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NADA SE PODIA deduzir da reconstituição, mesmo minuciosa, dos fatos, exceto que a descoberta feita pelos dois barqueiros de Dizy era, por assim dizer, impossível.
Naquele domingo - 4 de abril - a chuva começou a cair torrencialmente às três horas da tarde.
No porto, a montante da comporta 14, que marcava a junção entre o rio Marne e o canal, havia duas barcaças a motor descendo a correnteza, um barco descarregando e uma draga.
Pouco antes das sete, quando o crepúsculo começava a cair, uma barcaça-cisterna, a Eco Três, chegou e penetrou na comporta.
O vigia estava de mau humor, pois tinha parentes em casa, de visita. Abanou negativamente a cabeça para uma barcaça de cavalos que aparecera um minuto antes, movendo-se ao lento compasso dos dois animais que a puxavam.
Nem bem entrou em casa, o barqueiro, já conhecido seu, veio atrás dele.
- Posso atravessar? O capitão deseja estar em Juvigny amanhã à noite.
- Pode, se quiser. Mas você mesmo terá de fazer funcionar as portas.
A chuva caía pesadamente. Da janela, o vigia ficou olhando a figura atarracada do barqueiro mover-se de uma porta para outra da eclusa, comandando os cavalos, atando as amarras às abitas.
A barcaça subiu pouco a pouco até aparecer acima da parede. O capitão não estava no controle do leme; sua gorda mulher, que era natural de Bruxelas, tinha cabelo loiro alvíssimo e voz estridente.
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....
Às 19h20, a Providência ancorou em frente do Café de la Marine, atrás da Eco Três.
Os cavalos foram postos para dentro, e, juntos, o barqueiro e o capitão dirigiram-se ao café, onde já se achavam outros marujos e dois pilotos de Dizy.
Às oito horas, quando a escuridão era completa, surgiu diante dos portões um rebocador puxando quatro barcos.
Isso aumentou o número de clientes no Café de la Marine. Seis mesas estavam ocupadas, com gente conversando de uma para outra. Os homens que entravam iam deixando pequenas poças atrás de si, sacudiam a lama das botas.
Na sala contígua, iluminada por uma lâmpada de querosene, as mulheres faziam compras.
O ar era pesado. Falava-se de um acidente ocorrido na comporta 8 e do atraso que isso poderia causar para os barcos que subiam o rio.
Às nove horas, a mulher do dono da Providência entrou para apanhar o marido e o barqueiro, que foram embora com ela, depois de se despedirem de todos os outros.
Às dez horas, as luzes estavam apagadas na maior parte dos barcos. O vigia acompanhou seus parentes até a estrada de Épernay, que cruza o canal a uns dois quilômetros e meio da comporta.
Nada viu de extraordinário. Ao passar de volta pelo Café de la Marine, olhou distraidamente para dentro e foi chamado por um marujo:
- Venha tomar um trago! Você está molhado até os ossos!
Ele aceitou um copo de rum, que tomou de pé. Dois barqueiros levantaram-se, pesados de tanto vinho tinto, com os olhos brilhantes, e marcharam para o telheiro vizinho do café, para, como de hábito, dormir no feno junto dos seus cavalos.
Não estavam exatamente bêbados, mas tinham consumido o bastante para cair logo num sono pesado.
Havia cinco cavalos no estábulo iluminado apenas por um lampião de pavio bem baixo.
Às quatro da madrugada, um dos homens acordou o outro, e começaram a cuidar dos animais. Ouviram desembarcar os cavalos da Providência e ouviram também quando os animais foram encimados.
Ao mesmo tempo, o dono do café se levantava e acendia a lâmpada do seu quarto, no primeiro andar. Ele também ouviu quando a Providência se pôs em marcha.
Às quatro e meia, o motor a diesel da barcaça-cisterna foi ligado e começou a tossir, mas o barco só saiu senão quinze minutos mais tarde, depois que o capitão tomou um chocolate quente no café que acabava de abrir.
Ele mal tinha saído, e seu barco não chegara ainda à ponte, quando os dois barqueiros fizeram a descoberta.
Um deles puxava os cavalos para junto do cabo de reboque. O outro procurava ainda seu chicote no feno quando tocou em alguma coisa fria.
Assustado com o que lhe parecia, pelo tato, um rosto humano, foi em busca da lanterna e dirigiu a luz para o cadáver, que ia botar Dizy em polvorosa e transtornar toda a vida do canal.
O comissário Maigret, da Primeira Brigada Móvel, recapitulava esses fatos, procurando enxergá-los no seu contexto.
Era segunda-feira à noite. Pela manhã, o magistrado de Épernay havia feito sua visita regulamentar à cena do crime, e depois que os homens da polícia e os médicos-legistas completaram seu trabalho, o cadáver foi levado para o necrotério.
Chovia uma chuva fina, fria e constante, que já durava uma noite e um dia.
Silhuetas moviam-se em volta das portas da comporta, dentro da qual um barco se elevava imperceptivelmente.
Durante a hora passada no local, o comissário pensou exclusivamente em familiarizar-se com esse mundo novo que acabava de descobrir e a respeito do qual, ao chegar, tinha apenas vagas e equivocadas idéias.
O vigia tinha lhe dito:
- Não havia quase nada no canal: duas barcaças a motor descendo, uma outra subindo - passou a comporta depois do almoço -, uma draga e dois panamás... Por fim, veio a chaleira, com seus quatro barquinhos a reboque.
E Maigret aprendeu então que uma chaleira é um rebocador, e que um panamá é um barco que não tem motor nem leva animais a bordo, mas que contrata barqueiros e cavalos por percurso determinado.
Chegando em Dizy, não viu mais que um estreito canal, a três quilômetros de Épernay, e uma aldeia sem importância junto a uma ponte de pedra.
Teve de caminhar na lama ao longo da trilha de reboque até a comporta, que ficava por sua vez a dois quilômetros de Dizy.
E lá encontrou a casa de pedra cinzenta do vigia, com sua tabuleta em que se lia: Secretaria de Declaração.
Dirigiu-se depois ao Café de la Marine, unica outra construção do lugar.
À esquerda, o surrado salão do bar, com oleado marrom cobrindo as mesas e com paredes pintadas metade de castanho, metade de amarelo.
Havia, porém, um cheiro característico no ar, suficiente para distinguir o bar de um café comum do interior. Cheirava a estábulo, a arreios, a alcatrão, a secos e molhados, a gasolina e óleo diesel.
A porta da direita era munida de uma sineta, e havia anúncios transparentes colados nos vidros.
A sala estava cheia de mercadorias à venda: impermeáveis, tamancos, roupas de algodão, sacos de batatas, barris de azeite, caixotes de açúcar, ervilhas, feijão, tudo misturado com legumes frescos e cerâmicas.
Não havia um só freguês. No estábulo, o único cavalo remanescente era o que o dono encilhava para ir ao mercado, um grande animal cinzento, amistoso como um cachorro, que não ficava amarrado nunca e ocasionalmente passeava pelo quintal em meio às galinhas.
Tudo estava molhado da chuva. Era essa a nota dominante. E as pessoas que passavam eram figuras brilhantes, escuras, encolhidas, olhando para o chão.
Poucos metros adiante, um pequeno Decauville ia para a frente e para trás num canteiro de obras; seu condutor, no comando da locomotiva em miniatura, tinha instalado precariamente um guarda-chuva, embaixo do qual tremia, com os ombros encolhidos de frio.
Uma barcaça afastava-se lentamente da margem, em direção à comporta, de onde outra emergia.
Como chegara a mulher até lá? Por que teria vindo? Essas eram as perguntas que a polícia de Épernay se fazia, e que se faziam também, perplexos, os funcionários da Procuradoria Pública, os médicos, os peritos da polícia. E que Maigret virava e revirava na cabeça.
Foi estrangulada, só isso era certo. A morte ocorreu na noite de domingo, provavelmente às dez e meia.
E o corpo apareceu no estábulo pouco depois das quatro horas da manhã.
Não havia estrada nos arredores da comporta. Nada poderia atrair até lá alguém que não estivesse ligado à navegação. A trilha destinada ao reboque era estreita demais para um automóvel. E, naquela noite, qualquer pessoa que caminhasse por ela a pé teria de enfrentar muito barro e muita água.
Ora, a mulher pertencia obviamente a uma classe mais acostumada a viajar em limusines e vagões-leitos do que a pé.
Tinha no corpo só o vestido de seda cor creme e um par de sapatos brancos de camurça, mais apropriados para praia do que para aquela cidade.
O vestido estava amarrotado, mas não se encontrou nele uma única mancha de lama. Só a ponta do pé esquerdo do sapato estava ainda molhada quando o corpo foi achado.
- Entre trinta e oito e quarenta anos! - disse o médico, depois de examinar a mulher.
Seus brincos eram duas pérolas genuínas, e valiam perto de quinze mil francos. O bracelete, em ouro e platina, de gosto ultramoderno, era mais ornado do que caro, mas trazia a marca de um joalheiro da Praça Vendôme.
O cabelo era castanho e encaracolado, cortado muito rente na nuca e nas têmporas.
Quanto ao rosto, desfigurado pelo estrangulamento, era evidente que havia sido extraordinariamente belo.
Segundo as aparências, uma mulher atraente, cheia de vida.
As unhas, bem-cuidadas e esmaltadas, estavam sujas.
Não se achou bolsa alguma nas imediações do corpo. As polícias de Épernay, Reims e Paris, munidas de uma fotografia do cadáver, tentavam em vão identificar a vítima.
E a chuva continuava a cair sem trégua na paisagem comum. À direita e à esquerda, o horizonte era barrado por colinas de rocha calcária, listadas de branco e preto, em que as vinhas, nuas nessa época do ano, pareciam cruzes de madeira num cemitério militar.
O vigia, cuja única insígnia era um quepe debruado de prata, andava em círculos em torno da sua comporta, na qual a água jorrava cada vez que ele abria as eclusas.
E todo marinheiro, quer seu barco subisse ou descesse, tinha de ouvir dele a história.
Às vezes, os dois homens, tão logo estivessem cumpridas as formalidades, passavam pelo Café de la Marine para uma dose de rum ou uma garrafa de vinho branco.
O vigia jamais deixava de mostrar com o queixo o comissário Maigret que, com sua movimentação aparentemente sem rumo, dava impressão de perplexidade.
E era exato. Tratava-se de um caso invulgar. Sequer havia testemunhas a serem interrogadas.
Os funcionários da Procuradoria Pública, depois de ouvir o vigia e de chegar a um entendimento com o engenheiro local do governo, haviam decidido deixar que os barcos seguissem caminho.
Os dois barqueiros tinham sido os últimos a partir, por volta do
meio-dia, cada um comboiando um panamá.
Havia uma comporta a cada quatro ou cinco quilômetros. E como essas comportas ligavam-se umas às outras por telefone, era possível saber, a qualquer momento, onde determinado barco se encontrava, e detê-lo.
Além disso, um inspetor de polícia de Épernay tinha interrogado todo mundo, e Maigret dispunha do relatório desse interrogatório do qual, de resto, nada se podia deduzir, exceto que a realidade era inverossímil.
Todas as pessoas presentes no Café de la Marine no dia anterior eram conhecidas do proprietário ou do vigia; na maioria dos casos, de ambos.
Os barqueiros dormiam pelo menos uma vez por semana no mesmo estábulo, e sempre num estado que beirava a embriaguez total.
"O senhor compreende, tomamos um trago a cada comporta... Quase todos os vigias vendem vinho..."
A barcaça-cisterna, que chegara na tarde de domingo e partira
segunda-feira de manhã, transportava gasolina e pertencia a uma grande companhia do Havre.
Quanto à Providência, que pertencia ao seu próprio capitão, passava por ali umas vinte vezes por ano, sempre com os dois cavalos e o velho barqueiro. E o mesmo acontecia com todos os outros barcos!
Maigret estava de mau humor. Cem vezes tinha ido ao estábulo, outras tantas ao café e ao armazém!
Viram-no caminhar até a ponte de pedra, dando a impressão de que contava os próprios passos ou que procurava alguma coisa na lama. Com o rosto fechado e pingando água, viu passar uma dezena de barcos pela comporta.
As pessoas se perguntavam que teoria ele podia ter, mas na verdade não tinha nenhuma. Nem mesmo procurava encontrar uma pista no sentido literal da palavra. Queria embeber-se da atmosfera, familiarizar-se com a vida do canal, tão diversa de tudo aquilo que conhecia.
Já se tinha certificado de que poderia obter uma bicicleta se quisesse alcançar algum dos barcos. E o vigia lhe havia emprestado o Guia Oficial da Navegação Interior, no qual lugares obscuros, como Dizy, tinham inesperada importância por motivos topográficos, por serem entroncamento ou cruzamento, por estarem dotados de um porto,
de um guindaste, até de uma mera Secretaria de Declaração.
Tentou seguir, na imaginação, barcaças e seus barqueiros:
"Ay: Porto. Comporta 13."
"Mareuil-sur-Ay: estaleiro. Porto. Bacia de manobra."
"Comporta 12... Cota 74, 36..."
Depois: "Bisseuil, Tours-sur-Marne, Condé, Aigny..."
Para o fim do canal, além do platô de Langres, onde os barcos escalavam eclusa por eclusa e desciam na vertente oposta, ficavam as cidades de Saône, Chalon, Mâcon, Lyon...
- O que teria vindo fazer aqui essa mulher?
Num estábulo, com seus brincos de pérolas, sua elegante pulseira, seus sapatos de camurça branca...
Devia ter chegado viva, pois o crime foi cometido depois das dez da noite.
Mas como? E por quê? Ninguém ouviu nada. Ela não gritou. Os dois barqueiros não tinham acordado.
Se não fosse o chicote perdido de um deles, o corpo só teria sido descoberto quinze dias ou um mês depois, acidentalmente, por alguém que fosse remexer no feno.
E outros barqueiros também teriam vindo ressonar ao lado do corpo daquela mulher!
Apesar da chuva fria, havia alguma coisa de pesado e de implacável na atmosfera. E o ritmo da vida era excessivamente lento.
Pés metidos em botas e em tamancos arrastavam-se ao longo da trilha ou equilibravam-se em cima do muro da comporta. Cavalos ensopados esperavam pelo fim da operação para continuar viagem, retesando os pescoços num esforço progressivo e escorando-se nas patas traseiras.
O crepúsculo começava a cair, exatamente como na véspera. Já as barcas que subiam o canal ancoravam para passar a noite, em vez de prosseguir
caminho. E os marujos entorpecidos dirigiam-se em grupos para o café.
Maigret foi ver o quarto que acabavam de lhe preparar, junto ao do dono do estabelecimento. Ficou ali uns dez minutos, trocou os sapatos, limpou o cachimbo.
No momento em que descia, um iate, dirigido por um marinheiro metido numa capa impermeável, acostou com cuidado, deu ré, depois deteve-se macio entre duas abitas.
O marinheiro executou todas essas manobras sozinho. Dois homens saíram da cabine pouco depois, lançaram um olhar meio espantado em torno, mas acabaram dirigindo-se para o café.
Eles também envergavam impermeáveis. Mas quando os tiraram, lá dentro, viu-se que estavam de calças de flanela branca e camisa esporte.
Os olhares dos marinheiros não causaram aos dois recém-chegados qualquer embaraço. Pareciam perfeitamente à vontade naquele ambiente.
Um deles era alto, forte, de cabelos grisalhos e pele cor de tijolo. Tinha olhos verde-mar, muito saltados, e um olhar que passava sobre as pessoas e as coisas como se não as visse.
Recostou-se na cadeira de assento de palha, puxou uma segunda cadeira para acomodar os pés, e estalou os dedos para chamar o proprietário.
Seu companheiro, que devia ter uns 25 anos, falava-lhe em inglês, com a indiferença típica das pessoas esnobes.
Foi ele quem perguntou em francês, sem o mais leve sotaque
- O senhor tem champanhe?
-Sim.
- Uma garrafa então.
Ambos fumavam cigarros turcos, com boquilhas de papelão.
A conversação dos marujos, interrompida por um momento, reanimou-se gradualmente.
O proprietário trouxe o vinho, e pouco depois entrava o marinheiro que pilotava o iate, também de calças brancas, com uma camisa de marujo em malha listada de azul e branco.
- Aqui, Vladimir...
O mais alto dos dois homens bocejou, numa demonstração de imenso tédio. Depois enxugou o copo, com uma careta que demonstrava que ele não estava totalmente satisfeito.
- Outra garrafa - disse em voz baixa ao jovem. E o outro repetiu a ordem em alto e bom som, como se estivesse acostumado a transmitir comandos dessa maneira.
- Outra garrafa! Do mesmo!
Maigret saiu do canto onde estivera abancado diante de uma garrafa de cerveja.
- Com licença, meus senhores... Posso fazer uma pergunta?
O homem mais velho apontou o outro com um gesto que queria dizer: "Fale com ele".
Não mostrava surpresa nem interesse. O marinheiro serviu-se de vinho e cortou a ponta de um charuto.
- Vieram pelo Marne?
- Sim, naturalmente.
- Estiveram ancorados longe daqui a noite passada?
O mais gordo voltou a cabeça e disse em inglês:
- Diga que não é da conta dele.
Maigret fingiu não ter entendido e, sem mais, tirou do bolso a fotografia do cadáver e depositou-a em cima da toalha da mesa.
Das suas mesas e do bar, os outros marinheiros acompanhavam a cena com os olhos.
O homem do iate moveu a cabeça de modo quase imperceptível para ver o retrato. Depois examinou Maigret e disse com um suspiro:
- Polícia?
Tinha um forte sotaque inglês e um grande cansaço na voz.
- Sim. Houve um crime aqui na noite passada. Até agora não conseguimos identificar a vítima.
- Onde está ela? - perguntou o outro, levantando-se e mostrando a fotografia.
- No necrotério em Épernay. O senhor a conhece? A expressão do inglês era inescrutável. Mas Maigret percebeu que o pescoço dele, grosso, cheio de veias, ficara cor de púrpura.
Apanhou o quepe branco, botou-o na cabeça calva e, voltando-se para o companheiro, resmungou em inglês:
- Mais complicações!
Depois, insensível ao interesse mostrado agora abertamente pelos demais marujos presentes, deu uma baforada e declarou:
- C'est mon femme!
- É minha mulher!
O tamborilar da chuva nas vidraças e até os estalidos da maquinaria da comporta puderam ser ouvidos de repente com maior nitidez. Um silêncio absoluto durou alguns segundos, como se a vida tivesse ficado suspensa.
- Você paga, Willy...
O inglês jogou a capa impermeável nos ombros, sem enfiar os braços nas mangas, e rosnou para Maigret:
- Venha a bordo...
O marinheiro a quem chamara Vladimir acabou primeiro a garrafa de champanhe e depois saiu como tinha vindo, acompanhado por Willy.
A primeira coisa que o comissário viu, ao entrar no iate, foi uma mulher de peignoir, pés descalços, cabeleira em desordem, cochilando num sofá de veludo vermelho.
O inglês tocou-lhe no ombro e, com a mesma calma de antes, numa voz destituída de cortesia, disse:
- Vá para fora.
E esperou, contemplando a mesa de armar em que havia uma garrafa de uísque e meia dúzia de copos usados, bem como um cinzeiro transbordante de restos de cigarros.
Acabou por servir-se automaticamente de um drinque, empurrando a garrafa para Maigret com um gesto que significava: "Se quiser um também..."
Uma barcaça passou à altura das vigias; seu barqueiro deteve os cavalos umas cinquenta jardas adiante, e os sininhos podiam ser ouvidos claramente.
CAPÍTULO Segundo
O Cruzeiro do Sul
MAIGRET ERA quase tão alto e encorpado quanto o inglês. No Quai des Orfévres, sua placidez era lendária. No entanto, dessa vez,
exasperava-o a calma do interlocutor.
E essa calma parecia ser a ordem do dia a bordo. Desde o marinheiro Vladimir até a mulher que acabara de ser arrancada do sono, todos mostravam o mesmo aspecto indiferente e apático. Eram como gente tirada da cama pela manhã depois de uma tremenda bebedeira.
Um detalhe entre muitos: enquanto se levantava e procurava um maço de cigarros, ela pousou os olhos na fotografia, que o inglês pusera em cima da mesa e que ficara molhada no curso da breve caminhada do Café de la Marine até o iate.
- Mary? - perguntou, com um mínimo sobressalto de surpresa.
- Mary, yes!
E foi tudo. Ela saiu por uma porta que abria para a frente do barco e que talvez levasse ao banheiro.
Willy chegava à coberta e debruçava-se na escotilha. A sala era pequena. As divisões, de mogno envernizado, extremamente finas. Qualquer pessoa à proa podia ouvir tudo, pois o dono do barco olhou naquela direção primeiro e, em seguida, na direção do jovem, dizendo com uma ponta de impaciência:
- Vamos! Entre!
E para Maigret, bruscamente, apresentando-se:
- Sou Sir Walter Lampson, coronel reformado do Exército da índia!
Acompanhou essa apresentação com uma pequena mesura formal e um gesto na direção do banco.
- E esse cavalheiro? - perguntou Maigret, virando-se para Willy.
- Um amigo... Willy Marco...
- Espanhol?
O coronel deu de ombros. Maigret olhava firme os traços manifestamente judaicos do rapaz.
- Grego por parte de pai. Húngaro por parte de mãe...
- Preciso lhe fazer algumas perguntas, Sir Lampson...
Willy se empoleirou no espaldar de uma cadeira, com aparente desinteresse, e balançava o corpo para a frente e para trás, fumando um cigarro.
- Estou ao seu dispor.
Quando, porém, Maigret ia começar, o iatista disse, num francês hesitante:
- Quem a matou? O senhor sabe?
- Não temos nenhuma idéia por enquanto.Justamente por isso o senhor ajudará consideravelmente as minhas investigações, esclarecendo certos pontos.
- Corda? - perguntou o inglês, tocando o pescoço com a mão.
- Não. O assassino usou apenas as mãos. Quando foi a última vez que viu Mrs. Lampson?
- Willy...
Willy era inegavelmente o faz-tudo, de quem se esperava todos os tipos de coisa, desde encomendar bebidas até responder perguntas feitas ao coronel.
- Em Meaux, na noite de quinta-feira - disse.
- E o senhor não comunicou à polícia o desaparecimento dela?
- Por quê? Ela era livre para fazer o que quisesse.
- Costumava desaparecer dessa maneira?
- Às vezes.
A chuva crepitava no convés acima deles. O crepúsculo cedia lugar à noite, e Willy Marco acendeu a luz elétrica.
- As baterias estão carregadas? - perguntou o coronel, em inglês. - Espero que não aconteça como no outro dia.
Maigret tinha de fazer esforço para manter nos trilhos o seu interrogatório. Constantemente perdia-se, solicitado por novas impressões.Quase sem querer, olhava para todas as coisas e pensava em tudo ao mesmo tempo, de maneira que em sua cabeça fervia uma série de idéias aflitivamente desformes.
Não estava propriamente indignado, mas desconcertado por esse homem que, no Café de la Marine, havia lançado um olhar de relance à fotografia e declarado, sem um
tremor na voz:
"C'est mon femme".
Lembrava-se de que a desconhecida de peignoir perguntara:
- Mary?
E agora Willy balançava-se para frente e para trás, com um cigarro entre os lábios, enquanto o coronel se preocupava com baterias!
Na atmosfera neutra do seu escritório, o comissário sem dúvida teria conduzido um interrogatório organizado. Ali, começou por tirar o paletó sem que lhe dissessem que podia fazê-lo e por apanhar da mesa a fotografia, sinistra como todas as fotos de cadáver.
- O senhor vive na França?
- França e Inglaterra... Às vezes, Itália... Sempre com meu barco, o Cruzeiro do Sul.
- De onde veio agora?
- De Paris - respondeu Willy, a quem o coronel ordenara, de cabeça, que respondesse. - Ficamos lá quinze dias, depois de um mês em Londres.
- Ficaram no barco?
- Não! O barco ficou em Auteuil. Hospedamo-nos no Hotel Raspail, em Montparnasse...
- O coronel, a esposa, a senhora que vi há pouco e o senhor?
- Sim. A senhora é a viúva de um deputado chileno, Madame Negretti.
Sir Lampson teve um suspiro de impaciência e falou de novo, em inglês:
- Apresse-se ou esse homem ainda estará aqui amanhã de manhã...
Maigret nem pestanejou. Mas, a partir desse momento, havia uma ponta de brutalidade nas suas perguntas.
- Madame Negretti é parente sua senhor? - perguntou a Willy.
- Não.
- Não tem qualquer parentesco com o senhor ou com o coronel... Poderia me dizer como estão distribuídos os camarotes?
- Para o lado da proa, há o alojamento da tripulação, onde Vladimir dorme. Ele foi guarda-marinha na marinha russa. Serviu na frota de Wrangel...
- Não há outros marinheiros? Camareiros?
- Vladimir faz tudo.
- E depois?
- Entre o alojamento da tripulação e este salão, ficam, à direita, a cozinha e, à esquerda, o banheiro.
- E na popa?
- O motor.
- Então os quatro ocupavam esta cabine?
- Há quatro beliches... Primeiro, os dois bancos que o senhor pode ver, que se convertem em divãs... Em seguida...
Willy foi até uma das divisórias e abriu uma espécie de gaveta comprida, revelando uma cama completa.
- Há uma de cada lado, entende?
Maigret começava de fato a entender as coisas um pouco mais claramente e percebia que em breve descobriria os segredos daquela singular coabitação.
Os olhos do coronel estavam úmidos e velados como os de um bêbado. Parecia ter perdido todo interesse na conversa.
- O que aconteceu em Meaux? E, antes de tudo, o que foram fazer lá?
- Quarta-feira de noite... Meaux fica a um dia de viagem de Paris. Tínhamos apanhado duas amigas de Montparnasse...
- Continue.
- Fazia uma noite esplêndida. Levamos o toca-disco para fora e dançamos sobre a ponte... Por volta das quatro da manhã, acompanhei nossas amigas até o hotel local, e elas provavelmente apanharam o trem de volta para Paris no dia seguinte.
- Onde estava fundeado o Cruzeiro do Sul?
- Junto à eclusa.
- Aconteceu alguma coisa especial na quinta-feira?
- Nós nos levantamos muito tarde, depois de sermos continuamente acordados por um guindaste que carregava pedras numa chata perto de nós. O coronel e eu tomamos um aperitivo na cidade... À tarde... Espere um minuto... O coronel fez a sesta... Eu joguei xadrez com Glória... Glória é Madame Negretti...
- No convés?
- Sim. Quanto a Mary, acho que deu um passeio...
- E não voltou mais
- Perdão! Ela jantou a bordo... O coronel sugeriu que saíssemos à noite para dançar, e Mary não quis ir conosco... Quando voltamos, pelas três da manhã, ela não estava mais aqui.
- Não procuraram saber por onde andava? Sir Lampson batia com as pontas dos dedos no tampo lustroso da mesa.
- O coronel já disse ao senhor que a mulher dele era livre para ir e vir... Esperamos por ela até sábado, depois seguimos viagem... Ela conhecia a rota c sabia onde poderia nos encontrar.
- Estavam a caminho do Mediterrâneo?
- Da ilha de Porquerolles, frente a Hyères, onde passamos a maior parte do ano... O coronel comprou um velho forte lá, o Petit Langoustier...
- Todo mundo permaneceu a bordo o dia inteiro na sexta-feira?
Willy hesitou, depois respondeu com uma certa vivacidade:
- Eu fui a Paris...
- Fazer o quê?
Ele riu um riso desagradável que lhe torcia a boca de modo peculiar.
- Já mencionei nossas duas amigas de Montparnasse... Queria vê-las de novo... Uma delas pelo menos...
- Pode me dar os nomes delas?
- Seus prenomes... Suzy e Lia... Estão no La Coupole toda noite. Moram no hotel da esquina da rua de la Grande Chaumière...
- Profissionais?
- Uns amores...
A porta se abriu. Mme. Negretti, vestida de seda verde, apareceu à soleira.
- Posso entrar?
O coronel respondeu com um meneio de ombros. Devia estar no seu terceiro uísque e preparava-os com muito pouca água.
- Willy... pergunte sobre as formalidades...
Maigret não precisava de tradução para entender. Essa absurda maneira de lhe fazerem perguntas indiretamente começava a enervá-lo.
- Naturalmente, e antes de qualquer outra coisa, o senhor terá de identificar o cadáver... Depois da autópsia poderá obter a guia de sepultamento. É só escolher o cemitério e...
- Podemos ir logo? Há uma garagem onde eu possa alugar um automóvel?
- Em Épernay.
- Willy... Telefone, pedindo um carro... Agora mesmo...
- O Café de la Marine tem telefone - disse Maigret, enquanto o rapaz, mal-humorado, vestia sua capa de chuva.
- Onde está Vladimir?
- Ouvi ele chegando há pouco.
- Diga a ele que vamos jantar em Épernay... Madame Negretti, que era uma senhora gorda, com cabelos negros e pele muito pálida, sentou-se a um canto, debaixo do barómetro, e acompanhava a cena com o queixo apoiado na mão e uma expressão que tanto podia ser de alheamento quanto de concentração.
- Virá conosco? - perguntou-lhe Sir Lampson.
- Não sei... Está chovendo ainda?
Os nervos de Maigret estavam no limite, e a última pergunta do coronel não contribuiu em nada para acalmá-lo.
- Quantos dias o senhor pensa que vai levar... tudo?
O comissário respondeu com aspereza:
- Funeral inclusive, quer dizer?
- Yes... Três dias?
- Se os médicos-legistas expedirem a licença para o sepultamento e se o magistrado não se opuser a que ele se faça, dentro de 24 horas...
Teria o outro percebido a amarga ironia dessas palavras?
Maigret, de seu lado, sentiu necessidade de olhar de novo a fotografia: um corpo quebrado, sujo, contorcido; um rosto que foi belo, que teve batom nos lábios e
ruge
nas faces, e cujo esgar não podia ser visto agora sem que um calafrio descesse pela espinha!
- O senhor aceita um drinque?
- Não, obrigado.
- Bem, então...
Sir Walter Lampson ergueu-se para deixar claro que considerava a conversa encerrada, e chamou:
- Vladimir! Um terno...
- Eu teria, sem dúvida, outras perguntas a fazer-lhe - disse o comissário. - Pode ser que me veja obrigado a revistar o barco...
- Amanhã. Épernay primeiro, não é? Quanto tempo leva de carro?
-Você vai me deixar sozinha? - perguntou Madame Negretti ansiosamente.
- Com Vladimir... Pode vir conosco, se desejar...
- Não estou pronta.
Nesse momento, Willy entrou e tirou o impermeável ensopado.
- O automóvel estará aqui dentro de dez minutos.
- Então, comissário, se me permite... O coronel mostrava a porta.
- Temos de nos vestir...
Maigret teria preferido dar um murro na cara de qualquer um deles ao sair, tão exasperado estava. Ouviu trancarem a escotilha às suas costas.
De fora, nada era visível, salvo a luz das oito vigias e a lanterna branca pendurada no mastro. A menos de dez metros, recortava-se em silhueta a popa quadrada de uma barcaça; e, à esquerda, no cais, uma grande pilha de carvão.
Talvez não passasse de ilusão, mas Maigret teve a impressão de que a chuva redobrava de intensidade, que o céu estava mais baixo e mais sombrio do que nunca.
Foi direto ao Café de la Marine, e todas as vozes se calaram à sua chegada. Os marinheiros, no entanto, estavam todos lá. Faziam círculo em torno do fogão de ferro fundido. O vigia da comporta debruçava-se sobre o balcão, ao lado da filha do proprietário, uma ruiva alta, apoiada sobre seus tamancos.
Em cima das toalhas, nas mesas, havia garrafas de vinho, copos, manchas de água...
- Então, é mesmo a mulher do homem? - perguntou o proprietário, por fim, reunindo toda a sua ousadia.
- Sim. Sirva-me uma cerveja. Não... algo quente... Um grogue!
Aos poucos, os marujos começaram a falar outra vez. A moça trouxe a bebida fervente, roçando o ombro de Maigret com o avental.
E o comissário deixou-se ficar pensando nos três se vestindo naquela cabine acanhada e com Vladimir, ainda por cima.
Imaginava muitas outras coisas, mas vagamente e não sem repugnância.
Conhecia a comporta de Meaux, muito importante porque, como a de Dizy, constituía uma junção entre o Marne e o canal, e tinha além disso um porto em forma de meia lua, sempre atulhado de barcaças apertadas umas contra as outras.
Lá, em meio a todos os outros barcos, estivera o Cruzeiro do Sul todo iluminado, com as duas mulheres de Montparnasse, a gorda Glória Negretti, a sra. Lampson, Willy e o coronel a dançar no convés com música de toca-disco e a beber...
Num canto do Café de la Marine, dois homens de macacões azuis comiam salsichas, que iam cortando aos poucos com seus canivetes, como cortavam também o pão, e bebiam vinho tinto.
Alguém descrevia um acidente ocorrido de manhã na "abóbada", isto é, no lugar onde o canal, a fim de franquear a parte mais elevada do platô de Langres, enfia-se num túnel de cinco milhas de extensão.
Um barqueiro teve o pé apanhado pela corda dos cavalos. Gritou sem conseguir se fazer ouvir. E quando os animais, depois de um descanso, puseram-se de novo em marcha,ele foi jogado na água.
Não havia luz no túnel. A barcaça levava só uma lanterna, que lançava apenas um clarão indistinto. O irmão do acidentado - o barco chamava-se Os Dois Irmãos - pulou no canal para salvá-lo.
Até aquela hora, só um tinha sido pescado e já morto. Procuravam ainda pelo outro...
- Só tinham mais duas prestações a pagar pelo barco. Mas parece que, pelo contrato, as viúvas não ficam obrigadas a pagar o restante...
Um motorista de táxi, de boné de couro, meteu a cabeça por entre a porta, procurando alguém com os olhos.
- Fui eu - disse Maigret.
- Tive de deixá-lo na ponte. Tenho medo de cair no canal...
- O senhor vai comer aqui? - perguntou o proprietário ao comissário.
- Não sei ainda.
Maigret saiu com o motorista. Pintado de branco, o Cruzeiro do Sul era como que uma mancha leitosa na chuva. Dois garotos de uma barcaça próxima, indiferentes ao temporal, contemplavam o barco com admiração.
- Joseph! - chamou uma voz de mulher. - Traga seu irmão de volta! Vocês merecem uma boa surra!
- "Southern Cross" - leu o homem do táxi. - São ingleses?
Maigret atravessou a passarela até a barcaça e bateu. Willy, que estava pronto, muito bem num terno escuro, abriu a porta, por onde se pôde entrever o coronel, afogueado e ainda em mangas de camisa, estendendo o pescoço para Glória Negretti, que lhe atava o nó da gravata.
O camarote cheirava a água-de-colônia e a brilhantina.
- O carro chegou? - perguntou Willy. - Está aí fora?
- Está na ponte, a dois quilômetros. Maigret não entrou. Ouviu que o coronel e o rapaz discutiam em inglês. Por fim, Willy saiu e disse:
- Ele não quer caminhar pelo lamaçal... Vladimir vai arriar o bote. Nós o encontraremos no local...
- Hum! - resmungou o motorista, que ouviu o que o inglês disse.
Quinze minutos depois, ele e Maigret andavam de um lado para outro na ponte de pedra, ao lado do automóvel, cujos faróis tinham deixado acesos.
Só meia hora mais tarde, ouviram o som de um pequeno motor. E, afinal, a voz de Willy:
- É aqui? Comissário!
- É aqui sim!
O barco a motor fez um círculo e aproximou-se da margem. Vladimir ajudou o coronel a desembarcar e combinou com ele a hora da volta.
No automóvel, Sir Lampson não disse uma só palavra. Apesar do seu tamanho avantajado, era homem de extrema elegância. Com uma bela cor, bem cuidado e fleugmático, era o típico gentleman inglês das gravuras do século dezenove.
Willy Marco fumava um cigarro atrás do outro.
- Que calhambeque! - disse, com um suspiro, quando o carro deu um baque numa vala.
Maigret notou que ele usava um anel largo e chato de platina, com um grande diamante amarelo.
Quando chegaram à cidade, com suas ruas brilhando de chuva, o motorista ergueu o vidro e perguntou:
- Qual o endereço?
- O necrotério! - respondeu o comissário.
Não levou muito tempo. O coronel mal abriu os lábios. Havia apenas um funcionário no local, e três corpos jaziam estendidos nas lajes.
Todas as portas já estavam fechadas a chave. As fechaduras rangeram, e foi preciso acender uma luz.
Foi Maigret quem levantou o lençol.
- Yes.
Willy parecia mais perturbado, mais impaciente para escapar ao espetáculo.
- O senhor a reconhece também?
- É ela sem dúvida nenhuma. Como está...
Não terminou o que ia dizer. Ficava a cada momento mais pálido. Se o comissário não o levasse para fora, teria vomitado.
- O senhor sabe quem fez isso? - perguntou o coronel.
Talvez fosse possível notar um quase imperceptível tremor na sua voz. Mas não seria o efeito de numerosas doses de uísque?
Assim mesmo, Maigret tomou nota mentalmente da mínima demonstração de fraqueza.
Despediram-se na rua que um poste mal iluminava, junto do automóvel de cujo volante o proprietário não se afastara.
- O senhor janta conosco? - perguntou Sir Lampson sem sequer voltar-se para Maigret.
- Não, obrigado. Tenho de tomar algumas providências enquanto estou aqui.
O coronel inclinou-se sem insistir.
- Venha, Willy.
Maigret ficou ainda por um momento à porta do necrotério, enquanto o rapaz, depois de trocar algumas palavras com o inglês, debruçou-se para falar ao motorista.
Queria saber qual era o melhor restaurante da cidade. As pessoas passavam, e havia bondes barulhentos, feéricamente iluminados.
A poucos quilômetros, ficava o canal, e, ao longo de todo o seu curso, junto das comportas, barcaças adormecidas que só se movimentariam de novo às quatro da madrugada, em meio ao odor de estábulo e café quente.
CAPÍTULO Terceiro
O COLAR DE MARY
DEPOIS DE IR PARA A CAMA, no quarto cujo cheiro característico dava-lhe náusea, Maigret gastou algum tempo comparando duas imagens.
Em Épernay, primeiro, através das janelas bem iluminadas do Bécasse, o melhor restaurante da cidade, o coronel e Willy jantando, rodeados por "maîtres" de muita categoria.
A visita ao necrotério tinha ocorrido há menos de meia hora. Sir Walter Lampson mantinha-se um tanto duro na cadeira, e a impassibilidade do seu rosto cor de tijolo, coroado por uns raros cabelos prateados, era prodigiosa.
Ao lado da sua elegância, ou mais exatamente da sua classe, a de Willy, embora desenvolta, parecia apenas uma sombra.
Maigret jantou em outro lugar, após telefonar primeiro para a chefatura e depois para a polícia de Meaux.
Então, sozinho em meio à noite chuvosa, caminhou ao longo da rua. Em frente ao Café de la Marine, viu as vigias acesas do Cruzeiro do Sul.
E foi curioso o suficiente para apresentar-se a bordo, sob o pretexto de haver esquecido um cachimbo.
E foi aí que ele colheu segunda imagem: na cabine apainelada de mogno, ainda vestindo a camisa de malha de marinheiro, e com o indefectível cigarro na boca, Vladimir estava sentado em frente a Madame Negretti, cujo oleoso cabelo pendia novamente sobre os dois lados do rosto.
Jogavam cartas, um jogo da Europa Central conhecido por sessenta e seis.
Houve um breve instante de surpresa. Mas nenhum susto. Ambos prenderam a respiração, mas só por um momento. Em seguida, Vladimir deixou o seu lugar para ir procurar o cachimbo. Glória Negretti perguntou, com um murmúrio:
- Eles ainda não estão de volta? Era realmente Mary?
O comissário esteve a ponto de montar na bicicleta e seguir o canal até encontrar todas as barcaças que tinham passado a noite de domingo para segunda em Dizy.
A visão do caminho inundado e do céu negro o dissuadiu.
Quando bateram à porta, percebeu, antes mesmo de abrir os olhos, que a janela do quarto deixava penetrar no quarto a luz cinzenta da madrugada.
Tivera um sono agitado, cheio do tropel de cavalos, de gritos indistintos, passos na escada, barulho de copos e, finalmente, do perfume de rum quente e de café que lhe chegavam do andar térreo.
- Quem é?
- Lucas. Posso entrar?
E o Inspetor Lucas, que quase sempre trabalhava com Maigret, empurrou a porta e apertou a mão suada que seu chefe lhe estendeu por entre as cobertas.
- Já conseguiu alguma coisa? E não está muito cansado, meu velho?
- Não, não me sinto nada cansado. Logo depois de receber o seu telefonema, fui ao hotel em questão, na esquina da rua de la Grande Chaumière. As moças não estavam em casa. Mas, pelo menos, consegui alguns nomes. Suzanne Verdier, conhecida como Suzy, nascida em Honfleur em 1906... Lia Lowenstein, nascida no Grão-Ducado de Luxemburgo
em 1903... A primeira chegou a Paris há quatro anos como empregada doméstica, depois trabalhou por algum tempo como modelo... A Lowenstein morou a maior parte do tempo na Cote d'Azur... Nenhuma das duas, tive o cuidado de verificar, figura nas listas da delegacia de costumes... Mas bem que poderiam figurar.
- Escute, meu velho, se importaria de passar-me o cachimbo e de pedir café?
Era possível ouvir a água batendo na comporta e um motor diesel que se movia devagar. Maigret levantou-se e, indo até o precário lavabo de bacia e jarro, derramou um pouco de água fria nas mãos.
- Continue...
- Fui ao La Coupole, como o senhor mandou... Elas não estavam lá, mas todos os garçons as conhecem. Mandaram-me ao Dingo, depois ao La Cigogne. Finalmente, num barzinho americano cujo nome esqueci, na rua Vavin, dei com elas, solitárias e não muito alegres... Lia não é garota que se despreze,longe disso... Tem até um pouco de estilo... Suzy é dessas louras inofensivas que dão excelentes mulheres e mães quando ficam quietas na província... Tem sardas por toda a cara e...
- Está vendo uma toalha de rosto em algum lugar? - interrompeu Maigret, com o rosto escorrendo água e os olhos fechados. - Ainda está chovendo?
- Não estava quando cheguei, mas vai começar de novo a qualquer momento. Às seis, esta manhã, havia uma cerração tão fria que gelava o ar nos pulmões da gente...
Bem, ofereci uma bebida às garotas... Elas imediatamente pediram sanduíches, o que não me surpreendeu, para dizer a verdade. Mas, depois de algum tempo, notei o colar de pérolas que a Lowenstein tinha no pescoço... Mordi uma delas, como que por brincadeira... São absolutamente genuínas... Não é um colar de uma milionária americana, mas mesmo assim uma peça de uns cem mil francos. Bem, quando moças dessa espécie preferem chocolate e sanduíches a bebida...
Maigret, que fumava seu primeiro cachimbo do dia, foi abrir a porta para a empregada que trazia o café. Olhou depois pela janela e para o iate onde ainda não se viam sinais de vida. Uma barcaça passava naquele momento pelo Cruzeiro do Sul. O marinheiro que estava no timão olhava com invejosa admiração para o iate.
- Muito bem... Continue...
- Levei-as a outro lugar, a um café discreto. Lá, de repente,
mostrei-lhes meu distintivo, então apontei para o colar, afinal era uma possibilidade remota,e disse: "Essas são as pérolas de Mary Lampson, não?" As duas, provavelmente, não sabiam que ela está morta. Em todo caso, se sabiam, representaram seu papel admiravelmente.
Demoraram algum tempo para se abrir. Foi Suzy quem, por fim, disse à companheira: "Seria melhor contar a ele a verdade, já que já sabe tanto...". E a outra replicou:
"E é uma história e tanto. O senhor quer uma mãozinha, chefe?"
Maigret fazia, de fato, esforços vãos para agarrar os suspensórios que lhe caíam pernas abaixo.
- Primeiro o ponto principal: ambas juraram que foi a própria Mary Lampson quem lhes deu as pérolas na última sexta-feira, em Paris, onde fora visitá-las. O senhor talvez entenda isso melhor do que eu, que não sei nada do caso, exceto o que me contou no telefone...
"Perguntei se Mary Lampson estava acompanhada por Willy Marco. Elas disseram que não, e sustentam que não viram Willy a não ser na quinta-feira, quando o deixaram em Meaux..."
- Espere aí! - interrompeu Maigret, atando a gravata em frente a um espelho acinzentado que lhe deformava a imagem. - Na quarta-feira, à noite, o Cruzeiro do Sul chega a Meaux... Nossas duas meninas estão a bordo... Divertem-se naquela noite com o coronel, Willy, Mary Lampson e a tal Negretti... Tarde da noite, Suzy e Lia são levadas para um hotel e voltam para Paris de trem na quinta-feira de manhã... Deram algum dinheiro a elas?"
- Quinhentos francos, ao que me disseram.
- Elas conheceram o coronel em Paris?
- Alguns dias antes...
- E o que se passou a bordo do iate? Lucas esboçou um sorriso significativo.
- Brincadeiras não muito inocentes... Parece que o inglês vive exclusivamente para o uísque e para as mulheres... Madame Negretti é amante dele.
- E a mulher sabia?
- Oh, sim. Ela era amante de Willy... Não que isso os impedisse de carregar Suzies e Lias para cima e para baixo com eles... Entende? E além disso tudo, Vladimir dançava com umas e outras... Naquela madrugada, houve uma discussão. Lia Lowenstein teria dito que quinhentos francos eram uma esmola. O coronel sequer dignou-se
a responder, mandou que Willy se entendesse com as duas. Todo mundo estava embriagado. A Negretti dormiu no teto, e Vladimir teve de carregá-la para a cabine...
De pé, junto à janela, Maigret deixava que seu olhar seguisse a linha sinuosa do canal; podia ver, à esquerda, o pequeno trem ainda carregando terra e entulho.
O céu estava cinzento e havia farrapos de nuvens negras, mas não chovia.
- Vamos...
- É tudo, ou quase... Na sexta, Mary Lampson teria ido a Paris, onde encontrou as duas criaturas no La Coupole e onde lhes deu o colar...
- Ora, ora! Um pequeno presente de nada...
- Não! Entregou-lhes o colar para que o vendessem e lhe dessem metade do que pudessem apurar com o negócio. Disse-lhes que o marido jamais lhe dava dinheiro algum...
O papel de parede do quarto tinha flores amarelas. O jarro esmaltado punha nesse fundo uma nota pálida.
Maigret viu o vigia da comporta chegar apressado em companhia de um barqueiro e de seu carreteiro para tomarem um trago no bar.
- Foi tudo o que consegui das mulheres - disse Lucas. - Despedi-me delas às duas da madrugada, recomendando ao Inspetor Dufour que ficasse de olho nelas. Fui então à chefatura para examinar o arquivo, de acordo com as instruções que o senhor me deu. Achei a ficha de Willy Marco, que foi expulso de Mônaco quatro anos atrás em conseqüência de um caso de jogo meio obscuro, e detido em Nice no ano seguinte depois que uma senhora americana queixou-se de ter sido aliviada por ele de algumas
jóias. Mas a queixa foi retirada, não sei por quê, e Marco foi posto em liberdade. O senhor acha que foi ele que...
- Não acho nada. E juro que estou sendo sincero. Não se esqueça de que o crime foi cometido no domingo, depois das dez da noite, quando o Cruzeiro do Sul estava ancorado em La Ferté-sous-Jouarre.
- O que o senhor acha do coronel?
Maigret deu de ombros e apontou para Vladimir, que acabava de pular para fora do barco, pela escotilha da proa, e dirigia-se para o Café de la Marine, de calças brancas, sapatos de lona, suéter e um gorro de marinheiro americano caído sobre um olho.
- Alguém quer falar com o sr. Maigret no telefone! - gritou a moça de cabelo vermelho por trás da porta.
- Desça comigo, meu velho.
O telefone ficava no corredor, junto à chapeleira.
- Alô... É Meaux? O que foi que disse? Sim, a Providência... Ficou o dia todo em Meaux, recebendo carga? Saiu na sexta-feira, às três da manhã... Alguma outra? A Eco Três... Trata-se de uma barcaça-cisterna, não é verdade?... Sexta-feira à noite em Meaux... saiu no sábado pela manhã... Obrigado, comissário... Sim, faça as perguntas que desejar... Estou sempre no mesmo endereço!
Lucas ouviu toda essa conversa sem entender nada. Antes que Maigret tivesse tempo de abrir a boca para explicar, um mensageiro da polícia apareceu à porta.
- Mensagem urgente da Chefatura de Polícia! O rapaz estava coberto de lama até a cintura.
- Vá secar-se e beba um grogue quente à minha saúde...
Maigret saiu com o inspetor para o caminho da sirga, abriu o envelope e leu à meia-voz:
Sumário das primeiras análises feitas sobre o caso de Dizy: traços de resina no cabelo da vítima, bem como pêlos de cavalo baio... O estômago, no momento em que a morte ocorreu, continha algum vinho tinto e conserva de carne da espécie conhecida no mercado como corned beef.
- Oito em cada dez cavalos são baios! - suspirou Maigret.
Vladimir, no café, perguntava sobre o lugar mais próximo onde pudesse fazer compras, e três pessoas procuravam ajudá-lo ao mesmo tempo, inclusive o mensageiro da polícia de Épernay, que por fim saiu com o marinheiro em direção à ponte de pedra.
Maigret, seguido por Lucas, foi ao estábulo onde havia, desde a noite anterior, além do cavalo cinzento do proprietário, uma égua de joelho quebrado que tinham falado em sacrificar.
- Ela não pode ter pegado resina aqui... - observou o comissário.
Fez duas vezes o caminho do canal ao estábulo, dando volta pelos edifícios.
- O senhor vende resina? - perguntou, ao ver o proprietário que empurrava um barril de batatas.
- Bem, não é, de fato, resina... Chamamos isso de alcatrão da Noruega. Serve para impermeabilizar os barcos de madeira acima da linha de flutuação. Abaixo dela, empregam alcatrão de hulha, que é vinte vezes mais barato.
- O senhor tem algum em estoque?
- Há sempre uma dúzia de tonéis na loja, mas não vendemos nenhum num tempo desses. Os barqueiros esperam pelo sol para retocar seus cascos.
- A Eco Três é uma barca de madeira?
- Não. De ferro, como a maior parte das barcaças a motor.
- E a Providência?.
- De madeira... O senhor já descobriu alguma coisa?
Maigret não respondeu.
- Sabe o que estão dizendo? - continuou o homem, abandonando seu barril.
- Quem está dizendo?
- A gente aqui do canal, os barqueiros, timoneiros, vigias de comportas. Estão dizendo que um automóvel teria a maior dificuldade em seguir a trilha da comporta.
Mas, e uma motocicleta? Uma motocicleta vai longe, sem deixar maior rastro que uma bicicleta.
A porta da cabine do Cruzeiro do Sul abriu-se, mas ninguém apareceu de imediato.
Por um momento, um ponto no céu fez-se amarelo, e pareceu que o sol iria, afinal, sair. Maigret e Lucas caminhavam de um lado para o outro na margem do canal.
Não se passaram mais de cinco minutos, e o vento fazia vergar de novo os caniços; um minuto depois, a chuva caía copiosa.
Maigret estendeu a mão num gesto automático. Num gesto também automático, Lucas tirou do bolso e passou-lhe um pacote de fumo cinzento.
Detiveram-se por um momento em frente à eclusa, que estava deserta, mas que se preparava para funcionar, pois um rebocador invisível apitara três vezes ao longe, o que significava que levava três chatas a reboque.
- Onde o senhor acha que está a Providência a essa hora? - perguntou Maigret ao vigia.
- Deixe-me ver... Mareuil... Condé... Perto de Aigny, há uma dúzia de barcaças em fila e isso deve atrasá-los... Na eclusa de Vraux, só duas portas estão funcionando... Eu diria que a Providência está em
Saint-Martin.
- É longe?
- Uns 32 quilômetros.
- E a Eco três?
- Deve estar em La Chaussée... Mas um freguês que descia o canal contou-me ontem à noite que ela quebrou a hélice na comporta 12. De modo que o senhor a encontrará em Tours-sur-Marne, a quinze quilômetros daqui. A culpa é deles próprios! O regulamento proíbe levar duzentas e oitenta toneladas, mas eles insistem em desobedecer...
Eram dez horas da manhã. Quando Maigret montou na bicicleta que tinha alugado, avistou o coronel, sentado numa cadeira de balanço no convés do iate. Abria os jornais de Paris, que o carteiro acabava de entregar.
- Nada de especial - disse a Lucas. - Fique por aí... E não os perca de vista...
A chuva amainara um pouco e era fina. A estrada estava em boas condições. Na terceira eclusa, o sol surgiu, ainda pálido, e fazia luzirem as gotas d'água nos caniços.
De tempos em tempos, Maigret tinha de descer da bicicleta para passar cavalos de barcas, os quais, atrelados juntos, ocupavam toda a largura da trilha, movendo uma perna depois da outra, num esforço que punha cada músculo em relevo.
Dois cavalos eram conduzidos por uma menina de vestido vermelho. Teria entre oito e dez anos de idade e levava uma boneca.
As aldeias, na maior parte, ficavam a certa distância do canal. O resultado era que a linha de água parada do canal, de regularidade perfeita, parecia se estender até o horizonte em absoluta solidão.
Um campo lavrado, aqui e ali, com homens debruçados sobre a terra escura. Mas quase sempre florestas. Os juncos imóveis de um metro e meio a dois metros de altura aumentavam a impressão geral de serenidade.
Numa nuvem de pó, uma barcaça recebia um carregamento de cal nas proximidades de uma caieira, e tanto seu casco como os homens que nela trabalhavam estavam inteiramente brancos.
Na eclusa de Saint-Martin, havia uma barca, mas ainda não era a Providência.
- Devem estar jantando acima de Châlons - disse a mulher do vigia, que ia e vinha entre as diversas portas, com duas crianças penduradas à saia.
Maigret era teimoso por natureza. Surpreendeu-se, por volta das onze horas, ao ver-se num cenário primaveril, numa atmosfera vibrante de sol e calor.
À sua frente, o canal se estendia em linha reta por seis quilômetros ou mais, por entre florestas de pinheiros.
Ao fim, era possível perceber, embora com dificuldade, as paredes claras de uma eclusa, cujas portas deixavam escapar filetes de água.
A meio caminho, uma barcaça estacionara um pouco atravessada. Seus dois cavalos, desatrelados, comiam bufando, com as cabeças metidas em sacos de aveia.
A primeira impressão que se tinha era alegre ou, pelo menos,repousante! Não havia uma só casa à vista. E os reflexos de luz no espelho d'água eram amplos e moviam-se lentamente.
Mais algumas pedaladas e, à popa da barca, o comissário divisou uma mesa posta sob o toldo protetor da barra do leme. A toalha era de xadrez azul e branco. Uma mulher de cabelos claros acabava de pôr no centro da mesa uma travessa fumegante.
Maigret desceu da bicicleta, depois de ler na quilha arqueada, patinada e brilhante: Providência. Um dos cavalos olhou-o fixamente, abanou as orelhas e soltou um grunhido estranho, antes de recomeçar a comer.
Ligando a barca e o barranco, havia apenas uma prancha estreita e fina, que se curvou ao peso de Maigret. Dois homens comiam e limitaram-se a segui-lo com os olhos.
A mulher, porém, foi ao seu encontro.
- O que deseja? - perguntou, abotoando a blusa entreaberta no colo opulento.
Tinha um sotaque quase tão musical quanto o do sul da França. Não estava de modo algum perturbada. Esperava, apenas. Parecia proteger os dois homens, com sua corpulência e sua jovialidade
- Uma informação - disse o comissário. - A senhora sabe, provavelmente, que houve um crime em Dizy...
- Os homens da Castor et Pollux, que passaram por aqui hoje de manhã, nos contaram. Mas é verdade? Parece quase impossível, o senhor não acha? Como poderia alguém fazer isso? E no canal ainda por cima, onde todo mundo é tão tranqüilo!
Tinha manchas vermelhas na cara. Os dois homens comiam em silêncio, mas sem tirar os olhos de Maigret. Este, automaticamente, lançou um olhar ao prato de carne escura,cujo perfume lhe atiçava as narinas.
- É um cabrito, que comprei hoje cedo na eclusa de Aigny... O senhor desejava alguma informação? Mas nós saímos antes que o corpo fosse encontrado! E, por falar nisso, já conseguiram saber quem é a pobre senhora?
Um dos homens era baixo e moreno, com um bigode caído e alguma coisa de doce e gentil no aspecto.
Era o marido. Contentara-se em saudar vagamente o intruso, deixando que a mulher falasse por ele.
O outro homem andava talvez pelos sessenta anos. Seu cabelo, extremamente duro e mal aparado, era branco. Tinha uma barba de três a quatro centímetros no queixo e na maior parte da face. Com as sobrancelhas espessas, parecia tão peludo quanto um animal.Em contraste, os olhos eram claros, inexpressivos.
- É ao seu barqueiro que eu quero fazer algumas perguntas.
A mulher riu.
- Jean? É melhor eu avisar o senhor: não é homem de muita conversa. Um verdadeiro bicho do mato! Veja só como come! Mas não há melhor barqueiro por essas bandas!
O garfo do velho se imobilizou, suspenso no ar. Ele olhava para Maigret com pupilas de uma limpidez desconcertante.
Certos camponeses têm essa espécie de olhar; o mesmo acontece com alguns animais acostumados ao carinho quando, de repente, são tratados com rudeza.
Uma ponta de perturbação. Mas também outra coisa inexprimível, uma espécie de recolhimento sobre si mesmo.
- A que horas você se levantou para cuidar dos seus cavalos?
- À hora de sempre...
Tinha ombros de uma largura surpreendente, levando-se em conta suas pernas curtas.
- Jean acorda toda madrugada às duas e meia! interveio a mulher. - Pode ver os nossos animais! São tratados diariamente como cavalos de raça. E, à noite, o senhor não conseguirá que ele tome nem mesmo um gole de vinho branco antes de escová-los.
- Você dorme no estábulo?
O ar de Jean era de incompreensão. Foi de novo a mulher quem mostrou com o dedo uma construção mais alta no meio do barco.
- Aquilo é o estábulo - disse ela. - Ele dorme sempre ali. Quanto a nós, temos nossa cabine atrás... Quer vê-la?
O convés era de uma limpeza meticulosa, os cobres ainda mais polidos que a bordo do Cruzeiro do Sul. E quando a mulher abriu uma porta, encimada por uma escotilha com vidros de cor, Maigret vislumbrou uma saleta das mais comoventes.
Tinha os mesmos móveis estilo Henrique Terceiro em carvalho do mais tradicional interior pequeno-burguês. Na mesa, coberta por uma toalha bordada com linhas de seda de cores variadas, havia fotografias emolduradas, vasos e uma jardineira transbordante de plantas naturais.
Havia outros centros de mesa bordados em cima de um aparador. As poltronas eram protegidas por panos de filó.
- Se Jean quisesse, poderíamos ter-lhe arranjado uma cama junto de nós... Mas ele diz que só consegue dormir no estábulo... A gente até tem medo que um dia leve um bom par de coices... Não adianta ele dizer que os animais o conhecem, não é mesmo? Quando estão dormindo...
Ela tinha começado a comer, como a típica dona-de-casa, que prepara pratos bonitos para os outros e reserva os piores pedaços para si mesma sem sequer se dar conta.
Jean se levantou e olhava ora os seus cavalos ora o comissário, enquanto o capitão enrolava um cigarro.
- E você não viu nem ouviu nada? - perguntou Maigret, encarando o barqueiro.
Este último voltou-se para a mulher do capitão, a qual, de boca cheia, respondeu:
- O senhor pode ter certeza de que, se ele tivesse visto alguma coisa, teria dito.
- A barca Maria vem chegando! - anunciou o marido, preocupado.
Sentia-se, desde algum tempo, as trepidações do motor. Via-se agora, por trás da Providência, a silhueta de uma barcaça.
Jean olhou a mulher que, hesitante, olhou Maigret.
- Escute - disse por fim -, se tem de falar com Jean, não poderia falar em trânsito?... A Maria, apesar do motor que tem, anda mais devagar do que nós... Se ela entrar antes que nós na eclusa, barra o nosso caminho por dois dias...
Jean não esperou pelas últimas frases. Removeu os bornais de aveia da cabeça dos cavalos, que levou cem metros à frente da barcaça.
O capitão empunhou uma corneta de estanho e tirou dela uns poucos sons vacilantes.
- O senhor fica a bordo? Entenda: nós lhe diremos tudo o que sabemos... Todo mundo nos conhece nesses canais, desde Liège até Lyon.
- Eu os encontrarei na eclusa - disse Maigret, cuja bicicleta tinha ficado em terra.
A passarela foi retirada. Uma silhueta acabava de aparecer nas portas da eclusa, e abriram-se as adufas. Os cavalos puseram-se em marcha, num tropel de guizos, balançando os pompons vermelhos que usavam no alto da cabeça. Jean caminhava ao lado deles, vagaroso, indiferente.
E a barcaça a motor, duzentos metros à retaguarda, diminuía a velocidade, compreendendo que chegaria tarde demais.
Maigret seguiu a pé, segurando o guidão da bicicleta com uma mão. Podia ver a mulher, que acabava de comer apressadamente, e o marido dela, miúdo, magro, fraco, quase debruçado sobre a barra de um leme pesado demais para ele.
CAPITULO quarto
O AMANTE
- JÁ ALMOCEI! - disse Maigret ao entrar no Café de la Marine, onde Lucas estava instalado perto de uma janela.
- Em Aigny? - perguntou o proprietário. - O albergue é do meu cunhado...
- Sirva-nos cerveja.
Era como que de propósito. Logo que o comissário, pedalando sua bicicleta, chegou a Dizy, o tempo ficou nublado. E agora gotas de chuva cortavam o último raio de sol.
O Cruzeiro do Sul continuava no mesmo lugar. Não se via ninguém no convés. Não vinha também qualquer ruído da eclusa, se bem que, pela primeira vez, Maigret tivesse a impressão de estar no interior: galinhas cacarejavam no quintal.
- Nada? - perguntou ao inspetor.
- O marinheiro voltou com mantimentos. A mulher apareceu um instante, de peignoir azul. O coronel e Willy vieram tomar um aperitivo. Tenho a impressão que me olharam meio atravessado.
Maigret pegou o fumo que seu colega lhe dava e encheu o cachimbo, esperando que o patrão, que os estava servindo, se afastasse.
- Nada de minha parte também! - resmungou então. - Dos dois barcos que podem ter trazido Mary Lampson, um está em pane a quinze quilômetros daqui, e o outro se arrasta, literalmente, ao longo do canal, a três quilômetros por hora...
"O primeiro é de ferro. Então, é impossível que o cadáver tenha se sujado de resina ali...
"O segundo é de madeira... Seus donos se chamam Canelle... Uma matrona gorda, que quis por toda força que eu tomasse um copo de um rum medonho, e um marido insignificante, que corre em volta dela como um cachorrinho. "Sobra o barqueiro deles... "Ou ele se faz de tolo, e então é um ator prodigioso, ou não passa de uma besta. Há oito anos que está com eles... Se o marido é um cachorrinho, esse Jean é um buldogue...
"Levanta-se às duas e meia da manhã, cuida dos cavalos, engole uma tigela de café e começa a andar ao lado dos animais...
"Faz assim seus trinta ou quarenta quilômetros todo dia, com o mesmo passo, tomando um copo de vinho branco a cada eclusa...
"À noite, escova os cavalos, janta sem dar um pio, depois desaba no seu monte de feno, a maior parte das vezes sem tirar a roupa...
"Vi os documentos dele: uma velha carteira de reservista, cujas páginas mal se podem virar, de tão sujas. O nome é Jean Liberge, nascido em Lille em 1869.
"E é tudo. Quer dizer, não... Temos que admitir que, se a Providência recebeu Mary Lampson a bordo quinta-feira à noite, em Meaux, ela estava viva... E vivia ainda ao chegar aqui, domingo à noite...
"É fisicamente impossível manter escondido um ser humano contra sua vontade durante dois dias no estábulo de uma barcaça...
"De modo que os três seriam culpados..."
E a careta de Maigret queria dizer que ele não acreditava em nada disso.
- Quanto a supor que a vítima tenha embarcado de livre e espontânea vontade... Sabe o que você vai fazer, meu velho? Perguntar a Sir Lampson o nome de solteira de sua mulher... Pendure-se ao telefone e obtenha o que puder a respeito dela...
Havia ainda alguns raios de sol remanescentes em dois ou três lugares do céu, mas a chuva caía mais e mais pesada. Lucas acabava de sair do Café de la Marine, dirigindo-se para o iate, e Willy desembarcava, em roupas de ir à cidade, calmo, indiferente, o olhar perdido...
Este era decididamente um traço comum a todo o grupo do Cruzeiro do Sul: o aspecto de gente que não dormiu o bastante ou que digere mal bebedeiras exageradas.
Os dois homens se cruzaram no atalho destinado à sirga. Willy pareceu hesitar à vista do inspetor que subia a bordo, depois, acendendo um cigarro naquele que acabava de fumar, foi direto ao café.
Era Maigret que ele procurava, e não fazia segredo disso.
Não tirou o chapéu de feltro, em cuja aba tocou de modo casual com o dedo, murmurando:
- Bom dia, comissário. Dormiu bem? Gostaria de dizer-lhe duas palavras.
- Estou ouvindo.
- Mas não aqui, se for possível. Não poderíamos subir ao seu quarto, por exemplo?
Nada perdera da sua desenvoltura. Os olhos pequenos brilhavam com uma expressão que não estava longe de ser irônica ou cheia de malícia.
- O senhor fuma?
- Obrigado.
- Esqueci que fuma cachimbo...
Maigret decidiu levá-lo até seu quarto, que ainda não fora arrumado. E ali, sem preâmbulos, depois de lançar um simples olhar ao iate, Willy sentou-se à beira da cama e começou:
- Imagino que o senhor já tenha tomado informações a meu respeito..
Procurou com os olhos um cinzeiro, não achou nenhum, deixou cair a cinza no chão.
- Não foram tão boas, hein?... Aliás, jamais tentei passar por santo... E o coronel me diz três vezes ao dia que sou um canalha...
O que era extraordinário era a expressão de franqueza do seu rosto. Maigret teve de admitir que depois de ter lhe passado uma impressão desagradável, o homem agora até parecia suportável.
Uma estranha mistura. Canastrice, astúcia. Mas, ao mesmo tempo, uma fagulha de decência que redimia o resto, e um quê de petulância também, que desarmava o interlocutor.
- Veja bem, fiz meus estudos em Eton, como o Príncipe de Gales. Se fôssemos da mesma idade, poderíamos ter sido os melhores amigos do mundo. Só que meu pai é um mercador de figos, em Smirna... E eu tenho horror disso! Tive alguns problemas... A mãe de um dos meus colegas de Eton, para dizer a verdade, ajudou-me em certo momento...
"Basta que eu não lhe diga o nome dela, não é mesmo? Uma delícia de mulher... Mas o marido tornou-se ministro e ela teve medo de comprometê-lo.
"Depois... Já lhe falaram provavelmente de Mônaco, e em seguida da história de Nice... Mas a verdade é menos feia do que parece. Um conselho de amigo: não se fie jamais no que lhe diz uma americana madura que passa o tempo se divertindo na Riviera e cujo marido chega sem aviso de Chicago. As jóias roubadas nem sempre são roubadas. Mas deixemos isso...
"Então o colar... Ou o senhor sabe disso, ou não sabe ainda... Quis falar-lhe ontem, mas, considerando-se a situação, talvez não tivesse sido lá muito correto...
"O coronel, apesar de tudo, é um gentleman... Só que gosta um pouco demais do uísque. Tudo bem que seja assim. Ele tem suas razões.
"Devia ter acabado a carreira como general, era um dos homens mais prestigiados em Deli, quando, por uma história de mulher - tratava-se da filha de um indiano importante - ele foi reformado.
"O senhor mesmo o viu. Um homem magnífico, de apetite formidável... Tinha por lá trinta auxiliares,ordenanças, secretários, não sei quantos automóveis e cavalos à disposição...
"De repente, mais nada: uns cem mil francos por ano, de pensão, se tanto...
"Já lhe contei que foi casado duas vezes antes de conhecer Mary? Sua primeira mulher morreu na índia. Da segunda vez, divorciou-se, assumindo para si toda a culpa, depois de ter surpreendido a mulher com um estafeta...
"Um verdadeiro gentleman!"
E Willy, recostando-se na cama, balançava uma perna no ar numa cadência preguiçosa, enquanto Maigret, o cachimbo apertado nos dentes, permanecia imóvel, apoiado contra a parede.
- Aí está! Agora ele se diverte como pode... Em Porquerolles, mora no seu velho forte, que toda gente chama Lê Petit Langoustier. Quando consegue juntar dinheiro, vai a Paris, ou a Londres...
"Mas na índia, imagine o senhor, dava toda semana jantares para trinta ou quarenta pessoas..."
- Era sobre o coronel que queria me falar? - murmurou Maigret.
Willy não pestanejou.
- Na verdade, procuro ambientá-lo, comissário, fazê-lo sentir a atmosfera. Como o senhor jamais viveu nem nas índias nem em Londres, e jamais teve trinta auxiliares e não sei quantas donzelas à sua disposição...
"Não quero com isso entediá-lo... Mas, em suma, conheci o coronel há dois anos..."O senhor não viu Mary em vida... Mulher encantadora, só que com miolo de passarinho... Um pouco espalhafatosa... E se a gente não se ocupava dela todo o tempo, tinha crises de nervos ou fazia urn escândalo...
"Sabe o senhor que idade tem o coronel? Sessenta e oito anos...
"Ela o fatigava, entende? É verdade que fazia vista grossa aos c caprichos dele, porque ele ainda gosta de fazer das suas... Mas ela era um pouco demais, espaçosa.
"Apegou-se a mim... Eu gostava dela, não digo que não...
- Suponho que Madame Negretti seja amante de Sir Lampson?
- Sim! - admitiu o rapaz com um muxoxo. - É difícil explicar... Ele não sabe viver nem beber sozinho... Tem necessidade de gente em volta... Encontramos essa mulher por ocasião de uma escala em Bandol. Na manhã seguinte, ela não foi embora... Para ele, isso é o suficiente! Ela vai ficar o tempo que quiser...
"Comigo já é diferente. Eu sou um dos poucos homens capazes de encarar um uísque tão bem quanto o coronel...
"Além, talvez, do Vladimir, que o senhor já conhece. Quase sempre é ele quem nos coloca nos nossos beliches...
"Não sei se imagina bem a minha situação. Claro que não tenho de me preocupar com o lado material. Se bem que freqüentemente ficamos quinze dias num porto à espera de um cheque de Londres para comprar gasolina!"Veja o senhor: o colar de que falei há pouco foi empenhado vinte vezes!"Pouco importa. Uísque, que é bom, não falta... Ou só falta raramente..."Não é uma vida de alto luxo. Mas a gente dorme o quanto quer... Vai onde quer sem ter de dar satisfação..."Por mim, prefiro isso aos figos do senhor meu pai!"No começo, o coronel deu algumas jóias a sua mulher... Ela pedia dinheiro, de vez em quando...
"Dinheiro para vestir-se, entende? Para despesas gerais...
"Eu lhe juro, comissário, pense o que pensar, que foi um golpe duro para mim ontem, ver que era ela naquela foto horrível... Aliás, para o coronel também! Mas ele preferiria se deixar cortar em pedacinhos a permitir que alguém percebesse isso... Ele é assim. Trata-se de um inglês!"Quando deixamos Paris na semana passada hoje é quarta, não?
- o caixa estava muito baixo... O coronel telegrafou a Londres pedindo um adiantamento da sua pensão.
Ficamos à espera em Épernay... A ordem de pagamento talvez já tenha chegado a essas horas...
"O problema é que eu deixei algumas dívidas em Paris. Duas ou três vezes, eu já tinha perguntado a Mary por que não vendia seu colar... Ela poderia dizer ao marido que o perdera, ou que alguém o tinha roubado..."Na noite de quinta, houve a tal festa de que o senhor já ouviu falar... Mas não fique pensando coisas sobre essa história... Basta que Lampson veja um belo par de pernas para convidar a mulher para subir no barco.
"Duas horas depois, já bêbado, ele me encarregou de botá-las para fora do barco o mais depressa possível...
"Quinta, Mary se levantou muito mais tarde do que de hábito e quando saímos dos nossos beliches ela já estava lá fora.
"Depois do almoço, ficamos sós, os dois, por um momento, ela e eu. Mostrou-se muito terna. De uma ternura especial, um tanto triste...
"Em certo momento, pôs o colar na minha mão e disse:- Você precisa apenas vendê-lo...
"Paciência se o senhor não acreditar! Fiquei constrangido, claro, um pouco comovido também. Mas se o senhor a tivesse conhecido, compreenderia...
"Tanto podia ser desagradável como, assim, comovente...
"O senhor me entende... A mulher tinha quarenta anos... Fazia o que podia para se defender. Mas devia sentir que estava acabada.
"Alguém entrou quando conversávamos. Eu meti o colar no bolso. À noite, o coronel nos levou a uma casa de dança, e Mary ficou sozinha a bordo...
"Quando voltamos, ela não estava lá. Lampson não se inquietou. Não era a primeira vez nem a segunda que ela saía assim...
"Mas não eram fugas como o senhor poderia pensar. Uma vez, por exemplo, na festa de Porquerolles,houve uma pequena orgia no Petit Langoustier, que durou uma semana.
"Nos dois primeiros dias, Mary era a mais animada. No terceiro, desapareceu."E sabe o senhor onde fomos encontrá-la? Numa hospedaria em Giens, onde passava o tempo fazendo-se de mãe para dois meninos imundos...
"Eu tinha a história das pérolas atravessada na garganta.
Sexta-feira, fui a Paris... E estive prestes a vendê-las... Depois disse comigo mesmo que, se algo errado acontecesse, eu poderia ter complicações...
"Pensei nas duas moças da véspera. Essas fazem o que querem. Além disso, eu já conhecia Lia de Nice, e sabia que podia contar com ela.
"Confiei-lhe a jóia. Mandei que dissesse, se alguém a interrogasse, que a própria Mary a encarregara da venda. Isso por simples precaução...
"É tudo. Uma tolice, para ser sincero. Seria bem melhor que eu tivesse ficado quieto no meu canto. Porque, se eu não tiver a sorte de encontrar uns tiras inteligentes, é história para me levar ao tribunal... Coisa que compreendi ontem quando soube que Mary foi estrangulada."Nem vou perguntar o que pensa... Para ser sincero, espero até mesmo ser preso".
"Seria um erro, só isso. Mas, se o senhor quiser que eu o ajude, estou pronto a lhe dar uma mãozinha".
"Há coisas que podem parecer estranhas quando, no fundo, são muito simples..."
O marujo já estava quase estendido na cama, e fumava sem parar, com os olhos fixos nas tábuas do teto.
Maigret foi plantar-se junto à janela, para esconder o seu embaraço.
- O coronel está sabendo dessa sua conversa comigo? - perguntou, voltando-se de repente.
- Nem dela nem da história do colar... Também... Não estou em situação de impor condições ao senhor... Mas gostaria muito que ele continuasse sem saber.
- Madame Negretti?
- Um peso morto! Uma bela mulher incapaz de viver fora de um divã, fumando cigarros e bebendo licores... Faz isso desde o dia em que chegou a bordo! Mais nada! Minto: joga cartas! Creio mesmo que jogar seja a sua única paixão...
Ruídos rascantes de ferro enferrujado anunciaram que as portas da eclusa estavam sendo abertas. Dois burricos passaram diante do prédio e detiveram-se um pouco além, enquanto uma barcaça vazia continuava deslizando no seu curso como se quisesse escalar a ribanceira.
Vladimir, com o corpo dobrado em dois, tirava aos baldes a água de chuva que ameaçava encher o bote.
Um automóvel atravessou a ponte de pedra, quis tomar o caminho da sirga, freou, tentou algumas manobras desastradas e acabou por
deter-se definitivamente.
Um homem de preto saiu de dentro dele. Willy, que se ergueu da cama, lançou um olhar pela janela e anunciou:
- A funerária!
- Quando o coronel pretende partir?
- Logo depois do enterro.
- Ela será enterrada aqui?
- Para ele, não importa onde. Ele já tem uma mulher enterrada perto de Deli, outra casada em segundas núpcias com um nova-iorquino, e que vai acabar seguramente debaixo de sete palmos de terra americana...
Maigret olhou-o involuntariamente, para ver se estava brincando. Mas Willy Marco estava sério, embora com um brilho malicioso no olhar.
- Contanto que a ordem de pagamento tenha chegado! Senão, os funerais terão de esperar...
O homem de preto hesitava em frente ao iate, dirigia a palavra a Vladimir, que lhe respondia sem interromper o trabalho. Finalmente, subiu a bordo e desapareceu na cabine.
Maigret não vira mais Lucas.
- Pode ir! - disse ao seu interlocutor.
Willy hesitou. Por um momento, seu rosto exprimiu uma certa inquietação.
- O senhor vai falar a ele do colar?
- Não sei...
Acabara a inquietação. Agora à vontade, Willy alisou o vinco do chapéu de feltro, despediu-se com um gesto, desceu as escadas.
Quando Maigret desceu por sua vez, havia dois marinheiros no balcão, cada qual diante de um caneco de cerveja.
- Seu amigo está telefonando - disse-lhe o patrão. - Pediu uma ligação para Moulins...
Um rebocador apitou ao longe. Maigret contou maquinalmente os silvos e resmungou:
- Cinco!
Era a vida do canal. Cinco barcaças que chegavam. O vigia, de tamancos, saiu de casa e dirigiu-se às adufas.
Lucas voltou do telefone todo vermelho.
- Ufa! Foi dureza!
- De que se tratava?
- O coronel me disse que o nome de solteira de sua mulher era Marie Dupin. Para o casamento, ela mandou fazer uma via nova da certidão de nascimento, expedida em Moulins. Acabo de telefonar para lá, pedindo prioridade...
- E então?
- Eles têm uma única Marie Dupin nos seus registros, com a idade de 42 anos, três filhos, e casada com um tal Piedboeuf, padeiro na rua Haute. O secretário da prefeitura me respondeu que ainda ontem a viu, atrás do balcão. Parece que pesa uns noventa e tantos quilos...
Maigret não fez comentários. Como um aposentado sem nada para fazer, dirigiu-se sem pressa para a eclusa, completamente indiferente ao seu companheiro. Acompanhou com os olhos todas as manobras, enterrando a cada instante, com fúria, o polegar no fornilho do cachimbo.
Pouco mais tarde, Vladimir aproximou-se do vigia e, depois de fazer um esboço de continência, perguntou-lhe onde poderia encher seu tanque de água potável.
CAPITULO Quinto
O EMBLEMA DO Y.C.R
MAIGRET DEITOU-SE CEDO, enquanto o inspetor Lucas partia para Meaux, Paris e Moulins, seguindo suas instruções.
No momento em que deixava o salão do café, havia ainda três fregueses: dois marinheiros e a mulher de um deles, que viera
juntar-se ao marido e tricotava a um canto.
Fazia um tempo triste, pesado. Do lado de fora, uma barcaça tinha ancorado a dois metros do Cruzeiro do Sul, cujas vigias estavam iluminadas.
De repente, o comissário foi arrancado de um sonho tão vago que não mais se lembrou dele ao abrir os olhos. Alguém batia vigorosamente na porta, e uma voz aflita dizia:
- Comissário! Comissário! Depressa! Meu pai...
Ele correu para abrir, de pijama, e viu a filha do dono da hospedaria lançar-se nos seus braços com um nervosismo inesperado, quase aninhando-se entre eles.
- Lá! Depressa! Não, não vá!... Tenho medo de ficar sozinha aqui... Não quero... Tenho medo...
Ele ainda não tinha prestado atenção nela. Vira-a apenas como uma moça robusta.
E eis que se agarrava a ele, o rosto transtornado, corpo palpitante, com uma insistência constrangedora. Maigret, enquanto procurava soltar-se, foi até a janela e abriu-a.
Deviam ser seis da manhã. O dia começava a raiar, frio como uma madrugada de inverno.
A cem metros do Cruzeiro do Sul, em direção à ponte de pedra e à estrada de Épernay, quatro ou cinco homens tentavam, com a ajuda de um cabo de barcaça, pescar alguma coisa que boiava na água. Um marinheiro desatava seu bote e começava a movimentá-lo.
O pijama de Maigret estava todo amarfanhado. Lançou o sobretudo aos ombros e procurou as botinas, que vestiu de qualquer maneira nos pés descalços.
Com um movimento brusco, ele se libertou do abraço da moça, desceu e saiu no exato momento em que uma mulher com um bebê nos braços se aproximava do grupo.
Ele não tinha assistido à descoberta do cadáver de Mary Lampson. Mas esta descoberta agora era talvez mais sinistra, pois, com a repetição do crime, uma angústia quase sobrenatural pairava sobre a extremidade do canal.
Os homens se interpelavam. O patrão do Café de la Marine, que foi o primeiro a ver uma forma humana boiar na água, comandava a operação. Duas vezes o gancho do cabo tocou o corpo e duas vezes ele escorregou. O cadáver afundava alguns centímetros, depois voltava à superfície. Maigret já tinha reconhecido o terno escuro de Willy. O rosto não era visível, porque a cabeça, mais pesada, permanecia submersa.
O marinheiro do bote bateu nela, agarrou o morto pelo peito e com uma só mão içou-o. Mas era preciso fazê-lo passar por cima da borda do bote.O homem não sentia nojo. Levantou as pernas, uma depois da outra, lançou a amarra para terra, enxugou com o dorso da mão a fronte banhada de suor.
Por um momento, Maigret vislumbrou o rosto sonolento de Vladimir na escotilha do iate. O russo esfregava os olhos. Em seguida, sumiu.
- Não toquem em nada...
Um marinheiro protestou por detrás dele, resmungou que seu cunhado, na Alsácia, fora ressuscitado depois de ter ficado três horas inteiras dentro d'água.
Mas o patrão do café, por sua vez, apontou para a garganta do cadáver. Ali, claramente visíveis, havia duas marcas negras de dedos, como no pescoço de Mary Lampson.
Essa tragédia era a mais impressionante das duas. Willy tinha os olhos muito abertos, realmente muito mais abertos do que de hábito. E sua mão direita estava crispada num punhado de juncos.
Maigret sentiu uma presença às suas costas, voltou-se e deu com o coronel, de pijama também, com um robe de seda por cima, os pés metidos em chinelos de couro azul.
Seus cabelos prateados estavam em desordem, o rosto, um tanto entorpecido. Era estranho vê-lo vestido daquele modo, em meio a barqueiros de tamancos e roupa de lona grossa, na lama e na umidade do alvorecer.
Ele era o mais alto de todos, o mais corpulento. Emanava dele um vago perfume de água de colônia.
- Mas é Willy! - articulou com voz rouca. Depois disse alguma coisa em inglês, depressa demais para que Maigret pudesse compreender, curvou-se e tocou o rosto do rapaz.
A moça, que tinha acordado o comissário, soluçava apoiada à porta do café. O vigia vinha correndo.
- Telefone à polícia de Épernay... Um médico... A própria Negretti apareceu, também de pés nus e cabelos desgrenhados. Sem deixar o convés do iate, chamava de lá o coronel:
- Walter! Walter!
À retaguarda, havia gente que ninguém viu chegar: o condutor do Decauville, operários do canal, um camponês cuja vaca teve de continuar sozinha pelo caminho da sirga.
- Levem-no para o café... E mexam nele o menos possível...
A morte não deixava dúvida. O terno elegante, agora reduzido a um trapo, foi arrastado pelo chão quando levantaram o cadáver.
O coronel seguiu em passos lentos, muito digno no seu robe e nos seus chinelos azuis. O crânio vigoroso, em que o vento levantava alguns raros, longos cabelos, dava-lhe um aspecto ao mesmo tempo absurdo e solene.
Os soluços da moça redobraram quando o corpo passou por ela e foi correndo refugiar-se na cozinha. O patrão berrava no telefone:
- Não, minha senhora! Polícia! Depressa! Trata-se de um crime! Não desligue... Alô! Alô!
Maigret impediu os curiosos de entrar. Mas os marujos que tinham descoberto o cadáver e ajudado a pescá-lo juntaram-se a todos no café, onde havia ainda, espalhados pelas mesas, as garrafas e copos vazios da véspera. A estufa já estava funcionando. E uma vassoura, esquecida no meio da sala, atravancava o caminho.
Por detrás de uma janela, o comissário percebeu a silhueta de Vladimir, que achara tempo de botar na cabeça seu gorro de marinheiro americano. Os barqueiros falavam com ele, mas ele não respondia.
O coronel não tirava os olhos do cadáver, estendido nas lajotas do piso, e não se poderia dizer se estava emocionado, chateado ou aterrorizado.
- Quando o viu pela última vez? - perguntou-lhe Maigret,
aproximando-se.
Sir Lampson suspirou e deu a impressão de procurar em volta aquele a quem de hábito encarregava de responder em seu lugar.
- É horrível - disse por fim.
- Ele não dormiu a bordo?
Com um gesto da mão, o inglês mostrou os marinheiros que os escutavam. Era como um apelo à decência. Significava: "Julga necessário e conveniente que essa gente toda..."
Maigret fez com que saíssem.
- Eram dez da noite ontem... Não havia mais uísque a bordo. Vladimir não tinha conseguido nenhum em Dizy... Eu quis ir até Épernay.
- Willy o acompanhou?
- Por algum tempo... Deixou-me um pouco além da ponte...
- Por quê?
- Discutimos...
E, ao proferir essas palavras, com o olhar fixo no rosto lívido, desfeito, retorcido do morto, sua expressão abrandou-se.
Teria dormido pouco? Seriam as carnes inchadas que lhe davam um ar um pouco comovido? Em todo caso, Maigret juraria que havia lágrimas por trás das pálpebras pesadas.
- Discutiram?
O coronel deu de ombros, como que para resignar-se ao termo vulgar, brutal.
- O senhor o censurava por causa de alguma coisa?
- Não. Mas eu queria saber... Eu dizia: "Willy, você é um canalha. Mas precisa me dizer...
Calou-se, arrasado, olhando em torno como que para não se deixar hipnotizar pelo morto.
- O senhor o acusava do assassinato de sua mulher?
Ele deu de ombros outra vez, suspirou:
- Ele foi embora, sozinho... Já aconteceu isso antes. Na manhã seguinte, bebíamos juntos o primeiro uísque do dia sem nos lembrarmos de coisa alguma...
- O senhor foi a pé até Épernay?
- Yes!
- Bebeu lá?
Foi um olhar digno de piedade o que o coronel deixou pesar sobre o seu interlocutor.
- Joguei também, no clube... Alguém me disse, no La Bécasse, que havia um clube. Voltei de automóvel...
- A que horas?
O coronel deu a perceber de novo, com um gesto, que não se recordava.
- Willy não estava no beliche dele?
- Não. Vladimir me disse, enquanto me despia... Uma moto com um
side-car parou diante da porta. Um sargento da polícia desceu, seguido de um médico. A porta abriu-se, fechou-se.
- Polícia Judiciária! - disse Maigret, apresentando-se ao seu colega de Épernay. - Queira ter a bondade de manter essa gente à distância e de telefonar à promotoria pública...
O médico não precisou mais que um exame sumário para declarar:
- Já estava morto no momento da imersão... Observe essas marcas...
Maigret já as tinha visto. Ele sabia. Automaticamente, observou a mão direita do coronel, que era musculosa, com as unhas quadradas e curtas, veias saltadas...
Seria necessária pelo menos uma hora para reunir o juiz local e seus assistentes e traze-los até a cena do crime. Alguns agentes chegaram de bicicleta, e formaram um cordão em torno do Café de la Marine e do Cruzeiro do Sul.
- Posso ir me vestir? - tinha perguntado o coronel.
E apesar do seu robe, dos seus chinelos, dos seus tornozelos descobertos, era de uma surpreendente dignidade ao atravessar o grupo de curiosos. Mal entrou na cabine, pôs a cabeça para fora e chamou:
- Vladimir!
E todas as escotilhas do iate foram fechadas.
Maigret interrogava o vigia, quando um barco a motor começou a apitar às portas da eclusa.
- Suponho que, num canal como esse, não exista correnteza. Assim, um corpo fica onde foi lançado...
- Nas grandes calhas é verdade. São extensões de dez, quinze quilômetros... Mas esta aqui não tem mais de cinco... Se um barco desce a eclusa 13, logo acima da minha, sinto a chegada da água poucos minutos depois... Se eu mesmo fecho um barco que está descendo, tiro com isso do canal centenas de galões de água e crio uma corrente temporária...
- A que horas começa a trabalhar?
- Em princípio, ao romper do sol... Na verdade, muito antes... As barcas-estrebarias, cuja marcha é vagarosa, partem por volta das três da manhã. Normalmente, manobram elas mesmas a comporta, e às vezes sequer as ouvimos. A gente não diz nada porque é tudo gente
conhecida...
- Então, esta manhã?...
- A Frederico, que dormiu aqui, deve ter partido por volta das três e meia e passado a eclusa de Ay às cinco...
Maigret fez meia volta. Em frente ao Café de la Marine e no caminho da sirga, havia grupos de curiosos. E quando o comissário se dirigia rumo à ponte de pedra, um velho piloto com o nariz cheio de verrugas aproximou-se dele:
- O senhor quer que eu lhe mostre de onde foi que lançaram o moço na água?
E olhou orgulhoso os companheiros, que hesitavam em acompanhá-los.
Tinha razão. A cinqüenta metros da ponte, os juncos estavam pisados numa distância de vários metros. Não só haviam andado por cima deles, mas um peso qualquer fora arrastado pelo solo, pois havia uma larga trilha de juncos achatados.
- O senhor está vendo? Eu moro a quinhentos metros, numa das primeiras casas de Dizy. Ao chegar esta manhã para ver se havia barcos descendo o Marne e se precisavam de mim, isso me chamou a atenção. E mais ainda por ter encontrado isto...
O homem era cansativo, com seus trejeitos maliciosos e as olhadelas que continuava lançando aos camaradas que acompanhavam a cena à distância.
Mas o objeto que tirou do bolso era do mais alto interesse: um distintivo de esmalte finamente trabalhado, que trazia estampado, além de uma pequena âncora, as iniciais "Y.C.F."
-Yachting Club de France! -traduziu o homem.
- Todos os sócios levam isso na lapela.
Maigret se voltou para o iate, visível a mais ou menos dois quilômetros de distância; e debaixo do seu nome em inglês apareciam as mesmas letras: Y.C.F.
Sem se preocupar com o homem que lhe tinha dado o emblema, foi devagar até a ponte. À direita, a estrada de Épernay estendia-se em linha reta, ainda brilhante das chuvas da véspera. E os carros passavam como meteoros.
À esquerda, o caminho fazia um cotovelo na aldeia de Dizy. Para além dele, no canal, havia barcaças em reparo, diante dos estaleiros da Companhia Geral de Navegação.
Maigret voltou sobre os seus passos, porque o juiz local estava para chegar e por uma hora ou duas seria a confusão habitual, os interrogatórios, as idas e vindas, as hipóteses mais ridículas.
Quando chegou à altura do iate, viu que continuava fechado. Um policial uniformizado andava de um lado para o outro, pedindo aos curiosos que circulassem. Mas não podia impedir dois jornalistas de Épernay de tirar fotografias.
O tempo não estava nem bom nem ruim. O céu mostrava-se de um cinzento luminoso, uniforme como uma clarabóia de vidro sem polimento. Maigret subiu a passarela, bateu à porta.
- Quem é? - perguntou o coronel.
O comissário entrou. Não tinha vontade de conversar. Viu Madame Negretti, desgrenhada como sempre, enxugando lágrimas e fungando, de cabelos caídos no rosto e na nuca.
Sir Lampson, sentado no banco, estendia os pés para Vladimir, que o calçava com sapatos cor de acaju.
Devia haver água fervendo em algum lugar, porque era possível ouvir um silvo de vapor.
Os dois beliches, o de Glória e o do coronel, ainda não estavam arrumados. E, em cima da mesa, havia um baralho espalhado e um mapa das vias navegáveis da França.
E sempre aquele odor ao mesmo tempo indefinido e excitante, que lembrava alcova e bar. Um boné branco de iatista pendia do cabide, ao lado de um rebenque com cabo de marfim.
- Willy era membro do Yacht Club de France? perguntou Maigret, num tom de voz que tentava aparentar neutralidade.
O coronel deu de ombros num movimento eloqüente: a pergunta parecia ridícula. E com razão, porque o Y.C.F. é um dos clubes mais exclusivos do país.
- Eu faço - disse o coronel. - E do Royal Yacht Club.
- O senhor se importaria de me mostrar o paletó que estava usando ontem à noite?
- Vladimir...
Já estava calçado. Levantou-se, debruçou-se para um armário que era usado como adega. Não havia garrafa de uísque à vista. Mas havia outras bebidas, entre as quais ele hesitou.
Por fim, tirou uma garrafa de conhaque de champanhe e murmurou sem insistir:
- O senhor aceita?
- Obrigado.
O coronel encheu um cálice de prata que estava numa prateleira acima da mesa, procurou um sifão, franzindo o cenho como um homem cujos hábitos foram todos alterados e que se aborrecia com isso.
Vladimir voltou do banheiro com um terno de tweed preto e, a um gesto do seu patrão, passou-o a Maigret.
- A insígnia do Y.C.F. costumava estar na lapela deste paletó?
- Sim... Ainda não acabaram?... Willy continua no chão, por lá?
Tinha esvaziado o copo, de pé, em pequenos goles, e hesitava em servir-se de novo.
Lançou um olhar pela vigia, avistou algumas pernas e deixou escapar um grunhido indistinto.
- O senhor poderá ter a bondade de ouvir-me um instante, coronel?
Ele fez sinal que sim. Maigret tirou do bolso o emblema esmaltado.
- Encontraram isto aqui esta manhã no lugar onde o corpo de Willy foi arrastado por entre os juncos antes de ser lançado à água...
Madame Negretti reteve um grito, atirou-se na banqueta de veludo grená e, com a cabeça nas mãos, pôs-se a soluçar convulsivamente.
Quanto a Vladimir, não moveu um músculo. Esperava que lhe devolvessem o paletó para pendurá-lo de novo no lugar.
O coronel teve um riso estranho, repetindo quatro ou cinco vezes:
- Yes! Yes!
E ao mesmo tempo servia-se de conhaque.
- Na Inglaterra, a polícia tem métodos diferentes de interrogatório. Ela adverte, é obrigada a advertir, que qualquer palavra pode ser usada contra aquele que a profere... Só uma vez, naturalmente... O senhor não precisa anotar tudo?... Eu não vou ficar repetindo...
"Nós discutimos, eu e Willy... Eu perguntei a ele mais de uma vez... Não importa...
"Ele não é um crápula, como os outros... Há crápulas simpáticos...
"Eu lhe disse algumas coisas duras, e ele pegou meu paletó por aqui..."
Mostrava o avesso da roupa, lançava um olhar impaciente aos inúmeros pés, calçados de tamancos ou de sapatões pesados, que se podiam ver passar pelas vigias.
- E é tudo... Não sei... Talvez o emblema tenha caído no chão... Foi do outro lado da ponte...
- E, no entanto, foi encontrado do lado de cá...
Vladimir sequer parecia escutar. Retirava os objetos abandonados sobre a mesa, desaparecia na direção da proa, voltava sem pressa.
Com um sotaque russo dos mais acentuados, perguntou a Glória, que parara de chorar, mas que continuava imóvel, estendida ao comprido, com a cabeça nas mãos:
- A senhora quer alguma coisa?
Soaram passos na prancha de desembarque. Alguém bateu à porta, e a voz do sargento disse:
- O senhor está aí, comissário? É o pessoal da promotoria pública.
- Já vou!
O sargento não se afastou, invisível por detrás da porta de acaju com detalhes em cobre.
- Mais uma pergunta, coronel. Quando será o enterro?
- Às três horas.
- Hoje?
- Yes! Não tenho nenhuma outra razão para ficar aqui.
Quando engoliu o terceiro conhaque, seus olhos adquiriram aquela expressão vaga que Maigret já observara antes.
E fleumático, indiferente, um perfeito gentleman inglês, perguntou quando o comissário estava prestes a sair:
- Estou preso?
E a mulher ergueu repentinamente a cabeça, muito pálida.
CAPÍTULO Sexto
O BONÉ DE MARINHEIRO AMERICANO
O FIM DA CONVERSA entre o juiz e o coronel foi quase solene, e só Maigret, que permanecia à parte, estava lá para notá-lo. O olhar do comissário cruzou-se com o do substituto do promotor público e leu nele a mesma impressão.
O magistrado e seus assessores tinham-se instalado na sala do Café de la Marine. Uma das portas dava para a cozinha, de onde vinha um barulho de panelas. A outra porta, envidraçada, coberta de adesivos transparentes de propaganda de massas alimentícias e sabão, permitia ver os sacos e os caixotes do armazém.
Diante da janela, ia e vinha o quepe de um policial. E os curiosos, silenciosos porém obstinados, mantinham-se logo atrás, em massa.
Um caneco contendo ainda algum líquido fora esquecido junto a uma pequena poça de vinho em cima de uma das mesas.
O escrivão tomava notas de cara amarrada, sentado em um banco sem encosto.
Quanto ao cadáver, terminadas as constatações de praxe, fora deposto no canto mais afastado da estufa e coberto temporariamente com um dos oleados marrons. A mesa da qual este fora tirado exibia agora suas tábuas desconjuntadas.
O odor era persistente: especiarias, estábulo, alcatrão, vinho.
E o juiz, considerado um dos magistrados mais desagradáveis de Épernay - um Clairfontaine de Lagny, orgulhoso da partícula de nobreza do seu nome - polia seu pince-nez, de costas para o fogo.
No começo tinha dito em inglês:
- Suponho que o senhor preferirá falar na sua língua...
Ele mesmo falava inglês corretamente, talvez com uma ponta de afetação, um jeito de torcer a boca comum aos que procuram em vão o sotaque correto.
Sir Lampson inclinara-se e respondera lentamente a todas as perguntas, voltado para o escrivão e esperando, de tempos em tempos, que este o alcançasse.
Repetira o que tinha dito a Maigret nas duas conversas que tivera com ele.
Trajava um conjunto azul-marinho, de corte quase militar, cuja lapela se ornava de uma única fita: a da Ordem do Mérito.
Tinha na mão um quepe com o grande escudo dourado do Yacht Club de France.
Era tudo muito simples. Um homem fazia perguntas. O outro inclinava-se de cada vez, imperceptivelmente, antes de responder.
Maigret não conseguia deixar de sentir uma certa admiração, embora ao mesmo tempo se sentisse humilhado ao se lembrar das suas próprias incursões a bordo do Cruzeiro do Sul.
Seu inglês não era suficientemente bom para captar todas as nuances. Entendia pelo menos o sentido das réplicas finais.
- Eu lhe pediria, Sir Lampson - dizia o juiz -, que permanecesse à minha disposição até que alguns pontos sejam esclarecidos. Vejo-me forçado também a recusar-lhe, por enquanto, a permissão de sepultar lady Lampson...
Uma inclinação de cabeça.
- Tenho autorização de deixar Dizy com o meu barco?
E, com um gesto, o coronel mostrava os curiosos amontoados lá fora, o cenário, o próprio céu.
- Minha casa é em Porquerolles... E levo uma semana só para chegar ao Saône...
Foi a vez do juiz assentir.
Não trocaram um aperto de mão, mas estiveram perto de fazê-lo. O coronel correu os olhos em torno, parecendo não ver nem o médico, que tinha um ar entediado, nem Maigret, que virou a cabeça. Saudou com uma leve mesura o substituto do promotor público.
Pouco depois, atravessava a curta distância que separava o Café de la Marine do Cruzeiro do Sul.
Sequer entrou no camarote. Vladimir estava no convés. Deu-lhe ordens, instalou-se à barra do leme.
E para estupefação dos barqueiros ali reunidos,o marinheiro de camisa listada desceu para a casa de máquinas, acionou o motor, fez saltar as amarras com um gesto preciso.
Alguns instantes mais tarde, um pequeno grupo se afastava, gesticulando, pela estrada principal, onde os esperavam os carros: eram o juiz e seus assistentes.
Maigret ficou sozinho na margem do canal. Pôde, enfim, encher o cachimbo, e metia as duas mãos nos fundos bolsos, num quase vulgar, resmungando:
- Muito bonito!
Pois não era necessário recomeçar tudo?
Da inquirição do juiz haviam ficado apenas alguns poucos pontos cuja importância era impossível no momento avaliar.
Primeiro, o cadáver de Willy Marco tinha, além das marcas de estrangulamento, equimoses nos punhos e no torso. Segundo o médico, devia-se descartar a idéia de uma emboscada em favor da tese de uma luta com um adversário de força excepcional.
Por outro lado, Sir Lampson tinha declarado que conheceu sua mulher em Nice onde, embora divorciada de um italiano chamado Ceccaldi, ela ainda usava o nome dele.
O coronel não forneceu maiores detalhes. Suas frases, propositalmente ambíguas, deixavam supor que nessa época Marie Dupin, dita Ceccaldi, estava praticamente na miséria e vivia da generosidade de alguns amigos, sem cair propriamente na chamada vida alegre.
Sir Lampson casou-se com ela durante uma viagem a Londres e foi nessa ocasião que ela fez vir de Paris uma certidão de nascimento com o nome de Marie Dupin.
- Era uma mulher absolutamente encantadora.
Maigret revia o rosto gordo, digno e avermelhado do coronel, ao pronunciar essas palavras sem afetação, com uma simplicidade grave que o juiz parecia apreciar.
Teve de recuar para que a padiola em que levavam o cadáver de Willy pudesse ser levada.
E bruscamente, dando de ombros, entrou no café, deixou-se cair num banco e pediu:
- Uma cerveja!
Foi a moça quem o serviu, com os olhos ainda vermelhos, nariz lustroso. Ele a olhou com interesse e, antes que a tivesse interrogado, murmurou, depois de assegurar-se que ninguém podia
ouvi-la:
- Ele sofreu muito?
Tinha um rosto comum, tornozelos grossos, usava meias vermelhas de algodão. Era, no entanto, a única pessoa a importar-se com o elegante Willy. Talvez, na véspera, de brincadeira, ele lhe tivesse dado uma cantada!
Isso lembrava a Maigret a conversa que tinha tido com o rapaz meio estendido na cama por fazer no segundo andar, fumando um cigarro atrás do outro.
Alguém chamara a moça. Um marujo lhe disse:
- Parece que você está nervosa, Emma...
E ela tentava sorrir, olhando Maigret com ar cúmplice.
O tráfego estava interrompido desde a manhã. Havia sete barcos, dos quais três a motor, diante do café. As mulheres desciam para comprar provisões e a cada vez ouvia-se o tilintar agudo da campainha da loja.
- Quando quiser jantar... - disse o patrão a Maigret.
E, da soleira, ficou olhando o local onde ainda de manhã estava ancorado o Cruzeiro do Sul.
Durante a noite, dois homens tinham saído bem-dispostos daquele barco. Rumaram para a ponte de pedra. Segundo o coronel, separaram-se depois de um desentendimento, e Sir Lampson prosseguiu sozinho pela estrada deserta e reta, até a entrada de Épernay, a três quilômetros de distância.
Ninguém viu mais Willy com vida. Quando o coronel regressou de táxi, nada percebeu de anormal.
Nenhuma testemunha! Ninguém que tivesse ouvido qualquer coisa! O açougueiro de Dizy, que morava a seiscentos metros da ponte, dizia que seu cão tinha latido. Mas como não se preocupara com isso, não podia precisar a que hora.
A trilha da sirga, com seus buracos e suas poças d'água, era excessivamente pisoteada por homens e cavalos para guardar indícios úteis.
No dia anterior, Mary Lampson, também em perfeita saúde, e num estado aparentemente normal, deixara o iate, onde se encontrava só.
Antes disso - segundo Willy-, confiou ao amante um colar de pérolas, única jóia de valor que possuía.
E aí terminava o seu rastro. Dois dias se passaram sem que houvesse notícias dela.
Domingo à noite, estava estrangulada, enfiada sob a palha de uma estrebaria de Dizy, a cem quilômetros de onde partira, e dois barqueiros ressonavam perto do cadáver.
Era tudo! Por ordem do juiz, os corpos seriam colocados num refrigerador do Instituto Médico-Legal.
O Cruzeiro do Sul acabava de partir para o sul, para Porquerolles, para o Petit Langoustier, que já assistira a tantas orgias.
Maigret, cabisbaixo, contornava os edifícios do Café de la Marine. Repeliu uma gansa furiosa que avançava em sua direção de bico aberto, num acesso de fúria.
A porta do estábulo não tinha fechadura, mas uma simples tramela de madeira. E o cão de caça que vagabundeava pelo pátio, com a barriga empanturrada de comida, lançava-se ao encontro de qualquer
recém-chegado, dando voltas ao redor de si mesmo de alegria.
Abrindo a porta, o comissário se viu face a face com o cavalo cinzento do patrão, que estava desamarrado como de costume e que se aproveitou da ocasião para sair a passear.
A égua de joelho quebrado jazia, de olhos tristes, no seu canto.
Maigret empurrou a palha com o pé, como se esperasse achar qualquer coisa que tivesse escapado ao seu primeiro exame do lugar.
Duas ou três vezes repetiu entre os dentes:
- Muito bonito!
E estava quase decidido a voltar a Paris e a Meaux, para refazer, passo a passo, o caminho percorrido pelo Cruzeiro do Sul.
Havia de tudo no estábulo: rédeas velhas, peças de arreios, um coto de vela, um cachimbo quebrado...
De longe, viu algo branco que se sobressaía de um monte de feno e aproximou-se sem muita esperança.
Um momento depois, tinha na mão um boné de marinheiro americano semelhante ao de Vladimir.
O pano estava sujo de lama e estrume, e deformado como se tivesse sido puxado em todas as direções.
Mas foi em vão que Maigret procurou em volta outro indício qualquer. Haviam lançado palha fresca no lugar em que o corpo foi descoberto a fim de que parecesse menos sinistro.
"Estou preso?"
Não sabia dizer por que essa frase do coronel lhe vinha à memória, enquanto caminhava para a porta da estrebaria. Via Sir Lampson, ao mesmo tempo aristocrático e decadente, com seus olhos saltados sempre úmidos, sua latente embriaguez, sua fleuma espantosa.
Evocava o curto diálogo que tivera com o esnobe magistrado naquela sala de hospedaria, de mesas cobertas com oleado marrom, e que a magia de algumas entonações, de algumas atitudes, havia transformado por um momento em salão.
E virava e revirava nas mãos o boné de marinheiro, desconfiado, com uma expressão dissimulada no olhar.
"Cautela!", tinha dito o sr. Clairfontaine de Lagny, ao despedir-se com um aperto de mão enfático.
A gansa feroz seguia o cavalo pela pista, lançando-lhe injúrias. E ele, deixando pender a cabeça, cheirava o lixo que enchia o quintal.
De cada lado da porta havia um marco de pedra, e o comissário
sentou-se em um deles, sem soltar o boné nem o cachimbo apagado.
Diante dele o que havia era um monte de excremento, depois uma cerca viva com falhas aqui e ali. Para além, campos em que nada ainda nascera, a colina raiada de preto e branco, sobre a qual pairava uma gorda nuvem de centro inteiramente negro.
De um canto, surgiu um raio oblíquo de sol, que arrancou fagulhas de luz da estrumeira.
"Mulher completamente encantadora..." havia dito o coronel, referindo-se a Mary Lampson.
"Um verdadeiro gentleman.." dissera Willy do coronel.
Só Vladimir não dissera nada; contentava-se em ir e vir, em comprar provisões e gasolina, em encher os reservatórios de água potável, em esvaziar o bote, em ajudar seu patrão a vestir-se.
Alguns flamengos passavam pela estrada, falando alto. De repente, Maigret inclinou-se sobre o chão. O pátio era calçado de pedras desiguais. Ora,a dois metros dele, entre duas dessas pedras, alguma coisa acabava de receber um raio de sol e brilhava.
Era uma abotoadura de ouro, atravessada por dois filetes de platina. Maigret vira abotoaduras como essa na véspera, nos punhos de Willy, quando o rapaz, estirado na sua cama, lançava para o teto a fumaça dos seus cigarros e falava displicentemente...
Imediatamente, deixou de ocupar-se do cavalo, da gansa, de tudo mais que o cercava. Pouco depois, virava a manivela do telefone.
- Épernay... O necrotério, sim! Polícia!
Um dos flamengos, que saía do café, parou para observá-lo com algum espanto, de tal modo parecia excitado.
- Alô! Aqui é o comissário Maigret, da Polícia Judiciária. Acabam de levar um corpo até vocês... Mas não, não se trata do acidente de automóvel... É o afogado de Dizy... Sim...
Verifique imediatamente no escritório se entre os seus objetos pessoais há uma abotoadura. O senhor me descreverá essa abotoadura pelo telefone... Sim, espero na linha...
Três minutos depois desligava com a informação, ainda segurando a abotoadura e o boné de marinheiro.
- Seu café está pronto...
Não se deu ao trabalho de responder à moça ruiva, embora ela lhe tivesse dito aquilo com toda a doçura. Saiu, com a sensação de ter apanhado talvez uma ponta do fio, mas também com um medo atroz de soltá-lo.
- O boné no estábulo... A abotoadura no pátio... E a insígnia do Y.C.E perto da ponte de pedra...
E foi nessa direção que se pôs a andar depressa. Teorias tomavam forma na sua mente, para logo em seguida dissolver-se.
Não tinha andado ainda um quilômetro quando olhou à frente, estupefato.
O Cruzeiro do Sul, que partira havia bem uma hora, com ar de pressa, estava ancorado à direita da ponte, nos juncos. Não havia sinal de ninguém.
Quando, porém, o comissário se achava a uma centena de metros, na outra margem um carro de Épernay parou junto do iate e Vladimir, sempre em uniforme de marinheiro,sentado ao lado do chofer, saltou e correu para o barco.
Não havia ainda atingido a escotilha e já ela se abria e o coronel surgia no convés, dando a mão a alguém que ainda se encontrava no interior.
Maigret não se escondeu. Não podia saber se o coronel o via ou não.
A cena foi rápida. O comissário não ouviu as palavras pronunciadas. Mas os movimentos dos personagens lhe deram uma idéia muito precisa do que se passava.
Era Madame Negretti que Sir Lampson ajudava a abandonar a cabine. Pela primeira vez, o comissário a via vestida para sair. Mesmo à distância, era possível perceber que estava furiosa.
Vladimir apanhou as duas malas dela, que já estavam feitas, e
levou-as para o automóvel.
O capitão deu a mão à sua companheira para que atravessasse a passarela, mas ela recusou, avançando tão bruscamente que quase caiu de cabeça nos juncos.
E foi embora sem esperar por ele. Ele a seguia, impassível, à distância de alguns passos. Ela se enfiou no táxi com a mesma fúria e, mostrando um instante a cabeça agitada na janela, gritou alguma coisa que devia ser uma injúria ou uma ameaça.
Sir Lampson, apesar disso, no momento em que o carro se pôs a caminho, curvou-se com cortesia, viu-a afastar-se e voltou para o seu barco em companhia de Vladimir.
Maigret não se moveu. Teve a sensação muito nítida de que uma mudança se produzia no inglês. Ele não sorria. Mostrava-se tão fleumático como antes. Mas, por exemplo, no momento de entrar na cabine de comando, tocou, ainda falando, com um gesto cordial, até mesmo afetuoso, o ombro de Vladimir.
E a manobra foi magnífica. Havia apenas os dois homens a bordo. O russo recolheu a passarela e com um só movimento fez saltar as amarras.
A proa do Cruzeiro do Sul passou por cima dos juncos. Uma barcaça se aproximava e fazia soar a sirene.
Lampson voltou-se. Teria fatalmente de ver Maigret, mas nada deixou transparecer. Com uma das mãos engrenou o motor. Com a outra, deu duas voltas no timão de cobre, e o iate deslizou à popa, apenas o bastante para soltar-se. Evitou chocar-se com a popa da barcaça, detendo-se de tempos em tempos, indo para a frente outra vez,e deixando atrás um fervilhar de espuma.
Ainda não havia percorrido cem metros e já emitia três apitos para avisar a eclusa de Ay da sua chegada.
- Não perca tempo... Siga em frente... Se possível, alcance aquele táxi...
Maigret tinha abordado a caminhonete de um padeiro que passava na direção de Épernay. O táxi que levava Madame Negretti estava um quilômetro à frente, mas ia devagar porque o asfalto estava coberto de óleo e escorregadio.
Desde que o comissário revelara quem era, o entregador de pão o olhava com uma divertida curiosidade.
- Pode deixar, em cinco minutos alcançamos aquele táxi...
- Não precisa ser tão rápido assim...
E foi a vez de Maigret sorrir, observando seu companheiro assumir a pose típica dos perseguidores em filmes policiais americanos.
Não houve qualquer manobra mais arriscada, qualquer dificuldade. Numa das primeiras ruas da cidade, o automóvel parou alguns instantes, sem dúvida para permitir que a viajante desse orientações para o motorista; depois partiu de novo, detendo-se três minutos mais tarde à porta de um hotel de luxo.
Maigret deixou a caminhonete a cem metros dali, agradeceu ao padeiro, que não quis aceitar gorjeta, mas que, decidido a não perder o desfecho, foi estacionar nas proximidades do hotel.Um carregador levou as duas malas. Glória Negretti atravessou a calçada rapidamente.
Dez minutos depois, o comissário se apresentava ao gerente.
- A senhora que acaba de chegar?
- Quarto n° 9... Desconfiei que havia alguma coisa errada... Jamais vi uma pessoa tão agitada... Falava com uma velocidade incrível, misturando palavras estrangeiras àquilo que dizia... Entendi que não desejava ser incomodada e que queria que lhe levassem cigarros e bebida. Não haverá nenhum escândalo, espero?
- Nada absolutamente! - afirmou Maigret. Quero apenas fazer algumas perguntas a ela...
Não pôde deixar de sorrir ao aproximar-se do número 9. Pois ouvia-se no quarto um verdadeiro pandemônio. Os saltos altos da mulher batiam contra o assoalho na mais desordenada cadência.
Ela ia e vinha em todas as direções. Fechava a janela, arrastava malas, abria uma torneira, atirava-se na cama, levantava-se, lançava um sapato ao fundo do quarto.
Maigret bateu.
- Entre!
E a voz vibrava de cólera, de impaciência. Não fazia dez minutos que Glória Negretti estava ali, e tivera tempo de mudar de roupa, de pôr os cabelos em desordem, de, em suma, retomar o aspecto que tinha a bordo do Cruzeiro do Sul.
Quando reconheceu o comissário, um brilho de fúria surgiu nos seus olhos castanhos.
- O que quer comigo? O que vem fazer aqui? Este quarto é meu. Paguei por ele e...
Prosseguiu em uma língua estrangeira, provavelmente espanhol, e abriu um frasco de água de colônia, derramando a maior parte do conteúdo nas mãos antes de umedecer a fronte ardente.
- A senhora me permite uma pergunta?
- Eu disse que não queria ver ninguém! Saia! Entendeu?
Usava meias e provavelmente as meias não tinham ligas, pois começavam a cair ao longo das suas pernas, descobrindo um joelho carnudo e muito branco.
- O senhor faria melhor se interrogasse aqueles que podem lhe responder... Mas não ousa, não é? Porque ele é coronel... Porque é Sir Walter Lampson! Um belo Sir...
Se eu lhe contasse apenas metade do que sei... Veja isto!
Remexeu febrilmente na bolsa, da qual tirou cinco notas de mil francos amarfanhadas.
- Veja o que me deu! E há dois anos, não é?, que vivo com ele, que...
Lançou as notas no tapete, depois, caindo em si, apanhou-as e
botou-as de novo na bolsa.
- Naturalmente, prometeu mandar-me um cheque... Mas sei o que valem as promessas dele... Um cheque? Sequer tem dinheiro para ir até Porquerolles! O que não o impede de se encharcar de uísque toda noite.
Não chorava, mas sua voz era chorosa. Era uma agitação toda especial a dessa mulher, que Maigret sempre tinha visto mergulhada numa letargia beatífica, numa atmosfera quente de estufa...
- É como o precioso Vladimir... Teve a ousadia de dizer, enquanto tentava beijar-me a mão: "Adeus, madame!" Ah, ah! Que topete! Mas quando o coronel não está, Vladimir...
Isso tudo não é da sua conta! Por que está ouvindo? O que está esperando? Acha que vou lhe dizer alguma coisa?
"Pois não direi nada... "E tenho todo direito de não dizer!" Ela continuava andando pelo quarto, apanhando objetos na mala, colocando-os em qualquer parte para logo em seguida mudá-los de lugar...
- Deixar-me em Épernay! Nesse buraco imundo, chuvoso... Supliquei que me levasse pelo menos a Nice, onde tenho amigos... Foi por causa dele que deixei meus amigos...
"É verdade que eu deveria estar contente por ele não ter me matado...
"Mas não vou dizer nada, entende? O senhor pode ir embora. A polícia me enoja! Tanto quanto os ingleses! Por que não o prende, se é capaz?
"Mas não ousa! Sei muito bem como são essas coisas!
"Pobre Mary! Fosse ela o que fosse, mau gênio e tudo, teria feito o diabo por aquele Willy, que eu jamais pude suportar...
"Mas morrer assim...
"Eles partiram? E quem o senhor vai prender, afinal de contas? A mim talvez? Quem sabe?
"Pois bem, escute! Vou lhe contar uma coisa. Sim. Uma só! Faça com ela o que quiser, Esta manhã, enquanto se vestia para se apresentar ao juiz porque é preciso impressionar as pessoas, tirar as medalhas do baú, as condecorações! -, enquanto se vestia, Walter disse a Vladimir, em russo, porque ele pensa que eu não compreendo a língua..."
A mulher falava tão depressa que acabava por perder o fôlego, embrulhava-se nas frases, misturava de novo termos em espanhol...
- Disse a ele que procurasse descobrir onde está a Providência. O senhor entende? É o barco que estava junto de nós em Meaux...
"Querem encontrá-lo, e têm medo de mim...
"Fingi que não percebi nada...
"Mas sei muito bem que o senhor não terá coragem..."
Olhou as malas abertas, o quarto que, em alguns minutos, conseguira pôr em desordem e empestar com o seu perfume pungente...
- Será que o senhor tem cigarros, pelo menos? Que espécie de hotel é este? Já pedi cigarros e bebida também...
- A senhora viu, em Meaux, o coronel conversando com alguém da Providência?
- Não vi absolutamente nada. Por que isso me interessaria? Ouvi apenas o que lhe contei... Que outra razão teriam para se preocupar com uma barcaça? Alguém sabe como foi que morreu a primeira mulher de Walter, na índia? Se a outra se divorciou dele, alguma razão deveria haver...
Um garçom bateu na porta, trazendo os cigarros e um licor. A mulher lançou o maço no corredor, gritando:
- Eu disse Abdullahs!
- Mas madame...
Ela juntou as mãos tragicamente, num gesto que prenunciava uma crise de nervos e gemeu:
- Oh! Essa gente toda... Essa...
Depois, voltou-se para Maigret, que a examinava com interesse, e rosnou:
- E o senhor, por que ainda está aqui? É inútil, não vou dizer mais nada! Não sei mais nada! Eu não disse nada! Entendeu agora? Não quero que me aborreçam mais com essa história. Já é desgraça bastante ter perdido dois anos da minha vida...
O garçom, ao bater em retirada, lançou um olhar de esguelha ao comissário. E enquanto a jovem se atirava na cama, como se seus nervos tivessem chegado ao limite,Maigret saiu.
Na rua, o padeiro continuava à espera.
- E então? O senhor não a prendeu? - perguntou decepcionado. - Eu pensava...
Maigret teve de ir a pé até a estação para encontrar um táxi que o reconduzisse à ponte de pedra.
CAPITULO Sétimo
O PEDAL TORTO
QUANDO o COMISSÁRIO ULTRAPASSOU o Cruzeiro do Sul, que, com as ondas que fazia, agitava os juncos ainda por muito tempo depois da sua passagem, o coronel ainda se achava ao leme, e Vladimir, na proa, enrolava em espiral uma corda.
Maigret esperou pelo iate na eclusa de Aigny. A manobra foi efetuada sem deslizes, e, uma vez amarrado o barco, o russo desceu à terra para entregar os papéis e a gratificação de praxe ao vigia.
- Este boné é seu, não é? - perguntou o policial, adiantando-se para ele.
Vladimir examinou o objeto, que não passava àquela altura de um trapo sujo, e depois aquele que o interrogava.
- Obrigado! - disse, por fim, tomando o boné.
- Um momento! Poderia me dizer onde o perdeu? O coronel acompanhava a cena com os olhos,sem demonstrar a mais ligeira emoção.
- Ele caiu na água ontem à noite - explicou Vladimir -, quando, debruçado sobre a amurada,na extremidade de ré da quilha, eu tentava com um cabo remover as plantas que bloqueavam a hélice... Havia uma barcaça atrás de nós. A mulher, de joelhos no escaler, enxaguava roupa... Foi ela quem pescou o gorro, e eu o deixei secando no convés.
- Quer dizer que ele estava no convés a noite passada?
- Sim... E esta manhã não reparei que tinha desaparecido.
- Já estava sujo ontem?
- Não! Quando a mulher o recuperou, passou-o na água com sabão que estava usando.
O iate subia aos solavancos, e o vigia da eclusa já estava segurando com as duas mãos a manivela da porta à montante.
- Se me lembro bem, era a Fênix que estava à retaguarda de vocês?
- Creio que sim. Não a vi hoje...
Maigret esboçou um vago cumprimento e dirigiu-se para a sua bicicleta, enquanto o coronel, impassível, ligava o motor e inclinava a cabeça ao passar diante do encarregado da eclusa.
O comissário deixou-se ficar um bom momento assistindo à partida dele, sonhador, considerando a espantosa simplicidade com que as coisas aconteciam a bordo do Cruzeiro do Sul.
O iate seguia seu curso sem se preocupar com ele. Quando muito, o coronel, do lugar em que estava, fez uma pergunta ao russo, que respondeu com uma única frase.
- A Fénix está longe? - perguntou Maigret ao vigia.
- Talvez em Juvigny, a cinco quilômetros daqui... Ela não anda tão depressa quanto esse que saiu...
Maigret chegou alguns minutos antes do Cruzeiro do Sul e Vladimir por certo o viu, de longe, interrogando a mulher do capitão.
Os detalhes eram exatos. Na véspera, quando lavava roupa, que aliás se via ainda ao vento, toda enfunada num varal, ela tinha pescado o boné do marinheiro. Este deu mais tarde dois francos ao menino dela.
Eram duas horas da tarde. O comissário montou de novo na bicicleta, com a cabeça cheia de hipóteses confusas. Havia cascalho na trilha da sirga. Os pneus estalavam, lançando pequenos seixos para um lado e para o outro das rodas.
Na eclusa 9, Maigret já tinha boa distância de vantagem sobre o inglês.
- Poderia dizer-me onde se encontra neste momento a Providência?
- Não muito longe de Vitry-le-François. Vão em boa velocidade, porque têm excelentes animais, e principalmente um barqueiro que não se importa de trabalhar duro...
- Eles estavam apressados?
- Nem menos nem mais do que de costume... No canal, o senhor sabe, a gente sempre tem pressa... Não sabe jamais o que vai encontrar pela frente... Às vezes, é preciso ficar horas e horas numa única comporta, mas também a mesma operação pode levar dez minutos... E quanto mais depressa se vai, mais se ganha...
- O senhor não ouviu nada de anormal a noite passada?
- Nada! Por quê? Houve alguma coisa? Maigret partiu sem responder, mas foi parando a cada eclusa, junto de cada barco...
Não teve dificuldade em julgar Glória Negretti. Defendendo, para todos os efeitos, o coronel, ela contou, na verdade, tudo o que sabia
Porque era incapaz de se conter! Incapaz de mentir também! Se não, poderia ter inventado algo infinitamente mais complicado.
Ouvira Sir Lampson pedir a Vladimir que se informasse sobre o paradeiro da Providência. Agora, o comissário se interessava também por essa barcaça, que chegara no domingo de noite, pouco antes da morte de Mary Lampson, vinda de Meaux. E como era um barco de madeira, estava recoberto de resina.
Por que cargas d'água o coronel queria alcançar a Providência7. Que conexão haveria entre o Cruzeiro do Sul e aquele pesado barco, que ia ao passo lento de seus dois cavalos?
Pedalando no cenário monótono do canal, apoiando-se mais e mais nos pedais da bicicleta, Maigret formulava suas teorias, que, de resto, o levavam apenas a conclusões fragmentárias ou absolutamente inverossímeis.
E, todavia, a acusação de Madame Negretti não havia lançado alguma luz sobre o mistério das três pistas?
Dez vezes Maigret tentou reconstituir as idas e vindas dos personagens no curso daquela última noite sobre a qual nada se sabia, senão que Willy Marco fora assassinado.
Cada vez sentia uma falha; tinha a impressão de que faltava um personagem, que não era nem o coronel, nem o morto, nem Vladimir.
Ora, o Cruzeiro do Sul ia agora ao encontro de alguém que estava a bordo da Providência.Alguém que obviamente esteve envolvido nos acontecimentos. Não era possível supor que se tratava de uma pessoa implicada no segundo drama, isto é, no assassinato de Willy, tanto quanto no primeiro?
As distâncias no canal nada representam à noite, podem ser cobertas a bicicleta, por exemplo, ao longo do caminho da sirga...
- O senhor ouviu algo de estranho na noite passada?... Observou qualquer coisa de anormal a bordo da Providência quando ela passou por aqui?
Era uma tarefa ingrata, decepcionante, sobretudo em meio àquela espécie de garoa que começara a cair das nuvens baixas.
- Nada...
A distância aumentava, entre Maigret e o Cruzeiro do Sul, que perdia no mínimo vinte minutos por eclusa. O comissário montava sempre mais pesadamente na sua bicicleta, retomando com obstinação cada parte do seu raciocínio.
Já tinha percorrido quarenta quilômetros quando o vigia da eclusa de Sarry respondeu à sua pergunta.
-Meu cachorro latiu... Imagino que alguma coisa tenha acontecido na estrada... Uma lebre talvez. Dormi de novo, logo em seguida...
- O senhor sabe onde a Providência passou a noite?
Seu interlocutor fez um cálculo mental.
- Espere! Não me admiraria nada que tivesse ido até Pogny... O capitão queria estar hoje à noite em Vitry-le-François...
Duas eclusas ainda! E nada! Maigret tinha de acompanhar os vigias até as portas, pois, à medida que avançava, o tráfego ficava mais pesado. Em Vésigneul, três barcos esperavam a vez. Em Pogny, já eram cinco...
- Barulho, não! - rosnou o guarda dessa última comporta -, mas bem que eu queria saber quem teve a audácia de usar a minha bicicleta!
O comissário enxugou a testa ao entrever uma possível pista. Estava com calor e sem fôlego. Acabava de percorrer cinqüenta quilômetros sem beber sequer um copo de cerveja.
- Onde está a sua bicicleta?
- Abra as adufas você mesmo, François! - gritou o vigia para um barqueiro.
E conduziu Maigret à sua casa. Na cozinha, que ficava ao nível do caminho da sirga e dava para fora, havia uns poucos marujos bebendo o vinho branco que uma mulher lhes servia sem largar o seu bebê.
- O senhor não vai me denunciar, não é! É proibido vender bebidas. Mas todo mundo faz isso. Mais para prestar serviço, na verdade. Ali está ela!
E apontou para um pequeno telheiro sem porta, feito de tábuas, contra o muro do fundo.
- A bicicleta. É da minha mulher, para ser exato. O senhor não sabe, mas o primeiro armazém fica a quatro quilômetros... Digo sempre que é preciso recolher a bicicleta à noite, mas ela acha que suja a casa... Quem a usou foi muito esperto. Eu poderia não ter percebido nada...
"Mas anteontem meu sobrinho, que é mecânico em Reims, veio passar o dia conosco. A correia da bicicleta estava quebrada. Ele a consertou e aproveitou para limpá-la direitinho e azeitá-la...
"Ontem ninguém andou nela. E tínhamos trocado o pneu de trás...
"Pois bem. Esta manhã, a danada estava limpinha, embora tivesse chovido a noite toda. O senhor viu a lama na estrada...
"Só que o pedal da esquerda está torto, e o pneu parece ter feito pelo menos cem quilômetros.
"O senhor pode entender uma coisa dessas? A bicicleta viajou, não há dúvida, e o cara que a trouxe de volta teve o trabalho de
limpá-la..."
- Quais os barcos que pernoitaram nas proximidades?
- Deixe ver... A Madalena deve ter ido para La Chaussée, onde o cunhado do dono tem um café... A Misericórdia pernoitou mais abaixo da minha eclusa...
- Vindo de Dizy?
- Não! É um barco "descedor", vem do Saône... Sobra só a Providência... Essa passou por aqui ontem às sete da noite e foi até Omey, a dois quilômetros, onde há um bom porto.
- O senhor tem uma segunda bicicleta?
- Não. Mas ainda se pode usar essa aí...
- Perdão. Desejaria que a botasse debaixo de chave em algum lugar... Alugue outra, se for preciso. Posso contar com o senhor?
Os barqueiros saíam da cozinha e um deles interpelou o vigia:
- É assim que você recebe os amigos, Désiré?
- Um instante. Estou ocupado aqui com este senhor...
- Onde acha que poderei alcançar a Providência?
- Só depois de um bom pedaço. Ela anda bem. Ficaria surpreso se a pegasse antes de Vitry...
Maigret preparou-se para partir. Voltou sobre seus passos, tirou uma chave inglesa da bolsa de ferramentas e desmontou os dois pedais da bicicleta da mulher do vigia.
Quando seguiu caminho, os pedais, que enfiara nos bolsos, faziam duas saliências no paletó.
O vigia de Dizy tinha lhe dito, brincando:
- Quando não chove em lugar nenhum, chove em duas regiões com toda certeza: aqui e em Vitry-le-François...
Maigret se aproximava dessa cidade e recomeçou, de fato, a chover: uma chuva fina, preguiçosa, dessas que não acabam mais.
O aspecto do canal mudava. Viam-se fábricas ao longo das margens, e o comissário teve de abrir caminho uma vez por entre uma multidão de operárias que saíam do trabalho.
Havia por toda parte barcos que descarregavam ou que esperavam ainda vazios.
E, em torno, pequenas casas típicas de subúrbios, com casinhas para coelhos feitas de tábuas de caixotes e jardins patéticos.
A cada quilômetro, uma fábrica de cimento, uma pedreira, um forno para fabricação de cal. A chuva misturava a poeira branca suspensa no ar à lama do caminho. O cimento amortalhava tudo: os telhados, as macieiras, até mesmo a relva.
Maigret começava a adotar o movimento oscilante da direita para a esquerda e vice-versa do ciclista cansado. Pensava sem pensar. Alinhava idéias que ainda não era possível juntar num feixe sólido. Quando finalmente avistou a eclusa de Vitry-le-François, a noite caía, picotada pelas lanternas brancas de uns sessenta barcos
em fila indiana.
Alguns conseguiam ultrapassar os outros e punham-se de través. E quando acontecia de vir uma barcaça em sentido contrário, ouviam-se gritos, imprecações, trocavam-se mensagens:
-Você aí, do Simoun! Sua cunhada, que estava em Chalon-sur-Saône, mandou dizer que vai encontrar você no canal de Bourgogne... Estão esperando você para o batizado...
O Pierre manda lembranças...
Contra as portas da eclusa recortavam-se umas dez silhuetas atarefadas.
E por cima de tudo, um nevoeiro azulado, chuvoso, em meio ao qual era possível distinguir cavalos vagos e imóveis, homens que iam de um barco a outro.
Maigret lia os nomes na popa das barcaças. Uma voz gritou-lhe:
- Bom dia, senhor!
Levou alguns segundos para reconhecer o capitão da Eco Três.
- Já terminou seu conserto?
- Era pouca coisa! Meu empregado é um imbecil... O mecânico que mandei vir de Reims consertou a coisa em cinco minutos.
- O senhor viu a Providência?
- Está à frente, mas passaremos antes dela. Por causa do engarrafamento, a eclusa vai trabalhar a noite toda e talvez amanhã de noite também... Quando se pensa que há pelo menos sessenta barcos aí e que sempre chegam outros... Em princípio, as barcaças a motor têm preferência sobre as que são puxadas a cavalo... Dessa vez
decidiram que vão passar alternadamente cavalos e motores...
E o homem, simpático, fisionomia aberta, apontou:
- Veja! Lá bem em frente ao guindaste... Reconheço a barra do leme, pintada de branco...
Passando diante das barcaças, Maigret podia ver, através das escotilhas, pessoas comendo ao clarão amarelo dos lampiões de querosene.
Maigret encontrou o dono da Providência no cais, empenhado numa grande discussão com outros marinheiros:
- Claro que as barcas a motor não devem ter mais direitos que as outras. Tomando como exemplo a Maria, nós levamos um bom quilômetro de vantagem sobre ela num canal de cinco, mas com esse sistema ela nos passa à frente! Mas vejam, é o comissário!
E o homenzinho estendia a mão, como a um camarada.
- Então, o senhor ainda está conosco? A patroa está a bordo. Vai ficar contente em revê-lo. Diz que não pode haver policial melhor.
No escuro, viam-se luzir as pontas acesas dos cigarros, e as lanternas pareciam tão próximas uma das outras que parecia impossível qualquer manobra.
Maigret foi ver a robusta belga, que coava sopa e enxugou a mão no avental antes de estendê-la.
- O senhor já pegou o assassino?
- Quem me dera. Vim pedir mais algumas informações à senhora.
- Pois sente-se. Um golezinho?
- Não, obrigado!
- Sim, obrigado. Com um tempo desses, não faz mal a ninguém. O senhor veio de bicicleta desde Dizy?
- Isso mesmo, de Dizy!
- Mas são 68 quilômetros!
- Seu barqueiro está aí?
- Deve estar brigando na eclusa. Querem tomar a nossa vez e já perdemos muito tempo aqui, não podemos permitir uma coisa dessas.
- Ele tem bicicleta?
- Quem, Jean? Não...
E riu. Depois explicou, retomando o seu trabalho
- Não posso imaginá-lo montado numa bicicleta, com suas pernas curtas. Meu marido tem uma, mas há um ano que não a usa, acho até que os pneus estão furados.
- Vocês pernoitaram em Omey?
- Sim. A gente procura sempre fundear num lugar onde seja fácil de conseguir provisões. Porque basta que a gente tenha a desgraça de parar em algum lugar durante o dia para que algum barco apareça e passe à frente.
- A que horas chegaram?
- A essa mesma hora, aproximadamente... Nós pensamos mais em termos de sol que de relógio, entende? Aceita mais um pouquinho? É genebra, que trazemos conosco da Bélgica.
- Foram à mercearia?
- Sim, enquanto os homens tomavam o aperitivo... Devia ser um pouco mais de oito da noite quando nos deitamos.
- Jean estava com os animais?
- E onde mais estaria? É só com os seus animais que ele se sente bem...
- Ouviram algum ruído durante a noite?
- Nada de nada... Às três horas, como de hábito, Jean veio preparar o café. É o nosso costume. Depois partimos.
- Não observaram nada de extraordinário?
- O que quer dizer? O senhor não suspeita do velho Jean, espero? Veja lá, ele tem um ar meio esquisito, mas é só quando a gente não o conhece bem. Quanto a nós, há oito anos que estamos juntos. Para o senhor ter uma idéia, se ele fosse embora agora, a Providência
não seria mais a mesma.
- Seu marido dorme com a senhora?
Ela riu outra vez. E como Maigret estava perto, deu-lhe uma cotovelada nas costelas.
- E como! Acha que nós dois estamos tão velhos assim?
- Posso dar uma volta pela estrebaria?
- Se assim quiser... Apanhe a lanterna que está no convés. Os cavalos ficaram de fora, porque pelo menos esta noite temos de passar aqui. Mas uma vez em Vitry, estaremos tranqüilos. A maior parte dos barcos toma o canal do Marne ao Reno... Para o Saône, é mais calmo. Exceto pelo túnel, de oito quilômetros, que esse sempre me dá medo...
Maigret dirigiu-se sozinho para o meio da barcaça, onde ficava a estrebaria. Apanhando a lanterna que servia também para a navegação, esgueirou-se nos domínios de Jean, impregnados de um odor de excremento e couro.
Mas em vão chafurdou por ali durante um quarto de hora, ouvindo todo o tempo a conversação que prosseguia, no cais, entre o dono da Providência e os barqueiros.
Quando chegou pouco depois à eclusa, onde, para tirar o atraso, todo mundo trabalhava ao mesmo tempo, numa barulheira de manivelas enferrujadas e água espumante, divisou o barqueiro numa das portas, com o chicote enrolado no pescoço como um colar. Manobrava uma das adufas.
Vestia, como antes em Dizy, um terno puído de veludo e tinha na cabeça um velho chapéu de feltro que perdera a fita havia muito tempo.
Uma barcaça deixava o espaço entre as duas comportas, avançando aos solavancos, pois não havia outra maneira de passar por entre toda aquela massa de barcos amontoados.
As vozes, que se interpelavam de um barco para outro, eram roucas e irritadas, e as fisionomias, que às vezes um fósforo iluminava, pareciam todas profundamente marcadas pela fadiga.
Toda essa gente viajava desde as três ou quatro horas da madrugada e sonhava apenas com a sopa que os esperava e com os beliches em que mergulhariam depois da comida.
Mas queriam primeiro passar pela eclusa engarrafada, a fim de começar em condições favoráveis a etapa do dia seguinte.
O vigia ia e vinha, arrancando de passagem os papéis que os barqueiros lhe estendiam, correndo ao escritório para assiná-los e carimbá-los, e enfiando no bolso, sem olhar, as gorjetas que lhe davam.
- Desculpe...
Maigret tocara o braço do barqueiro, que se voltou lentamente, olhando-o com olhos que quase não se podia ver debaixo do chumaço das sobrancelhas espessas.
- Você tem outras botas além dessas que está usando?
Jean pareceu não compreender imediatamente. Seu rosto ficou mais enrugado ainda. Olhou para os próprios pés com assombro.
Por fim, sacudiu a cabeça, tirou o cachimbo da boca e murmurou apenas:
- Outras?
- Você só tem esse calçado aí?
Um sinal afirmativo, vagaroso, da cabeça.
- Sabe andar de bicicleta?
Algumas pessoas se acercaram, intrigadas por aquela conversa.
- Venha por aqui - disse Maigret. - Preciso de você.
O barqueiro acompanhou-o, na direção da Providência, amarrada a menos de duzentos metros. Ao passar pelos seus cavalos, que estavam parados, de cabeça baixa e flancos brilhantes de chuva, ele acariciou o pescoço do mais próximo.
- Suba comigo a bordo...
O dono, miúdo, magrinho, tinha o corpo inclinado sobre a extremidade de uma grande vara plantada no leito do canal e empurrava seu barco na direção da ribanceira, para permitir a passagem de uma barcaça que descia.
Viu os dois homens irem em direção à estrebaria, mas não tinha tempo para ocupar-se deles.
- Você dormiu aqui a noite passada?
Um grunhido, que podia significar qualquer coisa.
- A noite inteira? Não tomou emprestada uma bicicleta do vigia de Pogny?
O barqueiro tinha o ar infeliz de um simplório com quem alguém brinca maldosamente ou de um cão que jamais foi castigado e no qual, de repente, alguém bate sem motivo.
Ele empurrou para trás o chapéu, coçou a cabeça coberta de cabelos brancos, duros como uma crina.
- Tire as botas.
O homem não se moveu, mas olhou para a margem, onde se podia ver as pernas dos cavalos. Um deles relinchou, como se entendesse que o barqueiro estava em dificuldades.
- As botas. Vamos... Depressa!
E juntando gesto à palavra, Maigret fez com que Jean se sentasse numa prancha que corria ao longo de uma das paredes do estábulo.
Só então o velho se tornou submisso e, olhando com desaprovação para o seu algoz, pôs-se a remover uma das botas.
Não usava meias, mas enrolava nos pés e nos tornozelos apertadas tiras de pano embebidas em sebo, que pareciam inseparáveis da pele.
A lanterna lançava apenas uma luz mortiça. O dono, que terminara sua manobra, veio agachar-se no convés para ver o que estava acontecendo no estábulo.
Enquanto Jean, resmungão, com o semblante contrariado, levantava a outra perna, Maigret limpava com palha a sola da bota que tinha na mão.
Depois, tirou do bolso o pedal esquerdo da bicicleta e aplicou-o ao calçado.
Era um espetáculo estranho, o velho aturdido contemplando os próprios pés. Suas calças, que pareciam ter sido feitas para homem ainda menor, ou cujas bainhas haviam sido recortadas, mal chegavam aos tornozelos.
E as faixas de pano untadas de sebo tinham uma cor acinzentada, crivadas de fiapos de palha e outras sujeiras.
Maigret, junto da lâmpada, comparava o pedal, que tinha uns poucos dentes quebrados, com as marcas quase invisíveis no couro.
- Você se apropriou, na noite passada, da bicicleta do vigia de Pogny! - acusou vagarosamente, sem tirar os olhos dos dois objetos.
- Até onde foi?
- Ei! Providência, avance! O Estorninho cedeu a vez, vai passar a noite na margem...
Jean voltou-se para as pessoas que se agitavam do lado de fora, depois para o comissário.
- Pode ir fazer a eclusa - disse Maigret. - Vamos, calce as botas.
O dono já estava a postos. A mulher se apressou.
- Jean! Os cavalos! Se perdemos nossa vez..
O barqueiro enfiou as botas, subiu para o convés e pôs-se a chamar numa voz curiosa:
- Ho! Huê... Huê...
E os cavalos resfolegaram, e ergueram-se e marcharam, enquanto o homem saltava para terra e seguia devagar atrás deles, com o chicote ainda enrolado ao pescoço.
- Ho! Huê!
Enquanto o marido impelia o barco com a vara grande, a mulher apoiava-se com todo o seu peso na barra para evitar colisão com a barcaça que vinha na direção oposta e de que só era possível distinguir a proa arredondada e o halo da lanterna instalado à ré.
O vigia, impaciente, gritava:
- Olá... da Providencial Quando é que pretendem se mexer?
Mas a barcaça já deslizava sem ruído na água escura Bateu três vezes contra a amurada de pedra antes de se enfiar na eclusa, que mal continha toda a sua largura.
CAPITULO Oitavo
A SALA 10
DE HÁBITO, NAo SE abrem ao mesmo tempo as adufas de uma comporta, mas uma depois da outra, e pouco a pouco, a fim de evitar abalos que põem em risco as amarras do barco.
Mas havia sessenta barcaças à espera. Os marinheiros que aguardavam a vez ajudavam de boa vontade na manobra, e o vigia se limitava a correr de um lado para outro com os papéis.
Maigret estava no cais, segurando a bicicleta e seguindo com o olhar as sombras que se agitavam no escuro. Os dois cavalos tinham parado por conta própria, a cinqüenta metros das portas à montante. Jean virava uma das manivelas.
A água se engolfou na eclusa com um barulho torrencial. Era visível, muito branca, nos estreitos espaços deixados de um lado e de outro da Providência.
Ora, no momento em que atingia o nível máximo, houve um grito abafado, seguido por um baque à proa e, depois, por um redemoinho confuso.
Pode-se dizer que o comissário adivinhou o drama antes de propriamente entendê-lo. O barqueiro já não estava em seu lugar, junto à porta da eclusa. E os outros corriam ao longo da amurada. Todo mundo gritava ao mesmo tempo.
Havia só duas lâmpadas iluminando a cena: uma no meio da ponte levadiça que precedia a comporta, outra na barcaça, que continuava subindo rapidamente.
- Fechem as adufas!
- Abram as portas!
Alguém passou com um imenso cabo, que acertou Maigret no rosto.
Alguns barqueiros vinham correndo de longe. O vigia apareceu com pânico estampado no rosto, à idéia de ser responsabilizado pelo acidente.
- O que foi?
- O velho...
Dos dois lados da barcaça, não havia, entre borda e margem, mais do que trinta centímetros de água livre. Ora, essa água, que vinha das adufas, corria a toda velocidade pela estreita passagem, voltava sobre si mesma, borbulhava.
Houve manobras desastradas. Alguém abriu por engano uma das adufas à jusante, ouviu-se a porta que ameaçava dos gonzos, e o vigia teve de acudir depressa.
Só mais tarde o comissário ficou sabendo que toda a calha poderia ter ficado inundada e cinqüenta barcaças avariadas.
- Pode vê-lo?
- Há alguma coisa escura lá na frente...
A barcaça subia sempre, mais devagar agora. Das quatro eclusas, três já tinham sido fechadas. Mas a todo momento, o barco se chocava com violência contra a parede da comporta, esmagando possivelmente o barqueiro.
- Qual é a profundidade?
- Pelo menos um metro sob o barco...
Era horrendo. Ao clarão muito débil da lanterna do estábulo, via-se a mulher belga correndo em todas as direções com uma bóia na mão.
Gritava, aterrada:
- Ele não sabe nadar!
E Maigret ouviu uma voz grave, que dizia perto dele:
- Foi melhor assim. Não sofrerá tanto...
Aquilo durou um quarto de hora. Três vezes acreditou-se ver um corpo, que emergia, mas em vão atiravam-se os salva-vidas.
Devagar a Providência saiu da eclusa, e um velho barqueiro resmungou:
- Aposto o que quiserem como está preso debaixo da barra do leme. Já vi isso uma vez em Verdun...
Enganava-se. Mal a barcaça se deteve cinqüenta metros abaixo, os homens que cutucavam o fundo junto das portas do rio pediram ajuda.
Foi preciso trazer um bote. Sentia-se que havia alguma coisa debaixo d'água, a um metro de profundidade. E no momento em que alguém se decidiu a mergulhar, embora sua mulher, com lágrimas nos olhos, implorasse que não fosse, um corpo veio à tona de repente.
Içaram-no. Uma dúzia de mãos ao mesmo tempo agarraram o paletó de veludo que estava rasgado, pois pegara em uma das cavilhas de ferro da porta.
O resto foi um pesadelo. O telefone tocava em vão na casa do vigia. Um menino foi de bicicleta chamar um médico.
Mas parecia inútil. Mal depuseram na margem o corpo do velho barqueiro, imóvel e como que já sem vida, um outro barqueiro tirou o paletó, ajoelhou-se ao lado do formidável peito do afogado e começou a fazer respiração boca a boca.
Alguém trouxe a lanterna. Deitado, o corpo parecia menor e mais atarracado do que nunca. O rosto, sujo de lodo, pingando água, era lívido.
- Ele está se mexendo! Juro que está se mexendo!
Não havia confusão. O silêncio era tal que a menor palavra ressoava como numa catedral. E todo o tempo se ouvia, no fundo, o jato d'água de uma adufa malfechada.
- Então? - perguntou o vigia que voltava.
- Está vivo... Mas...
- Precisamos de um espelho...
O dono da Providência correu para buscar um a bordo. O homem que praticava a respiração artificial estava alagado de suor, e um outro tomou seu lugar, apertando mais forte o afogado.
Quando foi anunciado o médico, que chegava de automóvel por uma estrada secundária, todo mundo podia ver que o peito do velho Jean subia e descia.
Alguém lhe retirara o paletó. A camisa aberta deixava à mostra um peito tão peludo quanto o de qualquer animal. Debaixo do mamilo direito, havia uma longa cicatriz, e Maigret pensou ver no ombro uma tatuagem.
- O barco seguinte! - gritou o vigia, fazendo um alto-falante com as mãos em concha. - Afinal de contas, ninguém pode fazer nada para ajudar...
E um marujo se afastou a contragosto, chamando a mulher que, com outras, lamentava-se a alguma distância.
- Espero que não tenha feito a tolice de desligar o motor, hein?
O médico mandou os espectadores recuarem e franziu o cenho logo que apalpou o tórax.
- Ele está vivo, não é? - perguntou com orgulho o primeiro que o socorrera.
- Polícia Judiciária! - interveio Maigret. - É grave?
- A maior parte das costelas foram quebradas... Está vivo, é verdade... Mas será um espanto se viver por muito tempo. Ele foi apanhado entre dois barcos?
- Provavelmente entre um barco e a eclusa.
- Sinta isto...
E o médico fez com que o comissário tateasse o braço esquerdo, quebrado em dois lugares.
- Temos uma padiola?
O moribundo soltou um suspiro.
- Vou dar uma injeção, em todo caso... Mas que alguém prepare uma padiola o mais depressa possível.
O hospital fica a quinhentos metros...
Havia uma padiola na eclusa, de acordo com o regulamento. Mas estava no sótão, onde logo se viu pela clarabóia a chama de uma vela movendo-se.
A mulher belga soluçava, longe de Maigret, a quem olhava com reprovação.
Dez homens levantaram o barqueiro, que soltou um novo gemido. Depois, uma lanterna afastou-se na direção da estrada, aureolando um grupo compacto, enquanto uma barcaça a motor, de luzes acesas, verdes e vermelhas, dava três apitos e ia fundear em plena cidade, para ser a primeira a sair no dia seguinte.
Enfermaria 10. Foi por puro acaso que Maigret viu o número. Havia só dois pacientes lá, um dos quais urrava como um bebê.
O comissário passou a maior parte do tempo andando de um lado para o outro no corredor ladrilhado de branco, por onde as enfermeiras passavam correndo, transmitindo ordens umas às outras à meia-voz.
Na sala 8, em frente, cheia de mulheres, falava-se do novo doente e faziam-se prognósticos.
- Se o colocaram na enfermaria 10...
O médico era um homem gorducho, que usava óculos de tartaruga. Passou duas ou três vezes no seu uniforme branco, sem dirigir a palavra a Maigret.
Eram quase onze horas quando finalmente veio falar com o comissário.
- O senhor gostaria de vê-lo?
Era uma visão desanimadora. O comissário mal pôde reconhecer o velho Jean, que haviam barbeado a fim de tratar dois cortes que recebera na fronte e na bochecha.
Jazia ali, muito limpo, no seu leito alvíssimo, à luz neutra de uma lâmpada de vidro fosco.
O médico ergueu o lençol.
- Olhe só essa carcaça! O homem tem a ossatura de um urso... Jamais vi um esqueleto igual! Como foi que conseguiu ficar assim arrebentado?
- Ele caiu da porta no momento em que as adufas foram abertas.
- Entendo... Ficou provavelmente comprimido entre o paredão e a barcaça. O peito está afundado, de cima abaixo... As costelas cederam...
- E o resto?...
- Teremos de examiná-lo amanhã, meus colegas e eu, se viver até lá... Um passo em falso e podemos matá-lo...
- Ele recobrou a consciência?
- Para dizer-lhe a verdade, não sei! Talvez até seja essa a coisa mais estranha da história toda... Há pouco, quando eu sondava as feridas, tive a nítida impressão de que ele abriu os olhos bem abertos e que me acompanhava com o olhar... Mas bastava que eu o olhasse para que cerrasse as pálpebras...
Não delirou, porém... Tem um estertor, de vez em quando, mas é tudo...
- E o braço dele?
- Sem gravidade. A fratura dupla já foi tratada. Mas não se pode reparar um tórax com a facilidade com que se repara um úmero... De onde ele é?
- Não sei.
- Pergunto isso porque ele tem algumas tatuagens muito curiosas... Eu vi as dos batalhões da África, mas estas não têm nada a ver. Poderei mostrá-las ao senhor amanhã, quando terei de tirar o gesso para
o exame.
O porteiro veio anunciar que o doente tinha visitas. Insistiam em
vê-lo. Maigret foi pessoalmente à sala de espera e encontrou o casal da Providência, marido e mulher tinham vestido suas melhores roupas para a ocasião.
- Podemos vê-lo, não é, comissário? Foi culpa sua, como o senhor mesmo sabe! O senhor o deixou perturbado com suas histórias. Ele está melhor?
- Um pouco melhor. Muito pouco. Os médicos vão dar um prognóstico amanhã.
- Eu gostaria de vê-lo. Nem que fosse de longe. Ele era por assim dizer parte do barco!
Ela não dizia da família, mas do barco. E talvez fosse isso o mais tocante.
O marido desaparecia por trás dela, desconfortável num terno azul-marinho, com o pescoço magro nadando num colarinho postiço de plástico.
- Recomendo que não façam ruído...
Eles o contemplaram do corredor, de onde apenas se podia perceber uma forma confusa sob as cobertas, porções cor de marfim no lugar da face, esparsos cabelos brancos...
Dez vezes a belga esteve a ponto de correr até o leito.
- Diga: se a gente pagasse qualquer coisa, ele não seria mais bem tratado?
Ela não ousava abrir a bolsa, mas mexia nervosamente com ela.
- Há hospitais, não é, onde pagando... Os outros pacientes não são contagiosos, não é?
- Vocês estão em Vitry?
- Claro que não vamos embora sem ele! A carga que se dane. A que horas podemos voltar amanhã cedo?
- Às dez horas! - disse o médico, que ouvia tudo com impaciência.
- Há alguma coisa que possamos trazer para ele? Uma garrafa de champanhe? Uvas espanholas?
- Nós daremos tudo o que ele precisar... - disse o médico, enquanto já os encaminhava para a portaria.
Aí chegando, a mulher, com um gesto furtivo, tirou uma nota de dez francos da bolsa e botou-a na mão do porteiro, que a olhou, atônito.
Maigret foi dormir à meia-noite, depois de ter telegrafado a Dizy pedindo que lhe mandassem qualquer mensagem que tivesse sido recebida.
Soube, no último momento, que o Cruzeiro do Sul, depois de ultrapassar a maioria das barcaças, tinha chegado a Vitry-le-François e lançado âncora à retaguarda da fila de espera.
O comissário reservou um quarto no Hotel do Marne, na cidade. Era bastante longe do canal e nada havia ali que lembrasse a atmosfera dos últimos dias.
Os hóspedes, que jogavam cartas, eram todos caixeiros-viajantes.
Um deles, que chegou depois dos outros, contou:
- Parece que há um afogado na eclusa...
- Você completa a mesa? Lamperrière já está perdendo uma fortuna... O sujeito morreu?
- Não sei...
E foi tudo. A dona do estabelecimento dormitava no caixa. O garçom espalhava serragem de madeira no chão e alimentava a estufa para a noite.
Havia apenas um banheiro, e a banheira já perdera parte do esmalte. Nem por isso Maigret deixou de usá-la às oito da manhã seguinte. Depois mandou que o garçom fosse comprar uma camisa e um colarinho duro.
À medida que o tempo passava, ele se impacientava. Tinha pressa em ver de novo o canal. Quando ouviu uma sirene, perguntou:
- É para a eclusa?
- Para a ponte levadiça. Há três na cidade. Fazia um dia cinzento e ventava. Ele não soube achar o caminho do hospital e teve de perguntar a direção várias vezes, porque todas as ruas levavam-no invariavelmente à praça do mercado.
O porteiro reconheceu-o e foi ao seu encontro, exclamando:
- Quem diria, não é mesmo?
- O quê? Ele está vivo? Morreu?
- Quer dizer que não sabe? O diretor telefonou há pouco para o seu hotel!
- Diga de uma vez...
- Pois bem, ele se foi. Bateu as asas! O médico jura que é impossível, que ele não poderia percorrer nem cem metros no estado em que se encontrava... Mesmo assim, não está mais lá...
O comissário ouviu vozes no jardim, atrás do edifício, e correu na mesma direção.
Encontrou um velho, que ainda não tinha visto, e que era o diretor do hospital. Estava falando em um tom severo com o médico da véspera e uma enfermeira de cabelos ruivos.
- Eu juro! - repetia o médico. - O senhor sabe tão bem quanto eu do que se trata. E dez costelas quebradas ainda não é tudo... Isso sem falar no afogamento, na comoção...
- Por onde saiu? - perguntou Maigret. Mostraram-lhe a janela, que era baixa, a dois metros, se tanto, do chão. Na terra, viam-se as marcas de dois pés nus além de um longo rastro, como se o barqueiro tivesse caído deitado por terra logo em seguida.
- Aí está! A enfermeira, Srta. Berthe, passou a noite no plantão, como sempre. Nada ouviu. Por volta de três horas, teve de atender um paciente na sala 8 e olhou se tudo estava em ordem na 10. As lâmpadas
estavam apagadas, tudo estava calmo. Não pode dizer se o nosso homem se encontrava ainda no seu leito...
- Os dois outros doentes?
- Um deles deve sofrer uma trepanação de emergência... Estamos à espera do cirurgião. O outro dormiu a noite inteira sem acordar.
Maigret acompanhou com os olhos o longo rastro, que ia até um canteiro. Uma pequena roseira fora pisada.
- O portão fica sempre aberto?
- Isso aqui não é uma prisão! - respondeu o diretor. - Como vamos prever que um doente vai saltar pela janela? Só a porta do edifício estava fechada, como de costume...
Do lado de fora, seria inútil procurar pegadas. Era uma rua calçada. Entre duas casas, via-se a linha dupla das árvores que margeavam o canal.
- O fato é - disse o médico - que eu esperava encontrá-lo morto esta manhã. Mas como não havia nada a fazer... Foi por isso que mandei botá-lo na sala 10...
Estava agressivo. Não digerira ainda a repreensão do diretor.
Maigret deu algumas voltas pelo jardim como um cavalo de circo e, de repente, erguendo a aba do chapéu em sinal de despedida, dirigiu-se para a eclusa.
O Cruzeiro do Sul preparava-se para entrar nela. Vladimir, com sua destreza de verdadeiro marujo, lançava a amarra à abita mais próxima e fazia estacar o barco.
Quanto ao coronel, metido num impermeável, quepe branco na cabeça, permanecia de pé, impassível, diante da pequena roda do leme.
- Portas! - gritou o vigia.
Não havia mais que vinte barcos à espera de sua vez de passar.
- É a vez deles? - perguntou Maigret apontando o iate.
- É e não é... Se o iate for considerado um motor, tem preferência sobre as estrebarias. Mas como barco de recreio... Bah! Ele passa tão poucas vezes que não fazemos questão do regulamento... E como estão pagando os barqueiros...
Os barqueiros é que operavam as adufas.
- E a Providência?.
- Atrapalhava. Estava atravessada no caminho. Esta manhã, foi
postar-se no cotovelo do canal, em frente à segunda ponte... O senhor tem notícias do velho? É uma história que pode me custar caro... Mas como fazer de outra maneira? A rigor, tenho de operar sozinho a comporta. Mas se o fizesse haveria diariamente cem barcos
à espera... Quatro portas! Dezesseis adufas! E sabe quanto me pagam?
O vigia teve de se afastar um momento, porque Vladimir lhe apresentava os papéis e uma gorjeta.
Maigret aproveitou a interrupção para sair caminhando ao longo do canal. Na volta, viu a Providência, que a essa altura já reconhecia de longe entre dezenas de barcaças.
Saía um pouco de fumaça da chaminé. Não havia ninguém no convés e todas as escotilhas e vigias estavam fechadas.
Ele quase subiu pela prancha de desembarque de ré, que dava acesso ao alojamento dos tripulantes.
Mas mudou de idéia e tomou a passarela mais larga, usada para a entrada dos cavalos.
Um dos painéis que cobriam o estábulo fora removido. A cabeça de um dos animais apontava para ele, respirando ao vento.
Olhando para dentro, o comissário distinguiu, atrás das patas do cavalo, uma forma sombria, estendida na palha. E junto dela a mulher belga, acocorada, com uma tigela de café na mão.
Numa voz estranhamente maternal e doce, ela murmurava:
- Vamos, Jean! Beba enquanto está quente... Isso lhe fará bem, seu velho maluco... Quer que eu levante a sua cabeça?
Mas o homem deitado ao lado dela não se movia, olhava o céu.
E contra o céu recortava-se a cabeça de Maigret, que ele não podia deixar de ver.
O comissário teve a impressão de que no rosto coberto de esparadrapos dançava um sorriso satisfeito, irônico, quase agressivo.
O velho barqueiro tentou levantar a mão para empurrar a vasilha de café que a mulher tentava levar-lhe aos lábios; mas a mão caiu sem força, toda enrugada, calosa, picotada de pequenos pontos azuis, vestígios talvez de velhas tatuagens.
Capítulo nono
O MÉDICO
- O SENHOR ESTÁ VENDO? Ele se arrastou para casa como um cão ferido...
Teria a mulher idéia do estado do ferido? Fosse como fosse, não se afobava. Estava tão calma como se tratasse de uma criança com gripe.
- Café não pode fazer mal, não é? Mas não quer tomar nada... Devia ser quatro da madrugada quando eu e meu marido acordamos sobressaltados com um tremendo barulho a bordo. Apanhei o revólver, mandei que ele viesse atrás de mim com a lanterna...
"Acredite ou não, Jean estava lá, mais ou menos como o senhor o está vendo agora... Deve ter caído da coberta. São quase dois metros...
"No começo: não se podia ver nada. Pensei que estivesse morto.
"Meu marido quis chamar os vizinhos para que nos ajudassem a botá-lo na cama. Mas Jean percebeu. Começou a apertar minha mão com força... Se agarrava a ela como se disso dependesse sua vida.
"Ele fungava...
"Então compreendi. Afinal está conosco há oito anos. Não pode falar, mas acho que ouve o que estou dizendo. Verdade, Jean? Você tem dores?"
Era difícil saber se as pupilas do ferido brilhavam porque ele compreendia o que ela dizia ou se porque estava com febre.
A mulher tirou um pedaço de palha que estava cutucando a orelha dele.
- Para mim, o senhor sabe, a vida consiste na minha casa, nas minhas panelas de cobre, nos meus poucos móveis... Creio que se me dessem um palácio me sentiria infeliz...
"Para Jean, a vida é o estábulo... E os seus animais! Pois veja o senhor: há dias, naturalmente, nos quais a gente não viaja, descarrega apenas. Jean não tem nada para fazer. Poderia ir ao bar... Pois não vai! Dorme neste lugar aqui. E espera que entre por uma fresta o primeiro raio de sol..."
Maigret pôs-se a pensar no lugar em que se encontrava o barqueiro, viu o tabique revestido de uma camada de resina, o chicote pendurado num prego torto, a caneca de estanho suspensa em outro, um pedaço de céu entre os painéis do alto e, à direita, os lombos musculosos dos cavalos.
Desprendia-se desse conjunto um calor animal, uma vida múltipla, espessa, que apertava a garganta como os vinhos ásperos de certas montanhas.
- Ele não poderia ser deixado aqui?
Ela fez sinal ao comissário de que a seguisse. A eclusa funcionava no mesmo ritmo do dia anterior.
E, em volta, eram as ruas da cidade com sua animação estranha ao canal.
- Ele vai morrer de qualquer maneira, não é verdade? O que foi que fez? O senhor poderia dizer... Mas o senhor tem de admitir que eu não posso falar... Aliás, nada sei... Uma vez, uma só, meu marido surpreendeu Jean com o peito nu... E viu as tatuagens dele... Não são de marinheiro. Imaginamos o que o senhor também imaginou...
"Penso que passei a gostar dele mais ainda. Disse comigo mesma que ele não era sem dúvida o que parecia ser, que estava se escondendo...
"Mas eu não o interrogaria nem por todo o ouro do mundo... O senhor acha que ele matou a mulher? Pois, se o fez, garanto ao senhor, ela deve ter merecido...
"Jean... Jean é..."
Buscou em vão uma palavra que exprimisse o seu pensamento.
- Bem... Meu marido está se levantando. Botei-o para dormir porque nunca foi muito bom do peito... O senhor acha que se eu fizer uma sopa bem forte...
- Os médicos virão. Enquanto isso, seria melhor...
- Precisam mesmo vir? Vão fazer ele sofrer, estragar os últimos momentos que...
- É indispensável.
- Ele está bem aqui conosco... Posso deixar o senhor aqui um momento? Não irá atormentá-lo?
Maigret esboçou um sinal de cabeça, tranquilizando-a. Voltou, depois, ao estábulo e tirou do bolso uma lata que continha uma pequenina almofada impregnada de tinta oleosa.
Ainda era impossível saber se o barqueiro tinha ou não consciência. Suas pálpebras estavam entreabertas. Filtravam um olhar neutro, sereno.
Quando, porém, o comissário levantou a mão direita do ferido e apoiou os dedos dele, um depois do outro, na almofada, teve a impressão de que, pelo espaço de um segundo apenas, a sombra de um sorriso surgiu de novo nos seus lábios.
Tomou as impressões digitais numa folha de papel, observou por um momento o moribundo, como se esperasse alguma coisa, lançou um último olhar às paredes, às ancas dos animais já indóceis, e saiu.
Junto do timão, o dono e a mulher tomavam o seu café da manhã, embora atentos à sua aproximação. A menos de cinco metros da Providência, estava amarrado o Cruzeiro do Sul, sem ninguém à vista.
Na véspera, Maigret deixara a bicicleta na eclusa, onde a encontrou. Dez minutos depois, estava nos escritórios da polícia e mandava um agente de motocicleta a Épernay com a missão de transmitir as impressões digitais a Paris por belinograma.
Quando voltou para bordo da Providência, estava acompanhado de dois médicos do hospital, com os quais logo se viu obrigado a discutir.
Os médicos queriam levar de volta o ferido. A mulher, alarmada, lançava a Maigret olhares suplicantes.
- Os senhores podem curá-lo?
- Não. O peito está afundado. Uma costela perfurou o pulmão direito.
- Quanto tempo tem de vida?
- Qualquer outro já estaria morto. Uma hora, ou cinco...
- Então, deixem que ele fique!
O velho não se mexera, não tivera sequer um frêmito. E como Maigret passava diante da mulher, ela lhe tocou a mão timidamente, num gesto de agradecimento.
Os médicos atravessaram a passarela com ar descontente.
- Deixar que morra assim num estábulo! - resmungou um deles.
- Ah! Pois se viveu num estábulo...
O comissário pôs um agente de guarda nas proximidades da barca e do iate, com a missão de adverti-lo se algo acontecesse.
Da eclusa, pôs-se em comunicação, por telefone, com o Café de la Marine, em Dizy, onde lhe disseram que o inspetor Lucas acabava de passar por lá, alugara um carro em Épernay e estava a caminho de Vitry-le-François.
Seguiu-se uma hora que custou a passar. O dono da Providência aproveitou-se dessa pausa para alcatroar o bote que tinha a reboque. Vladimir, por sua vez, lustrava os metais dourados do Cruzeiro do Sul.
Quanto à mulher, ia constantemente da cozinha para o estábulo. Uma vez levou um travesseiro de uma alvura extraordinária, de outra uma tigela com algum líquido fumegante, sem dúvida o caldo que insistira em preparar.
Pelas onze horas, apareceu Lucas no Hotel de la Marine, onde Maigret o esperava.
- Como vai, meu velho?
- Bem... O senhor está cansado, chefe...
- Suas investigações?
- Pouca coisa... Em Meaux nada, a não ser que o iate provocou um pequeno escândalo... Os marinheiros não podiam dormir por causa da música e da cantoria, e quiseram quebrar tudo...
- A Providência estava lá?
- Carregou a menos de vinte metros do Cruzeiro do Sul. Mas nada foi observado em particular.
- E em Paris?
- Revi as duas moças. Confessaram que não foi Mary Lampson quem lhes deu o colar, mas Willy Marco. Confirmaram-me isso no hotel, cujos empregados reconheceram a fotografia dele e onde ninguém viu sombra de Mary Lampson. Não estou seguro, mas acho que Lia Lowenstein conhecia Willy mais intimamente do que diz e que já o ajudara
em Nice, certa vez.
- E em Moulins?
- Nada! Visitei a padeira que é a única Marie Dupin por lá. Uma excelente mulher, aliás, sem malícia nenhuma, que não entende o que está acontecendo e que está lamentando porque teme que a história toda venha a prejudicar-lhe a reputação. A certidão de nascimento tem oito anos. Ora, há um novo tabelião há três, o antigo morreu no
ano passado. Deram uma busca nos arquivos e nada foi encontrado com relação a esse papel.
Depois de um silêncio, Lucas perguntou:
- E o senhor?
- Não sei ainda... Nada... Ou tudo... Coisa, aliás, que se decidirá de uma hora para a outra. Quais são os comentários em Dizy?
- Dizem que, se o Cruzeiro do Sul não fosse um iate, não o teriam deixado ir; e lembram também que o coronel já não estava na primeira mulher...
Maigret calou-se e levou seu companheiro pelas ruas da cidadezinha até a companhia telefônica.
- Por favor... O Departamento de Identificação em Paris...
O belinograma com as impressões digitais do barqueiro já devia ter chegado à chefatura há umas duas horas. Aí, era uma questão de sorte. Podiam ser identificadas logo, entre as oitenta mil do arquivo, mas o trabalho podia durar também horas e horas.
- Apanhe uma extensão, meu velho. Alô? Quem está no aparelho? É você, Benoít? Aqui é Maigret. Receberam minha comunicação? O que diz? Você fez pessoalmente a busca? Espere um momento...
Saiu da cabine e foi até o balcão.
-Vou precisar talvez dessa linha por muito tempo. Que não cortem a ligação...
Quando retomou o aparelho, tinha o olhar mais animado.
- Sente-se, Benoít, porque você vai ler o dossiê inteiro. Lucas, que está aqui ao lado, vai tomar nota. Comece.
Podia ver tão claramente o seu interlocutor quanto se estivesse junto dele, pois conhecia o local onde este trabalhava, nas entranhas do Palácio de Justiça, onde os armários de ferro continham as fichas de todos os malfeitores da França e de um bom número de estrangeiros.
- Primeiro, o nome dele...
- Jean-Évariste Darchambaux, nascido em Boulogne, hoje com 55 anos...
Automaticamente, Maigret procurava lembrar-se de algum caso a que esse nome estivesse ligado, mas já a voz indiferente de Benoít, que articulava cada sílaba de um modo claro, recomeçava, enquanto Lucas escrevia:
- Formado em medicina... Casado, aos 25 anos, com uma certa Céline Mornet, de Étampes... Radicado em Toulouse, onde fez seus estudos... Vida movimentada... O senhor está me ouvindo, comissário?
- Muito bem. Continue...
- Apanhei todo o dossiê, pois a ficha não diz muita coisa... O casal logo ficou cheio de dívidas... Dois anos depois do casamento, com 27 anos, Darchambaux foi acusado de ter envenenado a tia, Julia Darchambaux, que viera morar com eles e que reprovava o tipo de vida que eles levavam... Os Darchambaux eram seus únicos herdeiros...
"A investigação policial durou oito meses, devido à falta de provas... Pelo menos, o assassino afirmava - no que era apoiado por alguns peritos - que os remédios receitados para a velha senhora não constituíam, exatamente, um veneno, que se tratava apenas de um tratamento audacioso, pouco ortodoxo...
"A polêmica foi grande... O senhor quer que eu leia também os relatórios?
"E o processo, tumultuado. Foi preciso esvaziar várias vezes a sala de audiências... A maior parte dos espectadores esperava a absolvição, sobretudo depois do depoimento da mulher do médico, que jurou a inocência do marido e prometeu acompanhá-lo se fosse condenado aos trabalhos forçados.
- Condenado? - inquiriu Maigret.
- A quinze anos na Guiana... Mas espere. Aí acabavam os nossos dossiês... Mas resolvi mandar um mensageiro ao Ministério do Interior e ele acaba de voltar...
Ouviram-no falando com alguém; depois o ruído de papéis sendo folheados.
- Aqui está. Mas não é grande coisa afinal: o diretor de
Saint-Laurent-du-Maroni quis que Darchambaux trabalhasse num dos hospitais da colônia penitenciária. Ele se recusou. As observações são boas. Prisioneiro dócil... Uma única tentativa de fuga; em companhia de quinze outros que o incitaram a isso...
"Cinco anos depois, um novo diretor tenta o que chamou a "reabilitação" de Darchambaux. Mas anota imediatamente, à margem do seu relatório, que nada no preso que lhe apresentaram lembra o intelectual de outrora, nem mesmo um homem de certa educação.
"Bem! Isso lhe interessa?
"Posto como enfermeiro em Saint-Laurent, ele solicita voluntariamente sua volta à colônia...
"É manso, obstinado, silencioso. Um dos seus colegas de profissão, interessado no caso dele, examina-o do ponto de vista mental e não chega a conclusões definitivas.
"Aparentemente haveria nele, como o homem escreveu, sublinhando as palavras a tinta vermelha, uma espécie de extinção progressiva das faculdades intelectuais, paralela a uma hipertrofia da vida física.
"Darchambaux comete dois furtos. Em ambas as ocasiões, roubou comida. Da segunda vez, de um companheiro de cela que o fere no peito com uma pedra afiada.
"Jornalistas de passagem aconselham-no inutilmente a pedir indulto.
"Completados os quinze anos da pena, ficou por lá, sob supervisão, colocando-se como empregado de uma serraria onde se encarregava dos cavalos.
"Aos quarenta e cinco anos, quite com a lei, perde-se a pista dele..."
- É tudo?
- Posso mandar o dossiê para o senhor. Este é apenas um resumo.
- Não há nada sobre a mulher? Você me disse que ela nasceu em Étampes, não? Muito obrigado, Benoít. Não precisa remeter o material. O que me contou basta.
Quando saiu da cabine, seguido de Lucas, suava por todos os poros.
-Você vai telefonar à prefeitura de Étampes. Eles lhe dirão se Céline Mornet já morreu. Pelo menos se foi enterrada com esse nome. Vá também informar-se em Moulins se Marie Dupin tem parentes em Étampes.
Atravessou a cidade sem ver nada, de mãos nos bolsos, e teve de esperar cinco minutos à beira do canal, porque a ponte levadiça fora erguida e uma barca bastante carregada avançava penosamente, quase arrastando o ventre chato no fundo do canal. O lodo de baixo subia à superfície, borbulhando.
Em frente à Providência, ele se aproximou do agente que tinha colocado como sentinela.
- Pode ir agora...
Via o coronel, que se exercitava andando pelo convés do Cruzeiro do Sul.
A dona da barcaça surgiu esbaforida, muito mais nervosa do que pela manhã, com lágrimas brilhando sobre as bochechas.
- É horrível, comissário...
Maigret empalideceu e perguntou, as feições rígidas:
- Morto?
- Não... Não diga isso! Há pouco eu estava sozinha com ele. Porque é preciso que eu diga, se ele gostava também do meu marido, sempre teve uma certa preferência por mim...
"Eu sou muito mais jovem. Pois bem! Mesmo assim, ele me tinha um pouco na conta de mãe...
"Ficávamos semanas, às vezes, sem trocar uma palavra. Apenas... Um exemplo! Meu marido costuma esquecer a data do meu aniversário. É no dia de Santa Hortência... Pois bem! Há oito anos que Jean me traz flores. Muitas vezes estávamos em lugares recônditos do interior e eu me perguntava onde ele as teria encontrado...
"E no dia do meu aniversário ele sempre colocava um enfeite de penas na cabeça dos cavalos.
"Mas como eu estava dizendo. Eu estava sentada com ele... Sem dúvida são as últimas horas que lhe restam. Meu marido quis tirar os cavalos, que não estão habituados a ficar assim tanto tempo presos.
"Não concordei. Estou certa de que ele deseja tê-los por perto também...
"Tomei sua mão calosa..."
Ela chorava, mas sem soluçar. Continuava a falar, com lágrimas fluidas que lhe escorriam pelas faces gordas.
- Não sei como aconteceu. Eu não tenho filhos... Decidimos adotar um menino, quando tivermos a idade que a lei exige...
"Eu lhe dizia que não era nada, que ele ficaria bom, que tentaríamos ir para a Alsácia, onde no verão o tempo é tão bom...
"Senti que seus dedos apertavam os meus... Eu não podia dizer que ele estava me machucando um pouco...
"Foi então que ele tentou falar...
"O senhor compreende? Um homem como ele, que ontem ainda era tão forte como os cavalos... Pois abria a boca... Fazia tanto esforço que as veias da sua testa ficaram roxas e inchadas...
E eu ouvia apenas um som rouco, como um grito de animal.
"Eu pedia que ficasse quieto. Mas ele teimava... Chegou a se sentar na palha, nem sei como! E continuava abrindo a boca...
"Mas só saia sangue, que escorria pelo queixo abaixo.
"Eu quis chamar o meu marido. Mas Jean me segurava. Até me dava medo.
"O senhor não pode imaginar o que foi!... Eu tentava adivinhar... Eu fazia perguntas... Quer beber algo? Não? Quer que chame alguém?
"E ele desesperado por não poder falar! Ah, se eu pudesse adivinhar... E não foi por não ter tentado...
"Diga, comissário? O que terá querido pedir? E agora algo se rompeu na sua garganta... Não sei...
"Ele sofreu uma hemorragia. Acabou por deitar-se de novo, os dentes cerrados, e justamente por cima do braço quebrado. Isso doía certamente, e, no entanto, parecia que ele não sentia nada...
"Ele fica olhando fixamente à frente...
"E eu daria tudo para saber o que poderia lhe agradar... antes... antes que seja tarde demais..."
Maigret foi sem ruído até o estábulo e olhou pela abertura.
Era tão fascinante, tão patético como a agonia de um animal com o qual não há meio de comunicação.
O barqueiro tinha o corpo dobrado sobre si mesmo. Arrancara, em parte, o aparelho que o médico tinha posto à noite em torno do seu torso. E era possível ouvir, de fora, o silvo espaçado da sua respiração.
Um dos cavalos prendera uma das patas na rédea, mas estava imóvel, como se compreendesse que alguma coisa de solene estava acontecendo.
Maigret também hesitava. Evocava a mulher morta, enfiada debaixo da palha da estrebaria de Dizy, depois o corpo de Willy, que boiava no canal e que os barqueiros, naquela manhã fria, tentavam pescar com um arpéu.
Sua mão, metida no bolso, apalpava o emblema do Yacht Club de France e a abotoadura. Revia o coronel, inclinando-se diante do juiz de instrução, pedindo-lhe, numa voz que não tremia, autorização para prosseguir viagem.
No necrotério de Épernay, numa câmara gelada em que se alinhavam caixas metálicas como no subsolo de um banco, dois corpos esperavam, cada um no seu compartimento numerado.
E, em Paris, duas mulheres de maquiagem malfeita, exagerada, arrastavam seu medo de bar em bar...
Lucas chegava.
- E então? - gritou-lhe Maigret, ainda de longe.
- Céline Mornet não deu mais sinal de vida em Étampes desde o dia em que foi providenciar os papéis necessários ao seu casamento com Darchambaux.
O inspetor observava curiosamente o comissário.
- O que o senhor tem, chefe?
- Psiu!
Mas Lucas em vão olhava em torno. Nada encontrava que justificasse qualquer emoção. Então Maigret levou-o até a abertura que dava para o estábulo e apontou o corpo estendido na palha.
A mulher perguntava o que iriam fazer. De um barco a motor que passava, uma voz indagou alegremente:
- Que foi? Uma pane?
A mulher se pôs de novo a chorar, sem saber por quê. O marido subia a bordo, com um balde de breu numa mão e uma brocha na outra, anunciando da popa:
- Tem alguma coisa queimando no fogão... Ela correu à cozinha. E Maigret disse a Lucas,como que a contragosto:
- Vamos descer...
Um dos cavalos relinchou debilmente. O barqueiro não se moveu.
O comissário tinha tirado da carteira a fotografia da morta, mas não a olhou.
CAPITULO Décimo
OS DOIS MARIDOS
- ESCUTE, Darchambaux...
Maigret disse isso de pé, espreitando o rosto do barqueiro. Sem sequer dar-se conta do gesto, tirou o cachimbo do bolso, mas sem pensar em enchê-lo.
A reação não foi a que ele esperava? De qualquer maneira, o comissário deixou-se cair no banco do estábulo, inclinou-se para a frente, apoiou o queixo nas mãos e disse em outro tom:
- Escute... Não fique agitado... Sei que você não consegue falar...
Uma sombra insólita, que dançou sobre a palha, o fez erguer a cabeça. E ele viu o coronel, de pé no convés da barcaça, à beira do painel.
O inglês não se mexeu, continuou acompanhando a cena com os olhos, de cima, com os pés mais altos do que a cabeça dos três personagens.
Lucas se mantinha à parte tanto quanto lhe permitia as pequenas proporções do recinto. Maigret, nervoso, continuou:
- Ninguém vai tirá-lo daqui... Você me compreende, Darchambaux? Dentro de alguns minutos, eu me retiro e a sra. Hortense tomará o meu lugar...
Era uma cena pungente, sem que se pudesse dizer exatamente por quê. Maigret, sem que o fizesse de propósito, falava quase com tanta doçura quanto a mulher.
- É preciso, em primeiro lugar, que me responda, batendo as pálpebras, a algumas perguntas... Muita gente pode ser acusada e presa de uma hora para a outra. Não é isso o que deseja, hein? Então, preciso que me confirme alguns fatos...
Enquanto falava, o comissário não deixava de observar o homem, de se perguntar quem tinha naquele momento à sua frente: o médico de antigamente, o preso renitente, o barqueiro embrutecido ou, enfim, o agonizante assassino de Mary Lampson.
A silhueta era gasta, os traços rudes. Mas não teriam os olhos agora uma expressão nova, de onde desaparecera a ironia?
Uma expressão de tristeza infinita?
Duas vezes Jean procurou falar. Duas vezes ouviu-se um som que parecia o gemido de um animal, e uma saliva rosada borbulhou em pequeninas pérolas nos lábios do moribundo.
Todo o tempo, Maigret podia ver a sombra das pernas do coronel.
- Quando você partiu para os trabalhos forçados, tinha a convicção de que sua mulher manteria a promessa feita e iria juntar-se a você em Caiena... Foi ela quem você matou, em Dizy!
Nem um tremor! Mas o rosto adquiriu uma cor acinzentada.
- Ela não foi, e você perdeu o ânimo. Você... você quis esquecer tudo, até a própria personalidade...
Maigret falava mais depressa, como que tomado de impaciência. Tinha de fato vontade de acabar com aquilo. Temia, acima de tudo, que Jean sucumbisse no curso desse medonho interrogatório.
- Você a encontrou por acaso, depois que se tornou um outro homem... Foi em Meaux, não foi?
Foi preciso esperar bastante antes que o barqueiro, dócil, consentisse em baixar as pálpebras em sinal de assentimento.
A sombra das pernas mudou de lugar. A barcaça oscilou um momento com a passagem de uma barca a motor.
- Ela era a mesma... Bela... Elegante... E alegre! Dançava, quando a reconheceu no convés do iate... Não pensou imediatamente em matá-la. Se pensasse, não teria sido preciso levá-la, primeiro, a Dizy...
Será que o moribundo conseguia ouvir o que ele dizia? Reclinado como estava, era impossível para ele não ver o coronel, acima da cabeça. Mas seus olhos estavam vazios de expressão! Pelo menos, nada exprimiam que se pudesse entender...
- Ela tinha jurado segui-lo ao fim do mundo... E você tinha estado em Saint-Laurent-du-Maroni... Vivia agora num estábulo... A idéia lhe ocorreu repentinamente.
Tomá-la de volta, tal como era agora, com suas jóias, seu rosto maquilado, seu vestido de luxo, e fazê-la partilhar da sua palha. Não foi, Darchambaux?
As pálpebras não bateram em confirmação. Mas o peito arfou. Houve um novo estertor. Lucas, nervoso, agitou-se no seu canto.
- Foi isso! Estou certo de que foi! - disse Maigret, mais depressa ainda, como que tomado de vertigem.
- Frente a sua antiga mulher, Jean-o-barqueiro, que aos poucos havia esquecido o Dr. Darchambaux, reencontrava suas lembranças, lufadas do seu passado extinto...
Uma vingança? Apenas... Uma necessidade obscura de arrastar para o seu nível aquela que havia prometido lhe pertencer para o resto da vida...
"E Mary Lampson viveu três dias escondida naquele estábulo, quase de livre e espontânea vontade... "Porque tinha medo... Medo desse fantasma ressuscitado, que ela sentia capaz de qualquer coisa e que ordenava que ela o seguisse...
"Sobretudo porque tinha consciência de que havia se mostrado fraca....
"Foi ter com ele espontaneamente... E você, Jean, você lhe deu carne enlatada e vinho tinto ordinário. Você esteve com ela duas noites seguidas, depois das jornadas sem fim ao longo do rio Marne... "Em Dizy..."
Uma vez ainda o moribundo se agitou. Mas faltavam-lhe forças. Recaiu no travesseiro, fraco e sem ânimo.
- Ela se revoltou provavelmente. Não podia suportar mais tempo uma vida assim... E você a estrangulou, num momento de fúria, para que não se fosse embora uma segunda vez... Depois levou o cadáver para o estábulo? Não foi assim?
Maigret teve de repetir cinco vezes a pergunta. Por fim, as pálpebras bateram: "Sim..." diziam, com indiferença.
Houve um ligeiro rumor na ponte. O coronel afastava a sra. Hortense, que queria aproximar-se. E ela obedecia, impressionada pela sua seriedade.
- O caminho da sirga... Sua vida nova, ao longo do canal... Mas você estava inquieto... Tinha medo... Porque você tem medo de morrer, Jean... Medo de ser levado de volta... Um medo atroz, principalmente de deixar os seus cavalos, o seu estábulo, a sua palha, esse cantinho que se tornou o seu mundo... Então, uma noite, tirou a bicicleta de um vigia... Quando eu o interroguei, você adivinhou as minhas suspeitas..."Deve ter ido a Dizy com a idéia de fazer alguma coisa, qualquer coisa, para despistar...
"Não foi?..."
Jean aparentava agora de uma calma tão absoluta que poderia ser dado por morto. Seu rosto exprimia apenas enfado. As pálpebras, no entanto, abaixaram-se uma vez mais.
- Quando chegou, o Cruzeiro do Sul estava às escuras. Podia-se crer que todo mundo dormia. Na ponte alguém deixara um gorro de marinheiro secando. Você o pegou. E foi correndo à estrebaria, escondê-lo debaixo da palha. Era o meio de desviar o curso da investigação, de dirigi-la para o iate.
"Não podia saber que Willy Marco, que estava em terra sozinho, vira você apanhar o gorro e que seguira seus passos... Ele esperou até que você saísse, na porta da estrebaria, onde perdeu uma das abotoaduras.
"Intrigado, seguiu você na volta até a ponte de pedra, onde você tinha deixado a bicicleta.
"Ele falou com você? Ou você ouviu algum barulho?
"Lutaram... Você o matou com seus dedos terríveis, que já haviam estrangulado Mary Lampson... E arrastou o corpo até o canal.
"Depois, deve ter ido embora cabisbaixo... Viu então na estrada alguma coisa que brilhava, a insígnia do Y.C.F... E, por uma inspiração súbita, talvez por tê-la visto na lapela do coronel, lançou-a no lugar onde tinha havido a luta... Responda, Darchambaux? Não foi assim que tudo aconteceu?"
- Em pane a Providência? - lançava de longe um marujo, cuja barca passou tão perto que se viu sua cabeça deslizar à altura do teto.
E, coisa estranha, emocionante: os olhos de Jean se marejaram. Ele bateu as pálpebras muito depressa, como se quisesse admitir tudo de uma vez, para acabar com aquilo.
E ouviu-se a voz da dona do barco que dizia, da popa onde esperava:
- É Jean, que se acidentou...
Maigret levantou-se:
- Ontem à noite, quando examinei as suas botas, você entendeu que eu chegaria fatalmente à verdade. E tentou matar-se no redemoinho da eclusa.
Mas o barqueiro estava, a essa altura, tão exausto e respirava com tanta dificuldade que o comissário não esperou a resposta. Fez sinal a Lucas e lançou um último olhar em torno.
Oblíquo, um raio de sol caía sobre o estábulo, tingindo de ouro ao mesmo tempo a orelha do barqueiro e o casco de um dos cavalos.
No momento em que os dois homens saíram, sem encontrarem mais nada a dizer, Jean ainda tentou falar, com veemência, sem medo da dor. Chegou a erguer-se, com um olhar desvairado.
Maigret não se ocupou imediatamente do coronel. Chamou com gestos peremptórios a mulher, que de longe o observava.
- E então, como está Jean? - ela perguntou.
- Cuide dele...
- Posso? Ninguém virá de novo a...
Não ousou terminar a frase. Ficara petrificada ao escutar os indistintos apelos do barqueiro, que parecia ter medo de morrer sozinho.
E, de repente, correu para o estábulo.
Vladimir, sentado no cabrestante do iate, cigarro na boca e boné branco atravessado na cabeça, emendava um cabo.
Um policial esperava no cais, e Maigret lhe perguntou do alto da barcaça:
- O que foi?
- Temos a resposta de Moulins...
E deu-lhe um papel, que dizia simplesmente:
"A padeira Maríe Dupin declara ter tido, em Étampes, uma prima não muito próxima chamada Céline Mornet".
Então Maigret encarou o coronel, olhando-o da cabeça aos pés. Ele tinha na cabeça seu quepe branco,com o grande escudo dourado. Os olhos estavam apenas opacos, o que queria dizer que bebera ainda relativamente pouco.
- O senhor suspeitou da Providência? - perguntou-lhe a queima-roupa.
Era tão evidente! Pois não teria também Maigret suspeitado logo da barcaça se sua atenção não tivesse sido desviada a certa altura para os tripulantes do iate?
- Por que não me disse nada?
A resposta foi digna do diálogo entre Sir Lampson e o juiz de instrução em Dizy.
- Quis resolver o caso eu mesmo...
O que bastava para expressar o desprezo do coronel pela polícia.
- Mon femme? - perguntou, logo em seguida.
- Como o senhor mesmo disse, como Willy Marco disse, era uma mulher encantadora...
Maigret falava sem ironia. Aliás, estava mais atento aos ruídos que vinham do estábulo que a essa conversação.
Escutava-se o murmúrio abafado de uma única voz: a da dona da barca, que parecia embalar uma criança doente.
- Quando ela se casou com Darchambaux, já gostava de luxo... E, sem dúvida, foi por ela que o médico pobre ajudou a tia a morrer... Digo que foi por ela. E que ela sabia tão bem disso que no tribunal jurou reunir-se a ele na colônia penal...
"Mulher encantadora... O que não quer dizer que tivesse vocação de heroína...
"O gosto pela vida foi mais forte... O senhor deve compreender uma coisa dessas, coronel."
Havia ao mesmo tempo vento, sol e nuvens ameaçadoras. De um momento para outro, poderia cair um temporal. A luz já era incerta.
- É tão raro as pessoas voltarem de uma colônia penal... Ela era bonita... Todas as alegrias estavam ao alcance da mão... Tinha só o nome a prejudicá-la. Então, na Cote d'Azur, onde encontrou um primeiro admirador disposto a casar com ela, ocorreu-lhe a idéia de ir a Moulins e extrair a certidão de nascimento de uma prima
de quem se lembrava.
"É fácil. Tão fácil que já se fala em tirar a impressão digital dos recém-nascidos para guardá-las nos registros do estado civil.
"Divorciou-se... Tornou-se sua mulher."Encantadora. E sem maldade, estou certo. Mas gostava da vida, não é? Amava a mocidade, o luxo, o amor...
"Veja. Estou convencido de que ela acompanhou Jean menos por medo das ameaças dele do que pela necessidade de ser perdoada...
"No primeiro dia, escondida no estábulo deste barco, em meio a odores tão fortes, deve ter sentido uma estranha satisfação à idéia de que assim expiava o seu pecado.
"A mesma coisa que outrora, quando gritava aos jurados que acompanharia o marido à Guiana...
"Seres encantadores, cujo primeiro movimento é sempre generoso e mesmo teatral... Estão cheios de boas intenções.
"Só que ávida, com suas covardias, seus compromissos, suas necessidades imperiosas, é mais forte..."
Maigret tinha falado com algum ardor, sem deixar um minuto de prestar atenção nos ruídos do estábulo. Ao mesmo tempo, seu olhar seguia os barcos que entravam e saíam da eclusa.
À sua frente, o coronel baixara a cabeça. Quando a ergueu, foi para encarar Maigret com uma simpatia evidente, talvez até mesmo com alguma emoção contida.
- O senhor viria beber comigo? - perguntou, mostrando o iate.
Lucas se mantinha à parte.
- Você me avisará? - disse o comissário.
Entre os dois não havia necessidade de explicações. O inspetor compreendeu e rondava, calado, em torno do estábulo.
O Cruzeiro do Sul estava em ordem, como se nada tivesse acontecido. Não havia um só grão de pó nas divisórias de mogno da cabine.
No centro da mesa, uma garrafa de uísque, um sifão e copos.
- Fique lá fora, Vladimir!
Era uma impressão nova para Maigret. Não entrava mais ali para descobrir um fragmento da verdade. Sentia-se menos pesado, menos brutal.
E o coronel tratava-o como havia tratado o sr. Clairfontaine de Lagny.
- Ele vai morrer, não é?
- De um minuto para o outro. Sim. E ele sabe, desde ontem.
A água gasosa do sifão. Sir Lampson disse, gravemente:
- Saúde!
E Maigret bebeu, com tanta avidez quanto o seu anfitrião.
- Por que fugiu do hospital?
O ritmo das respostas era lento. Antes de responder, o comissário corria os olhos em torno, gravando na memória os menores detalhes da cabine.
- Porque...
Procurava as palavras, enquanto seu companheiro enchia de novo os copos.
- ... um homem sem laços afetivos... um homem que cortou todas as ligações com o seu passado, com sua antiga personalidade... sente-se bem ao se apegar a alguma coisa! Tem o seu estábulo... os cavalos... o café fervendo engolido às três horas da manhã, antes de viajar a pé, no caminho da sirga, até de noite... seu covil, por assim dizer. Seu ninho, esconderijo, sei lá. Tudo cheio de calor animal.
E Maigret encarou o coronel. Viu que ele desviava o rosto. E acrescentou, apanhando o copo:
- Há covis de todo tipo. Alguns têm cheiro de uísque, de água de colônia, de mulher. Com música de vitrola e...
Interrompeu-se para beber. Quando levantou a cabeça, Sir Lampson tivera tempo de emborcar um terceiro copo.
E olhando-o com grandes olhos arregalados, estendia-lhe a garrafa.
- Não, obrigado... - protestou Maigret.
- Yes! Preciso...
Não haveria afeição no seu olhar?
- Mon femme... Willy...
Nesse instante, um pensamento espantoso atravessou o espírito do comissário. Não estaria Sir Lampson tão só, tão desamparado quanto Jean, que morria no seu estábulo?
E o barqueiro levava vantagem, tinha junto dele os seus cavalos e a maternal mulher de Bruxelas...
- Beba! Yes! Eu lhe peço... O senhor é um gentleman...
Quase suplicava. E oferecia a garrafa com uma expressão um pouco envergonhada. Ouviam-se os passos de Vladimir, que ia e vinha sobre o convés.
Maigret estendeu o copo. Mas alguém bateu à porta. Era Lucas.
- Comissário!
E mal se abriu uma fresta:
- Acabou-se!
O coronel permaneceu imóvel. Com ar lúgubre, viu quando eles saíram. Maigret olhou para trás. Ele virava de uma só vez o copo que acabara de encher e chamava:
- Vladimir!
Algumas pessoas se juntavam na margem perto da Providência, pois ouvia-se soluços vindos lá de dentro.
Era Hortense Canelle, a mulher do dono, que, de joelhos ao lado de Jean, ainda falava com ele, embora já estivesse morto há vários minutos...
O marido, na coberta, esperava por Maigret. Correu para ele, magro e agitado, murmurando com desespero:
- O que devo fazer? Ele morreu! Minha mulher... Um quadro que Maigret não esqueceria mais:no estábulo, visto de cima, e obstruído pelos dois cavalos, um corpo quase dobrado sobre si mesmo, com metade da cabeça enfiada na palha. E os cabelos louros de Hortense, que concentravam todo o sol, enquanto ela gemia docemente, repetindo:
- Mon petit Jean...
Como se Jean fosse um menino e não o velho duro como granito que assombrara seus médicos.
Capítulo onze
PRIMAZIA
NINGUÉM NOTOU, exceto Maigret. Duas horas depois da morte de Jean, e enquanto o corpo era levado numa padiola para a ambulância que o aguardava, o coronel pedira,com os olhos estriados de vermelho, mas com porte muito digno:
- O senhor acha que me darão agora a licença de sepultamento?
- A partir de amanhã.
Cinco minutos depois, Vladimir, com a sua habitual precisão de movimentos, soltava as amarras.
Dois barcos esperavam em frente à eclusa de Vitry-le-François, na direção de Dizy.
O primeiro já se punha em posição a golpes de vara, quando o iate roçou por ele, contornou-lhe a proa arredondada e ultrapassou-o, penetrando na eclusa aberta.
Houve gritos de protesto. O barqueiro reclamou que a vez era dele, disse que daria parte e muitas coisas mais.
Mas o coronel, de quepe branco e uniforme de oficial, nem se voltou.
De pé, junto ao timão de cobre, permaneceu impassível, os olhos fixos à frente.
Quando as portas da eclusa se fecharam, Vladimir desceu, entregou os papéis ao vigia e a gorjeta tradicional.
- Que diabo! Então os iates têm todos os direitos? - resmungou um barqueiro. - Com dez francos a cada eclusa...
A calha do canal estava apinhada de barcos, à jusante de
Vitry-le-François. Parecia impossível que o iate pudesse avançar entre tantas embarcações, mesmo impelido a vara.
E, no entanto, mal foram abertas as portas, e a água borbulhou em torno da hélice, o coronel, corn um gesto indiferente, ligou o motor.
E o Cruzeiro do Sul, em velocidade plena, avançou raspando pelos pesados lanchões, em meio a gritos e protestos, e passou sem tocar num só.
Dez minutos mais e desaparecia na curva do canal.
Maigret comentou com Lucas:
- Os dois estão bêbados de cair!
Ninguém viu isso. O coronel parecia tão correto e digno, com o enorme escudo de ouro à frente do chapéu!
Vladimir, de camisa listada de malha, casquete no alto da cabeça, não fizera um único movimento em falso. Apenas, se o vigoroso pescoço de Sir Lampson estava violáceo, seu rosto era de uma palidez doentia, os olhos tinham bolsas pronunciadas e os lábios haviam perdido a cor.
Quanto ao russo, o menor choque o derrubaria. Estava dormindo em pé.
A bordo da Providência, tudo estava fechado, silencioso. Os dois cavalos haviam sido amarrados a uma árvore a cem metros da barcaça.
Quanto ao dono e sua mulher, tinham ido à cidade encomendar as roupas do luto.
Georges Simenon
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