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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BARCA DOS SETE LEMES / Alves Redol
A BARCA DOS SETE LEMES / Alves Redol

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

OS GRITOS SILENCIOSOS
Bom DIA!
Aquela saudação dita em português, numa prisão de França, pareceu-me um clarão, porque acabara de sair das trevas da cela dos incomunicáveis, mas logo me surgiu como um ardil da polícia para saber o que lhe convinha.
Não, não me lembrava daquele rosto nem de qualquer outro dos muitos que me rodearam mal entrei na sala comum. Estava ali para me esquecer de tudo. Receava, então, que um simples pensamento pudesse denunciar as minhas ligações com o velho que também fora preso. "Felizmente que o nosso encontro falhara; ele não chegara a entregar-me o embrulho", pensava no meu egoísmo. É talvez assim que se começa a atrair, devo juntar, agora, que estou em maré de contar alguma coisa do que se passou.
Quando acabaremos com esta teia de fios de encruzilhadas, onde dominam o silêncio e o desespero? Vivemos todos entre muros altos e espessos, sendo de raiva o chão que pisamos e de desconfiança o céu que nos cobre.

 


 


Dei-lhes a minha identidade, tomaram-me as impressões digitais e perguntaram-me que dissera ao velho quando parei junto dele no Jardim do Luxemburgo.
"Queria saber se ficava longe a Rua de l'Estrapade", respondi.
"Porquê?!..."
"Sabia que morava lá um compatriota..."
"Em que número?..."
"Não sei. Ia à aventura. Pensava perguntar..."
"A quem?.'..."
"Numa loja qualquer... Os lojistas conhecem sempre
as pessoas que moram na sua rua..."
O outro que passeava por trás de mim, no intuito de não me deixar concentrar, sacudiu-me pelos ombros com violência e deu-me uma punhada na cabeça.
"Temos muita maneira de te fazer cantar, meu rapaz. Muita maneira!"
"És espanhol?", disse o que estava à secretária.
"Sou português."
"Estiveste nas brigadas internacionais, aposto."
"Não, não estive."
"Mas já estiveste preso?"
"Também não."
"Pois não parece. Tens a escola toda", disse o que estava à minha retaguarda. "Respondes sempre com poucas palavras... Tens medo de t'embaraçar, não é? Já conhecemos essa táctica... O pior para ti é que podemos perder a paciência, marcar um número neste telefone e entregar-te à Gestapo. Sabes o que isto quer dizer?..."
"Toda a Europa o sabe demasiado."
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Arrependi-me, por momentos, daquela frase e baixei a cabeça. Eles calaram-se. Devem ter trocado sinais entre si, porque ouvi uma porta bater e percebi que o "mau-" saíra.
Em todas as polícias há sempre os maus e os bons, que vão trocando de papel, conforme os presos e as conveniências. Muitas vezes isso dá resultado.
O que estava à minha frente puxou de um cigarro, tirou duas fumaças e foi depois até à janela. Olhava a rua e ia falando. Falava numa voz pastosa e sorrateira, quase amiga.
"Vocês julgam que a gente gosta disto... Enganam-se. O lugar não é agradável. Mas alguém tem de o fazer, para defesa da França. Não acha que Pétain defende a França e a Europa?..."
"Estou num país estrangeiro e abstenho-me de falar nessas coisas."
Ele voltou a cabeça com uma expressão dura no olhar mas reprimiu-se.
"A sua resposta é significativa. Tenho-a ouvido muitas vezes. vou anotá-la, embora o meu desejo fosse mandá-lo em liberdade. O senhor podia ajudar-me... Sozinho nada poderei fazer. (Aproximara-se de mim e quase me tocava o ombro com o queixo.) Bastava dizeres que sim ao que já sabemos, e tudo se resolveria. O velho está perdido. Os papéis que te devia entregar ficaram na sua mão. Tiveste a sorte pelo teu lado. Vais enjeitá-la agora?!... O outro investigador não tem a mesma paciência do que eu: já o experimentaste. Queres que o chame? ...v
Encolhi os ombros.
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"Pensa melhor... Não sejas parvo, porque os outros não te agradecerão o sacrifício. O velho vai contar toda a meada, podes ter a certeza. Cada minuto que deixas passar pode ser a tua vida... Se ele falar antes de ti, o outro investigador exigirá que figures no processo, e acabou-se. A tua amiguinha ficará a chorar por ti...
(Voltara para a minha frente, sentado na secretária, a balouçar as pernas. Por mais que queira, não sou capaz de me lembrar da sua cara.) Numa noite destas... E se as noites estão frias!"
"Agora até o sol está frio", respondi num sussurro e sem perceber porquê. Não dissera mais do que uma frase romântica e abstracta.
Ele prosseguiu, como se eu não tivesse falado. "Numa noite destas serás encostado ao muro do pátio da cadeia ou irás até ao Mont-Valérien."
O seu cinismo revoltou-me. Fitei-o com ódio. Ele fingiu não compreender a minha expressão.
"Sabes o que é o Mont-Valérien?" Depois abriu-se num grito que contrastava com o ripanço da sua voz melada: "Responde!"
E aproximou-se de mim, a passo lento, como se quisesse dobar-me com o olhar arrogante.
"Já ouvi falar", disse acobardado.
"E achas que vale a pena acabar assim?"
"Nos tempos que correm, não podemos escolher o dia para a morte. Todos temos de morrer. Todos..." (Queria dizer-lhe: também o senhor, entende?)
Tentava aparentar indiferença, segurando a voz, mas sentia que as minhas palavras perdiam firmeza. Ele percebeu-o e insistiu. Teve um sorriso de vitória, e foi isso,
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talvez, que me salvou. Nunca gostei de ceder perante a vaidade.
"O senhor pode ainda viver muitos anos", disse com doçura, voltando ao tratamento cerimonioso que lhe pareceu capaz de me demover. Devia ter percebido que eu não era dos duros. "É casado?"
"Não, não sou."
"Isso faz-lhe falta. O casamento tempera as pessoas."
"E o senhor?", perguntei-lhe, procurando mostrar-me seguro.
Ele fitou-me com estranheza, mas acabou por me responder com naturalidade: "Claro que sim! Hoje, por acaso, a minha mulher faz anos. E logo me calhou este seu interrogatório! Está à minha espera para irmos ao cinema."
Suspirou. Foi até à janela.
"Ela não gosta que eu esteja aqui. Mas alguém tem de fazer este trabalho. Receia que um dia vocês venham ao de cima e tirem a desforra. As mulheres receiam sempre. (Depois mudou de tom.) Sinceramente, gostava de o ajudar."
Devo ter esboçado qualquer expressão que o transtornou. Num instante, mostrou-se irado.
"Não, isso não. Não sorrias, meu rapaz, porque a coisa pode sair-te bem negra. Peço-te por tudo que não tomes esse ar. Estamos entendidos?"
Puxou da pistola e mostrou-ma.
"Se quiser, posso abater-te agora mesmo. É só mexer com este dedo. E ninguém me pedirá responsabilidades. És estrangeiro. Numa guerra não há que responder por eles."
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A vista diminuía-me. Aquelas horas de pé davam-me tonturas. Sentia as pernas incharem-me; deviam ser dois trambolhos. O coração batia sem ritmo - ora lento, como se fosse parar, ora apressado, como se a mão de alguém o sacudisse com violência. Devia ter febre, porque a boca secava e arrepios de frio percorriam-me o corpo; as mãos suavam, com um suor viscoso que eu apalpava com as pontas dos dedos adormecidos.
"Vamos lá acabar com isto!", disse com raiva, atirando-me um pontapé à canela esquerda. "Acho que começas a abusar da minha paciência."
Soltei um gemido e fraquejei, torcendo-me com dores.
"Tinhas encontro com o velho? Diz que sim!"
"Não. Não tenho nada com ninguém."
"Dou-te uns minutos para pensares. É a última oportunidade que te ofereço."
"Não vale a pena", respondi imediatamente.
"Pois eu acho que sim, sale étranger. A tua opinião de nada vale. Entendes? Mesmo que tu e os teus camaradas não o queiram, a partida será ganha por nós. Somos os mais fortes e temos tudo do nosso lado..."
Devo ter-me acobardado, porque lhe respondi: "Não me meto em política."
"Acho que fazes bem. Assim deve ser... Assim deviam fazer todos os estrangeiros. Mas são muitos os que estão na Resistência. Espanhóis, principalmente. Compatriotas teus."
"Já disse que sou português", respondi com arrogância. "Portugal nada tem que ver com a Espanha. (Pensei a frase doutra maneira, mas não a disse.) Os Franceses confundem muitas vezes..."
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"Conhecemos pouco de geografia, não é assim? É o que todos dizem. Nós sabemos. Mas vêm cá aprender muita coisa... E ainda por cima se metem nos nossos problemas, depois de nos desviarem as raparigas. Chamam a Paris uma cidade de vício, mas esquecem-se de que há dezenas de anos todos os tarados do mundo, todos, sim, vêm para aqui perverter a cidade. Como tu também... Quantas amiguinhas já tiveste?"
Não lhe respondi. O meu silêncio irritou-o e pôs-se a gritar desvairado, atirando-me punhadas ao rosto. Como se estivessem à espera dos seus gritos, um grupo de homens entrou no gabinete e começaram a espancar-me com matracas, procurando atingir-me os rins e as pernas, de preferência. Mas bateram-me depois desordenadamente, até que me derrubaram.
Tenho a impressão de que nunca gritei. Mas ouvi gritos de angústia na sala ao lado. Ou seria eu que gritava? Não sei quanto tempo passou. Quando voltei a mim, estava debaixo de uma torneira e um jacto de água caía-me sobre a cabeça, não sei ainda se para me suavizar as dores, se para as tornar mais dolorosas. Custava-me fazer um simples movimento; o corpo parecia ter duplicado de volume. O cérebro latejava-me lá longe, como se fosse de outrem.
Quando me empurraram para dentro daquela noite medida com três passos, caí de borco no cimento molhado e pensei abandonar-me sem coragem, porque talvez a morte viesse já para me adormecer e levar-me para fora deste mundo de fardas, de ódios e de ultrajes. O velho
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não iria aguentar-se, não podia, não tinha forças para tanto, e eles haviam de voltar até que eu me decidisse a contar-lhes tudo. Quem é Louise? Não, eu nunca falaria no nome de Louise. Ao menos nesse nome nunca falaria...
Sentia-me inchado. Tinham atirado água para o chão, de maneira a impedirem que me deitasse. Tacteei à minha volta, fui de rojo, de parede a parede, e não havia uma cama nem uma cadeira. Desejei nesse momento adormecer para sempre. O frio cortava-me o corpo, tremia, tinha dificuldade em recordar o que se passara.
Ouvi o ruído de chaves. Alarmei-me. Pensei que viriam buscar-me outra vez para novo interrogatório ou seria uma ameaça para me acobardarem?
Foi isso que me fez raiva e me obrigou a acordar.
Reparei que uma ponta de medo me entrara no coração e que, se a não estancasse já, eles acabariam por passar, sorrateiros e verdes, verdes e sorrateiros como répteis, para me acanalharem o nome. Lá estava eu com melindres de burguês a pensar no nome. Os meus pais e os meus amigos nunca saberiam de mim. Há quantos anos partira do meu país?
Não era isso que interessava naquele momento.
Se o velho chegasse à minha frente e me acusasse, que deveria responder? Não, eu não conheço esse homem... Mas era justo que o desonrasse à frente daquela gente, se fora eu que não reparara no cachecol, e era o culpado, o único culpado, da minha prisão? A luta é cruel em demasia para estarmos com esses melindres. E se o velho pensasse que eu o traíra? Se o velho pensasse que eu esquecera de propósito o pormenor do cachecol vermelho? E se eles o convencessem de que eu era um indicador da Milícia
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da Gestapo, e se o velho pudesse mandar dizer aos outros, eles acreditariam? A Louise acreditaria?...
Devo ter gritado, porque um guarda veio a correr, abriu a porta gradeada e tentou pôr-me de pé. Não me aguentei e caí novamente. Então ele sentou-me, encostando-me à parede.
"Não fiques assim... Levanta-te logo que possas."
"Que me interessa?" Depois admiti que ele fosse comunicar a minha fraqueza e que eles voltassem. "Estou bem, gosto de estar assim. É fresco....Preciso de fresco."
Ele perguntou-me: "Queres alguma coisa?"
"Porquê?"
"Começaste aos gritos..."
"Foi um pesadelo, com certeza. Estava a dormir."
Sorri-me. As faces doeram-me. A boca doeu-me.
Mal a porta se fechou e fiquei na escuridão, arrependi-me de não ter perguntado pelo velho. E se o velho já tivesse morrido? Se eles o tivessem assassinado?... Era uma hipótese. Uma hipótese canalha se eu pensasse que isso seria bom para mim. E porque não, se eles iriam fuzilá-lo ou metê-lo num campo de extermínio?
Pensei que começava a radiar.
Mas ouvi pancadas na parede do meu lado esquerdo, pancadas que primeiro me pareceram sem sentido e logo depois foram criando um alfabeto. Custou-me a perceber, mas fui destacando as letras e juntando as sílabas. "Quem és tu?... Diz para o outro lado que o Gilbert me traiu." O velho diria a mesma coisa, se eu falasse. E de cela em cela, da prisão para a rua, depois Paris e a França inteira saberiam que eu tinha falado.
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Os sinais prosseguiam, mas não os escutava.. Era preciso recompor-me depressa para que eles não me apanhassem débil. Tentei dormir, fechando os olhos cansados. Repeli a ideia do velho assassinado e achei que fora pulha em admitir a hipótese em meu proveito. Só depois disso fui capaz de adormecer. E dormi pesadamente, embrulhado no meu frio.
Não sei quantos dias ali estive. Os guardas abriam a porta, punham-me a malga dentro da cela e não se esqueciam de encharcar o chão, para que eu não me estendesse. Mas habituei-me e dormi ao comprido.
Sim, não sei bem quantos dias ali estive. Só me recordo - não estarei a deformar o que se passou? -, só me recordo de que acabei por vencer a obsessão do velho e que fui capaz de dividir as horas de isolamento apesar de sempre me sobressaltar quando ouvia passos no corredor ou escutava na noite os carros que chegavam ao pátio da cadeia. "Será para mim?..." A princípio transtornava-me. Pouco a pouco, pingo a pingo, o silêncio entrou na matriz do meu corpo e a película de desconfiança fez-se numa parede espessa e tão impenetrável que às vezes nem eu lá podia entrar.
A solidão acabou por apagar tudo o que era exterior. Ficaram as certezas lá no fundo e os riscos das unhas na tinta da porta gradeada, a contar os dias de um outro que ali estivera.
Como podia lembrar-me, então, daqueles olhos ansiosos quando me trouxeram para a sala comum?...
Sei que estou a contar mal o que se passou; confundo imagens, hesito em relatar pormenores, porque começo eu próprio a achar estranho tudo o que ali sofri com os meus
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companheiros. De resto, se falo na prisão, é só para justificar o meu encontro com o filho do Bago de Milho. O romance de uma cadeia fica por fazer. A sua função neste romance é a de um cenário no qual se destacam, por vezes, além do meu patrício, certas figuras que não consigo dominar.
Quando me saudou, não lhe respondi; ele insistiu depois: "A minha cura não lhe lembra qualquer coisa?"
"Não", respondi sem calor. Preferia que não me falasse - ainda desconfiava de toda a gente.
"Pois somos patrícios. Assim que o senhor entrou, topei-o logo. Não se lembra do meu pai? Era cocheiro no Javardão..."
Acenei-lhe a cabeça e sorri, queimando num instante as minhas dúvidas.
"Eu sou aquele a quem chamavam o Menino Jesus. Há quase dez anos que abalei. Essa foi a minha primeira alcunha. Tive não sei quantas mais... Olhe, deixe ver."
Um harmónio começou a tocar ao longe, e corri para um dos janelões; o meu patrício aproximou-se, sem compreender a minha ânsia de adivinhar o que se passava para além das grades.
"Tive ao todo sete alcunhas", prosseguiu. Cada uma é uma guinada na minha vida. Agora estou aqui. E o senhor? Como veio parar a uma casa destas?"
Voltou-me a desconfiança. Queria falar-lhe da nossa terra, das pessoas que ambos conhecíamos, mas receei ultrapassar os limites das confidências. E pedi-lhe que me deixasse sossegado. Ele humilhou-se; e eu, sem ainda agora perceber porquê, disse-lhe bom dia, indo sentar-me no banco da mesa comprida.
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E PORQUE NÃO BOA NOITE?
Sim, talvez estivesse mais certo responder boa noite, porque as trevas tinham caído sobre nós, pesadas e densas. Para quê os adjectivos se as trevas são sempre pesadas e densas?...
Louise (como seria o seu nome verdadeiro?) dissera-me que atravessasse o jardim às nove horas em ponto e que metesse pelo lado esquerdo do lago; lá deveria estar um velho de chapéu preto com um cachecol vermelho para me entregar um embrulho. Dali eu iria a pé até à Cite. A missão era importante. Que tivesse todos os cuidados, não fosse alguém seguir-me, porque a vigilância apertava.
Na ansiedade de cumprir a minha primeira aventura na Resistência, esqueci-me de um pormenor com o cachecol. Esqueci-me não é bem: baralhei a indicação. Foi isso com certeza, porque quando perguntei ao velho "onde é a Rua de l'Estrapade?y> ele mediu-me com um olhar violento e disse-me: vai-te embora, depressa; parece-me que estou a ser seguido.
Quis aparentar indiferença e calma, pus-me a caminhar tão lentamente quanto podia - e o coração às punhadas, como um cavalo em galope. "Alto!" Era comigo, tinham percebido tudo. Não levava pistola. E se a levasse seria capaz de me voltar e fazer fogo?... Ouvi passos a correr na areia grossa do terreiro. Comecei a assobiar, esfregando as mãos.
"Não ouve?"
Obrigaram-me a voltar com um puxão e logo descobri, a distância, o velho agarrado por dois homens. Nunca
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mais o encontrei. Estive sempre à espera de que o trouxessem à minha presença para me acusar. Eles confiavam nisso. Mas já passara mais de um mês, tinha saído da incomunicabilidade, e depois de dois interrogatórios nunca mais voltara ao gabinete do oficial.
Eu sabia que aquilo ainda não tinha acabado. Talvez experimentassem agora pôr-me com outros, à espera de uma confidência a qualquer companheiro. "O que seria ali o meu patrício?... Talvez um agente. Não me perguntara ele por que razão ali estava?"
"Nos dias que correm, nunca se sabe quando temos direito à liberdade", respondi com indiferença.
"Lá isso é verdade. O senhor tem razão. Mas eu sei porque estou aqui..."
"É uma consolação!"
Um preso que estava perto embirrou com a nossa língua e quis fazer graça, pondo-se a imitar um podengo: "ao! ao! ao!" Os outros riram-se e um deles pôs-se a uivar.
Foi então que vi o meu patrício agarrar na sua metralhadora invisível e varrê-los em duas rajadas, com os olhos abertos pelo ódio. Voltou depois para junto de mim, fitando-me com o seu olhar angustiado.
"Aquele tem a mania de se meter com os estrangeiros", disse-me depois. "Há franceses que até acham que a cadeia devia ser só para eles. O senhor vai conhecer aquele... Um dia, se o agarro a jeito lá fora, ponho-o a dançar à minha frente. Não me escapa."
Tomou-me depois o braço e foi comigo até junto do janelão gradeado.
"Não lhe dê trela. É um tipo que está ali para vigiar os políticos. (Eu pensei logo que ele queria ganhar a
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minha confiança.) O senhor precisa é de arranjar uma coisa qualquer para matar o tempo. Aqui dentro a gente endoidece à espera. Eu estou à espera de julgamento. E o senhor?!..."
"Espero que reconheçam o engano e me mandem embora", respondi numa voz branda e sem cor.
Ele sorriu-se.
"Nos primeiros dias todos estão inocentes. Eu sou o único que cheguei aqui e contei tudo tal qual se passou. Matei um homem, mas não m envergonho de o ter morto."
"Algum crime passional", admiti, antes de voltar à desconfiança.
"Pois mesmo assim", disse-me depois de um silêncio, "o senhor não deve esperar que eles reconheçam a sua inocência. Os tempos vão mal para isso; agora todos têm culpas. De vez em quando vêm buscar gente para os fuzilamentos; é uma coisa danada para mim, sabe?"
"Tens medo de que te fuzilem também?"
"Não, isso não. Eles só fuzilam os políticos e eu não sou político. Mas lembra-me Marrocos e a guerra. Estive lá."
A um canto, solitário, outro prisioneiro entoava, em surdina, uma canção castelhana. Na sala todos se calaram para o ouvir.
"É Garcia, o guerrilheiro espanhol. Todos gostam que ele cante. Está à espera que o fuzilem vai para três meses. O senhor faz ideia o que são três meses à espera, com a certeza de que nada o salvará?"
"Numa guerra nada é certo", respondi-lhe.
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"Essa é a vantagem dos políticos", disse-me, baixando a voz. "Acreditam nalguma coisa... Por isso é que o Garcia canta......
"Talvez para que o tempo custe menos a passar..."
"Os dias aqui são uma coisa danada! Já lhe disse. O senhor deve arranjar uma maneira..."
Precisava de afastar preocupações e já me lembrara de devassar a vida do meu patrício.
O seu rosto inquieto, a frequência com que fazia ouvir a sua metralhadora imaginária, as recordações da nossa vila pachorrenta, atraíam-me então. E fiz-lhe uma proposta.
"A gente podia passar o tempo mais depressa, se tu quisesses. Tiveste várias alcunhas..."
"Sim, umas poucas: sete. Mas que tem isso a ver com o tempo?"
"Podias contar-me alguma coisa da tua vida. (O rosto carregou-se-lhe.) Se quiseres, claro. Lembrei-me."
"Eu conto e o senhor escreve? Pode ser... O senhor escreve e depois lê-me?"
"Assim vai demorar muito."
"A gente tem bastante que esperar. Eu tenho muito que esperar..."
Ficou silencioso por momentos. Percebi que estava a meditar na minha sugestão; mas vi-lhe a expressão adoçar-se num sorriso, voltando-se depois para mim.
"Podemos começar quando o senhor quiser. A primeira alcunha que tive era bonita. Essa sabe o senhor melhor do que eu", disse num tom magoado que me embaraçou. "Menino Jesus foi uma alcunha bonita, não acha?"

MENINO JESUS.

CAPÍTULO I
Um pai tagarela e brincão
Manuel Bago de Milho entrou de uma golfada pela taberna, como se o vento o tangesse, e gritou para o fundo da loja antes de se chegar ao balcão: - Eh Teresa! Larga-me aí mais um garraio de três anos... Depressa!
Só depois volveu o olhar excitado para a mesa corrida, onde dois vultos se quedavam em silêncio. - Boa noite! - Os outros moveram a cabeça numa resposta preguiçosa. Bago de Milho reconheceu-os e sorriu-se por entre os pêlos ruivos da barba espigada.
- Teresinha!
Uma voz cantada e aguda respondeu-lhe para lá da cortina de ramagens azuis.
- Já teve?
- Qual coisa! Aquilo é barriga de pedra... Acho que vai parir a serra da Neve.
Voltou-se depois para os dois moços de fretes, que continuavam distantes um do outro, como se no meio deles houvesse a muralha dalgum castelo.
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- A patroa vai ter rapaz esta noite. Acho eu que esta noite. É a primeira vez... E como é a primeira vez relincha para lá que não a posso ouvir... Nunca julguei que custasse tanto um homem nascer... Raios parta!
Apetecia-lhe sentar-se no banco e deixar correr a noite e a vida.
- Já ajudei quatro éguas a parir, mas côa mulher não me dá jeito. - Os olhos brilhavam-lhe de emoção. -Inda bem que vai ter crianço... Senão punha-a com dono, palavrinha! Para que quer um homem uma companheira senão pra ter filhos?! O defeito era dela, estava-se mesmo a ver... Cá de mim, não, que na minha família fazem-se filhos como os bácoros, salvo seja... Só o meu avô Augusto fez treze. Pois, treze! Fora os que caíram à pia... - E numa careta amalandrada, baixando a voz agreste:-Em quatro mulheres, pois atão! É de família... Andamos sempre alfeiros por mulheres. Dêem-me mulheres e cavalos, rematou com vivacidade, se me querem ver contente. Também são as duas coisas que na vida prestam.
- E vinho, sussurrou um dos moços de isaco.
- Nisso nem se fala... É como o ar prà gente e a água prós peixes.
Bago de Milho fez um trejeito, voltando-se para o lado da cozinha.
- Teresa!... Um garraio de três, depressa! Não me queiras desgraçar...
Quando estava entre as dez e as onze, Bago de Milho soltava as palavras e a imaginação, esquecido das obrigações. Saíra da cavalariça a pretexto de ir chamar a aparadeira, a Rosa da Barroca, mas ficaria ali o resto da
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noite a contar das suas -mais um copo, mais uma história- até chegar ao caso do Lavrador das Moças e ao seu despedimento de cocheiro. Essa era a grande mágoa da sua vida.
- Serve-te tu, Manel! - gritou a taberneira. - Estou aqui às voltas com umas filhoses...
- Ah pois! É noite de consoada, disse um dos homens num tom avinagrado, ao mesmo tempo que volvia a cabeça para o lado da porta.
- Nem me lembrava dessa, assentiu o outro. - Vamos embora, Zé?
O companheiro respondeu com duas pedras na mão:
- Tencionas levar-me às cavalitas?... Vai sozinho e quando chegares escreve...
- Eh homem! Parece que te piquei com algum aguilhão. C'um raio!
Estavam para ali desde a hora do jantar numa camaradagem hostil, beberricando de parceria, até que um adormecesse ou se cansasse de esperar, na fèzada de poderem ficar a sós com a Teresa e de a convencerem, finalmente, a juntar os trapinhos.
Bago de Milho pusera-se junto dos cascos e já pegara num copo de três decilitros. Hesitava em dar asas à tentação. "Se não estivessem ali aqueles dois paspalhos, bem viraria uns copásios à borla." Agachou-se, por fim, para que os outros o não descortinassem, deu volta à torneira e emborcou meia medida; depois encheu o copo a transbordar e virou-o de pé, numa golada, com um ah! de gulodice, para que os outros o vissem bem.
- bom vinho, sim senhor! São servidos?... A Teresa tem sempre uma pingoleta de se lhe tirar o chapéu!
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Ferrabrás, dispôs-se a atiçar os outros.
- E é uma mulher!
Repenicou um assobio, daqueles que pareciam de melro e lhe davam fama na vila. O homem mais novo sorriu-se à socapa, como se receasse o companheiro.
- É uma mulher que convém a qualquer um... Se continuar a guerra com os boches, ainda talvez me calhe...
Deu uma gargalhada entre dentes.
- A mim já não me querem pra França. Mas vossemecês inda não estão livres.
- Uma gaita! Julgas tu ou alguém que me apanham? Era o que faltava! Quem as fez que as desarme, respondeu o Gordo, assomadiço, gaguejando as palavras, como se as trincasse em dentadinhas.
- Pois não que não ias, disse o mais jovem para o irritar.
Bago de Milho gozava de largo, a brincar com o copo vazio. E como visse os moços de fretes em conversa acesa, voltou para dentro do balcão e virou mais um "garraio de três".
- Deixem-se disso, interveio depois para acalmar os outros. - Enquanto não chegar a nossa vez, vamos bebendo alguma coisa e olhando prà Teresa... Como os miúdos ao pé dos frascos dos rebuçados: a lamber os beiços... Sempre é melhor que andar aos tiros.
-Aqui o Gordo não desarma, disse o outro em ar de troça.
- E faz ele muito bem, juntou Bago de Milho. - Quem a levar pode-se gabar de boa. Tem tanto de asseada como de arisca. Parece uma égua que lá tenho na cocheira, salvo seja! Conheci o marido, o Tóino Barra Azul. Era
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um companheirão! E valente!... Valente como as armas... Vi-o eu, com estes que a terra há-de comer, abrir os braços a um toirão que era que nem um comboio. Era eu coheiro desse malandro do Cadete... Foi a pega mais linda que ainda vi. Qual Laurentino, qual Bogas! Aquilo é que era um pegador... Foi aqui mais abaixo, à porta da loja do Artur. Deu aí vinte metros ao toiro e alegrou-o de braços abertos, como se bailasse num arraial. "Eh toiro real! Eh toiro bonito!" Ah rapazes! O bicho mediu-o bem, estremeceu a cabeça e embalou-se de lá com umas ganas... E o Tóino no meio da rua, aos pulinhos, aos pulinhos, valente... Ah caragos!...
Num arremesso de entusiasmo, atirou o boné ao chão
e pôs-se à frente dos outros.
-E quando o toiro meteu os cornos, julgando que
aquilo era algum trapo, embarbelou-se com uma gana...
Ah rapazes! Sei bem como ele se agarrou, porque fui dar-lhe ajuda e sei a força que tive de fazer para lhe tirar as
unhas do pêlo do animal. Parecia grude... Já não se lembrava ao que viera. A boca espumava-lhe; o corpo parecia crescer-lhe no frenesi da descrição.
Depois pegou no boné de quadrados, indo sentar-se no
banco.
- Morreu duma carga de sezões. Nesse ano morreu gente como tordos. Só esse malandro do Cadete não morreu. Eh! Há lá justiça alguma vez!...
Teresa apareceu à porta do corredor, mostrando o cabelo negro e os olhos espevitadores e grulhas, como se falassem. Sorria com aqueles dentes tão alvos como pão de trigo, e que um buço, asa de corvo, sublinhava de sensualidade,
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no entender dos fregueses que lhe procuravam a taberna.
- Estava aqui a falar do teu... Daquela pega ali em baixo, disse o tratador de cavalos.
-Deixa-o lá sossegado, respondeu a taberneira, pouco
dada a desgostos.
Os dois moços de saco alegraram-se, vendo na resposta um bom sinal para as suas intenções.
Metediça, a Teresa exibiu uma filhós nos bicos do garfo e estendeu-a para o Bago de Milho, a quem gostava de ouvir.
- Queres provar?
- Eu de ti provava... o que tu quisesses. Não fazia careta, podes ter a certeza. - E medindo-a de alto a baixo:
- E se tens que provar!...
Manuel comia-a com os olhos lambareiros, aproximando-se do cortinado de ramagens.
- Tu nan estás bom, homem!
- Como sabes, se não me provaste? Olha que assim pequenino... tenho muito que ver. Mais que Lisboa...
- Metes muita palha na enxerga, respondeu-lhe a taberneira com uma palmada no ombro.
Gostava de se saber requestada. E embora nenhum homem lhe aquecesse os lençóis, ao que constava, tinha artes de os trazer à arreata com a sua conversa apimentada, o corpo bem fornido e branco e aquele buço miraculoso que excitava os homens em hipóteses malandras.
- Queres ou não? insistiu ainda, sabendo que assim irritava os moços de fretes.
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Bago de Milho aprestou-se para agarrar a filhós com os dentes, ao mesmo tempo que segurava a mão de Teresa e lha afagava duma maneira que já não era gracejo.
- Ó Manel!... Vá lá de abusos... Olha que o animal
dá coices!
O tratador de cavalos atarantou-se, sentindo-se descoberto à frente dos outros. E sorriu, para cobrir um fogacho que lhe amarinhou pelo corpo.
- Estava a brincar contigo, Teresinha... Sabes que sou
de respeito.
- Mas deixas a mulher sozinha! retorquiu a taberneira
para o comprometer.
Bago de Milho tomou vergonha e quis desculpar-se. Que dera ali um pulinho e ia já num foguete chamar a Rosa
da Barroca.
- E se vocês lá fossem? disse a taberneira para os dois enamorados. - O Manel é preciso ao pé da companheira... Hem?! Eu depois também lá deito.

CAPÍTULO II
Onde se vê que nem só os poldros nascem nas cavalariças
- Raios te partam, mulher! Raios te partam!
Cartaxinho e cabeçudo, Manuel Bago de Milho repuxava a cinta preta para riba do ventre escorrido, dando pequenos pulos de frenesi, como se fosse uma arvela, e ia da porta da cocheira para as manjedouras, e dali para o recanto onde guardava a palha, sem poder quedar-se um só instante.
Parecia que os cubos de pedra lhe mordiam os pés.
com o frio, as éguas e os cavalos não se aquietavam à manjedoura. Já tivera de atirar dois pontapés à barriga espapaçada da Estrelinha, uma égua baia que relinchava pelas ventas, num tom grave e rouco, como se os gemidos da mulher lhe fizessem medo, mas o animal tornara-se ainda mais bravio.
- Aguenta-me essas dores, rapariga!
Manuel estava bêbedo de vinho e de alegria, mas embaraçava-o também o gemicar da companheira, enrolada sobre a palha, como se a golpeassem à navalhada.
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- Quem t'ouvir, alma dum raio, julga que te estou a moer de porrada.
Aturdido, ajoelhou com cautela ao lado da mulher, estendendo-lhe a garrafa de aguardente, que sempre tinha de reserva na cocheira. Pensava que assim as dores poderiam passar, e dava-se ao gracejo: - Bebe-lhe uma pingoleta, rapariga, que vais largar ao mundo... o moço mais bonito e pachola que esta terra já viu. Valeu?!... Bebe-lhe, anda.
E bebia ele numa golada curta.
Esgotada de sofrer, a mulher dava à cabeça e gemia:
- Ai que eu morro, Manel! Ai que eu morro!...
- És parva, rapariga! Morrer como? Morrer o quê?... Se já se viu uma coisa assim! Vais ter um filho nosso e ias morrer... Morrer porquê?!... Morre-se assim?! És parva!
Tinha vontade de chorar a rir - e a verdade é que chorava- com aquela satisfação maluca de ganhar um filho. Enxugou os olhos na ponta da camisa fraldiqueira e suja, sempre atento para a porta, esperançoso de que a Rosa chegasse e fizesse alguma coisa para o livrar da turbulência daquelas queixas. "Não era homem para aquilo, estava visto!"
Ouviu passos arrastados na rua. "Lá vêm eles", pensou.
Mas as sombras escureciam a luz baça da lanterna, que assinalava a cocheira, e iam perder-se nas trevas. "É gente que vai prà missa do galo."
A noite estava de mau cariz, fria e desabrida. Como se os ossos lhe doessem, o vento nordeste gemia nos búzios dos moinhos, e atirava-se, de cambolhada, do alto dos cerros transidos, para fustigar a vila ribeirinha com verdascas de trinta assobios. E furava, buliçoso, pelas betesgas e
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ruelas, escapulindo-se até ao Cais, onde fazia balouçar a pequena floresta de mastros inquietos.
Bago de Milho começava a sentir a opressão da ventania e da ansiedade.
Exausta, a companheira gritava ainda em rugidos espaçados de loba, como se tivesse prazer em uivar. E torcia-se na palha, sacudia a cabeça num frenesi que fazia medo. Tonto e aparvalhado, ele não sabia se deveria gritar também, se correr à porta e chamar, se apertá-la nos braços...
- Cala-te para aí, carago! Cala-te qu'isto é um vergonhaço! Se já se viu uma coisa destas... E as que têm dois e três filhos numa barrigada?
com o vento agreste, o badalar do sino para a missa do galo entrava às golfadas pela cavalariça. Aquele som não aquietava Bago de Milho, tantas vezes o ouvira no dobre solene de acompanhar defuntos. Os fumos da bebedeira começavam a fugir-lhe; e ele sentia-se cobarde, incapaz de tomar uma decisão. "Se pudesse abalar dali, caramba!", pensou ainda.
Foi nesse momento que chamaram por ele: -Eh Manel! Eh Bago de Milho!
- Éia c'um raio! gritou num desabafo, correndo para os dois vultos.
Pegou-lhes pelo braço e sacudiu-os: - A Rosa da Barroca?
A mulher deu sinal, lá do fundo, com um suspiro paciente, logo seguido de um queixume. Ele quis mostrar aos outros que ali havia respeito e retorquiu-lhe num destempero, de braços erguidos e voz áspera: - Cala-te para aí, mulher dum filho da mãe! - Depois arrependeu-se,
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balouçou-se nas pernas curtas e bambas, e insistiu com os moços de fretes: - Ela vem aí?
Respondeu-lhe um silêncio, e logo a voz do Meirinhas, boca de favas: - Diz que não pode... O filho veio d'Almeirim e tem ceia em casa.
- Trouxessem-na à porrada! Gaita pra vocês!...
E iria desfazer-se em praguedo e asneiras se um uivo mais aflito da companheira o não chamasse. Correu ao canto da palha, tacteou-lhe o ventre e sentiu qualquer coisa quente, que parecia querer libertar-se. Deitou-lhe as mãos e teve medo. Pensou em alumiá-la com a lanterna, mas lembrou-se de que estavam ali dois homens.
- Chamem a Teresa, ao menos! berrou com desespero de lhe abrir fendas no corpo.
Os outros abalaram em dois saltos e ele correu à porta para gritar ainda: - Digam-lhe que o rapaz já nasceu!
Devia ser, por força, aquele corpo quente que sentira nas suas mãos. Ninguém lhe dissera, mas era um rapaz, tinha a certeza.

Nessa noite o grupo dos Laurentinos, pegadores de toiros e arruaceiros, andava à solta com os fervores do vinho e do sangue atravessado. A vila era deles. A braveza dera-lhes para varrerem da praça os que por lá acamaradavam sem receio da invernia, tendo metido intervenção de mocas, que traziam escondidas debaixo das capas e a que davam o nome cerimonioso de "boa noite". A patrulha da guarda evitava encontrá-los - interviria quando a chamassem.
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E ao toque desafinado da viola do Laurentino mais velho apareceram na rua da cocheira como um vendaval, na perseguição de umas varinas que lhes tinham desafiado os brios. O Bago de Milho nem os sonhara. Mas o Bogas descobriu-o, atarantado, e deitou-lhe o gadanho bruto, tomando à conta de brincadeira o exaspero do outro. Dali a pegarem-lhe pelas pernas, a levá-lo de cambolhada até à taberna do Cartaxano e a quererem obrigá-lo a meter mais copos foi obra de minutos.
Bago de Milho descompunha-os com quantos nomes ásperos conhecia. E o sangue de moiro dos pegadores ferveu mais - vá de o meter numa roda do "giga ó giga", barrando-lhe a saída da porta, enquanto os mimos lhe caíam na lombeira, a que ele dava resposta pronta.
Valeu-lhe a patrulha.
Despertada pela algazarra do grupo, a guarda apareceu para avisar o taberneiro de que eram boas horas de fechar. O Nana ainda arriscou uma graçola para o Bago de Milho, mas o Cartaxano avisou também que não enchia nova rodada, e só a viola do Laurentino ficou a sarrazinar uma marcha. Foi então que um dos guardas deu a notícia:
- Naquela cocheira, lá em baixo, uma mulher teve uma criança... Parece que é milagre.
- Está lá o poder do mundo, juntou o outro.
Bago de Milho encrespou-se num salto, indo cuspir o seu desprezo aos pés do Bogas, e desatou depois às punhadas ao peito, como se desafiasse o outro, ao mesmo tempo que lhe gritava, assomadiço e vitorioso: - Eu não te disse, grande malandro? Não te disse?
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Enxugou umas lágrimas nos dedos trémulos, que passou na barba ruiva, e atravessou a taberna, num cambaleio de fadiga e de bebedeira.
- Desculpa lá isso! rosnou, contrafeito, o Laurentino mais velho. - A gente julgava que era brincadeira tua.
Manuel não lhe respondeu e só se voltou ao pé da porta.
- Se o seu Cartaxano puder, encha lá uma rodada a estes gajos, que pago eu! Encha, que não me torço!
Depois encarou os guardas, num desafio, e berrou, desaustinado: - Milagre, uma gaita! Aquele é filho do Bago de Milho, pois então! Sim senhor, filho deste homem que aqui vêem. E não pedi licença a ninguém!

CAPÍTULO III
O presépio destruído
Andou no meio da rua, num jogo de empurra com o vento brigão, guinada mais forte daqui, puxão mais brando dacolá, até que percebera que devia procurar o abrigo das paredes. Esquecera-se do agravo sofrido com os Laurentinos e pusera-se a cantarolar o "giga ó giga", tamanha ventura lhe entrara no coração.
Passavam por ele vultos que corriam, num fragor de tairocas e chinelas, como se a bebedeira lhe enchesse a cabeça de sons destemperados. A palavra "milagre" repetia-se e saltava por entre as sombras da noite, tocando-lhe as orelhas de abano e fazendo-o estacar de gozo e indignação. "Milagre, uma gaita!"
Lá foi aos bordos e às arrecuas - raios parta o vento! até que chegou perto da cavalariça, assinalada pela lanterna de luz baça.
O guarda não o enganara ao dizer-lhe que estava lá o poder do mundo. "Se já se viu uma coisa assim", pensou. "Esta gente julga que foi a Estrelinha ou a Malhada que pariram o rapaz... Esta agora!"
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E sentiu ganas de correr aquela gentalha toda, corja de alcoviteiras e de tunas que se metiam na vida de um homem sem lhe pedir licença.
No passeio era um coágulo de varinas, com os xales pela cabeça, todas aconchegadas num cacho, que a rijeza do nordeste não conseguia desfazer, enquanto os homens bichanavam uma conversa moída, que Bago de Milho não entendia, e a rapaziada procurava furar lá para dentro, esperta que nem bichas de rabiar.
- Então o que é isto aqui?! disse, ainda a querer valer-se da sua autoridade de guarda da cocheira.
- Xui!
Voltaram-se rostos indignados com aquela voz alterada, que vinha quebrar o recolhimento em que se festejava um sinal do Céu. Só então ele percebeu que as varinas rezavam, passando as contas dos rosários, e que uma ladainha chegava lá de dentro, mansa e devota, como se a missa do galo pudesse acabar na cocheira do Javardão.
A notícia daquela natividade correra num instante, levada pelos dois moços de saco, e logo passara ao portal da igreja, para se enfiar por ali dentro e ir de boca em boca até ao altar-mor e ao púlpito, onde o padre Marcelino de Arranho pregava um sermão evocativo do Natal na Judeia. À sorrelfa, agora um, depois outro e outro, foram-se escapando os que estavam mais perto da saída, tão aliciante lhes surgiu o nascimento de um menino na mesma noite e à mesma hora daquele que se venerava em catedrais e capelas deste mundo de pecados.
As mais devotas chegaram e caíram de joelhos, encontrando naquele quadro tudo o que bastava para a imaginação compor o que faltava: as palhinhas, os animais à manjedoura,
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um menino que chorava nos braços da Teresa da taberna e uma noite cheia de sugestões. A luz envergonhada de uma candeia de azeite escondia o resto.
Mais alviçareira, a mulher do Gonçalo voltou à igreja, de saias a rojar, e não cuidou do sermão do padre Marcelino, indo às cadeiras das senhoras da vila contar em segredo o que, em seu entender, era bem um milagre, talvez um aviso para os carbonários que tinham feito a República. E logo as duas Peraltas, a viúva e a solteira, abalaram com ela, sem temor pela palavra irada do pregador, que levou à conta de heresia tamanho desrespeito e se pôs a falar de Judas Iscariote, o que perturbou as manas, embora as não fizesse arrepiar caminho, tanto as exaltara a revelação da mulher do Gonçalo.
Mal o pregador enfiou, apressado, pela porta da sacristia, a gentalha deu largas à conversa, sem atender onde estava. E foi preciso que o padre da vila lhe viesse ralhar, sabendo já a razão do alarme, para que a igreja se esvaziasse e tivesse o seu silêncio de casa divina. Lá fora, dois malandrins deram em assobiar com estridências de desafio, sem que a guarda ou os devotos lhes partissem as fuças.
Toda aquela gente desembocou depois na ruela da cavalariça, atropelando-se para chegar primeiro e conseguir um lugar lá dentro. Já as Peraltas haviam voltado de casa com as roupas para envolver o menino nascido; e até o médico novo aparecera para atender à mãe, que "estava bem malzinho", segundo se dizia à boca pequena.
Bago de Milho, apalermado com tudo aquilo e ainda zonzo da aguardente e do vinho, não passara da ponta da manjedoura. "Esta gente 'stá maluca!", pensava o tratador de cavalos. "Mas que raio..."
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A ele também lhe bastava ouvir a berrata do filho para que a alegria não lhe coubesse no corpo cartaxinho.
- Minhas senhoras... Tenham paciência...
Era a voz mimalha do Dr. Leonardo, que chegara de Coimbra com a sua carta de curso e uma certa bazófia de integralista.
- Tenham paciência, mas eu preciso de tratar a doente, insistia, esganiçando-se. - É impossível no meio desta ladainha toda... O pai?! perguntou por fim.
Disseram a Bago de Milho que o médico o chamava, e ele lá foi, pisadela dali, bordo dacolá, até ao canto da palha, onde a companheira gemia e a Teresa dava banho ao filho. Olhou-os com ternura, mas lembrou-se do médico e perguntou-lhe o que desejava.
- É que eu não me posso responsabilizar pela doente, insistiu o doutor. - Diga a essa gente que saia!
Ancho da autoridade que lhe davam, Manuel Bago de Milho quis empoleirar-se nas pernas curtas, mas o corpo derrancado não o ajudou. E pediu com brandura: - O senhor doutor diz que é melhor saírem...
Ficou à espera do efeito das suas palavras; mas nem um vulto se moveu. Então, desaustinou sem mais rodeios:
- Tudo no olho da rua!... Senão trabalha o pingalim!...
Um sussurro de hostilidade recebeu o aviso de Bago de Milho. A Peralta viúva interveio, a pedir-lhe que fosse comedido, pois aquela gente estava ali por bem.
- Mas o Sr. Doutor...
- ó homem! Eu não lhe disse para ser malcriado... Apeteceu-lhe virar-se ao outro com dois palavrões bem
repuxados, atirando-se ao pontapé àquela matula que lhe queria matar a mulher; mas sacudiu os ombros e foi
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encostar-se à parede, perto da Teresa, que lhe embalava o filho. Depois viu-a passar a criança para os braços da Peralta solteira e erguer-se das palhas.
- Teresa! chamou de mansinho. - É um rapaz?! Eu logo disse... É parecido comigo, não?
A taberneira disse-lhe que sim para o envaidecer e deu-lhe conta do que já se combinara: - As Peraltas levam-te o menino. Fica bem entregue, coitadinho. E quando a tua puder...
Bago de Milho achava que devia reagir, mas a verdade é que não sabia bem o que responder. A reprimenda do médico deixara-o atarantado, pondo-lhe um aviso na bebedeira.
- Podemos tocar no menino? clamou uma voz histérica.
- Virgem Santíssima, Mãe de Deus!
O Dr. Leonardo quis fazer-se ouvir, rogando que saíssem, pois a criança precisava de cuidados.
- Queremos vê-lo! disse alguém.
- Isto foi milagre! juntou uma mulher que se rojava nas pedras da cocheira. - Tenho o meu filho em França, na guerra, e isto é sinal que ele vai voltar...
- Então, minhas senhoras!... insistiu o médico. - Parece impossível...
A Peralta viúva queria romper, ajudada pela irmã, mas a avalancha movia-se, parecendo capaz de as esmagar. Uma rapariguita gritou no meio das trevas, sufocada com os apertos, e logo lhe respondeu o choro de uma criança. Bago de Milho pôs-se aos encontrões a quem lhe estava mais perto, no intuito de abrir caminho às Peraltas, e sentiu uma punhada na cabeça.
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- Tudo no olho da rua! gritou alucinado. - Quem foi o malandro que me bateu?
Valeu a todos o padre Marcelino, pois os ânimos exaltavam-se e prometiam sarrafusca. Já irritado, o tratador de cavalos agarrara no cabo do pingalim, preparando-se para impor o respeito que lhe negavam. A boca espumava-lhe de ira.
- Basta de exageros! pediu a voz repousada do padre. O barulho prosseguia com os atropelos e as preces.
- Só a Igreja, meus Irmãos, pode pronunciar-se acerca de milagres... O facto de uma criança ter nascido nesta noite e à mesma hora do Rabi, e ainda mais neste ambiente, não quer dizer que o milagre da Natividade se tenha repetido. Mas também é possível! Deus há-de voltar à Terra... É bem preciso que ele volte, tantos pecados a enchem. Só o futuro nos dirá, porém, com a ajuda da Santa Madre Igreja, se esta criança é Alguém que veio na hora própria, um homem vulgar, filho de um ébrio, ou um aliado de Satanás...
O mulherio benzia-se nervosamente.
- É que esse tem um grande poder para enganar os corações simples...
- Vão com Deus para vossas casas, disse o padre Jerónimo. Duas almas caridosas tomaram conta da criança.
- Vão, vão com Deus! insistiu o padre de Arranho.
E deram ambos o exemplo, seguidos do João Pirica, que fora apertar a mão do Bago de Milho, todo choroso com as palavras do padre Marcelino, cujo sentido ele não entendera, mas que lhe pareceram bonitas.
O vento amainara, talvez cansado.
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O rumorejar da multidão, a afastar-se, era como o marulhar do Tejo nas muralhas do Cais. Bago de Milho ficou à porta da cavalariça, vendo os vultos sumirem-se nas trevas. O seu filho partira também.
Pensava naquilo e chorava de mansinho, sem soluços e sem a tontura da bebedeira. Chorava porque lhe sabia bem. Porque tinha um filho, finalmente. Um filho que era muito seu.
- Quem está aí? perguntou o médico.
O tratador de cavalos quis responder, mas as lágrimas agarravam-lhe a voz. E aproximou-se, discreto, como se tivesse receio de acordar alguém.
- Ah, é você?!...
O Dr. Leonardo erguera-se da palha e apertara-lhe o braço.
- vou dar ordem ao carro do hospital...
- Ó Sr. Doutor! Isto d'hospital e de cadeia...
- Quer que a deixe morrer aqui? A pergunta atordoou-o.
- Se sabe rezar, reze por ela, disse ainda o outro. Talvez precise de um milagre.
- Mas o Sr. Prior disse... sim, disse que isto não era um milagre.
- Espero que o seja prà sua mulher. E saiu num rabo de vento.
Bago de Milho tirou o boné de quadrados, numa saudação, e ficou à porta, por instantes. Depois assobiou baixinho aos animais, que estavam à manjedoura e se haviam aquietado, indo sentar-se na palha junto da companheira. Apetecia-lhe falar do filho e do que iria ser. Prometia emendar-se da bebedeira, tivesse a certeza; nunca mais lhe
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bateria, como na noite em que o malandro do Cadete o tinha despedido de cocheiro.
- Olha, Maria... Estás com as mãos tão frias, rapariga! Deixa lá que as aqueço. Se a gente puder, Maria...
Talvez estivesse a sonhar; mas sabia-lhe tão bem falar do filho, que a voz se lhe pôs mansa, sem aquela agressividade de sempre.
- Estás a ouvir, Maria? Havemos de fazer do nosso filho sei lá o quê... Que queres tu que ele seja? Doutor, não... A gente também não pode. E se todos fossem doutores, quem havia de tratar dos cavalos? Estás a ouvir?!...
O corpo estremeceu-lhe de frio.
Cobriu com carinho o corpo da companheira, atirando-lhe com mais palha para cima, e enfiou-se também o melhor que pôde, agarrando naquela mão morna e húmida arrepanhada na sua, como se procurasse segurar qualquer coisa que lhe queria fugir.

OS GRITOS SILENCIOSOS
VIVER UM ROMANCE
"Foi nessa noite que a minha mãe morreu?", perguntou-me emocionado.
"Não, não foi. Mas deves interromper-me menos vezes", disse-lhe, talvez com desagrado. "Tens de pensar que ouves o romance doutra pessoa, porque assim crescem as dificuldades."
Levara quase uma semana a escrever aquelas páginas, vencendo as distracções provocadas pela vida que se fazia à minha volta, embora aproveitasse o período após o almoço, em que a sala inteira caía na modorra. Mas eu não podia esquecer as dúvidas permanentes da minha prisão; e mais do que isso ainda a vigilância do meu patrício, que começara a colocar-se à minha beira, querendo adivinhar o que escrevia.
Mostrei-me inquieto, tapei-lhe o papel com o cotovelo, numa birra menineira, e consegui afastá-lo quando lhe expliquei que a sua presença constante me distraía. Então ficou triste, sem compreender o meu embaraço. Só quando
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o chamei para lhe ler as primeiras páginas voltou para junto de mim.
Parecia deslumbrado a princípio. Mas depois encheu-me de perguntas, cortando-me o fio da leitura, o que me forçou a nova explicação. Queria que lhe desse mais pormenores sim, ele lembrava-se do Gordo, mas gostava que eu lho descrevesse; sabia que a taberna da Teresa ficava a uma esquina (porque não dissera que havia defronte um candeeiro?); o Meirinhas morrera num desastre (porque não falara nisso?).
"Tens de perceber que esta história é contada por mim", disse-lhe enfadado. "Assim talvez não valha a pena continuar..."
Julgo que cometi uma falta grave com essa minha incompreensão. Ele garantiu-me ouvir tudo o mais sem me interromper, e fiz mal em aceitar a subordinação de Alcides. (Sim, ele chamava-se Alcides. Mais adiante eu conto como lhe veio o nome.) Mas a verdade é que o meu esforço para escrever algumas páginas dentro daquelas paredes impossibilitava-me de ainda saber escutá-lo e colher nos nossos diálogos uma experiência mais rica para
o seu romance.
O romance que eu escrevia e ele vivia. O drama estava na diferença destas posições opostas que seria preciso harmonizar. O que só às vezes pude conseguir.
Quanto à cadeia, devo recordar o que já disse, ao que suponho; faltarão contornos a todas as figuras, certos acontecimentos mereceriam um detalhe que lhe não dou. Mas seria impossível acumular num só romance os rumos tão diversos de uma personagem complexa, e ainda todo
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o imenso material humano que uma prisão oferece a quem lá esteve alguma vez.
Tive de escolher. Por agora limitei-me à história de um homem com sete alcunhas, cuja vida me sugeriu uma barca desnorteada num mar de tempestade.

CAPÍTULO IV
De ingratos está o Inferno cheio
Foi o que a mana Marquitas, a viúva, disse para a mana solteira, a Milinha, depois de ouvir o Bago de Milho rosnar ao fundo da escada aquele impropério
sem nome.
"Raios partam isto tudo, que nem o filho já é meu!"
Manuel pensou que ninguém o escutava e dera-se àquele desabafo, bem comezinho para a sua ira, que se ele fizesse o que lhe apetecia - ah, caragos! - nem uma patrulha reforçada da guarda republicana seria capaz de o segurar.
Ingrato não era, nunca o seria, assim mo confessou o Bago de Milho, numa noite em que passei à porta da cavalariça, e ele estava para ali a falar sozinho com os vinhos da sua tristeza. Conversávamos muita vez, porque ele gostava de me contar alguns passos da vida do meu avô Venâncio, de quem o Bago de Milho fora aprendiz, e ainda mais, talvez, pela razão soberana de ter sido ele o cocheiro que levou a minha mãe à igreja no dia do meu baptismo. Era uma intimidade que ele não esquecia.
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E lá vinha o meu avô, mais a história de um bofetão que lhe dera, as viagens de carroça até Bucelas para entregarem ferraduras e canelos, e, por fim, o seu despedimento de casa do Cadete, o grande malandro, só porque ele, Bago de Milho, deixara o Lavrador das Moças servir-se do carro dos casamentos para certas intimidades com uma sevilhana que fora ao cinema de Vila Franca "dançar com castanholas". E lá porque a malta da vila passara a conhecer o carro dos casamentos pelo nome de um prostíbulo, o malandro do Cadete pusera-o na rua, sentindo-se desonrado com a graçola. O que mais lhe custava era o Cadete falar de bem com o Lavrador das Moças, lá porque era freguês, e enjeitá-lo a ele, que fora sempre um cocheiro dedicado e um mão de rédeas com fama em toda a Borda-d'Água.
Naquela noite, porém, Bago de Milho não me falou desse desgosto.
A mana Marquitas, toda pontinhos nos u, passara-lhe uma sarabanda por causa do seu desabafo na escada, chamando-lhe ingrato, e que se ele queria matar a mulher, a pobrezinha, ainda no hospital entre a vida e a morte, que levasse o filho.
"E esta, menino?!", dizia-me Bago de Milho, coçando a barba ruiva, como se quisesse arrancar os maxilares.
Ele percebia que era um favor, o de lhe ficarem com o rapaz, enquanto a mulher não saísse do hospital. Não era nenhum bruto. Traziam-no vestido que nem a um príncipe, haviam-lhe dado uma ama e até berço lhe tinham mandado fazer.
"Sim, a criança era tratada como um fidalgo, lá isso!... Mas não estariam a estragá-lo com mimos?..."
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E Bago de Milho ficou silencioso, talvez embrenhado em contradições, que não sabia exprimir. Logo depois abriu-se em queixas.
"vou lá pra ver o meu filho, que é meu, mesmo que por aí na vila lhe chamem o Menino Jesus... Agora nan pode qu'o menino tá a dormir, agora nan pode qu'o menino tá a mamar, agora nan pode qu'o menino tá no banho... Como se o rapaz fosse algum peixe, trazem-no sempre dentro d'água, 'stá no banho, 'stá no banho... Gaita para tanta limpeza! A primeira vez que o vi nem me deixaram mexer-lhe: que tinha as mãos sujas. Já se viu uma coisa destas?!"
E mostrava-me as mãos calejadas e negras.
"São mãos de trabalho... Trato com éguas e cavalos, e a água que vou buscar à fonte é prós animais. Nunca quis ser pessoa de caganças."
Foi depois buscar um banco à cocheira e obrigou-me a sentar. Ele ficou de pé, à minha frente, como se receasse que não o visse bem. Quando falava, torcia um pouco a boca e piscava os olhos, parecendo ter necessidade de fazer força para que as palavras lhe largassem os lábios arroxeados pelo vinho.
"Assim que bato à porta, oiço logo a voz da solteira, que nem o apito de uma máquina de comboio: ó Manel limpe-me bem esses pés! Qualquer dia querem que eu me descalce, como se fosse em penitência numa procissão. Cá na minha já pensei que elas querem desgostar-me pra que não apareça..."
"Hum!", fiz eu numa dúvida.
"Eu que digo isto, cá sei... Já foram dizer à minha mulher se ela s'importava que o menino ficasse lá em casa.
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A patroa, coitada, com a doença e a vergonha encolheu-se. Eu depois é que a vi chorar. Mas enganam-se. Devo-lhes favores, não sou ingrato, mas daí a dar o meu filho... Ó menino! Então o rapaz é algum gato que se dê assim?!..."
"Não o faziam por mal", arrisquei um tanto embaraçado.
"Não digo isso, é preciso que me compreendam. Devo-lhes favores, não sou ingrato, nunca o fui. Ainda ontem no baptizado mostrei que sou um homem...
Faltava-lhe a palavra e esgrimia as mãos, como se estivesse com elas a moldar o termo preciso.
"bom... Um homem... um homem tal e coisa. Percebe?! Assim mesmo", concluiu quando lhe acenei a cabeça. "Pois ainda ontem no baptizado, eu que queria pôr ao rapaz o nome do meu avô Augusto, deixei que lhe pusessem Cidro..."
"Cidro?!"
"Diz que é o nome dum general lá da família delas... Cidro não é nome de gente."
"Talvez seja Alcides ou Alcino", expliquei depois de pensar na deformação.
"Qualquer coisa! Pra mim é Cidro... E eu podia dizer nan senhor, Cidro uma gaita! E nem falei... Fiquei triste, claro, que pra mim Augusto é que era. Mas a gente tem de pagar os favores... Agora dar o rapaz ou gramar aquelas fedoriquices, não. Estou lá agora pra que fizessem dele uma cartola e amanhã morder-me de vergonha porque ele tinha nojo da família... Antes queria vê-lo deitado no fundo dum caixão, palavrinha. Morto no fundo dum caixão."
A ira abafava-lhe as palavras.
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"E depois, sabe, muita limpeza de pés, muita água, você tem as mãos sujas, mas o pior..."
Bago de Milho precisava de tirar a sua vingança. E tirou-a ali mesmo.
"O pior é que a respeito de honra, adeus minhas encomendas. A fortuna vem-lhes do avô que era cocheiro como eu. E como a ganhou ele?! Era o que se dizia. Numa noite que vinha de Alenquer na charreta com o patrão, fez que o cavalo tomasse o freio nos dentes e espetou com aquilo tudo por uma ribanceira abaixo. O outro morreu, ele ficou vivo e deitou a mão à patroa."

CAPÍTULO V
Onde Bago de Milho conhece o preço da celebridade
Bem ao contrário do que afiançara o padre Marcelino, de voz ferrugenta e cara de vilão, o nascimento do filho tomava rumos de coisa milagreira.
Madrasta sempre, a maldita, a vida começava a valer a pena viver-se. Chegava um pouco tarde, talvez, mas ainda vinha a tempo para o recompensar de tantos anos ingratos. Canseiras e mau passadio, que nem erva nos Salgados do Tejo, um dia ou outro de alegrias verdadeiras, e só a sério uma grande coragem para beber copos, que sempre é uma forma de gastar o tempo com ilusões. "com um bêbedo ninguém pode", dizia o Bago de Milho na sua.
E era verdade. com dois litros de vinho e um almude de luar, um homem ficava capaz de falar a um pintarroxo cativo, a um candeeiro tristonho ou a um triste podengo das ruas, sem pedir licença a ninguém e sem receio de lhe responderem às avessas, que a imaginação do vinho consente tudo o que um homem lhe bote dentro.
Mas agora a vida de Bago de Milho tomava jeitos de bebedeira sem ajuda estranha.
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À mulher, no hospital, nada faltava senão a saúde, que nem os cuidados eram capazes de fazer regressar, tão débil ficara depois do parto e ainda por aquela vida de canseira e fome que até ali lhe dera. Era um regalo estar agora a seu lado, vendo-a enjeitar comer que parecia de casamento.
Ele dizia coisas ao acaso, que lhe pareciam bonitas, só para animar a companheira e ver as doentes enternecidas, "'stá um rapaz que nem uma flor! Acho que aqueles olhos amalandrados são do meu avô Augusto. Na boca é que sai ao lençol de baixo..." E apontava a mulher, num trejeito do rosto, enquanto o boné de quadrados lhe girava nas mãos inquietas.
A mulher preocupava-se por ele. "Quem havia de o tratar?..." E Bago de Milho aquietava-a sem constrangimento, porque as senhoras da alta se não esqueciam dele. "Que não se ralasse, pois a D. Margarida do ó mandava-lhe o comer pla criada."
Do que poupava nas sopas gastava no barbeiro, apurando-se num bigode retorcido, que sempre tivera de gosto e nunca pudera usar por falta de dinheiro. Agora, que lhe sobejava um pouco e as pessoas de posição lhe falavam, tinha de se cuidar, tanto mais que lhe mandavam camisas e até pares de calças para o verem limpo, como lhe diziam.
Começava a ser um homem.
As Peraltas, atenazadas pelo que se dizia na vila, já o deixavam mexer no filho, pegar-lhe ao colo e babujá-lo de apaparicos. D. Marquitas, a viúva, quisera falar-lhe do baptizado e mandara-o entrar para o varandim, sem aquelas recomendações doutros tempos.
Fora uma conversa bonita, lá isso fora.
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"Pois Sr. Manuel, a criança tem de se baptizar quanto antes..."
"Outra vez?!..."
"O registo é uma lei da República, Sr. Manuel, e é preciso que a criança tenha o seu nome como deve ser. Não acha?!"
Bago de Milho não achava, não senhor, que ele andara em vivório no 5 de Outubro, quando lhe garantiram que a revolução se fizera para os pobres, e não ia agora amochar aos pés de um padre em companhia de beatas e talassas. Mirrara-se todo por dentro com a ideia da viúva, assim meio embatocado, "havemos de ver isso, ora essa, pois claro!" E enfiara por um labirinto de palavras de que nem ele percebia o sentido, só para que a D. Marquitas acabasse por esquecer a proposta. Dava às mãos e sorria, meneava a cabeça e falazava sem trambelho "ora essa, pois claro, um homem é um homem, um bicho é um bicho, e Vossa Excelência sabe bem. Pois não que não sabe..."
Percebendo-lhe a artimanha, a viúva esperou uma hesitação e meteu a sua talisca: "Tenho aí um fato quase novo do meu defunto e quero que tu o leves nesse dia... E hás-de pôr gravata, pois então!"
Bago de Milho sentiu que lhe estragavam as convicções, mas aquele esmero de Marquitas, a viúva, deu-lhe um baque no peito. "E se ela o quisesse para marido?!... A patroa estava tão malzinha..." Achou-se um tanto diminuído - ia vender-se por um fato? -, mas a verdade, verdadinha, é que a República ainda não lhe dera uma sede de água e também não estava certo enjeitarem assim quem estivera a seu lado na primeira hora.
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Mas lembrou-se do Javardão e foi como se levasse um coice pela banda dos queixos. "E se ele, que era todo do Afonso, o chamasse à pedra? Gaita prà política!..."
Baralhou-se em dúvidas, de garganta seca, e disse que talvez, sim senhor, era uma coisa para se ver. A viúva não desarmava, insistindo no fato e na gravata; e acabou a conversa com a ameaça de ir falar ao padre Jerónimo.
"Sabe-se lá quando um homem está bem!", pensava consigo, ao descer a escada das Peraltas.
E tinha razão o Bago de Milho.
Um dia de terramoto esbandalhou Lisboa. E as casas eram de pedra e cal. O nosso homem aguentou mais uns dias, mas acabou desfeito.
Logo na manhã seguinte, estava ele a escovar a Estrelinha no seu assobio repenicado de melro, apareceu-lhe o Dr. Carvalho do ó, muito manso, com modos de seda, "ora viva, muito bom dia!"
Bago de Milho fez da mão pala para os olhos, sem acreditar na visita.
"Tens recebido de comer? Ainda bem..."
"Muito obrigado, Sr. Doutor, que seja pela saúde dos meninos, de Vossa Excelência e da esposa de Vossa Excelência, que é uma santa senhora. Vossa Excelência também não merecia outra..."
Queria estender as palavras, como os doceiros estendem massa, mas logo o outro se pusera a falar das Peraltas e de certas intenções que lhes descobrira. Garantia pela sua honra que lhe queriam roubar o filho, sabia lá para que fins. "Sempre são duas mulheres sem homem, compreendes, Manel?..." E aí começou o doutor a contar-lhe coisas a que assistira nos tribunais. Coisas do arco-da-velha!
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Depois a sugestão para que fosse buscar o filho; e perante a sua hesitação, ameaças. Ameaças e ralhos, "que ele era parvo e que ainda havia de se arrepender".
O Dr. Carvalho do Ó deixou o veneno e abalou.
Queimaram-se-lhe os olhos de lágrimas. Começou a andar de um lado para o outro, atarantado, e meio bambo das pernas - isto é que é uma gaita! dizia aflito atirou-se para cima da palha com ganas de a morder ou de lhe deitar o fogo. Lembrou-se da sua garrafa de aguardente e bebeu nela o fel das suas queixas. Discutiu com quem lhe apeteceu, arrasou tudo de praguedo e asneiras, e acabou por adormecer. Mas nem o sono lhe trouxe a paz.
Viu o Javardão à sua beira com o cabo de ordens, um maldito que embirrava com ele e trazia a autoridade num bengalão e na capa alentejana, como se fosse o manto de um rei. Vinham falar-lhe do baptizado e ameaçavam-no com a costa de África, enquanto o padre Jerónimo, montado na Estrelinha, que escoicinhava tudo, aparecia depois para o intimidar com as profundas do Inferno, desafiando os outros com uma vela de cera do seu tamanho.
"Tu não és republicano?...", perguntava-lhe o cabo de ordens.
"Sou e então?!..."
"E não tens vergonha de andares ao mando das beatas e dos padres?", insistia o Javardão, lembrando que era
seu amo.
Mas logo chegava a Marquitas com o peito altaneiro e o olhar guloso de fêmea sem dono, acenando-lhe os papéis dos prédios e das terras, enquanto a Milinha lhe mostrava o fato e a gravata e o Dr. Carvalho do Ó, que
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nem um peneireiro, se esmoncava em pios de aterrorizar um santo.
Bago de Milho fugia-lhes, enfiando-se pela palha como um rato acossado, e mirrava-se, mirrava-se, sem poder fugir à perseguição, pois o João Pirica vestira-lhe uma capa vermelha e todos davam por ele com aquela cor de fogo a desafiá-los. O cabo de ordens conseguira agarrá-lo de um salto, e logo o padre Jerónimo lhe pegara pelos pés, puxando do outro lado, como se fora um coelho.
"Largue, seu homem, largue!"
"Largue, seu prior, largue!"
Um mandava na Terra e o outro no Céu. "Há-de ser bonito se um deles, alguma vez, manda nas duas coisas ao mesmo tempo!", pensava Bago de Milho aturdido e arrepiado de medo. E acordou a gritar, coberto de suores frios, enquanto os animais se enfureciam na manjedoura com falta de água.
"Queria lá saber daquilo!"
Pôs os cavalos à solta e desapareceu na noite, levando consigo os restos do pesadelo que o atormentara. A sua vida era aquilo, estava bem de ver. O Demónio entrara-lhe no corpo e não o deixava quieto. Balouçava com a aguardente e os desgostos, encostado às paredes, aqui te apanho, acolá te agarro, sem perceber que caminhos andava. Mas apareceu na taberna da Teresa, sentado a um canto, tão desgraçado e lívido, que a taberneira se assustou com ele.
-Uma sopa! gritou desvairado.
- Já não te mandam o jantar?...
- Mandam, mas eu quero comer pla minha mão. Achas que não tenho direito?
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A Teresa não lhe percebia os gestos de arremesso nem aquela dor clamorosa que Bago de Milho trazia presa aos olhos espantados e vermelhos. Quis aquietá-lo, pondo-lhe a mão no ombro. Ela sabia que ele gostava daquela intimidade.
-Já t'aborreceram? perguntou-lhe com doçura.
Bago de Milho suspirou fundo, acenando a cabeça, sem levantar os olhos, e tapou-os com as mãos. E sem mostrar o rosto pediu vinho.
- Não bebas, Manel, não bebas mais! Sou eu que te peço...
Disse-lhe que sim e abalou sem comer. E quando o disse, Bago de Milho tinha a certeza de que podia cumprir a promessa. Mas na rua achou-se tão só, que foi acabar a noite numa taberna do Cais. E bebeu até ficar que nem um pedra.

OS GRITOS SILENCIOSOS
DIÁLOGO com A DÚVIDA
Tinha-me deixado ler-lhe tudo sem uma interrupção. E o seu rosto afogueara-se de prazer ao ouvir lembranças dos seus e da nossa vila, que ele devia ter esquecido na hospedaria de tragédias onde agora estávamos.
Mas naquele momento não se conteve. E apertou-me o braço com vigor.
"Estou a sentir o que meu pai teria passado. Como era ele?... Sim, já sei, bebia e abusava dos copos, sofria por não ser cocheiro... Mas era homem a quem as coisas se agarrassem?"
"Julgo que sim", respondi sem o compreender. "Todos os homens se deixam amarrar por certas preocupações..."
Continuou sentado ao meu lado e pareceu-me que gostaria de estar longe de mim. Fixou o olhar na janela de grades, falando sempre numa voz branda que devia ter lágrimas a molhá-la. Nunca o interrompi. Achei que aquele diálogo com as suas dúvidas só lhe podia fazer bem.
"Também andei agora aí uns dias como ele, como o meu pai devia ter vivido entre as intrigas de tanta gente. Lembra-se
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que me perguntou porque estava sempre longe de si?... E que corei, como se o senhor me tivesse apanhado numa malandrice? Lembra-se?..."
Baixou ainda mais a voz.
"Eles chamaram-me lá acima e perguntaram-me se eu queria ir ver a minha Nena. Eles lêem as cartas que lhe escrevo e já perceberam que ela é a única coisa que me ficou no mundo. A única coisa boa... Quando penso que a posso perder, e o coração me fica sozinho, sem uma amizade, aperta-se-me o peito. Negro que nem uma ferida ruim. Não há nada mais negro para um homem. Eu não sou capaz de dizer o nome de uma coisa tão negra e que doa tanto. Um homem precisa sempre de alguém, mesmolonge..."
A voz embaraçava-se-lhe, apertado cada grupo de poucas sílabas em nós de comoção que os prendiam.
"Por isso eu escrevo à minha Nena e por isso eles bem sabiam o que me perguntavam. Respondi que sim, que daria tudo para a ver. Foi então que eles me disseram, calcule o senhor o quê?... Se eu falava consigo, se conseguia saber se o senhor tinha alguma coisa com um velho... Se o senhor já me tinha falado nisso. Respondi que não, que o senhor não era homem para se meter em coisas dessas. Vê lá se consegues, voltou um deles a dizer. A gente não te põe em liberdade, mas pode facilitar-te a fuga. Queres fugir?... Agora já lhe posso dizer que andei uns dias a pensar nisso. O senhor tem de me desculpar, mas um homem que só tem uma amizade no mundo... Já reparou que nem aqui dentro tenho amigos?"
Foi nesse momento que ele se voltou para mim, como se quisesse acentuar as suas palavras. Estava trémulo.
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Via-lhe pequenas bagas de suor no rosto largo e contraído pela amargura.
"Pensei há dias que o podia safar a si. Punha-me a ouvir as conversas dos outros. Dentro de uma cadeia sempre se ouve alguma coisa, mesmo que os outros não queiram. E depois ia lá acima contar ..."
A conversa repugnava-me e atraía-me.
"Eles viam logo que eu estava a falar verdade e que se nada dizia de si é porque o senhor não tinha culpas."
"Não deves fazer uma coisa dessas. A tua Nena não gostaria, com certeza."
"Acha que não? Mas o senhor não a conhece ..."
"As mulheres não gostam de biltres. E isso que tu pretendias fazer para me ajudares era miserável. Ainda por cima, eles não te ajudariam a fugir..."
"Eu sei que não. Mas talvez o mandassem embora. O senhor não nasceu pra estar numa casa destas..."
"As prisões fizeram-se para os homens", respondi. "E nestes tempos não sabemos até se a prisão não será um lugar honroso."
"Eu matei um homem... Mas não foi por questões de política. Quis fazer pouco de mim e eu não podia deixar. Antes dele matei tantos que não me fizeram mal!... Só numa noite foram treze."
"Não queres que continue a ler o que escrevi? É melhor, talvez."
"Sim, é melhor. Mas quero dizer-lhe só mais uma coisa: nunca mais fui capaz de matar homens de noite."

CAPÍTULO VI
O destino dá coices e morde
com tamanha carraspana nos lombos, ninguém iria julgá-lo capaz de um nico de raciocínio. Ele próprio não se recordava de haver pensado alguma coisa durante aquela noite dormida à borda do Cais.
Desceu em dois pulos a rampa de atracação de barcos e fragatas, agachou-se para ficar mais perto do Tejo e despejou sobre a cabeça, com as mãos ainda trémulas, não sei quantas conchas de água.
A Maria Emília, o colibri de amor disponível, passou por ele a arrastar o xale negro de ponta e atirou-lhe o gracejo de sempre, tão certos eram os efeitos de conversa gozada:
- Ah rico homem! Se eu adivinhasse e tu quisesses...
- Água e carroça! respondeu-lhe o tratador de cavalos com a voz envinagrada.
Aturdida com a ofensa inesperada, ela pôs-se nas suas tamancas e rouquejou-lhe que "besta era a mãe dele e toda a sua geração". Bago de Milho nem se voltou.
"Se fosse noutra altura havia de lhe partir as fuças... Mas não queria arrefecer os fígados. Os outros e as outras é que iriam conhecê-lo bem. Quais fatos, quais gravatas,
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quais ameaças!... Um homem é um homem e um bicho é um bicho. Até ver!... O Dr. Carvalho do Ó que se lixasse com as palavrinhas de manteiga e com a comida também. Os outros todos que se lixassem. Vamos lá daí com o rapaz! E depressa!... O rapaz é meu e não o troco nem vendo. Era o que faltava! A companheira que saltasse já do hospital que ela era do marido - ou não era? - e na sua família quem mandava ainda, e mandaria sempre, era o homem... Pois então, é como lhes canto!... Muito obrigado, Sr. Doutor, muito obrigado, Sr. Enfermeiro, nunca serei capaz de pagar tantos favores por muitos anos que viva, mas a patroa vai comigo e é agora mesmo. E vai também a criança que não é nenhum gato para estar emprestada. Fui eu que o fiz... Ou não fui?!... Ora essa! Pois se sou eu quem fez o rapaz, sou eu, sem tirar nem pôr, que o deve aguentar. Muito obrigado, Sr.a D. Marquitas, muito obrigado, Sr.a D. Milinha por tudo o que fizeram. E até plo que não fizeram, que as intenções é que marcam. Obrigados às duas... Mas tenham paciência e saltem-me pra cá co fedelho. Qual me nem meio me! E nada de choradeiras porque as mulheres quando choram a sério 'stá algum burro pra morrer cedo. Isso pra cá não cola! Não sou piegas!... Olha a grandessíssima gaita, não querem lá ver! Se não viver de apaparicos, vive de açorda e de sopas de vinho, que é comida boa pra enrijar. Muito obrigados às duas e ala moço que se faz tarde. (Claro que não ia dizer as coisas à bruta, se lhe dessem a criança por bem... Também sabia falar à pelica, se fosse preciso. Mas a mal?!... Iam ver o bom e o bonito.) Grande corja de malandros! Um homem a tornar-se de palha, só pra não ser bruto, e eles logo a abusarem. Um pobre quanto mais
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se agacha mais mostra o rabo... É o que lhe digo!... Olarila! Ou eu não fosse Manel Pereira, nascido e baptizado em Arruda dos Vinhos."
Queria guardar consigo as razões que o deslumbravam, mas as palavras escapavam-se-lhe, embora sussurradas. E fazia gestos, parava na rua e respondia de enfiada, sem consentir que lhe ripostassem os inimigos ausentes. Tinha pressa naquela manhã de resolver o que deixara amodorrar durante semanas, como se uns minutos mais fossem gangrenar-lhe a vontade.
Enfiou pela taberna da Teresa e atirou bons-dias aos que estavam. "Não vai, obrigado, que eu hoje preciso de ficar são que nem um pêro. Nem um cálice de rija, nem uma lágrima de vinho."
A taberneira metera-se na cozinha e ele ouvia-lhe a voz cantada. Olhou para o quadro da parede e sorriu. Lá estava a moça do decote abrindo a cancela de madeira ao caçarreta de bigode frisado, que servira de modelo ao seu.
- Ah és tu? respondeu a taberneira quando ele a chamou.
- Não conheces o assobio do melro?
- bom melro me saíste... Essa cabeça nunca mais tem juízo.
Já vinham os passos pelo corredor cimentado e Bago de Milho chegou-se ao balcão para receber a Teresa mais de perto. Ela ralhou-lhe com os olhos, mal o rosto surgiu na cortina de ramagens, e depois confirmou a reprimenda:
- Não te disse pra não beberes?... Parece que arranjaste um bonito par de botas!
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Bago de Milho voltou a inquietar-se com qualquer coisa de que se não lembrava, mas que lhe bulia nos nervos excitados.
- Pra que soltaste os animais, meu doido?
- Oh Teresinha!...
E a sua voz carpiu aquele nome. "É verdade, os cavalos!", pensou. Num instante recordou-se de tudo. E saiu desaustinado pela porta fora.
Bago de Milho nem saudou o cocheiro, enfiando pela cavalariça num destrambelho de gestos. O Farol estava deitado na palha; conheceu-lhe os passos e levantou a cabeça cansada, gemendo, numa tosse reprimida de sons graves.
- A Estrelinha ia-o matando a coice, disse o Chico Dá-m'Uma. -Pra que raio te havia de dar o vinho...
Bago de Milho ajoelhou junto do Farol, um alazão de malha branca na testa, e passou-lhe a mão nas crinas ásperas, indo depois correr-lhe o frontal ensanguentado. Para que o cocheiro o não ouvisse, o tratador sussurrou-lhe à orelha: "Meu cavalo bonito!... Eh Farol!..."
A Estrelinha ficara afastada, no extremo da manjedoura, e parecia desconfiada, desde que Bago de Milho entrara.
Não andavam de boa fé um com o outro. A égua já sentira muitas vezes o cabo do chicote nos lombos, empunhado por aquela mão que afagava o cavalo velho. A Estrelinha devia pensar que o Farol estava ali a mais, a comer a ração dos outros, e escoicinhava-o sempre que lho punham à ilharga, enquanto os demais cavalos mastigavam a palha ou a fava que lhes punham adiante, porque o Farol tinha os dentes balbos e já não podia retraçar a comida.
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- Podes ir se quiseres, disse Manuel para o cocheiro, que se encostara ao portal.
- Tenho de avisar o Javardão, respondeu o outro sem se voltar. - Vai despedir-te...
- A mim?!...
- Sim, pois. Disse-me que te fazia contas hoje mesmo...
- Ora! Bem me ralo com isso! Que meta o emprego na gaveta da cómoda!
Tentou pôr o Farol de pé, mas o corpo do cavalo recusava-se. Deu ainda uma palmada na garupa do Siroco, um bicho esbandalhado, mas que tinha um trote de sete léguas e era o melhor companheiro do velho alazão. Nenhum outro cuidava tanto de lhe mastigar a fava e de lha pôr ao alcance da boca.
"Esse favor devia ele também ao Javardão, que nunca quisera vender o Farol aos ciganos. Quem envelhecer cá em casa, fica até ao fim..." Eram as palavras do amo, que Bago de Milho gostou de recordar naquela hora. "Ele é que não podia ficar... Também não estava velho e ainda bem!"
Logo, porém, se desembaraçou desses pensamentos.
Foi ao canto da palha buscar a forquilha e pegou-lhe pelos bicos, afastando a Ronda, que ficara mais perto da Estrelinha. Esta, inquieta, dava com os joelhos na manjedoura e nitria, num arremesso de raiva; adivinhara que o estribeiro a ia espancar e as patas dianteiras feriam sempre as pedras do chão, num toque nervoso, enquanto os relinchos cortados e agudos de cólera se misturavam aos de medo, roucos e surdos.
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Bago de Milho soltou-lhe a corda do cabresto, num rápido golpe de mão, e quis sossegá-la: "Quiá Estrelinha! Ó Estrelinha!...-"
Velhaca e rebolona, a égua deitou-se na palha da cama; e os olhos zarcos, de um azul-claro, pareciam rebentar nas órbitas espantadas de pavor, traindo o seu temperamento passarinheiro e pouco fiel. O estribeiro tocou-lhe a barriga com os garfos da forquilha para obrigá-la a erguer-se. A égua caraça, de silva lastrada até à boca, encolheu-se ainda numa contracção de receio; mas logo num impulso, que Bago de Milho não foi capaz de compreender, pôs-se de pé e girou sobre si, atirando-lhe ao peito as duas patas traseiras.
Ele só fez um gesto de recuo, que não pôde concretizar. E o grito que quis bradar bem alto, para que o ouvissem, não lhe saiu da cabeça.
A Estrelinha, trémula, com receio de que ele a espancasse, foi logo procurá-lo com os dentes e mordeu-o com raiva, nitrindo sempre, tanto e tanto que as outras éguas e cavalos relincharam de pavor na manjedoura vazia.
O Farol gemeu e nem levantou a cabeça para ver o amigo. Talvez porque era um alazão velho, e sabia bem o que sucede a um homem quando um cavalo o odeia e o tem debaixo das patas.

CAPÍTULO VII
A morte passou numa tempestade
Devo contar a verdade e sinto-me embaraçado por um calor estranho que me paralisa. É que tudo o que se passou na nossa vila nada mais parece do que um ardil corriqueiro da minha imaginação cansada, agarrando ao acaso um acontecimento inverosímil para pôr no mundo uma criança sem afectos.
Foi em Agosto de 1918 que o pavor rebentou em Azambuja. À nossa vilória a pneumónica chegou um mês depois - talvez trazida pelo vento ou pelas águas do Tejo, num barco negro de tragédia. O hospital encheu-se em poucos dias e foi preciso mobilizar as aulas da escola e os salões do clube da gente de sociedade.
Só num dia, trinta mortos.
O sino da igreja calou-se para não aumentar o terror, que levava à cama e feria de morte alguns que nem a doença tocava. No silêncio das noites espantadas ouviam-se, ouvíamos todos, os passos sinistros da mula que puxava o carro de transporte para o cemitério. Era um carro que servira
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ao lixo e naqueles dias terríveis levava, de mistura, mortos em putrefacção e vivos atacados de medo.
"Avinhe-se, abife-se e abafe-se" era a ordem dos médicos e dos curiosos que os ajudavam. E havia mais gente nas tabernas a emborcar aguardente do que a aviar receitas nas farmácias.
Mas os bêbedos não cantarolavam. Faziam longos diálogos com a morte às esquinas das ruas, num desafio pimpão que depois os tolhia. Andava-se nas ruas em silêncio, como se as palavras e os gestos pudessem espevitar os olhos da peste. As oficinas paravam, sem braços, e os campos ficavam desertos, como se a guerra ali tivesse passado com a sua gadanha.
Em casa das Peraltas, sorrateira, a morte subiu as escadas e colheu a Milinha, levando-a em dois dias. E a mana Marquitas, agarrada ao oratório em preces sem fim, seguiu-a uma semana depois, embora ainda tivesse dito ao António Susana que lhe trouxesse o notário para fazer o testamento ao menino que já era órfão.
"O notário morreu, D. Marquitas."
"Mas a criança..."
"Eu trato-lhe de tudo, fique descansada."
E tratou. Marquitas, trémula, ainda assinou o nome no fim do documento que o procurador lhe lera, palavra a palavra, ao ouvido já frouxo. E morreu sossegada, em paz com a sua consciência.
Outro tanto não sucedeu ao António Susana, que ao fazer-se herdeiro da fortuna das Peraltas jurara a si mesmo proteger o menino, tornando-o, até ao fim da vida, criado das suas quintas. A pneumónica é que não o deixou...

OS GRITOS SILENCIOSOS
A NOITE E AS POMBAS
Quando todas as manhãs, sorrateiro como a madrugada, vinha dar-me os bons-dias e perguntar se desejava alguma coisa, num ar servil que me doía, bem adivinhava o esforço que fazia para sorrir, embora as palavras se lhe adoçassem na linha imprecisa da boca descarnada. Só os dois traços fundos como abismos, que iam dos olhos aos maxilares, se lhe arrepanhavam na caraçona larga e pálida, onde as maçãs avultavam disformes.
Quem conhecesse o pai, diria que era o seu retrato pintado. O mesmo talhe de rosto aberto, os olhos agudos de folha de oliveira, os pêlos ruivos, quase de fogo, e o nariz redondo, de venta larga, pendurado em sobrancelhas eriçadas e espessas.
O retrato pintado do pai e outro homem tão diferente, que nunca vi outros mais díspares. A um pintou Velásquez com as tintas do sol, da alegria popular, espontânea e um tanto chocarreira, e também as da resignação vitoriosa do pobre diabo, capaz de acreditar na revolução ou num lobisomem; e ao outro o dramatismo contido de Goya com as
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cores de Greco, saindo das torturas de uma noite funda e bárbara.
Linhas decalcadas no seu conteúdo exterior, conduzindo, porém, ao cerne de dois mundos opostos.
Não tanto na cor da pele do Bago de Milho, rica de tons pelas canículas e frios, sensualidade e vinho, em contraste agressivo com a daquele homem, meu companheiro de prisão, entre o pergaminho e a cera, saturado de sofrimento pelas vigílias de todas as noites num longo cativeiro, nem pela boca tão diferente que no filho era o golpe duro, sem lábios e sem promessas, agreste e seco, e no pai o acidente sangrento e carnudo, sempre ansioso de vida, mesmo que ela o esbandalhasse de indiferença.
Tudo aparentemente igual, menos a boca e aquela transparência que se podia apalpar no rosto do prisioneiro e deixava surpreender-lhe a alma para além da pele descolorida, como se estivéssemos encostados ao vidro de um aquário, seguindo os movimentos de um peixe bizarro, que mudasse de aspecto e de cor a cada instante.
Quando o via, julgava que podia colher à flor da sua pele o desespero e a raiva que o consumiam contra tudo o que o rodeava e ele não podia entender - ou não queria entender. De manhã acordava cansado e via-o vaguear pela sala com um fósforo ao canto da boca, como os burgueses doutro tempo quando acabavam um jantar opíparo. Andava só, cá e lá, de mãos atrás das costas, querendo escondê-las (talvez não gostasse das mãos), sempre de cabeça baixa e olhar distante. Os outros prisioneiros deixavam-lhe um vazio à volta, não ocultando a repugnância que por ele sentiam. Eu julgava que ele percebia essa aversão e gozava com ela, aterrorizando os que entravam e os mais ingénuos.
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Talvez fosse o ruído que se acumulava na sala ou a revolta por mais um dia ali dentro. A verdade é que o via transformar-se; e do silêncio, dos passos cautelosos e da distância que deixava crescer entre si e os outros, ele galgava de um golpe para o meio da sala, abrindo um rasgo nos grupos, para disparar de dentes cerrados a metralhadora invisível que trazia sempre apertada nos braços. Tá... tá-tá-tá... tá... tá-tá-tá...
Sentia frio quando lhe via os olhos alucinados, fixos e brutais. (Se o visses, Bago de Milho, como chorarias comigo!) Tá... tá-tá-tá... tá... tá-tá-tá...
"Tira-te da frente!", gritava para outro.
Depois baixava o braço esquerdo e descansava a metralhadora sobre a perna direita, como se esperasse outra leva de prisioneiros, brincando sempre com o fósforo ao canto da boca.
Se a sala se aquietava, ele ia sentar-se e contava tudo.
"Quando apareci à sua frente, ele não me esperava. Estava sentado num soja com os engenheiros, mas não foi capaz de fugir como os outros. Tenho a certeza que foram os meus olhos que o prenderam. Mal puxei da pistola, disse-lhe: sabes que eu sou um homem honrado?"
Ele fez um sinal com a cabeça e tive-lhe nojo. Achava que ele devia dizer até ao fim que eu era como os outros que ele mandava apalpar. Ouvi-lhe um gemido; quis falar com certeza, mas não foi capaz. Deu-me vontade de lhe cuspir. Sempre fanfarrão, como se trouxesse o rei na barriga, e agora nem um gesto para me tirar a pistola.
"Sabes que te vou matar?"
"Nunca pensei que a queixada de um homem pudesse dar um estremeção daqueles. Tenho a certeza que se soltou
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dos engates que a gente deve ter aqui, na cabeça. (E procurava com os dedos trémulos.) Caiu à minha frente de joelhos e ia a levantar as mãos. Não, eu não precisava daquilo. E antes que ele as juntasse dei-lhe um tiro, aqui, na garganta, para que não gritasse e nunca mais dissesse a alguém: vai ali dentro para te apalparem...
"Ficou um buraco por ali dentro e uma fonte de sangue. Era o sangue de um porco. Malandro! Eu era um homem honrado!... Mas não estou arrependido. Quando lhe vi os olhos é que me lembrei dos outros que eu matara lá longe... Eram uns olhos na noite e que nunca mais posso esquecer. De noite nunca mais fui capaz de matar outros prisioneiros. Eram olhos que me gritavam, e me pediam, e me ameaçavam. Apontei-lhe a pistola e dei-lhe um tiro no olho direito. Ele sacudia-se a meus pés como um animal... Como um cavalo que eu vi uma vez morrer na Lezíria... E como os outros homens... Dei-lhe outro no olho ainda vivo, que me seguia por toda a casa, embora eu estivesse no mesmo sítio. E depois o resto da cartucheira na cabeça. A seguir, para despachar.
"Não, ninguém foi capaz de me prender. Eles devem ter julgado que eu me ia matar e que deixara uma bala para mim. Estavam doidos!"
Imitava todos os gestos dele e do outro, as convulsões, os rugidos de pavor e as ameaças, num tom de voz que até ali nunca ouvira.
Era uma alucinação para todos.
Depois, sem transição, das frases cortadas e rápidas, ditas de dentes cerrados, dos braços estendidos numa tensão que nos confrangia, do rosto pálido e túrgido pelo ódio, e talvez pelo medo, vinha a marcha dançada e uma cantiga. E
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seguíamo-lo, sem entendermos se era mais terrível a contar o seu crime, se a bailar aquela alegria trágica de se julgar um herói.
Momentos depois estava sentado, sozinho, procurando o isolamento. Apertava a cabeça com as mãos, deixando-as escorrer pela caraça, cerrava os olhos de folha de oliveira, como se quisesse apagar neles qualquer coisa que se lhes pegara, e ficava por ali, ausente e despegado de todos nós, até ir junto da sua cama para ver se a dobra das calças estava correcta. Passava-as todos os dias debaixo do colchão, corrigindo qualquer desvio, para depois escovar o casaco com mil cuidados e se rever nas duas gravatas.
A primeira vez que o ouvi deu-me vontade de gritar que o levassem. "Por que razão o tinham posto naquela cadeia?" Perguntara-lhe o motivo da sua prisão e ele não hesitara um instante, como se contasse uma façanha que o fizesse célebre.
Repugnou-me a sua amizade e quis evitá-lo.
Mas quando eu estava encostado à rede, que fica entre nós e a grade, seguindo as evoluções dos pombos da igreja, que vinham de lá para a cadeia, como se tomassem banho na luz macia da tarde, ouvi a sua voz trémula e apagada por trás de mim: "O senhor também gosta de pombos?..."
Não entendi a pergunta naquela boca e não pude responder-lhe.
"Também eu gosto... É o bicho mais bonito que há na Terra... O senhor já comeu carne de pombo?... Eu nunca fui capaz. Acho que devia ser proibido matá-los... Quando me casar hei-de fazer um pombal."
Sentia-me incapaz de lhe falar.
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"Foi no asilo que isso sucedeu. Depois do que o senhor escreveu, estive num asilo. Eu gostava muito de um pombo que a D. Branca tinha numa gaiola, à entrada do recreio. Um dia tirei o pombo lá de dentro e pus-me a fazer-lhe festas. O bicho arrulhava nas minhas mãos, quando ouvi os passos dela no corredor. O senhor talvez não saiba, mas aquela mulher fazia-me medo. Meti-me a correr dentro da retrete e, para que ela não desse por nada, torci o pescoço ao pombo. Ainda hoje as mãos me doem... Ela nunca soube, mas eu tive o castigo. Toda a minha vida ando a sofrer o castigo dessa morte."

DUAS ALCUNHAS NUM PÉ SÓ
CAPÍTULO I
Vale a pena recordar ?...
Foi rápido como o fogo posto numa meda de trigo.
Na angústia desvairada que a pneumónica atirara sobre a vila pachorrenta, houve quem se lembrasse ainda das palavras do padre de Arranho na noite de consoada: "Só o futuro nos dirá, porém, com a ajuda da Santa Madre Igreja, se esta criança é Alguém que veio na hora própria, um homem vulgar, filho de um ébrio, ou um aliado de Satanás..."
E num relance o mulherio fez um ramalhete de maldições para o enjeitar:
"Cruzes, canhoto!... É mesmo por uma pena um aliado de Satanás... Quem cair debaixo dos seus olhos fica logo amortalhado, Deus nos acuda, Virgem Santíssima! O pai, coitadinho, que era um bebedolas, lá isso é verdade, morreu daquela maneira, ao coice e à dentada, que nem um bicho. E a mãe?!... A mãe, que já ia levadinha, graças a Deus, teimou em vê-lo e assim que lhe pegou - rica filha! - , deu-se de mirrar, de mirrar, que nem a palha dos Salgados fica mais seca de sangue. E já se viu desgraça
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maior do que a das meninas Peraltas, tão esmoleres, coitadinhas?... Quem as visse à sua volta, como se o rapaz fosse um fidalgo, nascido na barriga das duas, salvo seja, diria que elas iam ganhar o Céu. Andavam sôfregas e não faltaram más-línguas a mordiscá-las de peçonha. Quem havia de dizer que procuravam a morte com as suas mãos? Viu-se alguma casa mais desgraçada em toda a vila?... E nunca lhes faltara comida nem remédios de botica, que de dinheiro ali não havia carência. Pois mesmo assim, em poucos dias, nem vivalma lá ficou pra dizer a quem quisesse ouvir que naquela casa, tão farta, morara gente. Foi um rabo de morte maldita, trazido pelo Satanás das profundas do Inferno. Nem o António Susana, coitado, Deus tenha a sua alma em descanso, e não era boa rês, não senhor, conseguira escapar. E até a mulher do Gonçalo, que só lá deitava à hora do almoço, se finou que nem um passarico... Ainda é preciso mais testemunhos?!..."
Criara-se em certos meios o pavor daquela ameaça, mais funda ainda do que a crença do milagre na cocheira do Javardão. "E agora por Javardão... Não morrera esse também? E de medo, Deus nos acuda!"
Foi a calhandreira da Maria Pèzinhos, que numa bravata das suas, para fazer ver às outras, subiu as escadas da casa assombrada e tirou o menino do berço, levando-o para o seu casebre de má fama, no coração do Bairro das Virtudes. Meio pedinte, meio corretora de moças desviadas para lavradores gulosos de petiscos de amor, a Pèzinhos começou a tirar rendimento da sua piedade pela criança, batendo com ela às casas ricas da vila, numa pedinchice de comover os coriscos de uma tempestade aberta.
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À noite, de porta bem aferrolhada, bebia a caridade da vila com as amigas mais íntimas, enquanto o cachopo se revolvia no berço de verga, numa berraria de acordar o cemitério novo. Dava-lhe açorda, molhava a boca com vinho tinto (ora, pois não, o vinho enrija e o Bago de Milho que o dissesse) e esmerava-se em comprar-lhe casacos de lã na loja do Serafim. Comprava uns e rapinava outros, que, se a divisa do mercador era tudo pelo preço da fábrica, ela devia-lhe a obrigação de o ajudar a cumprir as promessas, dizia no seu beco, muito grulha, a quem a quisesse ouvir. "Ele engana-se na conta e eu emendo, minhas ricas filhas. Não é um casaco, mas dois por aquele preço... E a verdade é que ainda me fica a dever o serviço, porque não sou caixeiro do Serafim. Um dia me pagará tudo, coitado!"
Pagou-lhe mais depressa do que ela supunha. (Houve logo quem o avisasse: ai Sr. Serafim, que eu, Deus me perdoe, não sou pra estas coisas, mas esteja a pau com a Pèzinhos quando ela entrar na loja.) Muito matreiro, o outro seguiu-lhe os movimentos de dentro da sua gaiola de rede, donde vigiava tudo, e assim que a viu pagar, escapulindo-se pela porta, foi-lhe no encalce e deitou-lhe o gadanho no passeio. "Ora vem cá, minha flor, que eu, já agora, sempre quero conferir o que levas." "Ora não querem ver o raio do homem!... O Sr. Serafim não está bom de cabeça..." "Lá isso estou, podes ter a certeza, que ainda ontem cortei o cabelo..."
E deitando-lhe a mão ao cesto arrastou-a para dentro da loja, e ali mesmo, aos berros, que os pulmões do Serafim pareciam de bom aço inglês, lhe pôs a careca à mostra, exibindo um casaco branco dentro do embrulho e outro azul,
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de laços de seda, debaixo de uma couve galega e de uma mão de nabos.
A Pèzinhos jurava que não mexera em nada - podiam entregar-lhe oiro em pó que às suas mãos nunca se lhes pegara um nico que não fosse seu. "Pobrezinha, mas honrada, seu Serafim!" E atirava punhadas ao peito, como se tangesse o bombo de uma festa.
Aquilo ficaria por ali, se ela, escalmorrada de todo, não lembrasse a quem a quis ouvir que todos a conheciam, e se pobre nascera, pobre havia de morrer, mas de cara limpa. "Não era como certos gaibéus (e disse isto numa cuspidela de raiva) que tinham chegado à vila de saca às costas e bota cardada e agora já botavam loja cheia e grilhão de oiro no colete."
Gaibéu era de caras com o Serafim, vindo da Beira e desembarcado ali para moço de um armazém. Perdeu o homem a tineta com a alusão descarada, e, enquanto berrava a um caixeiro que lhe chamasse o cabo de ordens, deitou-se à Maria Pèzinhos com ganas de a comer. E num desaforo meteu-lhe a cabeça debaixo do braço, levantou-lhe as sete saias que vestia e pespegou-lhe um ensaio de palmadas nas nádegas secas e sem vergonha, pondo-lhas como a cara de um bêbedo.
O escândalo deu risota e dois dias de cadeia à calhandreira, agravados com multa para a sopa dos pobres, que o regedor não lhe podia perdoar a entrega de certa moça ao abutre do Dr. Carvalho do Ó.
Tomou-lhe uma vizinha conta da criança, julgando que a outra lhe agradeceria a guarda do seu novo negócio. Mas a Pèzinhos teve tempo de magicar a sua desculpa, e assim que saiu da enxovia (nunca passara por uma vergonha
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daquelas!) juntou as suas razões às que atribuíam mau olhado à criança e garantiu que a sua mão fora empurrada para o roubo por uma força estranha, que só podia vir do Menino Maldito. (Doía-lhe perder a mina, mas também precisava de se limpar. O filho da mãe do Serafim é que nem no Inferno havia de ter descanso, o grande malandro!)
E embrulhando o rapaz numa manta, que mandara benzer à bruxa de Arruda, enfiou com ele pela sacristia e largou-o em cima do caixão dos paramentos, nuinho em pêlo, que a roupa era melhor queimá-la.
O padre Jerónimo, quando deu com aquilo, foi às do cabo. Mas como era homem de visão larga, e nunca se atrapalhara por tão pouco, mandou chamar a sua ama, recomendou-lhe que alimentasse a criança e fez reunir a mesa da irmandade. E logo naquela noite expôs o plano detalhado de se fundar uma creche para os órfãos da pneumónica, "pois tinha a certeza de que Deus saberia comover as almas piedosas para uma cruzada tão humanitária".
No outro dia, depois de ouvir a missa das sete, uma comissão de senhoras da primeira sociedade partia, humildemente, de porta em porta, a agenciar quotizações mensais ou dádivas mais graúdas para se instalar o recolhimento. Não faltou gente esmoler com o óbolo; mas o milagre veio de O Indefectível, o jornal da terra, "ao serviço da Lavoura e da Pátria", que abriu subscrição nas suas colunas e estabeleceu a competição caridosa, embora não faltassem os melindres por causa da ordem da inscrição.
Quem deu o empurrão mestre no recolhimento para os órfãos foi a D. Antoninha, que cedeu casa, deu lenha e ofereceu cinco leitos com roupas para as andorinhas, como ela lhes chamou, e logo foi aproveitado para designação
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da creche. O Lar das Andorinhas abriu as suas portas com sete crianças abandonadas, uma regente e o padre Jerónimo para os proteger e conduzir por bem.
Alcides, o Cidro, como o pai lhe chamava, foi o primeiro a lá entrar. Na vila, porém, já não o conheciam só por Menino Jesus, mas também por Menino Maldito, embora o milagre daquela obra pia se lhe devesse.
O Dr. Carvalho do Ó abriu os discursos de inauguração e foi comovedor e brilhante como sempre. Mas quem derrancou a assistência até às lágrimas foi o Dr. Leonardo, que recordou a noite em que ele salvara a mãe e a criança de uma morte certa. Falou das Parcas que fiavam, citou uma frase de Voltaire e duas de Santo Agostinho, e acabou por aludir a D. Antoninha, numa subtileza que poucos entenderam: "Madalena foi a amada do Senhor, talvez porque tanto pecou. Ninguém pôde atirar-lhe a primeira pedra. Se alguém o fizesse, ela se transformaria em rosas e em pão. O pão e as rosas que o Lar das Andorinhas oferecerá a estas avezitas implumes, que o coração de todos vai amparar para sempre."
Quando a fanfarra tocou o hino nacional, bem poucos tinham os olhos enxutos.
Na sua cama de guardas, o Menino Maldito olhava os companheiros, aturdido com o barulho da festa.

OS GRITOS SILENCIOSOS
O ÚONEL
"Da creche só me lembro de um casarão com uns arcos onde a gente dormia." Foi assim que Alcides começou a falar, excitado pelas recordações da infância.
Ele oferecera-se para me coser a única camisa que possuía, e esmerava-se nos pontos, como se estivesse a fazer um bordado. Eu sentara-me na ponta do banco com o tronco nu, perto do janelão donde se via a igreja e uma nesga de céu sem nuvens. Estávamos em pleno Verão e dentro da camarata o calor sufocava.
"Acho que aqueles arcos não podiam ser tão rasteiros como agora os vejo, porque as pessoas crescidas não poderiam andar lá dentro", prosseguiu ele na mesma voz dorida. "Mas para mim aqueles arcos estavam a pouco mais de um palmo da minha cabeça. Era um túnel. Sim, era um túnel que me fazia medo, como aquele de Campolide, por onde o comboio entrava quando da nossa terra íamos a Lisboa. Só hoje percebo, só agora percebo, que andei toda a vida dentro de um túnel. E fecharam-no agora ainda mais, e às vezes sinto que vai cair em cima de mim, a
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modos como as galerias das minas onde os mineiros ficam soterrados..."
Suspendeu o trabalho, atirando com a camisa para cima da mesa, depois de prender a agulha num refego da manga.
"Por isso, quando daqui sair, irei ter com a minha Nena, ao campo, e nunca mais virei a uma cidade. Parece-me que endoideço com o barulho das cidades. Está a apetecer-me uma sombra. A sombra de uma árvore que vi um dia numa ilustração e parecia enfiada no céu. É que eu preciso de descansar, sabe? Desde o dia em que me meteram debaixo daqueles arcos que eu preciso de descansar. Um homem não pode viver a vida inteira debaixo de um túnel, de rastos, como se fosse uma cobra. As cobras ainda levantam a cabeça, mas eu nem isso pude ainda fazer ..."
Recostou-se também na parede, de olhos cerrados, como se quisesse avivar melhor certas recordações.
"Lembro-me que lá na creche nos levavam todos os meses debaixo de forma a casa dos senhores que davam dinheiro para a gente, íamos à amostra, eles gostavam daquela visita, e quase todos me jaziam festas porque eu tinha os olhos como os Chineses. Até pelo Carnaval me mascar aram de chinês."
Os tendões do pescoço inchavam-lhe, talvez cheios da mesma amargura que via marcar-lhe o rosto de pequenas contracções.
"A regente era má e feia."
"Não, estás enganado", respondi-lhe. "A D. Branca era uma mulher agradável. Vendo-se bem, era quase bonita. Tinha uns olhos negros ..."
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"Pode ser que seja assim para o senhor. Mas eu vejo-a ainda má e feia; não sou capaz de a ver doutra maneira. A creche para mim é o túnel e essa mulher... Um dia bateu-me tanto que perdi os sentidos. Já não sei o que tinha feito, com certeza não fora coisa boa. Mas fosse o que fosse, não merecia aquela tareia."
Ficou com o olhar parado e fixo na parede que estava à nossa frente.
"Pois é. Se eu dissesse no tribunal que tudo começara nesse dia ..."
Levantou-se inquieto, com a mão sobre o meu ombro, e senti-lhe os dedos arrepanharem-me a carne com ansiedade.
"Eles no tribunal nunca acreditam no que a gente diz. O senhor deve saber isso muito bem. Aqui eles não acreditam que o senhor nada tem a ver com o velho."
Depois pareceu hesitar, meneou a cabeça e sentou-se novamente ao meu lado, como se os juizes o obrigassem.
"Sim, isso foi o começo. Ela não teve culpa de tudo. Nunca ninguém tem a culpa de tudo e todos têm culpa de alguma coisa. Mas lembro-me que foi nela que pensei quando dei um tiro pela primeira vez naquela guerra em Marrocos. Eu não sabia que muita gente me chamava Menino Maldito e foi ela que mo disse quando me bateu. Lembro-me que chorei muito. Menino Maldito porquê? O senhor já me contou ... E vejo agora que não tem importância. Mas naquela altura isso doeu-me. Não sei que idade tinha: seis ou sete anos. Talvez sete. Já era eu quem lavava o chão da cozinha. Os outros faziam pouco de mim e ela deixava."
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Ficou calado por instantes, como se o sufocassem aquelas lembranças que eu sentia agitarem-se dentro dele. O calor tornara-se insuportável na sala cheia de presos e a respiração de Alcides era lenta e difícil.
"Sim, foi isso mesmo. Agora me recordo bem. Tem graça como tudo agora ficou claro num instante. A D. Antoninha visitou um dia a creche. Correu tudo com muita atenção: a camarata dos arcos, o refeitório, a cozinha... Era uma mulher muito linda! Só vi outra igual na guerra. A essa ninguém a quis matar. Nem um soldado da Legião se ofereceu como voluntário."
"Deixa lá isso agora", disse eu, percebendo que essa invocação ainda o perturbava mais.
"ela entrou na cozinha e encontrou-me a descascar batatas. Gostas de cá estar? perguntou-me com a mão sobre os cabelos. Toda ela cheirava a flores. Fiquei corado, senti vontade de chorar e estive para dizer que sim, que gostava muito, que eram todos muito bons prà gente, como a D. Branca me ensinara a dizer. Mas aquela senhora pareceu-me tão boa e o padre Jerónimo já me dissera que nunca devíamos mentir... E então disse-lhe: não, não gosto, porque me obrigam a lavar o chão e os outros riem-se de mim. Se o senhor visse a cara da outra, tenho a certeza que nunca seria capaz de dizer que era bonita ... Foi depois disso, mal a D. Antoninha saiu, que ela me levou à casa dos engomados e me deu aquela tareia de que falei. E depois batia-me por qualquer coisa sem razão. Talvez por isso os arcos me pareçam um túnel. Um túnel negro, sem nenhuma luz lá dentro. Eu não gosto da noite por causa daquelas caras que vejo sempre e que me olham. Mas não será também por causa do túnel? Ganhei-lhe
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tanto medo, que quando agarrei no pombo para lhe fazer festas, e lhe ouvi os passos no corredor, matei-o." Estendeu-me as mãos trémulas, para que eu lhas visse
bem.
"Desde esse dia fiquei com a morte aqui. com a morte nas mãos. O senhor talvez não veja, mas eu vejo e sinto. Ela e o túnel é que me desgraçaram. Mas quando sair da cadeia, dou-lhe a minha palavra d'honra, nunca mais entrarei numa cidade ou em qualquer terra onde haja muita gente. Preciso de descansar ..."
E agarrando-me o braço com violência:
"O senhor acha que eles me deixarão descansar debaixo duma árvore?-"

CAPÍTULO II
O destino também joga aos dados
Se tudo enfada, não é de pasmar que as bolsas caridosas começassem a sentir a sua pontinha de fadiga, mais de dez anos depois daquela ronda em que a morte se enfurecera.
A pneumónica estava longe, cada qual guardava tempo de sobra para se encomendar ao milagreiro da sua devoção, sem excitações desvairadas, e a rapaziada bem podia dar rumo à vida, porque ela custa a todos, e é no sacrifício que se faz a madeira dos homens capazes.
Ao cansaço da espórtula de uns juntavam-se mil ressaibos por despiques pessoais.
"A barca andava em mar picado", como dizia o Carvalho do Ó, arredio do Lar das Andorinhas por causa de uma disputa acesa com o Silva Negrão. Atrás da cor da pintura do refeitório (um puxava pelo azul, o outro pelo branco) viera um chorrilho de melindres políticos bem adubado com velhas histórias de uma herança mal ensejada.
Estava já próximo o rabo de vento que meteria a barca no fundo.
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Seria o feitio um tanto esgarabulha do Menino Maldito, com um sentimento temporão, que parecia não caber ainda nos seus onze anos já feitos, a razão imediata da morte inglória de uma obra tão pia.
Farejando tudo como um cachorrito de caça, meio polícia meio ladrão, aí fora ele pelo corredor além, na ausência da D. Branca, indagar o que fazia a Póla Negri no gabinete dos directores da casa. "Iriam castigá-la? Que mal fizera?!..." Eram essas interrogações que o confrangiam e lhe davam punhadas rijas no peito.
A Póla Negri era uma menina de quinze anos, órfã e asilada como ele, cuja alcunha lhe viera de uma actriz das fitas de cinema, ídolo da rapaziada da creche. Filha de campino, herdara do pai uma certa arrogância e um desembaraço que lhe sublinhavam a 'elasticidade do corpo enxuto e bem composto. Nem o fardamento grandalhão e bisonho lhe transtornava o porte gracioso. Morena, de cabelo negro, alarmava-se-lhe o rosto bonito com uns olhos verdoengos e grandes, que as pestanas de breu faziam explodir de uma ansiedade picante. E tinha umas mãos longas e secas, sempre inquietas, que causavam inveja às senhoras da vila quando lhe compravam chocolates.
O bufete do cinema fora concedido à creche (sempre era uma ajuda) e era ela quem ficava ao balcão, risonha e feliz, como um chamadouro para a sede dos homens, que até de Inverno bebiam pirolitos ao desafio. Requestada, boas culpas lhe couberam pela raiva sorrateira que muita moça da nossa vila nutria pelo Lar das Andorinhas.
O Menino Maldito acompanhava-a quase sempre - as pessoas achavam graça (tudo era espectáculo) aos seus olhos de chinês e ao seu corpito de boneco de vintém. Per-
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corria as coxias com o tabuleiro das guloseimas, apregoadas numa voz mansa, como se ele quisesse passar despercebido para lhe não levarem a mercadoria. Apagada a luz, encostava-se a uma das paredes do barracão e dali seguia, ansioso e entusiasta, as cavalgadas dos bandidos, as mil vilezas armadas à volta da "menina" e a intrepidez do "rapaz" para a salvar a tiro e a murro. À socapa, quando ficava longe da cadeira da D. Branca, também assobiava - e que assobios! Era bem o filho do Bago de Milho. Só se se sentia diminuído por não poder aplaudir e bater a maltosa da geral.
À noite, na camarata dos rapazes, contava as aventuras, metia coisas da sua lavra, e depois sonhava acordado com a Póla Negri. E a Póla Negri era a rapariga dos olhos verdoengos, pela qual já enxugara boa surra doutro rapaz mais espigado. Pressentindo-lhe o deslumbramento, ela dava-lhe a sua ternura e o Chinês adorava-a, num sentimento novo que ainda não pudera conhecer.
Humilde, procurava estar sempre perto dela, na esperança absurda de um dia remir aquele sonho constante de a salvar de um perigo mortal. Por isso naquela manha, enquanto a regente saíra para as compras, ele fora, ansioso, como se receasse pisar algum alarme, saber que espécie de perigos corria a Póla Negri. Ele tinha a sua experiência a chamá-lo - naquele gabinete os recolhidos só entravam para ouvir ameaças e provar o gosto azedo da Bruxa, uma régua de feitio singular que o padre Jerónimo oferecera à D. Branca. "Mas que mal fizera a Póla Negri?!"
Diante da porta hesitou. Não ouvia gritos e pareceu-lhe que deveria voltar depressa para a aula. Não chegasse alguém que lhe percebesse os receios e a creche em peso
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lhe fizesse sogada. A curiosidade, porém, teve mais unhas do que a sensatez. E vá de colocar um dos olhos no buraco mirrado da fechadura.
"Caramba!" Deu um salto para trás e logo outro mais vivo para o olho da porta, que se sacudiu com a cabeçada que ele lhe pregara, aflito. "Alguém estava a matar a Póla Negri..."
- Socorro! gritou alucinado. - Acudam! Socorro!...
A sua angústia não cabia na abóbada do corredor. Abriram-se portas, veio gente e ele contou o que vira. "Não, não sabia quem era, mas havia um homem agarrado à Celeste... Ele vira, sim, ele vira!... Apertava-a e queria matá-la, com certeza."
O Silva Negrão apareceu à porta do gabinete, ainda trémulo, e sacudiu-o com violência: - Tu és estúpido, ó quê?!..
O Menino Maldito ficou sem entender. Mas a gentalha que se juntara à porta da creche percebeu o que se passava, e não faltaram alvissareiros por toda a vila pachorrenta: "O Negrão com aquela rapariga do cinema... Sim, a do balcão."
O Dr. Carvalho do Ó apareceu à reunião, que se não pôde evitar, tal foi o alarido.
Contra os protestos do Silva e dos seus amigos, o advogado teimou em ouvir a rapariga. Ela chegou um pouco pálida, com um lindo sorriso nos olhos, e ficou de frente para o Negrão, que se levantou num atropelo de cadeiras:
- Isto é uma vilania, Sr. Doutor. O senhor está a medir-me com esta rapariga?...
Póla Negri já conhecia o sentido de certas palavras e um crepe caiu dentro de si.
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- Se insiste, eu tenho de me retirar, bramou o outro, parecendo disposto a servir-se da cadeira.
O advogado respondeu sibilino, com uma calma que parecia vir do fundo de um poço:
- Mas por quem é... Só quero que esta casa e você, Negrão, saiam limpos duma tão triste emergência. O rapaz teve uma alucinação, acredito. Dá-se-lhe um castigo...
- Expulsa-se, esclareceu o Serafim da Loja.
- Antes, porém, precisamos de ouvir. E ninguém melhor do que esta pequena...
E falava para a rapariga com o seu modo adocicado, como se pudesse suborná-la. Depois das palavras do Negrão ela chorava, desiludida do seu amor. Mas mantinha-se de cabeça erguida e os seus olhos verdes tinham escurecido.
- A Celeste pode responder?...
- Posso...
- O Sr. Negrão agarrava-se e tentava fazer-lhe mal? Ela negou num movimento lento da cabeça. A um canto, surpreso, o Menino Maldito seguia o interrogatório.
- Então o seu colega, o menino... (a regente sussurrou-lhe o nome) o menino Alcides... mentiu.
A rapariga voltou a negar; e o Silva Negrão, que sorrira à primeira resposta, interveio esbaforido: - Eles juntaram-se para me comprometer!
Então os olhos da Póla Negri voltaram-se para ele e tornaram-se resolutos.
- Sim, esse senhor agarrou-me. A nossa regente saíra, ele apareceu na aula e mandou-me ir ao gabinete.
- O Negrão pode explicar porquê? interveio o Carvalho do Ó.
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- Não lhe admito, explodiu o outro. - E não posso consentir que me ultrajem desta maneira. vou recorrer aos tribunais, Sr. Doutor! com a honra de um homem de bem não se brinca!
Pegou no chapéu e saiu, atirando com a porta. Na sua voz pachorrenta, depois de encolher os ombros às ameaças e à deserção do outro, o advogado tirou a limpo o que foi possível, salpicou bem o ausente e adoptou a táctica de ao fim de tudo proferir conceitos em favor do inimigo.
- Tenho mais alguma coisa para dizer, esclareceu ainda quando percebeu que alguns dos directores esboçavam a retirada. - Essa criança e esta menina já não são necessários, Sr.a Regente. Queira mandá-los sair.
No corredor, sozinhos, os dois apertaram as mãos, como se tivessem caído a um pego; e pareciam ter receio de ir ao encontro de um raio de sol que entrava por uma fresta e punha no corredor sombrio um rasto de luz.

Todos agarraram o pretexto pelas orelhas e as andorinhas ficaram sem lar.
D. Antoninha ainda tentou reagir, mas não se dispôs a arcar com todas as despesas e mais a responsabilidade moral pelas crianças albergadas. Quis chamar a Celeste para junto de si, sabendo-a em perigo, e a vila lembrou-se da história de Antoinette, a rapariga que viera de um prostíbulo para a companhia do fidalgo, que a desposara depois, chamando-lhe Antoninha, para esquecer melhor a sua origem da Rua do Ferregial.
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Póla Negri entrou num reformatório com os seus olhos verdes e o corpo gracioso de adolescente. "Precisava de vigilância, era notório", dizia o Dr. Carvalho do ó, já repeso por ter tomado tão a peito a desonra pública do Negrão. Há nódoas que alastram, e aquela salpicou quase todos os directores da creche.
Dias depois, como num leilão de almoeda, as pessoas gradas da vila vieram escolher as crianças que desejavam para o seu serviço. Foi uma comovedora manifestação de caridade, como escreveu o Dr. Leonardo nas colunas de O Indefectível.
Até Alcides, o Chinês, encontrou num merceeiro, concorrente do Negrão, a sua grande oportunidade de entrar para o comércio. No seu íntimo, o rapazola servia ao Lobato para a guerra em que os dois merceeiros se empenhavam. A presença de Alcides na vila pasmada e monótona seria sempre um bom cartaz contra o Negrão, que até ali se gabava de possuir o melhor estabelecimento a grosso e a retalho.

CAPÍTULO III
Quem tem unhas é que toca guitarra
Era uma expressão que o Lobato merceeiro usava e gozava, sem conta, para depenicar o brio dos caixeiros, mal dava com eles a marralhar no serviço. E não tanto por entender que os ócios estragavam os homens (isto agora é uma pouca-vergonha com o descanso à quinta-feira!), mas pela convicção bem aferrada de que ninguém preparava melhor o seu pessoal para os destinos da fortuna.
Seco que nem um graveto, o Lobato só guardava anchuras para duas vaidades de raiz diferente: no bigode ainda negralhão e frisado em caracol, o seu grande cartaz para a freguesia de saias, e na probidade com que fazia dos marcam", mesmo bisonhos e cabeças-de-pau, o que na gíria do comércio a retalho se chama um "senhor balcão".
O Lobato só não chamava universidade de mercearia à sua loja por lhe parecer que a comparação seria mesquinha para si. Mas ufanava-se, ao contrário dos outros patrões, de ter dado a mão a muito comerciante que começara a caixeirar debaixo das suas ordens.
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Olhitos de rato esperto, Alcides empoleirava-se na sua ansiedade para lhe escutar as lições.
"O que é que tens na cabeça?... Sim, dentro da cabeça! Não sabes, claro, mas vou dizer-te: massa cinzenta."
E repenicava as sílabas com um gozo que lhe humedecia os olhos.
"E o que é a massa cinzenta?", prosseguira o Lobato, "Nem desconfias, claro! É a inteligência... O chamado olho para o negócio."
O merceeiro balouçava-se nas suas pernas escanifradas e sorria-se-lhe o rosto com o espanto do rapaz.
"Só há uma coisa mais importante do que a massa cinzenta. Sabes o que é?!... O trabalho! Se não fores trabalhador, se não fizeres o corpo suar em bica, adeus massa cinzenta. Percebes?!..."
O rapaz não percebia, não senhor, pois as sobrancelhas bem se lhe franziam pelo esforço de chegar ao tutano das palavras do patrão.
"Vê-se mesmo que és burro! Burro é pouco..."
O Chinês, como lhe chamavam, corara, envergonhado, num misto de deslumbramento pela sabedoria do Lobato e de vexame também, por se ver desfeiteado à frente dos caixeiros.
"Tenho visto muito asno que aprende depressa o caminho da cocheira. E tu?!..."
Alcides achou graça à comparação e os olhitos abriram, à socapa, um sorriso disfarçado. Mas logo as verdascas dos dedos do Lobato lhe cortaram a cara, ao mesmo tempo que uma gritaria do diabo enchia a loja de palavrões.
"Ora não está má a pouca-vergonha! Meu malandro!... Meu grandessíssimo malandro! O que merecias é que te
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esbandalhasse de porrada! Eu a perder o meu latim e esta besta de carinha n'água! Chiça!..."
Era um outro ardil do Lobato aproveitar qualquer deixa para medir a capacidade de sofrimento dos marçanos. Via-lhes por aí o temperamento, todo curioso por lhes descobrir a reacção do olhar. Se choravam, era o diabo! Perdia a cabeça e batia-lhes, batia-lhes sem piedade, para rematar com um pontapé no assento que os vexava à frente da caixeirada.
Mas Alcides passou essa prova com uma serenidade que espantou o Lobato. E a ira desceu de tom, os gestos comediram-se e voltou ao responso.
"Que sabes tu, afinal, depois destes meses de prática?! Não me dirás?... Pesa aí meio quilo de arroz... Arroz da terra, ouviste?"
Voltava-lhe a paciência e explicava em detalhe, gesto por gesto, vagarosamente, ao retardador, como se trabalhava com os dedos e se distraía a freguesa, como se enchia o cartucho e se punha a balança a trabalhar com intenções de pender mais depressa para o lado da mercadoria.
"Outra cara, homem, outra cara! Assim pareces um cipreste... O caixeiro tem sempre um sorriso para todos. Isso mesmo! Um sorriso... Faz de conta que estás a tirar o retrato. Nunca tiraste o retrato?... bom, não interessa. Sempre um sorriso..."
E o Lobato afagava o bigode cuidado com a volúpia de um caçador que acaricia o seu cão para as perdizes.

OS GRITOS SILENCIOSOS
NOVAMENTE A SOMBRA DA ÁRVORE
"O senhor agora, tenho a certeza, ia escrever sobre as noites que passei no armazém", disse-me Alcides com a cabeça entre as mãos.
"Enganas-te", respondi-lhe a sorrir. "Pensava contar aquele caso da garrafa..."
"O pior é que dava um salto de três anos..."
E ficou silencioso, com o olhar distante, fixando qualquer imagem que o devia impressionar, tão fundos se lhe cavaram no rosto magro os dois rasgos que vinham das narinas à boca sumida.
Era assim que continuávamos a passar o tempo de cadeia. Ele falava-me da sua vida, eu lembrava-me de pormenores, ou juntava-os por dedução, e lia-lhe depois o
que escrevera.
Naquele dia ele voltou-se para mim, abanando os ombros, como se eu o tivesse desiludido.
"Os senhores galgam três anos sem mais aquelas e fica tudo bem na mesma. Para os senhores é fácil... O pior é para aqueles que viveram esses três anos. Eu também gostava
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de poder riscar da minha vida muita coisa que se passou... E prolongar outras... Ir por esse mundo além e pôr-me ao lado da minha Nena. E sentar-me com a cabeça no seu colo à sombra duma árvore... É pouca coisa, não é?!... Mas para mim chegava... Eu sei que ela espera por mim e que já não falta muito. Uns senhores mandaram-me dizer que eu sairia quando fosse julgado. Também que mal fiz eu?... Matei um homem... E depois?! Se matei tantos...-"
A voz prendia-se-lhe e o olhar tornava-se ansioso.
"Mas estes dias custam-me a passar mais do que nunca... vou agora mais vezes até às grades e parece-me que tenho medo de sair. Penso que já não sei andar como as outras pessoas. Já lhe disse, acho que já lhe disse, que nunca mais voltarei a uma cidade. Não gosto de ver muitos homens juntos."
Ergueu-se depois num repente, levantou os braços à altura do queixo e fez ouvir o taquetaque da sua metralhadora, como se varresse a sala em todos os recantos onde houvesse presos. Vi-lhe a testa suada, de um suor que devia ser frio, e logo voltar a sentar-se no banco.
"É isso mesmo... Quando vejo muitos homens juntos dá-me vontade de os sumir. E não é ódio, pode acreditar... É medo! O senhor já teve medo?!"
Depois calou-se, dominando as suas confidências, e abalou para os lavabos. Daí a pouco sentou-se a meu lado e quis recomeçar a conversa. Senti repugnância em ter a sua umizade; ele percebeu-o, com certeza, porque se tornou humilde, quase suplicante.
"Eu pensava que o senhor queria contar as noites passadas no armazém. Podia fazer uma coisa bonita. Um
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rapaz sozinho, sem amigos, arranjando amigos entre os ratos."
Ouvi-lhe uma gargalhada.
"Estou a rir-me, porque o senhor ia dizer que o Chinês tinha medo. Não ia?"
"Talvez..."
"De princípio, sim, enrolava-me nas sacas, tapava a cabeça e tinha vontade de gritar. Mas um dia, foi a uma quinta-feira, vi um rato a olhar para mim. Eu estava a comer umas lascas de bacalhau que fora roubar a um fardo. Não sei porquê, sentia-me contente. Atirei um pedacito ao rato e ele fugiu. Lá adiante voltou-se com os olhos muito vivos e aproximou-se. Atirei-lhe outro pedacito e ele comeu. Comeu e gostou, com certeza, porque se chegou mais. Acabou por me vir comer à mão. Mais tarde, quando trabalhei na Lezíria, também os ratos vinham acamaradar comigo nos barracões das emposts. Veja lá se isto se percebe...y>
Ia voltar a falar nos homens, mas a minha expressão conteve-o. E calou-se. Ficámos em silêncio, lado a lado, mas distantes um do outro, até que a poria se abriu e o guarda nos mandou formar para fazer a contagem.

CAPÍTULO IV
Duas pequenas desgraças ...
A aprendizagem empolgava-o, mas faltava-lhe ali uma amizade.
Deu-lha um dia - e quem? - o Lobato, sim, o patrão, esse homem que se ufanava de fazer comerciantes, como se fosse lente de uma universidade.
Essa convivência, uma simples brasa de calor humano, teve-a quando o Lobato caiu à cama com um ataque de reumático. Foi a criada nova, a Augusta, uma mocetona morena e metediça, quem lhe deu o recado, depois de o presentear com um almoço de carneiro com batatas.
Era a primeira vez que naquela casa lhe ofereciam alguma coisa mais do que sopa. Alcides devorou tudo num virote, limpou o molho com miolo de pão e sorriu para a criada, que se pusera à sua beira, num agradecimento humilde e profundo.
- O senhor quer falar-te...
- Qual senhor?... O Sr. Lobato?!...
- Quem havia de ser? Conheces outro cá em casa?
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- Não... (Que seria? Se calhar tinham-lhe contado que ele comera uma tira de marmelada...) A menina sabe o que ele me quer? perguntou ansioso, de voz frouxa.
- Talvez dar-te a loja, respondeu ela, a rir, com aqueles dentes pequeninos e ralos de mentirosa.
O corredor era escuro, a voz da menina Cidália, a sobrinha, cantava na sala, e Augusta fê-lo parar junto duma porta, empurrando-o para dentro do quarto mal responderam que podia entrar.
O Lobato mexeu-se nos lençóis, passou a mão na barba descuidada e fez-lhe sinal para se chegar. Falou-lhe do comer de garfo, dos anos que tinha, para lamentar a idade, e daí a pouco entrava na conversa depois de a D. Rosarinho sair.
- Treze anos, estás um homem. Se não o fosses, também não te dizia isto. Como é que tem andado aquilo na loja?
Alcides encolheu os ombros. "Aquilo o quê?" -Sim, homem. És burro? Parece que sim. (O Lobato, irritado, deixara de o olhar.) Tens visto assim alguma coisa? Gaita pra ti! Viste algum caixeiro mexer na gaveta ou dar coisas a freguesas sem dinheiro?
- Não, não senhor... Estou quase sempre no armazém. (Achou que devia desabafar, ajudado pelo sorriso do patrão.) Eles não gostam que eu esteja na loja. Andam sempre a empurrar-me pra fora...
O Lobato alçou o dedo e ele lembrou-se da régua que a Bruxa usava no Lar das Andorinhas.
- Pois preciso saber tudo o que lá se passa. Atenção à gaveta, entendes? vou dar ordem para te não mandarem aos recados nem para o armazém. Vê tudo e faz de conta
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que não vês nada, entendes? E todos os dias ao almoço a gente fala. Tem juízo, faz-te um homem e acharás a recompensa. Deves ouvir também as conversas duns com os outros. Já ouviste dizer mal de mim? Sim, rapaz, se me chamam nomes...
- Não senhor, respondeu afagando o nariz para tapar o embaraço que sentira.
-Pois eu tenho a certeza que sim. Esperta-me essas orelhas. Já que não tens pai nem mãe, hei-de fazer de ti um homem. E faço-o, se tu me ajudares. Juízo, hem? Vai-te lá embora!

As palavras com que Alcides me contou o que sentira não necessitam de arranjo, e por isso as reproduzo:
"Embora gaiulo, percebi que o Lobato não me pedira coisa boa. Senti necessidade de falar a alguém, de desabafar, de pedir que me dissessem o que devia fazer. O senhor não me olhe dessa maneira, porque não estou a dizer isto pra lhe agradar.
"Nos primeiros dias menti-lhe. Disse coisas a mais e coisas a menos. Escondi o que via e contei o que me vinha à cabeça. Fazia aquilo por raiva, mas acabei a pouco e pouco por dizer o que se passava. Às vezes ainda me achava bera, mas o comer de garfo, um par de botas que o Lobato me deu e a maneira como todos me tratavam lá em casa acabaram por me convencer. Senti-me uma pessoa importante...
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"O Bimbo, o caixeiro da letra bonita, foi posto na rua... Eu contei ao Lobato que ele roubava dinheiro da gaveta e só lhe menti na maneira como ele o fez. Vinguei-me dos murros que me deu, dizendo que o vira a abrir a gaveta e tirar uma nota, quando ele a deixara cair de propósito no chão e só depois a metera no bolso do guarda-pó. O patrão foi ao sótão, deu com a nota escondida e ameaçou-o de cadeia. Ninguém podia ter dinheiro naquela casa. Os caixeiros deixavam em poder do patrão o que ganhavam e até eu tinha que lhe entregar as gorjetas que as freguesas me davam. Cada um tinha a sua conta e eu cheguei a juntar quase cinco mil réis nas mãos do Lobato. Esse dinheiro ficou lá... Deixei-o ficar quando abalei. Pró senhor ver como ele era, digo-lhe só mais isto: as cartas que os caixeiros recebiam ou mandavam tinham sempre que ser lidas por ele. Era tal qual como aqui na cadeia...
"Quando o Bimbo foi despedido, os caixeiros começaram a desconfiar uns dos outros e acabaram por desconfiar de mim. E eu sei porquê. Por isso mesmo nunca mais me afeiçoei a ninguém... Dessa vez foi a Augusta que me tramou. Ela era que nem uma rata; todos os homens lhe serviam. Até eu lhe servia. Comecei a trazer-lhe rebuçados, ela enchia-me o prato de comer e fazia-me festas na cara. Comecei a ganhar-lhe amizade, assim como se ela fosse da minha família... De quem eu gostava de verdade, cá de dentro, era da menina Cidália, da sobrinha do Lobato. Veja lá o senhor
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que duma vez passei com a minha letra um folhetim do jornal, como se fosse uma carta de namoro. Era um bocado de romance que falava do amor de
um rapaz pobre com uma senhora rica. Eu achei
que aquilo servia para mim e copiei-o às escondidas.
"Mas como ia dizendo, a Augusta era mesmo uma rata e não me largava. Uma noite estavam todos deitados, eu ficara a ajudá-la nas arrumações da cozinha e vai daí ela agarrou-me e sentou-se no meu colo. Sabe que nunca mais deixei que se sentassem no meu colo?!... Cheira-me sempre a velhacaría... Pois ela sentou-se, disse-me que eu era o seu rico maridinho, começou-me com perguntas e eu, que sabia pouco da vida, contei-lhe o que fora fazer ao quarto do Lobato. Foi
desde esse dia que os caixeiros começaram a pegar
comigo ... Por qualquer coisa, bumba!
"Duma vez até deixaram entornar um latão de azeite só para me acusarem ao patrão. Eu queria negar, mas não sabia explicar-lhe, gaguejava,
gaguejava, e o Lobato bateu-me. O Lobato bateu-me e eles riram-se de mim. Desconfiei da Augusta e um dia tive a certeza, porque a vi no sótão com o Sr. Manuel, o primeiro-caixeiro. Vi-a com estes dois que a terra há-de comer ...
"Depois disto em que é que eu havia de acreditar? ... O senhor escreveu aí duas pequenas desgraças, mas esta foi uma grande desgraça porque
eu deixei de acreditar nas pessoas. E quando se
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deixa de acreditar nas pessoas, o que é que fica a um homem?!... Pouca coisa e nada de bom... Uma noite danada dentro da gente, uma grande vontade de morrer quando o coração amacia e uma grande vontade de matar quando se pensa que viver é bom e são os outros que não deixam..."

Daí a pouco estávamos os dois a rir, quando lhe li o que se passara com as varinas.
"O senhor conta isso melhor do que eu", disse-me Alcides, a coçar a cabeça rapada. "Nessa altura fiquei envergonhado, mas agora acho graça. Assim eu achasse graça a tudo ..."

Todas as noites, depois de jantar e antes de varrer a loja, ele pegava na bilha de barro e ia ao chafariz buscar três ou quatro viagens de água até encher a talha da cozinha. A criada dava-lhe um naco de pão, ele abalava a assobiar, como se tivesse nos lábios a fanfarra da Sociedade Boa União, e mal chegava, assim que a Fantuna dava com ele, logo se armava a galhofa.
"Eh mulher!... Eh Rosa Chorona! Eh Deolinda Carradinha! Olhem quem aí vem!... É o nosso Menino Jasus ... Benza-o Deus quem lhe deu uma coisa tão bonita. Tu já lha viste, Rosa Chorona?... Amalçoado seja que nem uma samarra ainda deu ao zé liso, coitadinho."
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Alcides azedava com as alusões a certa noite em que a varinada de saias tomara a mal, por reinação, certo gesto que ele fizera, e ali mesmo, em pleno chafariz, enquanto as três bicas enchiam cântaros e bilhas, se deram de lhe pôr ao relento o que trouxera da barriga da mãe para andar escondido. E enquanto umas lhe cuspiam e outras cantavam as Cartolinhas, copla muito em voga duma revista do ano, a Fantuna, mais descarada e travessa do que nenhuma varina da rua, tratou de amassar um punhado de terra e foi pespegá-lo a correr entre as pernas do rapaz, que escabreava para se soltar, com asneiredo de envergonhar a Lua.
Mas com o tempo a vergonha mudou-se em picardia. E Alcides voltou aos seus gestos livres, ao asneiredo que as varinas sublinhavam em coro de gargalhadas, e até a certos encostos, que a escuridão permitia, com algumas raparigas mais submissas e um tanto lambareíras pelo ar picante que lhe davam os cabelos ruivos e o rosto sardento. Só a Fantuna o depenicava com a sua cantiga e um ar trocista, que o rapaz estava longe de entender. (Alcides nunca desconfiou da piada que ela lhe achava. E se a Fantuna era uma mulher!...)
O Menino Jesus pensava nela muitas vezes à roda do dia, mas só para lhe pregar uma partida que metesse a outra no seu lugar. Quis fazer-lhe também uma cantiga e não achou palavras nem rimas que dessem para a desforra. "A rir-se de mim é que ela não fica...", pensava o Menino Maldito.
A luz da manhã entrara sorrateira pelas frinchas da janela do armazém e pusera-se a boiar sobre as sacas onde ele dormia. Alcides esfregou os olhos, requebrou o corpo
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afadigado e os braços perros, e mal ficou atento para o que estava à sua volta viu ali à mão um ratito confiado.
A vingança riscou-lhe o pensamento. E o resto foi fácil. Uma lasquita de bacalhau, a mão sorrateira sobre a saca onde o rato petiscava e depois o bicho guardado numa caixa vazia de bolachas. Até o Lobato o achou diferente. O rapaz era sempre um pouco tristonho, metido consigo, e às vezes parecia dormir em pé, como dizia o patrão. Mas naquele dia, caramba! "Já tomara que chegue a noite e a Augusta me mande à fonte."
"Anda, vai à fonte... Não te demores. A D. Rosarinho já me disse que tu vais prà brincadeira e perdes
a vez..."
Alcides nem lhe respondeu. Pôs a bilha ao ombro, escapuliu-se para o armazém, passando o ratito da prisão para a algibeira, e lá se foi a assobiar com estridências novas, como se a fanfarra saísse para ir buscar as sestas no começo de Verão - velho uso que depois desapareceu da nossa vila pachorrenta.
Chocalheira, a Fantuna repetiu todo o seu repertório para enzonar o moço. "Eh Rosa Chorona! Eh Deolinda Carradinha!... O Menino Jasus é careca! Sabias que ele é careca?... Eu é que hei-de dar-lhe uma samarra nova... A criança anda nua... Eh mulher!... Amalçoado seja quem traz um nico daqueles assim ao relento..."
A Fantuna espojava-se à vontade com os seus gracejos. E o Menino Jesus, moita carrasco!
"Hoje vem mudo, coitadinho. Caiu-lhe a voz lá na loja e vai ficar assim o resto da vida, rico filho!"
Ele não lhe dava troco, quedo e mazombo, agarrado à asa da bilha, como se tivesse medo de que alguém lha
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levasse. Na algibeira, o ratito mexia-se, mexia-se, e dava-lhe cócegas, que o faiam sorrir de gozo. "A rir-se de mira é que ela não fica..."
As ferraduras de um cavalo na rua vieram dar-lhe ajuda. Mal ouviram aquele ruído, logo as varinas se aprontaram para os dichotes e a brincadeira, adivinhando quem era o cavaleiro que vinha daquelas bandas. E não se enganaram. Pimpão, magro que nem um graveto, mas sempre arregalado para as saias, o Lavrador das Moças apareceu a fazer bonitos com um cavalo alazão, mais medricas que vaidoso. A varinada correu ao varandim do chafariz para ganhar o espectáculo, e logo a Fantuna gritou na sua voz modulada: "Aí patrão Augusto! Mulheres e cavalos são com vossemecê!..."
O lavrador levou os dedos à aba do chapéu num cumprimento vaidoso e fez zunir a verdasca no espaço, obrigando o cavalo a ladear, pata arriba, pata abaixo, como se bailasse num circo. Alcides é que não cuidou do espectáculo-tinha ali coisa melhor para fazer dançar a Fantuna. Meteu a mão no bolso, escapuliu-se, sorrateiro, até ficar por trás da varina, e, agachando-se, enfiou-lhe o rato pelas saias. O bicho parecia ensinado e fez bem o seu papel.
A Fantuna abriu-se num grito de espanto e deitou a correr, aos pulos e aos sacões, num praguedo de deitar a vila ebaixo. "Ih Jasus que é um rato!" O mulherio queria rir, mas fugia dela, como se a rapariga levasse peste na bainha da saia de castorina. Todo o mundo ria e gritava, conia e atirava a sua graçola. Só o Menino Jesus, com a bilha metida na bica, gozava o prazer da sua vingança, songamonga e matreirão. Mas o rato acabou por não ter unhas
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para se agarrar ao susto da varina e deixou-se cair no chão, enfiando por uma sarjeta, tal montaria lhe fez o rapazio.
E ainda o ratito não estava a salvo, já a Fantuna e outras tinham deitado o gadanho ao Menino Jesus, qundo o viram a rir sozinho, e o mergulhavam no tanque de pedra, onde os cavalos e os bois de trabalho vinham matar a sede. Foi um banho de meia hora.
Num pingo, Alcides voltou para casa e quando o Lobato lhe pediu explicações gaguejou, gaguejou como nunca. E o patrão enxugou-lhe o corpo com uma sova que não lhe doeu, porque a Fantuna também tivera a sua conta. Quando ela depois lhe falava na samarra, o rapaz, já senhor de si, perguntava-lhe "quantos ratos tinha ela na gaveta da cómoda". E a varina corava, apetecendo-lhe mordê-lo na boca."
"Como é que o senhor sabe que ela me achava piada?", perguntou-me Alcides quando acabei de ler.
"Como sei? Conheci a Fantuna mais perto do que tu julgas e tenho a certeza de que não me engano. Era uma rapariga com lume no sangue."
"Eu tinha ainda pouco mais de treze anos..."
"Por isso mesmo", respondi-lhe.

CAPÍTULO V
...É uma grande alegria
Naquela quinta-feira o Lobato cheirou todas as arrumações e tarefas possíveis de inventar para não conceder folga ao pessoal, mas acabou vencido, mandando os caixeiros sair e prometendo ao marçano umas horas de passeio se lhe contasse depressa as sacas vazias.
Alcides atirou-se com genica à tarefa da sacaria e, em menos de um fósforo, estava pronto para sair - era o seu primeiro descanso, caramba! O Lobato encontrou-o na escada. "São cinco horas. As sete toca a voltar... A Almerinda precisa de ti."
A Almerinda era a nova criada, e o rapaz foi pedir-lhe uma camisa lavada, pulando-lhe à volta com a alegria brava de se ver em liberdade. Mas a velha mandou-lhe lavar as orelhas e a cara na bacia da cozinha, acabando por querer penteá-lo, depois de lhe cortar o cabelo que saltava por riba das orelhas.
- Risco ao lado? - perguntou a criada.
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- Assim como o do Sr. Manuel, respondeu o moço. E fez com a mão o gesto de lhe arrepiar o cabelo cor de fogo.
A Almerinda fez-lhe a vontade e falava. "Estás com um bigode que nem um general. Qualquer dia tens de pedir dinheiro para o barbeiro. Já começas a ser um homem..."
Foi nesse momento que o Chinês se lembrou de que a Teresa da taberna lhe dissera que tinha uma coisa para lhe dar quando fosse um homem.
Mas quando se viu na rua com duas horas à sua frente e um sol quentinho, quentinho, o Menino Maldito só pensou no Cais e nos barcos. Mãos nas algibeiras das calças para mais outro do seu tamanho, camisa farta e alpargatas novas, Alcides deixou correr a liberdade e trinou o seu assobio festivo, a caminho da muralha onde as fragatas e os botes amodorravam com a calma de um Tejo submisso e azul. Ao longe, à babugem da Lezíria, passava um barco com a vela alaranjada, cruzando-se com outro que devia procurar Lisboa ou algum cais do mar da Palha. "Se tivesse dinheiro havia de passar para o outro lado... Nunca andara de barco. Era mesmo um parvo, caramba! E se devia ser bom..."
Chegou-se ao ancoradouro donde partiam e chegavam os barcos da travessia, acarinhando a ilusão de que algum barqueiro o convidasse, e só então reparou num grupo de rapazes que nadavam ao pé da muralha grande. Em pelão, quase todos, saltavam de uma fragata para o Tejo e aí abalavam de braçada até outro barco, donde partiam mais rapazes que gritavam, dando aos braços e mergulhando, como se fossem morrer afogados.
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Alcides sentiu-se diminuído perante aquela malta, que brincava no rio sem medo dos barqueiros nem dos Iodos do fundo, dos quais ouvira dizer que engoliam um homem inteiro, se algum pé lhe ficasse preso.
O entusiasmo levou-o para aquela banda. E ainda bem, porque pôde ver o Forneças, um rapazola trigueiro do seu tamanho, atirar-se da muralha de corpo estendido, enfiar por baixo do bojo do barco e surgir da outra banda, como se fosse um peixe vitorioso que cantasse e desse palmas à sua façanha.
"Aquilo devia ser fácil... Lá passar debaixo da fragata, não. Mas aguentar-se na água, com mil diabos!"
E aí foi ele pela prancha fora, sem cuidar de uma tontura que lhe deu, mal reparou no rio, lá no fundo, sereno e de goela aberta para o engolir. Descalçou-se, num virote, tirou a camisa, que pôs num monte à parte, e logo um varino começou a dar sinal aos outros: - Eh pazes!... O Menino Jasus também vai ao banho!...
- O rio é teu? perguntou Alcides arrenegado.
- É meu é, e depois?...
- Depois morreram as vacas e ficaram os bois...
- Então ficou o teu pai, retorquiu o outro a provocá-lo.
- E a tua mãe morreu...
Acabaram a disputa ao pontapé e aos arranhões, sem que ninguém desse com eles. Alcides, mais desembaraçado, despachou o outro com uma rasteira, como vira o Batolas fazer ao Carapinha, e saltou-lhe para riba, deitando-lhe as mãos ao pescoço. Sentiu desejos de acabar com o outro e teve receio daquele impulso.
O Carapinha veio apartá-los e sentou-se entre os dois.
- Que mal te fiz eu? perguntou o varino.
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- Falaste no meu pai...
O outro também amainara; e perguntou-lhe: - Sabes
nadar?
- É alguma avaria, querem ver?... Já nadei no mar de Lisboa...
O varino saltou para a sua beira, fez uma flexão com as pernas e disparou pelo ar, como se os pés tivessem asas. E aí foi ele atrás do outro (um homem é um homem e um gato é um bicho), embora o corpo se lhe voltasse no ar e acabasse por cair de chapuz na água. A pancada atordoou-o, sentiu-se tragado pelo rio, quis gritar e bebeu, bebeu, voltou a cima com uma zunida nos ouvidos e na cabeça, e lá voltou para o fundo, como se uma mola o puxasse. Lembrou-se do lodo que engolia pessoas, mas perdeu a tineta logo a seguir, convencido de que iria, morrer.
Foi então que alguém o agarrou - e nem disso se recordava quando abriu os olhos, com o Carapinha a sorrir-lhe e toda a rapaziada à sua volta.
Qundo o achou capaz doutra, o varino brincou: - Lá no mar de Lisboa nada-se em terra, não?
- E agarrado com uma corda, respondeu a tremer de frio, embora o tivessem posto à chapa do sol violento daquela tarde de Agosto.
O Carapinha tirara uma ponta de cigarro das suas calças enroladas a um canto e acendera-o, sugando-a com guloseima.
- Dá uma fumaça também...
Alcides pegou na beata e chupou-a com força. Um ardor desagradável queimou-lhe a garganta e fê-lo tossir. O companheiro riu-se. Mas o riso do Carapinha não o
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vexou. Os nervos acalmavam-se-lhe, pouco a pouco, como se a soalheira os distendesse com as mãos quentes.
Lembrou-se de repente de que talvez já tivessem passado as duas horas marcadas pelo Lobato e deitou a correr sobre a prancha que ligava a fragata à muralha. Saltou abaixo, vestiu-se a correr e abalou.
Perguntou a um valador se já tinham dado as sete, mas o homem respondeu-lhe que não trazia relógio. Apressou o passo, atravessou a linha e ouviu bater meia hora na torre. "Se calhar são sete e meia... Estou lixado!", pensou com amargura.
Foi nesse momento que passou à porta da taberna da Teresa.
Entrou a correr e perguntou-lhe: - Que horas são?... Bateu meia hora; são sete e meia?...
- Não, homem. Faltam vinte cinco para as sete...
Só então a saudou, levando a mão à cabeça. A taberneira encheu um copo de vinho a um freguês que chegara e depois chamou-o para dentro do balcão.
- Ouve, Cidro...
- Sou Alcides, respondeu o rapaz.
- Isso é lá o nome que as Peraltas te puseram. Mas o teu pai chamava-te Cidro e ele é que podia pôr o nome... Cidro é que tu és. Não achas um nome mais bonito?
- Sim, é mais bonito...
- Anda aqui comigo.
Ele seguiu-a até à cozinha, a pensar nas razões que teriam levado os outros a mudarem-lhe o nome. A taberneira enfiou pelo quarto sombrio, onde o rapaz descobriu uma cama de ferro, e logo voltou com um relógio na mão.
- Toma.
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Alcides hesitou.
Toma, que é teu... Era do teu pai. Foi ele que mo
deixou aqui, numa noite de bebedeira. Ele gostava do seu copo... Era a sua perdição e foi isso que o matou.
A taberneira continuou a falar. Ele, porém, não a ouvia, mirando deslumbrado o relógio que lhe entregara. Nunca vira outro assim - não, nunca. Tinha ao centro uma máquina de comboio que deitava fumo e estava preso a uma corrente feita de crina de cavalo.

OS GRITOS SILENCIOSOS
O RELÓGIO
"O senhor desculpe, mas não foi capaz de contar a alegria que eu senti com aquele relógio no bolso", disse-me Alcides, passeando a meu lado para desentorpecermos as pernas. "Foi como se o meu pai me aparecesse de repente pra me ajudar. Nessa noite em que o levei para o armazém, mal preguei olho. Pu-lo em cima das sacas que me serviam de travesseira e fiquei-me a ouvi-lo trabalhar, tão contente... Contente que nem um rato, como se diz na nossa terra. Aquele relógio foi uma companhia que me deu forças. E aqui dentro roubaram-mo. Doutra vez também fiquei sem ele, mas consegui apanhá-lo."
Encolheu os ombros; primeiro em contracções espaçadas, como se respondesse a alguém num diálogo íntimo; logo depois em impulsos breves e seguidos, que denunciavam o desequilíbrio dos seus nervos cansados.
"Antes de me meter na Legião Estrangeira, passei fome da negra. Pior do que esta que sofremos aqui dentro. E o senhor sabe bem o que é esta fome da cadeia. Mas a outra era bem pior: dois dias inteirinhos sem uma migalha
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de pão, sem poder ganhá-lo de maneira nenhuma. Então lembrei-me do relógio. Estava tão cansado de sofrer, tão cansado de mim, que entrei num ourives e perguntei-lhe: quanto vale, senhor? Ele disse-me trinta escudos depois de o abrir. Mas antes disso, antes mesmo de me dar vontade de lhe ferrar uma punhada no meio da cornadura, eu já resolvera não o vender. Depois quis gozar com aquilo: o senhor já viu que o relógio trabalha? - Se visse que não trabalhava nem um tostão oferecia... - E novo quanto custa?... O homem arrenegou-se, não sei se com a minha pergunta, se com a cara que eu devia ter mostrado, e apontou-me a porta: fora daqui, se não chamo a guarda. Se calhar, roubaste-o! - O senhor é que mo queria roubar, respondi-lhe pra não ficar calado. Saí a porta e olhei-o lá de fora com ganas de lhe escavacar a montra. Trinta escudos era mesmo de fazer pouco do meu pai e de mim... Fiquei com a minha fome e com o relógio. Mas já era sina: haviam de mo tirar. A primeira vez que mo roubaram, ainda voltou à minha algibeira. Nessa altura ainda eu era um homem pra fazer valer os meus direitos. Quando no assalto a um pueblo fiquei ferido no braço e desmaiei, mal vim a mim no hospital perguntei pelo relógio. Responderam-me que o não trazia e logo percebi o que se passara."
Como se calasse por momentos, receei que não fosse até ao fim e perguntei-lhe que se passara, afinal. Pôs-se a mastigar as palavras, a rodeá-las de hesitações, mas acabou por me contar tudo.
"A gente nos ataques tem direito ao saque. O senhor sabe o que é... De princípio aquilo fazia-me impressão. Mas um homem habitua-se a tudo."
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"Se todos fazem o mesmo...", disse-lhe para o alentar na confissão.
Acabaram-se-lhe as dúvidas e senti-o empolgado com o que me narrou depois. O olhar ganhou um brilho intenso de vaidade.
"Quando passávamos plos que morriam, fazia-se logo a limpeza, não fosse outro companheiro ganhar a nossa parte. Corriam-se-lhe os bolsos, os dedos por causa dos anéis, o que houvesse para arrebanhar. Duma vez - e sorriu-se descobrimos dois dentes de oiro na boca de um inimigo morto. Parecia morto ... com os dedos toca de experimentar. Mas os malditos estavam agarrados como se lhe tivessem já nascido assim. Ali é que não ficavam, não, que na retaguarda pagavam-nos bem e um homem precisava de se divertir para esquecer. Vá de experimentar com a coronha da espingarda e bumba por duas vezes. Aquilo não eram dentes, eram pedras. Tive de lhe partir a queixada...-"
Empolgara-se e passara da descrição imprecisa para a aventura que lhe pertencia.
"Saíram depois com a ajuda dos pés. Eram dois dentes d'oiro. Oiro do verdadeiro, pois então. No saque arrebanha-se tudo. É um direito que a gente..tem... Pois quando me faltou o relógio, logo percebi que mo tinham gamado. Se fosse um inimigo, só a sorte o podia trazer outra vez prà minha algibeira. Eu trazia-o sempre preso com um alfinete dentro da algibeira das calças. Um dia, tinha voltado às fileiras, estávamos todos acampados ao pé duma árvore. Eu andava sempre a perguntar as horas... E vai um polaco da minha bandeira, rapa do meu relógio e diz-me que faltavam cinco pró meio-dia. Lembro-me bem da sua resposta. - Bonito relógio, sim senhor, disse-lhe
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eu. Sabes quem é o dono? - Yo. - No, es mio, respondi-lhe. Mas pla cara dele percebi logo que mo não entregava. Só havia que esperar a minha hora. E não demorou muito. Quando começámos a marcha naquela tarde e íamos a passar entre dois montes, cá em baixo, ao pé duma ribeira, caiu-nos em cima um ataque. O sítio era catita prà gente se esconder e o nosso sargento deu ordem pra recuar. Montámos metralhadoras a cruzar jogo e daí a bocadinho já elas cantavam. O senhor já ouviu cantar uma metralhadora? É uma coisa bonita! Do outro lado deixaram de responder e o nosso sargento - aquilo é que era um homem! morreu cravado de metralha -, vai o nosso sargento, gritou "adelante" e a gente galgou dos esconderijos e aí abalámos à caça deles. Eu tinha a minha fisgada. O polaco, que nem uma enguia, toca a rastejar a caminho duma matazita, donde os outros tinham atirado. E eu à espreita da altura precisa. Até dizia cá pra num: desta não me escapas E não escapou. Assim que ouvi o primeiro tiro, aponto-lhe à cabeça e zumba! Tive a impressão que a mioleira lhe saltou quando afocinhou no chão... Em três tempos estava-lhe em cima e com o meu relógio outra vez no bolso da camisa. Dei-lhe mesmo na nuca, no sítio em que a gente dá o tiro de gracias."
A respiração prendera-se-me no peito. Mas ele já não reparava na minha inquietação. E prosseguiu de voz frouxa: "Pois aqui tiraram-mo. Quando cá entrei, aquele malandro gordo, de bigode pequeno, ficou-me com ele. Não o arrolou. Ainda quis dizer-lhe alguma coisa, mas cá dentro um homem deixa de ter direitos. Falta-me a Mariana. Mariana era o nome que eu dava à minha espingarda; parece que ainda não lhe tinha contado."

CAPÍTULO VI
As asas são para os pássaros
E os pássaros também fazem das suas.
Veja-se o rambóia do cuco, que só o conhecem por matas e pinhais pela bizarria do canto malandro, e que nem o ninho constrói, o vagabundo, mandando a fêmea pôr os ovos na casa de outro pássaro ingénuo, que os chocará. E tão espertote, tão raposa, que tem artes mágicas de criar ovos iguais aos do pássaro que lhe há-de cuidar dos filhos. Até faz, o magano, um ovo azul e sem manchas para enganar o rouxinol preto!
Pois também Alcides fez das suas, que a vida de um rapaz, por mais madrasta que seja, também goza de certas folgas, mesmo que não lhas dêem.
Era vê-lo a meia-tarde, quando o Lobato ia jogar às damas para a leitaria da viúva do Prudência e os caixeiros se enroscavam pelo armazém, dando repouso às pernas. O relógio da praça batia as quatro, com muita preguiça e pouco som, e logo o Alcides se mostrava irrequieto dentro do balcão, bichanando conversas ensaiadas que aprendera com os caixeiros.
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Daí a instantes, em saltinhos de alvéola, aparecia a filha da Romana, a Laurita, com as faces afogueadas e brilhantes, que nem uma maçã riscadinha. Metediça e grulha, ralhava e sorria, sorria e brincava, pois também ela aprendia depressa a escola de maroteira ouvida às costureiras do Silvério Alfaiate, onde era aprendiza. A senhora mandava-a às compras; e ela aí entrava na loja do Lobato, percebendo as manobras do Cidro, que assim lhe dera o nome numa conversa mais adiantada.
"A minha senhora manda dizer que o açúcar que lhe mandou no outro dia..."
"Era azedo", brincava o rapaz de carinha molhada em ternura.
"Olhe que hoje não venho pra graças! A minha senhora ralhou-me e eu não estou para a ouvir. Onde estão os caixeiros?"
Ela sabia que o Cidro corava com aquela pergunta. E o Cidro sabia que, depois de amuar, a Laurita arranjava maneira pronta de fazerem as pazes.
"Eu vou chamá-los, se a menina quer..."
"Deixe lá que também serve. Pró que é... Um quilo de batatas, uma quarta de café... Ela diz que o café de cá só tem borras."
"Não é a gente que as põe. Café é café."
Ele pesava as batatas, mostrando bem que lhas dava a mais, e quando ela abria o saco de riscado azul e ele voltava a concha da balança, vá de lhe mexer nas mãos com os dedos, toca de procurar com os dedos as alturas sonhadas, que a Laurita ainda mal encontrava, à noite.
"Ora vejam!", recuava a mocita toda rebitesa. "Já a morte tem vícios..."
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Alcides piscava-lhe o olho, batia com o indicador na lata dos rebuçados, batia com o indicador na face, num símbolo que o excitava mais, e punha-se a pesar o café depois do apuro no cartuchinho de bico virado.
"Olhe que assim... Olhe que assim eu digo ao seu patrão."
"Ele agora é surdo..."
"Pois sim, brinque."
Alcides abria a lata dos rebuçados, menos doces do que o seu olhar, tirava dois e juntava-os ao embrulho do café. Laurita ria, ria e encolhia-se, tornava-se arisca de palavras e ia-se chegando à porta do balcão, lá mesmo ao canto, donde da rua a não viam.
Alcides dava-lhe um beijo na maçã riscadinha, punha-se a rir também e entregava-lhe depois o café e os rebuçados.
"Deixa-me pôr na tua boca..."
Ele ouvira o Sr. Manuel dizer o mesmo à cigana.
"Olhe que eu assim nunca mais cá venho. Lá porcarias..."
"Um beijo não é uma porcaria. Um beijo na boca é melhor do que um rebuçado."
Laurita atirava o dinheiro para cima do balcão, fugia até à porta, acenava-lhe de lá com o saco de riscado azul e corria pela rua além, afogueada e feliz. Alcides ia espreitá-la; e antes de guardar o dinheiro onde o Sr. Manuel lhe mandava (ele depois é que o metia na gaveta), escondia-se atrás da armação e abria os braços com ganas de gritar e assobiar. Mas como o sítio não era próprio para tamanhos desabafos - se o Lobato soubesse! - , o Menino Jesus deitava as unhas a um fardo de bacalhau e sacudia-o, sacudia-o, até ficar cansado e sentar-se-lhe em cima.
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Depois sorria, meneava a cabeça e ia também buscar um rebuçado, para ter na boca o mesmo gosto de Laurita, a filha da Romana.

Mas a menina dos seus olhos era a sobrinha do patrão, a Cidália, que ele gostava de ouvir cantar, agora numa voz velada, como se a doença que a marcara lhe tivesse amargurado a garganta. Fora uma fatalidade.
Quase aos vinte anos, tão prendada e fogosa de sangue, um ataque de varíola prendera-a na cama por mais de um mês. "Quem a visse, quem a visse...", dizia chorosa a D. Rosarinho, tocada também pelo desgosto da moça.
Alcides sabia que a guardavam para um doutor - porque não um doutor? Ora essa! não a educamos como a uma grande senhora? - E D. Rosarinho via transtornadas as suas ambições de ter um advogado ou um médico que a tratasse por tia e madrinha. A doença fora implacável, comprazendo-se em esgaravatar-lhe o rosto moreno e bonitão, onde o rasgo da boca gostosa ria sempre sem canseiras. Era essa exuberância que os rapazes buscavam no seu contacto, quando a iam convidar nos bailes do Grémio.
É fora de dúvida que Cidália tinha aquele corpo de otomana, sempre atiçado ao par, como se alguma coisa lhe metesse medo na dança. Mas o sorriso, os olhos de mel e a tez soalheira guizalhavam onde ela entrasse, embora as pernas mal postas a tornassem um nadinha bamba. E até isso lhe ficava bem, como dizia o Lavrador das Moças, homem entendido em cavalos e mulheres. "Também tive uma égua náfega e o meu cavalo Kébir não queria outro. E era um cavalo que sabia escolher..."
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Os rapazes ouviam-lhe a linguagem colorida e apimentada e procuravam a menina Cidália para as marchas e tangos, lutando a ombro e a empurrão para chegarem primeiro à sua frente e se curvarem num convite pálido. D. Rosarinho é que não gostava daquela competição afogueada, porque tinha as suas contas feitas. Mas enquanto o doutor não chegava, a Cidália, com brasas no corpo, ia-se entornando nos braços de quem a buscava no baile.
Alcides consumia-se para a ver sair nessas noites com o seu vestido vermelho, de decote brincalhão, onde mergulhava o pé de arame duma rosa de veludo. Andava numa dobadoura, abaixo e acima, só para a encontrar na escada, quando ela descia com o cheiro explosivo do pó de arroz.
E um mês bastara para queimar aquela exuberância e todos os projectos de D. Rosarinho.
Um ramalhete de bexigas doidas cravara-se-lhe no rosto moreno. A primeira vez que a vira, Alcides reparara que os seus olhos tinham ficado tristes, mais escuros, talvez, entre as pálpebras opadas por tanta lágrima. A criada velha contara-lhe que a menina não queria aparecer às pessoas.
E a janela do seu quarto, sempre aberta, ou de cortinas puxadas à banda, passou a ficar cerrada, sem aquela cabeça à espreita.
O tempo, porém, foi sarando as mágoas da menina Cidália e adoçando as ferradelas da doença. Até que voltou...
Até que voltou a abrir a janela e a sair para os bailes do Grémio.
Foi logo numa das manhãs depois do "Baile dos Malmequeres" que apareceu defronte da loja o agoniado do Porfírio, escriturário do Dr. Carvalho do ó, sempre muito
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afiambrado nas polainas cinzentas, mesmo de Verão, nos laçarotes de pintas e no chapéu revirado com pregadeira na fita. As costureiras chamavam-lhe o figurino de Londres, as varinas o papo-seco e os homens o Meia Cueca. Ele considerava-se o tipo ideal para as mulheres.
Pois ali se pôs de passeio, olho para a janela, olho para a loja, e assim que viu o Menino Jesus toca de lhe acenar com a mão e de meter conversa.
"És capaz de me levar esta carta?"
Alcides percebeu-lhe a intenção, mas fez-se matreiro.
"Pró Sr. Lobato?"
Ele não gostou que o outro o tratasse com aquela proa e logo deitou as suas contas.
"Prà menina Cidália... Ela está à espera."
"E quanto dá?"
O Porfírio gastava nos fatos e não podia alargar-se em mais nada. "Depois passas lá pio escritório..."
Alcides voltou-lhe costas e foi encafuar-se no armazém.
O outro apareceu à tarde, fez-lhe sinais, assobiou-lhe, e o rapazola, na lufa-Iufa de encher as tulhas, fingia ignorá-lo. Até que o Porfírio, vendo que o Lobato não estava, avançou para a loja e chamou-o à parte, acalmando-o com uma moeda de níquel. Alcides fez-lhe que sim, pediu ao primeiro-caixeiro para o deixar subir à casa do patrão, e lá conseguiu chegar à fala da menina Cidália.

Guardou a moeda de níquel num canto do armazém, mesmo ao pé das sacas onde dormia, juntando-as a outras
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de cobre que lhe davam nas casas abastadas, quando distribuía as compras.
O Lobato nem sonhava com essa falta grave num aprendiz de comerciante. Mas Alcides gostava de fazer a sua extravagância à quinta-feira de tarde, antes de ir até ao Cais para nadar com os varinos e a malta da Estação.
Saía de mãos nas algibeiras, com o relógio do pai bem preso num alfinete, e assim que bispava o Carapinha à sua espera, aí avançavam eles até ao tabuleiro da Ti Ana.
Como quem não quer a coisa, sempre de olho alerta, passava as moedas para a mão do companheiro, não fosse o Lobato aparecer, e à vista das garrafas cheias de água com açúcar começava um ritual, que se repetia todas as semanas.
"Ti Anica! Qual é mais doce?"
De dentro das garrafas saía um tubo com uma curva, em cima da qual, em folha recortada e pintada, havia um toiro, um cavaleiro montado, um pegador destemido entre as hastes de um bicho malhado, um capinha a bandarilhar e outro com a capa à ilharga, além duma cara de Charlot que lembrava as fitas do cinema e as facécias com o polícia grande.
"Ti Anica! Qual é mais doce?"
A velha encolhia os ombros e depois continuava a mastigar a sua côdea entre as gengivas sem dentes.
O Menino Jesus fazia girar os bonecos, olhava um a um, sorria para o Carapinha, já a chupar no tubo que tinha o moço de forcado, e acabava por deitar a mão ao cavaleiro montado num alazão e que erguia um ferro comprido, todo enfeitado a vermelho e azul.
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Provava a bebida e tinha sempre que dizer: "Hoje tem menos açúcar... Assim perde o freguês, Ti Anica."
Bebia depois em pequenos goles para saborear a guloseima, medindo com o olhar a descida do nível, e a três dedos do fundo parava de sorver.
"Eh pá! Troca!..."
Acabavam o líquido cor de rebuçado aos chupões ruidosos, não fosse ficar alguma pinga dentro do tubo, largavam um "ah!" de satisfação e punham as garrafas sobre o tabuleiro.
"Ti Anica! As pevides são boas?"
"Vieram de Espanha", respondia-lhe a velha a sorrir.
"Onde fica isso?"
"Lá atrás do sol-posto", dizia a velha, já com a medida preparada.
"Então dê-me aí... olhe, dê-me aí uma medida grande."
A Ti Ana dividia-lhes as pevides na concha das mãos, Carapinha pagava com a moeda nos dentes, e aí abalavam os dois, rua adiante, num assobio repenicado.

CAPÍTULO VII
A árvore dentro da garrafa
Andavam as finanças da República à cata de receitas, evitando meter-se com os barões dos negócios anafados, pois já lhe sobejavam os inimigos, quando alguém se lembrou dos vinhos finos para pagarem imposto em selo de taxa variada. Armou-se alarido nos jornais e nas câmaras, uns que não (aquilo era um roubo), outros que sim (bem podiam dividir com um Estado pobre os bebedores de espumantes e licorosos).
Ao cabo da tempestade, uma maioria perfilhou o decreto governamental, feito em nome da República e dos bons costumes.
Os lojistas é que deram às do cabo com a bizantinice de selar garrafas, como quem passava recibo de liquidação. E logo se reuniram em assembleias magnas para defesa dos seus direitos atingidos.
Na nossa vila os comerciantes estiveram assanhados, por manobra dos monárquicos, que metiam pólvora onde calhava. Entendiam os desvairados ser preferível dar um dia de bebedeira nacional, distribuindo os licores a baixo
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preço ou até de borla. "Todo o País bêbedo, a cair, era uma forma original de protesto." Os de indignação serena defendiam a resistência à lei, continuando a vender sem selo, mesmo à custa de multa e de lojas encerradas. "Vamos todos presos. Será bonito ver na cadeia o comércio inteiro!" Esta atitude romântica arrebanhava mais entusiastas, que depois esfriavam com a ideia de se verem a ferros, como gatunos.
O Lobato foi mais simples; e propôs em sessão concelhia a retirada dos vinhos da venda, até que o País, com falta de alegria bebível para casamentos e baptizados, chamasse a si o protesto dos comerciantes. O Negrão ainda se opôs, rotulando de cobarde aquela atitude, mas acabou vencido e prometeu não trair as resoluções da assembleia.
No dia seguinte não havia sombra de garrafa rotulada nas mercearias e casas de vinhos a copo. Os fabricantes de mistelas tremeram nos seus interesses e logo se começaram a mexer junto dos deputados.
O Lobato andava empolgado com a sua liderança do pequeno comércio.
Mobilizou,a caixeirada, a mulher e a sobrinha e encafuou numa prateleira velha do armazém toda a garrafaria sujeita a selo. E gracejava na sua indignação, dizendo em altos berros que ainda haviam de querer selar os narizes, por exemplo. Piscava o olho, matreiro, cofiando o bigode negralhão.
A vingança completa viria com as eleições, afirmavam os lojistas. Nem um voto. Nem deles nem dos compadres e amigos.
Alcides comparticipou do entusiasmo febril de arrebanhar licores e vinhos do Porto com medalhas de general.
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Aqueles rótulos coloridos deslumbravam-no. "Eia uma de cereja, deve ser catita!", pensava. Gostava de cerejas, mais pela cor buliçosa do que pelo sabor, que lhe parecia aguado. E na prateleira havia de tudo como na praça, menos licor de nêspera, que era fruto do seu gosto, pois recordava-lhe os assaltos que fazia da cerca do Lar das Andorinhas para o quinteiro do Lavrador das Moças, donde a criada lhes açulava o cão felpudo.
Era um deslumbramento tanta cor e tanto fruto pintado, que até se podia pensar agarrá-los com os dedos e apertá-los bem, tão vivos se mostravam no papel lustroso dos rótulos.
O entusiasmo crescia-lhe sempre, imaginando-se fora da loja, em pleno Cais, como já vira uma vez pelo Verão: um barqueiro dentro da sua fragata a jogar para dois homens, na muralha, melancias pesadas e carnudas, enquanto a rapaziada esperava que alguma caísse e rebentasse para lhe pôr o dente. Mas havia ainda outro motivo para a sua expectativa deslumbrada. Não deviam tardar (talvez fosse agora!) aquelas garrafas de relevos no vidro com uma àrvorezita lá dentro, a que se agarravam uns flocos brancos, talvez de neve, como ele vira no cinema, no tempo em que vendia rebuçados.
Coisa bonita e de pasmar, essa de meter dentro de uma garrafa facetada uma pequena árvore sem folhas, mas coberta de gelo. Já lhe vira o nome e não percebia o sentido da designação: anis escarchado. "Ainda anis, vá lá, que não sabia o que era, mas não lhe soava mal. Agora escarchado era feio. Porque não lhe chamavam licor de árvore?"
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"Estás a dormir, ó quê?", gritou-lhe o Sr. Manuel, sempre de má cara com ele depois da denúncia da Augusta.
E entregou-lhe uma das tais, depois outra e outra, que o João, segundo-caixeiro, ia arrumando lá no coruto da prateleira com a ajuda de um escadote.
Acabada a tarefa, com a excitação arrenegada do Lobato, que vociferava contra o Governo - e eu que sou republicano, hem?! Grande corja! - , voltaram todos para o balcão a preparar a azáfama do sábado e do domingo.
Nessa noite, deitado sobre as sacas, o Menino Maldito pensou no licor com flocos de neve. Remoeu na sua ideia, tanto e tanto, que adormeceu e sonhou com a árvore, onde ele acabara por subir por causa de um ninho de melros. O sonho entusiasmou-o e deu-lhe alento. Nessa madrugada, mal um fio de luz entrou pela fresta do armazém, Alcides galgou acima de uma pilha de sacas, junto da prateleira, e dali se pôs a magicar e a deduzir o milagre da garrafa. "E se ele provasse o licor branco?"
Foi uma ideia dos diabos!
E pé numa tábua, mãos nervosas num dos prumos da prateleira, vá de amarinhar à cata do seu deslumbramento. Em dois tempos estava com a garrafa ao seu alcance. Mas quando ia a agarrá-la, mesmo a tocar-lhe com a ponta dos dedos, rebenta no armazém uma restolhada de apavorar um santo. "É o Lobato!", pensou alucinado. Tão alucinado que até pareceu ouvir-lhe a tosse cavernosa. E aí veio ele de um salto com a prateleira atrás, mais uma chuva de garrafas e um traquinar de vidros partidos, como se um temporal caísse ali dentro.
Pensou em fugir.
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Afinal o Lobato não viera ainda; em seu lugar só viu um gatarrão de olhos luminosos, como dois holofotes que o gelavam de pavor. "E agora?! Que vou dizer agora?!..."
Quando o patrão chegou com os dois caixeiros, só foi capaz de gaguejar "que fora um gato... Um gato preto e grande..." O Lobato perdeu a tineta, pegou-lhe nas orelhas e levou-o em peso até ao sítio onde dormia.
"Diz lá como foi, rapaz. Um gato não pode ser... Como querias tu que um gato me atirasse com isto tudo abaixo?"
Alcides chorava, acenando a cabeça, "foi sim senhor, foi, sim senhor..." Mas o malandro do Sr. Manuel, o primeiro-caixeiro, pôs-se a mexer num canto ao pé das sacas - ele lá sabia o que procurava. E daí a instantes gritou para o patrão que havia ali dinheiro escondido. "Dinheiro?"
O Lobato deu um salto. Foi a correr ao pé do outro, tomou-lhe as moedas e voltou para junto do rapaz, ainda a chorar o seu infortúnio em lágrimas reprimidas.
"E isto?! De quem é isto?"
Alcides não sabia responder. Chorava em convulsões e só as palavras do Lobato o magoavam.
"Não dizes?... Vai chamar a guarda."

Veio um soldado grande, de bigode retorcido como o do kaiser. Ouviu o Lobato de calcanhares unidos, olhando com ameaça o rapazote, e pegou-lhe depois pelo braço, como se se dispusesse a arrancá-lo, tamanha força Alcides fazia para o o levarem dali. Só dizia "eu não roubei,
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não roubei", sem mais explicações, de tal maneira o alarmava a presença da gente que se juntara à porta da loja para o ver sair.
E foi uma festança até ao portão do posto da guarda, com correria de rapazes e bisbilhoteiras, o que deu alarme entre a varinagem, chegada em grande postim de gritaria e risota.
Só uma velha disse às outras: "Quem rouba a ladrão tem cem anos de perdão." Mas nem a essa o rapaz pôde explicar o que se passara.
"Donde tiraste o dinheiro?", perguntou-lhe o sargento, distraído, a mexer nuns papéis que tinha sobre a secretária. "Sabes o que é a enxovia?... Pois vais prà enxovia. Tens lá ratos do tamanho de coelhos... 27! Põe-no a pão e água..."
Alcides deixara de chorar. E encaminhou-se para o soldado de bigodes à kaiser, sem uma hesitação; o sargento não lhe percebeu a atitude e interpretou-lhe o desembaraço como prova de culpa.

CAPÍTULO VIII
A noite não tem portas
Vinham pelo corredor do posto uma ponta de frio e um resto de sombras da noite, quando o 27 o chamou. Ele adormecera sem cuidados e talvez sonhasse, porque no seu rosto largo pairava uma serenidade risonha.
- Então?!
- bom dia, respondeu. - Ah, ainda é noite! disse depois, ao perceber que ainda não amanhecera.
- Já podes sair; vai lá e tem juízo. Porque não contaste tudo ao nosso sargento?
-Não tinha nada pra lhe contar... Ele falava em roubo e eu não roubei. Não roubei, não senhor. Juro-lhe plas alminhas do meu pai e da 'nhã mãe. Deram-me aquele dinheiro nos recados... O dinheiro que dão à gente é da gente, não acha, Sr. Guarda?
- Mas o Lobato é teu amigo.
- Meu amigo... Eu cá nunca tive amigos, mas acho que ser amigo é outra coisa.
Alcides levantara-se e passava as mãos nas faces, como se quisesse impregná-las da aragem fresca do corredor.
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Olhou o soldado e fez-lhe uma pergunta com o polegar, sublinhando-a com um sorriso.
- Vai quando quiseres, homem. E não voltes, hem? Estas casas não são boas...
O rapaz meteu as mãos nas algibeiras, encolhendo-se um pouco, como se a brisa da madrugada lhe vibrasse na pele. Mas era talvez mais um golpe de emoção que o arrepiava. O guarda ainda lhe dizia qualquer coisa, embora ele já não o ouvisse. Quando chegou à porta é que se voltou para o saudar.
- Se o Lobato cá vier à minha procura, diga-lhe, faz favor... Ele pode ficar com o meu dinheiro; são mais de cinco mil réis. E pode juntá-lo a este que me tiraram...
E desceu os degraus do posto a assobiar, como se o pai voltasse a encher as madrugadas da nossa vila com as músicas da fanfarra em dia de festa. Um grupo de varinas tairocavam na escuridão, a caminho da lota. Ele ia certo de que ninguém desconfiaria dos seus planos. Só gostava de ver o Carapinha para lhe dizer o que pensava. Mas não se sentia capaz de encarar a vila com a luz do Sol. Havia sempre de se lembrar da sogada que lhe tinham feito até ao posto.
Lá estavam a muralha do Cais, as pontas das fragatas com flores pintadas e o barco de passagem, onde nunca andara.
Aquele rio havia de lhe cortar a vida.
- Eh barqueiro! - gritou para o arrais, sentado à proa.
- Novidade?
- Queria pedir ao arrais se me punha do outro lado. Não tenho pra lhe pagar agora... Pago-lhe depois.
O barqueiro chamou-o com um gesto do braço.
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- Obrigadinho!
Alcides deu um salto para dentro do barco, aproximou-se da ré e deitou-se de costas, a olhar o céu. A estrela da manhã brilhava-lhe nos olhos. E só então chorou. De mansinho, sem que ninguém as visse, as lágrimas aqueciam-lhe o rosto e davam-lhe coragem para ficar mais só.

RUÇO DE MÁ PÊLO
CAPÍTULO I
A fronteira do sonho
O barco avançava ao sabor de uma brisa incerta e sacudida, procurando o nordeste para lhe despertar a carreira, ao mesmo tempo que evitava os cabeceiros iluminados das redes savais. Os pescadores davam o último lance da noite, jogando a sorte.
Um grito de "eh arrais" abriu algazarra com a companha de um saveiro que surgira pela proa do barco de passagem e se confundira nas trevas por falta de lanterna. Só então Alcides levantou a cabeça para ver o que se passava. O saveiro descia ao sabor da corrente, em demanda do lameiro onde se fazia a lota, sob o impulso dos remos em gemidos, como se levasse a bordo uma safra de dor.
Os passageiros tinham-se reunido junto ao mastro num cacho de sombras.
Ele voltou a mergulhar a mão na água, gozando aquela carícia que lhe entrava no peito e desfazia o seu lastro de amargura. Agora, porém, sentia definir-se melhor a ansiedade de abalar para além daquela fronteira, onde tantas vezes se quedara impotente. Ia ser livre, entrar pelo
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mundo dentro sem mais ninguém, e essa sensação nova dava-lhe coragem e fazia-lhe medo. "Como seriam os homens do outro lado do rio?"
com a mão direita apertava o relógio do pai, e essa companhia acalentava-o, segredando-lhe esperanças de uma vida diferente. Naquele momento tinha a impressão de que nada de bom deixara para trás.
Sentou-se aturdido, cruzou as mãos no peito, para o defender de um golpe de frio, e ficou a assistir, ainda estranho, à saída dos vultos que emergiam da mancha da noite. Logo depois, num impulso desordenado, saltou para a rampa do cais, ajudando um campino a tirar a égua magra e dócil dentro do barco. O animal tornara-se desconfiado e relinchava, a sacudir a cabeça, como se o vento da madrugada lhe metesse as esporas.
Dobrados, os vultos dos passageiros caminhavam em direcção à Lezíria. O camarada do arrais puxava a corda do barco para a enfiar na argola de ferro, não fosse a corrente do rio arrastá-lo para os mouchões. Na ânsia de pagar o favor da viagem, Alcides pôs-se à sua beira. O outro cantarolava entre dentes a mesma trova.
- Podes voltar se quiseres, disse-lhe o barqueiro.
- Não, obrigado. Eu fico...
- A fazer o quê? - perguntou-lhe o camarada.
- Vou-me à vida, respondeu com orgulho.
E como se já tivesse destino, glorioso de si, e antes que o outro lhe perguntasse mais, atirou-lhe uma saudação a abalou pela rampa acima. Mas quando chegou ao alto e, de riba do valado, olhou à sua frente, a vista só enxergou uma terra espalmada, sem fim, a despir-se de trevas. E triste. E silenciosa.
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A madrugada já caminhava pela Lezíria adiante, mas vinha só, descalça e sorrateira.
A solidão perturbou-o. Lembrou-se de que era ali que as pessoas da vila abandonavam os gatos e os cães enjeitados. "Não seria como eles?" Recusou a ideia e chamou: "Eh gente!". O seu grito ficou a balouçar no silêncio e perdeu-se depois.
Sentiu a dor da fome. Sentiu a dor de estar abandonado numa terra sem fim. E quando a manhã chegou aos seus ombros, e viu ao longe, num carril do valado, uma égua peada a mover-se em solavancos, disparou numa corrida naquela direcção e gritou, gritou mais, ansioso e apavorado.
Foi então que o colheu no caminho a voz duma mulher.

CAPÍTULO II
O silêncio e a voz
Aconchegada entre salgueiros torturados, canaviais densos e arbustos bravios, a barraca não se mostrava afoita a quem viesse das bandas do Tejo, mesmo se subisse ao valado para dominar a planície. Era como se ali houvesse alguma coisa para ocultar - não sei se a gente que lá morava, se a pobreza do casebre improvisado com paredes de tábuas e latas velhas, cobertas com um telhado de carroicil, onde um catavento bizarro troçava dos desvarios do tempo.
Quem se aproximasse percebia que a choça nascera daquele aposento maior, em cuja porta aberta se pendurava, apregoando vinho a copo, um bracito de eucalipto, de folhas secas, já que pela Lezíria não se adregava rama de pinho ou de loureiro. De dia quase se entrava às apalpadelas, se não aos tombos, tão pouco devia a escuridão à irregularidade do piso, até que se acabava por descobrir uma mesa cambada entre dois bancos corridos e um balcão ao fundo a barrar a passagem a dois pipos, que serviam de peanha ao barrilito da aguardente, em cujo bojo, contrafeita
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e já esmurrada no nariz e no barrete frígio, havia uma República anafada e um pouquinho vesga. Quando se dava por isto, já fora descoberta a prateleira com onças de tabaco, livros de mortalhas e caixotes de fósforos, mais a lanterna de petróleo suspensa da trave mestra e a divisa imperativa da taberna -"Hoje não se fia e o gato não mia" -, comum bichano facanhudo a um dos lados do cartaz escrito em papel tostado, de tanto servir para poiso das moscas e das melgas das abertas próximas.
Ao lado esquerdo deste aposento um caramanchão improvisado com varas e ramos de eucalipto, acolhendo outra mesa e mais dois bancos, enquanto no flanco direito ficava a oficina de ferrador e nas traseiras o casinhoto de caniço onde dormiam o João Mula Brava e a amante, a dona daquela voz que pegara na mão espantada do Menino Jesus e o conduzira até ali.
- Estavas perdido, rapaz?
Ele olhou-a ainda assustado e acabou por lhe sorrir, encolhendo os ombros.
Alcides nunca mais esqueceria essa voz velada e macia, feita para a intimidade, que se tornava rouca quando falava baixo e se punha agressiva e áspera mal subia de tom, como se o ar a rompesse.
- Pra onde queres ir? - insistiu a mulher.
- Pra qualquer banda, sei lá, respondeu o rapaz. - Vou-me à vida...
- Não tens alforje?
- Só tenho isto - e abriu os braços para mostrar o corpo.
- De pouco te hão-de servir...
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A mulher sentou-se num dos bancos do caramanchão e Alcides ficou de pé a mirar os aposentos.
Daí por instantes, a vestir o colete, surgiu um homem magro, desconjuntado, de olhos azuis, raiados de vermelho pela doença. Uma mula partira-lhe os queixos e deixara-lhe a alcunha, pondo-lhe ainda no rosto uma careta permanente, como se estivesse a provar qualquer coisa amarga.
- Quem é? perguntou indicando o rapaz num trejeito de cabeça.
- É o rei dos hungros, respondeu a mulher numa gargalhada que lhe deixou na face esquerda uma cova marota.
O velho afagou o bigode crespo e crestado de fumo, como feno seco, e voltou-se para Alcides com os olhitos azuis a quererem hostilizá-lo; mas as retinas doentes pareciam desfazer-se em lágrimas. A voz é que se tornou agressiva: - O que é que tu queres daqui?
O rapaz olhou para os dois, como se algum deles lhe pudesse ensinar a resposta, e enfiou as mãos nas calças; depois disse numa voz frouxa: - Nada! Não quero nada...
- Hum! grunhiu o velho, tossindo com desespero. Raios partam esta bronquite danada. Se não tens aqui que cheirar, ala milhano e depressa. Ou alguém te chamou?
- Quem t'ouvir falar julga qu'a Lezíria é da gente, interveio a mulher. - Essa não 'stá má, não senhor. O moço não traz a peste.
Alcides olhou-os de relance e viu que o velho se sentara debaixo do caramanchão; Mariana estava encostada à porta da taberna, com as duas mãos sob o avental amarelo bordado com flores vermelhas, e movia os braços, como se as palavras lhos sacudissem.
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Ouviu-se um tropel ao longe. Alcides ergueu a cabeça e viu uma manada de éguas e poldros meter pelo carril abaixo, perseguida por um rapazola que lhe gritava, montado em osso sobre um animal baio.
Um cão surgiu a ladrar do lado da barraca. Quando o viu menos inquieto, assobiou-lhe, e o podengo aproximou-se ainda desconfiado, a rosnar sem convicção. Depois de lhe afagar o focinho, Alcides correu-lhe a mão sobre o corpo branco, malhado de amarelo, e logo o fez saltar à sua volta quando agarrou numa pedra e lha deu a cheirar. Ao atirá-la para um sapal, o cão disparou numa corrida, incitado pelo busca-busca do rapaz, e voltou logo depois, a dar à cauda, com a pedra na boca. Ele quis tirar-lha, mas o podengo rosnou e fugiu. Lá ao longe largou-a, pôs-se a ladrar de alegria, e, mal o rapaz o chamou, veio numa carreira alucinada deixar-lhe a pedra junto aos pés.
- Perdido! gritou o velho.
O cão levantou a cabeça com as orelhas atentas, mas Alcides repetiu-lhe o nome em voz baixa e o animal ficou junto dele, a lamber-lhe a cara, quando se sentou. O sol quente daquela manhã de Primavera penetrava-lhe no corpo e dava-lhe vontade de dormir. Começava a sentir-se calmo, sem ansiedades, embora não soubesse ainda que caminho devia tomar.

Não podia dizer quanto tempo estivera a dormir. Antes de abrir os olhos tentou perceber onde se encontrava - e
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só pouco a pouco foi capaz de avivar as recordações das últimas horas.
O cão estava ainda à sua beira, já sentado, como se o guardasse.
"Que iria fazer agora? Não seria melhor voltar?" Procurou o relógio na algibeira e por momentos teve a impressão de que o perdera. Ficou assustado e rebuscou as algibeiras com ansiedade, até que o encontrou enrolado no lenço. "Não seria melhor atravessar o rio outra vez e pedir à Teresa que o ajudasse a arranjar trabalho? E se falasse à menina Cidália, à sobrinha do patrão? Que lhe diria o Lobato?"
Enquanto pensava, ia rastejando debaixo do carro onde se deitara, até que se pôde sentar. A Lezíria parecia mais quieta ainda. Ao longe manchas negras de toiros e de manadas de éguas; dispersas, poisadas de caniço e medas de palha para o Inverno. Para trás de si adivinhava tudo e parecia ter receio de se voltar.
Reconheceu uma voz que chamava. À porta da taberna, Mariana acenava-lhe com o braço.
- És capaz de ir buscar um cântaro d'água?
Pôs-se em pé de um salto e correu para ela, com o Perdido a brincar à sua frente. O João Mula Brava ferrava um cavalo pigarço já velho, enquanto o cavaleiro esperava sentado numa tripeça, a fumar.
- Vai ali às bicas do furo. Como te chamas?
Era a primeira vez que ouvia alguém falar daquele modo e a voz não parecia a mesma que o chamara ou que discutira com o ferrador. Grave e mansa, parecia correr-lhe a
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testa com a doçura de uma carícia. Ela olhava-o e sorria com aquela cova pronunciada do lado esquerdo.
- como te chamas?
- Cidro!... Foi o nome que o meu pai me deu.
- Mas é isso é alcunha.
- Não, não é. É o mesmo que Alcides. Mas Cidro é mais bonito.

CAPÍTULO III
A amizade tem sombra
Quando ria, gostava de rir alto, às gargalhadas que se ouvissem bem. E o seu riso contaminava o velho, revendo-se nele como se fosse do seu sangue. Em pouco tempo criara-se entre os dois uma amizade profunda; e isso era o segredo daquelas gargalhadas sadias, como se a alegria lhe rebentasse da pele.
Já não o transtornava a presença da sua vila no outro lado do Tejo, e muitas vezes, à noite, ia sozinho para cima do valado experimentar na gaita de beiços as músicas que o Mula Brava lhe ensinava.
Mariana gostava de o ver aperaltado e começara a juntar dinheiro para lhe comprar um chapéu mazantini cinzento ("deve-te ficar bem um chapéu clarinho"). Queria vê-lo à lavrador, de jaqueta e calça esterlicada, sem cuidar da sua estatura baixa.
- O meu Ruço de Má Pêlo 'tá bonito, o malandro! larachava o Mula Brava com bazófia.
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- Vê lá se ele te come a caça, retorquiu o Bailarote, um maioral de éguas, morenão e beiçudo, talvez com sangue negro a bulir-lhe nas veias.
O Verão chegava-se e o seu bafo já se sentia no nordeste atravessado que corria cordato dos montes da outra margem pela Lezíria adiante. Começavam a juntar-se no barracão os guardadores das pastagens mais próximas, cansados de solidão e atraídos pela garridice da Mariana, sempre ancha em lhes dar troco e côdea de olhar brejeiro. Eles viviam dessas promessas, certos de que alguma vez ela ficaria tonta como as borboletas.
Cidro preferia vê-la só com os dois, talvez porque pensasse o mesmo. Ele punha-se dentro do balcão e bem percebia que os homens lhe falavam baixo, procuravam tocar-lhe no corpo e seguiam-na, perturbados, antes que o vinho os perturbasse.
- Vê lá se ele te come a caça, insinuou o Bailarote. João Mula Brava saboreava o seu cachimbo, decilitrando
à ponta da mesa com um cangirão de vinho à frente,
- Por esse ponho eu as mãos no fogo, Bailarote. E por ela também, disse em seguida com menos convicção. Faltam-me já os olhos, mas a malandrice cheira-se. Não acreditas? Sou um podengo velho que adivinha pelo nariz quando num sítio vai haver porrada ou um homem e uma mulher andam em brasas um pelo outro. Assim eu tivesse certa a taluda pra fazer o meu filho morder-se de raiva. Quando um homem quer uma mulher o ar até custa a respirar. Nunca deste por isso... Vocês são muito espertos mas é pràs bestas.
- ó João!
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- Dobra lá a língua e trata-me por Sr. João. Tenho quase os dobros da tua idade. Eu vendo vinho, mas não vendo confiança. Ouviste?
- Parece que te mordeu algum bicho, retorquiu o outro com azedume.
Dois outros campinos jogavam à bisca em silêncio. Mariana parecia inquieta nessa noite, olhando a porta com insistência e atenta aos ruídos de fora.
- Já não há bicho capaz de me morder, Bailarote. Eu sei que vocês dizem a brincar uns para os outros "já viste uma mula com cornos?" A mula sou eu, bem o sei. Mas às vezes está o ramo numa porta e o vinho vende-se na outra. Um homem, quando está muito tempo fora de casa, nunca sabe o que por lá se passa. Há mulheres sempre precisadas de fornalha ao pé. E há muitas que dizem "isso não me faz falta", e são as piores. Entendes, Bailarote?
- Estás a querer atravessar a conversa, replicou o guardador.
- Acho que foste tu que a começaste. Eh Ruço! Ruço! Vai lá buscar o nosso piano. Estou com vontade esta noite de tocar um pedaço.
Um grupo de barraqueiros entrou em algazarra e aos empurrões, procurando cada um deles conseguir o melhor lugar na mesa. Esse lugar era sempre do lado de fora, para que Mariana se debruçasse sobre eles quando distribuía o vinho. João Mula Brava já lhe dissera para acabar com essa maneira de servir (cada um que se amanhe), mas ela teimava em fazer o trabalho, talvez para o ver excitado.
- Cinco copos e dois litros! gritou o Bogas. - Ti João, boa noite! Boa noite à sociedade!
O velho estremeceu quando reconheceu aquela voz.
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- Boa noite! respondeu o Bailarote.
O rapaz voltara com a harmónica, mas o ferrador fizera-lhe sinal para que a guardasse. Não gostava do grupo do Bogas e preferia não lhe dar confiança.
- Eh Mariana! Salta pra dentro do balcão, recomendou em voz baixa.
- E porquê?
- Ai!... Pouca conversa! Bem sei o que digo. O Ruço que os sirva.
E fez sinal a Alcides com um movimento de cabeça. Este agarrou nos copos e distribuiu-os pela mesa; depois pegou nos dois jarros de barro vidrado e pô-los a meio. O Bogas encarou com ele, dando-lhe um beliscão na cara.
-Eh Ti João! Vossemecê agora meteu criada nova... É ruça, a filha da mãe!
O rapaz voltou para junto da Mariana. Esta continuava a olhar a porta, como se esperasse visita.
- E tem um cabelo bonito. Como é que te chamas, jóia?
- Não te metas com quem trabalha, Bogas! Nunca mais perdes a mania, homem. Já tens o pé pesado.
- A outros pesam coisas piores, Ti João.
- Agradeço-te que bebas e andes. E também se não quiseres beber...
- Ora essa!
O barqueiro olhava para o rapaz e parecia reconhecê-lo noutro rosto.
- Agora a sério. De quem és tu filho, pá?
- Dum homem, respondeu o Ruço a sorrir.
- 'stão a ver... Isto hoje por aqui 'stá atravessado.
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E levantou-se, torcendo os braços, como se se espreguiçasse. Mariana percebeu-lhe a intenção e foi-lhe ao encontro. Ele afagou-lhe o queixo, medindo o rapaz numa expressão atravessada e provocadora. - Quero falar ali com aquele menino... com que então filho de um homem!
E deu um grito - "Eh rapaz!" - , preparando-se para saltar o balcão e deitar o gadanho ao filho do Bago de Milho.
Mas já o Mula Brava voltara com a sua caçadeira, ameaçando um dos barqueiros com a arma em posição de disparar.
- Eh Ti João! Não faça disto uma desgraça! pediu um varino mais cordato.
- Então é andar e depressa! Uns brutos de força a quererem medir-se com um rapazola. Vamos embora!
E fê-los sair à sua frente.
- Esse gajinho é o Bago de Milho por uma pena... Ou o Diabo pintado por ele, disse o Bogas.
Os outros chamavam-no de fora da porta.
- Boa noite! saudou ainda. Ninguém lhe respondeu.
- Eu disse boa noite! gritou.
- Aqui ninguém te entende, respondeu o João Mula Brava. - Que raio de valentia a tua, carago! Um bruto de força a provocar um velho e um rapazola. E foste tu pegador de toiros!
Lá fora os outros cantavam e riam.
Mariana diz que tem Sete saias de veludo...
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O Bogas parecia embaçado. Queria sair e hesitava. Mas depois, num salto, pôs-se fora da porta, abalando a correr pela noite dentro. O ferrador foi até ao terreiro com a arma debaixo do braço. Depois voltou para dentro da taberna e deu com a coronha no ombro da amante.
-Um dia por tua causa há aqui uma desgraça.
E olhou intencionalmente para o Chico Malhado, um guardador de toiros que vinha agora todas as noites beber ali o seu copo.
-Vá uma gaitada! disse Alcides entregando a harmónica ao Mula Brava.
O velho limpou a boca com a mão, molhou depois os lábios com a língua e começou a tocar. Os olhos azuis sorriam-lhe, porque tinha agora um companheiro para o resto da vida. No rosto do rapaz aparecera uma luz de ternura.

OS GRITOS SILENCIOSOS
A CARTA
Era essa mesma luz aveludada e cálida que transparecia dentro dele quando tomava o canto da sala e escrevia as cartas para a sua Nena. Era tal a transfiguração, ficava um homem tão diferente, que cheguei a imaginá-lo com um rosto de cristal, onde ficasse agarrada uma réstea de luar.
Só ele ficava de pé naquele canto. Todos os outros faziam o correio na mesa comprida, onde também se jogava o xadrez, às escondidas dos guardas, com pedras moldadas em miolo de pão, ou se acamaradava em pequenos grupos, mais por afinidades de temperamento do que por nacionalidades. Eu dava-me com toda a gente, pois até ali me via forçado a ocultar as minhas ligações.
Era dos poucos a usar máscara, o que me tornava sombrio, de tal maneira me via forçado a manter a carapaça de silêncio e de desconfiança trazida da cela dos incomunicáveis. Agora percebo que exagerei. Em tudo o que conto há coisas que me parecem absurdas. Falar, por exemplo, no velho do cachecol. Como não posso contar ainda tudo o que pensei a respeito dele, a sua intromissão
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parece-me frouxa. A verdade é que não posso ignorá-lo também. As palavras fogem-me para a sua invocação, porque nunca mais nos vimos. Quanto tempo passou?
Mas é preciso continuar. Já disse que era um dos poucos a usar máscara ali dentro. Isso trouxe-me aborrecimentos.
Em certa altura, bem o percebi, chegaram a julgar-me um informador da Gestapo - não teria o interrogador concretizado a sua ameaça de insinuar a minha traição?
Isolei-me ainda mais, afastado de todos, mais só ainda do que nas semanas de incomunicabilidade, onde havia os riscos que contavam na parede os dias de isolamento de um prisioneiro que ali estivera, ou as frases soltas, desesperadas umas, confiantes outras, dos que tinham acabado à frente do pelotão.
O meu afastamento dos outros presos e a ausência de cartas chamou sobre num a atenção de um tipo repelente, encarcerado por fazer mercado negro, mas que desfrutava de uma protecção escandalosa dos nossos carcereiros. Era um homem de meia-idade, pequeno, um tanto balofo, vestindo uns pilamos de cores berrantes e de corte feminino. Talvez porque me visse só com uma muda de roupa, quis oferecer-me duas camisas e um par de calças. (Quem me poderia mandar a roupa, se a Michelle não sabia onde eu parava?)
Recusei com azedume aquela oferta, mas ele insistia.
Perfumava-se, deixara crescer o cabelo, a pretexto de que estava preso, e rondava, sem disfarces, os que lhe pareciam mais necessitados de conforto. A sua perseguição acabou quando um argentino deu entrada na sala e se fizeram amigos.
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De quinze em quinze dias podia-se escrever.
Nessa altura a camarata recolhia-se a um silêncio resignado. Cada prisioneiro ficava só com as suas invocações e todos respeitavam essa convivência com o passado. Como não escrevia a ninguém, entretinha-me a adivinhar a vida de alguns companheiros, por certos sintomas que descobria no seu comportamento.
As cartas do meu patrício tinham o condão de lhe encher o rosto largo de uma luz aveludada. Nunca escrevia na mesa, talvez porque receasse a intromissão doutro preso nos seus afectos. Procurava aquele canto, onde em tempos existira um depósito para água, e ali ficava à parte, de pé, escondendo o papel com o cotovelo erguido; depois, mal acabava, vinha mostrar-me a sua carta, que era quase sempre igual e que ele lia numa voz pausada.
Naquele dia, porém, a sua carta continha uma nova passagem; e por ela senti-o disposto a aceitar a sugestão da polícia.
Olhei-o com repugnância e receio. Aproximei-me dos meus companheiros da Resistência e disse-lhes, indicando-o com a cabeça: "Aquele parece disposto a entrar ao serviço da cadeia. Tenham cuidado..."
Já por mais de uma vez tivera de recalcar os meus impulsos, quando o via ameaçar os judeus ou outros prisioneiros que se acobardavam com ele, perturbados pela descrição do seu crime. Fazia esse relato para que o temessem e eu não intervinha para não perder a oportunidade de conhecer até ao fim a sua vida.
Devo dizer, porém, que ele nem sempre se comportava da mesma maneira. Saltava das ameaças para os pequenos serviços, tornando-se prestável com empenho e algumas
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vezes com servilismo. Nunca fui capaz de o compreender inteiramente.
Mas quando ele ameaçou um grupo que cantava, agarrando pela camisa e sacudindo um judeu polaco, só porque queria que toda a sala respeitasse o seu dia de correio, não consegui deter-me e fiz-lhe frente. Ficou transtornado com a minha atitude; percebi que hesitava em pedir-me desculpa, ou em lutar comigo; senti nesse momento o ódio do seu olhar. Eu estava a desfeiteá-lo, a comprometer a sua fama sinistra. Mas ele também precisava de mim.
"Que tem o senhor a ver com isto? Não estamos em nenhum teatro para eles cantarem...", disse-me arrebatado.
"Quem faz teatro aqui dentro és tu!", gritei-lhe.
Ele baixou o olhar e voltou para o seu canto. Naquela tarde não acabou a 'carta para a Nena, pois daí a pouco estava à minha beira, procurando explicar-se. Eu só fui capaz de lhe dizer: falamos amanhã.
Cidro andava entusiasmado com as recordações da sua vida na barraca do Mula Brava e veio depois da contagem para junto de mim. Pediu-me que lhe lesse mais. Respondi-lhe que já tinha experimentado escrever novamente aquela parte, mas que não era capaz de a contar como devia. E era verdade.
"Está bem, eu percebo", disse-me magoado. "O senhor ficou aborrecido comigo. Não faz mal, eu espero..."

CAPÍTULO IV
Um homem não é nenhum moiro
O velho caminhava à sua frente pelo carril do valado, gingando com o peso do reumático, que parecia desconjuntar-lhe o corpo magrizela. Acendera o cachimbo, antes de sair da palhoça, e lá ia a fumegar, contente como um gaio, com a cana de pesca ao ombro e a caixa pintada de verde pendurada na mão. O rapaz tocava a gaita de beiços, levando a sua cana segura pelo antebraço esquerdo, e fingia-se cansado, para que o ferrador ainda se julgasse o mesmo andarilho de outros tempos.
Na véspera tinham preparado em sociedade os remeIhões das minhocas, que não faltavam mesmo à porta do barracão - era dar uma enxadada e agarrar não sei quantas. O velho ensinara-lhe a preparar os anzóis e contara-lhe das suas pescas noutros tempos, quando ainda morava em Vila Franca. Sempre que podia, escapava-se para ali. Gostava da Lezíria, tanto como se ali tivesse nascido, e acabara por arranjar aquele casebre para viver com a amante. Ela não era daqueles sítios. Não sabia a sua
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nação, nem isso importava. Era uma mulher que lhe servia e estava tudo dito.
Iam pescar sem destino, descansar da chateza daquela vida bruta.
- Gostava d'ir até ao esteiro do Ruivo, mas é longe, as pernas já não me levam até lá, disse o velho.
- Mas anda que nem um rapaz!
- Lá vens tu... Troco as minhas com as tuas, valeu? Passaram a uma aberta, o velho farejou de um lado
para o outro e achou que podiam ficar ali mesmo. Perto havia um salgueiro de sombra larga, e entre o valado e o rio surgira uma nesga de terra coberta de mostarda e de lírios brancos.
A Mariana preparara-lhes o almoço, uns fritos de bacalhau e azeitonas, e Alcides bem percebera que ela ficara radiante por estar só todo o dia. Gostava de poder espreitá-la, sem que ela soubesse, e ser capaz de compreender o motivo daquela garridice ofensiva. Provocava os homens, passando perto deles e tocando-lhes com o corpo se os via distraídos; deixava-os prenderem-lhe as mãos e beliscarem-lhe os braços e as ancas, sorrindo sempre, com os olhos a entornarem doçura e maldade picante. Sabia que a sua voz os tocava de uma magia sensual, de tal maneira eles se transformavam quando ela falava. E não era bonita, não senhor.
Mas havia nela um misto de candura e de perversão, de frieza calculada e de inocência, que desvairava os homens. Tinha uma boca desmedida, sempre aberta, em sorrisos, talvez para mostrar uns dentes frescos, embora incertos; um nariz pontudo, de ventas sensíveis, como se fossem duas flores inquietas pelo jogo da luz e das sombras;
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uns olhos talvez feios, pequeninos e travessos, que tanto pareciam quentes, da cor do acaju do seu cabelo liso, como esverdeados e frios, talvez cínicos. E havia aquela covinha marota na face esquerda, tão atrevida, tão provocadora, que sem ela a Mariana seria uma mulher vulgar, desajeitada mesmo, tamanha magreza se apossara do seu corpo esguio.
- Em que estás a pensar? perguntou o Mula Brava.
- Em nada.
- Não falavas...
- E o Ti João? Também nada dizia.
- Na minha idade já custa a pensar. A cabeça embrulha-se...
Tinham-se sentado perto de uma seara de trigo já a chegar-se à foice; lutavam nela o verde-tenro e o amarelo da maturidade e ouviam-se as espigas estalar sob a brasa do sol.
- Que pensas tu da Mariana?
Alcides fingiu-se atento para a bóia da sua linha. A maré devia estar na enchente e tornava difícil o perceber se alguma enguia picara o anzol.
- Não ouves, Ruço?
Ele não respondera, convencido de que o velho se arrependeria de repetir a pergunta.
- Que dizes tu da Mariana?... Sim, que é que achas nela?...
- Que é sua amiga.
- Não foi isso que te quis perguntar. Se já viste alguma coisa de mal. Sim, uma liberdade maior com algum deles. Vão lá tantos!
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- Ela brinca com todos. Uma mulher nova precisa de se distrair.
- Que é nova já eu sei, disse o Mula Brava com a voz agressiva. - Ela quando veio para a barraca já sabia que eu era velho. Mas fizemos uma jura. E há juras que não se quebram até ao fim.
Ruço de Má Pêlo levantou-se para puxar a cana e deu um grito de entusiasmo. O velho começou a rir quando viu o anzol a dançar sem nada. O rapaz é que sabia porque premeditara aquela cena.
- As enguias não querem nada comigo, 'stá visto. O Ti João já apanhou algumas quatro.
-Da primeira vez apanha-se sempre pouco. A gente quando é novato toma tudo a sério e as mãos tremem na cana. Eu tenho a certeza que as enguias lá em baixo sentem na água as nossas mãos a tremer. É como eu lá na barraca. Não vejo. Os olhos quase não me servem. Mas há coisas que tocam na pele da gente, que vêm no ar, assim como o vento e o cheiro da terra ou das flores. O amor é uma coisa assim mais ou menos. Tem cheiro. Cheira como a terra molhada com as primeiras chuvas. E bole nas nossas mãos como as aragens do sul, o vento palmelão, que transtorna o gado nas pastagens.
O rapaz começou a rir, num riso nervoso.
- Tu que te ris é porque sabes dalguma coisa, Ruço. O velho pôs a cana de lado e aproximou-se. Tacteou-lhe os cabelos com as mãos inquietas e puxou-o depois para si, obrigando-o também a levantar-se. A seguir chegou os seus olhos doentes e quase vazios para o rosto do rapaz.
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- Tu sabes dalguma coisa, Ruço! gritou-lhe o Mula Brava, sacudindo-o pela camisa.
- Já lhe disse que não sei, Ti João. E se acha que eu o engano, vou-me hoje mesmo embora. Não gosto de ser ferrador. Quando atravessei o Tejo, nunca pensei ficar ali.
- Hum! Então não gostas de ser ferrador... Porque disseste que sim?
- Tinha fome.
- Não te disse para nunca fazeres coisas de que não gostasses? Isso é pior que ter fome. Fazer o que se não gosta é mil vezes pior do que passar fome. Comias mostarda, comias erva, comias terra...
O velho voltou para junto da sua cana, mas nunca mais a agarrou. Parecia inquieto, voltado para as bandas do Cabo, onde tinha a taberna.
- Se quiseres, vai-te embora. Mas é pena. Eu já não posso viver muito tempo e podias ficar com a oficina. A Mariana é tua amiga... (Caiu um silêncio entre os dois.) Não é?!
- Não sei.
- Gostas dela?
- Não, não gosto. Ela podia ser minha mãe. Mas se pensa que alguma vez eu lhe faltei ao respeito...
- Nunca pensei nisso. Mas ela não é a mesma. Mudou há coisa de duas semanas. Fala menos, já não gosta de brincar com os homens. O amor cheira, é o que te digo. Sabes quem é o Chico Malhado?
- Sei.
- Tu estavas a ferrar uma égua do patrão Jaquim. Aquela égua porcelana e desconfiada... Eu cheguei-me à
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taberna e parei cá fora da porta. Não se ouvia uma mosca. Como sabes, ela fala sempre. Nunca 'stá quieta. É uma égua roaz. Julguei que os ia apanhar agarrados, mas pra mim foi o mesmo. Estavam longe um do outro, mas era como se as mãos dele fossem do canto da mesa, cá à entrada da porta, até ao balcão, onde ela estava. Eu disse bom dia, e a minha voz fez um eco danado. A minha voz nunca fez um eco daqueles. Ele respondeu-me e tudo ficou quieto. Quieto e pesado. Eu fui direito a ela e custou-me a andar. Parecia que atravessava uma tempestade. Julgo que ainda se não passou nada entre os dois, mas as coisas não vão ficar assim por muito tempo. Ela não é mulher pra isso!
- Talvez não...
João Mula Brava casquinou de troça - talvez troçasse dele.
- Nunca gostei que tivessem pena de mim, Ruço de Má Pêlo! Nem o meu filho. Foi por causa dela que perdi a sua amizade e nunca me arrependerei disso. Pareço andar aqui por arames, tão magro estou, e velho, e cansado, mas este arame é de aço. Não torce, quebra-se. E quando se quebrar é por uma vez. Pra que diabo preciso eu de uma mulher com esta idade? Não é o que tu perguntas? É o que todos perguntam, eu sei. Tu dormes ao lado da gente e naquela casa é o mesmo que dormires na nossa cama. És capaz de guardar um segredo?
- Pode falar à sua vontade, Ti João. E se quiser, eu ponho-me à tesa com ela, porque enquanto eu estiver à sua beira ninguém fará pouco de si.
- Não, não é isso. Eu ainda sou capaz de me defender. Não tenho medo da morte. E aquela espingarda que
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lá tenho serve para queimar os miolos a quem calhar. Entendes? Pois é assim mesmo.
O atropelo das palavras tinha-o cansado e ele arfava. Deitou-se sobre a erva com os olhos fechados e continuou a falar.
- Encontrei-a no Porto Alto e achei-lhe graça. Eu vinha numa carrocita que tinha nesse tempo, já lá vão três anos, e parara ali para matar a sede e dar dois dedos de conversa com o meu compadre. Ela guizalhava como é seu costume e queria uma boleia para ir apanhar o comboio. Ofereci-lhe um lugar na carroça, metemo-nos de conversa e combinámos tudo. Eu precisava de uma mulher para companhia, talvez só pra me lembrar de todas que tive. E perguntei-lhe se ela queria viver comigo. "E o que me dá vossemecê?", respondeu ela. Gostei daquela franqueza. Uma mulher nova quando se obriga a ficar ao pé de um homem como eu tem sempre alguma coisa em mira. É melhor jogo franco: pão pão, queijo queijo. Eu disse-lhe: ponho uma taberna eu teu nome, trabalho de ferrador, e quando morrer é tudo pra ti. Mas nunca m'enganarás, é só o que te peço. Brinca, conversa e ri, mas nunca m'enganes. E ela jurou-me. Acho que me jurou plas cinco chagas de Cristo. Não sei bem o que ela me disse, mas só interessa a combinação feita. Eu ainda não faltei a coisa nenhuma.
O cão sentara-se entre os dois e lambia as mãos do velho.
- Agora, já vai pra dois anos que não tenho nada com ela. Dormimos juntos e tu sabes bem: já não somos homem e mulher. Tens ficado muitas noites a ouvir. É
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ou não verdade? Fala à vontade, Ruço! Já és um homem... e podes dizer essas coisas que não te ficam mal.
- É verdade.
João Mula Brava abriu os olhos e sorriu para o rapaz.
-'Mas agora as coisas vão complicar-se. Ela mudou. O Chico Malhado deu-lhe volta à cabeça. Eu sei que é só pra ter a mulher e mais nada. Há muitos a gabarem-se, mas nunca nenhum a teve. Ele julga que eu dou pasto à èguazinha, mas engana-se. Se a quiser, leva-a com ele e nunca mais me passa à porta. Ou talvez não a leve, porque sou capaz de o baldear antes que isso suceda. Não vou agora em velho deixar algum gajo rir-se de mim. Viste como ela ficou contente por sairmos? Ela ficou contente, eu sei. Vai tremer sempre com receio que eu lhe apareça de um momento para o outro e nada fará. Mas quer falar com ele, e saber o que ele pensa, e perguntar-lhe...
- Ele é novo, Ti João. Ela talvez não lhe pergunte nada.
- Tens razão.
Levantou-se apressado. Pegou no chapéu e enfiou-o na cabeça.
- É isso o que tu dizes, Ruço. Ele é novo e quem sabe o que lá vai a esta hora. Tenho passado noites inteiras sem dormir, agarrando-a, porque às vezes penso que se adormeço ela me pode vir cá pra fora... Está agora a aproximar-se o tempo danado pra isso. As noites de Verão. Os dias de Verão. Quando eu era moço, eu desvairava sempre por esta altura.
Pegou na cana e pô-la sobre o ombro; foi buscar a caixa verde, onde tinha as enguias, e deixou-a ao pé do rapaz.
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- Fica-te aí, toma banho no Tejo, se quiseres, que eu volto. Já agora peço-te...
- O quê, Ti João?
-Nada. Nunca gostei de pedir coisa nenhuma. Faz o que quiseres. O mundo pra ti é livre. Até logo.
E abalou apressado com o cão atrás de si. Alcides ficou no mesmo sítio até o velho desaparecer na curva do valado e foi depois para a margem do Tejo, à sombra do salgueiro. O calor começava a apertar. Tirou a camisa, estendeu-se na erva e tentou adormecer. Mas as palavras do ferrador tinham-se-lhe agarrado ao sangue. Ele nunca vira a Mariana como naquele momento. Para si ela não era uma mulher. E agora sentia-lhe as mãos.
"O amor cheira", dissera o velho.

CAPÍTULO V
Deixem ouvir a harmónica
O Chico Malhado nunca mais aparecera depois de uma conversa que o velho tivera com ele. Andaram horas sem conta no carril para os Trinta e Oito Moios e o Mula Brava voltara sorridente, menos velho do que antes. "Que se teria passado?", pensava o Ruço de Má Pêlo.
Ele é que acabara por ficar, não sabia ainda porquê, embora explicasse ao Ti João que pensara melhor e afinal sempre gostava do ofício de ferrador. O velho parara-se desconfiado e ele deduzira razões: "A gente às vezes põe asas na cabeça e vai por esse mundo fora, que é um regalo. Mas fazer o quê? Já estive numa loja, agora aprendo consigo... Se largo isto também, habituo-me a andar aos saltos como as perdizes e nunca mais paro, a não ser que me dêem alguma chumbada. E depois o ofício é bonito. Se os sapateiros têm cagança em calçar mulheres embonecadas, a gente ainda pode ter mais, porque mais bonita do que uma mulher só uma égua."
O velho acenara a cabeça, manhoso, com a malandrice nos olhos - o que o rapaz dizia não lhe soava bem, era
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assim a modos como um toque de moeda falsa. Mas ficara contente com a resolução e mandara arranjar um pombal, como o Ruço lhe pedira de uma vez.
"Então e os milhafres, Ti João?" Ele repetia as objecçÕes do Mula Brava.
"Olha, rapaz, isto será como na vida. Os pombos que forem espertos hão-de acabar por fugir aos rapinantes. Os outros, já se sabe, vão cair-lhes nas garras e lá marcham por esses ares fora."
Eram agora a sua melhor companhia. Falava-lhes e eles vinham pousar nos seus ombros, comiam na sua mão, brincavam em bando à volta do barracão quando ele lhes assobiava, sempre atento para o céu, não viesse algum falcão matar-lhes os companheiros. E os pombos já sabiam distinguir o brado que os devia juntar à sua volta.
com a ausência do Chico Malhado, a Mariana é que andara triste durante uns dias, mas depois voltara a sorrir, apesar de já não ser a mesma para os fregueses. Ele encontrara-a a fazer o saco da roupa.
- Vai de abalada?
-Não lhe digas nada, mas vou esta noite, 'stou cansada disto. Habituei-me a andar em ranchos e esta pasmaceira, esta tristeza, não me gruda. Isto é pior que o degredo e eu não matei ninguém.
- Vai pró Chico?
- Qual Chico! Não gosto d'homens que se convencem com palavras. Quando se gosta d'alguém não há nada que pare uma pessoa. Ele não gostava de mim.
- E vossemecê dele?
-Acho que também não, porque doutra maneira tinha ido à sua procura. A emposta onde ele está não fica longe.
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- Vai fazer falta à gente... Mesmo ruim como é, a gente vai sentir. O Ti João é seu amigo e deixa-lhe a taberna e a oficina.
-Mas pra que quero tudo isso, se não tenho um filho a quem deixar essas coisas? Pra que serve uma mulher, se não tiver um filho?
- A Sr.a Mariana ainda pode ter... 'stá nova.
Ela sentara-se, pondo a saca de lado. E o Ruço, sem dizer palavra, começara a tirar a roupa de dentro, guardando-a no baú onde sempre estivera. Mariana acabara por sorrir.
Mas já não bamboleava as ancas naquele jeito feio doutros tempos. Evitava aproximar-se dos homens quando lhes servia vinho e arrenegava-se, aos gritos, na sua voz áspera, como se o ar a rompesse.
Uma manhã, estava o Mula Brava a ferrar uma junta de toiros amansados, houve um aranzel na taberna, porque o Bailarote lhe agarrara no braço e ela jogara-lhe logo com o cangirão do vinho. Nunca a tinham visto naquele destempero de gritos e de nomes obscenos. Depois, quando tudo amainara, metera-se sozinha no quarto e chorara toda a tarde em gemidos, como se estivessem a bater-lhe.
"Deixa lá, é deste tempo", dissera o velho. "Tenho pena dela, porque deve sofrer. Quando uma mulher chega a conhecer homem, já não pode passar... E tornam-se magras assim como ela está, e principiam a ter borbulhas no corpo. Põem-se murchas como as flores sem água. Às vezes dá-me vontade de fechar os olhos e deixá-la para aí. Se fosse um homem que se calasse... Percebes o que quero dizer? Mas os homens são quase sempre linguareiros. E depois começava aí uma risota dos diachos nessa
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Lezíria e eu não seria capaz de encarar o Sol, quanto mais as pessoas. Mas custa-me vê-la sofrer... Há mulheres que têm ataques, contou-me um médico que veio aqui caçar às codornizes. Que se arranham e se atiram para o chão."
"Deve ser feio uma mulher fazer coisas dessas."
com aquilo a freguesia da taberna começara a afastar-se. Os guardadores abandonavam menos as manadas à sua guarda e os barqueiros preferiam atracar em Vila Franca, onde era mais fácil arranjar distracção. A oficina de ferrador passava dias inteiros sem meter um animal.
O rapaz subia até ao valado por onde correra, aos gritos, na manhã em que ali chegara, e sentava-se à sombra dos salgueiros para tocar a sua harmónica. Sabia agora músicas sem conta e tocava-as com fantasias da sua ideia, a compasso, tristes umas, garridas outras, como se a sua juventude submetida se espojasse à vontade naquela eira de sonho. Tocava, sem parar, melodias novas que de vez em quando metiam pedaços de outras que aprendera. E o velho perguntava-lhe da escuridão: "Que música é essa? Nunca a ouvi."
"Arranjei-a eu. É bonita?..."
"Toca-a outra vez", pedia a Mariana.
"Já não sou capaz. Fugiu-me..."
Tentava, pedaço daqui, pedaço dacolá, mas era sempre diferente.
Uma noite ela veio até junto dele e encostou-se ao seu ombro. Ruço de Má Pêlo sentiu-lhe a respiração junto da orelha e uma dureza de laranja no braço.

CAPÍTULO VI
Há baile na Terra Velha
- É aqui que mora um tocador' de gaita de beiços?
-Dois e chegam, respondeu o Ruço, sentado com o velho debaixo do caramanchão.
- Deixa falar, disse o Mula Brava. - Há só um e é ele. Sim, esse Ruço. Esse Ruço de Má Pêlo.
O homem que fizera a pergunta parecia embaraçado talvez estivessem a brincar com ele, talvez tivesse vindo de tão longe a pé só pra servir de galhofa à malta do rancho.
- Ando no patrão Inácio. Da Terra Velha. E a gente queria esta noite fazer um bailarico. Há lá raparigas bonitas...
- Eu só toco pra mim.
->A gente pagava-lhe o que quisesse. E se não fosse muito, 'stá claro. Cinco mil réis!
A fama de Cidro desvairara o velho e piscava-lhe o olho para que aceitasse. O rapaz encolhia os ombros, contrafeito.
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-'Quem lhe disse que havia aqui um tocador? interrogou o velho para gozar o prazer daquela fama que o pusera radiante e comunicativo.
- Foi o maioral das éguas. Diz que nunca ouviu coisa igual.
- E não fenganou, podes ter a certeza. Eu já toquei também. E por isso sei o que é o preceito.
Da escuridão surgiu outro homem; Mula Brava acolheu-o com um aceno de mão.
- Tocador já vossemeceses têm. E se não faltam raparigas bonitas, é baile até de manhã. Mariana! Eh Mariana!
Atraída pela conversa, a mulher apareceu sem lenço, como agora andava muita vez, e de cabelo desalinhado sobre os olhos.
-Vieram oferecer contrato ao Ruço! Como tocador, vê lá tu. Arranja-lhe aí as coisas num instante. Acho que deve estrear o chapéu. Vão lá os dois, depressa!
Lá dentro, a Mariana andava numa roda viva, excitada e feliz, como se também ela fosse ao baile. Do que pensara comprar-lhe, só tinham conseguido o chapéu cinzento de aba rija com uma fita de seda. A jaqueta e a calça talvez para o ano, se as coisas corressem melhor.
- 'stou eu a preparar-te para alguma tronga, disse com uma ponta de amargura na voz morna que ele gostava de ouvir. - Será baile de carmelas ou de gaibéuas?
E pôs-lhe a camisa branca a jeito, sobre a tarimba.
- É ir perguntar... Cá por mim não ia ao baile. Tocar é bonito, mas é só prà família.
- Pra mim nunca tocaste tu.
- Também nunca me pediu.
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Queria começar a vestir-se, mas ela não havia maneira de sair. Embaraçava-o dizer-lhe.
- Vê lá que rapariga escolhes, hem? Nos bailes os tocadores também têm par quando querem. Sabes bailar?
- Não. Nunca bailei. E acho que me deve pesar o pé.
- Que é que estás à espera?
- Que vossemecê saia.
Ela riu-se. Depois riram ambos. Mariana fechou a porta e falou-lhe do outro lado, no mesmo tom íntimo. E a sua voz coada pela parede de caniço parecia mais branda ainda.
- Deves escolher uma bonita, ouviste?
- Se eu não sei bailar, como vou fazer? Eles pagam-me para tocar. Cinco mil réis.
- Ih que fortunaço! Mas baila mesmo assim. Gostava de te ver... De que mulher é que gostas?
- Sei lá. Nunca pensei. (Mas mentia-lhe, porque lhe ocorrera a imagem da menina Cidália, morena e picadinha do bexigas - que bem lhe ficavam!)
- Quase todos os homens gostam de mulher com carne, com o peito alto.
- E os que gostam de si?
- Esses era por causa do velho. O que lhes apetecia era enganarem o velho. Agora já os percebo. Noutro tempo julgava que era por mim.
Ele sentiu que só agora começava a ser seu amigo. Antes, quando ela se mostrava na taberna e procurava desafiar os homens, irritava-se com os seus modos e algumas vezes apetecera bater-lhe e mandá-la para o quarto.
João Mula Brava apareceu de carinha na água: - Então esse noivo? Posso abrir?...
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- É só pôr o chapéu.
Mariana entrara também e fora buscar o pente, obrigando-o a sentar-se na tarimba. Despejou água na mão e passou-lha pelo cabelo arruivado, molhando-o bem.
- Ficas melhor de risco.
- Mas eu gosto mais pra cima, Sr.a Mariana.
- Sabes lá o que te fica bem!
O velho ria-se e brincava com o chapéu, pondo-o a saltar de uma mão para a outra. A mulher encostara os joelhos aos do Ruço. Ele sentia-lhe o calor, um calor que escaldava e lhe fazia baixar os olhos. Ela ralhava-lhe: Levanta a cabeça. Como queres que eu te penteie? Depois foi buscar o espelho e mostrou-lhe o cabelo. - E então?! Já lhe disse para arranjar uma rapariga bonita.
- Escolhe magra, disse o velho. - As mulheres magras sentem-se crescer nas nossas mãos. É como se fosse a gente que as fizesse.
Mariana fitou-o com ternura. E deixou que ele pusesse o chapéu ao rapaz.

Do Cabo até à Terra Velha foi um fartote de andar a mata-cavalos. Quando passaram ao Camarão, os outros quiseram que ele começasse a tocar para conhecerem no rancho a chegada do musiquente. Abriu com o Gallito, que ele executava como se pusesse sol dentro dos sons da sua harmónica. E antes de meterem à emposta ouvia-se já a gralhada das cachopas que vinham às corridas, e bem beliscadas, em busca do tocador que tinha fama e bem a merecia.
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O capataz queria o bailarico no barracão. Os criados da terra e mais os campinos, amparados pelas raparigas, achavam que lá dentro estava muito calor e dava mais jeito bailar no terreiro das motas com aquele luar brandinho.
Cidro sentia-se pouco à vontade, estava ali para ganhar dinheiro, e nunca se vira rodeado de tanta mulher - puxa daqui, vamos ali para o escuro, que o tocador devia ficar à revessa, não fosse o orvalho da moita dar-lhe conta do chapéu, disse uma moça dos Foros, com a cinta vermelha a sublinhar-lhe as ancas e a levantar-lhe a saia atrevida.
- E pode desbotar-lhe o cabelo, parodiou outra do rancho das gaibéuas.
Ele sorria, canhestro no meio de tanto bulício. E galgou para cima de dois fardos de palha, a servirem-lhe de palanque, deixando as pernas curtas a balouçar ao ritmo da música viva, pois a cachopada só queria marchas, que eram sempre de andar para diante.
- E pra diante é que é Lisboa, gritou um rabezano de olho malandro.
Da mota do gado chegava a guizalhada dos bois. Da resteva do trigo já ceifado vinha, sorrateira, a plangência do chocalho das éguas.
Tudo dançava minha gente - a ceifa estava no rabo e dentro de poucos dias cada qual voltava para casa, menos a criadagem ao ano. Como havia mais raparigas do que homens, até os durázios eram arrebatados pelas moças, que pareciam andar, as malditas, com fogueiras de Santo António cá num sítio, dizia o maioral das ovelhas, um desbocado, mais de falas do que de obras. E se não achavam par, elas aí se deitavam a bailar umas com as outras,
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como se naquela noite tivessem precisão de botar para fora do corpo alguma lembrança ruim.
- O musiquente que baile!
- Lá quente talvez ele 'steja c'um raio, até o cabelo lhe arde, disse uma trigueirona atrevida, que não tirava o olhar de cima do Ruço.
Ele piscou-lhe o olho por feitio, nada de audácias, pois nunca se achara envolvido em balbúrdia tamanha, e faltava-lhe o calo para saber quando o ferro está na boa conta de se lhe dar jeito. O abegão permitira o baile, mas recomendara bem que não queria vinho, a não ser para o tocador - só esse precisava de fôlego e de boca molhada.
Vieram dar-lhe um copo, que ele virou duma vez, como se quisesse mostrar-o seu hábito noutras folganças. E pediu outro, pensando dizer uma graçola. O pior é que se lembrou da sua gaguez - vinha-lhe sempre aquilo quando estava excitado e não fosse o defeito servir de troça aos ranchos.
A trigueirona aproximara-se com um malmequer na mão e oferecera-lho, indicando que o devia meter na fita do chapéu novo. Ele não percebeu a intenção e perguntou-lhe: - pra que me dá o malmequer?
E desfolhava-o mentalmente, enquanto ela amarinhava para os fardos e lho ia pôr na fita de seda, perante a risada e as palmas da cachopada mais reinadia, já envolvida numa nuvem de poeira que queimava as narinas. Tanto, não tanto talvez, como aquele cheiro picante do corpo da trigueirona, que se deixara ficar à sua beira e cantarolava a moda nova da sua gaita de beiços.
Lembrou-se das palavras do Ti João: "O amor tem cheiro." Seria aquele?
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Os mais velhos enfiavam pelo barracão e iam enrolar-se nas mantas, depois de aconchegarem a palha onde dormiam. Alguns traziam esteiras, desembrulhavam-nas ao luar e deitavam-se nelas, cansados da ceifa e do reboliço da dança. Ruço de Má Pêlo tocava sem cessar e doíam-lhe os beiços e a queixada, mas não podia parar, que os cinco mil réis já lhe cantavam na algibeira e a bugalhada mais nova não o largava de mão.
Bebera mais um copo e a cabeça dançava-lhe. Dançava-lhe e rodopiavam nela as faixas vermelhas das raparigas dos Foros e as suas pernas bonitas e tisnadas quase pela curva; os seios ameloados das gaibéuas, que lhe lembravam a loja do Lobato e os beliscões dos caixeiros, para verem se aquilo era a sério ou de trapos, por batota; e os risos das cachopas, e as bocas das cachopas, tudo num galope de imagens fugidias, mas que passavam sempre. Só o cheiro da trigueirona ficava.
E depois, mais do que o cheiro, o ardor daquela mão, quando ambos saltaram dos fardos de palha e se meteram no meio do "balho", vá dois passos prà direita, seu Ruço, vá dois passos prà esquerda, e agora toca de rodopiar, pois nos rodopios é que um homem se chega e as pernas se embaraçam em qualquer coisa que faz doer e apetece. E apetece ver se uma rapariga tem boca para rir quando outra boca se lhe cola, e apetece deitar-lhe a mão e fugir por essa Lezíria adiante, sabe-se lá para onde, que o cheiro do amor pode sentir-se no meio do alarido dum baile ou num coxim de espigas derribadas, na borda de uma aberta onde a água cante e as rãs coaxem ao luar.
- Aí tocador duma cana! Nunca vi cinco mil réis mais bem empregados!
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E veio outra cachopa e empurrou a trigueirona; e essa apertava-o mais, ou era ele que já a sabia apertar, e sentia na sua mão direita uma massa de fogo a descer até às pernas derribadas e a amarinhar à cabeça, pondo-lhe a testa em camarinhas que deslizavam na sua cara sardenta e iam salgar-lhe a boca grossa.
- E vai uma puladinha! pediu um dos irmãos Arrenegas, todos fama e proveito de gastarem a vida atrás de saias.
Os ceifeiros estavam vencidos e amodorravam pelos cantos do terreiro ou dentro do barracão a dormitar. O abegão já se recolhera, marcando o baile até à uma hora, que amanhã era dia de trabalho e não queria jorna em paga de preguiça. E dos capatazes só o das gaibéuas estava alerta, porque ele bem sabia como os bailaricos acabavam e trazia algumas seis meninas no seu rancho para guardar. "Estes rabezanos dão-me volta às cachopas", pensava iscado de raiva.
E davam-lhe bem, porque agora o terreiro era deles a dançarem em silêncio - talvez de canseira ou daquela lassidão que fazia borbotões de prazer no corpo e as punha de cabeça encostada ao peito do seu par, como se ainda pudessem fugir com o resto àquela força que as fazia girar em rodopios. "Aí seu Ruço, faça-me bem esse pião, pois nos rodopios é que elas se chegam e as pernas se embaraçam em qualquer coisa que faz doer e apetece."
- Vai outra puladinha!
E as cachopas metiam-se pela noite dentro e voltavam sozinhas - iam e voltavam sozinhas, acompanhadas pelos olhares perturbados dos homens.
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A trigueirona tornara a bailar com o Ruço de Má Pêlo, mas ele não era capaz de lhe falar - estava cansado e tinha vergonha da sua gaguez. E ela, que não era das seis meninas do rancho das gaibéuas, gostava do seu cabelo de fogo, do seu chapéu de lavrador com o malmequer na fita e daquele resfolegar intenso que lhe perturbava o peito. Ela podia esperá-lo fora da emposta, lá na estrada do Camarão, naquele sítio onde há montes de flores bravas e um freixo velho, quase sem ramos.
- Quem lhe ensinou a tocar?
Cidro não tinha resposta para aquela pergunta, porque não era capaz de se pôr ali a falar, num desatino, do João Mula Brava e da Mariana.
- Tem conversada?
- Hum! Gosto pouco de falar. Sou um bocadinho gago...
A trigueirona riu-se.
- É mais engraçado assim.
O capataz das gaibéuas começava a perder a tineta, pois já avisara duas vezes que a hora estava passada e não queria ouvir o abegão. E vá de separar os pares, gritando ao tocador para se calar com a sanfona. Ruço de Má Pêlo embezerrou e respondeu-lhe que se quisessem música mais alguma vez nem com dez mil réis e bebida o trariam. Disse aquilo tudo sem gaguejar e meteu a gaita de beiços na algibeira, depois de apertar a mão que a trigueirona lhe estendia.
- Mora longe? perguntou-lhe a rapariga.
- Moro no Cabo. Lá mesmo à borda do Tejo.
-Se gostasse de passear... eu podia aparecer lá na estrada...
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- Na do Porto Alto?
- Não sei como se chama. Na estrada...
Mas o capataz puxava-a para o lado do barracão, arrenegado de palavras bravias.
E o Ruço de Má Pêlo saiu da emposta na companhia dos três irmãos Arrenegas, todos meões como ele e gingados de corpo.
Mas antes de saírem as tranqueiras que fechavam o caminho, um dos irmãos, parecia o mais velho, botou fala e contou das suas razões: -A gente espera aí meia hora... Quem é que tem relógio? (Cidro puxou pelo seu, mas tinha-o parado - marcava dez e os ponteiros não se moviam.) A gente calcula. Depois voltamos... Elas estão cansadas e muitas vão dormir na rua... Vocês não viram?
Os outros dois Arrenegas sorriam de gozo, esfregando as mãos e acotovelando-se.
- A gente vai que nem gatos e pegamos nas pontas da manta da que estiver mais à mão, do lado da seara. Somos quatro, cada um pega na sua ponta...
- E se ela gritar?
- Quando der pia gente, ela já não grita.
- E se for uma velha? perguntou o mais novo.
- Eu é que vou à escolha. Não m'engano, com certeza. Valeu?
Cidro pensou na trigueirona e quis dizer que não, que não fazia uma coisa dessas. Mas embaraçava-o desviar aquela camaradagem, ao mesmo tempo que sentia a quebreira do corpo amaciar-lhe a vontade de abalar sozinho.
- E se os homens acordam? perguntou.
- Não trazes navalha?
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- Esqueci-me, respondeu, envergonhado de confessar que nunca usara.
- Mas a gente tem.
Sentaram-se num grupo, acoitando-se atrás de umas moitas donde saiu uma lebre espantada. Um dos irmãos ainda lhe jogou uma pedra.
À medida que o tempo avançava, Cidro perturbava-se com aquela aventura. Lembrou-se, porém, do Carapinha e dos rapazes do Largo da Estação, sempre metidos em alhadas e sempre safos. O luar estava um poalho de farinha. As estrelas eram bagos de luz na rama da noite.
- Vamos?
Os três ergueram-se de sopetão, encaminhando-se para o lado da seara. Um deles voltou-se e, vendo-o sentado, assobiou-lhe. Ruço de Má Pêlo suava em bica e as mãos doíam-lhe.

Mal entrou na barraca, depois de o Perdido lhe ter ladrado como a um gatuno - não o conhecera com o chapéu - , a voz do velho chamou por ele.
- Entra.
Mariana estava voltada para a parede e ele só lhe via o ombro nu.
- E que tal?
Cidro não respondeu, fazendo uma careta.
- Gostaram de te ouvir? Tocaste o Gallito?
- Foi assim...
- Vai-te lá deitar. Amanhã falamos. Parece que vens dum enterro, Ruço de Má Pêlo.
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- Ou arranjou namorada, disse Mariana na sua voz rouca, sem abrir os olhos.
Ele deu as boas-noites e foi deitar-se na sua tarimba. Queria dormir, mas a ansiedade que experimentara naquela aventura estava ainda fresca de mais para lhe dar sossego. A cabeça latejava-lhe. A mulher não falara, mas ele não fora capaz de lhe dar um beijo. A trigueirona não era, com certeza, porque dessa ele conhecia o cheiro áspero. Qual delas seria? Os outros tinham-lhe dito que o procurariam logo que pudessem - ele era um bom tocador e um grande compincha.
Acabou por se levantar e sair para a rua. Foi até ao valado - lá estavam as luzes da sua terra. O luar brincava aos peixes sobre o Tejo adormecido, como se uma rede varina trouxesse para a margem um saco de escamas vivas. Respirou fundo; apeteceu-lhe dormir ao ar livre. E quando fechou os olhos viu-se sobre uma manta de listras largas e felpudas, como aquela em que levara para a seara uma rapariga adormecida e cansada. Uma rapariga de cinta vermelha e um lenço amarelo na cabeça derribada.
Mas deitou-se com a trigueirona.

CAPÍTULO VII
Os dias cansados
Vieram procurar o Mula Brava numa carrinha, para que ele fosse ferrar uns cavalos a Samora, e o velho ficara hesitante. Ainda perguntara ao rapaz se ele saberia sozinho dar conta do serviço, mas antes de lhe ouvir a resposta resolvera ir ele próprio. "É melhor tu ficares. Pode aparecer por aí algum freguês e a gente tem de estar onde é preciso. Senão é melhor fechar a loja..."
Mariana admirou-se com o amante - ele parecia acabar com a ciumeira parva dos outros tempos, partindo sossegado, sem tristeza nos olhos. Nem só uma vez se voltara na carrinha, como era de seu hábito, e pensou que já não se importava com ela. Nesse momento deu-se em preferi-lo embirrativo e zeloso, pois sempre era sinal de que a amava. Depois admitiu que o Ruço recebera a recomendação de a vigiar, tão amigos eles eram, e teve desejos de que aparecesse algum dos seus pretendentes para ver como o rapaz se comportava.
Ele continuara, porém, à sombra do caramanchão a tocar a gaita de beiços, quando o maioral do Vaz Monteiro, o
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Zé da Felícia, apareceu do lado do Cais com a égua à arreata e se encafuou na taberna.
O dia estava capaz de queimar brasas.
A Lezíria parecia esparranhada de insolação debaixo daquele sol violento que feria os olhos e alanceava os corpos. Poucas searas estavam ainda de pé e o seu amarelo-crestado fazia sede, mais desvairada ainda quando se olhava o rio, de um azul-metálico e áspero.
Áspero e metálico era o ar vindo dos campos; torturadas as velas que pendiam exaustas dos mastros dos barcos; tristes e silenciosos os caminhos afogueados; silenciosos e tristes os homens que os palmilhavam e pareciam vultos carbonizados, a moverem-se lentamente, numa fantasmagoria angustiosa.
Ele tocava à sombra do caramanchão uma música lenta, pois a boca não sabia outra debaixo daquela fogueira. E pensava que talvez partisse dentro de pouco tempo, quando os Arrenegas lhe aparecessem com o seu ar gingão e a malandrice nos ossos. Mal a noite chegasse, iria pela estrada adiante à procura da trigueirona. Ela não tinha cinta vermelha como a outra, mas seria sua com os olhos abertos, e havia de lhe falar sem receio de gaguez para lhe responder ao que ela queria saber da sua vida.
As patas de um cavalo partiram o silêncio.
Cidro nem se voltou. Depois sentiu as mãos da Mariana sobre os seus ombros.
- Voltaste mudo do baile. Deram-te bruxedo?
- Acho que não.
Quis excitá-lo e saber se o velho lhe pedira que a vigiasse.
- O Zé da Felícia esteve para aí na conversa.
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- Que tenho eu a ver com isso? A boca das pessoas é pra falar...
A resposta do rapaz irritou-a.
- Perguntou-me se queria ir com ele, disse depois numa voz cantada.
- É aproveitar... O Ti João não está. Ela sentara-se no chão, voltada para Cidro.
- Achas que devo ir?
- Isso é lá consigo. Cada um sabe da sua vida. Mas acho que isso não são conversas para ter com outras pessoas.
- Podias vir também, disse Mariana.
- Fazer o quê?! Eu quando for não preciso de companhias. Não tenho nada com o Zé da Felícia nem consigo. Mas o Ti João vai sentir. Ele gosta de si. Se vossemecê se for embora, é capaz de queimar os miolos.
- Não acredites nisso. Os velhos têm manhas. Só quem vive com eles muito tempo é que os percebe. Ele diz isso, mas não se mata.
- Eu acredito no Ti João. Gosto d'acreditar nele. Mariana hesitou.
- Vais contar-lhe o que te disse? Sim, isto do Zé da Felícia?
- Nunca servi para alcofa de recados. Mas se acha que deve ter filhos, é tê-los. E pouca conversa. Quem fala muito, acerta pouco.
Falava-lhe com desprezo, em palavras rijas, sacudidas e raivosas. Ela queria entendê-lo, comunicar-lhe a mesma ansiedade que tinha dentro de si. Estendeu-lhe a mão para colher a sua, mas a dele ficou inerte.
- Se eu ficar, tu abalas?
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- Ainda não sei quando, mas um dia será. Isto aqui é uma vida parva.
- Vê-se mesmo que arranjaste namorada, Cidro.
- Tive mulher... Esta noite vou procurar outra. Não são namoradas. Acho que ter namorada é outra coisa. (A voz enfeitou-se-lhe.) Se um dia tiver uma namorada, hei-de escrever-lhe. As coisas devem ser escritas.
- Os que não sabem escrever também podem namorar. Eu já namorei e não conheço uma letra do tamanho dum carro. Esse foi um tempo bonito da minha vida. Acreditava em tudo o que me diziam e era bom acreditar nas pessoas. Às vezes percebia que falavam mentira, mas deixava-me ir no baloiço. Já andaste de baloiço? É bom, não é? A gente julga-se um pássaro, sabe que é mentira, mas é gostoso ir com os pés por aí acima e depois com a cabeça por aí acima. Dá uma tontura!... É a coisa mais parecida com o namoro.
-Eu esta noite vou à estrada. Tenho lá uma rapariga à minha espera.
- Como é ela?
- Sei só que é trigueira.
- É gorda?
- As magras são melhores.
- Foi o velho que te ensinou, não foi?
Ele ficou perturbado; voltou a cara para os lados da fonte, onde uma manada de poldros bebia.
- Também ele me ensinou a tocar e eu hoje toco melhor do que ele. Também posso vir a saber de mulheres mais do que ele.
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O silêncio da Lezíria veio deitar-se entre os dois denso e ardente, cansado e áspero.
- Não vás, pediu Mariana agarrando-lhe a mão.
- Não vou aonde? - À estrada.
Ruço de Má Pêlo encarou-a, sorriu-lhe e deu-lhe um piparote na face esquerda, na covinha marota que ela fazia quando estava prazenteira. Depois ficou embaraçado com a liberdade que tomara e corou. Ficou com a cara quase da cor dos cabelos.
- Não vás, insistiu Mariana. - Se é cachopa de vir à estrada, podes agarrar alguma doença.
- E que tem isso? Homem sem doença não é homem.
Ela levantou-se e foi meter-se na taberna. Daí a pouco cantava.
Cidro resolveu ir até à fonte, mas passou por trás da barraca para evitar que a mulher o visse.

Um campino saltou para riba de uma égua em pêlo e, agarrando-se-lhe à tábua do pescoço, aguentou, sem cair, todas as furtas e pinotes que o animal lhe fez para o deitar ao chão. Depois de a dominar, veio a passo, de mãos soltas, direito à fonte onde a manada bebia. O seu ajuda atirava com o balde de água para cima dos animais, na intenção de os refrescar.
Um grupo de maiorais, que viera trazer um curro de toiros para Lisboa, estava sentado no muro da praça
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da enjaulação e acenava com os barretes para o campino que voltava, de mãos soltas, em riba da égua brigona. Ruço olhava-o maravilhado, mas parecia inquieto. Ganhara um formigueiro no corpo, uma ânsia de experimentar também, pois nunca andara a cavalo.
Era um animal estreleiro, arrogante e destro, de fronte larga, pernas e garupa compridas, ao contrário dos ilhais e das quartelas, indícios de força e robustez; olhos límpidos e cascos puros; e um pêlo negro bem retinto de pouco brilho, sem uma malha branca, zaino de todo, sintoma de égua ardente. Via-se-lhe o sangue viver debaixo da pele.
- Animal preto é fatal! sentenciou o Salsa, velho maioral com famas de picador.
- Mas antes isso que um cavalo rato, que é marca de animal achacoso e triste, disse ainda para os outros.
-Eu cá, respondeu o Chico Malhado, só quando lhes estou em cima é que digo o que me parece. Os cavalos são como as melancias...
- E como os rapazes, disse o Zé da Felícia.
O cavaleiro saltou da égua zaina, tocando-lhe na anca com a verdasca, para a fazer voltar à manada, e avançou para os camaradas de perna caneja e cabeça erguida de bazófia.
- Aquilo é pior do que montar um rabo de vento, disse a distância. - Furta-se e sacode-se com uma manha!
- É ela de feitio e tu de garganta, retorquiu o Chico Malhado.
- Queres experimentar? desafiou o outro. - Vale cinco litros ali no Mula Brava.
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- Isso é bom pra galichos como o Ruço; só sabe meter ferraduras e mal, benza-o Deus, respondeu o Salsa numa gargalhada.
Queriam metê-lo em brios e enzonavam-no com gracejos.
A ele parecia-lhe que se o campino esgalgado e de perna magra fora capaz de dominar a égua, agarrando-a pelo pescoço, também ele o podia fazer, pois unhas não lhe faltavam e boas ganas para se servir delas.
- Pra mim são piores os murzelos andrinos, disse ainda o Salsa. - Vamos lá embora, Ruço! com esse cabelo a égua julga que tu és o Diabo e põe-se aí com jeito de andorinha. Troca-lhe a aposta em dinheiro, anda.
O outro confirmou e que ainda dava melhor partido: pagava cinco mil réis e não recebia um chavo se o Ruço perdesse.
- Quantas vezes posso experimentar? perguntou o rapaz.
- As que quiseres, respondeu o outro a olhá-lo de esguelha.
- Passe ali o dinheiro pra mão do seu Salsa.
O campino pareceu confundido. Os camaradas atenazavam-no com remoques: "Agora é que o Ruço chegou pra ti! Toma lá que não se brinca com o Ruço de Má Pêlo!"
O outro rebuscou as algibeiras do colete e atirou com as moedas para o velho maioral; depois recompôs-se da aceitação da aposta, bateu no braço do rapaz, como se se despedisse, e, piscando o olho para a campinada, foi buscar a égua, que bebia no tanque da fonte.
O ajuda parara de atirar água aos animais, desejoso de apreciar o espectáculo. Sabia que o Ruço iria quinar e fez-lhe sinal com o dedo para que recusasse.
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-Ó seu Salsa guarde-me aí o relógio, pediu o rapaz.
- 'stás a pôr as barbas de molho, disse o Chico Malhado em grande risada. - Pois não, brincas! A égua tem fogo no pêlo!...
Cidro estava lívido. Apalpou a gaita de beiços no bolso das calças e encaminhou-se para a égua, assobiando-lhe baixo. Um passo e outro passo. - Como se chama? perguntou para o grupo.
- Ciclone! - respondeu o maioral. - É um nome bonito.
O rapaz prosseguia de olhar baixo, sabendo que não podia hesitar. Já ouvira muitas histórias de cavalos brigões, lá na taberna, e chamava a si todas as lembranças que o pudessem ajudar. Assobiava que nem um rouxinol enamorado, em repenicados que pareciam gorjeios. A égua sacudiu a cabeça e rinchou com o seu feitio estreleiro.
O Salsa pediu silêncio aos outros. Começavam a ter a impressão de que alguma coisa de estranho se podia passar, tão seguro viam o Ruço de Má Pêlo. Ele agora já estava ao pé do animal, cujas orelhas se moviam em todos os sentidos, num sinal de desconfiança e de medo. Mas o assobio parecia, às vezes, que ia aquietá-las. Depois, num golpe, o Ruço deitara-lhe as mãos e lá ia arrastado pelo carril adiante, numa cernelha imprevista, voando nalguns momentos, derribando-se noutros, como se fosse largar-se e sair pisado, ora mais ligeira a égua, ora mais safo o rapaz, até que o animal estacou com medo de um carro e Cidro lhe galgou para cima, numa desenvoltura de campino já calejado.
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Mas de novo a égua abalava, como se o cavaleiro tivesse brasas nas pernas, às furtetas e aos pinotes, galopando e baixando a cabeça. A campinada saltou do muro e correu para ver aquela luta empolgante.
- Filho da mãe do Ruço, hem?
- Já tem direito a vinte cinco tostões.
- Uma gaita! retorquiu o campino.
Mas já o rapaz saía pela cabeça da égua zaina, estatelando-se numa aberta que bordejava a estrada do Porto Alto.
Correram todos aos gritos.
A égua ficara parada no mesmo sítio, como se esperasse nova arremetida do cavaleiro, e nitria com desespero, numa angústia de medo. Tinha a fisionomia descomposta, arreganhando os dentes jovens. E as orelhas moviam-se mais inquietas.
Cidro apareceu na estrada, quando os campinos se chegavam. Fez-lhes um sinal para estacarem, e os homens ficaram a distância, ansiosos pelo desfecho daquela teimosia.
Foi então que o rapaz puxou da sua gaita de beiços e se pôs a tocá-la de mansinho. Primeiro, longe do animal; depois, quando o viu calmo, aproximando-se a passo, com a melodia lenta e magoada a caminhar à sua frente. A égua parecia encantada. Ainda se sacudiu duas vezes, como se deitasse para o chão, de riba da garupa e do pescoço, aquela música que já lhe galgara para o dorso, mas voltara a ficar imóvel e já movia a cabeça para o lado do rapaz, talvez para não perder o fio da melodia que lhe levara o medo para longe.
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Cidro tinha agora a certeza de ganhar a aposta. Só precisava de dominar a ansiedade de montar depressa. Estava já a dois passos do animal; parara e tocava nunca tocara tão bem.
Depois foi a égua que venceu a pequena distância; ele afagou-lhe a crina e depois a tábua do pescoço. Deixou de tocar para fazer o salto e o animal rinchou. Mas quando lhe caiu em riba, a égua sacudiu-se sem frenesi, como se quisesse acomodá-lo melhor no seu pêlo negro retinto, e seguiu ao mando do toque do seu pé.

A taberna encheu-se. Ruço de Má Pêlo sentou-se à mesa com os campinos e gastou em vinho o dinheiro da aposta. Os outros disseram entre si que ele era um rapaz galante, tão bem lhes soube a franqueza do convite. E a palavra circulou entre a criadagem da Senhora companhia das Lezírias, dos barqueiros e dos vagabundos vindos do Alentejo, a fugir à fome.
Festa grande foi para o Mula Brava quando soube do caso que lho contaram no furo do Camarão, voltava ele na carrinha do lavrador. E ao ver a taberna como nos bons tempos cresceu-lhe uma alegria nova no corpo derrancado, dando-lhe para querer pegar no Ruço em charola.
-Mas ó Ruço conta lá!... Se podes contar, claro. Se não é bruxedo...
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Naquela idade, o moço estava anafado de toleimas. Mas a boca fugia-lhe para a verdade e acabou por dizer a razão do mistério.
-Não sei se, vossemecê se lembra, já lá vão uns meses, daqueles caçadores que aí vieram naquele automóvel azul. Um dos cães pegou-se com o nosso Perdido e armou-se aí uma zaragata que nunca no Cabo houve outra tamanha. Lembra-se agora? Pois eu estava a servi-los de cerveja e vai um deles, o gordo, que vinha de fato de cotim militar e trazia um lenço com flores à volta do pescoço... A Sr.a Mariana até disse que gostava dum assim para o cabelo. Disse que aquilo era lenço para mulher. Pois foi esse mesmo que começou a falar de cavalos brigões e de coisas que sucedem na vida. E disse para um que tratavam por doutor: "Os cavalos amansam-se com música. O pior é que nem todas as músicas servem..."
-Sim senhor, sublinhou o velho olhando para a assistência.
- Quando aquela danada me jogou abaixo pla primeira vez e me pôs que nem um sapo dentro da aberta, fiquei-me lá em baixo a ver se tinha os ossos inteiros; ainda pensei fingir que estava amassado pra não servir de troça a essa malta - desculpem os mais velhos -, e vai daí, foi quando me saltou a conversa do gordo. E lembrei-me logo que quando tocava aquela música macia, os pombos vinham todos prà minha beira e os guarda-rios e os outros pássaros bravos dos caniços se chegavam também, como se eu fosse irmão deles. E pus-me a tocar. E percebi que a égua parecia encantada. Foi os olhos dela que me deram o primeiro sinal.
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- Pois eu dou-te dois dobros do que apostou aqui o Forneças, se fores capaz de fazer o mesmo a um cavalo garanhão que tem o seu padre Tobias.
- Valeu? perguntou o Mula Brava.
-Não senhor. Tive um patrão que m'ensinou que há coisas que se fazem só uma vez. Todos viram... Não é verdade, seu Salsa? Fui capaz de montar em osso uma égua brava. E chega! Não sou homem de circo. Se um dia for preciso outra vez, exp'rimento. Agora d'aposta, não.
Foi-se-lhe embora uma parte da fama com aquela recusa.
O velho amuou, a noite veio, e os três comeram em silêncio. Mas ele e a Mariana não pensavam no desafio que o maioral do padre Tobias fizera. O Ruço estava inquieto. O luar chegava-se; e ele acabou a sopa, foi buscar o chapéu cinzento com a flor murcha e disse boa noite, que já vinha.
Pela estrada fora, como seguisse o rasto das estrelas, a música da sua harmónica lá ia sem cuidados.
Ti João ainda perguntou para a amante: - Que bicho lhe mordeu? Há baile outra vez?
- O baile é outro. Parece que uma fraldiqueira lhe disse para ele aparecer na estrada.
O velho estremeceu com aquele tom de voz. Ele conhecia o cheiro de certas coisas da vida.
-E então?
- Então se ele agarrar alguma doença de mulher sempre quero ver quem é que o trata.
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-Tu não, com certeza. Mas olha que não lhe fica
mal...

Quando voltou vinha doente, mas não era do mal que a Mariana temia. Metera pela estrada adiante, quase até ao Porto Alto, fora o que ele lhe dissera, e não a encontrara, por mais que a buscasse e confundisse com as sombras das oliveiras das abertas. Por pouco não arranjara o trinta diabos; pois entrara numa tapada onde havia uma manada de toiros, e nem sinal da trigueirona. E vá de voltar às corridas, quando pensou que a estrada dela era capaz de ser outra. A culpa era do malandro do capataz - não deixara a conversa chegar ao fim.
"Ou teria ela sabido pla outra da cinta vermelha que ele a levara com os Arrenegas na manta listrada?"
Correu num desatino, meteu ainda à estrada do Camarão para a Terra Velha, mas já era tarde. Ele marcara a estrada do Porto Alto, para que a gente do rancho os não visse, e ela não se importava com isso, porque ser amásia de um tocador daqueles era coisa de estimação.
Estivera lá desde o sol-posto - para ela a noite começava a essa hora. E a noite para ele principiava só com o luar.
Por isso voltou doente ao barracão, convencido de que a trigueirona o enganara. A harmónica veio todo o caminho no seu bolso.
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O velho e a Mariana estavam à sua espera. Ele só disse boa noite e atirou-se sobre a tarimba, depois de deitar fora o malmequer já murcho.
O Mula Brava perguntou-lhe se precisava dalguma coisa. Ele fingiu que estava a dormir e pôs-se a ressonar. Mas não dormiu até às tantas.

CAPÍTULO VIII
Houve uma razão para que os Arrenegas não voltassem
Quando os galos cantavam de madrugada, já ele estava cá fora, a fumar o seu cigarro, encostado à porta da taberna. E ficava-se a olhar a estrada que cortava a Lezíria por aí além, sempre na mira de que o rancho lhe aparecesse. Todos passavam por ali e ele havia de a encontrar. "E se voltassem de noite?"
Dera-lhe para a melancolia aquele namoro frustrado com a trigueirona, que poderia ser a primeira aventura real da sua vida. Os outros amores não passavam de lembranças da adolescência, de pequenos toques na sua sensibilidade, que o seduziam ainda ou atormentavam, mas não eram aquela certeza plena de um contacto desejado e consentido, quando o amor passa da imaginação para o sangue.
As noites arrastavam-se dolorosas e turvas.
E surpreendia-se agora a escutar os ruídos do outro quarto, procurando perceber neles os movimentos da amante do Ti João - se ela tiraria a saia quando se
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deitava, se o velho ainda a quereria beijar ou se o rumor da água no alguidar de zinco não seria a Mariana a lavar o peito nu. "Como seria o peito duma mulher? A dureza que ele adivinhava era mesmo, mesmo, dos seios?"
Os pensamentos deixavam-no prostrado de ansiedade.
O Mula Brava, que se lhe dedicara pelo temperamento submisso (a vaidade pelo tocador viera depois) e ainda por reconhecer na sua humildade um sinal de que ele precisava de ternura, não entendia aquela reviravolta brusca - a hostilidade no olhar fugidio, o arremesso das conversas breves e sacudidas, o mover descontrolado dos braços, como se as palavras lhe ficassem agarradas e fosse preciso arrancá-las com violência.
O velho devia compreendê-lo e evitava perguntar-lhe a causa daquela mudança. "Não andava também assim a Mariana? Haveria alguma coisa entre eles?"
Cidro sabia que as ceifas tinham acabado, mas guardava a esperança de que o rancho pudesse ficar para as mondas do arroz. As searas estavam todas no chão; começara o trabalho nas eiras. A Lezíria era uma terra queimada.
Uma manhã, estava ele a ferrar um cavalo sob a vigilância do Mula Brava, quando reparou num grupo de mulheres paradas ao pé do tanque da fonte. Havia sacos pelo chão e bebiam à vez. Atentou melhor e pareceu-lhe - pareceu-lhe e ficou com a certeza - que aquela de lenço amarelo e blusa azul seria a trigueirona.
Largou a pata do animal e fez um sinal com o braço; a mulher respondeu-lhe.
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E antes que o campino e o velho se espantassem de o ver abalar, já Ruço de Má Pêlo galgava a distância.
- bom dia! disse com a voz alterada pelo cansaço. A mulher, era trigueira, tinha o mesmo talhe de corpo,
mas mostrara-se reservada perante a intimidade daquele sorriso.
- Vêm da Terra Velha, não?
- Não senhor, vimos dos Arcaus, respondeu ela. Quer alguma coisa?
(Se queria alguma coisa... Há perguntas que não se fazem, menina! Pois claro que sim; era, por acaso, algum doido? Gostava de ver a trigueirona, sim, aquela que se sentara nos fardos da palha, para lhe lembrar a noite de bailarico e a promessa de aparecer na estrada. "Andei lá, palavrinha d'honra. Quem teve culpa foi o malandro do capataz, que não deixou a conversa chegar ao apuro." Já não te recordas do que me disseste?)
- Sabe se o rancho da Terra Velha ainda lá está?
- Abalou há mais de três quinze dias, disse, a gracejar, uma velhorra que se chegara para o ouvir.
- E não andam por aí nalguma monda de arroz? -Não senhor. Foram prà terra... Voltou costas, envergonhado de que percebessem a sua perturbação.
- Se quer alguma coisa, a gente é das mesmas bandas. Hesitou em prosseguir a conversa. "Que lhes havia
de dizer?"
- Conheciam lá uma rapariga... (maldita gaguez!) sim, uma rapariga assim azadinha...
As mulheres trocaram olhares.

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- Como se chamava ela? perguntou a mais coscuvilheira.
- O nome não sei. Isso não sei. Mas era assim... assim trigueirona.
As mulheres riram-se a perder quando a velha respondeu: - Trigueiras são todas, homem de Deus. Botamos o mesmo pó de arroz nas trombas.
Ficou vexado com ganas de lhe responder numa asneira que o vingasse. Mas regressou com as gargalhadas delas a morderem-lhe o coração, pensando de novo que não podia ficar ali por muito tempo.
"Quando os Arrenegas me aparecerem para uma festa de baile, cão seja eu se voltar a estes barracos. Cão e danado de raiva!"

Amareleceram os salgueiros e os canaviais na anemia do Outono, abalaram os ranchos de ceifeiras das lavras de arroz, e no Ruço amainara a ânsia de abalar, agarrando-se ao pretexto da ausência dos três companheiros. O Outono parecia imobilizá-lo de astenia, ou talvez fosse a tristeza magoada do velho, que sabia o cheiro de todas as coisas, e já adivinhara, por certo, para que lado se talhava o seu caminho.
A verdade é que dos Arrenegas nem novas nem mandados.
Se ele conhecesse a mãe, havia de saber que a pobre pranteava aqueles doidivanas, sempre víageiros quando chegavam ranchos à Lezíria, e que um dia acabariam como o pai, deixado aos bichos na Charneca depois de
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esfaqueado. Pobre e resignada, que havia de fazer! Pois não havia ralhos nem queixumes, quanto mais as dores da consciência para os segurarem em Samora.
"São como os pássaros com o cio", dizia ela.
com raparigas dali, gente de vergonha, é que eles já não colhiam alguma que se parasse a ouvi-los, tantas andavam arrependidas de se enredarem na sua conversa. Não eram bonitos nem dados ao trabalho, embora fossem às praças com modos de arranjar patrão, mas tinham falas tais, e uma maneira de as dizer, que as cachopas se paravam com eles e apressavam-se em pô-los à porta, se não caíam logo em encontros à borda do Sorraia.
Começaram, então, a voltar-se para o mulherio dos ranchos. E vieram as longas ausências.
Apareciam pelas empestas, com jeitos de frades em penitência, taciturnos, quase bisonhos, a pretexto de pedirem jorna bem suada, e vá de deitarem o olho sabido a tudo o que fosse de saias. Depois juntavam-se à socapa, confessavam a escolha uns aos outros, e logo ali resolviam alguma coincidência de gosto. O mais velho puxava de um rapa talhado em madeira de freixo e bastavam dois ou três rodopios para a disputa se resolver a bem, que nisso eram cordatos. E assim que se paravam ao pé da caça, vá de fazer o cerco.
Dormiam e comiam por ali, toca cada um deles a virar-se para a sua afeição, não fossem perder tempo com as idas a casa. As raparigas achavam graça aos seus rodeios, àquela insistência amável, e punham-se a ouvi-los. E assim que os deixavam falar, fazer promessas e contar histórias de primos abastados, já elas não estavam seguras. Nunca estavam seguras, afinal. Porque se o namoro falhava
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durante a monda ou a ceifa, eles partiam pelo mesmo caminho, nem que fosse no cabo do mundo, para só regressarem quando conseguissem amodorrar o sangue queimado.
Mesmo que só um deles tivesse de porfiar, os outros acompanhavam-no, como se seguissem um jogo apaixonado. Voltavam com o Inverno, quando a fome apertava, como se fossem três lobos. Às vezes de orelha murcha, mas sempre de bazófia pronta, porque no seu contar pelas tabernas nunca mulher alguma lhes fugia à ratoeira.
Por isso mesmo, eles nunca mais tinham procurado o grande compincha tocador de harmónica. Lá iam por essas terras da Beira até que o frio lhes arranhasse a espinha. E desta vez mais desvairados ainda, porque naquele vício de jogo novo, e como nenhum tivesse conseguido a cachopa que escolhera, tinham estabelecido um prémio para o primeiro que cantasse de galo - os outros dois teriam de lhe comprar umas botas amarelas (de pelica, sim senhor), das que abotoavam ao lado e tinham bico comprido como as cegonhas.
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OS GRITOS SILENCIOSOS
O ENCONTRO com FREDERICO
"Foi bom que viesses para aqui", disse-me Garcia, o guerrilheiro espanhol, quando me encontrou a passear na sala depois da leitura diária que fazia com Alcides. "Sim, foi bom para nós e para ele. Antes de tu vires, todos julgávamos que o teu patrício era um provocador ao serviço da polícia. Ameaçava toda a gente, por qualquer coisa aí punha ele a trabalhar a sua espingarda-metràlhadora... Alguns não se continham e as discussões saltavam. Depois os guardas apareciam com o barulho, o teu patrício ficava sempre e o que discutisse com ele era castigado. Castigado se não era político. Porque esses era raro voltarem, depois de terem ido à secretaria."
"Eu não tenho confiança nele", respondi. "Pela sua liberdade seria capaz de fuzilar toda a sala, se o mandassem."
"Agora talvez não. Enquanto tu aqui estiveres, não acredito. Pode ainda ameaçar os judeus, como tens visto, mas já não é a mesma coisa. Antes metia medo..."
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Alcides aproximou-se - percebera que falávamos dele. Eu disse qualquer coisa para disfarçar; Garcia frustrou-me o propósito, dirigindo-se ao meu patrício: "Estava a contar o que tu eras ... Ninguém podia contigo. Porque é que provocavas toda a gente?"
"Vocês não gostavam de mim. Nunca tive um amigo aqui dentro ... Nunca! De ti gostei sempre, embora não goste de espanhóis. Tu és valente."
Falava para o outro com entusiasmo. Mas só percebi até onde chegava a sua admiração por Garcia quando houve uma cena violenta com este e o novo director. Depois da saída do guerrilheiro, Alcides esteve uns dias sem me falar da história das suas alcunhas.
Mal tocava a alvorada, erguíamos os bailiques que à noite atravancavam a sala, prendendo-os com ganchos de ferro à parede. Ninguém podia ficar deitado, mesmo que estivesse doente. O médico chegava às onze horas e resolvia dar baixa aos que precisassem de ingressar na enfermaria, onde só entravam os prisioneiros do mercado negro. Os políticos e os judeus tinham os pelotões para os tratarem; não havia tempo a perder com eles.
Naquela manhã levantámos os bailiques, fomos aos lavabos e daí a pouco éramos avisados da entrada de um novo director. Vinha passar revista às salas; seria conveniente apresentarmo-nos o melhor possível, lembrou o chefe dos guardas.
O director não demorou.
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Era um homem franzino, de lunetas grossas, bigode loiro e pequeno; nervoso, embora a voz pachorrenta quisesse significar calma. Os olhos inquietos denunciavam-no logo.
Estávamos formados por ordem alfabética, em duas filas que guardavam um passo largo de distância. A manhã fria (começara a nevar) obrigava-nos a encolher os ombros, o que lhe desagradou. Deu um grito mal entrou a porta, os guardas correram a mandar-nos erguer bem a cabeça e ele media-nos com um olhar frio, embora as retinas parecessem correr nas órbitas.
Pedia a ficha de cada preso ao funcionário gordo, que lha dava na ponta dos dedos, em requintes de gentileza servil.
"Temos de fazer umas transferências-", disse para o secretário da cadeia.
Estremecemos. Eu estremeci, e penso que aos outros sucedeu o mesmo.
Perguntava os nomes, conferia-os na ficha, fazia anotações nalgumas e começou a reter umas tantas na sua mão. A primeira foi a de um judeu que ficava junto de mim. Era romeno e passava os dias a torturar-se, e a torturar-nos, preparando ementas requintadas que metiam três pratos, vinhos caros, queijos, doce e fruta. Era a sua primeira distracção da manhã. Fazia logo as listas do almoço e do jantar, que declamava depois, em voz alta, aos vários grupos espalhados pela sala.
Naquela manhã estava lívido, quando o novo director o interrogava e lhe perguntou, com um sorriso, se queria ir fazer uma excursão ao seu país. "Não, não quero", réspondeu
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aturdido, adivinhando o que o esperava. "Eu já não sou romeno. Agora sou francês", disse ainda.
"Não, francês não. És judeu.1", retorquiu o director, passando à frente e guardando a sua ficha na mão.
O meu interrogatório foi breve. Eu só estava preocupado com o movimento da minha ficha, que demorou em seu poder, batendo-me com ela no ombro e fitando-me bem nos olhos. Percebi que não me devia acabrunhar à sua frente e aceitei-lhe a devassa. "Nós fazemos sempre justiça", foi o que disse à minha resposta. "Só lamentamos que não nos queiras ajudar a fazê-la. Sabes o que quero dizer... És muito reservado, e isso é um defeito."
Mas acabou por entregar a ficha ao secretário depois de lhe fazer uma anotação. "Seria o NN?", pensei. Por agora estava salvo. Ali vivíamos o dia a dia, sem sabermos até quando.
Foi assim pelas filas adiante, sempre na mesma voz calma, que só o olhar traía. Mas ao chegar junto de Garcia, o guerrilheiro, a sua ira acendeu-se quando o outro lhe disse que se recusava a identificar-se e que se o tratasse por tu teria de usar a mesma forma para com ele. Esquecia-me de dizer que trazia um vergalho preso ao pulso. E foi com ele que bateu no rosto de Garcia.
"Tu sabes bem o meu nome e que estou condenado à morte. Sabes também que não tenho medo da morte. E de cobardes como tu ainda menos."
Falava em espanhol, de cabeça levantada. Os guardas correram a rodeá-lo e a fila desfez-se por momentos. Garcia não se calou: "Sabes bem que os teus patrões nazis não podem ganhar esta guerra. Sabes isso tão bem como eu.
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Por muitos homens que fuzilem. Cada homem que assassinam são dez que se levantam contra vocês."
O novo director perdera a calma aparente e gritava, batia-lhe, percebia-se que o queria derrubar à nossa frente para exemplo. Como se juntasse no seu corpo débil a força de todos os prisioneiros, Garcia mantinha-se firme por um milagre. Nunca se acanalhou.
Então arrastaram-no e ele começou a cantar, afastando de si os guardas, recebendo no rosto, sem um gesto de defesa, os golpes do vergalho do novo director.
A revista acabou. A voz de Garcia afastava-se e era cada vez mais poderosa. Tão poderosa que o seu eco ficou na sala, repetida por todos os "políticos" seus companheiros.
Junto à porta, na primeira fila, Alcides cantava também. Foi a única vez que ele esteve ao nosso lado dentro da cadeia.

CAPÍTULO IX
O cavalo branco
O Inverno deitou por aí dentro, áspero e cerrado de chuvas.
Nos carris da Lezíria, empapados de lama, só se passava a cavalo. Os gados andavam pressentidos, como se temporais maiores estivessem para chegar. E já um aziela entrara pelo Vau, rompendo os valados, num prenúncio de desgraça maior. Desde aí até à Ponta de Erva, no Campo de Azambuja e por toda a Borda-d'Água ficou a angústia a crescer com as águas do Tejo.
As notícias de Espanha davam enxurradas das serras, os ribeiros tornavam-se indomáveis e a toda a hora se esperavam ordens de retirar os gados para a Charneca. Nas empostas só ficavam aqueles que tinham a tarefa de nunca abalar, mesmo quando a cheia rompesse.
Os valadores é que chegavam, vestidos de oleado, com a sua pá maneirinha para defrontar a ameaça.
A taberna do Mula Brava era agora o refúgio nocturno dos guardadores receosos e dos homens da valagem. Bebia-se mais do que o costumado, como se todos quisessem
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esquecer alguma coisa que os atormentava. Havia mais silêncio do que conversa. E logo que falavam, os homens arrenegavam-se em disputas, como se fossem inimigos.
Ruço de Má Pêlo andava espantado naquele ambiente soturno.
Um vento de má catadura parecia capaz de arrastar a Lezíria. A lanterna de petróleo balouçava na trave da barraca e fazia bailar as sombras dos homens que vinham ali acolher-se.
- O que lhe parece, maioral? perguntou um valador. - Que o cavalo branco vai fazer das suas. E não tardam muitos dias.
- Que cavalo? interrogou Ruço de Má Pêlo.
- Ele não sabe, disse o ferrador.
- No meu tempo contava-se que a cheia era um cavalo branco, respondeu o Salsa, puxando o alforje para a sua beira. - Este chão que pisamos, ao que parece, não era terra para os homens. Tudo isto até Salvaterra pertencia ao Tejo. Ele só vinha aqui descansar as bravezas do mar alto.
- É mesmo, assentiu o Mula Brava. - É assim como dizes. Aquelas salinas que estão no meio da Lezíria são ainda a voz do mar... A gente é que teima.
- Até um dia, disse o maioral. - Só quem apanhou um Inverno sozinho, numa emposta, com o vento a meter as esporas na água, e viu as ondas a quererem engolir tudo, é que pode saber que isto é verdade. Eu cá pra mim, acho que o cavalo branco é o mar que subiu ao céu para meter a gente no meio das águas. Já repararam nas nuvens desta noite?
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O Ruço e mais dois homens acompanharam-no até à porta da taberna e seguiram a sua mão trémula apontada para o alto.
- Parecem ou não crinas de cavalo? São crinas feitas de tempestade. Vem de Espanha ou do Inferno, cego pela fúria da carreira e espicaçado pelo lume dos raios que se lhe fincam na garupa. Não ouvem?
- É o vento, disse o Ruço.
- É o que te parece. É ele, o cavalo branco, a nitrir, com ganas de quebrar as nuvens e abri-las mais para que se rompam sobre a gente.
- Mas os cavalos, quando fogem, é de medo, interveio um maioral de suíças grisalhas.
- Este não é um cavalo como os nossos, Felício. Este é um cavalo maldito, que morde no céu, atirando-lhe com as patas para o rasgar. Só quem já passou uma cheia grande aqui, na Lezíria, com a morte nos olhos, e os camaradas a morrerem à sua volta, e desta terra toda só haver o coruto das poisadas e dos palheiros, e só mar e mar, desde a outra margem do Tejo até ao cabo do mundo, é que pode perceber que esta terra não é da gente.
- Minha não é ela, respondeu um valador.
- Pois brinca, meu rapaz, que ainda te vais lembrar destas palavras do velho Salsa, disse aproximando-se do outro com o rosto apavorado. - Uma noite qualquer, há-de ser uma noite, o cavalo branco vai tomar conta de tudo e para sempre. Aos homens que cá estiverem não há milagre capaz de lhes valer. O cavalo mata-os a todos e leva-os num esquife de água até ao mar.
- Porque não abala vossemecê? retorquiu o outro.
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- Cada um traz a sua sina e a minha é esta. Comer um pão pago pela morte...
Ruço de Má Pêlo sentia-se transtornado por aquela ameaça, mas pusera-se do lado do campino.
- Mais duro é o nosso, maioral, que aguentamos as cheias, a pé firme, em riba dos valados. Quantos camaradas meus já morreram aqui?
- Estás a dar-me razão. Pra que se metem vocês nessas andanças? O cavalo branco tem mais força...
- Até agora não a teve. A gente amansa-o... Amansa-o com esta pàzita, que parece uma brincadeira de rapazes. Isso do cavalo branco é uma história...
- Uma história que os antigos sabem ser verdadeira. Uma noite, sou eu que to digo, ficará tudo raso pla água da morte.
Levantou-se, puxando o alforje para cima do ombro, e atravessou a taberna para soltar a égua. Cidro seguiu-o até à porta, aterrorizado, e viu-o galgar para riba da sela, metendo a passo pelas trevas dentro.

CAPÍTULO X
A Primavera chegou de noite
Passo a passo, Mariana sentia caminhar para o seu corpo uma doce ternura empolgante, às vezes dolorosa, que vinha dos lados do Tejo com o perfume dos montes do norte e das flores bravias dos valados. Do silêncio da Lezíria cresciam alvoradas, como se no seu sangue houvesse pólen.
Toda ela se abria às solicitações dessa ressurreição lenta que espargia à sua volta - na doçura do ar, no cheiro da terra, na maliciosa euforia do sol brincão. Começara a levantar-se de madrugada (onde vais tu a esta hora? perguntava o velho) para abrir os braços e o rosto à brisa que chegava sorrateira com o alvor, cavalgando a luz do nascente.
O longo desespero do Inverno parecia-lhe agora salutar. Os seus olhos agarravam outras cores, formas novas, menos ásperas, e uma carícia de claridades no tom ainda impreciso das terras semeadas. Havia lá em baixo um pedaço de verde, de um verde tão imaginoso que lhe apetecia correr até aí para se deitar sobre ele, enchendo-se da
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sua cor e da frescura que nem as águas do rio lhe sugeriam tanto.
Voltara a cuidar de si, mas abandonara o caminhar precioso que lhe fazia mover as ancas em passos obscenos. Tudo nela se tornara mais espontâneo e simples, talvez porque tinha agora a certeza de partir. Regressaria à sua aldeia; quando, não interessava, mas sabia que sim, e isso era bom só de pensar. Ou ficaria no caminho, como lhe acontecera no encontro com o Mula Brava? com um velho tinha a certeza que não. Ah, isso não, nunca mais! Antes as soalheiras do campo, e as maleitas, e as fomes dolorosas, e tudo o que de amargo possa haver na vida, do que a morte prematura do seu ardor.
O velho pressentia que surgira nela alguma coisa de diferente. Sabia-o de certeza, mas evitava pensar nisso até ao cabo, preferindo iludir-se.

Houvera reboliço na praça de enjaulação de toiros para Espanha e os dois homens conversavam à sombra do caramanchão, ainda excitados com a fuga de um bicho de poder, negro maltinto, que levara na ponta das agulhas dos cornos o portão do pátio.
-Como é que aquele bruto sabia que só por ali podia abalar? perguntou o Ruço, esfregando a cabeleira ruiva.
- Bruto é um modo de dizer... Bruto de força. Porque de memória, um toiro pede meças a muito homem. E até de inteligência, eu sei lá.
- OhTi João!...
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O velho bateu com o cachimbo na borda da mesa e começou a enchê-lo de tabaco novo.
- Que sabes tu de gado bravo, Ruço de Má Pêlo? Tens muito que aprender... Estava aqui uma semana a contar-te histórias de vacas e de toiros. Há coisas que parecem mentira. Os bichos só não falam como a gente, mas entendem-se bem. Ainda não ouviste falar de toiros que saltam os moirões das pastagens, de noite, e vão por esse campo fora à procura dos seus amores? E então?!... É como se fossem homens. Nunca se enganam no caminho. Parece que sabem ver as horas nas estrelas ou no vento, e lá abalam, muito à chucha calada, salta por ali, esconde-se acolá, até que encontram a namorada. Às vezes é uma qualquer a que calha; mas noutras conhecem-na bem e não querem outra.
Ruço de Má Pêlo ouvia deslumbrado e estendera-se sobre o banco.
- E antes que chegue a manhã, lá voltam eles pelo mesmo caminho, de maneira que os maiorais não dêem pla marosca. Quem os ensina? E se isto não é inteligência, como é que se lhe há-de chamar?
Mariana aproximara-se, inquieta, mas o Mula Brava não atentara ainda na sua expressão. Só quando voltou a bater com o cachimbo na borda da mesa é que o velho lhe percebeu o vulto.
- 'stá aí um recado, disse Mariana de voz frouxa.
- Um recado? E então que tem isso?
- É do teu filho... Diz que é por mor do teu filho.
- Já sabes qual é a minha resposta: eu cá faço a minha vida e ele que faça a sua.
- Pois é, mas ele já não...
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- Já não o quê? gritou o velho.
- Já não tem que te dizer, respondeu a mulher num arremesso brusco.
Mula Brava tornou-se mais lívido com o pensamento que lhe ocorreu. Quis falar, mas viu um empregado do filho à porta da taberna e avançou para ele, seguido pelo Ruço.
- Que sucedeu? perguntou inquieto, sacudindo o homem pelo braço.
O outro arregalou os olhos vidrados e respondeu com esforço: - Foi de repente, Sr. João. Acho que só teve tempo de falar de si...
- Tu queres dizer... Ah não, não, isso não pode ser. Então eu que sou um velho, eu que já estou podre para aqui, hei-de viver ainda... Não, tem paciência, isso não pode ser. Porque se fosse verdade, Deus, ou quem manda nisto, andava cego. E não podemos todos andar sujeitos a uma cegueira tão cega...
As palavras doíam-lhe e agitavam-no. Andava de um lado para o outro, em gestos que pareceriam ridículos a quem o visse de longe, mas as lágrimas corriam-lhe na face defeituosa e as mãos moviam-se, como se perseguissem no espaço alguém que lhe fizera mal.
O Ruço procurou aquietá-lo num abraço.
- Vês como somos piores do que os brutos? Vês?!... Vai pra dois anos que não lhe falava. Ele queria meter-se na minha vida, mas era por bem. Eu é que não me queria conformar que já tinha acabado. A gente custa a conformar-se com certas verdades... Mesmo que o corpo diga que não, a cabeça teima.
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Depois, num repente, tornou-se apressado, como se pudesse evitar alguma coisa do que já sucedera. Correu para a barraca, vestiu a samarra e abalou para o Cais, sem olhar ninguém. Cidro seguia-o e percebia-lhe, pelos ombros, que chorava.
O barco de passagem estava prestes a partir.

As horas começaram a doer-lhe na ansiedade.
com a oficina e a taberna fechadas em sinal de nojo, caiu o luto na sua harmónica, pois essa bem podia acompanhá-lo na prisão tomada à conta do velho. E logo num dia tão soalheiro, tão bom, para todas as fantasias que a gana lhe desse!
A cana de pesca acenava-lhe um passeio até à aberta do Mar de Cães (pois não, brincas, que o peixe é o menos; o melhor é o que se leva na borracha); e podia também aproveitar a volta para saber dos Arrenegas, nas empostas mais ensejadas, que um bailarico vinha em boa maré, pois um homem não é de pau, caramba!
Fez-se matreiro para perceber o que pensava a Mariana. Se a visse acomodada, talvez ainda se resolvesse a uma passeata, mesmo curta, até ao Camarão. Ficara-lhe naquela estrada qualquer coisa que lhe doía e o acalentava.
- Se vossemecê não achasse mal... ia-me por aí abaixo, disse para a ouvir.
Estavam os dois nas traseiras da barraca, como se quisessem fugir à escuridão dos aposentos. Ela sentara-se num caixote, a migar um resto de talos de couve,
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enquanto ele se entretinha a oferecer aos pombos uns bagos de milho.
- E se aparecesse por aí alguém? O velho não te disse que tomasses conta de mim? respondeu Mariana num sorriso de troça; mas a voz traía-a, porque era mais grave e profunda.
Ele entrou no jogo. Meteu os dedos nas cavas do colete e pôs-se a passear defronte da mulher.
- Era o que faltava. E depois não era num dia destes que vossemecê ia abalar.
Ela retorquiu, sem erguer a cabeça: - Que sabes tu disso? -Mas logo emendou essa dúvida sugerida:-Agora vai ser pior para mim. Tens razão. Não é hoje, nem tão cedo... Agora sem o filho que será dele? Trocou toda a gente por mim. E isso faz-me raiva, porque me custa deixá-lo. Às vezes ferra-se-me a ideia de que o velho arranjou as coisas de propósito.
- Ele gosta de si.
- E isso de que me serve? Põe um bago de trigo em riba duma folha de zinco e nunca mais acharás que colher. Ele é a folha de zinco.
- Ainda pensa num filho? disse o Ruço aproximando-se.
- Agora já não. Mas penso em mim. Ainda penso em mim e cada vez será pior. Tu ainda não és capaz de perceber.
- Sou novo, não é? - A voz dele era de despeito amargo.
- Não será bem assim. Mas há coisas que tu não percebes. Se eu te contasse...
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Reteve-se ainda em dizer até ao fim o que lhe ocorrera revelar ao rapaz, como se quisesse comprometê-lo nos seus segredos.
Foi ele que insistiu: - Se me contasse o quê?
- Que enganei o velho.
- E quem foi?
- Não interessa o nome. Os nomes não interessam... Homens! Homens ao resto.
- E o Ti João desconfiou?...
- Ele 'stá sempre desconfiado, mesmo que eu nada faça. Hoje, depois de chorar o filho, vai pensar que durmo contigo. Essa nunca mais lhe sairá da cabeça.
Ruço de Má Pêlo sentiu-se embaraçado e voltou para junto do pombal. Percebeu que Mariana se levantara do caixote; o coração batia-lhe em punhadas. Ouviu-lhe os
passos na terra seca e desejou que ela se aproximasse. Mas seguiu-se um silêncio.
- Sr.a Mariana! chamou, com receio de que ela o escutasse.
Voltou-se preocupado e não a viu. Pensou em entrar, hesitou e achou-se triste por ela não ter vindo junto dele. Então resolveu afastar-se, ir pelo valado abaixo, para as bandas donde muito raro aparecia gente, e só regressar tarde, bem tarde, quando ela estivesse deitada.
Foi a assobiar baixinho, querendo esmagar aquela dor que o acompanhava.
Mariana voltara à porta e tinha desejos de lhe gritar que viesse depressa. Entrara para a barraca, sem perceber se envergonhada de puxar a conversa sobre o velho, se convencida de que o rapaz a seguiria lá para dentro. Esperara
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na escuridão com a mesma ânsia que ele sentira e depois ficara atormentada, correndo para o terreiro à sua procura.

Ele regressou à noite, já o luar se espojava no Tejo, e Mariana deu-se a destemperas de ralhadeira: "Estava muito enganado, pois não era sua criada para ficar à espera com a ceia. Fosse abancar por onde andara; ali não era poiso de galdérios."
- Agora é que vossemecê deu uma balda certa, respondera-lhe o Ruço, sem atinar ainda se lhe devia voltar o troco na mesma moeda, se levá-la às boas com uma piscadela de olho e um dito malandro, daqueles que aprendera na loja do Lobato e só agora se sentia capaz de reproduzir. Havia ainda, porém, qualquer mistério que o inibia de se exprimir naquele jeito.
Acabou por entrar na galhofa, indo até ao espelho para compor a marrafa que passara a usar, e era o seu luxo, desde a noite do baile na Terra Velha.
- Se a soubesse capaz de me cantar tão bonita cantiga, tinha vindo mais cedo e a correr. Palavrinha! - E a última palavra foi gaguejada, tão partida em pedacinhos que mais parecia arrancada dos calcanhares.
- Vê lá se te cai algum dente...
Ele mirava-a pelo espelho e pensava que daí a pouco era preciso fechar a porta das traseiras e deitarem-se perto um do outro, só com o tabique de madeira a separá-los.
- A vossemecê vão cair-lhe os dentes todos, se continua zangada. Assim faz-se velha...
- E tu fazes-te de mama. Vê lá o que é pior.
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Ele olhava-a pelo espelho e começou a perceber que o azedume das palavras de Mariana não lhe chegava ao rosto. E que na boca e nos olhos nascia, e depois brincava, crescia, e logo a tocava por inteiro, uma ternura que o embaraçava. E o seduzia. E lhe apertava o coração e o amaciava depois, assim como um pássaro que quisesse saltar para o poleiro daqueles seios agressivos, a espreitarem-no da blusa.
O velho tinha razão - todas as coisas cheiram. E o amor cheira mais do que as rosas e mais do que o estrume. Sentiu o ar adensar-se - moveu um braço e teve a sensação de que o levava com esforço até à cabeça.
A Primavera estava a chegar até ele, embora já andasse nos campos e no rio.
- Não tenho vontade de comer, disse para terminar aquele silêncio de mau conselho.
- Alguém to deu.
- Alguém mo deu, tem razão. Comi sombra de eucalipto e de salgueiro. É melhor que sopa de massa.
Aquela intimidade era uma árvore cheia de frutos que ele podia colher.
As suas vozes encontravam-se e cingiam-se no ar, pareciam chocar-se, mas agarravam-se, e iam deitar-se a um canto - naquele canto onde ele dormia sozinho desde que ali chegara, não sabia bem há quanto tempo.
Lembrou-se novamente do velho e arrependeu-se daquele jogo.
- vou até lá fora...
Percebera que se se voltasse teria de caminhar até ela e agarrar-lhe na cabeça e dizer-lhe na boca que à noite, mesmo numa noite de tempestade, se pode dizer bom dia
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a uma mulher. E aquela noite estava doce, e morna, e o luar andava a espojar-se no Tejo.
Deu dois passos até à porta e precisou de fazer força com os ombros.
- Tenho medo de ficar sozinha, disse Mariana naquela voz velada e macia, feita para a intimidade.
-Eu estou aqui perto, respondeu o Ruço, com a brisa do Tejo a refrescar-lhe a ansiedade. - Pode deitar-se...
Ele percebeu que ela se levantava e hesitava também. A tarimba ficava do outro lado do tabique, mas a porta continuava aberta e para além dela estava a noite sentada, esperando que lhe dessem os bons-dias.
Ruço de Má Pêlo foi até ao valado. Custou-lhe, mas foi até lá. Sentiu que uns passos tocavam a pele do silêncio e ainda disse "vá deitar-se, mulher". Mas disse-o tão baixinho que ninguém o ouviu.
E foi obrigado a voltar-se. Não porque tivesse medo, ele agora não tinha medo, nada lhe fazia medo. Foi obrigado a voltar-se para agarrar a Primavera de braços abertos, não fosse ela cair, e deitá-la depois numa dobra de luar que se escapara por entre a rama de um salgueiro.
E foi simples e natural, embora lhe doesse o peito com as lembranças do velho.
Simples e natural como o ninho mágico que o rouxinol fizera ali perto para se guardar das tempestades.

CAPÍTULO XI
A alcunha que se não repetiu
Ela pensou no seu assobio e confessou-lhe que ele lhe lembrava um rouxinol.
Mas depois riu-se com uma ideia que teve. Riu-se baixinho no seu peito, não fosse alguém ouvi-la do rio ou do lado dos aposentos, porque deviam guardar respeito pelo luto do velho.
- Pensei agora que tu és um rouxinol...
- Já tinhas dito isso, respondeu o rapaz com uma flor de luar na orelha.
- Mas lembrei-me do teu cabelo e pensei num rouxinol vermelho. Achas que pode haver rouxinóis dessa cor?...
Ele não lhe respondeu, embora não achasse disparatada a comparação. Até gostou. E voltou-se de frente para o Tejo, tendo o cuidado de guardar nas mãos inquietas a cabeça de Mariana. E achou que o mundo estava ali entre os seus dedos.

BUGALHO
CAPÍTULO I
O ciúme também cheira
Ela dera-lhe aquele nome na noite em que o Mula Brava voltou, um tanto espantado, como se procurasse adivinhar o sítio em que eles se tinham pertencido.
O velho entrou, disse boa noite e abalou pela barraca dentro, incapaz de os defrontar, porque só lhe apetecia ir buscar um chicote e pô-los na rua. Foi então que Mariana lhe sussurrou: meu bugalhito duma figa! E sorriu-lhe, e agarrou-lhe na mão, à descarada, como se quisesse que o velho os descobrisse em intimidades. No lado esquerdo da face lá estava a covinha marota, talvez de felicidade, ou talvez de vingança pelos anos ali perdidos sem amor.
O Ruço pensou que ela lhe dava aquele nome por ele ser meão e novato. E isso desesperou-o.
Lá de dentro o velho gritou: são horas de ir à deita.
Ela atirou-lhe um beijo, voltou a agarrar-lhe na mão e partiu à sua frente, bamboleando as ancas, como nos tempos em que os homens vinham à taberna para a devorarem com os olhos. Fazia alarde do seu encontro no valado; gozava-o até com uma exuberância incompreensível, atrevida,
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sem receio. E aquilo magoava-o, porque Cidro guardava pelo velho uma afeição que ainda não pudera dar a mais ninguém.
Quando eles se deitaram, apagou a luz da taberna e foi descalço até à sua tarimba, convencido de que já estavam a dormir. Mas o velho falava. Falava baixo, mas parecia ter receio de se calar, talvez para que Mariana não lhe confirmasse o que ele pensava.
De vez em quando ela dizia em voz alta: deixa-me dormir, João, não sejas aborrecido.
E a voz do velho continuava a roer o silêncio, como o bicho da madeira a trabalhar por cima da sua cabeça. Toda a noite. Numa noite sem fim.
Lá fora o mundo devia ter morrido, porque não chegava um sinal que o lembrasse. Estavam os três a viver entre si, sozinhos, naquela nava de solidão, as culpas e as ansiedades duma vida inteira.
Ele saiu primeiro do barracão, foi até ao pombal e abriu-lhe a porta. E os pombos envolveram-no, voaram sobre a sua cabeça arruivada, pousaram-lhe nos ombros, debicaram-lhe as mãos, e andaram a gozar a liberdade e o prazer do seu assobio de rouxinol vermelho. "Porque havia a Mariana de lhe pôr aquele nome feio? Sim, Bugalhito era feio!"
O Mula Brava apareceu já tarde; vinha pálido e o rosto parara-lhe numa expressão tensa, agarrando-lhe com vigor o defeito do queixo e o brilho angustiado dos olhitos azuis quase sem luz.
- Vamos abrir a loja?
- O senhor é que manda...
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- Porque me tratas por senhor? Já não sou teu amigo?...
- É, sim, Ti João. Acho que sim.
- Houve alguma novidade na minha ausência? disse o velho voltando-se rapidamente para o rapaz, como se pudesse descobrir-lhe as marcas da sua dúvida.
Ele nada respondeu.
- Não ouviste o que te perguntei?
- Que novidade podia haver?
- Veio alguém? Esteve aqui alguém com ela?
- Não senhor. - E dessa vez olhou o velho com firmeza. - Não veio aqui ninguém.
Mula Brava foi até à oficina, andou por ali a mexer na ferramenta de um lado para o outro, talvez para esquecer, mas conhecia demasiado o cheiro de certas coisas. Movia-se e o ar estalava - parecia que o ar estalava como vidro. Depois aproximou-se do barracão, evitando o ruído dos passos, e viu Mariana naquele seu jeito dos primeiros tempos - o braço agarrado à ombreira da porta, metade do corpo à vista e a outra parte enfiada para o quarto do Ruço de Má Pêlo. E falava baixo; não podia ouvir o que ela dizia. Mas eram por força as mesmas palavras usadas para ele, noutro tempo: "Era tão bom se nos pudéssemos deitar..."
Quando o pressentiu, falou alto, falou demasiado alto, para ele não desconfiar, ou talvez para que soubesse tudo. E devia dizer adeus ao Ruço com a mão que tinha para lá da ombreira; e devia tirar-lhe a língua de fora, num mimalho que ele gostava de lhe ver. Depois voltou-se e caminhou na sua direcção. Vinha com um sorriso.
- De que te ris?
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- Mas eu não me estou a rir.
Ela falava com sinceridade, porque não tinha um espelho à sua frente.
- Pois vinhas a rir-te. Julgas que não tenho olhos para ver? O Ruço é engraçado, não é? Muito engraçado!... Gosta é pouco de trabalhar. Hei-de pô-lo aqui dentro ao pé de ti.
A voz era áspera. Um acesso de tosse cravou-se-lhe no peito e ele exagerou-o.
Bugalhito apareceu e esgueirou-se para as traseiras.
O velho reparou nas cortinas fechadas e foi abri-las. Quis abri-las e arrancou-as.
- Um tempo destes e a gente aqui metida como numa cadeia. Ou há aqui alguma coisa para esconder?
- É por causa do sol, respondeu Mariana com arrogância. - Andas sempre a dizer que o sol te faz mal aos olhos...
- Mas agora vejo de mais. Já vejo tudo de mais.
- Queres que me vá embora? perguntou-lhe Mariana numa atitude de desafronta. - Parece que estás a mandar-me embora.
O velho estremeceu, negou com a cabeça e depois disse numa voz apagada: - Não, não te vás... Sabes bem que me fazes falta. - Quis segurar-lhe a mão, ela tentou retê-la também, mas não foi capaz.
- Dizes coisas que doem às pessoas. Julgas que os outros não se magoam?
Mula Brava sentiu-se perturbado e gostava de acreditar no que ela dizia. E acreditou por momentos.
- Venho ainda com a morte dele dentro de mim... Desculpa. Sempre era meu filho. A gente dava-se mal, mas
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era meu filho. Quando estive ao pé dele no caixão, só o via pequenito a meter-se pela oficina dentro e a querer ajudar-me. Era muito trapalhão. Só eu o entendia. Bó era um boi; bá era uma égua ou um cavalo. Se soubesses como ele gostava d'ir à oficina! Agarrava num martelo e imaginava-se a ferrar os animais. E ria-se e falava naquela língua de trapos, só compreendida pelos dois. Percebes agora, Mariana?
Ela estava comovida e foi agarrar-lhe na mão que há pouco recusara. Quis esquecer quem estava lá fora; pensou ainda em confessar tudo, pedindo talvez ao velho que mandasse o Ruço embora. Naquele momento isso parecia bastar-lhe.
E chorou de mansinho. Mariana chorou tão de mansinho como ele nunca a vira. E o velho acariciou-lhe os cabelos, percebeu que eles estavam arranjados como nos outros tempos, e esse sinal doeu-lhe, mas continuou a afagá-la - talvez pudesse afagar-lhe o pescoço e apertar-lho; e apertar-lho tanto, tanto, que ela deixasse de chorar. E deixasse de rir. E deixasse de amar. E nunca mais se pusesse naquele jeito de segurar a ombreira da porta, voltada para outro homem, a falar-lhe baixinho.

CAPÍTULO II
Diálogo com o desespero
Nunca mais os deixara. Perseguia-os por toda a parte, agarrando-se a ela, passo a passo. Faltavam-lhe os olhos, mas sabia ler no silêncio dos outros. E já insinuara a Mariana o que pensava deles.
Só se detinha quando ela o ameaçava de partir, e então sorria-lhe, brincava, como se as suas palavras fossem um jogo para se enterterem.
Mandou fechar a taberna numa noite ("não, não atendemos ninguém"), pôs ele mesmo o candeeiro de petróleo em cima da mesa e quis cear ali com os dois à sua beira.
- Não andes fora e dentro, Mariana. Assim cansas-te... E eu quero que te poupes. Tens ainda muito para viver. Traz para aqui a panela; a gente serve-se. Não te parece, Ruço de Má Pêlo?
Uma manada passou lá fora a chocalhar, acompanhada pelos "óis" dos campinos.
- Pois é verdade, disse numa voz magoada que chorava no ar. E falou sem conta, como se tivesse golpeado as
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veias e se esvaísse à frente dos dois. Os olhos ganharam uma expressão que o rapaz nunca lhe vira.
"Há uma coisa que a vida me deu, ou que eu dei à vida, e que ninguém me pode tirar. Vocês nem sabem o que é. Talvez a ti te pareça esquisito (e apontou para o rapaz) que eu te fale nisto, agora que sou um cangalho velho, uma sombra.
"Hum?!... Não pareço? Eu sei que pareço. Pois dei à vida e tirei dela certas coisas que os borregos como tu nunca saberão tirar. A vida é uma música que não se toca como a gaita de beiços. O ouvido não chega. É música que está em toda a parte e também no corpo das mulheres. Uma das mais bonitas, por sinal, está no corpo das mulheres. A espera de toiros é uma festa de valentes... E uma toirada? Sim, uma toirada em dia de sol. Quando o cavaleiro mete a farpa e do cachaço do toiro até à sua mão fica um arraial de bandeiras. E um bailarico?
"Pois tudo isso não chega; não, não chega, para compensar o amor duma rapariga. E ainda mais quando a gente lhe mexe e ela é ainda uma flor morta, porque os outros não souberam tocar-lhe. Parece-me que já te disse que as mulheres magras é a gente que as faz. Mas nem todos são capazes. É preciso ter-se no sangue uma mistura das coisas mais doces e mais ásperas da vida. Já viste bem um Outono aqui no Tejo? Aquelas cores que se doem... Já percebi que vocês não sabem que as cores também se doem. Pois é, nem todos percebem.
"E o pior para esses é que nunca serão capazes de meter no sangue o que não lhes vem da raiz. Perceber quando... Sim, é muito simples e muito complicado. Perceber quando no mesmo instante se olha uma mulher, se lhe
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diz bom dia, e se percebe que é só estender a mão. Ou nem a mão é preciso mexer para que ela caminhe até à gente. E as que levam meses, uma vida até? Saber esperar... não ter pressa, e procurar, procurar sempre, a tal música que foge e que já está no nosso sangue, mas que ainda não chegou ao sangue dela...
"E sabermos... (Evitava olhar os dois.) E sabermos, que coisa ruim!... Quando a noite já chegou, e a gente não tem o sol nas mãos. Percebi isso aos cinquenta anos. Sim, quando uma rapariga me disse que precisava duma garantia. Ela nem sabe o mal que me fez. Desde esse dia nunca mais fui o mesmo. Trancou-se-me uma dor aqui dentro; mudaram o gosto das coisas e mudaram também as cores de certas coisas. Passei a olhar as pessoas doutra maneira. Ouve, Ruço de Má Pêlo, ouve bem o que te digo. Os velhos como eu não se enganam. Eu sei o cheiro de todas as coisas. Conheço as mulheres pio andar e pla fala. E plos gestos. E pla maneira como riem. Essa tal disse-me aquilo sem perceber bem o que estava a confessar. A gente sabe abri-las. É uma mistura de bondade e de cinismo. E eu perguntei-lhe: gostas doutro homem?"
Falava sempre e os lábios tremiam-lhe.
- Porque estás a contar essas coisas? perguntou Mariana perturbada.
Ele começou a gritar e levantou-se num arrebatamento.
- Eu posso dizer tudo... Agora posso dizer tudo. Teve um sorriso estranho e perverso.
- Bebe, Ruço! Bebe mais esse copo. E toma... Toma esse cachimbo e fuma.
O rapaz obedecia-lhe, sem poder reagir. Talvez para que aquilo acabasse depressa.
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- Tu estás a pensar numa coisa, João, disse Mariana.
- Como sabes?
- Já te conheço.
- E sabes o que queres? Sabes ao menos o que queres?
- Sei. Sei, mas senta-te.
E amparou-o, olhando o Ruço por trás do velho com uma ternura que o fez odiá-la.
- Que tal o tabaco de cachimbo? Dei-te a minha gaita de beiços; bebes do meu vinho; fumas plo meu cachimbo. Que mais queres? Só há uma coisa que tu não levas daqui. Uma coisa que parece fácil e nunca terás na vida: a tal música de que te falei. No teu sangue não há disso.
O rapaz sentia a vista toldar-se-lhe, tudo andava à sua volta, e o velho enchia-lhe o copo e entregava-lho aos lábios mortos de sede.
E então o velho falou só para ela.
- Tu és a última mulher que eu tive. Só me dói não te ter encontrado naqueles tempos. Não serias capaz de me dizer: vou-me embora. Havias de ficar presa a mim enquanto eu quisesse. Vi agora os teus olhos a sorrirem. Julgas que é vaidade? O amor foi pra mim uma coisa muito séria. Sempre uma coisa muito séria, a que eu me dava até ao fim, sem medo. Nunca tive mulheres bonitas de cara, porque não gosto dessas. Andam sempre com receio que a gente as estrague. Mas tive muitas das outras, das tais que eu fazia com as minhas mãos e com o meu ardor. Custa-me que tenhas chegado no fim... Tu és uma mulher com música. E não é esse borrego que aí está, nem o Chico, nem muitos outros, o homem capaz de fazer ouvir o que tu ainda não disseste a ninguém. E que talvez não digas nunca.
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O rapaz deixara cair a cabeça sobre a mesa. Estava bêbedo. O cachimbo rolara para o chão e o velho não deixou que Mariana o agarrasse.
- A única coisa que eu queria segurar nas minhas mãos já caiu. E fui eu o culpado. Um dia cheguei a dizer-lhe, quase cheguei a dizer-lhe, que não m'importaria, se alguém guardasse segredo... Percebes? Estas coisas não devem dizer-se até ao fim. Mas eu estava a enganar-me. E só por isso não o corto com aquele chicote.
Ela fez um movimento para falar, mas o velho reprimiu-a.
- Ias a dizer que a culpa era tua; mas não digas, porque isso é a única coisa que eu não te perdoo. Vamo-nos deitar. Deixa-o! Vamo-nos deitar!
E foi à frente, levando o candeeiro de petróleo.

CAPÍTULO III
Há sempre uma porta
Acordou daquele sono pesado e custou-lhe a entender o que se passara. Doía-lhe o corpo; percebeu também que alguma coisa se partira dentro dele.
Deixou-se ficar longo tempo com a cabeça sobre a mesa, como se estivesse a ouvir o que deveria fazer, agora que perdera o seu único amigo verdadeiro. Gostava de falar ao velho, mas sabia-se incapaz de arranjar palavras para se explicar.
Não, não havia remédio. O barraco era pequeno para ali caberem o Mula Brava e ele, e ainda a Mariana. Ela talvez abalasse um dia próximo, se o velho não fizesse o que andava a prometer. Mas o velho estava resignado. Ele sabia que sim.
Tacteou a algibeira, encontrou o relógio do pai e achou que guardava consigo tudo o que devia levar daquela casa. Fazia-lhe pena não ter também a gaita de beiços - sempre seria uma lembrança do velho. E se a fosse buscar? Deu ainda uns passos para o lado do seu quarto, mas a escuridão estava fechada de todo e tropeçou. A sua queda arrastou
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um dos bancos da loja e o velho falou lá de dentro. Então sentiu-se aliviado; foi capaz de entrar nos aposentos, tomado de uma repentina audácia, e respondeu ao Mula Brava, enquanto metia num saco a sua roupa e a gaita de beiços. Só deixou o chapéu de aba rija com fita de seda.
- Onde vais? perguntou o ferrador.
- vou até à fonte. O Ti João pregou-me ontem uma cega tão grande, que ainda agora a boca me sabe a ferraduras de burro, respondeu, forçando as palavras.
O velho não se riu, como era costume, quando ele dizia uma graçola. E percebeu que não tinha de que se arrepender- estava ali a mais, não havia dúvida. Gostaria de lhe falar com tempo, de recordar com o mestre algumas horas boas, passadas na sua companhia. Sair assim, sem mais aquelas, como se fosse um ladrão, lembrava-lhe a saída do posto da guarda.
- Até já, disse ainda.
Parecia-lhe que só aquilo bastava para o velho compreender que não partira como um valdevinos. Para onde iria agora?
O Mula Brava respondeu com as mesmas palavras e o silêncio tornou-se mais fechado.
Abriu a porta - há sempre uma porta por onde se sai.
A Mariana disse qualquer coisa que ele não entendeu; mas também não foi capaz de lhe perguntar, porque tudo aquilo já pertencia ao passado. Sabia que era preciso sair dali, sabia também que não atravessaria o Tejo para o norte, mas o resto era um túnel - novamente o túnel fechado por cima da sua cabeça, como se fosse preciso caminhar de gatas para achar uma saída.
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Lembrou-se de que o velho podia vir espreitá-lo e encontrar-lhe o saco. Então pôs-se a assobiar, olhou de relance o pombal e partiu a passo largo, quase a correr, para as bandas do Cabo. O Perdido quis acompanhá-lo; teve de lhe dar um pontapé para que o cão desistisse. E o podengo ficou triste, a ganir.
Não, não precisava de companhias. Só lhe apetecia gritar e destruir o que via. Para que tudo ficasse como ele, naquela solidão amarga.
No largo da praça da enjaulação estava uma galera parada. Gritou para o cocheiro. O outro voltou-se e fez-lhe sinal com um braço. Quando se aproximou, reconheceu um dos Arrenegas, o mais novo, aquele que na noite do baile na Terra Velha levava um ramo de mangerico na banda do casaco.
- Queres uma boleia?
-Onde se meteram vocês, diabos, que nunca mais os vi?
O outro sorriu-se, deitando um olhar significativo para o grupo de mulheres aconchegadas dentro do carro.
- Saíste do Mula Brava?
- Saí.
- E a Mariana? disse o outro com intenção.
-A Mariana é uma mulher séria. Que julgas?
Saltou para o lado do cocheiro e este fez estalar o chicote com dois assobios repenicados. Ruidosa, a galera partiu ao passo sorna das éguas.
O Arrenega passou-lhe a onça de tabaco. Ele começou a enrolar uma mortalha, mas as mãos tremiam-lhe. Olhou para trás e, num gesto instintivo, levantou o braço. Perto
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do barraco do velho só o Perdido seguia a marcha da galera.
- Vivi ali três anos com eles. Foram a minha família... O Mula Brava foi o único homem que mudou as meias à Mariana.
Carlos Arrenega fisgou-lhe um olhar malandro.
- Sim, o único. E se alguém disser o contrário ao pé de mim, esfaqueio-lhe as tripas!
O outro fustigou as éguas, metendo-as a trote pela estrada poeirenta.
- Que eu seja cego!

OS GRITOS SILENCIOSOS
UMA PAUSA
"O Mula Brava não falava assim; não, não era capaz de dizer as coisas com esse jeito", esclareceu Cidro de voz calma. "Mas está bem... O que ele me quis dizer foi isso mesmo. E foi também o que me fez abalar. Nunca dei um passo tão maluco. Mas quem adivinha? ... Ninguém adivinha nada."
E ficou absorto, longe de mim, a rememorar o passado.
Eu seguia-lhe as expressões do rosto; essa observação foi-me tão útil como o relato da sua vida.

CAVALO BRANCO
CAPÍTULO I
Sem manta nem caldeira
Branco é, galinha o põe, toda a gente percebe logo do que se trata. Não é preciso ir à escola e saber que um o é como a roda de um carro, que um a é a. mesma roda com um gancho em cima e outro em baixo e um u mais ou menos uma ferradura de burro. E aí por diante.
Um homem sem alforje numa terra estranha, ainda escapa. Agora sem manta nem caldeira é que nem passa por maltês. Começam a olhá-lo de banda, mal lhe resmungam os bons-dias, e se roubam "bicos" dalguma capoeira já se sabe quem aguenta com as culpas. É como canja! O regedor deita-lhe a luva e ninguém o salva de enxugar no corpo um bailarico de murro e de pontapé, que era comida de urso, quando os ursos andavam de terra em terra a dançar de patas no ar com música de pandeiro.
Cidro não queria perceber as verdades como punhos que lhe dizia o Arrenega mais velho. Fingia. Estava como os surdos quando a conversa não lhes convém. Dava aos ombros e sorria; sorria e não dava saída à cantiga de sereia do outro. Já aguentara fome de rabo - nunca pensara
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que a fome desse tonturas e fizesse vómitos como aos bêbedos. Mas sujeitar-se a cair nas mãos da guarda é que não lhe calhava - até as pernas lhe tremiam com essa ideia. Gostava do outro, sim senhor, era um bom conpanheiro de pândega, ainda ontem tinham andado num "balho" em Porto Alto, mas para andanças daquelas não o convidassem. Já lhe devia umas massas, aí uns dez mil réis de pão e vinho, e havia de lhe pagar tudo - disso podia o Jerónimo Arrenega ter a certeza.
- És tanso, pá, sou eu que te digo, insistia o Jerónimo.
- Então se houvesse perigo, s'a gente fosse ver o sol aos quadradinhos, julgas que eu me metia nisso? Olha quem!... Na tropa fui correça, malhei com os ossos no Forte e sei o que a vida custa. Andar ao barril em Elvas não é brincadeira. Que pensas?
- E a quem vai a gente vender a égua? perguntou o Menino Jesus sem entusiasmo.
- Eu depois te digo.
- E quem vende?
- Tanta conversa pra nada! Precisas ou não duma caldeira e duma manta? Se precisas, só há uma maneira de as arranjares: com aquilo com que se compram os melões. E agora não se enxerga trabalho. Enquanto não chegarem as ceifas, podes ir à praça todos os dias que nenhum patrão te dá um quartel. E mesmo nas ceifas julgas que alguém te vai tomar, se apareceres assim, sem a manta ao ombro e a caldeira na mão? De ladrão não passas para toda a gente... E qualquer coisa que haja por aqui, já sabes: metem-te no cagarrão.
- vou por aí à sorte...
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O Arrenega largou-se a rir, enquanto apertava a faixa preta na cintura magra.
- Vais ao Alentejo, se calhar. O pessoal por lá anda aos bandos, à cata de pão. E nos montes agora só se arranja algum tiro pra quem for mais atrevido.
- Diz que há trabalho nas estradas...
- Para os que quiserem assaltar automóveis. E tu és capaz disso?
- Já disse que não quero ser ladrão.
- E quem o não é?! Quando estavas na loja também não ajudavas a roubar?
Cidro encolheu os ombros.
- Na primeira altura estás lixado! Podes ter a certeza, certezinha. Deitam-te o gadanho e começam-te a perguntar quem és tu, onde moras, donde vieste. E lambada nas ventas. Se tiveres sorte, ficas preso como vadio. Apanhas cinco anos. Tens alguém que te defenda? O juiz que está em Benavente não é pra brincadeiras. Vai ao livrinho, e bumba!
- E se eu não fizer nada? Sim, se eu...
- Se não fazes nada, és vadio. Olha, pois não! Os vadios são entregues ao Governo... É melhor ser preso como ladrão. E depois uma égua pode ser achada. Contas uma história se t'agarrarem. Não és capaz d'inventar uma história? Toda a gente é capaz, homem.
- Mas o que é que eu faço à égua?
-E estive eu a gastar o meu latim com este gajo! Ainda não percebi como és capaz de tocar gaita de beiços. Perguntas tudo, tens medo de tudo... És um parrana, pá! Um bocado de bosta! Isto sempre há cada pergunta: o que é que eu faço à égua? Se calhar ias comê-la. Espero-te
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ao pé da ponte, já te disse. O comprador está lá à noite. É um gajo de massa. E aquilo é negócio em dois tempos: tome lá a égua e dê cá o dinheiro. Lá nisso é um gajo às direitas; não engana ninguém. Queres beber um copo?
- Não, obrigado.
-Come um quarto de pão e uma sardinha frita...
Cidro hesitou. Doía-lhe o estômago; a vista abrandava-se-lhe. O Arrenega entrou na taberna e obrigou-o a sentar-se. A rapariga veio trazer um prato com pão de mistura e duas sardinhas. Cidro virou a cara para o lado da porta, mas o cheiro do peixe frito corria-lhe no sangue.
- Vá, come. E se não queres, não queres, homem. Faz de conta que não te falei. vou sozinho. É mais arriscado.
-E os teus irmãos? perguntou Alcides com a boca cheia.
- Não tenho confiança neles.
- E em mim?
Jerónimo Arrenega deu-lhe uma pancada no ombro. E piscou-lhe o olho.
- Se não tivesse, falava-te nisto? Hem?!... Tens boa pinta. Tens cara daqueles que quando começam uma coisa vão sempre até ao fim.
Encararam-se e sorriram. Cidro sentia-se vaidoso com a confiança daquele amigo.
- Não é lá por causa da égua, disse o rapaz. - O pior é a vergonha se me agarram. Uma égua faz barulho...
- Como foste ferrador, julguei que era um trabalho que se te afeiçoasse. Não as sabes amansar?
- Sei. Lá isso sei. O pior é que as ferraduras de noite ouvem-se no cabo da Charneca.
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Arrenega fez o seu teatro.
- Deixa lá, eu vou sozinho. Tenho de abalar agora mesmo, senão o luar descobre e perco a encomenda. Mete-te na minha casa e espera que eu volte...
Saíram ambos da taberna. Jerónimo foi ainda até ao balcão fazer uma festa na cara da rapariga. Lá fora mostrou a Cidro uma onça de tabaco e um livro de mortalhas.
- Quando o velho morrer fico com a taberna. O velho não desconfia que a rapariga já não está inteira. Foi a única maneira de a segurar.
Iam já pela estrada adiante a caminho de Panças. O chão tornara-se macio. Cidro desejava voltar para trás, mas achava agora que não podia desfeitear o companheiro. Tinha medo, lá isso tinha. O sangue pulsava-lhe nos ouvidos.
O outro continuava a falar: - Peguei-lhe com quinze anos. Se ela contasse ao velho, nem Santo António me livrava de quatro anos de cadeia. Ou cinco. Era capaz de vir à baila o tempo do Forte. Queres fumar?
- Não; tenho a boca seca.
- Também eu.
- Mas eu é de medo, disse Alcides com a voz apagada.
- E eu é de valentia, se calhar, retorquiu o Arrenega a sorrir. - É melhor voltares. Se a minha mãe te perguntar onde fui, diz-lhe que não demoro. Ela sabe. Ela chora quando a gente desaparece, mas sabe de tudo. E não gosta da vida que eu levo.
- Já t'agarraram?
-Nunca. Tenho uma estrela acesa lá no céu. Se a coisa sair direita, dou-te a manta na mesma. Depois a pagarás...
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Alcides teve de alargar o passo para acompanhar o Arrenega; e corria de vez em quando para não lhe perder a companhia.
- Ainda fica longe?
- Cala-te agora, respondeu o amigo. - É melhor não avançares mais. Parece que tudo corre bem. Se me ouvires assobiar, abala pra minha casa e diz à minha mãe que me deitaram a unha.
- E agora o que faço?
- Agarra o medo com as duas mãos e deixa-te ficar. Sabes benzer-te? Então, benze-te.

OS GRITOS SILENCIOSOS
A TATUAGEM
Nunca reparara nesse pormenor. Hoje penso que da minha parte havia um desejo de o ignorar logo que deixava de me descrever a sua vida. Talvez porque soubesse da sua vaidade junto dos outros, quando pretendia que o considerassem um homem capaz de levar até ao fim tudo o que pensava. A cada prisioneiro que entrasse ele teimava em contar, cada vez com maior detalhe, a morte do encarregado da fábrica. Fazia-o com bazófia, mas o olhar alucinado traía-o. "Dei-lhe um tiro num dos olhos, sim ..." E depois terminava numa cantiga que fora popular em Toulouse. Era uma visão sinistra e acabrunhante no seu passeio dançado, quando acabava de descarregar a pistola na cabeça do outro.
Talvez por isso, talvez, para não meditar demasiado no destino de certos homens, eu nunca reparara naquele pormenor de ele inventar um pretexto para não tomar banho de chuveiro com os outros presos. Só de uma vez cheguei a admitir que a guerra lhe provocara qualquer amputação que ele gostava de esconder. Essa hipótese deve-me ter
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bastado, porque nunca mais pensei na sua ausência do banho semanal.
Naquela tarde, porém, descalçara-me para poupar o resto dos sapatos; e, quando entrei nas retretes, mal habituara os olhos à mudança de luz, reparei na tatuagem que lhe apanhava as costas, quase de ombro para ombro. Ele deu por mim, voltou-se num impulso, como se fosse apunhalá-lo, e ficou encostado à parede, hesitante, entre um gesto violento, que eu lhe via nas mãos engadanhadas pela ira, e um sorriso equívoco de timidez.
"Continua...", disse-lhe com aparente indiferença. "Tens receio de te lavar à minha frente? Não vejo porquê!..."
"Não queria que o senhor visse... Foi uma vingança do Sevilhano."
"Tenho visto muitas tatuagens. E algumas bonitas. A tua pareceu-me bem feita...", insisti para o pôr à vontade.
"Mas não lha mostro. Não fui eu que lhe pedi, pode crer."
O corpo aquietou-se, as mãos tornaram-se frouxas, mas nunca se afastou da parede.
"Naquele dia em que encontrámos um homem morto, cheio de tatuagens, todo ele era uma marca pegada, a gente começou a entreter-se com isso. Na nossa bandeira só o Sevilhano sabia trabalhar com as agulhas e as tintas. Duma vez eu tivera uma discussão com ele por causa duma rapariga. Para mim a coisa não passara duma discussão, uma maneira de passar o tempo... E tanto assim era, não sou homem de reservas, não, isso não sou, que lhe pedi para ele me fazer uma mulher nua no braço. Ele disse-me:
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pois sim, mas hás-de deixar pôr o teu nome nas costas. Está bem, respondi eu. Ele começou o trabalho; demorou muitos dias. Escreveu Chacal com as agulhas e depois, sem eu saber, pôs essa caveira por baixo."
"E que tem isso? Na Legião vocês dizem que são os noivos da morte. Não vejo razão para teres esse ódio ao teu companheiro."
"Pois eu acho, eu tenho a certeza, que ele fez isso por vingança. Ora veja: quando me casar com a minha Nena, sou obrigado a explicar-lhe a caveira. Chacal é o menos, é uma alcunha. Agora a caveira é a morte. E eu tenho de lhe dizer porque trago a morte nas costas. Já pensei que na noite do casamento me devo deitar com a luz apagada. Mas quando ela acordar? Não posso estar sempre a fugir-lhe, a esconder-me... Um dia posso querer ficar na cama mais tempo do que ela. E depois?!... Mais tarde ou mais cedo, ela vai descobrir a caveira. Eu também não queria que o senhor a visse."
"Não entendo porquê!"
"Porque o senhor vai pensar que na guerra eu fui pior do que os outros. E não é verdade. Isto é uma vingança! Juro-lhe que é uma vingança! E ainda bem que ele lá ficou numa emboscada. Doutra maneira teria eu de fazer contas com ele. É que há coisas que eu não perdoo, que um homem não pode perdoar. Um dia, já lhe disse, acho que já lhe disse, tenho de fazer contas também com esse gordo da secretaria que roubou o relógio do meu pai e me mandou cortar o cabelo. Ele é careca, já reparou? Pois é careca e eu tinha uma cabeleira grande; assim encarniçada, mas grande. Uma vez ele chamou-me lá acima e
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começou a brincar com o meu cabelo. Percebi logo que não me gramava por isso. Depois inventou uma história de piolhos pra mo mandar cortar."
O rosto de Cidro entumescera de ódio.
"Mas um dia ele vai pagá-las todas, pode ter a certeza. Pelo torto ninguém me queira ver do avesso. E esse bandido vingou-se de mim como o Sevilhano. O pior é que talvez o gordo pague também pelo Sevilhano, que me marcou para o resto da vida. Já viu o que todos pensarão de mim quando souberem desta caveira nas costas?"
"E as mortes que trazes dentro de ti? Isso é pior!"
Ficou embaraçado. A cólera chegava-lhe às mãos.
"Uma guerra é uma guerra e um soldado nada pode. O senhor sabe o que me sucedia, se eu me negasse?"
"Sei. Mas um homem pode escolher a morte quando o querem aviltar."
"Não percebo o que o senhor quer dizer com isso!", gritou-me desesperado.
Receei que aquele diálogo o incompatibilizasse comigo, perdendo a oportunidade de saber até ao fim todos os caminhos da sua vida. Mesmo que me repugnasse a sua convivência, eu precisava de conhecer como de um homem simples se faz um falcão.
"Sossega, homem. Não te quero mal, como sabes. Só acho que não deves resolver com a Mariana tudo o que sucede contra a tua vontade."
"Sim, isso está bem", respondeu mais sossegado. "Mas se o senhor soubesse a raiva... A raiva e o medo que eu sinto. Medo de estar só; medo de estar acompanhado; medo de que me perguntem o que fiz aos outros... E raiva de viver. Raiva de gostar tanto de viver."
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Quis sossegá-lo. Aproximei-me e ele pôs as mãos à frente.
"Veste a camisa e vamos falar da nossa terra. Ainda é uma boa coisa."
Acenou a cabeça. "Não está zangado comigo?", perguntou-me.

CAPÍTULO II
Para quem trabalho eu?
Uma mulher lançava, a cantar, aquela interrogação ansiosa, e a resposta ninguém a dava. A pergunta é que passara para a boca duma fila de raparigas da Glória, sábias em traçar o eito e expeditas no manejo da foice.
Ó minha mãe dos trabalhos, para quem trabalho eu?...
- Eh Ruço! Eh tu!...
O Arrenega deu-lhe com o cotovelo, ele levantou a cabeça, mas não viu o capataz. Tinha os olhos cansados de poeira e de sol, o peso da Serra da Neve a doer-lhe no lado direito e um anel de fogo na lombeira e nos rins. "Aquilo é que era aprender o custo da galé", como dissera uma gloriana à hora do almoço.
-Vais cego, Ruço? Mete-te à banda do teu camarada!
Camarada uma gaita, que lhe prometera uma manta e uma caldeira e deixara-o a ver navios, com a desculpa de que a égua tinha fugido, a danada! Também que fizera
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ele? Ficar à espera de que outrem dê um assobio é trabalho para merecer paga tamanha? Havia de ceifar ali duas semanas, obrigar-se a pão com dentes e a cheiro de caldeira alheia, e só depois poderia pensar numa lobeira para se aquecer no Inverno.
...Trabalho, mato o meu corpo, não tenho nada de meu...
Depois de se perder um bem é que chega o arrependimento- torce-se a orelha e nem uma lágrima de sangue. E ao fim e ao cabo por dez réis de mel coado, por mor de uma coisa que parecia uma árvore dentro duma garrafa. Vejam lá se há ideia mais parva!
Se tivesse voltado para o Lobato, seria agora meio-caixeiro, com direito a dormir no sótão, numa cama de ferro com lençóis, e comida certa à mesa da cozinha. As criadas novas haviam de tratá-lo por senhor, Sr. Cidro, e, de cabelo penteado ao espelho, guarda-pó e botas amarelas, teria a vida aberta por uma estrada larga. Maldita ideia aquela, a da árvore! Uma coisa de anjinho...
"Eh Ruço! Endireita-me esse corte! Levas a foice cega, ó quê?!..."
Mesmo no Mula Brava, se não fosse a vergonha de lhe falar, depois do que se passara com a Mariana, sempre a vida podia tomar outro jeito. Quem sabe?!... Talvez viesse a ficar com a oficina e com a mulher. Mas era coisa que se fizesse a um amigo?... E pode uma pessoa ter a mão no sangue quando a espevitam? Se até uma candeia de azeite, mal lhe bolem com a ponta
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dum gancho, se arrebita e dá mais luz, como pode um homem segurar as maldades do corpo?
Não fora habituado a trabalhos de campo, lá isso era verdade. E os outros, antes de se habituarem à servidão? Se até o Jerónimo Arrenega, que era valente, apanhara com o aguilhão dos bois, havia ele de se querer fidalgo? Ora essa, que tal estava o pinoca! Mas parecia-lhe inferneira de mais.
Queimava o sol de um lado, pesava a foice do outro, queixavam-se as mãos dos calos (toma lá uma mortalha, isso passa), mordiam as melgas e os mosquitos das abertas, e lá estavam com o trigo maduro a erva-gata mais o cardo beija-mão, como dizia uma cantiga, e melhor lhe lembravam os dedos ardidos de golpes e espinhos.
"Eh Ruço!"
Ruço era nome de burro. Ruço era a avó dele e toda a sua geração de carneiros com cornos dobrados! Chiça pra tanta conversa!
E só agora se arrependia de ter roubado nos avios da gente do campo. Antes furtar éguas com o Arrenega mais velho, mesmo com risco de ser enganado. Sempre era trabalho mais direito. Não fosse a vergonha de o descobrirem e bem sabia que rumo havia de tomar. Despedia-se à francesa, sem mais conversa, que ceifeiro sem manta não deixa rasto. O Arrenega que lhe recebesse o dia de jorna (lá ficava rico!) e se pagasse do dinheiro adiantado em pão e vinho. Depois enfiaria pela Charneca dentro, sem escolher caminho, andando à parva, de dia e de noite, até que as forças o deixassem. Sem uma sede de água. Sem uma côdea de pão. A morte havia de chegar, por força. Para que vivia ele, afinal? Para ser
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capacho do mundo, como dizia a criada do Lobato, que até essa se rira da sua boa fé? O pior é que até na morte ficaria sozinho!
Não havia coisa mais triste, não senhor.
No rancho talvez julgassem que ele comia à parte por não ter comida de caldeira nem alforje. Quando o que lhe fazia mal era ver muita gente à sua volta. Atabafava. Apetecia-lhe pegar na foice, pôr-se a andar de roda - arreda, arreda - e afastá-los da sua beira. E dormir no meio da resteva com a cabeça num molho de trigo. Talvez um falcão o descobrisse lá do alto e se atirasse sobre ele de asas fechadas, para lhe arrancar os olhos e levá-los consigo por esse céu além. Pronto, acabava-se tudo!
- Não comes? perguntou-lhe o Arrenega à ceia. -Não tenho fome.
Bem percebia que o capataz o olhava de banda; talvez estivesse a pensar em chamá-lo e dar-lhe o fora.
Foi meter-se no palheiro e atirou-se para um canto. Tinha o corpo num trambolho e nem uma linha de coragem guardava nos braços e nas pernas. Nem uma linha. Tudo estava quebrado dentro dele e fora dele. Era uma pedra.
Lá fora cantava-se ainda. Ainda havia gente capaz de rir. Pela porta via passar vultos para o barracão do lado. Eram as glorianas, de cinta preta a prender-lhes a saia rodada, todas metidas na sua vida à parte da outra gente.
- Queres vir esta noite?
Estava para ali sem recordações daquelas, e por isso não podia entender a pergunta do Arrenega.
- Aonde?
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- Como na Terra Velha...
Deixou escapar um não, despedindo o companheiro, mas o outro ficara à sua beira a compor a espiga de trigo que lhe saía do lado direito do boné. Os dois irmãos aproximaram-se também e faziam sinais ao mais velho.
- Podias ao menos vir tocar prà gente, disse um deles.
- Eu tocar? Nem pago adiantado...
- Era um favor que fazias à gente, juntou Jerónimo a enrolar um cigarro, que depois entregou a Cidro para molhar a mortalha.
Sentou-se. Os três irmãos sorriram. O mais novo foi buscar a gaita de beiços ao bolso do casaco e tirou-lhe uma fiada de sons.
- O rancho dos Foros tem raparigas de trás da orelha. Elas pediram pra te vir buscar... Querem fazer ver às da Glória.
- E que tenho eu com isso? Amanhã vou-me embora. Não aguento...
-Ora tu!... Um verde-gaio bem batido arrebita-te em menos dum forfe. A gente não pode dar importância ao corpo.
- Sucede o mesmo a todo o mundo. Ceifar não é brincadeira...
- Eu a primeira vez que ceifei até febres tive, disse Jerónimo Arrenega.
Percebendo que Cidro acamaradava, os três agarraram-no em charola e trouxeram-no a correr para o terreiro das motas. Logo um bando de raparigas abalou atrás deles, numa chilreada de gritinhos e chalaças. Puseram-se-lhe as cachopas à volta, cada uma com o seu mimalho.
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- Vá tocador duma cana! Se vossemecê der música, hei-de ensinar-lhe onde se encontra um ninho de melros, disse uma atrevida de língua, que lá de mãos não gostava ela de brincadeiras.
- Ou de melras, Jaquina? perguntou Jerónimo Arrenega.
- Melras mansas... Mansinhas como um veludo. Nem é preciso assobiar-lhes.
- Ensinas-me?
- Só digo ao Ruço. Sempre gostei de cenouras; sou como as coelhas.
Queria tocar, dar-se à boa vai ela, mas os beiços adormeciam-lhe na harmónica, à procura de sons que fugiam.
-Empresta-me cá a tua gaita, tocador dum bruto! ! gritou-lhe uma gaibéua. Foi um alarido.
A moça furtara-lhe a harmónica e corria à volta do barracão, como se, fosse uma bicha de rabiar que fugia à sua frente e se lhe escapava. Cidro encheu-se de brios e meteu-se no jogo - talvez pregasse dois borrachos na cachopa para ela se não fazer fina.
-Anda, Ruço! Olha que essa sabe onde está o ninho!...
Acabou por perder as fúrias de galicho ofendido e já acorria por brincadeira. Até que a gaibéua parou, de fadiga, Agarrou-a pelos braços. - Se estivéssemos sozinhos contava-te uma história...
-Se calhar não a sabes toda. Não acredito que a saibas...
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O capataz pusera-se à porta do aposento, a fumar uma cigarrada. Estava com a maldade nos ossos. Não era porque não gostasse de ver a mocidade divertir-se, mas achava que no primeiro dia de ceifa tinha de dar um exemplo que segurasse aqueles rabezanos metediços.
Cidro já vinha pelo carril abaixo com a gaibéua metediça agarrada ao seu braço.
- In que lindo par! gritava uma dos Foros, toda sacudida de ancas.
- Parece um casal de galinhas cocos... Tão carriços os dois!
Fez-se um cordão de pares atrás deles. Cidro já voltara a encontrar na gaita de beiços todas as músicas que sabia e tocava o Gallito, o que fez chegar os campinos à porta da mota dos bois.
O bailarico acabou por se armar num foguete. Faltavam homens. Dançavam as raparigas umas com as outras, depois de se disputarem por causa daquela que havia de guiar a outra. Os Arrenegas é que tiravam as raparigas todas com os olhos - eram mesmo uns lambões. E logo se puseram a contar as suas histórias de sempre, com manejos de pianista nas ancas das cachopas, e joelhos esquecidos nos rodopios das modas.
As raparigas da Glória vieram para a porta do seu barracão, mas não se embrulhavam no bailarico das outras, que aquilo era gente esquisita, nada de misturas. Cidro encostara-se a um carro lezirão, depois de convencer uma gaibéua a procurar outro par, com a desculpa de que não era capaz de tocar quando dava à perna. Estava que nem uma salada, mas logo que tivesse mais ganas havia de lhe
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falar a preceito - não julgasse a cachopa que ele era dos que não sabiam para que bandas ficava Lisboa.
E pôs-se a tocar uma valsa com todos os preceitos, assim como quem mandava a harmónica falar por si. Agora só se ouvia o rastejar dos pés no terreiro. Foi por isso que se distinguiu tão bem, agressivo e desmancha-prazeres, o grito arrenegado do capataz das gaibéuas:
- Quem é que deu ordem? Sou aqui algum fardo de palha?
Cidro não sabia das leis que regem os ranchos que vêm à Lezíria. E continuou a tocar, sem se dar conta que poucos pares tinham ficado.
- Não ouves, Ruço? Quem te deu ordem pra começar o baile? - O outro corria para ele, desaustinado.
- Amanhã não ferras, que é pra aprenderes. E é se quiseres, senão ala milhano, que ceifeiros como tu arranjam-se até na borda das abertas.
Jerónimo Arrenega quis levar o capataz às boas, que o rapaz não tinha culpa, ora essa, eles e as cachopas é que o tinham desinquietado. Elas podiam dizer. E para que era o castigo? Depois do sol-posto não podiam dar uma folga?
No rancho que ele mandasse, não senhor, respondeu o outro. Duas horas ao sábado e chegava, que o patrão não pagava as jornas pra eles dançarem à noite e não aguentarem de dia com uma gata plo rabo.
- Desculpe lá o tocador! pediram-lhe as cachopas. Assim apaparicado o homem deu-se a bravezas de feitio.
O Ruço é que não pegava no trabalho - não consentia
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faltas de respeito a ninguém, e muito menos a fedelhos que nem barba tinham na porca da cara.
O abegão apareceu, achou que o homem estava a exagerar, mas não podia cortar-lhe a autoridade, pois doutra maneira já ninguém se entenderia ali dentro. Cidro empertigava-se na roda dos Arrenegas e gaguejava como nunca, ameaçando o outro com um fueiro do carro lezirão onde estivera sentado. Mas as fúrias pareciam ficar por ali.
Acabara-se o baile; Cidro sentiu pela primeira vez na vida que tinha gente do seu lado. O capataz mandava o pessoal recolher aos barracões e nem os gaibéus lhe obedeciam. Que era mal feito, sim senhor, que era mal feito, aquilo ali não era tropa. O rapaz não o tratara mal.
Formavam-se grupos no terreiro, os rabezanos atiçavam os ânimos e nem o abegão punha cobro àquela balbúrdia.
As raparigas dos Foros é que se saíram: se no , rancho havia setenta pessoas, cada uma podia dar cinco tostões da féria da semana para pagar o castigo ao tocador. E então?!... O capataz ficava sujo. Do dinheiro que ganhavam, eles é que eram donos. Havia alguém que se torcesse? Por um dia de castigo davam-lhe quase
uma semana.

CAPÍTULO III
Mais vale um gosto do que quatro vinténs
No outro dia, à hora do almoço, os criados ao ano e o pessoal da Borda-d'Água procuraram o abegão, para lhe dizerem que deveria arvorar um capataz rabezano, pois doutra maneira haveria as suas gaitas com o malandro do gaibéu. "O que ele fizera ao tocador era uma desfeita pra todos."
O outro também gostou daquela saída e apoiou-se neles para cortar as asas ao capataz cabeçudo. A conversa foi curta, mas chegou bem para o deixar de monco. Parecia que tinha engolido um marmelo inteiro, contaram os que estavam perto. O rancho dele pagou as favas o homem andou derramado o resto do dia e com coriscos nos olhos.
Cidro entreteve-se na mota dos bois, tocou o fandango para dois maiorais que se desafiaram e teve à ceia meia caldeira de sopa de arroz com feijão. E quando se ofereceu para escrever uma carta mal sabia as famas que iria arranjar. Improvisaram-lhe uma secretária com dois fardos de palha e mais o taipal de um carro, e assim que lhe viram
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a letra muito certinha vá de correrem fantasias. Também a maneira como ele notara uma carta de namoro não era para menos. Palavras bonitas não lhe faltavam, que Cidro ainda tinha de cor aquele bocado de romance copiado certa vez, já lá iam uns anos, para mandar à sobrinha do Lobato.
"Que admiração não saber ceifar! Já lhe tinham visto as mãos? Pois que as vissem... Se não era filho de doutor, também o podia ser. Têm-se visto coisas mais esquisitas".
Os Arrenegas ajudavam à história - nem eles desconfiavam de que o amigo tinha uma letra assim. E logo se propuseram fazer negócio, arranjando fregueses para o escriba a cinco tostões cada carta, e era barato - muitos outros, que só escreviam asneiras, levavam o mesmo.
Todos queriam mandar notícias para a família.
Quem fervia era o capataz dos gaibéus.
Lá do seu canto, mastigava o fel daquela desfeita do abegão e prometia a si mesmo tirar desforra quando o patrão viesse. Do seu rancho é que os rabezanos não arranjariam raparigas para se alambazarem, os malandro sfossem buscar as irmãs, as cabras das irmãs, ou as porcas das mulheres, e apalpassem-nas bem, que o pessoal dele não era buzina de bicicleta, nem tinha jeito de fruta roubada.
E não era mau homem, não senhor, o Zé Pintado, embora aquele defeito no olho esquerdo lhe espantasse a cara miudinha. A voz é que não o ajudava; parecia que tinha uma lima na ponta das palavras, arremessando-as como um pastor a jogar pedras ao gado. Mas era um baboso pela filha, uma cachopita de olhos maliciosos e
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boca rasgada, que pedia para lha coserem com um ponto miudinho de beijos. Cidro já lhe passara sinal e a moça, Cassilda de nome, dissera-lhe que sim, que lhe receberia uma carta. Ele pedira uma folha de papel e pusera-se a escrevê-la, depois de acabar a empreitada das encomendas.
"Mais vale um gosto do que quatro vinténs", diria ele se lhe perguntassem por que diabo deitara as vistas para aquela banda. Queria vingar-se do pai; outro tanto sucedia à cachopa, que não perdoava ao Zé Pintado o mau viver que dava à mãe, por causa da Palmira, aquela desvergonhada, maneirinha e de peito alto, rainha do seu rancho.
"Agora é que eu quero ver a cara dele", pensava a Cassilda, enquanto passava sinais ao Ruço da gaita de beiços.
E de língua ao canto da boca ia bordando a sua letra mais apurada, embora a luz da candeia bailasse à sua frente na mão cansada do Arrenega mais velho, seu sócio na escrita.

CAPÍTULO IV
Sócio de Judas
Quando o Zé Pintado apareceu naquele almoço com a carta na mão, todo treme-treme, como se o Diabo lhe tivesse entrado por uma das janelas do corpo, Cidro gostaria de se enfiar pelo chão dentro, no meio de uma nuvem de fumo que o tapasse.
"Se já se vira um badameco ainda de fraldas, que não tinha onde cair morto, desencaminhar uma filha de gente honrada!", gritava o capataz à sua frente, com ganas de lhe fazer engolir o papel.
O rapaz ficara da cor dos cabelos, meio de vergonha, meio de iras - se não fosse por coisas, enfiava-lhe no bandulho o canivete com que cortava as buchinhas de pão para enganar a fome. O outro achava que o silêncio de Cidro era só cobardia e destemperava-se mais: - Negro seja eu, negro como um tição, que se vejo a moça olhar pra ti, já lhe disse, já lhe jurei, corto-lhe o cabelo rente como se ela tivesse peste! O arranjinho que tenho não é pra vadios, ouviste?
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Nessa altura o Jerónimo Arrenega interveio na sua voz mansa: - Porque é que vossemecê não vai falar com o Camões?
- Hem? Que dizes tu?...
- Deixe lá o rapaz, santinho!
- Falar com quem?
- com o Camões! respondeu Cidro, já refeito dos seus embaraços.
O capataz estava cego e na sua raiva atirou a carta ao chão e pisou-a, pisou-a, como se debaixo dos pés esmagasse aquela afronta de se ver desfeiteado à frente de três ranchos de ceifeiros.
- Vossemecês ouviram pra onde ele me mandou? Vais saber quanto te custa a peçonha da língua, meu malandro! com que então falar com o Camões? Pois hoje mesmo o patrão há-de saber que me mandaste àquela parte... Que eu seja negro, negro que nem um tição!
Cidro também não sabia o que respondera ao Zé Pintado, mas estava por tudo, pois o sorriso do Arrenega dava-lhe forças para encarar o capataz sem receios.
- E quem lhe disse que a carta era para a sua filha? perguntou o Jerónimo.
-Quem lhe disse, homem, quem lhe disse? insistia o Ruço, como se fosse o eco do companheiro.
- Encontrei-a, na roupa dela. E foste tu que a escreveste, ou não foste?
-E o que tem isso? O que tem isso a ver?... Ela podia ter achado a carta. Vai lá o nome dela?
- A carta agora já não interessa. Bonda que me mandaste falar com o Camões... És capaz de negar?
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- E então? Há algum mal nisso? perguntou Jerónimo Arrenega.
O abegão apareceu, vindo dos aposentos na companhia do capataz dos Foros, todo zeloso em chamá-lo para pôr cobro àquele desmando de um ceifeiro, um fedelho, desrespeitar assim um pai de família. "O Zé Pintado era sarnento, lá isso era verdade, ele não gostava do seu feitio, mas também, se os capatazes não acudirem uns pelos outros, quem é capaz de ter mão em gente malcriada? E depois tocador ao resto, companheiro dos Arrenegas, uns malandros, que se este mundo estivesse direito já haviam de ter malhado nas costas d'África."
O abegão era genioso; e como o patrão aparecera naquela manhã para falarem na colheita (a coisa estava feia, sete sementes quando muito), ficara com os fígados ao pé da boca por aquela prova de indisciplina. O pior é que tinha o seu medo dos Arrenegas, uns diabos pintados que ainda dariam que falar na Lezíria, pensava na sua.
A malta dos ranchos percebeu logo que a coisa se ia entortar com o abegão e houve quem achasse razão ao Zé Pintado, pois não estava certo, sim, um fedelho dizer uma coisa daquelas a um capataz.
Lá bonito não era, não senhor, e o abegão logo o disse ali para quem o quis ouvir. Cidro ficou envergonhado com o raspanete, achou que devia pedir desculpa, mas não houve maneira de vencer aquela danada gaguez que se lhe ferrara na voz. O Arrenega não aceitou as culpas, que aquilo não tinha mal, e se o direito era o direito, que fossem todos falar ao patrão Agostinho Serra. "Ponham-me na rua, nunca mais me dêem aqui uma hora de trabalho..."
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O abegão embaraçou-se com o desafio do ceifeiro e amodorrou.
"Se aquilo não tinha mal, quem era o Camões?..."
A curiosidade chegou para os três ranchos e ninguém sabia quem era o homem, se de homem se tratava. "Não seria uma asneira? Estava-se mesmo a ver que não podia ser outra coisa."
Mal os viu entrar, o patrão perguntou para o Ruço:
- Tu não és filho do Bago de Milho?
- Sou, sim senhor, patrão Agostinho, respondeu Cidro radiante.
-És o seu retrato por uma pena. Gostava da pinga, mas tinha uma mão de rédeas como poucos. Que tens tu a ver com isto?
O capataz quis explicar, mas Agostinho Serra não gostou da sua intromissão e fez-lhe má cara. Zé Pintado ficou logo com a fúria na carda das botas. E o patrão insistiu com o rapaz.
Cidro explicou as coisas a seu modo, com um saca-rolhas a puxar-lhe as palavras. "Que lhe tinham pedido pra escrever umas letras, fizera de tudo, como cada um queria, e que o seu Zé Pintado encontrara uma carta na roupa da filha e viera ameaçá-lo a chamar-lhe nomes, lá porque o julgava capaz de mandar umas letras à rapariga."
- E tu queres a rapariga pra freira? perguntou Agostinho Serra.
- Não senhor, respondeu o capataz já repeso de se ter metido naquilo. (O patrão cobria aqueles malandros, não havia dúvidas.) Mas acho que ela é ainda muito novinha...
O abegão interveio para lembrar o que importava: a carta era o menos; o pior é que o Zé Pintado ralhara com
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o rapaz e este lhe respondera que era melhor falar com o Camões.
- Fui eu que disse, esclareceu o Arrenega mais velho. Mas já o Agostinho Serra desabava a rir, enquanto o
abegão e o capataz trocavam olhares espantados, como se o lavrador tivesse endoidecido. Cidro sossegara e já se abria num sorriso maroto. O abegão acabou por aderir também à boa disposição do lavrador, enquanto o capataz se tornava lívido - gaita pra tanta risota, que é melhor cuspir na cara dum homem do que lhe dar vergonhas à frente do pessoal, pensava ele embravecido.
Aquietado, Agostinho Serra mandou sair os dois ceifeiros, sem saber como resolver a questão, pois tanto o Zé Pintado como o abegão teimavam em que o caso não podia ficar sem um bom exemplo.
- Mas ó homens!... A gente precisa de se entender. O Camões é o nome duma estátua que há em Lisboa. (Isso também ele sabia, pensava o abegão.) Os rapazes queriam dizer na sua...
- O patrão veja lá como arranja isso, insistia o capataz.
- Mas se não os castiga, eu seja negro, negro que nem um tição, nunca mais mandarei pessoal na sua casa. Já viu o que pode suceder aqui no Campo, se nos perdem o respeito? O Camões, ou lá o que é, pode ser uma estátua, ou o que cada um quiser, mas a verdade é que ele e toda a gente pensaram logo no mesmo: os malandros queriam-me era mandar àquela parte. E lá nisso é que eu não consinto, tanto mais que no primeiro dia de ceifa os dois tinham começado um baile sem licença de ninguém.
- O Zé Pintado 'stá na razão, confirmava o outro.
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Agostinho Serra aparafusou, aparafusou, e disse ao capataz para lhe mandar os rapazes. E fez má cara, e ralhou-lhes, garantindo que se mais alguma vez respondessem assim a algum superior os mandaria entregar à guarda - e depois o resto seria com a autoridade.
Jerónimo Arrenega estava passado. Queria dizer das suas, mas o lavrador gritou-lhe que não consentia nem mais uma palavra ali dentro. Castigava-os em dois quartéis; e não fizessem mais conversa daquilo, porque senão seria o diabo! Às boas todos o levavam; mas para o lado do arrocho que ninguém gostasse de o ver voltado.
E pô-los fora da porta do aposento, ameaçando-os de que para a outra vez a coisa não ficaria por ali.
Quando os viu longe, voltou-se para o abegão e também lhas cantou: - Lá que tu sejas burro, é uma coisa; que o Zé seja uma parelha de bestas, é outra. Agora que vocês me obriguem a ser vosso parente, é que já não me parece certo. Vê agora como tratas os rapazes! Quando for a eira, mete-os lá para os recompensar deste castigo.
- Sim, patrão.
- Vai lá às tuas obrigações. (Depois amainou.) Quantas sementes é que te parece?
- Talvez sete...
- É o que eu penso. Mas se alguém te perguntar, faz o mesmo que eu: diz que havemos de ter doze bem largas. Ao menos pra ninguém se rir desta miséria.

Em dois quartéis de castigo pensa-se muita coisa quando a imaginação não falta. E o Arrenega deu asas à sua.
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- Se tu quisesses, Cidro...
Claro que sim, Cidro queria tudo o que Jerónimo Arrenega achasse bem, porque com ele estava a aprender muita coisa necessária para a vida. Um homem deve ser safo em todas as ocasiões, mesmo que tudo esteja perdido, dizia-lhe o outro. "Se viemos ao mundo sem nada, que tudo nos seja perdoado. Eu acho que deve ser assim..."
- Se tu quisesses, Cidro, a gente podia fazer uma sociedade. Uma sociedade de amigos. Eu sei falar, nunca me calo e nunca m'enrasco. Tu sabes escrever. Podíamos ser a mão um do outro. Fazia-se em tudo como nas cartas que escreves. Eu dou uma coisa, tu dás a outra.
Claro que sim, Cidro queria tudo o que Jerónimo Arrenega achasse bem.
- Tu sabes tocar gaita de beiços e eu sei onde há bailes. vou à frente e ponho-me a falar de ti: que nunca se ouviu na Lezíria nem na Charneca um tocador como tu. E é verdade. Se eu tivesse ouvido havias de m'ensinar. Mas a minha orelha é dura como um calhau. Não há nada que lhe entre. Eu vou à frente e eles dizem pra eu te chamar. E ganhamos cinco mil réis ou mais. E comer, e vinho. Podemos fazer uma sociedade.
- Menos a roubar éguas, disse Cidro.
-Está bem; também está certo. Quando houver negócios de éguas, eu vou sozinho. Tu só irás fazer-me companhia até lá perto, pra eu não ir aborrecido no caminho. E depois ficas à minha espera; eu trato do resto.
- E recebo metade?
- Já disse que é uma sociedade de amigos. Quando arranjar namorada, juro, havemos de conseguir outra para
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ti; e até se quiseres a gente arranja duas e depois escolhe à sorte, que eu não m'importo. Nunca jogaste à pedida?
- Duas vezes.
- Pois jogaremos à pedida. E a quem calhar a melhor o outro não se torce. Eu com amigos sou sério. Viste como fiz com a manta? Tens ou não tens uma manta?
- Ficaste com a nova e deste-me a tua, lamentou Cidro.
- Isso também é verdade. Mas quem a foi comprar? Sociedade é sociedade, mas se quiseres, cada semana dorme um com a manta nova.
Cidro sorriu.
- Esta noite, se quiseres, dormes tu com a manta nova. Se um tiver sezões, o outro dá-lhe do seu alforje; se eu um dia for parar à cadeia, nunca direi o teu nome. E tu mandas-me tabaco...
- Achas que podes ser preso?
- A cadeia fez-se para os homens e a gente nunca sabe porque vai lá cair. Não ouviste o patrão?
- Tu achas que ele era capaz de nos entregar à guarda? Ele disse-me que eu era o retrato pintado do meu pai.
- De que morreu o teu?
- Foi uma égua que o matou.
- O meu morreu de facadas.
- Deve ser lixado morrer de facadas, disse Cidro num arrepio. - Tu eras capaz de matar alguém?
-Sei lá. Conforme... Mas a morte não me mete medo. Só gostava de não ir de corpo à terra. Faz-me impressão. Todos devíamos levar quatro tábuas e um ramo de flores. Lá a morte!... A gente morre ou mata.
Caiu um silêncio entre ambos. Da seara vinha uma cantiga de mulheres.
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- Se tu quisesses...
Claro que sim, Cidro queria tudo o que Jerónimo Arrenega achasse bem.
- Se tu quisesses, a gente podia no fim desta semana comprar uns sapatos para os dois. Cada domingo andava um com eles.
Cidro sorriu-se.
Puseram os pés lado a lado, para os medir, e os dois largaram numa risota.
- Os teus são maiores, disse o Ruço.
- Compra-se do meu tamanho e tu metes-lhe papéis dentro quando for a tua vez. Pla tua medida eu não posso aguentá-los. E quando houver baile a gente joga à pedida para ver quem os leva. Achas bem assim? Cá a mim parece-me direito e a gente não se vai dar mal, tenho a certeza.
- E de que cor compramos?
- Se não fossem caros, gostava duns amarelos com vivos brancos. Uns à papo-seco. As raparigas gostam de ver os homens bem calçados. Elas olham logo para os pés da gente.
- Amarelos e brancos são bonitos. Eu não tinha pensado nesses. Mas assim são mais bonitos.
- Se tu quisesses...
Claro que sim, Cidro queria tudo o que Jerónimo Arrenega achasse bem.
- Se tu quisesses, a gente não pegava o resto do dia e íamos à minha terra. Tu levavas a gaita de beiços e íamos a um casamento que eu sei. Eu arranjava-te entrada; conheço o noivo. Enchíamos a malvada de tudo quanto é bom. Deve haver galinha e borrego. Gostas?
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- Nunca comi galinha, disse Cidro.
- Pois nos casamentos há sempre galinha. E na canja vêm ovos... E podes comer arroz-doce e bolos de noivos, que têm canela e ovo amarelo por cima. Valeu?...
- E o abegão?
- Eu vou falar com ele. Digo-lhe que tu estás doente e tens de ir à farmácia. Podemos apanhar uma bebedeira cada um.
- Só apanhei uma, mas foi de tristeza, na barraca do Mula Brava.
Jerónimo Arrenega achou graça ao amigo e começou a rir. Cidro riu-se também.
- Um homem para ser homem deve apanhar bebedeiras, fumar cigarros fortes e apanhar uma doença de mulher. Eu apanhei na tropa...
- E como é?
- Tu depois aprendes. Quando fores à tropa, tu aprendes.
O Arrenega cqmeçou a vestir o casaco, limpou-se das palhas do barracão e entregou a gaita de beiços ao Ruço. Este ia começar uma marcha que lhe brincava na cabeça, mas o camarada tirou-lhe a harmónica da boca e lembrou-lhe: "Estás doente, pá!" Tinham de dizer isso ao abegão, não fosse julgar que eles se recusavam a voltar à ceifa.

Não chegaram a embebedar-se; e também o resto do jantar não fez proveito a ninguém, porque o Ruço ficou tonto com o primeiro copo de três decilitros e começou a tocar na harmónica o sinal que se dá nas praças de toiros
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para pegar os bichos à unha. O padrinho, que estava ao seu lado, tomou aquilo por provocação ao noivo e atirou-lhe um murro entre os olhos.
Murro foi ele que o tocador se virou com a cadeira e só voltou a si ao pé duma aberta, com o Arrenega a molhar-lhe as fontes e a borrifar-lhe a cabeça.
- Lá sociedades assim, não, Ruço. O noivo era meu amigo e tive de lhe jogar quando ele te saltou em cima. Achas bonito?
- E que fiz eu? Que mal fiz eu?...
Cidro só sabia que tinha o corpo numa salada e que perdera a sua gaita de beiços.

CAPÍTULO V
A palha nnma eira vale Sempre
Pois vale, olha não que não vale. Tudo vai da maneira como se faz. O que conta é a maneira como as coisas se apresentam aos outros, seja uma égua balba, um caixote de fazer notas ou as acções de uma companhia em organização. Até se pode vender um carro eléctrico, olha não que não se vende.
O Agostinho Serra pensava nisto enquanto dizia ao abegão: "A coisa está preta, Luís, está preta de verdade." E o outro encolhia os ombros e achava que o amo é que sabia dessas coisas.
- Sete sementes não chega pra pagar a renda, sou eu que te digo. Se sabes fazer contas, pega aí num lápis e multiplica. E os juros a pagar à Caixa? Mesmo que consiga não pagar a amortização, os juros é que tenho de os vomitar. E as sementes ao Grémio?... Está aí naquele livro. Agora junta-lhe as férias de alqueive, de monda e de ceifa, mais o tractor, os criados do ano...
- E as décimas.
- Pois, e as décimas. E os dois bois que morreram?
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- A renda é que leva tudo, disse o abegão.
- E arrancar a terra por menos? É o arrancas. Há sempre empenhos, até empenhes, calcula tu, para se conseguir este favor de ficar teso e carregado de dívidas no fim de um ano de trabalho e de nervos. O trabalho é o menos. Agora os nervos é que ninguém os conserta depois disto tudo.
- O patrão tem envelhecido o seu bocado, lá isso é bem verdade.
- Os desgostos é que matam. Pois não, que não matam. Ainda se tivéssemos ajudas, vá lá com seiscentos diabos! Mas é toda a gente a dizer que o País precisa de trigo, que o trigo é que nos faz falta, e quando o ano corre torto, quase sempre corre torto, quem se meteu na alhada que se amanhe. Isto de ser lavrador é uma gaita! O dinheiro fresco vai todo prà indústria, mas com ela é que hão-de ver o sarilho em que a gente todos se mete. O pessoal abala do campo e qualquer dia temos de começar a comer parafusos e rolos de arame em vez de pão.
- Sim, lá isso...
- Qual isso, nem meio isso, homem! É como eu te estou a dizer, assim mesmo... Claro que a gente é que tem a culpa! Se todos voltássemos as costas a isto, quem quiser pão que o amanhe, havíamos de ver o bonito. O bom e o bonito. E não faltavam promessas de mais isto e mais aquilo, e no fim a história do costume. Tudo o que tinha aqui deixei, fiz duma terra cansada quase uma horta, e amanhã dois pontapés e adeus amigo que se faz tarde. Aparece outro a oferecer mais quatro ou cinco contos por ano e pronto!
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O abegão encolhia os ombros, sem saber por que lado havia de ajudar o amo a sair daquela entalação. Ele dizia muitas vezes à mulher: "Os lavradores levam boa vida, mas também agarram cada dor de cabeça que eu não as queria, não senhor, nem por mais uma."
- O ano esteve muito ruim...
- Já se sabe! Isto não é terra que pague o trabalho que se lhe dá... A gente devia era abalar daqui e meter-se na África. Estou farto de dizer isto! Mas vou sozinho?... Por onde os outros passarem também eu hei-de passar, é o que eu digo. Agora com sete sementes diz-me lá que é que eu posso fazer?
- É muito pouco...
- Muito pouco uma gaita! Não é coisa nenhuma. Sete sementes é a renda. E o resto? vou vender as éguas?... Vendo o tractor? E a hipoteca da Caixa?...
- Talvez o senhorio dê um jeito...
- Olha que lembrança a tua! Olha que lembrança a tua, Luís! Tu acreditas?... Claro que se não tiver cheta, ardeu... Agora por ardeu, lembrei-me do seguro. Ainda ontem paguei o seguro. Mais uma despesa. Que se eu soubesse que tinha sete sementes bem m'importava que o trigo ardesse.
- E se o trigo ardesse?
Agostinho Serra deu de ombros e atirou o chapéu para cima da mesa.
- Se o trigo ardesse, amolava-se a companhia. O que não lhe fazia diferença. Nunca houve companhia de seguros que se fosse abaixo. É negócio seguro como o nome. Mas também por que diabo havia o trigo de arder?... Nunca arde o que é preciso.
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O abegão parecia ansioso. O lavrador percebeu-o e foi buscar o livro das férias.
- Uma porrada de contos! E agora é que se acabou. vou direito ao senhorio e dou de mão. Faço o mesmo à Caixa e ao Grémio. "Aqui estou, meus senhores, fiz o que pude, mas as coisas correram mal e não mando no tempo." O pior é que andei a dizer que tinha doze sementes.
- E eu disse o mesmo a toda a gente. O patrão mandou...
- Que queres? Pra não passar por pobre chorão, olha, arranjei a bonita. Nunca gostei que os outros tivessem pena de mim. E agora lixo-me. O senhorio, a Caixa e o Grémio já sabem a esta hora o que eu disse que tinha, e se lá apareço a falar de menos julgam que os vou enganar. É o que se chama ficar preso por ter cão e preso por não o ter.
- E se o patrão... Sim.se...
- Claro que tenho de lhes dizer a verdade. Se eles não acreditarem, que me metam na cadeia. Vai um homem honrado prà cadeia! Já não era o primeiro.
- O patrão tem amigos...
- Que me hão-de livrar de sezões depois de morto. Disso é que podes ter a certeza. Mas, Luís, os homens são para aguentar as situações. E eu cá estou... Vai-se tudo, paciência! Queria dar-te um dia aí um bocado para fazeres da tua conta. Fica a intenção. De resto, não te fazia favor, tu mereces. Foste sempre um bom amigo, mais do que um colaborador. E assim eu arranjasse patrão como tu o podes conseguir de um dia para o outro.
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- Isso também é o que lhe parece. As coisas não vão boas. E depois todos têm abegões. Quem está servido, está servido. Mas com seiscentos diabos. Não há assim...
- O quê?!...
- Qualquer coisa! Então o senhor trabalha aqui uma vida inteira e agora...
- Agora, olha, outra vida, Luís.
O abegão fazia caretas, torcia os ombros e ia até à parede, dava-lhe uma punhada e voltava pelo mesmo caminho inquieto; depois penteava o cabelo com a mão crespa de ansiedade e aproximava-se do lavrador, que continuava sentado com a cabeça entre os dedos.
- O patrão disse... que se o trigo ardesse... Agostinho Serra voltou-se com uma expressão estranha.
-Sim, e então? O trigo arde com fogo... O fogo só pode vir do céu... Ou duma faúlha...
- Ou dalguém que o bote.
- Mas isso é o diabo, Luís!
- O senhorio pode perder? insistiu o abegão.
- Ah, esse... Esse não perdoa a Deus.
- E a Caixa, patrão?
- Nem a Caixa nem o Grémio...
- Mas a companhia de seguros nunca perde.
- bom, nunca perde, quero dizer: mesmo que uma eira comece a arder, não perde. Ou duas ou três. Ganha menos, claro.
- E se o patrão acabar este ano paga-lhe mais alguma vez?
- Pago como?
- E isso não é um prejuízo para eles? Pois é um prejuízo. E se forem todos?
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- A companhia acaba.
- Então?!...
- Mas onde é que tu queres chegar? Vamos lá ver se te percebo. Desculpa; não tenho a cabeça muito direita com isto tudo. Ora senta-te.
Os olhos sorriam ao abegão. Sentou-se perto do lavrador com as mãos agarradas aos joelhos e ia brincando com elas, querendo esconder o seu nervosismo.
- Quando o trigo estiver na eira, todo, claro, pode haver um incêndio. Não é assim?
- Pois pode.
- E o patrão zanga-se por isso? Se eu fizer aí uma despesa de quinhentos mil réis, o patrão importa-se?
- Hum!
- Então, ponha lá o seu chapéu, monte-se no cavalo até à vila e beba um càlicezinho de vinho doce com a senhora e o menino. Bebam à minha saúde também. Está dito?

CAPÍTULO VI
Viver uma aventura...
Agarra uns tantos pés de trigo com a mão esquerda, fá-los pender para ti, não muito, agora move a foice com gana, sem dar pancada, assim mesmo, e não te importes que o pulso se abra e o braço todo pareça uma linha de dor que te vá arrancar o ombro, porque entretanto, quase sem tu saberes como, já está uma paveia ao teu lado, e outra, e outra - toda a resteva está juncada de paveias que tu e os teus camaradas ceifaram.
Parece que vais cego com as unhas de um sol amarelo metidas nos teus olhos e depois vieram queimar-te os rins com sete ferros em brasa. E que a mão de alguém abriu o desenho do teu corpo a canivete nesse silêncio espantado, onde os pássaros não voam, entre um céu de fogo derretido e uma seara de pão e infortúnio.
Não deixes pender a cabeça, Cidro, nem amodorres o corpo, nem digas que tens sede.
As mulheres que cantem para te embalar, que também elas se embalam na mesma barca inquieta a vogar nesse" mar de espigas. E não pares, não pares um só instante,
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porque há um bando de falcões à volta do sol, e à volta de ti e dos teus camaradas, e se algum parar eles julgam que vocês e o sol morreram, e que chegou a hora das aves de rapina.
Nunca deixes os falcões pousar... Move a tua foice e ceifa.

O dia acabara, ele sentia-se esgotado, mas a fadiga não o deixava dormir. Estivera dois dias no barracão a tremelicar sezões, com um frio de morte a sacudi-lo, mas o cansaço e a expectativa da aventura tinham-lhe rasgado os olhos.
A caminho da eira passou por eles um carro lezirão carregado de trigo; e a eira lá estava assinalada por dois fraseais, no cimo dos quais havia dois trapos hasteados em canas verdes, por causa da pardalada.
Os ranchos abalavam na manhã seguinte. Já tinham improvisado uma adiafa para festejar o regresso às terras e daí a pouco começaria um grande baile para toda a gente, menos para os da Glória, que dançariam no seu barracão privado. Cidro iria tocar, com a sua harmónica nova, azul e prateada, uma marcha que trazia no ouvido e já ensaiara ao pé do valado - baixinho, para que ninguém a ouvisse, pois queria largar a novidade e gozar os sorrisos das cachopas.
Mas melhor ainda era uma aventura que ele sabia. Ele e o Arrenega mais velho.
- E não tens medo? - Medo de quê?!...
-Não gostas de roubar éguas...
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- Isso é outra coisa. Roubar é outra coisa. E talvez seja por causa do meu pai. Pode ser por isso. Foi uma égua que o matou.
- Ah!
- E que disse ele quando tu lhe pediste pra eu trabalhar na eira?
- Que já pensava nisso. Que o patrão dera ordem.
- E ele sabe que eu sei?
- Não. Eu disse que m'encarregava de tudo. Se houver alguma coisa, é comigo.
Cidro lembrava-se das fitas que vira no cinema, quando vendia chocolates e rebuçados e lhe chamavam Chinês; e pensou na Póla Negri, na das fitas e na outra (onde estaria ela agora?). Parecia-lhe que já estava a ver tudo talvez a manada de éguas e poldros começasse a fugir, como as perseguidas pelo bando do Punhais, aquele bandido magro e de barba grande.
- Ele dá duzentos mil réis.
Cidro não era capaz de confessar ao amigo que só aquilo lhe desagradava. A intromissão do dinheiro na sua aventura, não sabia porquê, transtornava-o. Era a única coisa a fazer-lhe confusão.
- Tu ficas com cinquenta. Estás a precisar dum casaco. Podemos ir comprá-lo à feira de Coruche.
- Os teus irmãos sabem?
- Não. Agora, que fiz sociedade contigo, acabou-se. Eles são medricas e acabam por me fazer medo. Tu, não. Tu tens cara de quem leva as coisas até ao fim. És um companheiro às direitas.
Do lado das motas crescia o barulho da raparigada, com o entusiasmo aceso pela ideia de partir. Regressar era
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sempre bom. Chamavam pelo tocador num alarido de gritos e palmas, embora o dos gaibéus já tivesse começado "a linda aroeira" e algumas cachopas o acompanhassem num coro desafinado.
Os dois iam-se encaminhando para o lado dos aposentos, calados agora, que era melhor deixar a imaginação galopar o seu cavalo sem rédeas do que repetir coisas já ditas. Cidro apanhou uma espiga caída no carril, enfiou-a numa das casas da camisa, e começou então a tocar a moda nova. Os ceifeiros ouviram-no e vieram esperá-lo ao pé da mota dos bois, enquanto as cachopas corriam a rodeá-lo, atirando-lhe confeitos e papoilas, e alguns pares já rodopiavam à sua frente, como se na melodia da gaita de beiços houvesse a ponta de uma dobadoura.
Zé Pintado fez-lhe um sinal com a mão, assim com modos de quem dizia "boa noite, rapaz, o que lá vai, lá vai". E ele foi passar à porta do barracão do seu rancho, entrou lá dentro com a bugalhada na cola, desafiando os que já estavam deitados com alguma ponta de febre ou roedura de saudade, dalgum bem que ali ficasse, como sucedia à altarrona de blusa amarela. Que essa, mal viu o Arrenega, foi pendurar-se-lhe no braço e abalou com ele até ao terreiro, onde naquela noite nem era preciso o lampião de petróleo.

...Cá levo o teu nome escrito numa folhinha de freixo.
É melhor levá-lo ainda no coração ou bordado num pano a enrolar um ramo de flores, como fazem as glorianas, que
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já iam longe, num carro de bois, a caminho da terra. Do rancho do Zé Pintado também não havia sinal. Todos iam para as suas terras.
Mas também é bom ficar numa eira, pensava o Ruço, entretido a ver o serralheiro de fato de macaco, na última afinação da debulhadora pintada de amarelo com uma lista vermelha. O tractor já começara a trabalhar, num zangarreio danado de milhões de cigarras malucas, que nunca mais se calassem, e agora era só ligar-lhe a correia grande duma roda à outra, pois o pessoal estava todo no seu lugar. Cidro e duas mulheres tinham começado a trazer os molhos dos fraseais para junto do homem que segurava a forquilha. E lá no alto, na boca de meter o pão, um eirante ria para o companheiro que amarrava a saca ao boquete de saída do trigo, enquanto o Arrenega, com outro homem, se chegava para o lado da enfardadeira. O abegão mandara distribuir vinho e esperava o sinal do serralheiro, ainda desconfiado com o tractor.
- Vamos embora?
- Vamos embora!
- Vamos embora, pessoal! confirmou o abegão.
O aumentador desfez o primeiro molho, e outro, e mais outro, e logo a debulhadora começou a verter grãos de um lado e a expelir palhas pelo coice, que a outra máquina agarrava e dava jeito à sua maneira, apertando-as com arames e entregando-as ao homem empilhador de fardos. E o ritmo cresceu, como se a correia grande passasse também pelos movimentos dos eirantes e das duas mulheres que ajudavam Cidro a trazer os molhos para o aumentador.
O ruído da debulhadora cobria os gritos das conversas. Nuvens de moinha dançavam lá atrás ao pé do Arrenega.
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O suor alagava os corpos. E o ritmo das máquinas aumentava a cada instante - sete sementes é uma miséria, mas talvez se dê um jeito.
As cigarras malucas não se calavam dentro do tractor Ninguém podia parar um instante.
"Mais pão!", pedia o eirante que estava sentado lá em cima e já pusera um lenço de ramagens à volta do pescoço.
"Mais pão!", pedia o homem da forquilha.
E o frasca! grande desmoronava-se pelas mãos do Ruço e das duas mulheres, sempre a passo estugado, cá e lá, embora o rapaz pudesse ainda ansiar a chegada da noite para a sua grande aventura. O serralheiro vigiava o tractor. De um saco cheio de trigo passava-se a outro metido no boquete do lado; e os fardos saíam lá atrás, e as moinhas de palha bailavam e subiam, como uma peste de sarna que se pegava ao suor dos corpos.
"Mais pão!"
"Depressa! Mais pão!..."
"Mais pão! Tragam mais pão!"
O ritmo do trabalho era uma vertigem. Os homens não tinham conta nos movimentos que faziam - tudo era automático, como se a correia grande passasse também aos seus braços e os arrastasse na mesma velocidade da roda maior. Cidro estava empolgado. Aquilo, sim, era trabalho para homem -qual loja, qual oficina de ferrador! Agarrar num molho de trigo e vê-lo sumir-se lá em cima, e depois segui-lo na barriga daquele bicho amarelo com lista vermelha, que o partia e separava, como se tivesse cabeça, e olhos, e mãos, e tudo fosse feito por gente que lá estivesse escondida e dissesse aos bagos de trigo "vá toca por ali!" e dissesse ao resto para sair pela outra banda, que lá,
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haviam de ver, estava mais gente escondida para lhes dar a forma dos fardos.
Já não podia andar a passo, mas corria; custava-lhe erguer a mão, mas arrastava nas duas os molhos daquela meda grande, onde lá arriba tinham espetado uma cana com um trapo vermelho. Lembrou-se das papoilas e dos confeitos que as raparigas atiraram sobre a sua cabeça quando apareceu no terreiro a tocar a moda nova.
O ritmo da debulhadora cobria o grito das conversas. Cobria tudo.
Cidro estava de costas, corria a buscar mais dois molhos, e ouviu -a máquina deixou-o ouvir aquele grito desesperado, que se lhe enfiou na fadiga e nas recordações. Depois todos gritaram e ele voltou-se assustado. Viu farrapos de sangue. E lembrou-se do trapo lá no alto do frasca! de trigo que ele ajudara a ceifar - e das papoilas e dos confeitos que haviam deitado sobre a sua cabeça, ia ele ao lado do Arrenega.
Arrenega, meu amigo, onde vais tu? Onde vais, sócio?!... Então, e esta noite?... Esta noite pertencia-te a manta nova oferecida pelo rancho quando o malandro do gaibéu me castigou. Onde está o teu riso? Sim, onde está?... E agora quando eu escrever cartas quem vai receber o dinheiro? Quem irá à minha frente dizer pelas empostas que conhece um grande tocador de gaita de beiços?!
A debulhadora parara. Havia um silêncio. O silêncio mais fechado que ele escutara em toda a sua vida.

CAPÍTULO VII
... e vivê-la até ao fim
O amigo dissera que ele tinha cara de levar as coisas até ao fim. E naquele momento ele sabia que era preciso, embora não percebesse porquê.
O trabalho parara na eira; um carro de bois levara os restos do companheiro para Samora - não, ele não o quisera ver, bastara-lhe chorá-lo sozinho dentro do barracão, naquele canto onde os dois dormiam com outros ceifeiros.
Sentia mais alguma coisa quebrada dentro dele e já não podia ser, a partir daquele grito, um rapaz ansioso em busca de esperança. Percebia que se metera numa engrenagem - não lhe iria suceder como ao Arrenega? -, numa engrenagem que nunca o deixava quieto por muito tempo. Lá longe havia o túnel do colégio... Depois a aprendizagem com o Lobato, a passagem do rio e aqueles anos na companhia do Mula Brava. E agora... Agora parara um tempo e lá iria outra vez, sem amigos, sozinho, por esse mundo dentro.
O Sol descaía por trás das montanhas distantes, para além do rio donde ele viera.
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Sentara-se à porta do aposento do abegão, à espera que ele saísse, e no terreiro nem um vulto aparecia, como se naquela emposta tivesse caído uma maldição. Ontem ainda ali se bailara pela noite adiante ao som da sua moda nova. E agora a solidão, aquele grito terrível, e ele sozinho - sozinho de amizades e carregado de amargura.
Decidiu-se a bater à porta. Daí a pouco viriam as trevas.
- Entra! disse-lhe a voz áspera do abegão.
Entrou e foi de rompante até à mesa onde o outro estava sentado.
- Que queres tu? Vens em má hora pra pedir alguma coisa.
Encarou o homem duma maneira que o forçou a olhá-lo bem. Pensou ainda: que diabo de cara é que teria feito?
- Eu sabia de tudo, disse depois.
-De quê?! Que é que tu sabias?... És parvo?
- Não s'importe que eu seja um rapaz. Eu sozinho é que ia ajudá-lo. Sei onde ele escondeu a gasolina que vossemecê lhe deu... Sei tudo. O senhor dava-lhe duzentos mil réis. Mas eu não quero dinheiro. Não preciso desse dinheiro para nada! Faço tudo na mesma... Não, não tenho medo. Não sei que cor isso tem. Só preciso que o senhor, sim, é só isso que quero: compre-lhe um caixão para ele não ir de corpo à terra.
A voz embargava-se-lhe.
- Compra? Diga que compra...
O abegão acenou a cabeça. Ele saiu a correr, foi ao barracão buscar a sua manta nova e a caldeira, e partiu pelo valado adiante, depois de se despedir dos criados, já metidos na mota dos bois. Eles tinham-lhe perguntado
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para onde ia àquela hora; dera a mesma resposta de sempre, talvez não soubesse outra: "Vou-me à vida..." Sabia lá para que lado ficava a vida!...

O incêndio rebentou num instante e afogueou o céu de uma cor sinistra, que não era só de fogo. Uma parte do vento norte ajudava-o, parecendo ir penetrar em todos os esconsos da noite, para barrar o horizonte com uma barreira de lume e de amargura.
Aquele clarão acompanhava pela Lezíria um vulto que se sumia pelo carril emparedado de cardos secos.

OS GRITOS SILENCIOSOS
ISSO NÃO É VERDADE!
Disse-me aquilo num uivo, com os olhos cheios de ódio e as mãos trémulas, como sempre que segurava a sua metralhadora invisível e varria a sala em disparos alucinantes. Nunca o vira fitar-me com aquela ansiedade agressiva.
Das outras vezes ele ficava mais calmo, com o rosto quase sereno, e a ponta de um sorriso a alvorecer para além da cor terrosa, acentuada todos os dias na sua pele a murchar.
Eu pensava que as noites deviam ser terríveis para ele e que as insónias e os pavores da escuridão da sala o marcavam hora a hora daquela palidez cancerosa.
"Não, isso não é verdade! Assim não... Assim não lhe conto mais nada."
Já refeito do primeiro choque recebido pela sua reacção brusca e violenta, pude responder-lhe com calma.
"Mas eu sempre disse que não podia copiar o que tu dizias. Nunca ninguém foi capaz. Tu sentiste as coisas
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duma maneira e eu tenho de as sentir doutra. E nem mesmo tu sabes como elas te tocaram no momento exacto em que ocorreram. Já não és a mesma pessoa... Percebes? ... Faz um esforço. Vê se entendes."
"Não. Assim não posso compreender."
As mãos suavam-lhe e isso parecia incomodá-lo, de tal maneira as esfregava nas calças de cotim.
"Devia haver... sim... uma espécie de muro, que os senhores quando escrevem não deviam passar. O que está aí é a minha vida..."
"Não", disse embaraçado. "Isto já não é bem a tua vida. É uma parte da vida de um certo rapaz-"
"Que sou eu!", lembrou-me com arrogância.
"Também és tu, isso é verdade. Mas já não és tu sozinho."
Percebi-lhe um esforço para entrar nas minhas palavras, que ultrapassavam o seu entendimento. Quis sossegá-lo. Achei de meu dever sossegá-lo, de tal modo o via perturbado.
"Mas então?!"
"O que o senhor me leu agora foi quase tudo diferente. Quase tudo..."
"Só o final."
"E isso é o mais importante. Para mim é o mais importante. Quando ouvi aquele grito e percebi que o Arrenega morrera, nunca mais me lembrei do que ele me tinha dito sobre o caixão. Alguém seria capaz de se lembrar?"
"Eu só queria humanizar-te. Percebes?"
"Não. Eu acho que naquela altura ninguém se podia lembrar disso. Eu deitei o fogo ao trigo..."
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"Porque ele te convidara para o fazeres, e porque gostas de levar até ao fim as coisas em que te metes. Não é isto?!"
"É quase... Mas falta-lhe o quase. Eu deitei o fogo também por vingança. Só depois fui falar com o abegão e pedir-lhe o dinheiro. E só nessa altura me veio à lembrança que o Arrenega não gostava de ir com o corpo à terra. O abegão negou-me e disse-me: não tenho nada a ver com isso, nunca mais passes a esta empasta, porque doutra maneira terei de te entregar à guarda e ao homem da companhia de seguros. O patrão é um homem sério. Eu também sou um homem sério. Deitar o jogo a uma eira de trigo é um crime."
Calou-se, desconfiado, olhando à sua volta, como se algum prisioneiro o pudesse perceber e denunciar.
"Podes falar", insisti.
Ele hesitou ainda. Depois, numa rajada, voltou à sua versão.
"Essa conversa que o senhor pôs do abegão e do lavrador, eu não sei se ela se passou."
"Posso garantir-te."
"O senhor ouviu-a?"
"Não. Mas não é necessário. Bastou-me saber que ele falara ao teu amigo. A gente não precisa de ver, nem de ouvir tudo, para reconstituir a verdade."
Ele agora não acreditava em mim.
"Pois seja.", rematou com indulgência. "Agora o que se passou comigo, não é a mesma coisa. Ele pôs-me fora da emposta, aos empurrões, e eu abalei já o Sol nascera. Fui sempre pelo carril adiante, como se levasse o fogo nos pés, e tão triste, tão desgraçado, que nesse dia não tive
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fome, nem parei em lado nenhum a pedir trabalho. Levava a manta ao ombro e a caldeira na mão, e só chorava. Não tenho vergonha de o dizer. O senhor já esteve alguma vez na vida nem amigos?", disse-me num arremesso.
"Não."
"Agora mesmo aqui dentro o senhor tem amigos. Esses todos... Não vale a pena enganar-me, porque eu sei que o senhor pensa como eles. Não tenha medo de mim. Os senhores mesmo quando são fuzilados nunca vão sozinhos. Mas eu ando a viver há muitos anos sem mais ninguém. E isso é pior do que tudo! Sabe? O senhor não sabe. Como é que o senhor há-de saber?"
"Tens a tua Nena."
"Sim, só ela. Mas os amigos são precisos. Também são precisos... Talvez ainda mais. Eu é que dizia que não, e ria-me, e brinóava. Qual amigos! Pra que servem os amigos? No fundo era conversa. Às vezes, raiva... Uma raiva danada!"
Depois baixou o tom da voz e tive de fazer um esforço para o escutar, de tal modo ela era íntima.
"Naquele dia quebrou-se dentro de mim qualquer coisa muito importante que eu não soube apreciar bem. Ainda ri muitas vezes; ainda encarei a vida... O pior é que aquilo se quebrara e nunca mais se consertou. Eu acho que foi o coração."
"Porquê?!"
"Por muita coisa que fiz depois. Eles empurraram-me, a gente tem de se defender, mas eu já não podia estar bom."
Vi-o ficar de expressão fixa na parede dos bailiques.
"Eu podia dizer isso no julgamento."
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"Se te julgarem... O teu capitão não te mandou dizer que qualquer dia saías em liberdade? Talvez ainda precise de ti..."
"Foi ele que me disse numa visita."
"Então..."
"Mas se eles me querem, não é para coisa boa, com certeza."
"Talvez para seres guarda dalgum campo de concentração."
Vi-o sorrir-se. Apeteceu-me esbofeteá-lo. Mas depois compreendi-o.
"Os guardas matam gente?", perguntou-me ainda, quando eu me levantava.
"Não sei. Porquê?!..."
"Já não sou capaz de matar mais gente. Não, de noite, nunca mais."
"Não vejo a diferença", respondi-lhe, querendo aparentar naturalidade naquela conversa absurda.
"O senhor diz isso porque nunca matou de noite. As caras das pessoas, de noite, são terríveis. De dia, um homem morto é só um morto. Já não faz mal. Mas de noite eles vêm atrás da gente, parece que se agarram aos nossos ombros quando a gente volta. E os olhos... Os olhos é que é o pior. Naquela noite em que matei muitos, o senhor nem sabe..."
Levantei-me e ele seguiu-me. E eu tapava os ouvidos, querendo fugir daquela obsessão trágica que ali dentro tinha ecos doutra guerra que marcara a minha juventude
para sempre.
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Foi nesse momento que a porta da sala se abriu e um guarda, aquele gordo, de cara prazenteira, chamou por ele: Portugais! Un avis pour toi. Vite!
O meu patrício correu a agarrar o aviso e na sala fez-se um silêncio. Todos deviam odiá-lo, aos seus crimes e à sua metralhadora, mas percebi naquele instante que a sala inteira pensava o mesmo. Agora iam julgá-lo. Os mesmos iam julgá-lo.
"É capaz de me ler? Não posso agora", pediu-me, mal deu comigo junto da janela gradeada.
"Daqui por quinze dias..."
"Sim, é a minha ida ao tribunal. Já calculava. vou escrever amanhã à minha Nena. Não deve faltar muito pra ir ter com ela. Agora tenho de lhe contar o resto, mas mais depressa, porque quinze dias passam num instante."
"Disseste há bocado que não me contavas mais nada. É melhor até ficarmos por ali. Precisas de preparar a tua defesa..."
"Qual defesa? A minha defesa está feita; não tenho nada para dizer. Por isso lhe posso contar o resto. Sou eu que lhe peço. Valeu?... Eu quero que o senhor me fique a conhecer melhor. Um dia pode voltar à nossa terra e dizer: encontrei o filho do Bago de Milho, estava preso comigo, mas não era nenhum malandro."
ESPERA POR MIM!
Ele estava a escrever e parecia que desta vez não o perturbava o ruído da sala. Não interrompia a carta no pásseio
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agitado doutros momentos, como se fosse preciso mover-se para que as palavras lhe viessem à caneta.
Queria fazer uma carta diferente, dissera-me naquela manhã, mal saíra do quarto onde estava agora com mais três prisioneiros. Antes de se meter no seu gabinete, como chamava ao recanto do velho depósito de água, estivera a arejar as calças e a vigiar-lhes o vinco, a escovar o casaco preto e a mirar atentamente as duas gravatas, como se conviesse decidir com tempo qual devia levar no dia do julgamento. Sabia que ele pensava nisso.
Um grupo de três espanhóis discutiam com o calor de sempre, mesmo ali à sua beira, parecendo que se iriam engalfinhar de um instante para o outro. O bilbaíno, sempre risonho, rebentando em gargalhadas por um dito qualquer, excitava os dois galegos para os arrancar da tristeza em que caíam mal ficavam sós.
A alegria dos espanhóis parecia aterrorizar os judeus, denunciados mesmo ali pelo sinal amarelo com que os nazis os marcavam.
Esses nunca tinham dúvidas sobre o seu destino. Retraíam-se de falar com os outros prisioneiros, viviam de olhos ansiosos para os ruídos que vinham do lado da porta
- o matraqueio das chaves angustiava-os - e juntavam-se perto da janela, sentados quase sempre, como se assim pudessem escapar à atenção dos carcereiros.
Pensavam na próxima leva. Eram material para os campos de concentração.
Vincent, um operário metalúrgico de Genevilliers, pusera-se a assobiar uma marcha de guerra, cujo compasso marcava, com um ritmo marcial, no banco grande onde nos sentávamos mal tocava a alvorada e levantávamos os
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bailiques. O filho do Bago de Milho voltou-se de olhos arregalados quando ouviu aquele assobio. Eu vigiava-o de longe. Ele fez ainda um trejeito com os ombros, como se compreendesse, resignado, o direito de o outro assobiar, mas o rosto avermelhava-se aos poucos e os tendões do pescoço engrossavam, sinal de que a ira o transtornava.
"Cala-te com os tambores!", gritou para Vincent, que fingiu não dar por ele, aumentando até a intensidade do rufar de dedos.
"Cala-te, comunista!", gritou mais alto ainda.
"Falas comigo, mon vieux?", perguntou-lhe Vincent.
"Sim, é contigo mesmo. E depois?"
"Não falo com assassinos", respondeu-lhe a sorrir.
"E que tem isso? vou ser julgado e vou sair em liberdade", respondeu alucinado.
"Não digo por esse. Isso foi uma morte entre família. Mas os que assassinaste na guerra onde estiveste."
Ele sorriu, desdenhoso: "Por esses recebi quatro medalhas. Foram os teus patrícios que mas deram."
"São franceses da tua laia ..."
Aproximei-me de Vincent e pus-lhe a mão no ombro: "Deixa lá isso!"
"A cadeia não é dele, não achas? Não o deviam ter aqui misturado com a gente."
Vendo que Vincent se calava, Cidro voltou a provocá-lo, hostilizando-o em português. Um guarda abriu a porta, pediu silêncio com um olhar ameaçador e voltou a desapa. recer com um ruído de chaves.
"Patrício! O patrício faz favor!..."
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Quando me aproximei, o filho do Bago de Milho veio ao meu encontro para me explicar que o francês é que tivera a culpa. Ele só lhe pedira que se calasse. "Já não se pode escrever aqui dentro?"
"Mas ele também pode assobiar", respondi.
"Pois, sim, mas... Eu estou a escrever à Nena. E aquela marcha, sabe? Preciso de fazer uma carta bonita e aquela marcha lembra-me coisas más."
"Ele não tem culpa..."
"E eu tenho?" (Depois pareceu reconsiderar e ]'içou triste. Na testa, as veias salientes eram duas plantas caprichosas, desenhadas a azul.)
Desviei-o dessa preocupação para lhe perguntar: "E que vais dizer à tua Nena? Falaste-me de manhã numa carta bonita..."
Ele estendeu-me o que escrevera e pôs-se, ansioso, sobre o meu ombro, a seguir a minha leitura. Ao alto, em letras enormes, destacava-se uma frase: ESPERA POR MIM. E de vez em quando, por toda a carta, a mesma frase repetia-se, numa obsessão.
"Se vossemecê (foi a primeira vez que me tratou assim), se vossemecê pusesse aí umas palavras suas... Gostava de lhe mandar uma carta diferente."
"Ninguém melhor do que tu pode dizer o que sentes. Está boa."
"Acha? Então deixe-me pôr aqui só uma coisa. Sabe o que é? A liberdade também cheira. Fica bem? Vossemecê escreveu que o amor e o ciúme têm cheiro."
"Foi o Mula Brava que o disse."
"Mas foram escritas por si. E as coisas escritas ficam mais importantes."

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Depois saboreou a frase e repetiu-a: "A liberdade também cheira."
"A quê?", perguntei-lhe.
"com essa é que vossemecê me tramou. Mas quero dizer na minha que cheira ao campo. À terra quando chove...-"

CAPÍUTLO VIII
Uma árvore bem seca
Foi assim que ele se chamou ao recomeçar a narrativa da sua vida.
Tínhamos combinado que eu já não escreveria mais o que me contasse, embora ele insistisse, talvez com receio de me ter magoado quando se insurgira com o episódio do jogo na eira. Arranjei uma desculpa - os dias corriam depressa e em quinze dias não poderia escrever e ouvir tudo o que tinha ainda para me dizer.
As notícias chegavam à prisão, vencendo os muros da cadeia e a vigilância cada vez mais apertada, e não permitiam que eu achasse distracção naquela forma bizarra de vencer a ansiedade das horas abertas entre mim e a morte.
Nunca pensei sair dali com vida. Ainda hoje não entendo bem as razões que levaram à minha passagem por um campo de prisioneiros, quase no fim da guerra. E como consegui manter-me vivo até ao dia da libertação.

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Pois era mesmo uma árvore seca, disse ele, daquelas que ainda ficam de pé durante muito tempo, mas só esperam os meses necessários para apodrecer até ao cabo ou algum golpe de vento que as derrube por uma vez.
O primeiro trabalho que me ofereceram foi numa eira. Não, não quero, disse eu, e abalei esparvoado. Ainda hoje, e já passaram quatro anos (veja lá como o tempo passa, parece que ainda foi ontem), sempre que falo numa eira, ou vejo trigo maduro, pronto a ceifar, oiço o grito dele e o barulho das máquinas. Para mim aquelas máquinas falam e dizem todas o mesmo: espera que eu te agarro, espera que eu te agarro.
O senhor já reparou? Não admira, porque também daquilo que me leu o senhor fala de cheiros e de cores que eu nunca percebi nas coisas com esse nome. É isso mesmo como vossemecê disse agora: nem todos sentem da mesma maneira.
Pois aquelas máquinas danadas têm voz de gente para mim. E as metralhadoras? Também. Também, mas essas cantam e fazem-me menos medo. Parece impossível. São feitas pra matar e é a elas que devo a minha vida. Se não fosse a minha Mariana já aqui não estava. A vida tem coisas esquisitas.
Como ia dizendo, abalei esparvoado para fora da eira e toda a malta dos eirantes se largou numa sogada. Veio um cão atrás de mim, pega não pega, e eu, que nunca tive medo de cães, embrulhei-me com a manta e esparranhei-me pelo chão fora. Deu-me uma zuna, levantei-me, e se o podengo não abala cortava-o com a foice. Eu não reparei nisso, ainda não percebia o que queria dizer aquela raiva danada e raivosa, mas foi o primeiro sinal que me
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deu de se me ter partido qualquer coisa cá dentro. Lá o que foi, não sei bem. Devia ter sido o coração, já lho disse, porque daí em diante tanto me apetecia fugir e atirar-me às cabanas e às pessoas como deixar-me cair e chorar, chorar e apodrecer até ao fim. Só passei a conhecer duas coisas: ou raiva, ou tristeza. São dois fundões donde não se pode sair de pé limpo.
Nunca mais me esqueço desse dia. O sol estava bruto de calor, O corpo daía-me todo e descalcei-me, como se fossem só as botas que me pesavam. O carril era uma almofada de poeira, de uma poeira quente como a cinza de um forno que estivesse a arder nas entranhas da terra. Queimava-me a pele. A manta no ombro pesava como um penedo, mas eu caminhava sempre, perseguido pelas palavras da máquina que nunca mais deixei de ouvir naquele dia todo até à noite. Na caldeira só levava um resto de toucinho rançoso e um bocado de pão duro. Doía-me o fole do estômago e disse pra mim: aquilo devia ser o rato da fome.
Subi para um combro onde havia uma moita seca, à cata de uma sombra, e só então olhei a Lezíria. Ninguém faz ideia, ninguém, o que é correr os olhos à sua volta, não ver sinal de gente, nada a dizer que há mais pessoas vivas. A vista ardia-me, e aquela terra medonha de uma ponta à outra do céu, espalmada, a tremer, e eu sozinho com ela. Agora ia não me ralava, até era bom.
Deixei-me cair, encostei a cara ao chão queimado e fiz força, como se pudesse enfiar a cabeça pela terra dentro. Abriram-se-me os olhos d'água, de tristeza e de raiva, de vontade de gritar e também de pedir que não me fizessem mal. Mas quem me fazia mal?

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Estar só, sim, eu gosto de estar só, mas ver gente ao longe é uma coisa boa. Agora estar só e não ver ninguém, gritar e ninguém responder, é a tristeza mais triste que eu conheci. Se naquela altura passasse um carro, eu pedia uma boleia e voltava para a barraca do Mula Brava. Ou atravessava o rio e procurava o Carapinha, a Teresa, o Lobato, o posto da guarda... Sim senhor, até o posto da guarda. Ou o túnel do asilo.
As minhas lágrimas ardiam na terra seca. Fiquei ali não sei quanto tempo e o rato da fome a roer, a roer; fui-me à caldeira, tirei o naco de pão e, quando lhe deitei os dentes, a boca não queria. Era uma pasta. Parecia lama. Mastiguei uma côdea e acabei por cuspi-la, tão amarga era.
Agarrei no meu amanho e comecei a andar. Foi mais adiante que encontrei uma aberta. E, sem me despir, meti-me nela até ao pescoço, mergulhei a cabeça por duas vezes e bebi água. Depois lembrei-me que se tivesse coragem para ficar com a cabeça mergulhada tudo acabaria ali mesmo. Mas eu ia fazer dezassete anos. E isso é uma coisa importante. O senhor não acha? É o mesmo que estar cheio de sede, ter na mão uma melancia fechada e não querer abri-la. Nessa altura devo ter pensado que valia a pena abrir a melancia. E isso fez-me arranjar ganas para não me sentar no fundo da aberta.
Consegui comer o pão. E foi bom, sabe? Nunca um bocado de pão teve um gosto tão bom. Eu sou assim. Salto de uma coisa para a outra, da raiva para a tristeza, sem saber como é que isso sucede. Comi o pão com raiva, sem me servir do canivete. com o canivete, aos pedacinhos, a comida dura mais tempo. As mãos também
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comem. Às vezes a gente tem mais fome nos dedos do que na barriga. Muita água enche o estômago. Agora a água, quando se tem fome, não enche as mãos nem os olhos.
Sentei-me a enxugar cá fora, vivi ali um bocado com as cobras e as ratas das abertas. Ouvi passos de animal ferrado, pus-me em pé e vi a distância um campino a cavalo. Deitei a correr para ele, o homem julgou que eu ia aflito e parou. Ainda corri mais. Depois, quando cheguei ao pé dele, é que reparei: ia só para lhe dizer boa tarde.
"Que queres?", perguntou-me. Lembrei-me que não lhe podia dizer só boa tarde, ele ia julgar-me maluco, e disse-lhe se ele precisava de uma ajuda, eu não m'importava de ficar pelo comer. Respondeu-me que não. "Vossemecê sabe onde há trabalho?" "Agora só nas eiras. És daqui?" "Sou, sim senhor. Sou filho do Bago de Milho." "Não conheço." "Era cocheiro. Cocheiro do Javardão." "O Javardão conheço... Pois vai aí a uma eira. Talvez precisem de rapazes."
E abalou.
Agarrei-me com os olhos à garupa do cavalo e acompanhei-o até desaparecer.
Mas aquilo fez-me bem. Peguei na minha tralha e comecei outra vez a andar. O sol pusera-se a descair. O ar arrefeceu um pouco; foi um empurrão nas minhas pernas cansadas. E lá fui outra vez, sem saber para onde andava, mas a pensar que na primeira emposta onde não houvesse debulhadoras a trabalhar eu voltaria a pedir qualquer coisa que fazer. Mesmo para ser ajuda numa manada de toiros. Era coisa mais séria, mas se os outros lá andavam, eu não era menos e podia fazer o trabalho.
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Aproximara-me da margem do rio, percebi a ponta dft umas velas, e logo numa curva do carril dei com um barraco de caniço. Um cão veio ladrar-me às pernas, atiçado, o filho da mãe, parecia um rolo de arame farpado. A voz de um homem é que o abrandou.
"Queres alguma coisa?"
"Se há trabalho... Qualquer trabalho. Mesmo guardar toiros..."
O homem sorriu-se, assim com modos de quem achava graça à minha conversa.
"Vais pra longe?"
"Ainda não sei. Ando à cata de qualquer coisa onde mate o corpo".
"Pois aqui não há. Procura na outra banda. Aí podes arranjar. Há obras e fábricas."
Respondi-lhe obrigado e deixei-me ficar. O homem meteu-se no barraco, o cão voltou a rosnar-me da porta e só então me lembrei que talvez a gaita de beiços fosse capaz de conseguir alguma coisa dali. Toquei por tocar, o coração estava partido, e bem percebi que já não tinha nos beiços os mesmos sons. Mas o guardador chegou-se outra vez.
"A noite vai agarrar-te no caminho", foi só o que ele me disse.
Eu era uma árvore seca. Sentia-me incapaz de meter a conversa por um lado que agradasse ao homem. Ele era alto e mal-encarado. Pôs-se a acender o lume, meteu umas batatas na caldeira, e fez aquilo tudo sem olhar para mini. Depois entrou na poisada, voltou com uma espingarda de dois canos e encostou-a ao banco de dois pés, onde se sentara.
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Tive vontade de lhe perguntar se era caçador, se naquele ano havia muitas perdizes, mas a raiva deu-me para o pôr mais desconfiado comigo. E fiquei calado. Meti a harmónica na algibeira, rapei do canivete e pus-me a limpar as unhas e a descascar os calos das mãos. O homem começou a ficar nervoso. Eu ria-me para dentro.
"Agora é preciso cuidado", disse eu, por fim. "Ainda ontem deitaram fogo à eira do Agostinho Serra. Deve ser uma quadrilha que anda aí na Lezíria."
"Morreu lá um rapaz...", respondeu o homem.
"Isso não sabia eu."
E calei-me, pus-me a chorar para dentro. Depois atirei com a manta para o ombro, mais as botas e a foice, e abalei. Só à distância lhe disse boa tarde. Ele levantou a mão e o podengo ladrou-me.
"Na Companhia parece que há trabalho de valadon>, gritou-me de longe.
Nem me voltei. Pus-me a andar depressa pelo carril adiante, era como se levasse fogo no rabo, mas assim que me apanhei ao pé da aberta, sentei-me, derreado. A noite chegou de mergulho.
Não me custou a adormecer, mas foi um sono danado, daqueles que cansam mais do que uma semana de ceifa ou uma caminhada ao sol. Sonhei com a debulhadora e o Arrenega, com o abegão e os bailaricos, tudo misturado, e a máquina, atrás de mim, andava sempre sem ninguém lhe mexer: espera que eu te agarro, espera que eu te agarro.
Acordei com frio. Embrulhei-me na manta e ainda tremi mais. Lembro-me que a Lua parecia uma eira de luz a girar no céu. O queixo batia-me e não era de medo. Podia ter medo ali sozinho, mas não era isso. Estava com
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elas. As sezões agarram a gente com mais gana quando temos fome e a canseira se mete no corpo das pessoas. Falei outra vez com o homem mal-encarado e pegámo-nos à pancada. Eu puxei da navalha, rompi-lhe o bandulho e depois sentei-me a limpar as unhas, roubei-lhe a espingarda e andei aos tiros na Lezíria, a tudo o que aparecia; dei um tiro na Lua e ela veio lá de cima de escantilhão e caiu-me em cima da cabeça. Fiquei queimado.
Acordei outra vez e suava. Estava molhado, como se me tivesse metido outra vez na aberta.
E agora não sei o tempo que fiquei ali. Um dia, ou muitos dias? As maleitas sacudiam-me, batia o queixo, enrolava-me no chão. Julguei acabar ali mesmo. Foi o cão que deu comigo. Ladrou-me e o homem apareceu, agarrou-me em charola, levando-me para o seu barraco, e obrigou-me a deitar na tarimba. Eu não queria.
"Porquê, rapaz?"
Só fui capaz de lhe dizer que não precisava dos seus favores, mas adormeci.

CAPÍTULO IX
Nem sempre se ouve o que nos contam
"Um homem aguenta muito mais do que se julga. Às vezes penso que aguenta tudo."
"Quando confia nalguma coisa", respondi-lhe distraído.
"Um homem precisa é de acreditar nele. Vi homens na guerra -quase esfacelados. E não fechavam os olhos à vida. Quariuo morriam, morriam de olhos abertos. Outros, e foram muitos, apanhavam um tiro de nada, daqueles que a gente chama um tiro de sorte, e apagavam-se sem razão."
"Esperavam só um pretexto para morrer. Julgavam que a vida nada mais lhes podia dar. São os fracos... Ou talvez os mais puros, quem sabe?"
"Olhe, cá comigo, nunca pensei viver ainda depois de tudo o que me tem acontecido."
"A coragem faz milagres", disse eu sem pensar nele. (A sua coragem não me interessava.)
"Mas eu não pus força nenhuma em muitas coisas. E cá estou. Para quê?"
Naquela manhã fria, outra frieza maior viera sentar-se entre nós.

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"No tempo que passou entre a morte do Arrenega e o meu primeiro trabalho como valador", continuou Alcides, desviando o rumo do diálogo, "tive horas amargas, danadas, daquelas que partem um homem, e também as minhas horas boas. No princípio, calcule, estive pra me pendurar numa árvore. Ainda cheguei a tirar a camisa e a passar um laço com ela. Está a ouvir-me?"
"Continua."
"com as sezões vi-me perdido..."
Um novo prisioneiro trouxera consigo um pedaço de sol para nos aquecer. Estávamos no terceiro ano da ocupação e bem precisávamos de pequenos fios que nos prendessem à esperança de vencer. Era um homem de meia-idade, talvez um professor. Não passara pelo segredo. Vinha um pouco pálido, como todos os que entram numa cadeia, mas o seu 'sorriso e os seus olhos verdes e límpidos traziam ainda a luz da Uberdade. Vincent deu-me a boa notícia:
Na linha de Livron a Gap descarrilara mais um comboio com alemães. Tratava-se de uma forma-. cão mista, um comboio de medo, como lhe chamávamos, com perto de cem vagões. Os frisous tinham acendido fogareiros por causa do frio e deviam ir aos magotes para não se sentirem tão sós. Eles agora começavam a ter medo da solidão. O Silêncio do Mar apavorava-os.
Apesar da vigilância, tudo se fizera como estava previsto. O maquinista e o fogueiro, postos ao cor-
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rente do golpe, saltaram numa curva; uns metros depois estava a emboscada e o comboio incendiou-se.
Estaria Matorin metido no "servicinho"? Depois que a Gestapo o descobrira, tínhamos conseguido passá-lo para fora de Paris; talvez ele trabalhasse agora naquela região. Sabia-me bem pensar que sim. Era como se eu próprio tivesse pregado o "plásticos ao carril da linha. Matorin, meu camarada, que nome usarás agora?
Tinha de me lembrar de Louise. Louise colava-se sempre a tudo o que vivia lá fora. Ela era a minha coragem. Só na cadeia comecei a perceber que, para além da Resistência, Louise caminhava sempre perto de mim. Às vezes penso: meter estas afeições na acção política é ofuscar o nosso objectivo. Mas noutras parece-me ser também por causa do amor que estamos a lutar. E da amizade. E do direito de escolhermos.
Louise não é bem o tipo de mulher que eu gosto; talvez seja um pouco forte, e mais alegre do que o meu temperamento aceita. Sou mazombo, já a minha mãe mo dizia. Mas os olhos azuis e grandes de Louise são maravilhosos. Quando amar, tenho a certeza, não fará poses. Deve ser espontânea, empolgante e simples. Não deve falar de filosofia nessa altura, nem de emancipação do mundo. Eu acho que num beijo arrebatado tudo isso está implícito.
"Este sinal que tenho aqui (está a ver bem?) fez-mo um guardador de ovelhas. Acabara-se a monda do arroz em

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Montalvo, naquela emposta onde eu tinha conhecido a Mariana gaibéua."
"A do Mula Brava?", perguntei, ainda aborrecido por ele me distrair.
"O senhor parece que não ouviu o que lhe disse. A Mariana gaibéua é a outra, a que fugiu ao maioral dos bois da Senhora Companhia e veio agarrar-me na estrada para fazer vida comigo."
"Bem sei, desculpa."
"Pois quando se acabou a monda, já eu me zangara com a Mariana gaibéua, aí fiquei outra vez sem trabalho. Da féria dos dois não ferrara vinte mil réis. Ela gastava tudo em rebuçados e blusas. Também a mandei logo com quem a há-de parir."
"Mas gostavas dela", disse eu ainda, procurando apanhar a meada daquela história que me passara, enquanto me lembrava de Louise.
"Da cabeça não gostava. Quero dizer na minha: se pensava na vida até lhe ganhava um certo asco. Eu nesse tempo gostava de agarrar as mulheres e sentir que as podia meter na algibeira. Talvez fosse por causa daquela conversa do Mula Brava quando ele me disse que eu não tinha cara de saber despertar a tal música nas mulheres. A Mariana gaibéua era esquisita. Nunca se percebia quando gostava de um homem. Às vezes parecia um bocado de tábua; por mais que a agarrasse, ficava na mesma, longe de mim. Noutras alturas, quando lhe punha a mão ou ela me dava um beijo, punha-se brava. Punha-se brava e era doce. A gente olhava-a e não era assim grande coisa. Sardenta e beiçuda; beiçuda como nunca encontrei outra. (Os olhos de Alcides tornaram-se mais vivos.) Foi a lem-
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brar-me dela que chamei Mariana à minha espingarda-metralhadora. Mariana também se chamava a do Mula Brava e as duas misturavam-se na mesma pessoa... E eram tão diferentes! Uma era fogo e a outra orvalho. A do Mula Brava também tinha as suas coisas. A covinha na cara dava-lhe graça. Também era magra... Gostava de saber o que é feito dela. Sempre foi a primeira mulher que conheci. (Ficou por momentos a rememorar. A sua expressão adoçara-se mais.) Quando cheguei ao cabo da monda sem vintém (corri com ela e dei-lhe os vinte mil réis), meti-me à estrada e aí fui eu de emposta em emposta, à cata de trabalho. O trabalho no campo é meio por meio. Quero dizer na minha: é metade do ano com as costas direitas e só na outra metade há que fazer. Temos muitas semanas sem sábado. Cheguei à noite, estava morto de fome, e pedi ao guardador de ovelhas pra me deixar dormir ali. Ele conhecia-me e disse: fica para aí, diabo! Fui logo deitar-me. Corpo deitado aguenta muita fome. Enrolei-me nr. manta sobre a palha do curral, sem ideias más na cabeça mas a meio da noite acordei com um sino no estômago. Ah rapazes! Era mesmo um sino. Fome danada aquela. O guardador ressonava e de que é que eu havia de me lembrar? De ir à cata dos animais com leite e pôr-me a mamar no que me desse mais jeito. Foi o trinta diabos! Estava eu regalado e entra-me um pontapé pela banda dos rins. Até vi as estrelas! O homem parecia doido. Quis segurar-me com ele; deixe-me levantar, dizia eu, e ele a amassar-me de punhadas. Pôs-me a cara num bolo. Fiquei com este sinal aqui, ao canto da vista direita. Eu marquei-o num dedo com uma dentada. Quase lho arrancava. Mas também, se não fosse isso, aquele malandro


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matava-me ali sem dó. Ah isso é que me matava! Tinha-lhe chegado a febre. Eu chamo febre a uma coisa nascida dentro da gente, assim uma tremura quente, que nos faz desejar que morra tudo o que tem vida. Ficamos como os toiros lá na nossa terra. Tudo o que se mexe é pra levar forquilhada. Mas a esse malandro nunca mais o esqueci. Um dia agarrei-o numa ferra de gado bravo e fui-me a ele. Eu era safo. Joguei-lhe um pontapé ao meio do peito; atirei logo com ele de cangalhas. Ah rapazes! Parecia um boneco. Andei naquela vida quase dois anos. Monda aqui, ceifa acolá, três meses a guardar porcos em Coruche, vá de andar na cortiça, ferrador em Benavente... Só não fui santo. Nunca deixei crescer as barbas. Um dia disseram-me... Está a ouvir?... Disseram-me que no Ruivo tinha havido uma greve de valadores e que metiam homens..."
E se o velho estivesse i eito com a polícia? Sim, eles pagavam bem, metiam varejeiras na organização, e sabia lá o que teria acontecido a Louise. Começava a achar estranha a ausência de interrogatórios. Ou confiariam eles nalguma confidência ao meu patrício? Eles tinham-lhe prometido a Uberdade. Agora só faltavam uns dias para o julgarem. E se entretanto eu dissesse alguma coisa, eles cumpriam a promessa e a opinião pública não reagiria contra a sua liberdade. Agora andava tudo baralhado. Não interessava mais um homem na cadeia ou mais um homem morto. Os biltres ganhavam divisas e honras todos os dias. Os heróis apodre-
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ciam nas cadeias, eram fuzilados ou enforcavam-nos pelos pés. E havia os campos. Agora já sabíamos todos que havia os campos donde se não voltava. A minha ficha talvez já tivesse o AW com que eles assinalavam os condenados a desaparecer. , "Nacht und nebel" ("Noite e nevoeiro") eram duas palavras da encantação de Albéríc, escritas por Wagner para o Oiro do Reno. A literatura e a música rotulavam os crimes, como se tudo fosse poesia nestes tempos de falcão.
Eu devia ter o destino escrito por Wagner e sentia-me mais confortado, embora eles conhecessem todos os segredos para quebrar a resistência humana. Mas havia qualquer pormenor que lhes faltava no plano. Eram muitos, e cada vez mais, os que se aguentavam nos interrogatórios. François morreu com o sexo esmagado e não indicou um nome. Nem
0 seu. Nem o seu, estou certo.
1 Que força segurava, pois, os homens assassinados, '.em dizerem uma palavra? Havia alguma coisa para além da nossa fraqueza? Sim, a esperança; a certeza e a esperança de que "a noite havia de ceden. Mas só isso?!
E voltava a pensar em Louise.
Se me levassem à frente de um pelotão de fuzilamento, tenho a certeza de que o defrontaria de olhos erguidos, como se a magia dos seus maravilhosos olhos azuis pudesse juntar-se aos meus.
E se ainda a encontrasse? Que lhe diria?
"Olha, Louise. Confiei sempre na nossa vitória, sabes? Mesmo com Wagner, eles não podiam
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ganhar -não, não podem ganhar esta guerra, nem outra qualquer que façam. O coração dos homens é tão débil e é mais forte. Mais forte do que todas as armas dos arsenais. Nunca perdi a confiança. Tu eras também a minha confiança. Se isto é romântico, deixa que eu guarde esta bela coisa. Mas não é; tu sabes que não é. O amor agora é uma palavra de ordem, uma palavra que nos pertence, e havemos de fazer dela - não achas? - a conquista suprema da libertação.
Sim, os homens estão faltos de muita coisa. Mas o amor, Louise... Tu achas possível enfrentar a morte, sabendo que nos desdobramos, sem que o amor viva dentro de nós? Não me incumbas hoje de qualquer missão, peço-te. Devemos agora falar nos dois. Isso também é muito importante. Deixa-me que eu te conduza. Há uma rua... Nunca lhe decorei o nome, porque só me lembra uma outra rua de Lisboa. Se gosto de Lisboa? Não fiques zangada, Louise. Mas gosto tanto de Lisboa como de ti... Percebes?-"
A porta abriu-se e pus-me de pé, como se aquele ruído trouxesse à camarata a voz de todos os ultrajes. Cidro continuava a falar: "Quando eles me explicaram, recusei-me a trabalhar. O capataz ameaçou-me."

OS GRITOS SILENCIOSOS
OS REFÉNS
O funcionário trazia um papel e começou a ler. Por isso o ruído da porta fora diferente. Também os judeus o perceberam, porque quiseram tornar-se ainda mais insignificantes.
"Vincent Dominique!"
"George Brion!"
"Juntem-se aqui", esclareceu noutro tom de voz.
"Pierrot Meunier!"
O meu nome devia estar naquela lista. Quem é que está a soluçar? Limpa as lágrimas, George. Limpa as lágrimas, embora chores.
"Vimont Robert!" "François Calet!" "Paço! D'Espagne!"
Vão levar-te ao mesmo sítio de Garcia. Sabes onde fica? Esta terra também já é nossa, embora
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perceba que gostasses de morrer em Carabanchel. Também eu gostava de morrer numa vila à borda do Tejo. Sim, el Tajo, que passa a Toledo. "Tu novia" era de Toledo, bem sei, já me contaste.
"Silence!", gritou um dos guardas que acompanhavam o funcionário.
"O silêncio é para ti, cochon!", respondeu-lhe André.
O guarda puxou da pistola. Mas tinha medo nos olhos. Eles fuzilavam, mas tinham medo.
"Pierre Ménil!"
Saíram em formatura. Estava tanto frio naquela tarde...
Os dez partiram a cantar a Marselhesa e os que ficaram só gritavam: "Coragem! Coragem!"

CAPÍTULO X
Ele lembrou-se do cavalo branco
Conheci uma cigana na guerra que me disse: a gente nasce com o destino marcado. Eu também acho que tudo está escrito quando se nasce e ninguém pode fugir ao que lá puseram. O senhor não pensa assim, eu sei, mas conheço melhor a vida. Sou mais novo, mas tenho levado muito tombo e aprendi bastante, pode ter a certeza. A gente não manda no mundo, há qualquer coisa que pode mais do que um homem e mais também do que todos os homens! Veja lá esses que foram agora fuzilados.
bom, está bem, o senhor não gosta que lhe falem nisso. Mas eles não deviam meter-se com os Alemães, a gente nunca deve meter-se com os mais fortes. O senhor acha que é cobardia? Pois a mim parece-me que não.
Mas passemos adiante. Também essa alcunha de "Cavalo Branco" estava no livro do meu destino. A gente tem pressentimentos, é o que lhe digo, e anda assim desconfiado, sem perceber porquê durante muito tempo, até que um dia as coisas sucedem e caem em cima duma pessoa, sem ninguém perceber.
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Sim, sou religioso, e então? Acredito em Deus. Em qual? Sei lá, nem m'interessa. Só acho que a gente morre e vai pra outra vida melhor. Na guerra os marroquinos deixavam-se matar, pois sabiam que no dia seguinte iriam aparecer vivos nas suas terras, e todos os homens gostam de aparecer vivos nas suas terras.
Mas voltando aos valadores sempre lhe digo que a gente tem pressentimentos. Eles estavam em greve quando eu cheguei ao Ruivo e ameaçaram também de me deitar ao rio, se eu ajudasse a furá-la. O capataz arrebanhara uns tantos homens, quase todos gaibéus e malteses, e foi isso que me fez não pegar no trabalho. Os valadores eram dali como eu, e não estava certo ir-me pôr do lado dos amarelos. Dessa vez não tive medo da guarda. O pessoal queria receber quinino, pois todos os dias caíam homens carregados de sezões, e de quarenta homens havia dias que só metade pegava na pá de vaiar. O capataz dizia que não tinha ordem para dar quinino e nunca se vira na Lezíria o pessoal ganhar remédios. O João Inácio respondeu: também noutro tempo não havia comboios nem aviões e nem por isso as pessoas deixam de andar neles.
Era bem respondido, lá isso era.
Embora aquilo cheirasse a esturro e já dois homens tivessem sido presos, deixei-me ficar por ali a ver no que paravam as modas. Era novo, o sangue andava-me na guelra, e a verdade é que também não sabia onde matar o corpo. Acampámos em cima dos valados, cozinhávamos ervas e juntávamos o dinheiro de todos para se comprar pão. Os gaibéus e os malteses ainda se meteram ao esteiro, a vaiar, mas aquele trabalho não é para qualquer e, por muito que o capataz explicasse, eles não faziam nada
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de jeito; e como a gente assobiasse e gritasse: fora, fora com os amarelos, eles tomaram medo e disseram que não sabiam fazer serviço daquele. Abalaram.
Abalaram e a gente ficou.
O capataz veio às boas, dizendo que a gente podia tomar conta das barracas para dormir e que esperava ordens dos patrões quanto ao quinino. O João Inácio recusou; continuámos a dormir em cima dos valados. À noite íamos para a borda do Tejo conversar, fumar o que aparecia, até barbas de milho, e ver as luzes do norte. Foi aí, numa noite de maré cheia, com a água a rasar o capelo do valado, que eu me lembrei do cavalo branco e me pus a contar a história ouvida ao Salsa na taberna do Mula Brava.
Eles riram-se da minha conversa e puseram-me a alcunha; no outro dia ninguém me chamava doutra maneira. Até o capataz se riu e passou a tratar-me assim. Tornei-me conhecido depressa, porque tocava gaita de beiços e o pessoal punha-se todo à minha volta a ouvir-me; para entreter, dançava-se o fandango ao desafio, a gente ria-se, mas lá no trabalho é que ninguém pegava. Uns iam à pesca, outros aos caracóis, outros à mostarda; depois juntava-se tudo, e mais o pão que o João Inácio trazia no barco de passagem. Vinho não se podia beber. Um copo de vinho que fosse chegava para dar volta à nossa cabeça e era capaz de se arranjar zaragata. A gente devia evitar zangas, recomendava o João Inácio, pois a guarda andava ali perto, com os olhos em cima do pessoal. Aguentámos assim quase três semanas.
Uma noite apareceu um barco com camaradas; trouxeram mantimentos para uma semana larga; só de bacalhau
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eram mais de cinco quilos, e batatas, e mais pão, e sardinhas de barrica. E até onças de tabaco. Então, no dia seguinte, o acampamento alegrou-se e eu tive de tocar gaita de beiços até me doer a boca. O capataz tinha desaparecido, soubemos que fora à praça da Azambuja e da Castánheira para arranjar pessoal, e o João Inácio disse: nem que ele se mate, não arranca de lá um homem.
Quem é que sabe ler bem? perguntou um velho. Eu sei, respondi; então ele puxou de um jornal e eu comecei a ler. Juntou-se o rancho todo à minha volta, li o jornal de ponta a ponta, depois o João Inácio lembrou-se que o Varolas tinha um livro de João de Deus no alforje e que eu podia dar lição, a quem quisesse; sempre era bom conhecer umas letras. Foi engraçado. Passámos o tempo depressa. Quase todos quiseram aprender. De quarenta homens só uns sete sabiam umas letras e até esses aproveitaram para dar lição; arranjou-se papel dos embrulhos dos mantimentos e escrevi o nome de cada um para eles, irem copiando; o pior é que só juntámos três lápis. Os velhos é que tinham mais dificuldade em aprender.
O capataz lá arribou uma tarde. Vinha com o engenheiro e outro homem; a gente ficou desconfiado com eles, nunca os pensámos capazes de virem por bem.
"Quem manda em vocês?", perguntou o homem.
"Mandamos todos", respondeu o velho meu amigo.
"Talvez aí o João Inácio", disse o capataz.
"Porquê?", perguntou ele. "O capataz és tu."
"Trago quinino", disse o engenheiro. "Cada comprimido custa dois mil réis e vocês podiam pagar metade."
Ninguém respondeu.
"Já é boa vontade nossa. Vocês podiam aceitar."
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"A gente já perde a féria quando está com elas. E isso é muito. Pela razão, a gente devia ganhar quando está com febres. É um acidente de trabalho ou lá como se diz."
"bom, está bem. Os patrões dão o quinino. Está arrumado. Agora é preciso que trabalhem com gana pra compensar alguma coisa."
"Começa-se amanhã", disse o capataz.
E vai o João Inácio respondeu: "Está feito, sim senhor, a gente pega amanhã. Precisamos de duas aguadeiras para irem à água e para nos olharem pelas caldeiras."
Nessa noite já dormimos nas barracas. A mim coube-me uma pequena, mesmo ao pé duma aberta que cheirava mal. Nunca tinha visto uma barraca assim. Era feita com seis paus metidos no chão, todos ligados por quatro varas onde tinham entrançado uns ramos; depois com lama e pedras tinham feito o fundo para a gente se deitar, com uma parte mais alta para pôr a cabeça. Era tudo de lama e pedras e depois com palha por cima; para não ficarmos ao tempo, estava coberta com uma espécie de chapéu de bico, Havia outras com feitio de casa e portas de sarapintara. Ao pé duma delas estava um alpendre onde a gente comia.
O grilo, como a gente chamava ao apito, tocou de madrugada. Fomos dar os nomes à barraca do apontador, ele escrevia numa folha de papel e quando chegou a minha vez, antes que eu falasse, logo uns poucos disseram o mesmo: ponha Cavalo Branco. Ele é o Cavalo Branco.
Eu ri-me, mas aquilo era um pressentimento mau que eu trazia comigo. Eles não acreditavam que o cavalo branco estava no céu e abria as nuvens com as patas.
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Fomos pôr as caldeiras ao pé do cambaricho que estava cheio de arames pendurados e com lenha ali à mão. Coube a cada um o seu punhado de arroz. O céu começava a alaranjar das bandas do nascente e uma bateira foi passando o pessoal para o outro lado do esteiro.
Eu trabalhava ao lado do velho que tinha o jornal. Cada valador ficava com o seu chão, assim como nos cemitérios cada corpo tem a sua cova. Quando vi aquilo, só lama, comecei a descalçar-me, mas o velho disse-me que a lama era traiçoeira e escondia vidros e pedras de gume. Uma ferida ali podia ser o tétano. O que é isso de tétano? Ele explicou-me e a primeira vez que meti a perna por ali abaixo com a calça bem arregaçada fiquei à espera e cheio de medo.
Depois, como nada me sucedeu, fiquei assim mais tranquilo. Aprendi a fazer o corte com a pá, a enchê-la bem de lama, a ajeitá-la e a balanceá-la a seguir para riba do valado; o pior eram as cruzes abrirem-se nas costas quando se dava aquele impulso lá para cima de tudo. As pernas arrefeciam, a cabeça e o tronco escaldavam com o sol.
No primeiro dia fiquei mais cansado do que na ceifa, estava esfrangalhado, parecia de trapos. No fim do trabalho era preciso limpar as botas e a pá, e eu já não arranjava coragem para mexer os braços nem as pernas. Tomei um caldo, só tinha sede. Todo o dia levara a pedir de beber ao rapaz que andava com o barril da água às costas.
À noite foi um inferno com os mosquitos e as melgas; muitos homens foram dormir para o valado, como faziam antes, na greve, porque o vento empurrava a bicharada
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e ali castigava menos. Eu é que nem dava por eles; queria deitar-me, ficar ao comprido.
De manhã foi uma risota com a minha cara. O Cavalo Branco parece que caiu num cortiço de abelhas, disseram os companheiros. Tomei o meu comprimido de quinino, fiquei mais aquietado, porque me lembrara logo das sezões e do hospital. Como na véspera, entregámos as caldeiras à cozinheira e quatro camaradas vieram pedir-me para ver se eu à noite continuava a dar lições. Disse que sim, embora estivesse sem forças; mas também precisava de vaidade, e aquele pedido envaidecia-me.
Depois da chamada feita pelo apontador, começámos o trabalho, lento e custoso como todas as manhãs que se seguiram. Só duas horas depois é que se arranjava o jeito para manejar a pá.
"Um homem come como um passarinho e tem de fazer força de boi", disse-me o velho com a bronquite e a canseira a pesarem-lhe no peito. "O dinheiro quando chega à nossa mão já vem podre", disse daí a bocado, quando eu lhe lembrei que recebíamos a féria no sábado.
"O piá: é que este trabalho é porco", acrescentei eu.
"Todo o trabalho tem de ser feito pelo homem", foi o que ele respondeu.
Depois o grilo apitou e fomos ao almoço. Passámos na bateira em grupos e sentámo-nos debaixo do alpendre. Uma das mulheres tinha um filho miúdo e o menino veio de gatas até ao pé da gente. O miúdo embicou para o meu lado, os rapazes sempre gostaram de mim; comecei a brincar com ele, dei-lhe um bocado de batata na ponta dos dedos, ele comeu e riu-se. Em seguida rapei da minha harmónica, pus-me a tocar, o rapazinho queria chegar-lhe
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com a mão, fiz-lhe a vontade e ele agarrou-a, rindo-se
outra vez.
Calminho, o rio entrava pelo esteiro e o vento fazia-lhe refegos.
Puxei do meu relógio para ver as horas e houve uma grande risota por causa disso.
"Quanto te custou?", perguntou-me o Perdigoto.
"Uma corrida", respondi.
"O Cavalo Branco ganhou este relógio numa corrida de bicicletas", gritou ele para os grupos que estavam estendidos no chão, a descansar.
"É mentira!", respondi eu. "Foi numa corrida a pé. Era eu, o relojoeiro e o polícia que ele chamou para me agarrar. Mas fui eu quem chegou primeiro.".
O João Inácio riu que nem um perdido. Eu estava com o miúdo ao colo e ele riu-se outra vez, como se tivesse percebido a conversa em que a gente estava; depois o grilo tocou e voltámos a atravessar o esteiro.
O capataz nessa tarde estava azedo por qualquer coisa da sua vida e andou para ali a pegar com o pessoal, tudo para ele se fazia mal, o alma danada! A gente respondeu-lhe com trabalho mais brando e vai então o velho atira-lhe das boas: vem tu para aqui! Ainda não tinhas nascido já eu vaiava. No meu tempo não se faziam valadores dum dia para o outro, era trabalho que tinha os seus quês. Agora qualquer animal com braços pega numa pá e diz que é valador. Por isso o rio encosta-se aos valados e isto baldeia tudo; é tudo mal feito.
O velho estava derramado. Uma parte da conversa também podia ser comigo, mas a maneira como ele olhava para mim dizia-me que não.
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"Ele agora é cabide de patrão", disse o Marujo.
"Vê tanto como um garfo com olhos", disse o velho.
"A gente precisava todos era de ter umas letras", disse o Rabugem. "Outro galo cantaria."
"Esse que está aí à sua beira sabe ler e cá anda", juntou outro valador.
"Pois sim, mas se ele quiser, se não tiver medo, pode cantá-las. O povo agora pode cantar; já mostrou que sim e issoé uma grande coisa."
Depois voltou o silêncio com a canseira.
Ao fim da tarde a maré deu mais abaixo, o lodo descobriu-se melhor e tivemos de descer mais, enterrando-nos até às virilhas. Eu fui dos que se meteram ao lodo.
Daí a bocado o capataz veio dizer para fazermos mais uma hora depois do sol-posto - descontava-a no sábado, a gente podia largar mais cedo e ir para casa.
"Não aceito favores dele", disse o Rabugem.
"Se ele quiser não te dá uma hora mais de trabalho aqui", respondeu um rapaz da minha bugalha.
"Então ele anda aqui com um aguilhão em cima da gente e lá porque mostra os dentes por interesse dele a gente vai logo começar a rir? Também dava jeito, mas não se deve aceitar."
"A gente podia amaciar o homem."
"Qual amaciar? Isto agora vai no rijo."
O chape-chape das bolas de lama ressoava mais no fim daquela tarde. O pessoal pedia água e o capataz, danado da gente não aceitar a troca da hora, disse que o melhor era só bebermos pelo relógio, ele marcava de meia em meia hora. Dessa vez foi o João Inácio a dar-lhe para
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trás: a gente não é como o gado que só bebe quando o guardador lhe dá na gana.
Eu sabia que os valadores tinham fama de rebeldes, mas nunca pensara que fossem assim.
O capataz não tocou o grilo para a gente largar, ainda estava à espera que o pessoal se deixasse ir. Mas enganou-se. Mal o sol desapareceu, os da ponta pararam e todos fizeram o mesmo. Começámos a chamar pelo bateleiro, a bateira não se mexia na outra margem; então desatámos a gritar. O capataz não apareceu mais; tinha-se metido dentro da barraca. Eu entusiasmei-me com aquilo, atirei-me à água para ir buscar o barco; nadei o esteiro em meia dúzia de braçadas, cortei a corda da bateira com o canivete, pois o capataz prendera o barco com o cadeado, e comecei a passar o pessoal.
Quando viu a gente chegar, ele quis saber quem é que tinha tomado conta da bateira, mas ninguém me acusou. Foi uma coisa bonita, sim senhor, lá isso foi. O pior é que ele desconfiou pela minha roupa na outra manhã e chamou-me à sua barraca. Aí foi o diabo! O homem deu em teimar que sabia, que ele mesmo tinha visto, e eu na minha, não senhor, não fui eu, eu cegue se mexi nisso. O homem pusera-se de cardo, e de repente, sem mais aquelas, vá de me chamar fedelho e malandro. Eu ia a voltar-lhe costas, quando ele se atira de um salto para a minha frente.
"Eh homem, vossemecê não 'stá bom!", ainda lhe disse.
Ele pega-me pela camisa, começa a sacudir-me e rasga-me toda em dois tempos. Eu tinha a certeza que se lhe marcasse uma cabeçada ao meio do peito o virava
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logo; mas o pior é que depois não o queria deixar levantar, ia-me a ele, e às vezes a gente começa e não sabe onde as coisas acabam. E foi bom assim. Porque o engenheiro apareceu sem ele esperar, viu tudo e cantou-lhas ali à minha frente. Que autoridade não era aquilo, que havia de me pagar a camisa no fim da semana. O capataz jogou-lhe no alto: ia-se embora, sim senhor, se ele estava a diminuí-lo à frente de um rapazola. O engenheiro disse-lhe que lá isso de abalar era da sua conta, mas a razão pertencia-me. Era uma cara direita, o que é verdade deve contar-se.
Olha, pois não. Nesse sábado o engenheiro entregou-me o dinheiro da camisa. A aguadeira que tinha o miúdo lembrou-me que eu devia comprar mais um par de calças e eu respondi-lhe a rir que era como o rato, andava sempre com a mesma farpela. A mulher punha-se assim com uns modos e eu já havia semanas que não topava outro namoro a não ser a irmã da Canhota. Vossemecê não conhecia a palavra? A gente no Campo conhece bem a irmã da Canhota.
Ficámos só uns cinco homens no acampamento, o resto atravessou o Tejo para ir a casa, apanhar uma bebedeira ou duas, que dessem para toda a semana, e fazer o avio. Eu ainda não comprara alforje, mas pedi ao João Inácio para mercar o mais preciso e deixei-me ficar com a minha fisgada. O pior é que os outros quatro pensaram o mesmo.
Nessa noite bem toquei a minha harmónica, sempre à espera que ela viesse para o pé de mim; mas do lado da barraca dela só vinha o choro do miúdo. Tinha a minha fisgada, mas não me atrevi. Outro tanto não cuidou o Anselmo, o Tnselmo como a gente lhe chamava, porque aí
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às tantas a mulher começa a gritar: acudam, acudam, e quando chegámos estava ele a malhar nela, danado por causa da gritaria. Assim que nos viu, ele atirou-se à gente (pois não, o corpo estava-lhe a ferver) e tivemos de lhe dar resposta na mesma moeda. Foi um badanai naquele acampamento.
Vergonhosa, a mulher abalou de manhã quando a gente dormia; tive pena do miúdo.
Na segunda semana começaram valadores a cair com febres; os velhos é que não abanavam, tão curtidos andavam com aquilo. Alguns seis homens foram para o hospital; os outros amanhavam-se por ali e em quatro dias ficámos só metade no trabalho.
Deixei de dar lições e passei a tocar harmónica para animar o pessoal. Naquela altura a música fazia-lhes mais falta. Chegou pessoal fresco; daí por mais uma semana foi a minha vez. Em dois dias fiquei como um pássaro sem penas. Tão fraco que se alguém me soprasse atirava comigo ao chão.

CAPÍTULO XI
' Uma manta de retalhes
A vida é uma manta de retalhos com muitas cores. Nunca vi manta de pobre com tanto remendo. Eu gosto mais do azul, não sei porquê. Mas na manta da minha vida há pouco dessa cor. Talvez por isso mesmo.

Quando o trabalho acabou no Ruivo, os meus camaradas atravessaram o Tejo na barca e eu fui sozinho por cima do valado das oliveiras até ao Cabo. Os dias castigavam menos com o calor e eu pensei ir-me até ao Mula Brava. Naquela altura já me achava um homem e o que se passara já parecia nada ter comigo. Foi uma vontade que me deu de repente ou talvez fosse também uma maneira de me ver livre da companhia dos outros De vez em quando vinha-me já uma gana de ficar sozinho. Devia ser da tal coisa que se me partiu cá dentro.
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Caminhei assim mais de três horas. Só encontrei um campino a cavalo. No rio é que passavam barcos, as companhas gritavam-me, faziam-me sinais e eu mal mexia o braço. Parecia que guardava as palavras para falar ao velho. Juntara um dinheirito à custa de comer mostarda cozida, uns pedaços de toucinho derretido e pão para fazer lastro. Sentia-me fraco. As sezões haviam-me agarrado bem e desde aí não era o mesmo. Era um vime; os nervos também eram um vime. Qualquer coisa punha-me logo de cabeça virada, ficava com uma dor lá dentro e não era capaz de pensar.
Cheguei à taberna do velho ao fim da tarde. Mal me aproximei, vi que já não estava lá a oficina onde eu aprendera a ferrar gado; o alpendre também parecia outro.
"Eh patrão!", gritei, fazendo a voz grossa para ele não me conhecer e gozar melhor a surpresa que lhe ia dar. "Quem está aí?", respondeu o velho. Era ele, aquela voz era do meu amigo Mula Brava. Ah caramba, foi uma grande alegria!
Ele chegou à porta com a mão a fazer de pala sobre os olhos, e eu fui-me chegando, chegando, até que lhe toquei no braço. Ele voltou-se para o meu lado e os seus olhos azuis (será por isso que eu gosto de azul?), os seus olhos pareciam desfeitos. "Quem és tu?", perguntou-me. Puxei da minha harmónica e pus-me a tocar o Gallito, a marcha que ele me ensinara.
"Anda cá, meu malandro! Meu grande malandro! Ora esta! Bem longe estava de te ver. Julguei que nunca mais te enxergava. Ora esta!"
Deitou-me a mão aos ombros e apalpou-mos; depois passou-me os dedos na cara e pediu-me para eu tirar o
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boné. "Já não te penteias, como a Mariana te ensinou. Estás mais alto, estás um homem. Quantos anos tens? É isso, quase dezoito. Meu grande malandro! Ruço de Má Pêlo dum trinta diabos. Já comeste?" Disse-lhe que sim, mas ele não acreditou. E puxou-me para dentro de casa; apareceu um rapazito que lhe agarrou pelo braço e o levou até à mesa.
"Este agora é que é o meu companheiro. Já adivinhaste, com certeza:. A Mariana abalou. Foi por tua causa. Um dia zangámo-nos e ela disse-me que tinha sido tua amante. Eu, que nunca lhe batera, peguei no meu porrete de zambujo e zurzi-lhe a lombeira. Ela fugiu; eu fiquei para aqui."
Disse-lhe que ela mentira e o Mula Brava agarrou-me nas mãos.
Para festejar o dia comemos um bocado de linguiça assada em aguardente, bebemos um cangirão de vinho e eu dei o dinheiro ao rapaz, mas fiz-lhe sinal para não dizer ao velho. "Podias ficar aqui esta noite. Amanhã começa a feira em Vila Franca e ias logo de manhã. Não tens lá família..." Depois perguntou-me o que fazia e admirou-se de eu não ter procurado trabalho como ferrador. Falámos da oficina. Ele recordou-se daquela vez que eu abrandara a égua brava e do meu primeiro baile e disse-me: ainda está aíf> teu chapéu de aba rija.
Mandou buscá-lo e eu pu-lo na cabeça. "Deves parecer um lavrador de terras arrendadas", disse ele a rir. "Podias

comprar uma jaqueta amanhã. Das de cotim não são caras." Respondi-lhe: sou valador, ele concordou que era
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um trabalho bonito, mas achou que eu podia na mesma comprar a jaqueta. Os sapatos amarelos debruados de branco é que não ficavam bem. Lá para umas botas de cano é que eu não tinha dinheiro. Queria feirar queijadas e ir ao circo, comprar um bilhete de sol para a corrida de segunda-feira e a massa não dava para tanto.
Dormi no seu barraco, mas adormecemos tarde, porque estivemos parte da noite a recordar os nossos bons tempos. "Esta casa é tua; podes vir aqui quando quiseres. Assim que estejas sem trabalho ou que te falte onde dormir, deita até cá, porque eu sou a tua família e tu és a minha. Foi pena teres abalado. Eu não acabava com a oficina e sempre dava para os dois com o que ganhasses nos bailes, a tocar."
Foi bom ouvir aquilo, sabe? Embora não quisesse aceitar a oferta dele, gostei da sua fala.
No outro dia quis que ele fosse comigo para Vila Franca; ele só me pediu para lhe levar os programas das corridas de toiros, pois queria pô-los na parede da taberna ao pé dos outros.
Entrei na taberna da Teresa, ela estava velha, e não me conheceu às primeiras. Só quando lhe mostrei o relógio do meu pai é que ela se lembrou de mim. Quis que eu comesse, deu-me um copo de três e mais outro; depois quis eu pagar para que ela visse o meu dinheiro e bebi mais outro. com aquilo tudo fiquei meio bêbedo. Quem ganhou com a brincadeira foi o maroto da loja do alfaiate: vendeu-me uma jaqueta para um homem do meu dobro. O malandro levou-me ao espelho, agarrou-me a jaqueta por trás, nas costas, e eu vi-me todo lampeiro. "Parece uma luva", disse
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o malandro. Paguei e fui-me até Vila Franca pela estrada fora. Mas o vinho amarinhava. E aí começo eu de me sentir alegre, vá de tocar a gaita de beiçosvá de entrar numa taberna em Povos e de beber mais um copo.
Armou-se baile, dancei o fandango, depois ala com mais dois companheiros até à espera de toiros. O meu chapéu era de fama. "A jaqueta", disse um dos homens, "é que foi herdada dalgum gigante do circo". Refilei, está claro. "Comprei-a ainda não há uma hora. Ora cheire lá. Não cheira a nova?"
"Então enfiaram-te um grande barrete." Fiquei danado. Mas no meio da algazarra do povo esqueci-me daquilo, embora tivesse prometido que havia de ir tirar despique ao malandro do alfaiate. Os toiros não deviam tardar e um gajo da vila, quando eu passei, chamou-me Marcial Lalanda e disse para os do seu grupo que eu era o espada daquela tarde. E vou eu respondo-lhe logo: eu sou o espada e tu vais ser corrido em pontas.
Houve das boas e das bonitas. A algazarra é que me safou daquela alhada, porque os tipos puseram-se a salvo, mal apareceram os campinos à frente da manada. Eu encostei-me às tranqueiras que ali estavam perto, e tirei o chapéu da cabeça para desafiar algum toiro que passasse de ponta. Vinha um catita para a brincadeira. Era um toiro caraça, disseram-me depois; não lhe vi o focinho. Nem tive tempo de lhe ver bem a cor. Assim que lhe acenei o chapéu e disse: eh boi bonito, o filho da mãe endireita-se comigo e aí vou eu enganchado nas pontas dos cornos. Lembro-me só de ter caído no chão e de levar mais uma cornada; acordei dois dias depois no hospital. Tinha
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uma perna rasgada e duas costelas partidas. E o nome no jornal, pois então. Andei muito tempo com todos os bocados de jornal que tinham o meu nome.

Voltei à nossa terra e comi uns dias na taberna da Teresa. Ela dizia-me que eu lhe pagaria quando tivesse dinheiro e fui-me habituando àquela boa vida. Pensei em voltar ao Mula Brava, mas fui passando de dia para dia porque não chegara a arranjar-lhe os programas. Vi o Lobato de longe, estava um velho trongo. A sobrinha já tinha casado e os caixeiros eram outros. O Carapinha desaparecera do Largo da Estação e ninguém me soube dar notícias dele. Ainda pensei oferecer-me para fazer uns fretes, mas achei que um valador não pega em fardos.
O Inverno tinha começado e viera bravio. Habituei-me depois a ir passar o dia ao Cais; aí juntavam-se outros valadores que estavam como eu.
Numa tarde apareceu uma empreitada para relingar uns valados que começavam a dar de si com a corrente do rio e lá fui no rancho. Era tarefa bem paga. Tinha os seus perigos, mas sempre era melhor do que andar ali aos caídos.
Ah é verdade, já me esquecia. Quando me ouviu tocar harmónica numa taberna, houve um cego que me convidou para andar com ele à esmola. Fiquei danado. Mas ele garantiu-me que tirava mais do que eu a vaiar; aqui para
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a gente, que ninguém nos ouve, se o trabalho não aparece naquela tarde, eu tinha feito sociedade com o cego.

Vivi a tarde mais galharda de toda a minha vida. A chuva não parava de cair, o céu estava feio e baixo. Pardo como papel de embrulho. E o Tejo cor de barro, a correr danado para o mar e a crescer sempre. Pois assim mesmo foi a tarde mais galharda de toda a minha vida.
Lembro-me bem que até ali nunca me sentira tão contente. O João Inácio escolhera-me na praça de valadores para ir com eles barrar a braveza do rio.
"Tens coragem?", perguntou-me. Foi só o que me perguntou. Eu disse sim senhor, ele bateu-me no ombro e, com um sinal de cabeça, passei para o grupo de valadores que devia atravessar o Tejo num barco para ir até ao Mouchão das Garças. Daí a pouco deram-me uma capa e umas polainas de oleado, e esperei de pá entre as mãos, ali à borda do Cais, rodeado de gente que nos olhava. O vento soprava rijo e o rio estava cheio de carneirada, em ondas pequenas e seguidinhas, como se uma charrua o tivesse alqueivado.
Passámos os alforjes para a lancha e todos os apetrechos precisos para o nosso trabalho; eu fui o último a entrar, mas arrastei-me para perto do bico da proa. Parecia eu que me queria mostrar ao Tejo, para que ele me visse bem. Durante muitos anos ele fora para mim uma coisa de mistério.
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Quando a lancha começou a cortar a corrente, as ondas batiam na proa, levantavam-se de mãos empinadas e vinham cair cá em cima, verdascando-me a cara. O barco era mesmo um cavalo bravo, aos galões e às arrecuas, porrada de um lado, porrada do outro, e o barqueiro parecia espantado com o vendaval. O Rabugem ia à minha ilharga, a resmungar sempre, como era de seu feitio, e perguntava-me se eu não tinha medo.
"Qual é a cor do medo?"
"Tu depois me dirás, Cavalo Branco. Nunca apanhaste uma cheia?"
"Nunca! Mas se os outros aguentam..." disse-lhe eu.
A lancha nunca mais chegava, à procura de sítio para romper a corrente, e a carneirada bravia, que se levantava à proa, parecia ter raiva de partir tudo. Andámos ali quase duas horas. Um valador enjoara e enrolara-se a um canto, de olhos fechados, como se tivesse vergonha dos camaradas; eu começava a sentir a cabeça numa zunida e um punho grande dentro do estômago. A saliva faltava-me.
"Então, arrais?", perguntou o João Inácio. "Quando a gente lá chegar já o Tejo afocinhou no valado e nada feito."
Deram aguardente para se não arrefecer e eu meti-lhe uma golada até cá abaixo. Foi como se engolisse um foguete já a arder. Comecei a tossir e disfarcei; o Cadete riu-se, estava sempre pra rir. Andávamos perto da margem e as ondas não deixavam o barco arribar. O camarada do arrais meteu uma vara para segurar a lancha e a vara partiu-se.
Então o João Inácio agarrou noutra vara, mediu a fundura do rio e sem mais conversas jogou-se à água com um
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rolo de corda enfiado no pescoço. Eu descalcei as botas, amarrei-as bem e pu-las à cabeça; e deixei-me cair ao rio para ajudar o João Inácio, pois a corrente parecia ter ficado danada e queria rebentá-lo de encontro ao valado. Feri-me nas mãos, senti por duas vezes uma força a puxar-me para o fundo, mas consegui chegar a pé firme e dali arrastei o João Inácio para a minha beira.
"Obrigado, Cavalo Branco!", foi só o que ele disse.
Juro pela luz dos meus olhos que estou a contar a verdade. Eu cegue!
com a corda presa a uma oliveira fez-se um vaivém e pusemos no valado tudo o que trazíamos. Os outros valadores, éramos dezasseis, passaram por dentro da água, agarrados à corda; depois a lancha partiu e ficámos a vê-la dançar no meio das ondas.
Nessa altura tive medo. E a cor do medo é parda e depois negra.
"Vamos já começar", disse o João Inácio. "Quanto mais depressa acabarmos mais depressa abalamos e recebemos o dinheiro."
"Isto é a morte numa mão e o dinheiro na outra", disse o Cadete.
"Vocês vão relingar aquela parte dali. Cinco trazem terra nas canastras e dois aconchegam-na com as pás. O Cavalo Branco trabalha com a palheta. Eu com o Rabugem e o resto vamos fazer as faxinas para ver se aguentamos o bater da água."
"O valado já está a abrira, gritou o velho. "Se abre por aqui vamos todos numa virada."
Eu não percebia o que queriam dizer as palavras do velho.
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A chuva não parava. O vento continuava áspero e às vezes a gente julgava que o maldito nos ia agarrar em peso e atirar para o rio; logo que chegaram as primeiras canastras, as ondas vinham e varriam a lama. Eu estava à frente com os pés bem fincados no capelo do valado e batia com a palheta para sentir o chão debaixo de mim. A água envolvia-me, a que o rio atirava e a que caía do céu. Teimámos. Teimámos o resto da tarde e eu só consegui segurar pouco mais de meio palmo de terra. Pedras é que nos faziam falta; mas se tirássemos as pedras do lado do Tejo, as fendas rasgavam-se e a cheia entrava. Ouvíamos os chocalhos do gado a fugir para a Charneca. Vieram dois guardadores a cavalo e o João Inácio pediu-lhes para nos ajudarem com folhas de zinco ou portas velhas, o que tivessem, qualquer coisa servia para aguentar o embate.
O velho veio dar-me uma garrafa de aguardente; bebi-lhe uma golada e outra. Sentia-me enregelar. As faxinas feitas de salgueiros, que os outros tinham cortado, foram postas no declive que levava ao Tejo e começámos a ganhar mão naquilo.
Há na nossa parvalheira uma cantiga que diz "onde chegam os valadores, abre a terra e treme o chão". E é verdade. Nunca pensei que o homem sozinho pudesse tanto; aquilo era um inferno. Na guerra a gente tem a Mariana na mão e aquilo é de matar ou morrer e um homem endoidece e já não sabe o que faz. Ali é matar ou morrer. Viver é só um fio; é só um fio no meio de tantos que levam à morte.
com a noite o Tejo acalmou um pouco, comemos pão e lascas de bacalhau, para aquecer mais umas goladas de
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aguardente que não embebedavam, porque o calor sumia-se logo todo no corpo enregelado. Conseguimos acender archotes. Vieram uns campinos e umas mulheres ajudar a gente, e pusemo-los a acarretar lama nas canastras; naquela altura já não se arranjava terra, tudo era lama e água, os homens, as pás e o valado.
O velho então desmaiou e fomos largá-lo ao pé duma aberta; sentíamos que aquilo estava quase no fim, mas num repente a chuva voltou mais brava, como se estivesse aquele tempo a juntar forças para nos deitar dali para fora. E a pouco e pouco os archotes apagaram-se.
"Ninguém se torce!", gritava o João Inácio de um lado para o outro. Ele viera tomar a minha palheta; já se conseguira relingar o valado em mais de meio metro, desde a oliveira ao salgueiro da curva. Ali é que estava o perigo. Trabalhámos às escuras, tenho a certeza que muitas vezes desfizemos o que já tínhamos feito, mas era preciso não parar. Se parássemos, acho agora que deitávamos a fugir pela Lezíria. A noite estava medonha. O vento voltou a bramar com mais força e com ele as ondas. A coragem nestas horas tem a mesma cor do medo; a coragem é o medo parado em certas alturas.
Depois a madrugada chegou e pudemos ver o que tínhamos conseguido. As faxinas aguentavam-se bem; na parte de dentro do valado a fenda não alargara. Começámos a bater por essa banda e vimos que a fenda não abria. Atirámo-nos todos a relingar mais dois palmos.
E aí pelas dez horas o sol rebentou; era uma granada aberta. Pôs-se um arco-íris, como se a gente tivesse embandeirado o céu. Vinha dos montes do norte e perdia-se no cabo da Lezíria.
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"Ah rapazes!", gritou o Rabugem. "Toca a gaita de beiços Cavalo Branco!"
Mas eu esperava ordens do João Inácio, ali era ele quem mandava, e estávamos os dois em cima do valado a batê-lo bem com as palhetas. Vá, vá, vá, dizia ele a marcar o trabalho.
Os campinos e as mulheres trouxeram lenha, fizeram uma fogueira para a gente se aquecer. O velho foi o primeiro a chegar-se; as dores tolhiam-no. O seu queixo largo como a tromba de uma bota grossa tremia de frio; e as duas covas junto à boca atiravam-lhe mais para fora as duas maçãs da cara. A barba tinha-lhe crescido.
"Isto é um trabalho danado", disse eu para o ouvir. E ele respondeu como sempre: "Todo o trabalho tem de ser feito pelo homem."
Uma rapariga veio trazer-me uma malga de sopa quente, a escaldar, e que eu comi, duma virada, com vontade de meter os olhos lá dentro. E só depois pudemos descansar à volta da fogueira, enxugando no corpo a roupa ensopada. Nem as capas de oleado a tinham defendido.
Eu sentei-me debaixo da oliveira, ainda comecei a fumar um cigarro, mas adormeci. Adormeci sentado e caí para a frente, como se fosse matar securas na terra cheia de lama.
A meio da tarde veio uma lancha buscar-nos.

Ficámos amigos. Ele contou a toda a gente a ajuda que eu lhe dera e quis-me à sua mesa no domingo seguinte. A mulher era uma encardida, falava aos sacões e a voz
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áspera mexia-me com os nervos. Depois do que se passara, eu gostava mais de estar só, deitado no campo, como fizera no dia seguinte depois de nos terem pago o nosso trabalho.
Aguentei tudo em cima do valado, portei-me como os melhores, mas aquilo era uma força danada que eu fazia com o corpo para uns poucos de anos. Fiquei cansado. Se ouvia assobiar, a pele bulia-me logo; ouvia até com as pontas dos pés. E os barulhos atordoavam-me, punham-me raivoso e não gritava para fora, mas gritava para dentro de mim.
Comemos coelho ao jantar. E brincámos com aquilo, porque o João Inácio julgava que eu tinha o estômago fraco e começou a dizer para a mulher se tinha morto o gato amarelo do vizinho.
"Não me diga, seu João. Há quanto tempo não como gato!", respondi eu na galhofa. E vai daí a arremelgada da mulher atira-me o coice: "Eu é que já não janto. E fui eu que o fiz. Mas não acho bonito que falem de porcarias à mesa."
O João Inácio gritou-lhe danado "eh mulher que ainda te limpas a um guardanapo de cinco pontas". E mostrou a manápula de martelo-pilão. Ela meteu-se na cozinha a chorar. Foi a filha mais velha, a Isabel, que nos veio contar; e ria com os dentes mais bonitos e mais brancos que eu ainda encontrei. O pai é que teve a culpa do que se passou depois. Começou a olhar para a gente, piscadela de olho a um, piscadela de olho a outro, e volta de dizer que fazíamos um casal de toda a estimação; lá dentro de casa não queria namoros, mas que dava licença para namorarmos à janela.
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Eu nem dava pio. Só esperava que a Isabel dissesse alguma coisa, mas a rapariga ficara corada e só falava baixo: "O meu pai tem cada uma! Se já se viu!..."
Ele bebera-lhe bem e queria-me ver na família. Devía-me a vida, dizia para forçar as coisas. E mesmo naquela noite pespegou a filha à janela a conversar comigo. Falámos do pai e da mãe, que havíamos de fazer? Da gente é que não demos uma fala; mas agora posso dizer que não fiquei aborrecido. Não pela rapariga, que fora os dentes bonitos e um seio de condessa, assim alto e maneiro, não tinha mais nada que se visse.
Eu nunca tinha namorado à janela e parecia-me que isso era importante para mim. Eles moravam numa travessa escura e acabámos por ser capazes de conversar no namoro. Uma noite peguei-lhe na mão, ela deixou, e depois, como não sabia o que fazer com a mão dela, pu-la na minha cara. Encostei-a só. E ela pôs-se a fazer-me festas e a dizer-me: "Quando a gente casar gostava mais que arranjasses trabalho numa fábrica; é bonito um homem de fato de ganga, pode vir todos os dias dormir a casa."
Perguntei-lhe se tivera namoro e ela respondeu-me que sim, só dois meses. Fiquei derramado com ciúmes. Arranjei logo uma zanga por causa dum coração de folha amarela que me saíra numa surpresa, e abalei da janela.
Fui meter-me no quartel de um rancho de gaibéuas; e pisei ali a minha raiva, dançando toda a noite com uma cachopa, a quem roubei um beijo no escuro. Então apareceu-me o Arrenega mais novo, o Carlos, todo afiambrado, de calça esticada e jaqueta de marialva. Devíamos andar pela mesma idade.
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Não voltei a Vila Franca, embora encontrasse o João Inácio no Lombo Tejo. Ele apareceu com o velho, o Rabugem e outros valadores, mas eu já lá estava. O Carlos Arrenega arranjara para eu trabalhar até à ceifa. Eram quatro meses de jorna certa e uma camaradagem que me deixara recordações. Sempre gostei de me lembrar do Jerónimo Arrenega.

CAPÍTULO XII
Agua e angústia
O Lombo Tejo é assim uma ilha no meio do rio. Lembra-se? Nunca lá entrara e daquela vez dei-me de imaginar que estava dentro de um grande barco ancorado no Tejo.
O abegão viu-me chegar com a pá de vaiar, a manta, o alforje e a caldeira, e achou que eu era novo de mais para ser valador. Então contei-lhe como estivera no Mouchão das Garças; se a Lezíria Grande não estava ainda cheia de água, era por mim e pelos meus camaradas. Ele riu-se. E eu não percebi a razão. Lá na dele pensara: vou-te tramar quando vierem os valadores e eles disserem que não te conhecem.
Mas enganou-se. O Rabugem foi o primeiro que me viu, ainda estava dentro do barco, e logo gritou para os outros: olha o Cavalo Branco! bom dia, Cavalo Branco!
O abegão dessa vez não se riu.
Dormíamos num barracão de folhas de zinco, coberto de caniço a um dos lados. As motas dos bois, a abegoaria e ainda dois barracões cheios de palha enfardada ficavam
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mais ao sul. Todo o mouchão era um mar de verde-manso, bonito duma vez, que o tempo correra de feição para o trigo.
Mas o Tejo vinha a recolher águas desde Espanha e engrossava todos os dias. Parecia de barro. E fugia, o desalmado, como se de Lisboa lhe tivessem prometido prenda.
O patrão ganhara receio com a ameaça do Mouchão das Garças e logo pensara em reforçar os valados do norte, mandando chegar dois batelões com pedra. Parelhas de homens, à formiga, tiravam-na em padiolas para junto do valado, enquanto seis mulheres cortavam tramagueiras e ramos de salgueiro para a gente preparar as faxinas.
Eu escolhera um bom sítio no barracão, mais do lado do caniço, porque a chuva a bater no zinco castigava-me a cabeça. A toda a volta estavam encostadas as esteiras para os valadores, e da banda do sul tinham-se distribuído as caixas dos trabalhadores casados que estavam lá com as mulheres e que faziam divisões, onde ficavam mais à vontade durante a noite.
Eu tinha um pressentimento.
Do tecto penduravam-se arames compridos para agarrarem as varas de eucalipto que serviam de cabides para os alforjes e as mantas, pois os ratos entravam por ali à vontade e traziam fome de comer a gente. Foi aí que eu voltei a dar-me bem com os ratos, como já sucedera no armazém do Lobato. Atirava-lhes migalhas de pão, até à parede, mais perto depois, cada vez mais perto, e eles acabavam por vir comer mesmo ali ao pé de mim. Os meus camaradas riram da habilidade, e já diziam que na feira
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de Vila Franca eu havia de me apresentar num circo com ratos ensinados.
Para nos acolher bem houve um luar de Verão naquela primeira noite. E como o zinco do tecto estava furado pelos pregos doutro barracão onde servira, a luz entrava por eles e fazia estrelas no chão de terra batida. Mesmo sobre a minha cabeça caía uma roda de estrelas.
O abegão deu ordem para se ficar com o lampião de petróleo apagado, pois naquela noite era justo que os casais pudessem estar à vontade. Aquilo deu ensejo para a gente atravessar as conversas, vá de pôr pimenta nas palavras, toca os outros de nos fazerem negaças, até que veio o silêncio e começámos a dormir. Não sei se dormiram todos. Eu não dormi tão cedo, sempre à espera de barulhos do lado sul, onde estavam as arcas dos casados.
Uma das mulheres foi arvorada nossa cozinheira. Eu pendurei a minha caldeira com arroz e feijão na ponta do cambaricho e meti direito ao valado, onde devíamos começar o trabalho. O João Inácio agarrou-me no caminho para me falar do namoro com a filha, que lhe dissesse se ela fora malcriada como a mãe, porque no sábado à tarde havia de a ensinar a preceito. Disse-lhe que não, que havia de voltar. Arrufos há sempre, não é?
Fomos divididos em dois grupos. Começámos nas curvas do valado e acabaríamos ao meio, disse o capataz. As mulheres e uns rapazes andavam à canastra. "Vamos depressa e bonda de riso!", começou o homem, assim para a gente saber que ele não era de brincadeiras. Estava servido com os valadores. A gente não era gado.
O Rabugem debruçou-se para o lado do Tejo e fez careta.
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"A lua é quarta-feira."
"Então ainda sobe mais", disse o João Inácio. "Se não vier vento palmelão, esse malandro dos lados da barra, o homem tem a seara salva."
"Estás a prometer muito."
O trabalho corria bem. As mulheres cantavam na viagem e eu disse para uma: logo que o capataz dê ordem para balhar havemos de fazer um pé de dança.
"Já estou comprometida com o Rabugem." "Esse é um grande balhador de cadeira", respondi eu a brincar.
Mas nessa tarde a chuva começou cerrada, parecia que
o céu vomitava água. Os valadores vestiram as capas de
oleado e meteram as polainas para lhe fazer a frente, mas
o pior é que faltou pessoal para a canastra, pois a rapaziada e as mulheres ficaram num pingo em menos de uma hora de chuva. Começámos a Encavalitar a pedra,
enquanto uns desciam até à babugem do rio e dali arrancavam lama, atirando-a em bolas para o capelo do valado, e os que estavam em cima se serviam dela para segurar a relinga. O abegão andava assustado. "Não é por nada",
dizia. "Tenho já aguentado cheias. Mas nunca vi uma seara tão bonita. Está aqui o pão de muita boca."
Aquilo deu-nos mais alma. O caso do Mouchão das Garças enchera-nos de vaidade e também daquela vez nos sentíamos capazes de levar a melhor. O João Inácio foi falar em nosso nome e o abegão deu mais dois mil réis a cada um.
A chuva começou a vir puxada pelo vento e zunia, zunia, e o pessoal tinha de fincar bem os pés para não baldear do
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valado. No Tejo não havia uma vela; o cais de Alhandra estava cheio de embarcações.
A maré crescera. Estava a menos de um metro do capelo da sebe e a gente de pé firme, vá de acamar pedras, vá de trazer terra, pois acabámos por dividir o grupo e de pôr uns tantos à canastra. As fábricas deram o apito da largada, o dia para os valadores ainda não acabara. Comemos ali mesmo pão seco e um bocado de toucinho, e toca de acamar o frio com aguardente. Havia qualquer coisa que mandava na gente, de tal maneira se trabalhava. As mulheres e o rapazio olhavam-nos da porta do barracão que ficava a uns cem metros do sítio onde estávamos.
"Daqui a cheia não entra", disse o Rabugem.
"Se não entra daqui, está tudo safo", disse o velho.
Mas daí por uma hora, se tanto, o vento virou numa guinada e começou a enfurecer-se do sul. E o mar começou a agoniar. Quando o mar agonia não há valados nem valadores que o segurem. O palmelão é o vento da desgraça. A gente nem pensava nisso, tão acesos andávamos em levar a cabo o nosso trabalho. Tínhamos feito quase um milagre. Era mesmo um milagre a relinga que já tínhamos levantado.
A noite caiu de chapuz em cima da gente. E como a chuva abrandasse, resolvemos continuar mais um bocado, já agora não queríamos que o rio nos ganhasse a teima. De repente ouviu-se, foi o Rabugem que ouviu, uma zoada que fez tremer o mouchão. Ele deu um grito: "O mar entrou pelos valados do sul."
"Foi o palmelão!", disse o Inácio com raiva.
A gente não via nada. Do lado das motas chegavam gritos. Também os homens gritavam. Então começámos
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a correr. Uns tantos começaram a correr, apesar do João Inácio nos avisar ainda de que devíamos ficar no valado. "Voltem! Voltem, companheiros! Eh camaradas!" "Foi a cheia que entrou! E vai agarrá-los!", gritava o velho.
Apanhados entre o valado e o barracão, quiseram uns voltar para trás e outros caminhar para sítio mais firme. Mas a golada de água era muita. Fazia um barulho de enegrecer a noite. Nunca ouvi um barulho assim. Parecia um rebanho de bichos à solta. Eu voltei-me para a banda do valado e deitei a correr; sentia o bafo da morte a morder-me os pés, pega não pega; e gritos dos que tinham sido agarrados antes de chegarem ao barracão. Já não havia vozes de gente no Lombo Tejo. Eram ganidos, eram uivos, eram sons roucos, que se agarravam ao nosso coração e o apertavam. Eu fugia sempre. À minha banda iam uns tantos, e eu não sabia quem. Um tropeçou e caiu. A cheia tapou-o. Eu corri mais e a maldita agarrou-me pelos pés e atirou-me com ela por aí fora. Logo a seguir da mota dos bois, acossados pela cheia e medrosos da morte, o gado soltou-se e veio numa debandada, a mugir e a berrar ao encontro das vozes dos que estavam em cima do valado. Eu andei por debaixo de água, senti a morte no corpo não sei quantas vezes, tentei encontrar pé e não dei com o fundo. Lá de longe o mar entrava sempre. Pus-me a nadar com raiva, vi perto de mim um corpo grande a boiar, deitei-lhe os gadanhos e subi-lhe para cima. Era um boi que procurava salvação e me levou com ele até ao pé do valado, mas eu já não tinha forças para me tirar dali. Via os vultos lá em cima, a mexerem-se, de
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braços abertos, aos gritos roucos. Agarrados ao caniço também havia outros vultos.
"Aguentem-se! Aguentem-se, camaradas!", pediam os de cima. E percebi que choravam, que as suas vozes choravam.
Debaixo de mim o boi estrebuchava e eu batia-lhe com uma das mãos, como se pudesse obrigá-lo a viver. O gado mugia e berrava. O boi levantava a cabeça, levantava-a tão alto quanto podia, e os cornos vinham bater-lhe no lombo. Segurei-os para o ajudar, mas sentia nas minhas pernas que o seu corpo arrefecia, que lhe faltava uma força qualquer, e que pouco a pouco... Então gritei pela primeira vez. Gritei em dois gritos e a voz apagou-se-me na garganta. Quis falar ao boi, dizer-lhe qualquer coisa para o animar, mas já não saía uma palavra.
Tive uma ideia que me pareceu boa. Como a tive, não sei. Abri a navalha e pus-me a golpear o boi, como se ele pudesse ganhar mais forças. O seu sangue quente animou-me, aqueceu-me as mãos, sentia-o nas minhas pernas, quente como a vida.
"Aguentem-se, camaradas!"
E depois mais gritos, mais vozes que pediam. E vozes que se calavam.
O boi afocinhava, afocinhava e mugia; depois deu um urro e abateu-se debaixo de mim. Naquele momento o corpo de um homem veio bater nas minhas pernas, E fiz mais um esforço. Mexi os braços, acho que nadei, e fui agarrar-me aos caniços.
Os que estavam em cima do valado começaram a dizer que os barcos não deviam demorar, que havia gente no Cais e não nos iam deixar sem socorro. Mas o Tejo barrava
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o caminho aos barcos. Eu ouvia-o bater no outro lado. E a água entrava sempre do lado do mar. O palmelão, o vento da desgraça, não se acalmara ainda.
Estou cansado, sim, mas deixe-me contar tudo.
Começámos a arrefecer. Era o frio da morte. Ali mesmo à minha beira, vi morrer o Babugem. Quando morreu, agarrou-se ainda ao meu braço e disse qualquer coisa que eu já não me lembro. Estávamos todos misturados para ali, homens e bois, mortos e vivos.
Ainda não sei porque estou aqui. Já não me lembro de mais nada. Sei que me vi no outro dia em cima do Cais com outros camaradas e o Carlos Arrenega. Os mortos tinham vindo no mesmo barco. Não sei quem foi, deu-nos dinheiro, também não sei para quê.
Tudo o que era meu lá ficou. E o resto da alegria. Estava tão triste, tão cego de dor, que peguei na minha gaita de beiços e joguei-a ao Tejo. Nunca mais toquei harmónica. E tive ódio àquele rio de que eu tanto gostava. Onde tinha brincado e que o senhor chamou a fronteira do meu sonho. Era assim que o meu sonho morria.

CAPÍTULO XIII
Depois foi uma galopada
Foi ali que morreu o Cavalo Branco. Eles não acreditavam na minha história, mas eu tinha um pressentimento. Que a cheia era um cavalo branco com crinas feitas de tempestade... E de morte.
"Aqui nunca mais como pão", disse eu para o Carlos Arrenega quando me achei capaz de falar. "Nem que rebente no cabo do mundo."
Crescera uma raiva danada dentro de mím.
"Vou-me por esse Alentejo fora."
"Talvez a gente possa fugir pra Marrocos ou pra Espanha."
"Queres vir?"
Ele disse que sim, que não queria fazer a vida militar. Não estava para malhar com os ossos no Forte dê Elvas.
Logo naquela tarde passámos o Tejo e metemos os pés ao caminho. Depois foi andar por essas terras dentro, viver do que houve ensejo e chegar a Olhão. Foi em Beja
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que nos ensinaram que podíamos arranjar passagem em Olhão.
O Carlos Arrenega começou a arrepender-se. Quis voltar para trás e eu peguei-me com ele. Não para o obrigar, mas porque tinha medo de voltar também, e fomos os dois até ao fim. ,
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CHACAL
OS GRITOS SILENCIOSOS
REGRESSO AO DESESPERO
A calma que lhe viera com a narração da sua vida começava a perturbar-se. Durante esse tempo parecera um homem diferente do que eu encontrara sempre exasperado, a saltar do ódio feroz para a alegria selvagem de relatar, momento a momento, com todos os gestos, e palavras, e gritos, a morte que o trouxera até junto de nós. O rosto compusera-se-lhe, falava com brandura e sorria, às vezes, como um pobre diabo atirado para ali por um erro contra o qual não se insurgia. Quando me punha a escrever o que ele contara, ficava quieto, a olhar-me com humildade e um certo orgulho, e só se irritava quando percebia, em qualquer expressão minha, que o barulho da sala me transtornava.
Mas era quando eu lhe lia, à hora de um silêncio tácito, livremente aceite por todos, que ele se tornava um homem sem complicações, curioso e atento, talvez feliz. Uma vez por outra dizia "foi assim mesmo", e acenava a cabeça rapada.
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Agora, porém, eu sentia o desespero caminhar para ele. Em cada dia que passava via-o mais inquieto, desconfiado, e de novo capaz de pular para o meio da sala com o taquetaque da sua Mariana, como se conseguisse destruir o que o rodeava. Exasperava-se por um motivo fútil, arranjava até pretextos para se exaltar.
Não sei se era a aproximação do julgamento e a ansiedade de saber, por fim, se a liberdade prometida lhe seria dada, ou se também o acumular dos factos contados que iam atingir o vértice do drama que vivera. Aparecera-lhe um tique no rosto, um tremer de lábios, que tentava desfazer num golpe rápido da mão inquieta.
Após o relato da cheia ficara excitado, fugira de junto de mim e fora meter-se no balneário durante muito tempo. À volta abrira caminho por entre o grupo dos judeus, afastando-os com violência e gritando-lhes: "Não julguem que também a cadeia é de vocês." Eu percebia a sua admiração pelos nazis, só retida ali dentro porque o seu apego ao passado o fizera aproximar-se de mim.
Um dos judeus, o mais jovem, disse qualquer coisa que eu não entendi. A resposta pronta foi o cantar raivoso da sua metralhadora automática. "É assim que os hei-de limpar!", gritou apoplético com os olhos cheios de ódio. Depois veio para o meu lado e disse que estava a brincar, que gostava de os ver com medo.
"Não te parece uma brincadeira selvagem?"
"Agora tudo é selvagem", respondeu-me. "E eles precisam de se habituar. Aqueles não escapam."
"E parece que gostarias de os fuzilar..."
Ficou perturbado. Depois negou, negou com hesitação e logo com alvoroço.
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"Se te derem a liberdade, terás de ir para guarda de um campo ou para qualquer unidade de repressão", disse-lhe com naturalidade.
"Acha que sim?" Teve um estremecimento. "Que devo fazer?..."
"Tu é que sabes. Mas talvez possas aceitar", respondi-lhe para o ouvir. "Liberdade sempre é liberdade."
"Fala a sério?"
"Claro que sim! Achas que é coisa para brincar?"
No seu sorriso pairava um enigma.
"E eu não aceito", disse depois.
"Fazes mal. Ninguém te vai agradecer. E a tua Nena? Vais perdê-la?..."
"O senhor é meu amigo. E agora é que percebo que eles se enganaram quando o prenderam."
Ele não percebia que aqueles que o tinham conduzido até à guerra e ao crime eram os mesmos que iriam julgá-lo e me tinham prendido. Seria alguma vez capaz de o entender?
"Eu nunca lhe mostrei... nem a outro qualquer..."
Abriu a carteira e mostrou-me o retrato de uma rapariga banal, talvez grosseira, com um olhar apagado.
"É bonita!"
"É para que saiba... É a minha Nena. Ela respondeu-me e disse-me que está à minha espera. Vamos casar logo que eu chegue. Por isso mesmo eu não aceito... Quero ir para o campo..."
"Faltam poucos dias."
"Cinco. Tantos como estes dedos."
Levantou-se e foi até à janela para receber o ar da rua. Para ele era já a liberdade que estava a saudá-lo. Mas vi-o
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triste, com o tique no rosto; e depois a mão apressada a querer apagar essa marca de ansiedade.
Quando saiu dali, foi para junto dos presos do mercado negro, com quem ria e confraternizava. E começou uma nova cena, que iria repetir nos outros dias. "Levante-se o réu! Tem alguma coisa a alegar em sua defesa?", declamava numa voz pretensiosa. "Ao abrigo da Lei 3015, atendendo aos serviços prestados à França, e às quatro medalhas que ganhou ao serviço da ordem, é absolvido Cidro, filho do Bago de Milho!"
Depois inclinou-se numa vénia, para logo se empertigar na posição de sentido.
"Oui, mon commandant!"

CAPÍTULO I
Trabalho e mulheres
Foi o que disse o senhor com quem falámos na taberna do porto. Teríamos trabalho e mulheres à farta, porque os homens estavam quase todos na frente e iríamos ser tratados como reis. Quando chegássemos fazíamos o contrato e devíamos dizer que tínhamos já vinte anos, porque doutra maneira podiam mandar-nos embora, e era pena, pois lá ganharíamos dinheiro do grosso. Apareçam à meia-noite, disse ele, já sabem o sítio, mas não digam a ninguém para onde vão.
Quando ficámos sozinhos, deu-me uma gana e agarrei-me ao Carlos Arrenega para lutar com ele. Passei-lhe uma rasteira, que o deitou por terra, e disse-lhe "isto é que é sorte, pá! isto é que é sorte macha!" Ele riu-se e chamou-me irmão. Combinámos que passaríamos a ser irmãos; e para toda a gente eu seria agora Jerónimo Arrenega. A idade é que não podia ser a mesma, ninguém nos ia comer como gémeos. Ele como era mais alto e magro teria vinte e um anos e eu vinte. Fomos então para outra taberna e mandámos vir torresmos, pão e uma garrafa grande de vinho.
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Na mesma mesa estavam dois homens a conversar; pareciam tristes e depois vimos que sim, não era caso para menos. Eles contaram-nos que o mar não dava peixe e as fábricas de conserva tinham fechado.
Pela maneira de falar eles perceberam logo que a gente não era dali nem do Alentejo. O Carlos atrapalhou-se e eu pus-me a contar que éramos irmãos, vínhamos de Lisboa e para lá voltávamos naquela noite. Se ali houvesse trabalho gostávamos de ficar mais um tempo, mas assim nada feito. A terra era bonita; as raparigas eram bonitas. Mas com fome em cima nem havia preceito para gozar essas coisas. Oferecemos-lhes vinho e eles beberam; depois pusemo-nos a cantar e jogámos às cartas. Eu seguia as horas no meu relógio. Quando chegou às onze pagámos a conta; tivemos de discutir com o homem da taberna porque ele meteu mais uma garrafa e não houve remédio senão pagá-la também, pois ele ameaçou-nos com a guarda e não queríamos sarilhos àquela hora.
Tenho que ver se lhe conto isto bem. Estava uma noite feia de temporal. Metemo-nos debaixo do casco dum barco velho e fumámos calados. Fumámos calados porque a gente zangou-se. O Carlos começou a falar da mãe e do irmão: talvez fosse melhor a gente voltar para trás. Eu respondi-lhe: se és medricas e não tens palavra, eu não sou desses e vou mesmo sozinho.
Então ele embezerrou, mas deixou-se ficar. Daí a pouco começaram a aparecer uns vultos e depois ainda mais; e só mais tarde, já a meia-noite estava batida, é que veio o tal senhor.
Fomos atrás dele pelo areal, "apaguem os cigarros", e a chuva caía-nos em cima do costado. Ainda me lembrei da
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noite no mouchão e disse ao Carlos; ele deu-me logo o coice, respondendo-me que se eu era medricas o melhor seria voltar para trás, e foi assim que fizemos as pazes.
O senhor pôs-se a contar-nos à entrada do barco, voltou a contar-nos lá dentro e um outro senhor estrangeiro falou com ele; a gente não percebeu bóia da conversa. O português tirou os nossos nomes para uma lista, eu dei Jerónimo Arrenega, vinte anos, e todos disseram os nomes e a idade. Eu era o mais novo de todos, íamos onze homens. À nossa frente o estrangeiro deu dinheiro ao outro e vimos que ele ganhara por cada um cinquenta escudos. Então ele falou-nos outra vez: "Façam tudo o que este senhor disser, tudo o que ele disser é para vosso bem. Ele arranja trabalho para todos. Se algum for agarrado, não diga que foi para lá de barco e onde embarcou. É muito importante! Mas tudo vai correr bem. Deus os acompanhe."
Então eles apertaram as mãos, um disse heil e levantou o braço, e o outro respondeu na mesma. Quando ficámos sós, olhámos muito uns para os outros e ninguém falou, porque a ordem era não fumar nem falar antes de chegarmos ao mar alto, não fosse alguém ver-nos de terra. Alguns estavam tristes, um que se pusera a um canto tapara a cara e eu percebi que chorava, e eu ia contente que nem um rato em cima duma manta de toucinho. Trabalho bem pago e mulheres não era vida que se arranjasse na nossa terra, a não ser para os que nasciam com bons padrinhos e os que não têm padrinhos morrem moiros.
Daí a pouco começou o baile, como a gente chamou àquele inferno do barco e do mar. Eu nunca pensei que o mar tivesse tanta força e tanta raiva. Dentro da casa onde nos meteram a gente batia uns de encontro aos outros, o
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barco parecia que se voltava e o temporal crescia; quem queria pôr-se de pé para espreitar no vidro redondo era atirado ao chão e daí a bocado todos iam enjoados. Alguns puseram-se ainda a gritar, um mais atrevido amarinhou as escadas de gatas, mas quando chegou ao pé da porta viu que ela estava fechada; e então começou a dar-lhe murros; e a sacudi-la pelo fecho, até que a porta se abriu e apareceu outro homem de pistola em punho. E ele disse: "queimo os miolos ao primeiro que faça barulho" Depois mandou descer o tal que fora pela escada de gatas e, como ele não se mexesse, meteu-lhe um pé a um ombro e atirou com ele por ali abaixo.
"Parece que estamos lixados", disse o Carlos, e eu respondi-lhe que gostava das coisas que começavam mal, porque depois o bom sabia melhor.
Onze homens dentro daquele casinhoto é que era de maiss e o calor começou a apertar; e com o cheiro das tintas e vomitado a gente já não podia e cada vez se enjoava mais. depois já eram as tripas que pareciam vir à boca. Então começámos todos a gritar e eu também, ao menos que nos dessem ar, mas a gente percebia que eles agora já não Corriam perigo e a nossa gritaria era abafada pelo barulho o motor e do vento. Percebemos isso, mas não nos calávamos assim ao menos fazíamos companhia uns aos outros. Eu conseguira abrir um dos vidros e pendurara-me para apanhar o ar fresco, que vinha misturado com água, e aquilo sabia-me bem, parecia que a vida já era outra. O pior é que outros fizeram o mesmo e o mar enfiou por todos os lados, e depois juntou-se a isto os que também queriam refrescar e se puseram numa guerreia com os que estavam ao pé dos vidros. Daí a bocado ninguém se entendia e
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jogámo-nos uns aos outros, à punhada e a dente; a pontapé eram poucos os que se aguentavam em cima das pernas. Não sei quem foi, descalçou um sapato e partiu a lanterna a petróleo pendurada no tecto; e depois é que foram elas. A gente não sabia em quem malhava e quem nos batia, enquanto a água do mar ia entrando pelos vidros, o que nos fazia bem, apesar de o quarto já ter um palmo de água e só se ouvirem gemidos por toda a parte.
Eu tinha o corpo amassado. Caíra debaixo de uns tantos que me arrancaram da frescura do vento e do mar, e depois me pisaram e bateram às cegas, como se eu tivesse culpa do que estava a suceder. Vinguei-me a dente, ainda me lembrei da navalha, mas disse cá na minha: se eu pico algum os outros fazem o mesmo e a gente mata-se aqui antes de agarrar o trabalho. O Arrenega chamava por mim, já o ouvia distante, e daí a pouco a porta abriu-se e um foco de luz começou a bater-nos na cara, enquanto uma voz dizia silence, silence, e dois canos apontavam para as nossas cabeças. Depois um marinheiro descalço e de camisola azul desceu até ao pé da gente, fechou os vidros a custo e disse que já faltava pouco - já se viam as luzes de Rabat e devíamos ir calados, senão a polícia dava com a gente e ninguém podia desembarcar.
Ao meu lado um homem deu um grito e quis atirar-se ao marinheiro. Mas eu deitei-me a ele e depois bati-lhe de murro fechado, não sei quantas vezes, até que ele caiu de olhos fechados à minha frente. Isso agradou ao senhor estrangeiro que me fez sinal com a mão e me mandou sentar na escada com uma pistola. Só então reparei que os meus companheiros estavam todos marcados pela zaragata,
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alguns com sangue. Eu também devia ter qualquer coisa, porque comecei a sentir um fio a correr-me da testa e quando levei a mão a ver o que era trouxe sangue nos dedos.
O marinheiro apareceu com um regador de água para a gente beber, depois deu pão e um bocado de linguiça a cada um, mas foram poucos os que comeram, porque o enjoo continuava e a ninguém apetecia. A manhã já não podia tardar. Pelos vidros entrava uma claridade. Então o mar sossegou, a gente sossegou também, porque muitos puseram-se a dormir de qualquer maneira, aos montes no chão. com a porta aberta é que eu percebia o cheiro que vinha de baixo, a podre e a suor, a urina e eu sei lá mais a quê.
Pedi para ir lá acima e quando cheguei ao ar livre respirei cá de dentro, limpei bem a testa e pus-me a olhar para as montanhas para onde o barco avançava. "Trabalho e mulheres", disse em voz baixa. O homem que ia ao leme fez-me sinal para descer. Voltei contrafeito, mas também voltei reanimado, com a certeza de que ia começar vida nova, agora sim, vida nova com outra gente, e um dia que voltasse à minha terra iria a falar uma língua que o Carapinha e a Teresa não podiam compreender. Naquela altura isso pareceu-me importante, sabe? A gente tem vaidades, não é?
Já o sol rompera quando conseguimos desembarcar num bocado de areia e vi que estávamos noutra terra diferente da nossa. As árvores não eram iguais, nem a sua cor, nem a cor do mar, que era azul - azul como eu nunca vira água assim. Então ficámos os onze, mais o senhor estrangeiro
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e um tipo fardado de caqui com um boné de berloque e que falava a nossa língua. Esse disse para irmos por um carreiro fora, até uma estrada, e que quando lá chegássemos devíamos meter para a direita em direcção à cidade. Ele e o senhor esperariam a gente lá mesmo à entrada; iam à frente para nos preparar a casa onde devíamos ficar até cada um ir à sua vida. Como estivera sentado na escada com a pistola, eu perguntei-lhe quando começávamos a trabalhar, e ele disse talvez hoje mesmo, e bateu-me com a mão no ombro e chamou-me valente, era desses que eles precisavam. Fiquei cheio de vaidade e gostei da sua cara queimada com um bigode preto e de guias reviradas. E pensei: com este estou eu bem, vê-se logo que gostou de mim. Se ele me perguntar peço-lhe para aprender o ofício de serralheiro. Ganha-se boa massa e são só oito horas.
Eles meteram-se num automóvel e o carro desapareceu num instante. Começámos a andar a pé, uns atrás dos outros, e encontrámos um homem trigueiro, quase preto, com um pano enrolado na cabeça e uma espécie de camisa rota e uns calções também rotos. Um dos meus companheiros falou-lhe e ele respondeu numa língua que nos pôs a rir.
"Isto é África", disse o nosso companheiro. "Já estamos em Marrocos. Devemos estar perto de Rabat". E eu por brincadeira perguntei-lhe se tinha sido o homem de pano na cabeça que lhe contara isso. Começámos todos a rir.
Mas a brincadeira durou pouco. Numa curva da estrada estava um camião parado e dois militares encaminhavam-se para a gente; e aquilo não nos pareceu uma coisa
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boa, porque parámos e alguns quiseram voltar para trás. Mas para onde? O barco já abalara, o senhor e o militar com cara de boa pessoa deviam estar à nossa espera, mas não podiam dizer nada a nosso favor, e os dois militares vinham com uma espingarda pequena e esquisita apoiada na barriga.
"São da polícia, estamos lixados", disse o que falara ao marroquino. Eu não quis acreditar e adiantei-me, fui até ao pé deles a correr e expliquei que era português. Eles fizeram-me sinal para entrar para o camião e todos entraram para o camião, menos o homem que estivera sentado a um canto e me pareceu que chorava. Esse vinha atrás, no fim da fila, e desatou a correr pela estrada fora, parecia doido. Mas não correu muito tempo, porque um dos militares pôs a funcionar a metralhadora que trazia e ele caiu para a frente; ainda se quis levantar apoiado num braço, mas acabou por ficar lá sem se mexer, com a cara encostada ao chão; parecia mesmo que estava a ouvir o que a terra dizia.
Depois os militares saltaram para o pé da gente, baixaram um pano que tapou o resto da caixa onde estávamos sentados, e daí a pouco o camião começou a andar, a andar não sei para onde. O Arrenega olhava para mim e fechava os olhos, a dizer-me que não percebia nada daquilo. Eu sossegava-o com a mão, tinha cá a minha fé, o que sucedera ao outro fora por culpa sua, sim, quem o mandara fugir?
Percebi que atravessávamos uma cidade ou uma terra grande, ouvi tocar flauta e cantar também, mas estava em terra estrangeira e nem a flauta nem a cantiga me disseram alguma coisa daquilo que eu gostava de perguntar a
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alguém. O camião tocava a buzina, respondiam-lhe gritos e muitas vozes. Depois percebi que saíamos da cidade, a gente também vê com os ouvidos, mas comecei a sentir-me sossegado, porque até o militar que fizera fogo com a metralhadora se sorria para a gente e se pôs a assobiar. Tive receio de mostrar o meu relógio e comecei a querer calcular o tempo que já íamos de camião, talvez duas horas, e daí a pouco parámos.
Então apareceu a cara do militar que me chamara valente e eu disse ao Arrenega: estamos em boa companhia. "E o trabalho?", perguntava-me ele. "Só vejo militares..." Lembrei-me que podíamos ir trabalhar nalgum forte, os militares precisam de fortes, e sosseguei o meu companheiro, puxando-o para junto de mim quando começámos a descer do camião e só vimos soldados com o bivaque de borla à frente e alpargatas brancas nos pés. Fomos metidos num saguão e daí a pouco começaram a chamar-nos pela lista que o senhor fizera antes da gente sair de Portugal. Um rapazola assim baixo como eu, mas morenão, começou a dançar no meio da gente e a cantar o "vai ó linda" com voz de mulher, e eu dei-lhe o braço, aquilo não me apetecia nada, mas era preciso animar o Arrenega e os outros, e dei o braço ao rapazola e cantei também, até chamarem pelo nome que eu dera. Enfiei pela porta dentro quase a correr, tinha pressa de saber que trabalho me iam dar.
Sentado numa cadeira estava o senhor estrangeiro que pagara cinquenta escudos por mim.
"Jerónimo Arrenega?"
"Sim senhor. Às suas ordens."
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"Vingt ans?"
Aquilo percebia eu. Já os começava a perceber. "Sim senhor, vinte anos e o meu irmão tem vinte e um."
"Responde só ao que te perguntam", disse o militar que falava português.
Mandaram-me despir, mediram-me e viram-me a boca, depois calquei com os pés no cimento, como me disseram, e o senhor estrangeiro falou ao oficial a meu respeito. Ele sorriu-me, disse-me qualquer coisa que eu não entendi. Depois o militar de bigode retorcido explicou-me: a gente precisa de soldados decididos como tu.
"Mas eu venho trabalhar", respondi admirado.
"Isto é trabalho!"
"Não, mas isto não é o trabalho que eu queria. Eu vinha aprender a serralheiro."
"Aprendes depois... Agora és soldado da Legião. Sabes o que é a Legião?"
"Não, não sei, mas eu não vim para ser soldado. O meu irmão veio para não ser soldado na nossa terra. Ele não queria ir pró forte."
"Cala-te! Não deves falar muito... Passa para essa casa e não fales."
Na outra casa já alguns dos meus companheiros estavam vestidos. A mim deram-me um fardamento igual.
"Lixaram-nos! Aquele gajo de falas mansas engatou-nos", dizia um dos meus companheiros. "Que grande trabalho este, hem?"
Eu não falava, não só pelo aviso que me fizera o militar, como também para o Carlos Arrenega não estranhar o meu silêncio, quando me perguntasse o que é que aquilo queria
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dizer. Ele bem não queria vir. "Trabalho e mulheres." O trabalho estava visto.
Voltei-me de costas para a porta da inspecção, mas ele deu logo comigo e sacudiu-me pelos ombros. "E agora, Ruço? O que é que a gente vai fazer?" Passei-lhe sinal para se calar, mas ele mandou-me um soco à cara e eu tapei-a. Só lhe disse: "Lá fora a gente fala."

CAPÍTULO II
A gente tinha uma missão
O sargento português disse que a gente tinha uma grande missão, que estávamos ali a defender as nossas casas, os nossos pais e as nossas terras. Os inimigos onde chegavam degolavam as pessoas, incendiavam tudo e faziam pouco das mulheres e até das crianças. Se a gente não os vencesse, eles tomariam conta de tudo e as coisas mudavam de dono, o que era uma desgraça.
Eu não percebi o que ele queria dizer na sua, porque não tinha pais, nem casa minha e agora nem terra; e se as coisas mudassem de dono isso era lá com eles, porque até a minha roupa desaparecera quando me mandaram despir, e agora que tinha eu? Vontade de abalar dali para fora com o Arrenega, que não me deixava com as suas queixas. Mas percebi que estava cercado. Se fugisse para um lado, os outros apanhavam-me; e se fugisse para a cidade, sucedia-me o mesmo que aos dois soldados agarrados naquela manhã, e logo ali encostados ao muro do quartel e atirados abaixo por um grupo de companheiros.
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Os recrutas tiveram de assistir àquilo. Eu fiquei na primeira fila, acho que era para a gente perceber que tínhamos uma missão, ou lá o que era, e a sorte dos que desertavam era sempre a mesma. Nunca julguei ser assim tão fácil dar cabo de dois homens. Eles choravam e taparam-lhes os olhos, o oficial chamou-lhes cobardes e disse-lhes que eles não mereciam estar na Legião, e depois deu voz de fogo. Eles ficaram ainda a estremecer, um deles até levantou a cabeça e então o oficial puxou de pistola e foi dar-lhe o tiro de gradas, como me disse um veterano que me convenceu a deixar crescer as barbas, porque me devia ficar bem. Ah esquecia-me de dizer que havia revista às barbas e às patilhas, os oficiais gostavam que a gente ao menos tivesse patilhas, e muitos camaradas meus faziam patilhas com tinta preta e depois iam lavar a cara.
Na bandeira do depósito onde a gente aprendia a recruta, eu fingia que não era capaz de aprender as vozes, enganava-me quase sempre, e eles davam-me com a verdasca e um dia chamaram-me e então é que foram elas. Puseram-me de tronco nu, carregaram-me com um saco cheio de areia e fui para a parada com mais seis companheiros, e ali andámos debaixo daquele sol danado a fazer o esquerda volver e o direita volver, e mais as vozes todas da formatura. Eu percebi que não podia fazer as coisas direitas logo ao princípio e bom olho tive, porque outro soldado, um polaco ou lá o que era, começou a fazer tudo bem e eles não estiveram com meias medidas, descobriram logo que ele andava a enganá-los: deram-lhe ordem de abrir uma cova à enxada e depois mandaram-no meter lá dentro, taparam-no até ao pescoço e só o foram buscar à noite quase morto, ou mesmo morto, porque dali ele foi para a
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enfermaria e morreu dois dias depois a vomitar sangue e a urinar sangue. Eu tive sorte, porque de princípio fiz o mesmo que fazia na formatura; a pouco e pouco fingia que ia aprendendo, embora o saco de areia me ferisse as costas e me derrancasse todo; até as pernas me faltavam. Mas não podia arriar, porque uma vez ainda disse "vou deitar o saco ao chão" e levei logo um ensaio de cavalo-marinho.
Percebi que a gente tinha uma grande missão e se os outros nos degolavam era preciso aprender depressa os exercícios. Fugir não podia, lá estava o muro, e não aprender também não podia ser, porque eles não deixavam a gente assim às primeiras, pois na cantiga que nos ensinaram lá se dizia "sou valente e leal" e o legionário estava ali para "lutar e morrer".
Não estava má a cantiga, dizia-me o Arrenega cada vez mais triste. Nem quando íamos aos cafés mouros ou às casas das raparigas se mostrava mais satisfeito, e assim que tinha um grão a mais na asa atirava-se a mim à punhada e a chamar-me malandro. Eu tinha de me defender e dava-lhe para baixo, e então os outros separavam-nos e diziam que os legionários não devem bater-se, a não ser por causa de mulheres. E todos contavam histórias de mulheres, todos estavam ali por causa de uma mulher que lhes fugira, ou doutra que enganara o marido por causa deles e eles tinham sido obrigados a abalar para aquilo não acabar em morte de homem. As raparigas gostavam de ouvir aquelas histórias, e como eu tinha o cabelo rúbio e deixara crescer as barbas, elas diziam que me ficavam bem. Uma delas, chamava-se Amparito, começou a dar-me tabaco e pediu-me para eu lhe contar também a história da minha vida. Eu sabia lá o que havia de dizer! E
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enquanto ela cantava a Maria de la Ó, eu pensava numa história com mulheres, mas encontrava sempre a Mariana e o Mula Brava e isso aborrecia-me, porque não queria metê-los em conversas de gente daquela laia. E então contava uma qualquer coisa já ouvida ao Pierre, um calmeirão que nunca acabava de dizer histórias picantes e engraçadas.
A sua narrativa parecia-me confusa e perguntei-lhe em que guerra estivera. Ele respondeu-me com o ar perturbado, que se acentuava de dia para dia:
"Faça de conta que estive em todas as guerras destes últimos tempos. E depois as guerras são iguais umas às outras. Eu acho que uma guerra é sempre para matar e para se não morrer. Eu fiz, a guerra bem, ganhei quatro medalhas e cheguei a cabo. Agora estou aqui. Da única vez que tive razão para matar um homem prenderam-me. Veja lá como são as coisas..."
Uma cigana a quem dei um real para me ler a sina disse-me tudo. Ela tocava pandeireta e dançava, sentou-se nas minhas pernas e assim que me pegou na mão abriu muito os olhos e começou a dizer: na linha da tua vida há uma grande desgraça, a morte dum homem. Então os outros legionários começaram a rir, porque todos sabiam que na guerra se matam muitos homens e que a cigana era aldrabona, dizia aquilo só para me apanhar o dinheiro. Mas ela fez-lhes ver, agarrou-me na mão e saiu comigo do bar, e ela, que nunca deixara nenhum homem branco mexer-lhe, quis que eu fosse com ela para o campo e foi minha amante, enquanto estive na bandeira do depósito. Deu-me
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uma pulseira de rabo de cavalo preto e pediu-me para nunca deixar que a raiva entrasse no meu coração, porque eu era bom, mas que na minha sina estava lá a marca da morte dum homem. Se eu quisesse, ela fugia comigo para o outro lado da fronteira e a gente podia esconder-se nas aldeias da montanha, onde a guerra não chegasse. Então eu disse-lhe que tinha uma grande missão e ela ficou triste, mas nunca me deixou. Eu já começava a gostar daquela vida. Trazia-me dinheiro e tabaco, chamava-se Adamastora, e tinha os olhos mais negros e mais bonitos que ainda vi em cara de mulher. Tocava pandeireta e dançava, cantava soleares e sabia ler a buena dicha como nenhuma outra cigana.
Ela sabia bem que a morte dum homem seria a minha desgraça, e senão veja lá como eu estou aqui só por causa dum, quando matei tantos. Parece que nunca lhe contei, mas aquele homem estava atravessado no meu destino; por isso acredito que a gente já nasce com a vida toda escrita.
Quando aquela guerra acabou, um oficial da minha bandeira gostou de mim porque eu era valente e disse que me arranjava trabalho em França numa fábrica onde ele era engenheiro. Entrei como servente, vivia sossegado, embora às vezes pensasse nos homens mortos de noite, eu depois lhe conto, mas matar homens de noite é a pior coisa que pode suceder à gente. Fazia o meu trabalho, vivia numa barraca e um dia, em Toulouse, conheci a minha Nena, que é filha de gente de campo e tem o seu arranjinho. O pai tem vinhas e duas vacas leiteiras, um cavalo e um carro. Que queria mais? Sim, o que é que eu precisava mais do que isso, se ela gostava de mim e queria que a
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gente casasse? Combinámos que eu havia de chegar a operário, desses que trabalham com máquinas; depois compraria uma bicicleta para vir todos os dias da sua quinta para Toulouse, e com isso havíamos de juntar dinheiro para comprar mais umas vacas, de maneira a termos uma boa velhice quando eu já não pudesse trabalhar.
Começaram, então, a desaparecer umas coisas da fábrica, eu nem sei o quê, isso não m'interessava, e o encarregado-geral começou a vir ao portão e a mandar alguns operários serem apalpados numa casa que havia para isso. Aquilo danava-me, porque eu tinha bons camaradas, embora muitos não gostassem de mim por eu ter feito a guerra. Aquilo danava-me e um dia eu disse no bistrot para quem me quis ouvir: a mim não me manda ele apalpar; sou um homem honrado, honrado aqui e em qualquer parte, sim senhor. Fiava-me no engenheiro, devo agora dizê-lo a si que é meu patrício, e também me fiava na minha pistola, porque não queria que ninguém fizesse pouco do Chacal. Chacal foi a alcunha que eles me deram na guerra. E sabe porquê? Porque eu matava a eito e depois ficava triste. E como os chacais parece que choram, eles fizeram paródia disso e deram-me aquela alcunha. Mas como ia dizendo, jurei a mim mesmo que ele não me mandava apalpar.
Quem foi que lho disse não sei, isto há bufos por toda a parte, mas o encarregado-geral soube da minha conversa com o Jean e o Gérard. Eu não sabia disso, mas sempre que saía e ele estava no portão dizia cá para dentro: Deus queira que não me chames, Deus queira que não, porque vamos ter aí o fim do mundo.
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Até os pés me arrefeciam quando encarava com ele. Mas um dia, há sempre um dia, aquilo estava escrito, calhou-me a vez e eu nem queria acreditar. "Eh Jerónimo! Portugais!..." "Está a falar comigo, chefe?", disse eu em francês, cá no meu francês mascavado, mas ainda a pensar que ele dava o dito por não dito. Ele respondeu que sim e eu disse-lhe que não senhor, não ia, era um homem honrado, o engenheiro Michelet podia dizê-lo, e tinha quatro medalhas ganhas na guerra. E vai ele disse -me: não tenho nada a ver com isso, aqui é outra coisa.
Eu voltei-lhe costas, saí o portão, e no outro dia, quando voltei, o guarda não me deixou entrar; tinha apanhado um castigo de dez dias e ordem para falar ao engenheiro. Estava com a minha gente, disse cá para mim; o engenheiro sabia bem o que eu tinha feito na guerra, quantas vezes ele me dissera "não te esqueças" e quantos homens tinha eu liquidado à sua ordem?
Pedi para lhe falar, saudei-o à maneira da Legião, ele mandou-me entrar e depois pôs-se a ralhar comigo, que eu devia ter ido à apalpação, não era mais do que os outros e que o castigo estava dado e bem dado. Então disse-lhe: eu sou um homem honrado, nunca coisa nenhuma se me pegou às mãos e o encarregado embirra comigo. Ele contou-me que o outro soubera da minha conversa com o Gérard e o Jean, que era bom falar pouco quando se bebe e que a disciplina tinha de ser mantida e se eu era seu amigo não havia outra coisa a fazer senão deixar-me revistar. E que mal havia nisso? perguntou ele. Não posso permitir que os operários digam que o engenheiro-chefe protege os fascistas. Mas eu não sou fascista! gritei danado.
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Ele não gostou da minha resposta e mandou-me voltar ao trabalho no fim do castigo. Se tivesse ido para o pé da minha Nena, a coisa tinha-se composto. Mas fiquei em Toulouse, bebe daqui, conversa dacolá, os camaradas a dizerem "lá conversa não te falta, mas tens de ir à apalpação", e eu danado a jurar que só se fosse cego lá ia. Tinha uma fé que o engenheiro falara com ele e que as coisas se arranjavam, sem mais chatices.
Quando voltei à fábrica, ia nervoso, parecia estar outra vez na guerra, e a raiva a crescer dentro de mim. À saída encarámos um com o outro, eu não lhe falei, percebi que ele estava com medo de mim; eu também estava com medo dele. Nessa tarde foram quatro à apalpação, mas eu não fui. Ganhei coragem, meti-me no bistrot e comecei a beber, vá de conversa, e os outros a puxarem-me pela língua e eu a dar-lhes guita. Meti-me na barraca, nem fui ao cinema, ia uma boa fita do Gabin e eu nem tive alegria para me distrair um bocado. Na manhã seguinte, o encarregado-geral estava ao portão, eu fui marcar o ponto de entrada e nem lhe disse "bonjour, chef". Ele perguntou-me se o não conhecia, eu disse que sim, e ali a conversa acabou, mas eu não disse "bonjour, chef". Fui para a minha secção, tremia todo, tive de pedir ao encarregado para me pôr noutro serviço, já sabia, sim já sabia que à saída ia começar a borbulha, que a bagarre podia rebentar às cinco e eu não me podia ficar; senão toda a gente começava a rir-se de mim. Um homem que esteve na guerra, e foi cabo da Legião, não pode consentir que os cocos e outros tantos brinquem com ele.
Mas à saída a gente encarou um com o outro, eu percebi que ele ia para falar; mas a voz atou-se-lhe aos pés, pois
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a minha cara não o tinha enganado. Então sorri-me e pensei: entraste no bom caminho. Fugíamos de nos encontrar frente a frente. Ele via-me e voltava as costas, disfarçava. Eu fazia o mesmo, e assim é que é, pensei eu, o engenheiro cantou-te das boas, meu malandro. Acalmei-me, naquele domingo fui ver a minha Nena e contei-lhe tudo. Falámos do nosso casamento. Eu ia passar para os teares, qualquer dia chegava a afinador, o salário aumentaria para o dobro, e então podíamos poupar bastante todos os meses. A brincar, ela tirou-me a pulseira de rabo de cavalo preto que a cigana me dera, disse-me que tinha ciúmes, e eu ri-me e achei-lhe graça.
Foi a conta. Naquela segunda-feira ia eu a sair de mãos na algibeira e a assobiar, descansado da vida, a coisa corria-me bem, e oiço a voz dele: "Eh Jerónimo!" O corpo deu-me uma palhaça por dentro.
"O que foi?", perguntei eu, e vai ele diz-me, muito branco, que fosse à apalpação.
"Está enganado, chefe! Eu sou um homem honrado..." "Pois é por isso mesmo que eu quero que vás lá dentro." "Vossemecê sabe o que está a dizer? Pois não vou! Tenha paciência, mas não vou!"
E abalei pelo portão fora. Ele chamou-me duas vezes e eu nem me voltei. No dia seguinte recebi uma carta da fábrica, assinada pelo engenheiro Michelet, a dizer-me que fora suspenso do serviço e só podia voltar quando apresentasse as minhas desculpas ao encarregado-geral, ao malandro do Doriot. Quis falar ao engenheiro e ele não me recebeu. Então meti-me quatro dias na barraca, nem comi um bocado de pão, só a pensar naquilo, sem saber se devia abalar. O resto já o senhor sabe como se passou, estou
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farto de contar aqui na cadeia. Entrei por ali dentro, abri a porta do gabinete dos engenheiros, e quando puxei da pistola os outros fugiram e só ele ficou. "Vamos fazer contas!" O queixo dele deu um estalo, nunca pensei que os engates da cara de um homem pudessem dar um esticão daqueles. Despejei-lhe a carga toda e saí da fábrica, eles deviam pensar que eu guardara o último tiro para mim, mas enganaram-se. Fui escrever à minha Nena, penteei-me e só depois me entreguei.
Um legionário não deixa ninguém fazer pouco dele, foi assim que me ensinaram. Eu custei a aprender, não quis aprender, talvez já tivesse um pressentimento, mas no dia em que andei com a saca da areia eles obrigaram-me a conhecer todas as vozes. Depois na carreira de tiro disparava a espingarda e fechava os olhos, ela dava-me coice e os outros riam-se de mim, e eu esperava que eles me mandassem embora, mas não me mandaram. O sargento português voltou a falar e a dizer que a gente estava a fazer aquilo de propósito e isso era uma traição. Eu já sabia o fim dos traidores.
"Quem vive?", perguntou ele.
O Carlos Arrenega respondeu logo e eu respondi também.
Então, nessa tarde, a nossa bandeira foi dada como pronta e meteram-nos num comboio. A Adamastora foi despedir-se de mim, corria ao lado do comboio e chorava, chorava tanto, que o coração me doía. Deixara de pertencer aos recrutas.
íamos entrar no bled. A guerra começava naquele dia para a gente.

CAPÍTULO III
Viva la muerte!
Viva la muerte, uma gaita, uma grande gaita!, pensava eu quando subi para o camião com a minha esquadra, comandada por um cabo espanhol, El Navarro, um tipo que bebia peleón como quem bebia água e tinha fama de não voltar a cara ao perigo. Chegara a notícia do ataque a um cerro que ficava a vinte quilómetros da cidade, e se aquela linha caísse era um perigo para toda a frente, porque eles podiam atacar a segunda bandeira pela retaguarda. Pediram voluntários e fomos todos, ninguém podia dizer que não; e enquanto os meus companheiros gritavam vivas à morte, eu pensava que talvez me pudesse escapar, fingindo-me ferido, ou então, se viesse um tiro de sorte num dedo ou num braço, a guerra estava feita por um mês ou dois meses, e isso era uma boa coisa.
No correaque levava cento e cinquenta balas, mas eu estava com mais fezada nas minhas pernas ou na minha sorte; ainda não sabia bem como aquilo era, mas não tardou muito que percebesse a alhada em que me tinham metido, porque começaram a passar camiões cheios de feridos,
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todos aos montes, nem havia macas para todos; e depois passou outro camião só com mortos, e esse parou depois à beira da gente, e foi então que um cabo francês disse: eles fizeram uma carga de baioneta à companhia que guardava uma ponte e dos cento e oitenta homens só quatro escaparam sem ferimentos.
Os oficiais falavam, diziam mais asneiras do que falavam, e eu bem percebia que também eles estavam com medo; aquilo não era para brincadeira, não, os árabes agora já tinham metralhadoras e espingardas inglesas
- quem seriam os cabrones que lhas tinham vendido? e as bombas deles, as laranjinhas, eram melhores do que as nossas e onde caíam pareciam granadas de artilharia. Então apareceu o capitão Michelet, sim, o engenheiro, e mandou deitar os mortos para fora do camião, o camião era preciso; pô-los todos numa pilha e depois regou-os com gasolina. Eu lembrei-me do incêndio na eira, mas aquilo doía mais, sempre eram homens, companheiros nossos, e se eu estivesse na ponte com a companhia que fora atacada, bem podia ser um daqueles, talvez um baixote como eu, menos rúbio, mas que também usava barba. Eu quis puxar esse para fora da pilha, pensei que podia misturá-lo com os feridos, sempre teria cova na retaguarda, mas o capitão chamou-me idiot e atirou-me um murro à cabeça que me fez cair em cima do morto. Safei-me dum salto e ia a subir outra vez para o camião, mas o cabo El Navarro apontou-me a espingarda e disse-me: na minha esquadra que ninguém pense em fugir, porque caço-os como a coelhos.
"Tem tento comigo que eu não sou para brincadeiras, ouviste?"
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Ainda bem que ele me avisou. Disse logo para mim que iríamos ver quem tinha melhor pontaria, e então pensei bem como me havia de lhe escapar, enquanto acendíamos os archotes e os atirávamos para cima da pilha. A gente despira-os num instante e comecei a ver que os veteranos corriam as algibeiras dos companheiros mortos e tiravam de lá tudo o que podiam apanhar. Lembrei-me do meu relógio e apertei-o bem no sítio onde o levava escondido, mas fui-me também à colheita; só apanhei umas moedas, uma pulseira de oiro e retratos. O pior é que os cabos vieram e obrigaram-nos a entregar tudo, dizendo que o saque era só para os inimigos, e que depois tínhamos tempo de encher as algibeiras.
Eles é que se amanharam.
Saltámos outra vez para o camião depois de nos darem uma lata de conservas e casqueiro, e daí a pouco lá estavam as metralhadoras a cantar, mais os tiros das espingardas e as bombas, e via-se o fumo branco às nuvens, pareciam fogaréus, aqui e mais adiante, e a gente a tremer por dentro, e alguns a tremerem por fora, até que o cabo começou a cantar o nosso hino e incitou-nos a cantar também, depois de nos mandar beber aguardente do cantil. O Arrenega benzia-se e eu molhava os beiços secos com a língua, pois não, estava um calor danado, mas a aguardente animou-me e voltei a lembrar-me do que me dissera El Navarro. Um oficial apareceu na estrada e mandou parar a fila de camiões, que saltássemos ali mesmo, porque os carros tinham de ir buscar mais reforços, pois a coisa estava preta. Então vimos que quase ninguém trazia força nas pernas; assim que batíamos com os pés no chão, caíamos para o lado e os oficiais começaram a gritar, e depois
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os sargentos e os cabos também gritaram, e só a gente cantava, já nem sei o quê.
O capitão Michelet fez um discurso e também ele falou do nosso baptizado, ou coisa parecida, que ia ser o nosso baptismo de fogo e esperava que soubéssemos merecer a honra de pertencer àquela tropa, pois os árabes não perdoavam a ninguém, que víssemos o que eles tinham feito a três camaradas nossos. A gente ainda não reparara, mas então eles mostraram um oficial e dois cabos pendurados na mesma oliveira com as caras rasgadas a punhal e os olhos arrancados, e as camisas abertas no peito com um punhal cravado no sítio do coração.
Eu estava raivoso de ver aquilo e ao mesmo tempo sentia-me triste de ser obrigado a ver coisas daquelas e a pensar no combate, que se ouvia ali tão perto. O capitão também falou da nossa missão e eu pensei que se um homem vinha ali para morrer, porque é que não dávamos tiros uns aos outros, e acabava-se tudo duma vez; escusávamos de correr até à frente e entrarmos nas trincheiras.
"Por cada companheiro nosso devemos matar cinco dos deles", disse o nosso capitão. "E agora adiante!"
E aí vai a gente a correr, podíamos ir a correr de cabeça levantada, porque à nossa frente havia um cabeço e só para além do cerro estavam as trincheiras e os tiros.
"Mata para não morreres!", gritavam os oficiais.
"Atira adiante!", berrava El Navarro com os pantalones compridos que pareciam de um palhaço. E eu com o olho nele e ele com o olho em mim.
"Viva a Legião!"
"A morte chega sem dor!"
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"Morrer em combate é a nossa honra!", gritava El Navarro, agora à minha frente.
"Viva a Legião!"
Então entrámos numa trincheira, que ia aos ziguezagues até à frente, e começámos a caminhar quase de cócoras e assim a gente nunca mais lá chegava. El Navarro voltou-se para trás e chamou-nos nomes, quis que a sua esquadra fosse mais depressa e correu de pé, e eu a pensar que dali é que não podia escapar, ia dentro duma manga, agora é que eram elas, "matar ou morrer, pois então?", e atrás da gente vinham os oficiais de pistolas em punho ou de espingardas-metralhadoras. Dali é que ninguém passava. Agora todos gritavam para nos animar e outros cantavam, e a gente cantava sempre, mas a cantiga das metralhadoras ali a dois passos, e a fuzilaria, e as bombas, e a nossa artilharia a bater o vale. Daí a pouco a gente pisava companheiros nossos e regulares; alguns ainda gemiam e a gente acabava por matá-los.
"Um tiro de sorte, um tiro de sorte!", pedíamos todos. Eu sabia que todos pediam o mesmo e eu não podia fugir, estava numa manga. El Navarro tinha o olho em cima de mim e ao primeiro movimento meu ele atirava-me a matar. Via tudo negro e via depois tudo cheio de sangue, e a garganta estava apertada, e o estômago estava apertado, e só a bexiga se abria com medo, não sabia bem se era medo, mas podia ser, porque as balas batiam nos sacos de areia, e quando um dos nossos espreitava para atirar uma bomba, às vezes descia de braços abertos e de olhos abertos: nunca pensei, que os olhos de um homem pudessem ser assim daquele tamanho.
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Olhei para o meu lado e para a minha frente, olhei para trás e chamei, olhei para o lado e chamei, olhei para a frente e chamei, chamei pelo Carlos, meu irmão, meu irmão Arrenega; e El Navarro gritou-me que não queria ali soldados maricons, pois a guerra era uma coisa macha. Eu comecei aos tiros encostado às sacas de areia. Dava tiros e os olhos doíam-me, dava tiros e os olhos choravam-me; e então eu disse para um francês que estava a meu lado: os olhos choram por causa da poeira. Ele não percebeu o que eu disse, porque não sabia falar português, mas acenou com a cabeça e apontou-me para os seus olhos que estavam como os meus.
"Viva la muerte!" E ela ali estava à nossa volta. O meu camarada francês já caíra à minha beira com um buraco na cabeça, mesmo no meio da cabeça, e de lá saía um fio de sangue que me encharcava as alpargatas, que tinham sido brancas, e depois amarelas de suor e de poeira, e agora vermelhas do sangue do meu camarada francês- talvez acabassem por ficar pretas quando eu fosse queimado numa pilha com os outros mortos, que estavam agora por todos os lados, e nenhum deles me dizia onde estava o meu irmão Carlos. Sim, o Carlos Arrenega, tinha a mesma idade que eu e fugira de Portugal para não ir à tropa.
Chamei outra vez por ele, mas não me voltava para trás nem para o lado, agora só disparava para a frente; mas tinha quase a certeza que ele viria para a minha beira ajudar-me a dar tiros, não sabia bem qual o inimigo, embora eles dissessem que a gente estava ali numa grande missão.
"Mi cajo en Dios!", gritava El Navarro. Mas eu já não podia ouvi-lo, porque me parecia que se ele se calasse os outros deixariam de dar tiros e de atirar bombas. E como
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a tarde ia chegar, a gente talvez pudesse sentar-se à sombra das oliveiras a dormir um bocado. Ainda hoje não sei porque fiz aquilo, não foi bonito, não, mas olhei para os lados e reparei que ninguém estava com os olhos em mim. Então baixei-me, meti o cantil à boca e bebi a aguardente toda que tinha lá dentro; depois limpei a testa de suor, e a boca e os olhos, e quando voltei a agarrar a espingarda fiz pontaria para o lado e, a cabeça do cabo espanhol, El Navarro, deu um estalo, deu um estalo que nem um melão, e nunca mais a vi à minha direita a dizer "viva la muerte!"
Perdi o medo, palavra d'honra, perdi o medo, e nunca mais chamei pelo Carlos, meu irmão, nem me lembrei do francês que me encharcava as alpargatas de sangue. O nosso capitão Michelet passou por detrás de mim e disse-me "és um valente", agarrou na minha mão e apertou-a, e disse ainda que vinham aí mais reforços e o fogo deles já diminuía. Eu não percebi que o fogo deles diminuíra; mas tinha agora a certeza de querer viver, que gostava de viver, e que era preciso ir calá-los lá abaixo para a gente dormir naquela noite.
Urinei para dentro do cantil, eu sabia que a sede iria chegar, e era melhor beber alguma coisa do que ficar doido com a sede. O fogo deles diminuíra, era verdade, o capitão falara verdade, e eu continuei a dar tiros; depois comecei a espreitar, agarrei numa espingarda, enfiei-lhe o meu bivaque e veio uma bala e furou-o, e eu baixei a espingarda e fiquei entretido a olhar para o buraco; achei graça àquilo, meti o bivaque na cabeça e fui apalpar com o dedo a minha testa. Foi nessa altura que chegaram os reforços. Então aproveitei para me chegar para o lado e pus os pés em cima da cara do cabo El Navarro.
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"Vamos ao ataque!", disse uma voz. Eu fui um dos primeiros a saltar para fora da trincheira com a baioneta armada, e corria, corria de cabeça baixa, depois atirei-me para o chão, as metralhadoras cantavam, cantavam atrás da gente e cantavam à nossa frente. Eu arrastei-me; e quando apanhei o corpo dum companheiro morto servi-me dele para meu escudo, e assim fui andando. Os outros aprenderam comigo e fizeram o mesmo. Depois agarrei numa granada e atirei-a, e depois do seu berro ouvi os gritos deles dentro da trincheira e percebi que muitos fugiam. Então levantei a cabeça e um tiro apanhou-me de raspão; senti frio, mas depois veio-me a raiva. Pus-me de pé, outros puseram-se de pé, e com a baioneta galguei para dentro da trincheira e depois não sei o que fiz, porque a baioneta entrava e saía, saía e entrava, como nos exercícios que eu não quisera aprender, sempre à espera que eles me mandassem embora. Um homem pode ser uma saca de areia, e se uma saca de areia serve para a gente fazer o exercício, também um homem pode ser uma saca de areia, e a baioneta entra e sai, é preciso um bocado de força, mas entra e sai.
O clarim tocou a cessar o combate. Eles tinham-se calado, muitos fugiram, mas outros estavam mortos e outros vinham entregar-se com as mãos no ar em sinal de paz. Mas eu naquele dia não percebia o que era isso de paz depois do meu primeiro combate na guerra. E quando vi dois prisioneiros à minha frente, corri para eles e dei-lhes com a coronha da espingarda até eles caírem. O capitão Michelet é que me tirou a espingarda da mão. Mas sorria para mim. E disse-me: "Vais passar a legionário de primeira. Mereces uma medalha." Depois ralhou comigo;
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os prisioneiros são sagrados, não se matara a não ser quando os oficiais mandam. Os oficiais é que sabem.
Vieram dar-nos comer e eu não comi. Os meus companheiros começaram a cantar o nosso hino e eu não fui capaz de cantar. Agora só percebia que queria viver. E enrolei-me no capote que me deram, escondi a cabeça e meti-me ao canto duma trincheira a pensar. Os maqueiros passavam; daí a bocado chegou-nos um cheiro danado a carne queimada.
"Viva la muerte, não, uma gaita! A vida que viva!"

CAPÍTULO IV
Tive um companheiro
Sim, um bom companheiro, o cabo Valaud, a quem a gente chamava Clichy, porque ele só falava do seu bairro. Todo o mundo era o seu bairro, e acho que viera para a Legião por causa dum negócio com raparigas. Era loiro e alto, de olhos azuis, tinha umas mãos brancas e compridas, e alguns também lhe chamavam por causa disso, às escondidas dele, o Mãos de Anjo, porque ele não gostava dessa alcunha.
Eu estava na sua esquadra, íamos avançando para a fronteira, e de repente tivemos de abrir trincheiras à pressa, porque uma patrulha nossa veio contar que os marroquinos vinham pelo mesmo caminho, eram muitos, e traziam artilharia e homens a cavalo, naqueles cavalos pequeninos e rabiosos - até parece que bebem aguardente e pólvora. A gente escolheu um morro ao pé dum vale com -árvores, o nosso capitão Dupont mandou abrir ali as trincheiras, e lá foram para a frente quatro metralhadoras para os aguentar. Esses companheiros só podiam salvar-se por milagre,
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e foi por isso que ninguém se ofereceu como voluntário; o capitão é que escolheu os homens.
Deitámo-nos àquilo com toda a gana, ali todos trabalhavam, mas não tardou muito que começassem as rajadas das metralhadoras. A gente conhecia o cantar das nossas, eram as nossas que disparavam. Não os víamos, mas percebia-se logo como é que estavam os homens, sim, se tinham medo ou se iam jogar tudo por tudo. A gente já conhecia como estavam os homens pelo cantar das metralhadoras. No princípio disparavam fitas inteiras, assim a modos como a querer acabar com os moiros por uma vez; depois calavam-se, era o medo, uma vontade danada de fugir; depois outra vez as rajadas compridas quando percebiam que nada os salvava, e só então a poupança das munições: fogos cruzados, uma rajada pequena e outra e outra, com a vida a vender-se aos pacotes de meio quilo, como eu dizia na minha, ao lembrar-me da loja do Lobato.
A gente trabalhava à fossanga, sim, não era coisa para menos; eles não deviam estar longe, e bem sabíamos que pouco podíamos aguentar contra os cavaleiros e a artilharia. A culpa era do capitão Dupont que já não andava bom de cabeça. Estava ali por causa da mulher, diziam todos, e bem se importava ele de morrer agora mesmo; por isso lhe chamavam valente e a gente naquela altura chamava-lhe maluco. E teve sorte, sim, ele teve sorte, porque podia um soldado meter-lhe uma bala no meio da testa e todos abalarem depois para a retaguarda, que os moiros tratavam-lhe da pele e nunca mais se sabia quem o tinha atirado abaixo. Mas ninguém se lembrou disso, e todos trabalhavam a abrir as trincheiras, enquanto as quatro metralhadoras aguentavam o inimigo; a coisa devia estar
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por um fio, pois já nos parecia que só duas metralhadoras despejavam metralha.
Nunca se sabe quanto tempo leva uma coisa daquelas. O tempo não tem nada a ver com os relógios, dumas vezes passam horas em minutos; doutras é ao contrário, e daquela vez a gente sentia que o tempo não valia um tiro, pois trincheiras feitas assim é o mesmo que nada, porque os marroquinos não têm medo da morte: eles acham que quando morrem vão aparecer vivos nas suas aldeias, e todos têm muita pressa de voltar para casa. Também a gente gostava de voltar para casa; até eu que não tinha casa nem família.
E num instante tudo ficou calado. Os nossos já não falavam lá de longe, e apareceu logo um bando de corvos no ar; os corvos andavam sempre atrás da gente, era sinal de carne fresca. Metemo-nos nas trincheiras abertas, era preciso ficarmos deitados, e uns cortaram árvores e puseram-nas à frente; as metralhadoras estavam aos cantos, e aí começámos a arranjar granadas de mão, e todos com sede, e todos com febre nos olhos. O cabo Valaud, o Clichy, ficou à minha beira, estávamos os dois com uma metralhadora. Foi ele que me escolheu; ele gostava de mim, era um bom companheiro, sim, era um bom companheiro.
Os árabes começaram a aparecer numa colina do outro lado. E logo que os vimos, eu cá por mim senti apertarem-me as partes com uma turquês. É uma coisa danada a gente perceber que vai entrar num jogo daqueles, numa espécie de pedida em que uns jogam só com uma carta e os outros com o resto do baralho. Não demorou muito tempo, digo eu agora. O tempo não é coisa que se saiba pelos relógios. Eles começaram a bater as nossas posições com
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a artilharia, por acaso era pouca, mas isso chegou para a gente passar ali o trinta diabos.
O capitão Dupont é que tinha culpa ou a cabra da mulher, que o fazia desgraçado. E os soldados é que iam pagar, e ele também, mas com isso não tinha a gente nada a ver. Num instante, em menos dum fósforo, aí começam a cair granadas a uns vinte metros de mim e do Clichy; e toca de saltarem bocados de fardas de caqui e bocados de gritos, e troncos de árvores e pedaços de homens. Parece que tudo voava, e por cima da gente voavam os corvos aos bandos. Eu estava a olhar para uma árvore, não sei porquê gostava de ver aquela árvore; parecia uma sentinela a meu favor, e aí ficou ela esgalhada com um braço virado para mim, aflita e desgraçada como se fosse um camarada nosso.
Então abrimos fogo, aí vai uma fita inteira, e aí vai outra, para quem gostasse de castanhas assadas, e os marroquinos avançavam já a peito descoberto; malucos, sim, eles eram malucos, e a gente não era menos porque também não fugia. Mas ainda bem. Eles vinham e eu varria-os com a minha metralhadora, e alguns sacudiam-se, levantavam os braços, vinham já mortos, sim, eu percebia que eles vinham já mortos, e ainda corriam para a gente. E vinham morrer ali à mão, como se quisessem mostrar a cara à gente. Faziam montes, pareciam eles que queriam tapar com o corpo o cano da nossa metralhadora que cantava sempre e ainda cruzava fogo com a outra, onde estavam um italiano e um espanhol. Foi nessa altura que o capitão Dupont deu ordem para a gente recuar; disse que era melhor a gente fugir... E eu vi-o, sim, fui eu que o vi e disse ao cabo Valaud. E os dois vimos ele meter um tiro na cabeça e
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cair de joelhos atrás da gente. Chamámos-lhe um nome de caserna e tivemos pena de não podermos acabar com ele a pontapé, era o que aquele salaud merecia.
Só havia mortos por toda a parte, ao nosso lado nas trincheiras e à nossa frente, tudo homens: os legionários, nossos companheiros, e os árabes, nossos inimigos. Cheirava a esterco e os corvos grasnavam, e a nossa metralhadora cantava sempre, danada, danada como eu e o Clichy, meu companheiro, meu grande companheiro. "Estamos perdidos, estamos lixados", dizíamos um para o outro.
Mas as ondas de marroquinos tinham parado. Eles deviam perceber que não valia a pena queimar mais homens, e então o cabo disse para mim que era melhor a gente dar o fora, que os outros já se tinham passado também e íamos morrer sem glória naquela terra queimada. Parece impossível! Ainda hoje me parece impossível! Tudo tinha corrido bem até ali, e vai uma bala de ricochete, a uivar, e apanha-me numa perna, e eu vou com a mão e disse logo "estou tramado". A mão vinha quente de sangue e pedi ao cabo Valaud para se ir embora, ele que se fosse embora. Agarrei-me à metralhadora, danado fiz uma rajada inteira, pus-me a matar mortos, pois os árabes já tinham recuado.
O Clichy amarrou-me a perna, enquanto eu fazia fogo; depois deu-me um murro para que eles não percebessem que só a nossa metralhadora ainda estava com gente, e pôs-me em cima dele, e foi rastejando comigo por entre os troncos despedaçados e os homens despedaçados, a caminho da retaguarda. Eu dizia-lhe: não vale a pena; e ele dizia-me: está calado, não sejas parvo, eu sou o teu cabo e tu tens de me obedecer. Depois, quando percebeu que
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tínhamos passado a lomba e eles já não nos viam, pôs-se de pé e foi comigo por ali fora; eu percebia-lhe o cansaço e sentia-me desfalecer. A perna doía-me, o corpo doía-me, e voltei a dizer-lhe que se fosse embora, já não valia a pena importar-se comigo. Ele chamou-me parvo, que se eu tivesse de morrer morríamos os dois. Um companheiro é um companheiro, e que se assim continuasse eu já não seria o Chacal, como eles me chamavam. Acho que já lhe expliquei essa alcunha...
Lá fui com ele. Estava um sol de morte, com um bando de corvos por cima da gente. Ele puxou da pistola, deu um tiro para os corvos e eles fugiram. Já devíamos estar longe, sim, bem longe, quando encontrámos um camarada nosso a fazer o nome com o canivete na casca duma árvore. Chamava-se Jean, Jean Brique, e tinha começado a pôr a data do nascimento por baixo do nome. Não sei porquê, os homens antes de morrerem, e quando podem, gostam de deixar o seu nome em qualquer parte; devem julgar que continuam a viver no nome que deixam escrito. O Jean estava a acabar a data e talvez pensasse ainda pôr o nome da sua terra. Quando nos viu, parou, tinha os olhos cheios de lágrimas; não, não parece mal um homem chorar, e disse para a gente lhe dar um tiro. Ele tinha vindo até ali, mas estava com as duas pernas partidas; e pedia-nos para não o deixarmos aos marroquinos, que eles iam mutilá-lo. Sim, ele já sabia o que os árabes fazem aos prisioneiros quando estão feridos. "Mata-me, companheiro, mata-me! Eu não tenho pistola, mas tu tens uma e podes fazer-me esse favor..."
O Clichy era um bom companheiro, mas vinha cansado e não era capaz de fazer um favor daqueles; ele viera para
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a Legião, só queria matar marroquinos, e agora era um francês que lhe pedia a morte. O cabo Valaud estava triste, não podia levar os dois, era muito, mas também não era capaz de levar às costas a morte dum companheiro. Eu ainda disse: leva-o a ele, eu sou português e não tenho casa nem família; e ele respondeu-me, foi o Jean que me respondeu: não, comigo não vale a pena, tenho as duas pernas partidas e já perdi muito sangue; já não chego à retaguarda. Tu, Chacal, eu sei que tu és capaz... Vais ficar triste, mas és capaz. Toma lá estes retratos e a minha pulseira; leva tudo e entrega ao nosso comandante... É mais um favor.
Então peguei na pistola que o Clichy me entregou... As lágrimas pareciam balas de fogo. O Jean sentou-se com as pernas cruzadas, ficou muito manso, parecia que ia dormir, e encostou a cabeça à árvore, ao pé do sítio onde tinha posto o seu nome a canivete. Estava bonito o nome, ele tinha a letra tremida. Ele disse ainda "au revoir, Chacal"; e eu disse "adeus, Jean", e meti o dedo no gatilho e fiz força. Ele ficou a dormir, parecia mesmo que estava a dormir.
E o cabo pegou em mim aos ombros e levou-me. Era um bom companheiro o cabo Valaud. Devo-lhe a vida e ele morreu por minha causa; íamos quase a chegar ao acampamento, era ao fim da tarde, ao fim da tarde do outro dia, e uma sentinela não percebeu do que se tratava, era um soldado novo que estava com medo, viu aquele vulto a rastejar e deu uma descarga. Eu ia também a rastejar atrás dele, e ouvi o seu grito, não era bem um grito, era assim uma queixa, e pus-me a gritar para a sentinela "Salaud! Salaud!". Eu gritava, sim, eu gritava.
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Gritava e chorava, chorava e mordia as mãos, e sentia-me desgraçado, porque o Clichy, o meu cabo, estava morto ao meu lado, um bom companheiro, o cabo Valaud. Uma bala explosiva entrara-lhe mesmo ao pé da boca e já não era um homem; a cabeça parecia uma melancia aberta, uma grande melancia toda aberta.
Levaram-me para o hospital, e eu sei bem que se na guerra um homem quase nunca está bom, foi a partir desse dia que se partiu o resto de qualquer coisa dentro de mim. Partiu-se-me o resto, pode acreditar. Não estou a arranjar desculpas para tudo o que fiz depois; há sempre vozes que mandam e a gente nunca sabe bem quem é que manda.
O meu camarada Clichy, esse, sei eu, esse morreu por minha causa. Nunca mais o posso esquecer, isso é que nunca. E não é o Chacal que o chora; não, não é o Chacal que matava homens e depois se punha triste, a queixar-se. É outro homem que chora um camarada, o melhor que encontrei em toda a minha vida, a quem devo a vida. E para quê, pergunto agora, se depois disso nunca mais fui homem?

CAPÍTULO V
Um tempo na retaguarda
Um soldado na retaguarda é outro homem quando vem para descansar. Mas é preciso que não traga um tiro numa perna como eu trouxera, e ainda pior do que isso, há coisas que doem mais do que as feridas no corpo, se um soldado traz o coração partido com pena dum companheiro, dum bom camarada, que se perdeu por sua culpa. Estive dois meses de cama no hospital de Rabat, e depois andei a passear mais dois meses, e nesse tempo vi muita coisa e sucedeu-me muita coisa, tantas que não me lembro ou não vale a pena recordar.
Na guerra também se morre na retaguarda, às vezes até cá atrás é pior, como sucedeu uma vez numa aldeia moira onde entrámos e o comandante mandou trazer para o largo uma pipa de vinho com quinhentos litros, e aí todos começaram a beber até fartar, e não tardou muito que dois soldados se pegassem por causa duma Fátima, uma rapariga moira bem bonita, sim, as moiras são bonitas; e do murro passaram à navalha de ponta e mola, traço num, traço noutro, até que um fez mais força e espetou o camarada no peito.
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Um deles era italiano, e a gente não gostava dos italianos porque as raparigas pendiam para eles; a gente dizia que gostavam de fazer sorvete com elas e os italianos não achavam graça àquilo, e vai daí juntaram-se os franceses e os espanhóis à cata deles e nem queira saber. Foi uma rasia nos italianos e nos que se puseram do seu lado, porque os outros foram desensarilhar as armas e aí se pega um tiroteio cerrado que poucos combates deram tantos mortos. Nem um italiano escapou, que eu vi com os meus olhos amarrarem um ainda vivo a um burro, e o burro correr com ele de rojo, a bater nas pedras, a bater nas casas, até que ele ficou quase desfeito. Chamavam-lhe o Tino, usava patilhas em bico e cantava coisas que os outros chamavam romances, ou lá o que era. Sim, talvez fosse isso, romanzas, mas a gente não gostava deles. Não, dessa vez eu não entrei, tinha bebido pouco; eu bebo pouco, ainda bem.
Os oficiais vieram, vieram os sargentos, e os legionários parecia que estavam malucos, porque logo de seguida pegaram fogo a uma casa onde se tinham metido dois italianos, e um romeno que se pusera do lado deles, e aí ficaram com a casa cercada, a arder, até que eles saíram e foi uma caçada. Parecia uma caçada igual àquelas que a gente fazia aos árabes, quando andávamos em patrulha e íamos bem dispostos, porque então um soldado punha-se a gritar e se o moiro fugia era sinal que tinha feito alguma partida, e então a gente corria-lhe no encalce, como se faz aos coelhos. até que ele era atirado abaixo. Tinha de ser assim, porque doutra maneira ele podia ir queixar-se a um oficial e a gente arranjava uma chatice. Então, pegava-se no homem morto e dizia-se que ele fugira depois de ser preso,
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a gente desconfiara dele e mandara-o fazer alto, e ele chamara nomes à França e à Legião. Devia ser agitador, dizia a gente, e os oficiais acreditavam, tinham de acreditar, pois o árabe já não dizia nada.
Dessa vez com os três camaradas eles fizeram o mesmo e para aquilo acabar os sargentos viram-se obrigados a pegar em metralhadoras e pô-las a cantar.
Na retaguarda morre-se numa rixa ou numa emboscada, que os moiros à noite sabem vingar-se se a gente se esquece num casbah, que é o bairro árabe das cidades, onde há raparigas e bailes. E também se morre de nada, como um cigano, o Juanito, que descobriu uma talha de vinho numa casa e quis beber, meteu lá a cabeça e enfiou por ali dentro, e como já ia borracho não foi capaz de lá sair e morreu afogado em vinho tinto. Era um cigano valente, o único cigano valente que eu conheci na guerra; tinha já duas medalhas e foi morrer afogado, veja lá se não parecem coisas do destino, e logo afogado em vinho. A gente ria daquela morte, era uma morte engraçada, e outros diziam que era uma morte bonita e até um espanhol fez uma cantiga ao Juanito. Não, já não me lembro como era, mas sei que a gente se ria com ela.
Nas cidades os civis saíam dos passeios se a gente passava por eles, não queriam histórias com a gente; dizíamos que éramos noivos da morte e eles tinham medo, porque um homem que está na guerra tanto lhe faz morrer na retaguarda por causa duma mulher como dum tiro em combate, no fim tudo é combate. Ao menos, cá atrás, um homem é enterrado e leva camaradas a acompanhá-lo; até vão oficiais que dizem palavras bonitas, e caramba, sempre é melhor um soldado morrer assim do que degolado
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com a faca dum marroquino. A gente dizia por brincadeira: os marroquinos sabem fazer golas de camisas que nunca mais precisam de ser lavadas.
Olhe, agora me lembro, nessa andei eu metido, tinham-me dado alta no hospital, e faltava tabaco, estava tudo maluco com falta de tabaco e entrámos no café dum francês, tinha música e bilhar, e um cabo da minha bandeira pediu um maço de Gaulois e o homem disse que não tinha, mas ele estava a fumar. O cabo, era o Macaco, a gente chamava-lhe o Macaco, atirou-se ao homem e puxou-o pela camisa por cima do balcão, e o outro que era mais forte agarrou uma garrafa e deu-lhe com ela no meio da testa. Os civis puseram-se do lado dele, a gente tinha ordem dos oficiais para se pôr do lado dos nossos companheiros, houvesse lá o que houvesse, um legionário não podia ficar mal em parte nenhuma, senão ainda era castigado, e o cabo gritou como era costume "a mim, a Legião", e aí vamos todos.
Foi uma ariosca das grandes, com os tacos dos bilhares e as bolas que pareciam granadas, e as mesas e as cadeiras; depois veio a polícia que não gostava da gente, e então foi o bonito. A gente foi-se ao piano e partiu-o todo, e uns tantos roubaram os instrumentos da orquestra e foi nesse dia que eu toquei outra vez; experimentei numa concertina e fui capaz de tocar um bocado do fandango. Mas isso foi no fim de tudo, porque antes houve tiros para o ar, não morreu ninguém, mas cabeças partidas e gente com navalhadas foi sem conta.
É claro que na retaguarda nem tudo são zaragatas, um legionário também sabe falar a uma rapariga quando é
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preciso. Elas gostam da gente, a gente conta histórias, e dizemos que somos noivos da morte e elas julgam que a gente nunca mais as vê e não diz nada, e aquilo é um regalo, é só a gente querer. Em Rabat havia uma gaja da alta, acho que era condessa. Gostava de legionários e mandava um criado à nossa procura, e então aquilo é que era do bom, contaram-me, pois nunca lá fui, nunca me calhou. Bebia-se do fino, fumava-se tabaco inglês, e a cama era de rendas nos lençóis e sedas por toda a parte, e veludos por toda a parte, que até um homem, diziam os meus camaradas, calçava uns sapatos para andar no quarto e não sujar o chão; eram tudo tapetes. Disse-me um que até havia tapetes nas paredes. Nisto é que me custa a acreditar, pois tapetes nas paredes é coisa de malucos e a condessa era uma bácora, lá isso é que era, mas parva não podia ser.
Já disse que nunca fui a casa da condessa, também não era homem para aquelas tolices; mas arranjei uma enfermeira que me tratou, era suíça, ela disse-me que era suíça, e foi uma coisa bonita o nosso namoro. Eu ia esperá-la nos dias de folga e íamos para o pé do mar, à noite, ela gostava do mar e gostava que eu a beijasse, só não queria que eu abusasse dela, tinha noivo, acho eu. Tinha um cabelo como o trigo maduro, umas grandes tranças, se ela quisesse tapava-se toda só com o cabelo, e dizia-me "meu amor", eu ensinei-lhe a dizer meu amor em português, e ela marcava ore era engraçada a dizer aquilo. Dava-me tabaco, arranjava todo o tabaco que queria e deu-me uma caneta azul; roubaram-ma depois, quando fui ferido pela segunda vez e também o polaco me roubou o relógio como eu já lhe contei.
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Mas a caneta é que nunca mais a vi, e não era lá pelo valor, agora servia-me para escrever à minha Nena, só por isso, mas era só a recordação; foi a mulher mais limpa e assim mais importante que eu conheci na retaguarda.
A retaguarda também dá coisas boas, sossego e namoros, bebe-se cerveja e comem-se mariscos, eu gosto de mariscos, nunca os tinha comido na nossa terra. Passeia-se, fui a Casablanca, e um soldado anda limpo, traz o fardamento completo sem espingarda, ali não é preciso espingarda, e quando rebenta alguma alhada a gente vai buscar as armas, os oficiais fingem que não estão lá, porque a Legião não pode ficar mal. Ah é verdade e conheci a Rosita. Era filha de espanhol e de francesa, quis casar comigo, mas era uma sem-vergonha, pegou-me sarna, uma sarna que me vi doido para deitar fora. Acho que dormia com um marroquino, a safada, e também nunca mais me esqueci dela, ao menos por isso. Era mesmo enganosa, parecia que bebia os ares por mim, levou-me a casa da família e tirámos o retrato juntos; ficou um retrato bonito porque eu pus as minhas duas medalhas, nessa altura só tinha duas medalhas. E sabe? Ainda me lembro dela, porque tinha as mãos mais macias que ainda vi na minha vida. Fazia uma festa na minha cara e era mesmo veludo.
A retaguarda tem coisas boas, lá isso tem. A gente divertia-se o seu bocado; estou a ver a dona do bar Minuit quando comprou uma telefonia e aparecemos lá para brincar com ela, ela era muito ralhadeira, e o Paquito disse que ia ligar para a Rádio-Légion e aí começa ele a dar aos botões e a imitar um aparelho quando faz barulho e começa aos guinchos, parecia mesmo; depois pôs-se a fingir que era um desses homens que falam, e daí a bocado
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chamou o Tino, o italiano, e ele cantou, e depois foi o cigano cantar uma solear; outros imitaram uma orquestra, e fui eu então com um pente e uma mortalha e toquei o fandango da nossa terra; e levámos palmas das raparigas e dos legionários que estavam. Fizemos uma volta com uma bandeja, todos deram dinheiro, e então é que foram elas, porque pagámos cerveja uns aos outros e a festa nunca mais acabou; só acabou quando o Paquito se pegou de ciúmes por mor da Blanchette, ela gostava do Tino e o outro disse-lhe que ele fazia sorvete com ela e houve logo pancada da tesa. O Tino morreu naquela vez que já contei.
Éramos todos rapazes, tomara-me apanhar nesse tempo, se não fossem certas coisas que sucedem a um homem na guerra. Como estou a falar na retaguarda, sempre lhe quero contar que a gente nunca soube como morreu um oficial dos nossos, o nosso tenente Manias, como a gente lhe chamava; era assim todo saliente e andava de vidro no olho, e gostava de falar aos soldados, fazer discursos à gente. Dizia aos outros oficiais que ninguém tinha melhores rapazes do que ele na sua companhia. Vai então ele mandou a gente reunir-se e começou a dizer que estávamos ali a defender uma grande causa, ou coisa parecida, e que os homens eram para as ocasiões e tal e coisa, e de repente, bumba, ouve-se um tiro, apanha-o pela cabeça, e assim que ele caiu, ah rapazes! Fomos todos direitos à sua chabola, o impedido ainda se fez fino, mas levou um arraial, e a gente rapou-lhe tudo num instante. Só maços de cigarros agarrámos lá mais de vinte e a gente sem ter um cigarro. A gente ainda se riu, porque o Paquito, o tal da telefonia, que era todo reinação, punha-se a imitá-lo nos discursos e
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a dizer que estávamos ali a defender a companhia do tabaco, e era uma risota, porque ele dizia que isso era uma grande missão e uma grande causa. Foi depois dessa brincadeira que todos lhe chamavam o Grande Missão, o que danava os oficiais. Ainda três camaradas apanharam castigos por causa disso.
Passou-se tudo enquanto eu estive doente com o tiro na perna, mas o que é bom acaba-se, e então recebi ordem para me apresentar na minha bandeira que estava na frente, num sítio danado.
A enfermeira suíça foi despedir-se de mim; levou-me um pacote de caramelos e deu-me a tal caneta azul. Embarquei de madrugada e ia triste.

CAPÍTULO VI
Onde a gente passava era um fogo
Às vezes quando me ponho a pensar, tenho a certeza que os soldados na guerra são contra toda a gente, contra os que estão contra eles e contra os que estão a favor deles; a gente quer é abrir um caminho qualquer, e depressa, para se pôr fora daquilo. E sempre que penso nisso, levo muitas noites a pensar, acho que estou a dizer a maior verdade da minha vida toda. A gente ri-se uns com os outros, quem não souber bem das coisas até julga que os soldados gostam de matar, são como as feras, mas a coisa é outra, mata-se para não morrer e também se mata para ver se aquilo acaba. Ora repare: a gente tem dias em que se atira uns aos outros, nem os companheiros e os amigos escapam, qualquer coisa serve prà gente se atiçar, uma rapariga ou um copo de vinho. E quando nos saques se rouba o que calha, e se rebenta à coronhada um companheiro, que se encontra sozinho e roubou mais do que a gente, e se procuram os dentes de oiro na boca dos que morrem, o senhor acha que é roubar por roubar?
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Pois se julga isso, engana-se; engana-se de ponta a ponta. Na retaguarda há sempre quem compre o que a gente rouba, um soldado precisa de dinheiro para esquecer, e é para esquecer, para comprar o esquecimento, que a gente faz aquilo. Para esquecer e também para rebentar com as coisas.
Quando vamos de comboio todos juntos, porque é que a gente se apeia e rouba gaiolas de pássaros? Um dia roubámos um boi e metemo-nos com ele dentro dum vagão, e depois fizemos dali matadouro; foi uma galhofa pegada, uns a tirar a pele, outros a cortar bocados, e no fim ficámos a olhar uns prós outros e ninguém sabia o que devia fazer mais. E então fomos buscar palha e pusemos o boi a assar lá dentro e o vagão incendiou-se com a carne e ninguém comeu. Desatrelámos o vagão, ficou tudo a arder e a gente não se ralou, ninguém ficou com pena da carne se perder.
Doutra vez descobrimos um vagão carregado de laranjas, rebentámos com a porta, nem os sargentos aguentaram a gente, e quando o abrimos cada um comeu duas ou três laranjas, enchemos os bolsos e deitámos o resto todo fora, a perder-se no caminho, e depois começámos a atirar laranjas uns aos outros e ao chefe da estação, e ele teve de se esconder. E quando ele se escondeu, a gente atirou com laranjas aos vidros das portas e das janelas, partimos o que calhou, e depois sentámo-nos, pusemo-nos a cantar e rimos. Um soldado precisa de rir; e a gente na guerra só se ri com coisas destas.
Uma viagem de comboio é sempre uma brincadeira pegada; a malta sobe para riba das carruagens, pendura-se nas portas, toca os sinais, e quando se pára, que um comboio com militares não marcha sempre como os outros, a
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gente deixa um companheiro em cada carruagem e aí vamos todos pelo campo, a fazer o que calha, cada um a fazer o que lhe dá na gana: se há capoeiras roubam-se as capoeiras, se há fruta rouba-se fruta, se há água num poço, e só isso, a gente põe-se a tirar água e a despejá-la para o chão.
A gente é pior que o fogo, dizia o nosso capitão Otto, um alsaciano, ou lá o que era; acho que é um francês com costela de alemão.
Está a perceber agora porque é que a gente assusta os árabes e os caça como aos coelhos? E rouba o que calha? Dessa vez que a tal bala deitou abaixo o tenente Manias, vossemecê julga que alguém ficou ao pé dele ou que alguém se importou com ele? Uma gaita! Assim que a gente viu que não vinham mais tiros, só pensámos todos nas coisas que ele tinha dentro da sua chabola e foi uma rasia, nada se aproveitou. Eu fiquei com um sapato dele e para que queria eu só um sapato? Pois guardei-o até encontrar quem tinha o outro; e então a gente riu-se e fomos os dois vender os sapatos a uma loja.
Se estávamos na guerra, a gente queria ser a guerra. Por isso as pessoas abalavam quando os legionários apareciam, naquela altura ninguém tinha mão na gente; e os civis saíam dos passeios e nas casas de comida não faziam bulha. Quando a gente entrava, bebia e comia e depois mandava assentar na conta do ministro da Guerra, ele que pagasse, pois então!
A coisa passava-se sempre da mesma maneira e todos os patrões entravam no jogo, sim, pois aquilo era uma espécie de teatro ou de jogo. Comia-se o que houvesse, bebia-se da boa pinga, e depois mandava-se fazer a conta.
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"L'addition", como se diz em francês. E o patrão vinha, fazia a conta muito a sério, a gente discutia com ele muito a sério, e no fim perguntava-se quem vivia; ele dava a resposta, e depois perguntava-se quem mandava e se ele dizia que era o ministro da Guerra a gente respondia: o ministro da Guerra que te pague!
Só um dia houve um que nos lixou, era esperto, era um judeu.
O Pierre perguntou-lhe: quem manda?
E vai o tipo responde: quem manda és tu! Tu és o sultão de Marrocos!...
Dessa vez juntámos o dinheiro e pagámos a conta, ali inteirinha, e ainda lhe demos uma gorjeta. Ele também foi um cara direito, nem parecia judeu, porque nos mandou encher uns copos de aguardente.
Só havia uma coisa que a gente pagava sempre, também os nossos oficiais faziam questão disso: pagava-se sempre às raparigas que viviam do seu corpo. O senhor pergunta porquê?!... Seria porque também a gente vivia do nosso corpo?! Mas era uma lei da gente, a gente também faz as nossas leis. E senão veja lá isto: um dia entrámos numa aldeia, corremos as casas todas à procura de homens com armas ou de homens feridos, andávamos no saque, quem entrasse primeiro tinha duas horas de saque, e então ouvimos gritos de mulher dentro dum casinhoto. Fui eu que entrei, meti os ombros à porta e entrei; vi um companheiro agarrado a uma mulher e a meter-lhe cinza na boca para ela se calar. Ela estava o pé do lume e ele metia-lhe cinza na boca. Então eu pus a espingarda à cara e rebentei-lhe com a cabeça. Um soldado quando agarra numa mulher
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deve tê-la só à força dos braços; o que ele estava a fazer era uma coisa feia.
O oficial que comandava a gente deu-me um prémio e eu ganhei mais uma medalha quando o nosso coronel veio à frente e as bandeiras formaram na parada. Foi uma festa bonita, com a banda a tocar e os legionários a apresentar armas; o nosso coronel pôs-me mais uma medalha e depois apertou-me a mão. Essa foi a quarta medalha que recebi e depois passei a cabo.
A gente tem leis, sim senhor, e leis bem feitas, que também se um legionário denuncia um companheiro, mesmo que ele tenha feito mal, esse está tramado para o resto da vida. Começa na cadeia e acaba com um tiro nos miolos, logo no primeiro combate em que entre; e olhe que às vezes custava, pois ele sabia o que lhe ia suceder e fazia pena vê-lo.
A guerra é uma coisa danada. Por isso a gente era como o fogo sempre que passava em qualquer sítio; era triste passar às terras e ver as casas rebentadas e queimadas e a gente ainda as rebentava mais; e os velhos a andarem por ali a olhar para as coisas, e as crianças a andarem por ali a brincar no meio de tanta desgraça. Uns pediam tabaco e os outros pediam comer, e a gente perguntava onde havia raparigas e as raparigas apareciam à noite, tinham vergonha que a gente lhes visse a cara; depois a gente casava-se com elas ali mesmo no meio das casas rebentadas e queimadas, víamo-nos uns aos outros, e as crianças também viam a gente e riam-se daquilo tudo. O Paquito passara para a minha esquadra e em toda a parte as crianças gostavam dele, porque ele sabia fazê-las esquecer o que se passara. Imitava tudo: imitava burros e cavalos, e cães, e galinhas
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e galos, e imitava os chacais a chorar, e então todos olhavam para mim e começavam a rir, e eu também ria, porque eu era o chacal, matava e depois chorava, como eles diziam. E não era bem isso. Matava, pois então, eles mandavam e eu não queria morrer, na guerra mata-se para não morrer; mas depois ficava triste com pena do que fazia e queixava-me: para que era a guerra? Lembrava-me de que fora homem e já não o era. Só agora percebo isso melhor e o senhor é que tem a culpa, porque só agora percebo todos os crimes que fiz.
Agora por isso, um dia tive uma conversa com o Paquito, e ele começou por dizer o mesmo que daquela vez em que apanhámos o tabaco ao tenente: "A gente está aqui por causa da companhia dos tabacos. Sabes o que é a companhia dos tabacos? Pois são esses todos que mandam no dinheiro, são sempre os mesmos, quem diz tabaco diz automóveis, diz espingardas e metralhadoras. Eles precisam disto, precisam que a gente acredite que estamos aqui numa grande missão. Hoje matamos árabes, amanhã matamos espanhóis, depois matamos quem eles quiserem. Eles estão em Paris ou em Londres ou em Madrid e nós somos empregados deles, empregados baratos; as medalhas custam barato e a gente julga que somos importantes. Até arranjaram um nome bonito para a gente: heróis, é uma coisa catita, não achas?"
Eu não percebia bem o que ele queria dizer e ainda bem, porque duma vez o Paquito desapareceu e disseram que ele tinha querido desertar e um oficial se vira obrigado a dar-lhe um tiro. O pior é que a gente nunca o viu. Eu lembrei-me quando a gente caçava coelhos, é o mesmo que dizer quando caçávamos árabes. Dessa vez a coisa esteve
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feia, porque a nossa companhia ficou desconfiada e durante um tempo nunca mais ninguém se ofereceu como voluntário. Sempre que víamos crianças todos se lembravam logo do Paquito. Se ele aqui estivesse, dizia a gente. E alguns queriam imitá-lo, mas nessa altura nenhum soldado se ria. E os sargentos contavam aos oficiais e os oficiais andavam assim desconfiados, nada de andarem de noite pelos acampamentos e durante um tempo não falavam em combates. O que lhes valeu, e mais à gente, foi um ataque dos marroquinos, e então, com receio de se morrer, voltou tudo à mesma.
Onde se passava era um fogo, pior que um fogo, às vezes.
Digo pior que um fogo e não estou a dizer nada de mais. Uma noite saiu uma patrulha de filhos da noite, como a gente chamava aos voluntários que iam saber informações; era uma coisa brava a gente sair pela escuridão dentro, tudo cheio de olhos e de cabeças, cada barulho era a morte, parecia mesmo a morte, íamos seis homens em fila distanciados uns dos outros, e foi aí que eu peguei na espingarda-metralhadora, na minha Mariana, vossemecê já sabe porquê; a ordem era para nos escondermos quando viesse luar, nada de nos mostrarmos, que o inimigo estava por toda a parte, talvez mesmo dentro da gente, como me disse o Paquito. Ele também me disse essa palavra duma vez, já nem me lembrava, e eu achei que ele dizia uma coisa certa.
Pois os filhos da noite saíram, eu dessa vez não ia, e esperámos toda a manhã que eles voltassem, e esperámos toda a tarde, e veio outra noite e nada, nem um homem só para amostra. A gente pensou logo que os tinham rapado,
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agora deviam estar com a cabeça cortada para os chacais e os corvos terem ceia. Era a primeira vez que aquilo sucedia, lá ficava um ou outro, mas todos era a primeira vez. Então o comandante mandou formar e disse que precisava de cinquenta voluntários, era uma expedição de represália para vingar os nossos camaradas; quem quisesse era dar um passo em frente. E todos deram um passo em frente, a gente já se tinha esquecido do Paquito, e o comandante acenou a cabeça e ficou contente, bem se lhe via na cara.
Depois ele escolheu cinquenta homens e partiram de manhã; eu também fui, de manhã é que se começa o dia, era uma maneira que a gente tinha de dizer, e nem sinal deles. Então chegámos a uma aldeia, uma aldeia desgraçada numa terra seca, ao pé dum monte também seco, tudo ali era seco, até as pessoas. E senão oiça: a gente entrava nas casas, queria falar com eles e ninguém respondia. Pedíamos água e eles só diziam não há; queríamos comer e eles só diziam não há. E um velho disse: depois que vocês vieram fazer a guerra não há aqui outra coisa senão a desgraça.
E em todas as casas foi o mesmo, com todas as pessoas foi o mesmo, nem a miudagem se chegava ao pé da gente como sucedia noutros sítios e por mais que fizéssemos, nada, por mais que falássemos, nada. Era uma aldeia de mudos, seca como o deserto, onde só fui uma vez; eu acho que era ainda mais seca. Então o tenente que comandava agarrou numas mulheres, mandou-as meter no meio da tropa, dois soldados para uma mulher, e corremos assim a aldeia toda, e os sargentos diziam "se ninguém disser o que foi feito duma patrulha que passou aqui há dois dias, estas
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mulheres são mortas." A gente escolhia as mulheres porque às vezes elas ganhavam medo e acusavam-se umas às outras, diziam onde havia armas e homens escondidos. Mas ali nem isso.
Demos a volta à aldeia toda, chegámos a um largo, o sargento disse o mesmo, e nada, nem uma palavra, nada. A gente da aldeia ia calada ao pé das mulheres, e a gente começou a ganhar medo, eu percebia isso em todos os legionários; eles iam à nossa ilharga, calados, de cabeça levantada, alguns choravam mas iam sempre de cabeça levantada, e ouvia-se um barulho apagado dos pés deles na terra seca, e nada, mais nada. Então quando um cão uivou, a gente pôs-se todos em posição de combate, até o cão nos parecia a morte; eu nunca gostei de ouvir os cães a uivar e ainda hoje não posso, porque me lembro sempre desse dia.
O nosso sargento Pierre saiu à procura do cão de metralhadora encostada à barriga e daí a bocado ouvimos uma rajada inteira e nunca mais ouvimos uivar. Mas ninguém falava. Então o nosso tenente escolheu a casa maior da aldeia, mandou entrar lá para dentro, todos, ninguém ficou cá fora, também as crianças e os velhos, e ameaçou-os de deitar o fogo àquilo. Nem assim falaram; nem assim houve ninguém que chorasse alto. O nosso tenente estava de tola perdida, começou a gritar, agarrou um homem e sacudiu-o, bateu-lhe, disse-lhe para ele correr e o homem não correu. Ele deu-lhe um tiro, o homem caiu de cara no chão e falou em árabe, ninguém percebeu o que ele disse, nem mesmo os que sabiam falar árabe. Ficou uma poça de sangue no meio do largo e todos a olharmos uns para os outros - o que vamos fazer agora?
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Eu é que já não podia aguentar aquilo, porque entretanto um soldado endoideceu, começou a gritar contra a gente, a gritar, a gritar, e fez fogo e o nosso sargento Pierre caiu com um tiro no peito, acho eu que foi no peito, porque foi aí que ele deitou as mãos, como se quisesse segurar qualquer coisa que lhe queria fugir. E então desatámos todos aos tiros, às mulheres e aos velhos, e a miudagem fugiu, desatou a correr, e foi uma rasia como eu nunca vi. Mas ninguém se acusou, ninguém acusou qualquer homem da aldeia. O nosso tenente só disse "poupem as munições" e não demos mais tiros, não sei porquê, mas era melhor a gente poupar as munições, e então fizemos o resto do serviço à coronhada e com os sabres, e depois metemos uns tantos dentro da casa e deitámos-lhe o fogo. Ainda hoje não sou capaz de contar tudo o que fizemos.
Sim, eu disse que já não podia aguentar mais aquilo. Fui eu que atirei abaixo o soldado que endoideceu e fui eu que atirei primeiro contra os árabes. Mas eu gostava de o ver no meu lugar, sim, gostava de o ver metido entre aquele silêncio, numa aldeia seca ao pé dum monte, sem uma pessoa que dissesse qualquer coisa, ao menos malandros, ao menos bom dia, ao menos uma palavra. Sim, uma palavra.

CAPÍTULO VII
Eu vi uma mulher ...
Vi uma mulher e nunca mais me esqueço dela. Tinha uns olhos pretos, pretos e tristes, muito morena como são as mulheres árabes e um corpo de rapariga, era uma rapariga, podia ter quando muito dezoito anos. Havia um riacho nessa terra, tinha árvores nos lados, a gente entrara quase sem combate e recebemos ordem de fazer alto, descansar um dia ou dois, e aí vamos para o riacho lavar a roupa e tomar banho; a gente já não tinha água assim à nossa ordem não sei há quantos dias.
Armámos as tendas, a cozinha começou a trabalhar, vinha de lá um cheiro a comida quente que abrandava as tripas, estávamos fartos de conservas, e vá de reinar, aquilo tinha corrido bem; veja lá só tivemos de fuzilar uns seis homens. Estava tudo assim a gozar a vida e começámos a ouvir agora um tiro, daqui a bocado outro. A gente olhava e não via, começou tudo a olhar e não se sabia donde os tiros vinham; ora esta!, dizia a gente uns para os outros. O pior é que cada tiro era um soldado que caía, já tinham caído cinco e um deles estava morto. Nem se podia tomar
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banho, a gente naquele dia não queria mais guerra, o dia tinha corrido bem.
E vai daí o nosso sargento Rodriguez, o Calmas, como a gente lhe chamava, pediu três voluntários para ir à procura de quem dava os tiros e aí vão eles fazer o trabalho. Não demoraram muito também é verdade; daí a pouco eles vinham com uma rapariga, com a tal, nunca mais me esqueço, não era um uma árabe qualquer, tinha estudos, parece que estudara em Paris e viera para ali bater-se com a sua gente. Eu acho que os brancos é que eram a sua gente, não era uma mulher como as outras de Marrocos, e depois era bonita, com uns olhos negros e tristes, trazia um lenço vermelho na cabeça. E logo ali soubemos que era ela e outra que estavam aos tiros; a outra deitara-se duma janela abaixo e morrera, ela quisera fazer o mesmo e o sargento tinha-lhe deitado a mão.
Ela falava francês como um francês. E disse para o oficial que a tratassem como um homem, porque conhecia homens que não mereciam esse nome, e ela estava ali a bater-se pela sua terra. Queria que Marrocos fosse livre!
O oficial gostou daquela franqueza, são assim os homens da Legião, não gostam de cobardes, e apertou-lhe a mão, e mandou uma mensagem ao nosso comandante para que ele dissese o que lhe devia fazer. E ele mandou-a fuzilar, e a gente todos já gostava dela, era mesmo bonita, e quando o nosso oficial pediu voluntários, nem um soldado se ofereceu, nem um... Sim, nem mesmo o Chacal, o senhor agora disse bem.. A gente nem respirava, porque ela parecia que mandava na gente, como se fosse ela que nos tivesse agarrado e pudesse fuzilar todos os soldados.
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Vai daí o tenente escolheu quatro homens, um preto, um francês e dois galegos; eles tremiam, via-se mesmo que eles tremiam, e ela já estava ao pé dum muro. O oficial perguntou-lhe se ela queria venda nos olhos e ela disse "não, quero ver a minha terra enquanto estiver viva, quero ver a minha terra". Então o oficial deu a voz de carregar armas, e ela levantou a cabeça e gritou "vocês não matam Marrocos, Marrocos há-de ser livre!"; ouviu-se a primeira descarga, ela caiu e levantou-se logo, parecia que dava solavancos, e soluçava e chorava: depois calou tudo e gritou "viva a liberdade!".
O oficial foi ver se os soldados tinham descarregado as espingardas, mandou outra vez fazer fogo, ela voltou a cair, eu voltei os olhos, quase todos voltaram a cara, e a cara dela estava cheia de sangue, e a gente viu-a de pé, e fizeram outra descarga; ela não tinha ainda morrido, falava baixo, falava tão baixo que a gente já não a ouvia, mas todos sabiam o que estava a dizer.
O comandante veio com a fuzilaria e ralhou com o oficial por ele não lhe ter dado o tiro de misericórdia logo depois da primeira descarga, mas não deixou que lho desse depois; ele percebeu como os soldados estavam todos, eu acho que ele se mandasse a gente saltava-lhe em cima e não deixava.
O jantar era quente, mas quase ninguém lhe tocou; e ninguém foi para o riacho nem procurou por mulher naquela noite. Só o cigano cantou uma coisa triste, que nunca a gente lhe tinha ouvido. Eu, por muitos anos que viva, nunca mais posso esquecer essa mulher.
Porquê?!... Sim, ela era marroquina também, mas era uma mulher bonita. Quem é que não gosta duma mulher
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bonita? E depois era valente! Uma mulher valente e bonita... O senhor se lá estivesse compreendia bem o que lhe contei, embora eu veja na sua cara que não está a acreditar em mim. Que eu não tenha mais um dia de liberdade e que nunca mais veja a minha Nena! A guerra é uma coisa esquisita, pode ter a certeza.

CAPÍTULO VIIII
Não te esqueças !
Foi depois disto que o capitão Michelet reparou melhor em mim; a companhia deixara de brincar e de rir, a gente pensava na rapariga e nas nossas terras, e vai ele um dia passou a cavalo e disse que daí por meia hora, quando voltasse, queria que a gente estivesse a cantar ou à pancada uns com os outros. Assim é que não, os legionários não andam tristes, isso era contra a lei da Legião.
Eu fingi que não dei por ele, já me estava marimbando para mim e para a minha vida, e então ele chegou-se com o cavalo, um companheiro ainda disse "eh Chacal, olha o nosso capitão", e quando olhei já estava com uma verdascada na cara, que me fez um traço da orelha até à boca. Ainda se vê uma coisita, ora repare.
"Não me viste?"
"Non, mon capitaine!"
"Porque estás triste? Falta-te alguma coisa?..."
Eu sabia lá o que me faltava...
"Quando voltar quero-te à pancada, nem que seja aos tiros. Ouviste?"
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"Oui, mon capitaine!"
E deu-me para a bazófia e disse-lhe depois que não tinha vindo para a guerra para estar quieto, mas aquilo assim é que fazia mal à gente. E vai ele pergunta-me se queria ir para sua ordenança; ah, sim, tu és o Chacal, é verdade.
"Vais ter muito que fazer!", disse-me quando abalou; e eu senti-me pequeno ao pé dele, ganhei medo aos seus olhos azuis e fiz-lhe uma continência a preceito. Ele meteu o cavalo a galope, era um bonito cavalo pigarço, um bocadinho rijo de boca, e lá foi com uma nuvem de poeira até desaparecer.
Foi ele mesmo escolher comigo uma pistola-metralhadora, uma Mariana ainda melhor, uma ferramenta azadinha e de tiro rápido, que mal se sentia nas mãos. Ele era todo ancho e mandou-me arranjar farda nova para o meu corpo, aquilo era outra coisa, disse-me para andar sempre com as medalhas no peito e mesmo quando estivesse calor queria-me ver sempre com o capote, que é assim uma espécie de djellaba dos moiros. E como eu sabia andar a cavalo, mandava-me passear o pigarço, ainda me atirou ao chão uma vez o filho da mãe, e passei eu a ferrá-lo, tive de lhe pedir, porque ele não queria ver a sua ordenança armado em ferrador. Mas tanto sanfonei que ele disse: pois sim, Chacal, e depois mandou-me distribuir um cavalito baio para eu o acompanhar, quando ele ia à retaguarda.
Ele tinha uma amante na cidade, era uma bonita mulher, lá isso era, e às vezes eu passava dias inteiros à porta dela com os dois cavalos à minha mão, era uma coisa aborrecida e eles mandavam-me dar vinho e bom comer. A criada dela também não era nada de deitar fora e eu quando pude, foi a um domingo, também não a deitei fora, lá isso é verdade.
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Aquilo assim não era mau de todo, o perigo era pouco, gorjetas boas e passeios à cidade.
O meu trabalho era pouco e fazia-se depressa, sim, quero dizer o trabalho mais importante, porque o resto era ir dizer-lhe as pessoas que lhe queriam falar, conhecer os oficiais de que ele não gostava e pô-los logo com dono, não, o nosso capitão está agora ocupado, e tratar dos cavalos era coisa que eu não dava a nenhum soldado.
O meu trabalho era assim simples e fazia-se depressa, como já contei. bom, lá bonito não era, mas a gente estava na guerra...
Quase todos os dias havia prisioneiros que as nossas patrulhas agarravam e então em combate havia sempre mais, punham-nos ali à porta com sentinela à vista, eu passeava com a minha Maríana de um lado para o outro da porta, depois ele chamava-me e os prisioneiros iam entrando um de cada vez para ele os interrogar, às vezes ele falava alto, zangava-se muito, e eu punha-me a pensar cá comigo "aquele já está, está a fazer-se parvo e vai quinar".
Então ele tocava a campainha, eu abria a porta e batia-lhe a continência, percebia-lhe logo nos olhos azuis o que ele estava a pensar, e dava-me ordens: "manda-o para a prisão", ou dizia-me com voz pausada "não te esqueças". De princípio sentia um solavanco cá dentro quando ele me dizia aquilo, quase não comia e à noite custava-me a pegar no sono. Era uma coisa custosa, lá isso era, e por isso eu mexia-me na tarimba, tinha pesadelos e até falava de noite, contavam os outros.
bom, ele dizia-me "não te esqueças" com a tal voz, eu mandava o prisioneiro ir à minha frente, metia pelo campo, ia deitando o olho para um lado e para outro e, quando me
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parecia, sim, quando achava que o sítio era bom, gritava alto e lá ia uma fita azul. Pois é, tenho de lhe explicar. Eu chamava fita azul quando dava uma rajada grande; fita amarela assim mais pequena e fita verde ainda mais pequena. Era cá uma coisa minha; ninguém me ensinou. Então dava uma fita azul, o tipo caía para a frente, depois sacudia-se, outros ficavam quietos quase de seguida, e eu voltava a passo para a porta do gabinete do nosso capitão. Voltava mais pesado, danado de tristeza, mas tinha de sorrir quando abria a porta outra vez e ele já tinha acabado de interrogar o outro prisioneiro que entrara.
Às vezes ele dizia "manda lá esse diabo embora, não me tragam gente desta", sim, ele não gostava de perder tempo com prisioneiros sem importância, com árabes que não soubessem responder-lhe; ele era muito esperto, punha-os a falar e pela maneira como eles lhe respondiam ele percebia logo se eram camponeses ou dos outros, dos que já tinham estudado e eram os comandantes dos bandidos era assim que a gente chamava aos moiros que nos faziam a guerra.
A pouco e pouco fui-me habituando com o "não te esqueças", já fazia aquilo como quem fuma um cigarro. Vai à minha frente, só fazes alto quando eu disser, e eles lá iam a passo, alguns tremiam, tremiam que a roupa lhes dançava no corpo, e eu gritava para que eles não tremessem, assim custava-me mais, e se me perguntavam para onde iam eu dizia que ia passear com eles para tomarem ar. Depois acabava com uma fita amarela ou uma fita verde, porque com o hábito eu sabia poupar as munições, e só empregava a fita azul quando o prisioneiro era assim
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mais forte ou estava bem disposto e queria ouvir a minha Mariana cantar mais tempo.
bom, bonito não era, mas crime não era, não senhor. Vossemecê não esteve lá e por isso não sabe o que faz uma guerra; as guerras não deviam começar, mas quando começam está tudo perdido. O capitão Michelet mandava-me, isso era lá com ele. O senhor não está bom! Então eu podia dizer não faço isso?!... Não percebe que era eu quem ia passear? E depois uma guerra quando começa é uma guerra... E o que é uma guerra? Mata-se ou morre-se, e se matar não é bom, é melhor morrer? Eu acho que não, algumas vezes pensei que sim, pode acreditar, mas nunca disse a ninguém. E depois se não fosse eu, era outro. O lugar era bom, o trabalho, se não era limpo, era pouco, e um homem habitua-se. A gente não se habitua a estar aqui dentro? E o senhor sabe bem o que isto é... O homem habitua-se e eu também me habituei, e depois já fazia aquilo quase sem pensar, porque evitava olhar para os olhos deles. Olhar para os olhos deles é que era custoso. Então, para não parecer assim humilde, fixava os olhos no ombro, era quase sempre no esquerdo, dizia vai à minha frente e pronto. Já não era um árabe que ia ali. bom, um árabe é um homem, sim, tem o feitio de um homem. Mas eu acho que não é um homem como a gente. bom, isso são coisas lá suas, que eu não percebo.
O meu capitão Michelet ensinou-me assim, todos me disseram o mesmo, e era gente de excelência. Eu acredito neles, preciso de acreditar, porque senão devo pensar que sou um bandido e então nunca mais sossego.
Mas como ia dizendo, vai ouvir, desembaraçava-me depressa, acho que podiam ser os remorsos, também podia
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ser; lá por causa dos cigarros que o capitão me dava, não era, pode ter a certeza. Gostava de fumar dos cigarros dele, isso é verdade, mas não era para os fumar que eu fazia o trabalho depressa. Quando se acabava, ficava o serviço pronto e não pensava mais nisso. Algumas vezes, à noite, é que eram o elas... Então sonhava com os prisioneiros, eles às vezes gritavam e sacudiam-se e eu tinha de empregar a fita azul. Nessa altura zangava-me comigo por não ter feito o trabalho bem, eu devia saber calcular que fita era precisa para cada um, e ia dar-lhe com a ponta da alpargata na cabeça, não estivesse o prisioneiro a fingir e me abalasse, como duma vez sucedeu; vi-me num sarilho, se não é o capitão tinha ido a um conselho de guerra, e um conselho de guerra é o fim dum soldado. Arrancavam-me as divisas de cabo e lá ia eu fazer um passeio.
Não, aquilo não era nenhuma brincadeira, não julgue que não tinha responsabilidade. Tinha era as suas coisas boas. Gorjetas e cigarros, passeios à cidade e um cavalo. De tudo o melhor era o cavalo, vossemecê sabe bem como na nossa terra a gente gosta de cavalos. E o meu baio era uma estampa bonita.
Mas estive naquele trabalho uns meses bons, não sei quantos. Quantas vezes ele me disse "não te esqueças"? Isso não sei, de princípio ainda fui contando, fazia um risco no meu cantil, ainda cheguei a uns sessenta e depois parei, acho que não valia a pena. Todos me tinham respeito, sabe? Lá isso tinham; até os sargentos me tratavam bem e os oficiais falavam-me duma certa maneira, quase como amigos.
Um dia agarrámos um europeu que estava do lado deles, foi uma admiração, um europeu do lado dos árabes.
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O nosso comandante não o quis muito tempo vivo, eu ouvi ele dizer para o capitão que aquilo podia ser um mau exemplo, e logo naquela tarde, foi quase ao fim da tarde, o homem foi despachado. Antes quiseram que ele falasse, foi o bom e o bonito, mas ele só discutiu com o capitão Michelet, cantou-lhe das boas, e eu até achei graça ao que ele dizia. Então foi dar o passeio e embarcou com uma fita azul na cabeça. Alguns soldados foram ver e deram-me palmas, pareciam eles que estavam numa praça de toiros; eu por mim não acho graça nenhuma às toiradas por causa da morte dos cavalos.
Assim que eu acabei, foram-se a ele e despiram-no, e nem vossemecê sabe, só depois é que reparámos. Todo ele era uma tatuagem, todo ele estava marcado. Sempre há maduros! Calcule: nos dedos parecia que tinha anéis, no pulso esquerdo um relógio que marcava dez horas e vinte, calcule dez horas e vinte. Porquê?! Sim, porquê dez horas e vinte? Coisas lá da vida dele, se calhar. No braço direito uma mulher nua, no outro uma bandeira, na frente do peito, parecia mesmo, sabe?, parecia mesmo um colete de malha azul e vermelho, assim numa malha entrançada. Nas costas outra bandeira, uma bandeira da França, veja lá, num pé um pião e no outro uma estrela. E em cada dedo dos pés uma pintinha. Ficámos parvos com aquilo. E pegou a moda das tatuagens na nossa companhia. Foi nessa altura que me fizeram a que tenho nas costas. O malandro do Sevilhano não me gramava e eu não percebi.
Se naquela altura percebesse, ele saltava à frente da minha Mariana, dou-lhe a minha palavra d'honra. Agora é que já não há remédio, nunca mais posso tirar isto. Já
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comecei a pensar como hei-de esconder a caveira da minha Nena. Vai ser o diabo! Aquele malandro lixou-me! Lixou-me para o resto da vida.
Por muitos anos que viva nunca mais me posso esquecer da guerra, mesmo que a cabeça pudesse esquecê-la. Também de noite nunca mais fui capaz... Capaz de quê?! Ora do que havia de ser: de levar prisioneiros. Eu conto-lhe depressa, é uma coisa que eu não gosto de contar.
Fez-se o ataque a uma posição num monte, naqueles montes danados daquela terra maldita onde perdi tudo, e agarraram-se mais de cem prisioneiros, até mulheres. Eu disse logo ao nosso capitão, a lembrar-me da tal: o meu capitão Michelet desculpe, mas não me mande despachar nenhuma mulher. Ele respondeu-me: parece que não me conheces, eu nunca seria capaz de mandar matar uma mulher. Então eu agradeci-lhe e nunca pensei que o trabalho se fizesse naquela noite. Mas o capitão estava com a neura, eu já o conhecia, tinha noites em que não era capaz de dormir, e deu-lhe para ir separar os prisioneiros que lhe pareciam os chefes dos marroquinos. Escolheu alguns vinte e aí começa ele nos interrogatórios, e aí começa ele aos gritos porque o outro lhe respondeu que Marrocos era um país livre e a França se desdizia, ou lá o que era, se estava ali a ocupar o seu país e a fazer crimes para se manter.
O capitão perdeu a cabeça, foi-se ao outro à punhada e gritou para mim, nem tocou a campainha: Chacal, depressa! Ele chamava-me Chacal quando estava irritado ou então muito bem disposto. A voz é que era diferente, está claro. Gritou por mim e disse: não te esqueças, vê lá bem, não te esqueças.
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E como era de noite, e para não acordar a companhia com as rajadas, entregou-me a sua pistola e disse-me para o despachar com o tiro de gradas, para lhe acertar bem na nuca, que era fácil. E aí vou eu com o outro à minha frente, mando fazer alto e zás. Acertei-lhe bem, mas ele deu um salto no ar e caiu voltado para mim. Estava luar e eu vi-lhe a cara; vi-lhe a cara e vi-lhe os olhos, e ele falou. Tive de lhe dar outro e outro ainda. Só depois respirei fundo, só depois regressei, e vossemecê nem sabe como me custou a voltar; a noite só tinha olhos, as estrelas eram olhos, e não deitei a correr por vergonha. Quando cheguei o capitão já estava à porta com outro e disse-me outra vez "não te esqueças". E eu queria esquecer-me do primeiro e ainda estive para falar; ele percebeu que eu queria falar e abriu-me os olhos azuis. "Vai depressa, Chacal!" Ele tinha endoidecido naquela noite, com certeza. O segundo foi mais fácil, caiu à primeira e só disse ai, espojou-se um bocadinho no chão e ficou quieto.
Mas nessa noite foram mais dez, mais onze, digo. Treze ao todo, uma conta de azar, o capitão é que gostava do número treze, tinha um berloque com esse número. Alguns tropeçavam nos outros, ou cheirava-lhes, eu acho que a morte tem cheiro, e punham-se a gritar antes de eu mandar fazer alto, e eu enervava-me e a mão tremia-me, e não lhes dava bem na nuca e então é que era o diabo, porque eles voltavam-se para mim e chamavam-me nomes e amaldiçoavam-me. Não sei se foi o sete ou o oito, sétimo ou oitavo, como se diz, que chorou, foi o único que chorou depois do primeiro tiro; a esse estive quase a baixar-me e a pegar-lhe na cabeça, a dizer-lhe uma palavra qualquer, sim, porque aquele homem podia ter uma palavra minha
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antes de morrer. Era um velho e eu lembrei-me que ele podia ser o Mula Brava, só com esse me lembrei que os árabes podiam ser homens, ou que eram homens como a gente. Vi-o chorar, não me pediu nada, não, nenhum me pediu para o não matar; mas a Lua veio cair em cima da gente e eu reparei que ele chorava, e então dei-lhe um tiro mais e ele parecia ter engolido um ferro em brasa, porque andou por ali no chão que nem uma cobra, a torcer-se. E tive de lhe dar mais três tiros.
Quando voltei, eles vinham todos atrás de mim com o velho à frente e corriam, e eu corri dessa vez e cheguei à porta do meu capitão e sentei-me com as mãos agarradas à cabeça. Ele ouviu-me, abriu a porta com mais outro, e deu-me uma garrafa de aguardente, bebi-a quase toda, sim, quase de uma golada, e ele entregou-me mais carregadores, e eu disse-lhe ainda: quantos faltam, meu capitão? A gente podia deixar o resto para amanhã de dia, de dia é melhor, eu vejo-os melhor, ou então deixe-me levar a minha Mariana, que assim custa-me.
Ele sacudiu-me, chamou-me poltrão, e entregou-me a minha Mariana. E eu lá fui a passo, a noite queimava, a noite gritava, havia olhos por toda a parte, no chão, nas estrelas e em cima das árvores, e o pior de tudo é que eu tinha olhos, eu também tinha olhos e via aquilo tudo. Acabei os outros com fita azul, uma fita de raiva, e voltei bêbedo, quando ele disse: este é o último; dessa vez voltei de rastos, e vim sem uma bala, porque atirei uma rajada à Lua, pensei que podia apagá-la, era melhor que estivesse uma noite fechada.
A aguardente e a dor, eu tinha uma dor em cima do lado esquerdo, faziam-me ir de rastos e o meu capitão
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começou a chamar por mim, primeiro devagar, depois aos gritos; vieram as sentinelas, julgaram que eu lhe estava a fazer mal, e então foram-me encontrar caído, tinha a Marlana agarrada ao meu peito e o cabo Lapierre contou-me mais tarde: tu falavas, mas ninguém percebia o que estavas a dizer. No outro dia não apareci a ninguém. Estava cansado, parecia eu que também estava morto e quando vi o meu capitão disse-lhe logo: de noite, não, tenha paciência, de noite nunca mais. Só com a minha Mariana e aos quatro ou cinco de cada vez. De noite já me custa. De noite os mortos vêem-se melhor.
Deram-me cabo das noites; eu gostava tanto de passear de noite! E disso nunca mais me esqueço.

OS GRITOS SILENCIOSOS
A NOITE EM TODA A PARTE
Tudo o mais que ainda me disse foi devorado pela alucinação daquela noite de insónia do capitão Michelet. Fiquei perturbado, como se me custasse a admitir que o meu companheiro de prisão fosse o mesmo Menino Jesus dessa noite distante de Natal. Queria deduzir alguma coisa do que ouvira; parecia-me necessário relacionar factos e sublinhar pormenores, não sei se para me conhecer melhor também se somente para compreender como o homem se transforma, pouco a pouco, no cadinho da vida. Lembrei-me dum poema de Léon Moussinac. Não sou capaz de o reproduzir; sim, estou ainda com a mesma frase nos ouvidos: não te esqueças, não te esqueças.
Ocorreu-me agora o final do poema:
No tédio daquilo que oiço Vejo cheiro e respiro Para além de Paris e de Sodoma Para além do nada e do tudo Para além mesmo de mim próprio Eu creio
Eu creio no homem.
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Mas podia acreditar ainda no homem destruído que ia ser julgado naquela tarde?
Comecei a seguir-lhe os movimentos, a tentar compreender as suas reacções. E o embaraço prosseguia, pois toda a sua atenção se fixara na maneira como devia apresentar-se perante o tribunal. Ele dissera-me: sim, é importante, muito importante; os jurados devem perceber que sou uma pessoa acostumada a usar gravata.
E piscara-me o olho, como se tudo fosse um entremez para nos divertir.
Talvez por isso, ele comportava-se com o esmero de um actor, cuidando do seu guarda-roupa com as mil atenções de uma estreia. Vigiara logo de manhã os vincos das calças, escovara o casaco preto, irritando-se com uma pequena mancha na algibeira do lenço, e pusera-se depois a apreciar o efeito das duas gravatas sobre a camisa, como se de tal factor pudesse decidir-se a sua vida.
Optou por uma cinzenta com pintas azuis, foi lavar-se novamente, procurou que os cabelos curtos se domassem para os arrepiar, e começou a vestir-se com toda a pausa, prolongando cada gesto, como se estivesse a querer dividi-los para lhes aprofundar o sentido. Evitava enervar-se, pois queria impedir a repetição da cena desvairada que tivera com um judeu quando me acabara de contar o último episódio da guerra. Durante a noite devia ter compreendido a necessidade de se manter calmo.
O tribunal era um teatro, onde ele desempenharia um papel importante para os jurados e para o juiz. Ele estava pouco confiante, percebi-o nessa manhã, quando conversámos.
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Agora posso contar o que se passou. Já não é segredo.
Na segunda visita do capitão Michelet, ele falara no desejo de se apresentar a julgamento com a farda da Legião Estrangeira, pois entendia que ela e as suas quatro medalhas fariam uma impressão decisiva no júri. O engenheiro Michelet visitara-o duas vezes, embora se recusasse a servir-lhe de testemunha de defesa, a pretexto de que a direcção da fábrica poderia interpretar essa atitude como hostilidade. Garantia-lhe, porém, o depoimento doutros camaradas de combate, que dariam melhor apoio à sua defesa.
"E sabe o que o nosso capitão Michelet teve o descaramento de me dizer, quando lhe falei na farda? Que não a podia usar, porque praticara um crime. O senhor já percebeu isto? Então o que é um crime?..."
"Mataste um homem."
"Mas quantos matei eu, só naquela noite quando ele me dizia não te esqueças? Ou ele já não se lembrará disso?"
"Acho que não é o mesmo", disse para o ouvir. "Ali defendias qualquer coisa, estavas numa guerra..."
"E agora não defendi a minha honra?"
"Não é a mesma coisa, Cidro. Uma razão individual não tem a mesma força, a mesma justificação, duma razão colectiva. São eles que o dizem e tu tens de acreditar, porque também não recusaste as ordens que te deram. Foste tu que escolheste..."
"Eu não percebo o que o senhor quer dizer. Não, não posso perceber. O senhor parece que é amigo dos moiros e os moiros não são homens como os brancos".
"Os moiros defendiam a sua terra..."
"Então porque foi que me levaram? Não me ofereci. Se tivesse fugido, eles tinham-me fuzilado."
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"Talvez fosse melhor... Era melhor, com certeza." Nessa altura transtornou-se, não percebendo a intenção das minhas respostas. Acabou por me voltar costas, num ímpeto de quem evitava o pior, indo até junto dos seus amigos do mercado negro.
Pensei falar-lhe naquela manhã, antes de sair da cadeia, mas retive-me, embora o seu olhar já não guardasse hostilidade. Percebera, porém, que ele desejaria estar só. Começara a pôr a gravata escolhida, esmerando-se num nó impecável. Depois vestiu o casaco numa lentidão impressionante, pegou no chapéu preto, escovando-o com a manga, e foi passear para a sala, talvez ufano - percebia-lhe um sorriso nos lábios.
Mas quando a porta se abriu, foi como se uma corrente eléctrica lhe tivesse atravessado o corpo atarracado. Ficou lívido, numa posição hirta, e levantou a cabeça de maneira a não olhar para ninguém.
Quis repetir a mesma atitude quando regressou ao fim da tarde, mas os ombros não lho consentiram. Nem os ombros nem o olhar quase desfeito, embora a boca arremedasse um sorriso.
"Então?", perguntaram-lhe os que foram rodeá-lo.
Olhou à sua volta e respondeu com firmeza: "Prisão perpétua. Mas... mas eu não fico aqui muito tempo."
"Claro, mudas de prisão", disse-lhe alguém.
"Sim, mudo de prisão e depois saio. Talvez só umas semanas." E olhando para os judeus: "vou para guarda de um campo de prisioneiros. Um oficial disse-me que eu
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era preciso. Pôs-me assim a mão no ombro e disse: meu rapaz, nestes tempos os homens como tu não podem estar presos. Foste um grande soldado!"
Deixou-se ficar ainda a responder às perguntas que lhe faziam, procurando até gracejar. Mas assim que a conversa esmoreceu foi meter-se no quarto onde dormia.

O GRITO DO HOMEM
Vi-o despir o casaco num repelão, desfazer o nó da gravata e atirar tudo para um canto, como se o entremez tivesse acabado. Depois sentou-se, sacudindo a cabeça. Sentou-se, olhou para a sala, à procura do sítio em que me vira, e fez-me um sinal com a mão. Eu perguntei-lhe com o dedo se era comigo, e ele acenou-me.
Quando me aproximei, disse, sem me fitar, que me sentasse, que fizesse o favor de me sentar. Hesitei ainda. Pegou-me no braço e fiz-lhe a vontade. A sua cabeça descaíra, afagava as mãos e depois torcia-as - talvez recordasse aquela imagem de trazer ali a morte desde que matara o pombo no asilo.
"O que eu disse lá fora aos outros, é mentira. Os gajos lixaram-me, sabe?", disse num sussurro agressivo. "Lixaram-me bem. Ninguém apareceu, todos faltaram, dos tais que o capitão Michelet me prometera. Esse malandro podia, ao menos, ter aparecido à porta. Mas nada... Ninguém! Nunca mais me esqueço. Não, nunca mais. Gostava de poder voltar atrás e saber o que sei hoje. Quando ele me dissesse: não te esqueças..."
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Quis abrandar-lhe a dor de se sentir abandonado; ainda esbocei um gesto, mas o braço doeu-me. Ele não entendeu a minha hesitação. Respirou com força para esconder um suspiro e voltou-se para mim com ansiedade: "E agora? Sim, agora, que devo dizer à minha Nena?"
A pergunta transtornava-me. Percebi que tinha de lhe responder qualquer coisa; havia ali um homem destruído, mas ainda uns restos humanos no tom da voz ansiosa e profunda.
Comecei a falar com dificuldade, à procura das palavras, e os seus olhos desfeitos a pegarem-lhe ainda mal as articulava.
"Tu é que sabes, Cidro. Quem sabe melhor do que tu?"
Apetecia-me deixá-lo, fugir talvez, mas a sua angústia prendia-me.
"Ela é nova? Sim, a tua Nena?..."
"O senhor viu o retrato dela. Não se lembra? Tem vinte e quatro anos."
"Pois é, vinte e quatro anos, é uma criança. Por isso mesmo, Cidro, eu acho... sim..."
Os seus olhos arredondavam-se de ansiedade, como se quisessem adivinhar o que tinha para lhe dizer.
"Acho, por isso mesmo, que lhe deves contar. Deves dizer-lhe toda a verdade. Aqueles a quem amamos merecem a verdade. E se fores capaz... Sim, eu sei que tu és capaz. A valentia dum homem..."
Interrompeu-me numa voz desalentada: "Não, eu não sou valente. Agora já não sou. Nunca o fui."
"Sei que és e que podes", insisti para lhe dar força. "Deves aconselhá-la... a que procure refazer a sua vida."
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As minhas palavras martirizavam-no, bem o percebi. O seu rosto crispara-se mais e eu via as lágrimas correrem dentro dele.
Baixou a cabeça, acenou-a com lentidão, e disse-me depois num fio de voz: "Pois é, não posso fazer outra coisa. Agora é tarde pra fazer outra coisa..."
As suas mãos trémulas choravam. Estendi-lhe a minha sobre o ombro e ele prendeu-ma com violência, para logo a agarrar com ternura. E quando de novo ergueu os olhos interrogou-me num grito que não cabia dentro dele: "Mas como posso eu viver aqui dentro sem as cartas dela?"
(Que farão os outros a esta hora?, perguntei para mim. Em que estarão a pensar os que lhe abriram este caminho?)
E num impulso arranquei a minha mão da sua e saí do quarto. A cadeia enchera-se de frio. Aproximei-me das grades, mas a luz do dia parecia morta.
Na mão que ele prendera ficara um mundo de interrogações a que os homens têm de dar resposta. Não sou eu, sozinho, que lha posso dar.

 

 

                                                                  Alves Redol

 

 

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