moléstias!
Lise virou a cabeça. Bem acima do pescoço, uma ponta de sabre fora enfiada na guilhotina. O sabre detivera a lâmina no último nanossegundo antes de serem descabeçados. Ou descorporificados, dependendo do ponto de vista. O professor gemeu baixinho debaixo dela:
– Ainda estamos vivos?
– Estamos – sussurrou Lise, correndo o olhar da lâmina ao punho, do punho à mãozinha que o segurava e, daí, ao meninote de uniforme azul que falava com a plateia, auxiliado por gestos espalhafatosos da mão livre.
– Prometo baixar todos e quaisquer impostos ou tarifas sobre o tabaco, a gasolina, os brinquedos e os cruzeiros marítimos!
– Bumbão! – sibilou Lise, baixinho. – O que está fazendo?
Bumbão fez uma pausa e sussurrou:
– Psiu! Sou bom nisso. Acabei de fazer 70 mil homens largarem os rifles e voltarem para casa. Presta atenção...
Bumbão limpou a garganta e levantou a voz de novo:
– Prometo banir as dores de dente, as aulas de educação física e aquela neve molhada e grudenta que não presta para esquiar. Prometo banir a pena de morte, sobretudo no que diz respeito à execução de professores malucos e de meninas belicosas. E, se todos forem bonzinhos, prometo que vão ganhar um Playstation de Natal!
Então baixou a voz e sussurrou:
– Viu só! Estão concordando com a cabeça. Ganhei a plateia.
– Acho que não – falou o doutor Proktor.
E o professor tinha razão. Um burburinho enfurecido percorria a multidão. Alguns sacudiam os punhos para o cadafalso.
– Queremos ver cabeças rolando! – gritou uma voz.
– Cortem a cabeça do baixinho! – berrou outra.
Atrás dele, Banho de Sangue tinha se recuperado do susto de ver um menininho aparecer ali de repente, enfiar o sabre na guilhotina, interromper a execução e – o que era pior – embotar a lâmina, que teria que ser afiada. Mas, como se tratava de um maluco, Banho de Sangue e os guardas preferiram avançar pelas costas dele, com muita cautela.
– Meus queridos patrícios – falou, rindo gentilmente. – Vocês não ouviram? Prometo banir a chuva aos domingos!
Um pedaço de pão com queijo brie foi atirado por alguém da plateia e quase o atingiu. Ao se desviar, Bumbão viu Banho de Sangue e os dois guardas desembainhando suas espadas.
– Prometo aumentar o salário de todo o mundo! – gritou Bumbão, mas já não parecia muito confiante. – Principalmente dos carrascos e dos guardas bigodudos. O que me dizem?
Ninguém disse nada. Banho de Sangue e os guardas continuavam a fechar o cerco sobre Bumbão, e o murmurinho da plateia só fazia ficar mais alto.
– Mas que droga! Não entendo! – resmungou Bumbão. – Isso funcionou tão bem em Waterloo.
– Sugiro que pense em outra coisa – falou o doutor Proktor. – E rápido. Senão vão fazer pedacinhos de nós.
– Que coisa? – sussurrou Bumbão. – Já prometi tudo o que podia prometer! O que eles querem?
– Acho que querem música – arriscou Lise.
– Música? – perguntou Bumbão, duvidoso.
– Cortem a cabeça do baixinho duas vezes! – gritou alguém.
Outros responderam:
– Oui!
Bumbão olhou ao redor, desesperado. Sabia que não tinha tempo. Mas nem tudo estava perdido. Afinal de contas, era ou não um baixinho inteligente com muitos truques na manga? Claro que era! Era esperto e talentoso. Mentia tão bem que chegava a acreditar na própria mentira e tocava o trompete tão bem que os passarinhos choravam de alegria e...
O trompete!
Olhou para o instrumento que Lise segurava na mão. Em uma fração de minuto, largou o sabre, saltou para o chão, passou por baixo dos guardas, pegou o trompete, colou-o aos lábios e soprou.
As duas primeiras notas se elevaram no céu azulado, e, de repente, os pássaros e as cotovias pararam de cantar, as abelhas e as moscas-varejeiras pararam de zoar. Quando a terceira e a quarta nota saíram do trompete, o burburinho ameaçador da plateia também se calou. Diferentemente do hino nacional norueguês, todos ali conheciam aquela canção.
– Não é... – disse uma senhora gorda com um filho debaixo de cada braço.
– Ora, se não é... – comentou um fazendeiro, levantando a boina vermelha listrada para coçar a cabeça com uma forquilha.
Foi então que os guardas o seguraram pelo braço, e Bumbão parou de tocar.
– Levem-no para a guilhotina! – gritou Banho de Sangue. – Ele tentou impedir duas decapitações, e isso significa que teremos que decapitá-lo três vezes. Não acham justo? Me deem um “N”!
– “N”! – respondeu a multidão, com manifesto desânimo, mas, se havia uma coisa que Banho de Sangue sabia fazer, era acender o espírito sanguinário das massas.
– Me deem um...
– Não! – A voz veio da plateia, e era uma voz tão miúda e frágil que Banho de Sangue poderia tê-la encoberto com facilidade. Mas, em vez disso, ficou tão perplexo que se esqueceu de continuar falando. Em toda a vida como carrasco, jamais vira alguém protestar contra uma decisão tomada. Todos sabiam que isso era como pedir para ser decapitado também.
– Deixem o baixinho tocar! – gritou uma voz. – Queremox ouvir múxica, como faxíamos aox domingox antex da revoluxão!
A Place de La Révolution emudeceu. Banho de Sangue abriu a boca para falar, o rosto contorcido em um esgar de ódio que ninguém podia ver por causa do capuz.
– Quem disse isso? – rosnou.
– Eu! – ouviu-se uma voz. – Marxel!
– Marxel? – repetiu Banho de Sangue. – Olhe aqui, Marxel, você vai...
– Marxel está certo – replicou outra voz, tão rouca como o vento no deserto. – Queremos ouvir o resto da canção. Afinal de contas, é a Marselhesa.
Banho de Sangue não sabia o que dizer. Diante dele, havia uma mulher-dragão esquisita com cabelo e casacão pretos.
– Eu quero ouvir música! – clamou uma voz no fundo da plateia.
– Eu também! – gritou uma mulher!
– E eu também! Toque a Marselhesa, garoto.
Banho de Sangue virou-se para os dois guardas.
– É! – disse ele, e acenou tristonho com a cabeça para que o menino fosse libertado. Bumbão não esperou uma segunda ordem: levou o trompete aos lábios e pôs-se a tocar. Logo no início, a multidão passou a cantar. Primeiro, de maneira hesitante, depois com maior naturalidade.
“Contre nous de la tyrannie
L’étendard sanglant est levé.”
– Ou, para aqueles que não estiverem usando Prendedores de Nariz Franceses:
“O estandarte ensanguentado da tirania
Está erguido contra nós.”
Bumbão subiu na guilhotina e se sentou em cima da cabeça do doutor Proktor e de Lise, que cantavam a plenos pulmões:
“Às armas, cidadãos,
Formai vossos batalhões.
Marchemos, marchemos!
Que o sangue impuro
Banhe os sulcos da terra.”
A letra era empolgante, sem dúvida. A música havia parado, mas as pessoas continuavam cantando. Em meio ao clamor geral, Bumbão distinguia três vozes: a primeira era fininha, frágil e chiada; a segunda era rouca como o vento no deserto; e a terceira vinha de trás dele, o vibrato grave de Banho de Sangue.
– Vamos perdoar os condenados à morte! – gritou Bumbão, quando se fez silêncio. – Não queremos morte! Queremos o quê?
– O quê?! – gritaram todos na Place de La Révolution.
– Me deem um “V”!
– “V”!
– Me deem um “I”!
– “I”!
– Me deem um “D”!
– “D”!
– Me deem um “A”!
– “A”!
– Isso dá o quê?
– VIDA! – respondeu a multidão. – VIDA! VIDA!
Bumbão ficou tão empolgado, entusiasmado e enlevado que quis cantar. Foi o que fez:
– Queremos vida! Sim, Sim! Não queremos morte! Não, não!
Banho de Sangue correu para a guilhotina, abriu-a, tirou Lise e o doutor Proktor de lá e os colocou de pé novamente, sacudindo-lhes o pó da roupa e perguntando se estavam bem. É claro que estavam, pois logo se apressaram na direção do menininho de uniforme azul e o levantaram pelos braços, cantando:
– Queremos vida! Sim, sim! Não queremos morte! Não, não!
Lá embaixo, na frente do palco, as pessoas dançavam, pulavam e cantavam. Nem mesmo nas decapitações mais sangrentas e bem-sucedidas de domingo houvera tanta animação. Banho de Sangue sentia algo gostoso por dentro, uma sensação de alegria que emanava do povo e corria seu corpo. Não dava para controlar, havia algo de cativante naquela musiquinha. Quando a alegria subiu-lhe à garganta, Banho de Sangue fez algo que jamais fizera em toda a carreira de carrasco: levantou o capuz e mostrou o rosto. No mesmo instante, todos pararam de cantar. Olharam para ele, horrorizados. Banho de Sangue não era lá muito bonito. Ele abriu um largo sorriso e cantarolou em um vibrato retumbante:
– Queremos vida! Ah! Ah!
E, com isso, a festa continuou. A multidão foi à loucura. Todos estavam exultantes, radiantes, arquejantes e tantos outros “antes”. Nem sequer perceberam quando os três amigos desceram por trás do palco, contornaram a prisão da Bastilha e desapareceram. Apenas continuaram cantando, dançando e jogando vinho tinto uns nos outros. Na manhã seguinte, quando acordaram com a cabeça latejando, os quadris doloridos e a garganta arranhada, Banho de Sangue foi o único que se lembrou da música. Cantou-a até o fim da vida, ensinou-a aos filhos e aos netos, e eles se mudaram para a Inglaterra, para a Alemanha e até mesmo para Minnesota, onde os descendentes formaram uma banda de heavy metal chamada Os Almôndegas, que se tornaria famosa pelo doidocumentário: Queremos vida.
Trouxeram Sabão Temporizador? – perguntou o doutor Proktor, ofegante. Ele, Lise e Bumbão tinham deixado a Bastilha para trás e corriam pelas ruas sinuosas de Paris. Lise e Bumbão não faziam ideia de onde estavam, mas o professor parecia conhecer bem as vielas e os becos pouco movimentados aos domingos.
– Eu trouxe um punhado – falou Lise. – Acho que é pouco para nós três. Tive que fazer algumas adaptações, sabe.
– Eu também – disse Bumbão. – Não sobrou muito. Tive que fazer algumas adaptações, sabe.
– Espero que, juntando os dois, tenhamos o suficiente – desejou o doutor Proktor, virando a esquina. – Conheceram Juliette? Ela está esperando no hotel?
Mas, antes que pudessem responder, o doutor Proktor parou tão bruscamente que Lise e Bumbão trombaram nele.
– Ai, não! – falou o professor. – Roubaram a minha banheira. Vejam!
Mas não havia muito o que ver: o professor apontava para uma praça vazia, com apenas algumas barraquinhas de venda.
– Levaram para casa – murmurou Bumbão. – E agora, o que vamos fazer?
– Onde está a sua banheira, Bumbão? – perguntou Lise.
– Deixei na Pastilha – ele falou. – Você não escreveu no bilhete que tinha ido para a Pastilha? Ô lugarzinho esquisito! Fui parar em um galinheiro.
– Desculpa, confundi Pastilha com Bastilha – explicou Lise. – Vamos ter que voltar lá antes que as bolhas desapareçam, para não desperdiçar Sabão Temporizador. Mas como? Não temos nenhum porco.
– Nenhum porco? – disseram o professor e Bumbão em coro.
– Deixem para lá – suspirou Lise, percebendo que seria difícil explicar. – O que vamos fazer?
– O que vamos fazer? – disseram o professor e Bumbão em coro.
Os três amigos se entreolharam, aflitos.
E, enquanto se entreolhavam, aflitos, recebendo os raios de sol filtrados pelos altos prédios parisienses, ouviram a batida de cascos de cavalo e o rangido de grandes rodas de madeira. Viraram-se. Um cavalo marrom com largos antolhos pretos virou a esquina, saltitando. Puxava uma carruagem. O cocheiro vinha sentado na boleia, balançando de um lado para o outro, uma expressão sonolenta no rosto. Tinha grandes olheiras escuras e trazia um casaco rasgado e uma cartola preta carcomida que mais parecia uma chaminé.
– Carona? – perguntou ele, bocejando.
– É exatamente disso que precisamos! – exclamou o professor. – Entrem, vamos!
Subiram na carruagem, e ela seguiu viagem.
Havia espaço para quatro pessoas nos dois bancos internos, e era exatamente disso que precisavam, pois havia mais alguém sentado ali dentro. A aba do chapéu do passageiro cobria-lhe o rosto. Ele parecia estar ferrado no sono. O corpo balançava com o movimento da carruagem.
– Estranho – comentou Lise.
– O que foi? – perguntou o professor.
– O cocheiro não perguntou aonde vamos.
– Elementar – falou Bumbão, um sorriso condescendente estampado no rosto. – Primeiro, ele vai largar o passageiro.
– Mas não temos tempo! – disse Lise. – Não seria melhor perguntar se podemos passar antes na Pastilha?
O professor balançou a cabeça.
– Não adianta, Lise. As bolhas já devem ter desaparecido.
Refletiram por um tempo. O silêncio só era quebrado pelo tropel de cascos nas lajes de pedra, como um lento sapateado.
– Raspa estava lá – falou Lise. – No meio da multidão. Vocês viram?
– Não – respondeu o professor. – Mas não estou surpreso.
– Por que não? – disseram Lise e Bumbão ao mesmo tempo, arregalando os olhos para o professor.
– Era parte do plano – suspirou ele.
– Plano? – gritaram Bumbão e Lise ao mesmo tempo.
– Sugeri que vendessem o selo na relojoaria porque queria mostrar a Raspa que a máquina do tempo funcionava. Sabia que ela viria atrás de mim para tentar roubá-la, como fizera quando era minha assistente em Paris.
– Mas, se sabia que ela ia tentar roubar a invenção – falou Lise, agitada –, por que quis que ela viesse para cá?
– Porque eu não tinha Sabão Temporizador suficiente – disse o professor. – O que eu tinha no porão bastava para trazê-los para cá, mas não para nos levar de volta. Raspa é a única pessoa no mundo capaz de fazer Sabão Temporizador. Ela tinha que vir.
– Por que não mandou um cartão-postal para ela? – perguntou Bumbão.
O professor suspirou de novo.
– Raspa jamais teria vindo me resgatar voluntariamente. Ela me odeia.
– Por quê?
O doutor Proktor coçou a cabeça.
– Não sei. Nunca tentei privá-la da honra de ter inventado o Sabão Temporizador.
– Só uma coisa... – falou Bumbão. – Como sabia que contaríamos sobre a viagem para Paris?
O professor soltou um risinho pelo canto da boca.
– Primeiro, havia o selo e o cartão-postal. Sabia que ela ligaria os pontos. Depois, você pode ser bom em várias coisas, Bumbão, mas guardar segredos não é exatamente sua especialidade, concorda?
Lise pigarreou.
– Ah, ah, ah! – Bumbão abriu um largo sorriso em zigue-zague.
– E agora? – perguntou Lise. – Como vamos encontrar Raspa? Como vamos convencê-la a produzir mais sabão?
– Bem – falou o professor. – Encontrá-la não vai ser tão difícil.
– Não?
– Vocês realmente acham que carruagens aparecem do nada justo quando mais precisamos?
O doutor Proktor apontou a cabeça na direção do passageiro adormecido e olhou para baixo. Bumbão e Lise seguiram seu olhar, e eis que, sob o casacão, havia uma perna de pau acoplada a um patim verde-claro.
Capítulo 17.
Onde está Juliette?
A CARRUAGEM SEGUIA AOS SOLAVANCOS pelas ruas de Paris. Lise, Bumbão e o doutor Proktor estavam sentados no banco, olhando para o estranho companheiro de viagem.
– Ora, ora – rosnou uma voz rouca debaixo da cartola. – Foi por isso que eu vim, Viktor? Para fazer mais Sabão Temporizador para você e esses fedelhos?
Quando o passageiro levantou a aba da cartola, os olhos vermelhos de Raspa fitaram o doutor Proktor.
– É claro – disse o professor.
– É claro? – sibilou Raspa, atirando a cartola no chão. – É isso que sou para você? Uma saboeira qualquer?
– Muito pelo contrário – respondeu o professor, surpreso. – Para mim, você é uma saboeira genial. A melhor, para dizer a verdade.
– Mas sou apenas uma saboeira. Nada... – A voz de Raspa fraquejou um pouco. – Nada mais do que isso.
– Como assim, Raspa?
Ela fitou o doutor Proktor, o peito arfando.
– Nada – disse ela, como se tivesse ficado resfriada de repente. – E, agora, Viktor, você acha que ela está esperando por você no Battant-Doré, aquela... aquela... – Gesticulou com desdém e cuspiu o nome: – Juliette Margarina!
Bumbão desviou o olhar de Raspa para o doutor Proktor. Não sabia o que estava acontecendo e, pelo visto, o professor, que era quem costumava saber das coisas, também não.
Só Lise parecia entender. Mesmo assim, inclinou-se para Raspa e perguntou:
– Onde está Juliette?
A mulher de olhos pintados gargalhou como um corvo crocitante.
– Não digo.
– Escuta aqui, Raspa... – começou o doutor Proktor, em tom de ameaça, mas foi logo interrompido.
– Não se preocupe, Viktor. Vamos dizer apenas que ela está recebendo o que merece. Esqueça aquela mulher. Ela não serve para você, aquela bruxa.
– Bruxa...? Ai! – O professor havia se levantado dentro da carruagem e batido com a cabeça no teto. – Ninguém chama minha Juliette de bruxa!
– Viktor, por favor – riu-se Raspa. – Um homem da sua idade não deve se exaltar. Cuidado com o coração.
– Pelo menos, eu tenho um coração – rosnou o professor. – Você... Você – Os olhos se encheram de pesadas lágrimas. – Você só tem cérebro!
– Raspa, onde está Juliette? – repetiu Lise. – Ela viajou no tempo? Você rastreou os restos de sabão?
Raspa suspirou pesadamente.
– Não sei quanto Sabão Temporizador vocês têm, mas, se ainda têm alguma coisa, sugiro que voltem para a época em que vivem. É para lá que eu vou. – Recostou-se no assento e cruzou a perna de pau.
– Raspa – sussurrou o professor, queixoso, uma lágrima enorme escorrendo pelo rosto. – Por favor! Faço qualquer coisa, só me diga onde está Juliette.
Raspa arqueou a sobrancelha.
– Qualquer coisa?
– Qualquer coisa! Será que você não entende! Sem Juliette, a vida não vale a pena.
Raspa tremeu ao ouvir aquilo, como se tivesse sido atingida por uma melancia na cabeça.
– É mesmo? – falou, ríspida, levantando o queixo. – Então me faça um esboço da banheira de viagem no tempo. Ah!
– É pra já! – gritou o doutor Proktor, sorrindo. – Você pode ficar com a invenção todinha para você. Pode ficar com todas as invenções. É tudo seu!
Raspa abriu a boca, mas não disse nada. Fechou e abriu a boca de novo.
– Quer dizer... – sussurrou ela. – Quer dizer que daria tudo para ficar com aquela... mulher?
– Com certeza – respondeu o doutor Proktor, sem titubear. – Juro. Não importa o que pense de mim, sabe que sou um homem de palavra.
Raspa o encarou, boquiaberta.
– Aceita? – perguntou o professor.
– Aceito – murmurou Raspa. – Então vou contar...
Respirou fundo. Na carruagem, além de sua voz, só se ouviam os cascos do cavalo batendo no chão, as vacas mugindo ao longe e um barulho que parecia um ronco.
– Quando arrombei a porta do quarto no Battant-Doré, os dois fedelhos já tinham escapado pela banheira. Mas Juliette continuava lá. Eu a ameacei com a minha pistola, que, apesar de velha, funciona. Mandei-a entrar na banheira, segurei-a pelos cabelos, mergulhei minha cabeça e me concentrei em um lugar para despachá-la, do mesmo jeito que você fez com o cartão-postal, Viktor.
– Certo – falou o professor. – Para onde você a mandou?
– Para um lugar onde ela ficaria presa e não seria encontrada. Afinal de contas, ela era a minha... Como dizer?... Minha moeda de troca.
O doutor Proktor engoliu em seco.
– Onde ela está? Vamos, diga!
– Em uma cela. Na cidade de Rouen. No dia 30 de maio de 1431.
O doutor Proktor pareceu não entender.
– Por que essa data?
– Acho que sei – respondeu Lise.
– Sabe? – repetiu o doutor Proktor, e olhou para ela.
– A senhora Strobe falou sobre isso na aula de História. Joana d’Arc foi queimada no Velho Mercado de Rouen nessa data.
– É verdade? – indagou o professor, o olhar se voltando para Raspa.
Raspa deu de ombros.
– Foi a primeira coisa que me passou pela cabeça.
– Algo me diz que os meus problemas ainda não acabaram – concluiu o doutor Proktor.
A carruagem parou, e eles ouviram a voz do cocheiro na boleia:
– Chegamos à Pastilha, mademoiselle Raspa!
– Estava vindo para cá? – perguntou o doutor Proktor.
– É claro – disse Raspa. – Minha banheira está aqui. No chiqueiro, para ser mais precisa.
– Você me seguiu – falou Lise.
– É claro. Eu percebi que aquele nanico jamais me levaria até Viktor – disse Raspa, apontando para Bumbão, que, aliás, já estava quieto fazia um bom tempo, o que não era lá muito normal vindo dele, como já devem ter imaginado. Bumbão estava deitado, afundado no assento, e o barulho que parecia um ronco, na verdade, era só isso: um ronco.
Lise revirou os olhos e chutou a canela de Bumbão para acordá-lo. Ele pestanejou, estalou os lábios, sorriu e resmungou em uma voz grogue, porém esperançosa:
– Café da manhã?
Os quatro saltaram da carruagem. Felizmente, as banheiras continuavam no mesmo lugar. É verdade que, em uma delas, havia três porcos chafurdando o restinho d’água, e, na outra, que ficava no galinheiro, um galo bicava, agressivo, como se fosse seu novo dono.
Raspa despejou um pouco de Sabão Temporizador nas duas banheiras e disse que queria ir para Rouen com eles. De que outra forma poderia ter certeza de que não iriam enganá-la e fugir com o esboço?
O doutor Proktor não se opôs. Ficou combinado que ele e Bumbão usariam a banheira do galinheiro, e Raspa e Lise, a do chiqueiro.
Quando Lise e Raspa ficaram sozinhas, revolvendo a água de sabão, Lise ouviu Raspa fungar. Não disse nada. Só esperou. Então houve outra fungada. E outra.
– Você era apaixonada por ele, não era? – indagou Lise.
Raspa deu uma fungada longa e úmida.
– Viktor nunca percebeu – falou ela. – Só tinha olhos para suas invenções.
Lise balançou a cabeça solidariamente. Sua antiga suspeita tinha se confirmado.
– Eu teria feito qualquer coisa por ele – confessou Raspa, fungando, enquanto revolvia a água da banheira. – Se ele tivesse pedido, teria dado a receita do Sabão Temporizador. Achava que Viktor era lento, que precisava de tempo para se apaixonar. Então, um dia, ele chegou no laboratório, radiante, e disse que havia se apaixonado por uma francesa na rua, e percebi que ele não era lento coisíssima nenhuma. – Fungada gigante. – Quer saber?
– O quê? – perguntou Lise.
– Eu era muito mais bonita do que aquela, aquela... Juliette Margarina, OK?
– É claro – disse Lise. – Mas ele se apaixonou por ela. Às vezes, isso acontece. Fazer o quê?
Raspa parou de agitar a água e virou a cabeça para Lise.
– Posso saber quem morreu e fez de você a Rainha das Sabichonas? Você é só uma garotinha tola. O que sabe da vida?
– Muito pouco, talvez – falou Lise. – Mas já perdi uma amiga e ganhei um amigo.
Raspa tirou um lenço do bolso e assoou o nariz.
– Puxa! – ela comentou. – Um amigo?
– É – disse Lise. – Nunca é tarde para fazer novas amizades.
Raspa fungou com desdém.
– Ainda que mal pergunte, Vossa Majestade, quem faria amizade com uma velha malvada de perna de pau?
– Bem – disse Lise, baixando o olhar para as bolhas que começavam a se formar na banheira. – Eu faria.
– Pelas barbas de Netuno! – cuspiu Raspa, limpando a garganta.
Lise não respondeu. As duas ficaram revolvendo a água em silêncio, embora já houvesse quantidade suficiente de bolhas para viajarem.
Foi então que Raspa perguntou:
– Sabe o que é mais engraçado?
– O quê? – falou Lise.
Raspa deu uma risadinha fria.
– Não diga nada para Viktor, mas eu sempre soube fazer banheiras de viagem no tempo.
Lise parou o que fazia na hora.
– Como assim?
Raspa deu de ombros.
– Não preciso do esboço. Posso fazer minha própria banheira do tempo.
– Mas... se não precisa do esboço, por que nos seguiu até Paris?
– Não é elementar, como diria seu amigo Bumbão?
Lise sorriu.
– Você veio atrás do doutor Proktor, e não do esboço.
Raspa soltou um suspiro profundo.
– Fui burra... Imaginei que ele fosse... fosse...
– ... se apaixonar por você?
Raspa riu-se com amargura.
– Burra, né? O que ele ia querer comigo? Uma velha bruxa com perna de pau e bafo de onça!
– Não sei – respondeu Lise. – O que não entendo é por que você está ajudando o doutor Proktor a encontrar Juliette se não precisa do esboço.
– Até as bruxas, às vezes, desconhecem seus motivos. Vamos, Lise. Temos que ir para a Idade das Trevas.
Capítulo 18.
A noite das bruxas
A IDADE DAS TREVAS MOSTROU-SE BASTANTE TENEBROSA: negra como a noite, negra como o carvão, negra como um quadro-negro – bem, talvez não como um quadro-negro. Era noite, sem dúvida. Bumbão convenceu-se disso ao sair da banheira.
– Tem alguém aí? – gritou, a voz ecoando.
– Eu – respondeu alguém do seu lado.
– Dã! Isso eu sei – disse Bumbão. – Viemos na mesma banheira. Eu perguntei se tinha mais alguém aqui, além de você. Consegue ver alguma coisa?
– Não – falou o doutor Proktor. – Juliette? Juliette? Nenhuma resposta.
– Juliette – repetiu o professor. – Juli... eita!
– O que foi isso?
– Alguma coisa bateu na minha cabeça.
– O que foi?
– Acho que foi uma banheira.
– Tem alguém aí? – Era a voz de Lise.
– Estou aqui – avisou uma voz rouca e seca como o deserto.
– Dã! Isso eu sei – sussurrou Lise. – Viemos na mesma banheira. Eu perguntei se...
– Estamos todos aqui – falou Bumbão. – Mas onde estamos? Não vejo nada.
– Estamos exatamente onde queríamos estar – respondeu o doutor Proktor. – Na cela de Joana d’Arc.
Bumbão ajustou os olhos ao escuro e avistou uma janela alta com barras de metal e o contorno de três banheiras brancas espalhadas em desordem.
– Juliette esteve aqui – disse Bumbão. – Estou vendo a banheira dela.
Ouviu-se um rangido.
– A porta está trancada. – Era a voz de Raspa. Bumbão viu a silhueta da mulher delineada contra o que parecia ser uma alarmante porta de aço maciço.
– Ótimo. Quer dizer que estamos presos, e Juliette não está aqui! – falou Lise. – O que vamos fazer? Pst! Ouviram isso?
Bumbão prendeu a respiração e ficou escutando. Tudo o que ouviu foi uma série de estalos vinda do lado de fora, como fogos de artifício estourando ao longe. alma! Ah, sim! Ouviu um suave gemido que vinha... vinha de baixo da banheira de Juliette.
– Me ajudem a virar a banheira! – gritou Bumbão.
Raspa e o doutor Proktor correram para ajudá-lo. Levantaram a banheira de lado, e a água escorreu para o chão escuro e poeirento. E eis que, sob a banheira, deitada de bruços, havia uma mulher! A lua deve ter saído de trás das nuvens naquele instante, pois uma luz suave iluminou a cela, o vestido branco e o cabelo castanho-avermelhado da mulher.
– Juliette, você...! – começou Lise, explodindo de felicidade, mas parou quando a mulher ergueu a cabeça e os encarou com olhos azuis incandescentes e assustados. Embora se parecesse com Juliette e tivesse a mesma cor de vestido, o mesmo cabelo castanho-avermelhado, aquela definitivamente não era Juliette. Era uma mocinha. Na verdade, parecia mais uma adolescente.
– Quem é você? – perguntou o doutor Proktor.
– Meu nome é Joana – disse ela.
– Joana d’Arc? – gritou Lise, mal contendo a surpresa. A mocinha tinha cabelos longos e bonitos, exatamente como na gravura do livro de História, só que parecia ser bem mais jovem.
Joana acenou que sim com a cabeça.
Bumbão ficou petrificado, as mãos ainda segurando a banheira. Não tinha palavras. Joana era a mocinha mais bonita que já vira, mais bonita do que as mulheres que o tinham beijado no rosto depois da corrida de bicicleta, mais bonita do que Juliette na foto em que ela e o professor apareciam jovens, sim, mais bonita até do que as dançarinas de cancã do Moulin Rouge.
– Onde está Juliette? – perguntou o doutor Proktor.
A mocinha piscou os olhos, sem entender a pergunta.
– A mulher que chegou na primeira banheira! – acrescentou o professor.
– Não sei – respondeu Joana, encolhendo-se defensivamente como se temesse que fossem bater nela.
Bumbão largou a banheira, que caiu para o lado com um baque forte, e agachou-se ao lado da mocinha.
– Joana, sabemos que você passou por maus bocados – ele falou, a voz artificialmente grave e solene, colocando a mão no ombro dela. – Mas não precisa ter medo de nós. Só viemos resgatar Juliette. Ela é a namorada do professor. Está entendendo?
A garota fez que sim com a cabeça. Bumbão sorriu e continuou:
– Outra coisa, você tem namorado? Porque eu estou desimpedido.
Lise pigarreou e empurrou Bumbão para o lado.
– Pode nos dizer o que aconteceu, Joana?
A garota desviou o olhar de Lise para Bumbão.
– Estava dormindo, à espera dos inquisidores – respondeu Joana. – Fui acusada de bruxaria, sabe, vou ser queimada na fogueira.
– Eu sei – falou Bumbão com entusiasmo. – Tudo porque você derrotou os ingleses em Orleans.
– Isso mesmo – disse Joana. – Mas também porque falo com Deus e me recuso a usar o corte de cabelo tigelinha.
– Tigelinha?
– É. Todos estão usando esse corte, para mostrar que são submissos a Deus, sabe. Vocês também se recusaram, não é? É por isso que estão aqui?
– Não – respondeu Lise. – Bumbão falou a verdade. Viemos do futuro em uma banheira mágica para resgatar Juliette.
Joana os encarou por um longo tempo.
– Coitados. Se querem me queimar só porque eu disse que troquei umas ideias com Deus, imagina o que vão fazer com vocês quando contarem essa mentira ridícula.
– Não se preocupe com a gente, Joana – falou o doutor Proktor. – Só nos conte o que aconteceu.
– Acordei quando abriram a porta de ferro. Foi então que percebi que tinham colocado uma banheira em cima de mim. Ouvi alguém se levantar dentro dela. Os guardas começaram a gritar. Puxaram uma mulher molhada da banheira e a levaram embora. A porta se fechou de novo, e fiquei sozinha... Não sei, não sei... – Os olhos dela correram de Bumbão para Lise, de Lise para o professor. – Acho que pensaram que era eu. Estava escuro, sabe.
– Ah, não – disse Lise. – Então quer dizer que...
– ... eles vieram buscar minha querida Juliette... – continuou um doutor Proktor totalmente horrorizado.
– ... para fazer churrasquinho dela? – suspirou Bumbão.
A garota fez que sim com a cabeça.
– Sinto muito. Ela foi levada para a praça...
Então a ficha caiu para todos. A luz bruxuleante que entrava pela janela não vinha da lua. Os estalos não vinham de fogos de artifício. Vinham de uma fogueira.
– Não! – gritou o doutor Proktor, caindo de joelhos. – Não!
Unhas longas cravaram-se nos braços de Bumbão, e ele foi erguido. O hálito mortífero de Raspa soprou-lhe no rosto.
– Você vai fazer uma pequena escalada, Napoleão.
No instante seguinte, ele estava de pé sobre os ombros de Raspa, debruçando-se sobre a janela com barras de ferro.
– Agora, sim – disse Bumbão. – Ah, não!
– O que foi? – perguntou Lise, impaciente. – O que está vendo?
– Estou vendo uma praça – narrou Bumbão. – O público já se acomodou. Os jogadores estão em campo. Todos têm o mesmo corte de cabelo idiota! O time de casa entrou vestido de padre, com cruzes e crucifixos, recitando gritos de guerra de um livro grosso, provavelmente a Bíblia. O time de fora, composto de uma só pessoa, Juliette Margarina, está amarrado a um poste e cercado por fardos de lenha incandescentes. Várias tochas se acenderam ao redor dela. Infelizmente, o time de casa parece ser o franco favorito. Não temos muito tempo...
– Ah, não! – gritou Joana. – Eu é que devia ser queimada. Eu é que sou bruxa, não aquela pobre mulher!
Bumbão saltou para o chão, ajeitou o uniforme, apertou a empunhadura do sabre e anunciou em voz alta:
– Nenhuma de vocês vai ser queimada, querida Joana. O sargento Bumbão chegou. Ele vai nos tirar daqui e resgatar Juliette. Primeiro, vamos examinar a parede, tijolo por tijolo...
– Por quê? – perguntaram os demais em uma só voz.
– Elementar – falou Bumbão, que já começara a sentir a parede com os dedos. – Prisões desse tipo sempre têm uma chave ou uma adaga escondida atrás de um tijolo solto. Nunca viram filme de época? Só temos que encontrar o tijolo certo.
– Até parece! – disse Lise, correndo o olhar pela parede.
– Achei! – gritou Bumbão. – Tem algo escrito na argamassa! Deve ser o tijolo certo!
– Os outros se aproximaram. O luar entrava pela janela no alto da parede e iluminava o ambiente com uma luz fraca. Na superfície do tijolo, havia uma data:
– Um dos prisioneiros deve ter feito isso – falou Bumbão, empurrando os tijolos ao redor da inscrição. Nenhum deles cedia.
– Não foi um prisioneiro – comentou o doutor Proktor. – Veja só o que acontece quando eu risco a argamassa. – Puxou a faca e desenhou um rosto com dois olhos, uma boca e um bigode retorcido. – Viu só? O risco fica grosso e áspero. Mas os caracteres da inscrição são suaves e bem delineados. Isso significa que foram feitos em cimento mole, provavelmente por um dos pedreiros que construíram a prisão no ano de 1111.
– Estranho – comentou Lise.
Todos se viraram para ela.
– Só conheço uma pessoa que desenha olhos e narizes em letras e números, e essa pessoa é Bumbão.
Todos se voltaram para ele.
– E daí? – perguntou Bumbão. – Eu não era nascido em 1111.
– Eureca! – gritou o doutor Proktor.
Todos se viraram para ele.
– Foi você que escreveu a data! – disse o professor. – Você esteve aqui no ano de 1111. Ou melhor, vai estar! É que ainda não esteve, entendeu?
É engraçado como, de repente, dois, três e (de vez em quando) até quatro cérebros conseguem pensar na mesma coisa ao mesmo tempo.
– Eureca! – gritaram os outros, pois “eureca” é o que se diz quando a ficha cai.
Raspa despejou um punhado do pó do tempo na água e começou a revolvê-la. Bumbão tinha subido na beirada da banheira e se preparava, girando o pescoço, enquanto o professor lhe massageava os ombros. Lise inclinou-se para ele e falou em uma voz que era quase um canto:
– Concentre-se no Velho Mercado de Rouen. No dia 13 de janeiro de 1111. Foi nessa data que construíram a prisão. Quando chegar lá, pegue a chave da porta de ferro, faça uma cópia com um ferreiro e peça aos pedreiros que coloquem a chave atrás de um dos tijolos. Depois escreva a data na argamassa antes que o cimento endureça. Entendeu?
– Entendi, entendi – falou Bumbão.
– Depressa! – sussurrou Joana, olhando para a abertura no alto da parede. A luz bruxuleante ficava cada vez mais forte, e os estalos, mais altos.
– O Sabão Temporizador está no ponto – anunciou o doutor Proktor. – Bon voyage! Lembre-se de voltar... – olhou para o relógio – ... daqui a dez segundos. Às dez e cinquenta e cinco da noite. Vá depressa!
– Espere! – pediu Raspa. Deu um passo à frente e entregou a Bumbão um saquinho de couro preto cheio de moedas. – Isso vai ajudá-lo a persuadir o ferreiro e os pedreiros.
– Obrigado – disse Bumbão, enfiando o saquinho no bolso do uniforme. Então gritou: – Lá vou eu! – e pulou.
Voou água para todo lado, até para fora da janela com barras de ferro.
– O que tinha na bolsa, Raspa? – perguntou o doutor Proktor, baixinho, enquanto olhava para o ponteiro pequeno do relógio.
– Algo que descobri por acaso nas minhas horas livres... – disse Raspa – ... como fazer aurum a partir de dióxido de enxofre, silicone e ovos mexidos.
– Aurum? – perguntou Lise.
– É ouro em latim – informou o doutor Proktor. – Quatro... três... dois... e... ZERO!
Todos olharam para a banheira. Ninguém disse nada. Nada aconteceu. Do lado de fora, a multidão começou a gritar mais alto.
– Algo deu errado – falou Raspa.
O doutor Proktor soltou um suspiro quase inaudível.
– É tarde demais para irmos buscá-lo.
– Não percam as esperanças – disse Lise. – Ele já vai chegar.
Raspa bufou.
– Por que acha isso?
– Porque ele é meu amigo, e eu o conheço – respondeu a menina. – Ele pode ser um pouco esquecido e está sempre atrasado, mas vai voltar. É o jeito dele.
– Ah, não – murmurou Joana. Todos se viraram, seguiram o olhar dela até a abertura na janela e viram a longa silhueta de fogo delineada contra o céu noturno.
Foi então que ouviram um barulho d’água e uma voz que disse:
– Nunca viajem para o ano de 1111!
– Bumbão! – gritou Lise.
A comida é nojenta, os colchões de palha estão cheios de mosca, todo o mundo tem dente podre e não existe TV! – O ruivinho estava de pé na beirada da banheira, olhando-os com uma expressão triunfante.
– Vamos logo! – falou o doutor Proktor. – Por que demorou tanto?
– Foi mal – respondeu Bumbão, saltando para o chão. – É que a peste tinha matado todos os ferreiros da cidade, e tive que ir de cavalo para a aldeia seguinte. Na volta, o cavalo morreu de peste, e tive que andar o resto do caminho a pé. Quando cheguei aqui, os pedreiros tinham dado no pé, e tive que assentar os tijolos com minhas próprias mãos. Ele deve estar em algum lugar...
Desembainhou o sabre e o enfiou na argamassa, entre dois tijolos.
– Aqui!
Usou o sabre como alavanca, e pedacinhos de argamassa voaram para todo canto. Colocou os dedos sob o tijolo, puxou-o e pegou a chave. Depois correu até a porta de ferro, meteu a chave na fechadura e girou. Ou melhor, tentou girar. A chave não se mexeu.
– Droga! – xingou Bumbão.
O professor pulava atrás dele.
– O que foi?
– Hum – disse Raspa, estudando a chave. – Acho que mudaram a fechadura. Tanto trabalho por nada!
– Ah, não – falou Joana. Pela quarta ou quinta vez, pensou Lise, um pouco irritada.
– Tudo em vão! – desabafou o professor, caindo de joelhos. – Ó vida!
– Ó vida! – repetiu Bumbão.
Enquanto os outros lamentavam, Lise teve uma ideia. Caminhou até a porta, girou a maçaneta e empurrou.
Os lamentos cessaram no momento em que as dobradiças mal lubrificadas rangeram e a porta se abriu.
– Como...? – começou o doutor Proktor.
– Elementar – falou Lise. – Por que eles trancariam a porta de uma cela supostamente vazia? Vamos!
– Um minuto! – gritou Joana. Os outros se viraram, surpresos. A mocinha começara a pentear o cabelo freneticamente. Ao ver os olhares incrédulos dos companheiros, parou.
– O que foi? Está cheio de gente lá fora! – disse ela, meio zangada, guardando o pente dentro do vestido.
Então saíram correndo. Desceram corredores escuros e subiram escadas que se enroscavam como serpentes nas torres, até que chegaram à porta do pátio que dava para a praça.
Pararam. As luzes das chamas brincavam em seus rostos.
– Ah, não! – falou Joana, cobrindo os olhos com as mãos.
– Chegamos tarde demais – disse o doutor Proktor.
Capítulo 19.
De volta ao presente
LISE FICOU PETRIFICADA. Já tinha visto aquela cena na gravura de um livro, o livro de História.
As chamas dançavam ao redor da mulher de branco amarrada ao poste.
Um homem vestido de padre brandia uma cruz na direção da fogueira. A multidão na praça estava calada. Só se ouviam o rugido das chamas e os gritos de outro padre entoando palavras em latim para o céu noturno. Foi então que Lise entendeu por que achara Joana d’Arc parecida com Juliette na gravura do livro de História.
Estremeceu. Só podia significar uma coisa: o que estava acontecendo já tinha acontecido – Juliette seria queimada na fogueira naquele dia 20 de maio de 1431, no lugar de Joana d’Arc. Não havia nada que pudessem fazer. Lise vira a gravura de Juliette no livro de História. A história estava escrita em pedra. Não poderia ser mudada.
– É tarde – sussurrou Lise. – Sempre foi tarde.
Murmurou tão baixinho que o professor, Bumbão e Joana não ouviram. Apenas Raspa escutou. Inclinou-se para Lise, e a voz rouca como o vento do deserto soprou na orelha da menina:
– É verdade, querida. Mas existe uma coisa que ainda pode salvá-la.
– A morte – sussurrou Lise. – Você disse que, para mudar a história, é preciso estar preparado para morrer.
– Isso mesmo.
– O doutor Proktor... – começou Lise. – Ele disse que, sem Juliette, a vida não valeria a pena.
– Eu lembro – falou Raspa. – Mas ele teria que morrer antes dela.
Lise mordeu o lábio. O vestido de Juliette pegara fogo. O doutor Proktor estava caído de joelhos, chorando.
– Elementar! – exclamou Lise, de repente. – Bumbão, você ainda tem um pouco de Pó de Pumponauta?
Bumbão não ouviu. Observava a fogueira, hipnotizado. Lise enfiou as duas mãos nos bolsos dele e puxou um saquinho plástico.
– Sabão Temporizador? – perguntou Raspa.
– Não – disse Lise. – Melhor que isso. É uma das invenções do doutor Proktor. – Jogou a cabeça para trás, abriu a boca e engoliu um punhado de pó azul de pumponauta.
– O que está fazendo? – perguntou Raspa.
– Estou mudando a história – explicou Lise. – Oito! Mande o doutor Proktor se preparar para tomar o lugar de Juliette. Sete!
– O quê?
– Seis! Cinco!
– Bumbão, Joana e o professor se viraram para Lise e Raspa.
– Bumbão, Joana! – gritou Lise, curvando-se para a frente e apontando o traseiro na direção da fogueira. – Segurem-se em mim! Quatro! Três!
Bumbão logo percebeu o que a melhor amiga fazia. Enquanto Raspa sussurrava alguma coisa no ouvido do professor, Bumbão correu até Lise, segurou-a pelo braço e sinalizou para que Joana fizesse o mesmo.
– Dois! Um! Zer...!
O estouro foi tão grande que os ouvidos de Bumbão se encolheram em dolorosa alegria; o doutor Proktor sentiu o crânio rachar; e os cílios postiços de Raspa voaram para longe. Os mastros da praça dobraram-se ao meio, a multidão foi derrubada e os padres deram cambalhotas para trás com as longas vestes levantadas até o pescoço. Quando recobraram os sentidos, tossiam e piscavam olhos ardidos e lacrimejantes, mas não enxergavam nada. A fogueira e as tochas tinham se apagado, e a densa fumaça cobrira a escuridão noturna.
– Bumbão! – gritou Lise, tossindo no escuro.
– Joana! – gritou Bumbão, tossindo no escuro.
– Doutor Proktor! – gritou Joana, tossindo no escuro.
Mas não se ouviu resposta do doutor Proktor, apenas uma gritaria na praça:
– Acendam a fogueira de novo!
Bumbão encostou na mão de alguém.
– É você, Lise? – gritou ele. – Fale comigo, Lise!
Então uma voz sussurrou quase dentro do seu ouvido:
– Quer dizer que garotas não sabem soltar pum? Você me deve uma tonelada de balas de caramelo.
– Lise!
– Venha! Temos que encontrar Joana.
Saíram tateando por dentro do breu e da fumaça, até que as mãos de Bumbão tocaram uma cabeça que se retraiu rapidamente.
– Meu cabelo! – queixou-se uma voz.
– Joana! – disse Lise. – Vamos dar as mãos para não nos perdermos!
Mas não era necessário. A fumaça já começava a se dissipar, as tochas se acendiam aos poucos e a praça ia se enchendo de gritos.
– Vi um grupo estranho lá em cima. Um deles atirou uma bomba de canhão pelo traseiro. Eu vi!
– Peguem os bruxos!
– Queimem-nos na fogueira junto com aquela bruxa!
– Vamos dar o fora – falou Bumbão.
– E Juliette? – perguntou Joana.
– E Raspa? – indagou Lise. – Raspa?
– Vejam! – disse Bumbão, apontando. – Alguém está vindo.
Duas figuras enevoadas vinham correndo na direção deles. Uma dava apoio à outra, e não se pareciam nem com padres nem com bispos, tampouco com guardas de prisão.
– Corram, crianças, corram! – Era a voz de Juliette. – Estão vindo! Voltem para a cela!
Foi o que fizeram. Correram. E, enquanto corriam, ouviam barulhos desagradavelmente familiares às costas. O estalo da lenha queimando, o rugido das chamas lambendo a madeira, o silvo do vento soprando na fogueira da bruxa.
– Não olhem para trás, crianças! – gritou Juliette.
Foi o que fizeram. Não olharam para trás, apenas correram. E tentaram não pensar no que estava acontecendo com o doutor Proktor lá atrás, na fogueira. Correram pelo pátio, atravessaram a porta aberta, trancaram-na, desceram uma escada em espiral e seguiram o corredor até a cela escura da prisão. Lise segurou a porta para os últimos dois companheiros e a fechou.
A luz da fogueira entrava pela janela e tremulava no alto da parede.
– Que coisa horrível! – sussurrou Joana.
– Preciso ver isso – disse Bumbão, subindo na figura alta, magra e coberta de resquícios de fuligem que entrara com Juliette. A figura caminhou até a parede, e Bumbão ficou de pé sobre seus ombros. Olhou pela janela. Lá estava ela. As chamas cobriam-lhe o rosto... Espere! Ela? Mas... mas...
Bumbão voltou o olhar confuso primeiro para a mulher que queimava na fogueira, depois para a pessoa embaixo dele.
– Doutor Proktor? – falou Bumbão, surpreso.
– Em carne e osso – suspirou o professor.
– Mas... mas...
– Raspa e eu tínhamos acabado de desamarrar Juliette, havia fumaça para todo lado, pessoas correndo... – contou o professor. – Eu estava prestes a me prender ao poste quando tudo escureceu. Depois disso, não sei.
– Mas eu sei – disse Juliette. – Raspa nocauteou Viktor com a perna de pau. Não me perguntem por quê. Eu me inclinei sobre ele e fiz o possível para acordá-lo. Quando ergui o olhar, Raspa tinha sumido fumaça adentro. Ajudei Viktor a se levantar, e foi então que percebi que teria que arrastá-lo até a cela onde estava a banheira de viagem no tempo. Então vi vocês, minhas crianças... Não sabem como fiquei feliz!
– Também ficamos – falou Lise. – Bumbão, o que está acontecendo lá fora?
Bumbão olhou por entre as barras da janela. As chamas subiam pelo casacão e a perna de pau, e o rosto dela ardia em tons de vermelho e dourado. Bumbão não tinha certeza, mas ela parecia sorrir ao exibir os dentes afiados. E gritava alguma coisa. Era difícil ouvir em meio ao rugido das chamas, mas parecia... parecia...
– Me deem um “V”!
Bumbão respondeu gritando o mais alto que podia por entre as barras da janela:
– “V”!
A resposta soou como um eco distante:
– Me deem um “I”!
– “I”!
O fogo encobriu o resto. Raspa foi engolida por chamas altas que cuspiam pequenas fagulhas, como estrelas cadentes riscando o veludo negro de um céu noturno estranhamente belo.
Bumbão esperou um pouco e escorregou pelos ombros do professor.
– Não precisamos esperar Raspa – falou, soando extraordinariamente resignado.
– Por quê? – perguntaram Joana e Juliette ao mesmo tempo.
Mas o doutor Proktor e Lise nada responderam. O professor fitou Bumbão por um longo tempo, até que apontou a cabeça na direção da banheira.
– Vamos! Temos que sair daqui antes que as bolhas desapareçam.
– Vejam – disse Lise, apontando para o chão de terra batida.
Era o pote de Sabão Temporizador de Raspa.
– Hum – falou o doutor Proktor, apanhando o pote. – Isso significa que temos pó suficiente para fazer uma pequena viagem. Acho que merecemos uma folga. O que me dizem de passar dois diazinhos em uma ilha caribenha ensolarada antes que ela seja descoberta pela indústria do turismo?
Quando os dois guardas da prisão arrombaram a porta da cela, viram um cômodo vazio com três banheiras.
– O que significa isso? – falou o mais alto. Trazia um corte tigelinha incrivelmente ridículo debaixo do capacete e um farto bigode que lhe pendia sobre os lábios.
– É, o que significa isso? – perguntou o outro. Trazia um corte tigelinha incontestavelmente ridículo debaixo do capacete e o rosto liso, sem barba.
– Hum – disse Bigode Farto. – Mais cedo, quando viemos buscar Joana d’Arc, havia apenas uma banheira. Agora são três.
– Tem razão – disse Sem Barba.
– Bem – disse Bigode Farto. – Acho que nunca vamos saber quem atirou aquela bomba de canhão. Vamos embora.
– Hum – murmurou Sem Barba, olhando para a parede. Alguma coisa tinha lhe chamado a atenção.
– O que foi? – perguntou Bigode Farto, aproximando-se para ver.
– O desenho na parede... – disse Sem Barba. – Gostei do bigode. Nunca vi um bigode assim, com as pontas torcidas para cima. Acho que vou deixar crescer...
– Vamos – falou Bigode Farto, puxando Sem Barba para fora da cela.
Capítulo 20.
Índia
ONDAS AZUL-CELESTE QUEBRAVAM NA PRAIA BRANCA onde Lise estava deitada de bruços com os olhos fechados. De vez em quando, levantava o olhar e via a silhueta de uma palmeira delineada contra um céu azul sem nuvens. A palmeira de tronco envergado debruçava-se sobre o oceano como se quisesse estar ao lado de Juliette, nadando com ela, o doutor Proktor e Joana, espalhando água para todos os lados e rindo como se nada tivesse acontecido. Lise queria poder se juntar a eles. Mas a lembrança de Raspa não permitia.
Alguma coisa bloqueou o sol, e ela abriu os olhos. Um rosto preocupado com sardas enormes a encarava.
– Você parece preocupado – comentou Lise.
– É que você está aí angustiada – disse Bumbão. – Estamos de férias. Não é permitido pensar!
Ele estava deitado de bruços no tronco curvado da palmeira, balançando-se acima dela.
– Sabe por que Raspa se amarrou ao poste? – perguntou Lise.
– Porque só a morte é capaz de mudar a história – respondeu Bumbão, apertando um olho e dobrando o braço para trás em uma tentativa frustrada de coçar as costas.
– É, mas sabe por que ela não deixou o doutor Proktor se sacrificar? Por que tomou o lugar dele?
– Elementar – retrucou Bumbão, tentando se coçar com o outro braço, que bem poderia ser um pouco mais longo. – Ela o amava.
– Você sabia? – perguntou Lise, impressionada.
– É claro. Consigo detectar ondas de amor a uma longa distância – respondeu Bumbão, contorcendo-se para virar o corpo sem cair do tronco. – No final, Raspa percebeu que o doutor Proktor amava Juliette. E, quando viu Juliette na fogueira, entendeu que só faria o amado feliz se o deixasse ficar com sua amada. Por isso fez o possível para os dois ficarem juntos. Deu a vida por amor, poderíamos dizer. Só que pelo amor de outra pessoa.
Lise ficou comovida.
– Puxa, Bumbão! Eu que achava que os meninos não sabiam dessas coisas!
– É claro que sabemos – falou Bumbão, enfim conseguindo virar o corpo para roçar as costas no tronco da palmeira.
– Ah, Bumbão... – sussurrou Lise, uma lágrima rolando do canto do olho. – Não é lindo?
– É, sim – disse Bumbão, o rosto extasiado. – Conseguira se coçar. – Mas seria melhor se servissem o café da manhã. Um restaurante com ovos e bacon, que beleza! E eu que achava que as meninas não sabiam soltar pum!
– Bumbão! – ralhou Lise. – Estou falando da atitude de Raspa! Foi incrível. Ela não tinha amigos, sabe... Eu sinto tanta... tanta... – Seus olhos marejaram. – ... pena dela.
– Eu sei – falou Bumbão, enfiando o dedo na orelha para coçar ali também, já que tinha começado a se coçar. – Mas não concorda que seria interessante comer outras coisas além de bananas e cocos tirados do pé?
Lise não respondeu. Simplesmente se deitou de bruços e pôs-se a mirar o oceano. Fazia três dias que estavam ali. Era ótimo, mas Bumbão tinha razão. No horizonte, um aglomerado de nuvens acinzentadas começava a se aproximar. O magro e ainda muito branco doutor Proktor transpôs a rebentação, tirando água dos óculos de motociclista, e desabou na areia, ao lado deles.
– E, aí, meus amigos – falou. – Como vão as coisas?
Os dois menearam a cabeça, acabrunhados.
– Saudades de casa?
Os dois menearam a cabeça, acabrunhados.
– Eu também – disse o doutor Proktor. – Encontrou algum restaurante, Bumbão?
– Que nada – respondeu. – Andei a ilha inteira, e tudo o que encontrei foram dois aventureiros perdidos em um bote.
– Perguntou o nome deles?
– Não. O inglês deles era pior do que o meu. Só entendi que um deles se chamava Cristóvão Calombo, ou algo assim.
– Não quer dizer Colombo? – sugeriu Lise.
– Isso, Colombo! – falou Bumbão. – Ou algo assim. Seja como for, eu quis lhe pregar uma peça e disse que estávamos na Índia. Acho que ele acreditou. Os dois voltaram para o bote e remaram super-rápido até uma caravela ancorada em alto-mar.
– Hum. – O doutor Proktor se levantou e olhou para as três banheiras semienterradas na areia sob algumas palmeiras. – Acho melhor levar vocês de volta para a rua dos Canhões antes que este lugar fique cheio demais.
– Como assim, vocês? – perguntou Bumbão. – Não vem conosco?
– Juliette e eu vamos a Paris resolver nossas pendências com Claude Clichê.
– Não vão nos levar? – protestaram Lise e Bumbão em coro.
– Não – falou o doutor Proktor em tom decidido. – Já deixei que corressem muito perigo. Não sabem que sou um adulto irresponsável?
– Sabemos – falou Lise. – Mas você se esqueceu de uma coisa.
– É verdade – concordou Bumbão.
– Somos uma equipe – disse Lise.
– Falou tudo – confirmou Bumbão. – Somos uma equipe. E não importa se o resto do mundo acha que somos uma equipe patética de fracassados. Sabemos uma coisa que eles desconhecem... Sabemos... sabemos...
– Sabemos – continuou Lise – que, quando amigos prometem se ajudar sempre, um mais um e mais um dá muito mais que três.
O doutor Proktor olhou para eles demoradamente.
– Muito bem colocado, não poderia ter dito melhor. – Mas...
– Mas coisa nenhuma! – interrompeu Bumbão. – Foi você que disse isso. E você sabe que nós sabemos que você sabe que não há nada que possa fazer para nos impedir de ajudá-lo contra Claude Clichê.
O professor teve que repetir mentalmente a frase de Bumbão para entendê-la. Olhou para um e para o outro, parecendo derrotado. Então suspirou, resignado:
– Vocês são teimosos, hein!
– O que estamos esperando? – perguntou Bumbão. – Minhas malas estão prontas. Lise?
Lise meneou a cabeça.
– Professor?
O doutor Proktor meneou a cabeça.
Bumbão sentou no tronco da palmeira, as pernas balançando vagarosamente. Então bateu no peito e disse:
– Claude Clichê, seu patife! O Rambumbão vai te pegar!
Capítulo 21.
O Rambumbão
BUMBÃO SE LEVANTOU COM CAUTELA e olhou em volta. Mas que quiabo...? Estavam no banheiro do Battant-Doré. Quanto a isso, não restava dúvida. Lá estava a banheira, a prateleira, o copinho de escovas de dente que fazia as vezes de casa para Perua, a aranha sete-patas peruana sugadora de cérebro. Mas aquele barulho horrível...
– Demônios demolidores! – sussurrou Lise, que tinha acabado de ficar de pé na banheira.
– Isso aqui está vibrando mais que britadeira – falou um doutor Proktor ensopado.
– O barulho vem de fora – disse Joana, que fazia menção de abrir a porta, quando Juliette sussurrou, baixinho:
– Espere! Eu sei o que é isso.
Todos os olhares se voltaram para ela.
– É ronco de hipopótamo.
– Hipopótamo...!
– Sim – respondeu Juliette. – Mas é pior do que isso. Esse é o ronco de um homem que eu conheço muito bem.
– Ah, não – disse o doutor Proktor.
– Claude – sussurrou Lise, ainda mais baixinho.
– Clichê – sussurrou Bumbão, tão baixinho que ninguém ouviu. Correu até a porta, ficou na ponta dos pés e olhou pela fechadura.
– O que está vendo? – perguntou o professor.
– Um... dois... três homens – falou Bumbão. – Estão dormindo nas cadeiras. O que está perto do radiador tem bigode fino, usa suspensórios largos com fortes clipes industrializados e parece ser mais escorregadio que sabonete.
– Deve ser Claude Clichê – sussurrou o doutor Proktor. – E os outros dois?
– Eles parecem ... bem, isso pode soar meio maluco, então não se assustem... parecem... – Bumbão se virou para os outros. – Hipopótamos!
Mas ninguém se surpreendeu. Desapontado com a indiferença da plateia, Bumbão tornou a olhar pela fechadura.
– Um deles está sentado perto da janela e o outro inclinou a cadeira sobre a porta que dá para o corredor. Ou seja, não dá para fugir sem que percebam. Já que o assunto é problema, vejo dois rifles no colo dos hipopótamos.
Juliette gemeu.
– Estão esperando para nos...
– Chega! – falou o doutor Proktor. Já não sussurrava. Pelo contrário, sua voz tremia de raiva. – Sai da frente, Bumbão. Vou acertar as contas com esse homem...
– Não, Viktor! – disse Juliette, colocando-se na frente dele. – Você não está sozinho. Pense nas crianças. Pense em Joana. Os hipopótamos vão amarrar sacos de cimento nos tornozelos deles e jogá-los no Sena.
O professor parou. Escorregou para dentro da banheira, arrancou os cabelos e gemeu, desesperado:
– Tem razão! O que vamos fazer?
– Hum – murmurou Juliette.
– Hum – murmurou Lise.
– Hum – murmurou Joana.
Então se ouviu um pequeno plop! e Bumbão falou:
– Relaxem! Tenho um plano.
Todos olharam para Bumbão, que examinou o dedo indicador com certo fascínio antes de limpá-lo, satisfeito, na perna da calça.
– O plano é ao mesmo tempo simples e engenhoso. – Bumbão desapertou os botões e enfiou a mão por dentro do casaco. Tirou dali o trompete de Marcel e o colocou no chão, depois procurou outra coisa. – O dia está amanhecendo. Temos que acordar esses dorminhocos. O plano já foi testado em um senhor chamado Napoleão e exige apenas que se despeje uma pequena quantidade de pó na boca aberta dos... dos... – O semblante de Bumbão empalideceu enquanto ele tateava o casaco.
– O que foi? – perguntou o doutor Proktor. – Perdeu alguma coisa?
– Houve uma pequena mudança de plano, meus caros – falou Bumbão, abrindo um sorriso forçado e cheio de dentes. – Parece que o saco de Pó de Pumponauta foi esquecido no ano de 1111, na cidade de Rouen. Mas não se preocupem. Bumbão tem tudo sobre controle. Vamos acionar o plano B.
– Qual é o plano B? – perguntou Lise, duvidosa.
– Vocês confiam em mim, e eu resolvo tudo.
Os outros três olharam para Bumbão. Ele não disse nada, apenas deu meia-volta e abriu aquele seu sorriso estranho e torto.
Por fim, Lise perguntou:
– Esse é o plano?
– É – disse Bumbão, pegando o tubo de Supercola Instantânea do Doutor Proktor na prateleira. – Eu vou tocar o toque de alvorada, depois vou impofrisar.
Lise balançou a cabeça lentamente.
– O que significa impofrisar, Bumbão? – perguntou Joana.
Bumbão abriu seu mais largo sorriso.
– Significa, minha cara Joana, que eu, o sargento Rambumbão, vou inventar novas soluções à medida que minhas ideias originais forem fracassando.
– Chamamos isso de Método Bumbão – resmungou Lise, enquanto Bumbão se envaidecia com o olhar de admiração de Joana.
– Corram para fora quando ouvirem o toque de alvorada – ordenou Bumbão, pegando o trompete e empurrando a porta.
– Espere... – pediu o professor, mas Bumbão tinha saído. – O que ele está fazendo? – perguntou para Lise, que espiava o amigo pela fresta da porta.
– Está parado na frente de um dos hipopótamos, apertando o tubo de cola... está passando cola entre o rifle e o colo do capanga. Está fazendo a mesma coisa com o outro...
– Vai, Bumbão! – sussurrou Joana.
– Agora está dando a volta por trás de Claude Clichê – narrou Lise. – Não, ele parou. Está soltando o suspensório dele... Claude Clichê não está roncando!
– Ah, não!
– Ah, sim. Claude Clichê está se virando e...
– O quê?
– Voltou a roncar...
Ouviu-se um suspiro coletivo de alívio.
– Bumbão está amarrando as pontas do suspensório ao radiador – sussurrou Lise. – Pronto. Agora, está subindo no peitoril da janela... Está tomando fôlego... Ele vai... ele vai...
O toque de alvorada cortou os roncos como uma navalha. Houve silêncio. Bumbão baixou o trompete e viu três pares de olhos zangados.
– Atenção! – gritou Bumbão. – Todos de pé! Içar âncora!
Ironicamente, os três homens se levantaram como se fossem soldados.
– Peguem o baixinho! – gritou o homem de suspensório e bigode fino.
– Pode deixar, senhor Clichê! – rugiu um dos hipopótamos, tentando descolar o rifle da perna.
– O rifle não quer desgrudar!
– Então use as mãos! Ele é só um garotinho!
Quando os hipopótamos avançaram, Bumbão viu a porta do banheiro se abrir e os quatro amigos saírem de fininho.
– Venham me pegar, ó gigantes poderosos dos rios do Continente Negro! – bradou Bumbão, saltando do peitoril para a cadeira da escrivaninha ao ser atacado pelos hipopótamos. Um deles se atirou contra a cadeira, mas Bumbão pulou para a escrivaninha.
Os móveis foram derrubados e a luminária se espatifou no chão depois que os hipopótamos gigantes investiram contra o ruivinho abusado. Bumbão se certificou de que os amigos haviam fugido em segurança pelo corredor quando os hipopótamos vieram com tudo para cima dele, fazendo o chão tremer e as lâmpadas do teto balançarem. Tomou impulso, pulou e estendeu os braços para se segurar na lâmpada do teto. Se ao menos conseguisse alcançá-la, poderia se balançar até a porta do outro lado, e... voilà!, estaria salvo! Ria em pleno ar. Não seria difícil. Tinha visto aquilo mais de um milhão de vezes nos programas de TV, nos quais os mocinhos se balançavam como trapezistas. O problema eram seus braços... Eram menores do que os dos mocinhos. E a lâmpada, infelizmente, pendia de uma altura um pouco maior do que na TV.
Bumbão esticou os braços, e suas mãozinhas se fecharam sobre o ar. “Tudo o que sobe tem que descer”, pensou. O chão estava cada vez mais perto.
– Lá vou eu! – gritou Bumbão, antes que o nariz arrebitado se chocasse contra o chão.
– Nós o pegamos! – ouviu a voz de Clichê sibilar na cadeira perto do radiador.
Bumbão rolou de lado e levantou o olhar. Os dois hipopótamos estavam em cima dele.
Sentiu cheiro de cimento.
– Amarrem os tornozelos dele – sibilou a voz de Clichê. – Joguem-no pela janela.
Bumbão viu os pés dos hipopótamos se aproximarem. Fechou os olhos e sentiu uma mão roçar a lateral de seu corpo, depois um safanão, e o sabre foi arrancado da bainha.
– Tirem as patas do Bumbão, seus bichos nojentos!
Bumbão abriu os olhos. Joana estava de pé ao lado dele, o sabre em punho, os olhos fixos nos hipopótamos.
– Você voltou! – surpreendeu-se Bumbão.
– Eu não podia abandoná-lo, Bumbão – respondeu ela, com a voz calma. – Quero dizer, sou Joana d’Arc, a maior guerreira de todos os tempos.
– Joana d’Arc? Ah! – debochou Clichê, sentado na cadeira, atrás dos hipopótamos. – Todo o mundo sabe que Joana d’Arc foi queimada em 1431. Você nem mesmo se parece com ela! Joana d’Arc usava batom, tinha perna de pau e cabelo crespo.
– Cabelo crespo? – gritou Joana, ofendida.
– Basta olhar para as gravuras em que ela aparece sendo queimada – disse Clichê. – Peguem essa mentirosa, homens!
Os hipopótamos avançaram para cima dela.
Bumbão quis muito fechar os olhos, mas não conseguiu. Também não se arrependeu. Pois o que viu em seguida foi uma das coisas mais incríveis de sua vida.
Joana brandia o sabre com as duas mãos. A lâmina girava tão rápido que Bumbão só enxergava um borrão metálico brilhante dançando no ar. O sabre fazia um barulho todo especial ao cortar cintos, casacos, botões, mangas de camisa e chumaços de cabelo. Costeletas, franjas, tudo isso desapareceu.
Quando Joana terminou, os dois hipopótamos ficaram ali, imóveis, à frente dela, as calças nos joelhos, os braços nus saindo de casacos e camisas rasgados e os cortes tigelinha mais ridículos que Bumbão havia visto desde a Idade das Trevas.
– Crespo, uma ova! – gritou Joana. – Vamos, Bumbão!
Ajudou Bumbão a ficar de pé e o arrastou para fora do quarto.
Enquanto corriam, ouviram os gritos de Clichê:
– Me dá esse rifle! Então tira a calça e passa tudo para cá, seu idiota!
Joana e Bumbão desceram as escadas correndo. Passaram pelas fotos da família Trottoir, pelas poltronas no saguão, pelo guichê de recepção, onde monsieur Trottoir perguntou: “Estão de partida?”, saíram pela porta giratória e ganharam a calçada.
– Aqui, aqui!
Avistaram o doutor Proktor, Lise e Juliette do outro lado da praça, ao lado de uma barraquinha de frutas.
– Cuidado! – gritou Lise.
Foi então que ouviram uma voz sussurrar em seus ouvidos:
– Parados aí, senão estouro seus miolos!
Joana e Bumbão pararam e se viraram.
Clichê estava poucos metros atrás, com o rifle no queixo, fazendo mira. Um par de calças de hipopótamo ainda pendia do rifle.
Clichê inclinara-se para a frente como quem enfrenta um vento forte, e era fácil entender o motivo. O seu suspensório – que começava na calça, subia pela barriga e ombros, descia pelas costas e sumia na porta giratória do Hôtel Battant-Doré – estava mais esticado que corda de guitarra. Os prendedores de suspensório que haviam feito de Clichê um homem rico eram mesmo muito fortes e resistentes!
– Chega perto para eu te dar um tiro, seu gnomo! – gritou Clichê para Bumbão, já com o dedo no gatilho.
– Eu adoraria poder ajudá-lo, messiê Clichê – falou Bumbão. – Mas, dadas as circunstâncias, e tendo em vista que você é o atirador e eu sou o alvo, acho que você é que tem que chegar perto.
– Seu trapaceiro malcriado! – rosnou Clichê, esforçando-se para dar mais um passo. O suspensório vibrou e gemeu em protesto, mas Clichê estava tão furioso que não percebeu.
– Sou um alvo muito difícil. Acho melhor você dar mais um passo, senhor barão – provocou Bumbão, rindo.
– Prepare-se para morrer! – avisou Clichê, levantando o pé para dar mais um passo.
Então aconteceu! Uma expressão estranha passou pelo semblante de monsieur Clichê. Ele perdeu o equilíbrio e sentiu o corpo ser puxado para trás. O safanão ganhou força. Clichê atravessou a porta giratória tão rápido que os pés levantaram do chão. Ele passou voando pelo guichê de recepção, onde monsieur Trottoir perguntou: “Está chegando?”, pelas poltronas, pelas escadas, pelos retratos da família Trottoir e pela porta do quarto, onde a cabeça se chocou com o radiador, produzindo um forte baque metálico, como se alguém houvesse tocado o maior sino da catedral de Notre Dame.
Enquanto o baque metálico ecoava pela cidade, nossos amigos viram dois hipopótamos saírem do hotel só de cueca e sumirem na esquina mais próxima.
– Puxa! O que fizeram com eles? – perguntou Lise. – Esses foram os piores cortes de cabelo que eu já vi!
– Eu não fiz nada – falou Bumbão, e apontou para Joana. – Foi ela.
– Eu só impofrisei um pouco – argumentou Joana.
– E agora... – disse o doutor Proktor, pegando o rifle que Clichê deixara cair. – O que acham de fazermos uma visitinha ao barão Clichê no seu leito de morte?
Clichê estava caído junto ao radiador e parecia inconsciente quando entraram no quarto. Mas não roncava; respirava normalmente, os cílios se movimentando ao piscar de vez em quando.
– Tenho certeza de que ele já vai acordar – falou o doutor Proktor. – Como sabemos, é quase impossível mudar a história. Clichê é e continuará sendo o marido de Juliette. Jamais aceitará um divórcio. Alguma sugestão?
– Vocês podiam fugir – arriscou Lise. – Podiam morar na rua dos Canhões.
O professor balançou a cabeça.
– Clichê e seus hipopótamos viriam atrás de nós e, mais cedo ou mais tarde, acabariam nos encontrando.
Juliette levou as mãos ao rosto.
– Ele bem que podia acordar com amnésia e se esquecer do título de barão, de mim, do nosso casamento.
– Hum – murmurou Bumbão, levantando-se e caminhando até o banheiro.
– Ele bateu a cabeça com força, é verdade – disse o doutor Proktor. – Mas acho que não o suficiente para causar amnésia.
– Deixem comigo – prontificou-se Bumbão, saindo do banheiro com o copinho de escovas de dente em uma das mãos. – E com Perua.
– Quem é Perua? – perguntou Joana, fitando a aranha dentro do copinho.
– É uma sete-patas peruana sugadora de cérebro. – Bumbão caminhou até o homem inconsciente, virou o copo na orelha dele e... voilà!, a aranha sumiu.
– O que está fazendo? – perguntou Juliette, horrorizada.
– Você devia perguntar o que ela está fazendo. Perua é uma aranha devoradora de cérebro. Ela entrou na cabeça desse homem e está sugando a memória dele. Quando ele acordar, vai achar que teve uma boa noite de sono. Vai se sentir bem. A única coisa estranha é que não vai se lembrar de nada. Nada mesmo.
Bumbão percebeu os olhares duvidosos dos amigos.
– É verdade! – falou, indignado. – Está tudo escrito em detalhe no AVGNE.
– AVGNE? – perguntou Juliette.
– ANIMAIS QUE VOCÊ GOSTARIA QUE NÃO EXISTISSEM...
– – Bumbão! – murmurou Lise. – Esses animais só existem na sua cabeça!
– Não é verdade! – disse Bumbão, cruzando os braços e mostrando-se profundamente insultado. – Mas, se preferirem, podemos usar o Método Clichê. Amarramos um saco de cimento nos tornozelos dele e o jogamos no rio.
O doutor Proktor balançou a cabeça.
– Não fazemos esse tipo de coisa. É isso que nos diferencia dele.
– Está bem – falou Bumbão, desconcertado. – Esqueçam a parte do cimento. Vamos apenas jogá-lo no rio. Sai mais em conta.
– Bumbão!
Bumbão bateu o pé, irritado.
– Não podemos chamar a polícia, vocês sabem. Nenhum juiz ousaria condená-lo. E, quando ele fosse solto...
– Eureca! – gritou Lise.
Os dois rabugentos olharam para ela. Sabiam que Lise não era do tipo que gritava “eureca” todo dia.
– A cadeia – disse Lise.
– Como assim? – perguntou o professor.
– Vamos fazer com ele o que Raspa fez com Juliette! Vamos usar a banheira para aprisioná-lo em uma época distante, bem distante.
– Genial! – falou Bumbão. – E, quando ele acordar, não vai se lembrar de nada e não vai poder dizer que é inocente!
O professor não parecia muito entusiasmado.
– Não sei se devemos fazer justiça com as próprias mãos. Não somos juízes.
– Tem alguma ideia melhor? – perguntou Bumbão.
– Não – admitiu o professor.
– Podemos mandá-lo para uma prisão temporária até pensarmos em algo melhor – disse Lise. – Depois, voltamos para buscá-lo.
Todos concordaram e puseram mãos à obra. Soltaram o suspensório de Clichê e, em um esforço coletivo, carregaram o corpo até a banheira de viagem no tempo.
Enquanto faziam isso, ouviram uma curiosa batida à porta, e Juliette foi ver quem era.
– Para onde vamos mandá-lo? – perguntou Lise.
– Deixem comigo – falou Bumbão, pegando o pote de Sabão Temporizador. – Conheço o lugar perfeito.
A cabeça de Juliette apareceu por trás da porta do banheiro.
– Tem uma pessoa querendo falar com você, Viktor – disse. – E com você também, Lise.
– Hum – falou o professor. – Quem é?
– É uma francesa que diz conhecer vocês – explicou Juliette. – Ela é assistente de juiz.
– Não conheço nenhuma francesa – comentou Lise. – E também não conheço nenhuma assistente de juiz.
– Não tenha tanta certeza – disse Juliette, dando-lhe uma piscadela.
Lise e o professor saíram do banheiro e depararam com uma mulher elegante. Usava terno de executiva do tipo que deixa a mulher mais magra e óculos do tipo que parecem desnecessários. Havia algo de familiar nela.
– Atrás dela, havia dois policiais uniformizados. Cada um tinha um tipo diferente de bigode. Chega de papo.
– Bonjour, Lise. – A mulher de terno sorriu, esticou a mão e falou algo em francês.
– Ah... – disse Lise, aos pulinhos, enquanto Juliette lhe colocava o prendedor de nariz francês.
– Não está me reconhecendo, não é verdade? – perguntou a mulher. – Também, sem o poncho...
– Não – respondeu Lise.
– E se eu tirar os óculos? – disse a mulher.
E eis que Lise viu outra pessoa.
Lá estava ela. Já não era uma criança, era uma mulher feita, mas... sim, era a menina que ela conhecera na ponte em Innebrède!
– Anna? – exclamou Lise.
– Eu mesma – riu-se a mulher. – Acho que eu também deveria estar surpresa com o nosso reencontro, mas, no fundo, sempre soube que um dia nos veríamos de novo, principalmente depois da decisão que tomei naquele dia, na ponte.
– Que decisão?
– Não se lembra do que me disse?
– Ah, sim! Que, infelizmente, não podíamos fazer nada contra Claude Clichê.
– Isso mesmo. Mas você me desafiou a provar o contrário. Foi o que fiz. Dediquei-me aos estudos, cursei direito em Paris e estou me esforçando para ser juíza. No ano passado, assumi a liderança das investigações contra Claude Clichê. Ficamos de olho nele dia e noite para juntar provas sobre suas atividades criminosas. Algumas semanas atrás, decidimos que tínhamos o suficiente para mandá-lo para a cadeia, e aqui estamos para efetuar a prisão.
– Isso é ótimo! – falou Lise, batendo palmas. – Ouviu isso, doutor Proktor? Não precisamos mais nos preocupar com Clichê. – Lise voltou-se para Anna de novo. – Promete que vai mantê-lo preso por um longo, longo tempo?
– Prometo – respondeu Anna Showli. – Clichê vai mofar atrás das grades, ainda mais agora que testemunhamos uma tentativa de assassinato contra o ruivinho fofo na entrada do hotel. O ruivinho pensa rápido, devo dizer.
– Muito rápido – riu-se o professor.
– Estamos livres! – comemorou Juliette, e beijou a boca do professor, deixando-o todo enrubescido.
– Iupi! – comemorou Joana.
Lise também quis comemorar, mas algo dito pelo professor a deixara com a pulga atrás da orelha.
Um dos policiais pigarreou.
– Por que não prendemos logo o salafrário?
– Isso aí, chega de papo – disse o outro, caminhando até o banheiro e abrindo a porta.
– O que o menino está fazendo? – perguntou o primeiro. – Está lavando o cabelo? Agora?
– Onde está Claude Clichê?
Foi então que Lise se lembrou da palavra “rápido”. Bumbão era rápido. Ah, não!
O policial recuou um passo quando o menino tirou a cabeça para fora d’água, soprou as bolhas do nariz, suspirou e disse:
– Pronto.
Seu sorriso ia de orelha a orelha debaixo dos cachos vermelhos molhados.
– Você não...? – começou Juliette.
– Eu, sim – riu-se Bumbão. – Aposto que não o veremos tão cedo.
– Então trate de buscá-lo – falou o professor. – A polícia está aqui e quer prendê-lo.
– Jura? – disse Bumbão. – Beleza. É melhor nos apressarmos. Esqueci que tínhamos que voltar para buscá-lo, sabe. Acho que gastei todo o Sabão Temporizador.
– Ai, ai, ai! – lamentou-se o professor. – Então vamos logo antes que as bolhas desapareçam. Eu vou primeiro...
Mas Lise viu tudo. Viu um sorriso familiar no rosto de Bumbão, um sorriso em zigue-zague que indicava que outro plano descera pelo ralo. Por isso Lise não se surpreendeu quando Bumbão abriu a mão e mostrou a tampa da banheira. Ouviu-se um chupão e o resto do sabão sumiu pelo buraco do ralo.
– Acho que fui um pouco, é... rápido demais – disse Bumbão.
Fez-se silêncio no quarto número quatro do Hôtel Battant-Doré. Todos olhavam para Bumbão. O silêncio persistiu. Por um longo, longo tempo.
Então Bumbão falou:
– Ora, ora – e esfregou as mãos. – O que está feito, está feito. Alguém mais quer tomar café da manhã?
Capítulo 22.
Tóquio
CLAUDE CLICHÊ ACORDOU TENTANDO RESPIRAR debaixo d’água. E, como é amplamente sabido que respirar debaixo d’água só funciona para peixes e animais com guelras, não demorou para que começasse a se afogar e a bater braços e pernas. Então, de repente, inalou um pouco de oxigênio e descobriu que tinha subido à tona. Estava sentado em uma banheira. Havia árvores por todos os lados. Troncos altos com videiras penduradas entre os galhos. Os troncos desapareciam em um dossel de folhas muito denso e muito verde lá no alto. Ele estava na selva, disso tinha certeza.
Mas como viera parar na selva, ainda mais em uma banheira? Clichê franziu o cenho e tentou se lembrar. Tentou recordar quem era, de onde viera, o que acontecera antes de acordar em uma banheira com uma terrível dor de cabeça.
E acham que ele conseguiu se lembrar de alguma coisa? Ele, um homem que tinha uma aranha – que podia ou não ser uma sete-patas peruana sugadora de cérebro – dentro da orelha e possivelmente até mais para dentro?
Bem, eis a resposta:
Ele se lembrou de tudo. Tudinho.
Lembrou-se, por exemplo, de que seu nome era Claude Clichê, de que era um barão, de que tinha muitas coisas, entre elas, uma pilha de dinheiro, a patente dos prendedores de suspensório, uma aldeia cheia de hipopótamos, um castelo chamado Margarina e uma baronesa chamada Juliette. Lembrou-se de que ficara de tocaia no Hôtel Battant-Doré, no quarto daquele inventor idiota pelo qual Juliette pensava estar apaixonada. E lembrou-se muito claramente do ruivinho vestido de Napoleão e da mocinha que dizia ser Joana d’Arc. Tinham-no enganado! Seriam punidos com sacos de cimento e uma viagem ao fundo do Sena.
Clichê se levantou e saiu da banheira. Não se sentia nem um pouco assustado. Não mesmo! Era o Rei de Paris, não era? Por mais que estivesse perdido no coração da selva, logo encontraria o caminho para casa. Então iria caçá-los!
Começou a caminhar na direção de uma clareira.
Ao se aproximar, ouviu uma série de cliques.
Seriam tigres tiritantes, panteras pantófagas, cascavéis cascateiras?
Ou seria o clique das mandíbulas de um crocodilo?
Ah! Não importava. Clichê seguiu marchando, destemido, por entre galhos e arbustos.
E eis que deparou com as criaturas responsáveis pelos cliques.
Clique-clique! Clique-clique!
Claude Clichê começou a gargalhar.
Eram turistas japoneses. Estavam parados atrás de uma espécie de jaula, tirando fotos com camerazinhas minúsculas. Clique-clique! Que engraçado! Quando viram Claude, sobressaltaram-se e começaram a falar em uma língua estranha, cheia de staccatos.
– Bu! – gritou Claude, que gostava de assustar os outros. Estava de bom humor. Atrás daquela gente, acima das árvores, havia edifícios altos. E, onde havia edifícios altos, existiam aeroportos.
– Isso ainda não acabou, doutor Proktor... – murmurou para si mesmo, esfregando as mãos. Então percebeu, para sua surpresa, que a jaula estendia-se ao redor dele para a esquerda e para a direita. Isso significava que ele (e não os turistas japoneses) é quem estava dentro da jaula. Hum. Não importava! Era só uma questão de encontrar a porta e sair dali.
– Ei, onde fica a porta? – gritou Clichê, mas as pessoas do lado de fora não responderam; apenas o encaravam. Na verdade, não olhavam para ele, e sim para além dele. E tinham parado também de tirar fotos com suas câmeras clique-clique! No silêncio que se fez, Clichê ouviu um som conhecido: um ronco. Mas não era um ronco de hipopótamo. Era de algo ainda maior. Então tudo escureceu.
O solo tremeu, levantando nuvens de poeira, quando a criatura roncadora desabou no chão em cima de Claude Clichê. A jaula vibrou tanto que a placa de metal do lado de fora caiu e saiu rolando pela ruela asfaltada do Zoológico de Tóquio.
Então, silêncio de novo. Só se ouvia a placa girando, girando, até que tombou de lado com um baque metálico rente ao pé de uma garotinha que caminhava de mãos dadas com o pai. E, como a placa estava virada para cima, e a garotinha vinha sendo alfabetizada, ela leu em voz alta, um pouco hesitante:
– Ele...
– Isso – disse o pai.
– Elefante...
– Muito bem – incentivou o pai.
– Elefante congolês...
– Continue! – festejou o pai.
– Elefante congolês tsé-tsé!
– Ouviram isso? – exclamou o homem, em meio aos espectadores paralisados. – Minha filha tem só quatro anos e já sabe ler! Minha filha é um gênio!
– Puxa! – falou um dos turistas.
Alguém ergueu a câmera.
Clique-clique!
Capítulo 23.
De volta para casa
BOM SUAR!
Era tarde de domingo, e os pais de Lise ergueram o olhar dos livros para sorrir para a filha, que aparecera na entrada da sala de estar cantarolando “oi” em francês.
– Bom suar para você também – respondeu o comandante, seu pai. – Divertiu-se em Sarpsborg?
– Como é bom ver vocês! – disse Lise, indo até o pai e a mãe para dar um longo abraço em cada um.
– Que abraço gostoso! – riu-se a mãe. – Foi o pai da Anna que trouxe você? Pensei ter ouvido um motor de carro lá fora.
– Era a motocicleta do doutor Proktor – explicou Lise. – Cruzei com ele no caminho de volta e ele me deu uma carona. Bumbão e eu fomos convidados para jantar no jardim da casa dele. Posso ir?
– Pode, é claro – falou a mãe. – Só não volte muito tarde. Amanhã tem aula. Estudou clarinete? Não se esqueça do ensaio de amanhã.
– Putz! Vou fazer isso agora.
Lise largou a mochila no chão e correu para o quarto e, no instante seguinte, os pais dela ouviram o som agudo e cavernoso do clarinete... Puxa, era a Marselhesa?
– Sabe qual é a melhor parte de morar na rua dos Canhões? – perguntou o comandante, assobiando a melodia. – Aqui é tão tranquilo e chato que não preciso me preocupar com nada.
Juliette, Lise e Bumbão esperavam sentados à mesa de piquenique debaixo da pereira do jardim maltratado do doutor Proktor. Deram vivas quando viram o doutor Proktor surgir da casa equilibrando uma bandeja com quase dois metros de gelatina.
– Sirvam-se – disse ele, deixando a bandeja cair sobre a mesa.
Nove minutos depois, estavam recostados na cadeira, de barriga cheia, com largos sorrisos de satisfação.
– Falei com Joana pelo telefone – contou Juliette. – É uma pena. Parece que ela não conseguiu o emprego de cabeleireira em Montmartre. O dono do salão achou seu método demasiado teatral. E o corte tigelinha ainda não voltou a ser moda.
– É só uma questão de tempo – observou Bumbão.
Os outros não responderam, apenas olharam discreta e ceticamente para o corte tigelinha vermelho que Joana dera de presente para Bumbão, junto com um beijo na ponta de seu nariz sardento.
– O que estão olhando? – perguntou Bumbão. – Os descolados têm que abrir o caminho.
– Se está dizendo... – riu-se o doutor Proktor. – Mas ela arrumou outro emprego, não foi?
– Foi – falou Juliette. – Está trabalhando como guia de turismo no Museu de História da França, no Palácio de Versalhes. Vai falar sobre a Idade Média e, em especial, sobre Joana d’Arc, que liderou os franceses em batalha contra os ingleses e morreu na fogueira. O diretor do museu ficou impressionado com o nível de detalhamento de suas explicações.
O professor pigarreou.
– Falando em amigos que não estão entre nós... Antes de chegarem, dei uma volta pela rua Rosenkratz e passei na Relojoaria Casacão.
Todos olharam para ele.
– Não encontrei nada – disse o professor. – Apenas uma velha joalheria.
– Velha? – explodiu Bumbão. – Impossível! A Relojoaria Casacão estava lá na última sexta!
O professor balançou a cabeça.
– Eu sei. Mas um taxista estacionado em frente à loja me disse que conhecia a joalheria desde criança e nunca tinha ouvido falar da Relojoaria Casacão.
Todos caíram em um silêncio meditativo. Quando Lise foi dar outra garfada na gelatina, descobriu que o prato estava vazio. Virou-se para Bumbão, que olhou para ela com olhos azuis inocentes tentando engolir às pressas as últimas provas do crime.
– Bumbão! – falou ela. – Você comeu minha gelatina!
A resposta dele foi encoberta pelo som de mastigação gelatinosa que emanava de sua boca.
– O quê? – perguntou Lise.
Bumbão inclinou a cabeça para trás e disse:
– Então me proxexe!
O professor, Juliette e Lise, todos riram da situação.
Então começaram a relembrar as histórias fantásticas dos últimos dois dias, ou dos últimos novecentos anos, dependendo do ponto de vista. Falaram sobre como Bumbão vencera a Volta da França e cancelara a Batalha de Waterloo. Sobre como Lise desenhara a Torre Eiffel e apagara a fogueira das bruxas com um pum. Sobre como o doutor Proktor fora salvo da decapitação no último segundo por um trompetista inteligente. E sobre como Juliette enfim se livrara de Clichê.
– Saúde! – falou o doutor Proktor, e todos ergueram seus copos de suco de pera. – Chega de mudar o passado! Agora, vamos mudar o futuro!
Brindaram a isso. Mas não havia futuro, nem para a gelatina nem para aquela tarde de domingo. A bandeja estava vazia, a lua flutuava no céu, e os pássaros que haviam se empoleirado na pereira para ouvir histórias incríveis já começavam a bocejar.
Então se despediram. O professor e Juliette entraram na casa azul. Lise, na vermelha. E Bumbão, na amarela.
Em seu quarto, Lise pensou na relojoaria que desaparecera e em como era estranho que nunca tivesse existido. Decidiu percorrer todos os livros até encontrar o de História, passou para o capítulo sobre Joana d’Arc e olhou para a famosa gravura que mostrava sua morte. Então abriu a boca, surpresa, embora já esperasse aquilo.
A gravura tinha mudado.
O cabelo de Joana d’Arc já não era castanho-avermelhado, era preto. As unhas longas e os lábios estavam pintados de vermelho e, debaixo do vestido, o que era aquilo?... Um patim?
Lise engoliu em seco e pensou em Raspa, que dera a vida por amor e talvez para se redimir das coisas horríveis que fizera. Então se lembrou de algo que Bumbão dissera na aula da senhora Strobe, no começo daquela história.
– Para ser herói, é preciso estar morto.
Lise decidiu que, no dia seguinte, faria um pôster com a gravura de Raspa e o penduraria na parede, em cima da cama. Não apenas porque era uma gravura bonita e todos sabiam que a mulher na fogueira era uma heroína, mas também porque faria Lise se lembrar de algo importante. Que, não importa o que você tenha feito, nunca – nunca – é tarde para consertar as coisas. Pensando assim, qualquer um pode mudar a história, um pouquinho de cada vez.
Lise fechou o livro de História e olhou para a janela do quarto de Bumbão.
O teatro de sombras começara. Mostrava um menino baixinho e uma mulher um pouco mais alta dançando o cancã e trocando beijos. Lise soltou uma risadinha. Parecia até que Bumbão estava apaixonado. Levantou-se na cama e começou a pular. Sua sombra, que era duas vezes maior do que a dos dançarinos de cancã, deu uma cambalhota, e Lise riu tanto que ficou com soluço. Riu tanto que começou a chorar. Riu tanto que deitou a cabeça no travesseiro e fechou os olhos. E, fazendo isso, adormeceu.
Jo Nesbo
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