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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Barganha / Lima Barreto
A Barganha / Lima Barreto

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Barganha

 

E o “turco”, desde muito cedo, andava pelos subúrbios a mercar aqueles coloridos registros de santos. Havia um são João Batista, com a sua tanga, o seu bordão de pastor e o seu inocente carneiro que olhava doce tudo o que via fora da estampa; havia um Cristo com o coração muito rubro à mostra, coroado de espinhos, e os olhos revirados para o Céu que naquele dia estava lindo, de um profundo azul-cobalto; havia uma Ceia em que Jesus presidia, mansueto e resignado, apesar de se saber traído, e havia muitos outros santos e santas que o “turco” levava, alguns enrolados, mas outros diante do seu peito arquejante das suas caminhadas de humilde bufarinheiro, daquelas modestas paragens da cidade.

E ele ia:

— Compra, sinhor! Muita bonita!

Das casas, às vezes, lá saía uma mulher ou outra, de cores as mais variadas, e indagava com desprezo:

— Olá! O que é que você leva aí?

Miguel José parava, aproximava-se da porteira e respondia:

— Santa, sinhora! Muita bonita!

— Que santos tem?

— Muitas, sinhora. Tuda bonita.

Desentolava os registros e a rapariga começava a examinar. De repente, à vista de uma daquelas oleogravuras, ela gritava:

— Leocádia! Leocádia!

Lá do interior da casa respondiam:

— Que é?

A outra acudia:

— Vem cá. Vem ver uma cousa.

Vinha uma outra rapariga e a que estava, recomendava, mostrando um dos quadros do “turco”:

— Vê só como é lindo este Menino Jesus.

A outra examinava e concordava. O “turco” se animava e perguntava:

— Não quer compra ele?

Uma delas ia ao encontro da pergunta do bufarinheiro:

— Quanto é?

— Barata, sinhora.

— Quanto?

— Dois mil-réis.

— Chi, meu Deus! É caro, muito mesmo.

O pobre ambulante não fazia negócio algum; e continuava com a sua carga sagrada a palmilhar aquelas ruas que são mais propriamente veredas.

Ainda se houvesse árvores, sombra que amaciasse aquela manhã quente, embora linda e cristalina, o seu ofício seria suportável; mas não as havia. Tudo era descampado e as ruas eram batidas pelo sol em chapa. Lá ia ele. As calças ficavam-lhe pelos tornozelos; o chapéu era de feltro, mas não se sabia se era preto, azul, cinzento. Tinha todas as cores próprias a chapéus dessa espécie. Em um pé calçava uma botina amarela; em outro, um sapato preto.

— Cumpra, sinhor! Coisa bonita de Deus! Cumpra.

Foi dizendo isto a um petulante crioulo, muito preto, de um preto fosco e desagradável, cabeleira grande, gordurosa, repartida ao alto, e o chapéu a dançar-lhe em cima dela; foi dizendo isto a ele que lhe ia acontecendo urna grande desgraça naquela manhã. O negro, ao ouvi-lo, chegou-se muito junto ao “turco” e indagou com um ar autoritário:

— Que é que você está dizendo?

O humilde armênio pensou logo que tratava com um soldado de polícia à paisana, pois lhe parecia que, na terra em que estava, todos os pretos são soldados e podem prender todos os armenos.

Com essa convicção, Miguel José respondeu cheio de respeito e acatamento:

— Dizia, sinhor: cumpra santo muita bonita.

O negro perfilou-se todo, tomou uns ares judiciais ou policiais, chegou o chapéu de palha para a testa e disse:

— Você parece que não é civilizado.

— Cumo, sinhor?

— Sim, você é herege, inimigo de Nosso Senhor.

— Não, sinhor.

O preto desarmou-se um pouco de seus ares judiciais ou policiais, tomou-se mais suave, quis fazer de penetrante e sagaz. Perguntou:

— Você come came de porco?

E Miguel José olhou as montanhas pedregosas que ele via lá, longe, esbatidas no azul profundo da manhã, ressaltando quase inteiramente na ambiência translúcida do dia, e lembrou-se da sua aldeia armênia, das suas cabras, das suas ovelhas, dos seus porcos.

A sua fisionomia dura contraiu-se um pouco e os seus olhos de carneiro quiseram chorar de recordação, de sofrimento, de mágoa. Ele se encheu todo de uma pesada tristeza; mas pôde responder:

— Sim, senhor, eu coma.

— Então você é cristão? insistiu o preto.

— Sim, sinhor; diga a sinhor sou cristão.

— Admira.

— Por quê, sinhor?

— Porque você diz “vender” “comprar” santos.

— Cuma se diz então?

— Troca-se. Aprenda — está ouvindo! É falta de respeito, é sacrilégio dizer comprar ou vender santos. Aprendeu?

— Sim, sinhor. Obrigada, sinhor.

E o crioulo se foi, deixando o pobre armênio arrasado por mais aquele déspota que passava sobre a sua pobre raça; mas mesmo assim, continuou na sua mercancia.

Lá se foi ele por aquelas ruas de tão caprichoso nivelamento que permite as carroças que por lá se arriscam andarem no ar com burros e tudo. Lá ia ele:

— Cumpra, sinhor! Muita bonita.

Subia, descia ladeiras; parava nas portas; mas não fazia negócio algum.

Num pequeno campo, encontrou uma porção de crianças a empinar papagaios. Parou um pouco para ver aquele divertimento interessante que as crianças da sua terra não conheciam. Veio um pequenote:

— Ó Zê! O que é que você leva aí?

— Santo, menina. Pede mamãe compra uma.

— Ora, esta! Lá em casa tem tanto santo — para que mais um? Vende ali, aos “bíblias”.

Miguel José percebeu bem a malícia da criança, pois de uma feita caíra na tolice de oferecer um registro a essa espécie de religiosos e se vira atrapalhado. Não que o tivessem maltratado, mas um deles, baixinho, com um pince-nez muito puro de vidros cristalinos, o levara para o interior da casa, lera-lhe uma porção de cousas de um livro e depois quisera que ele se ajoelhasse e abandonasse os registros. Noutra não cairia ele…

Continuou o caminho, mas estava cansado. Ansiava por uma sombra, onde repousasse um pouco. Havia muitas árvores, mas todas no interior das casas, nas chácaras, nos quintais ou nos jardins. Uma assim pública, na margem da rua, em terreno abandonado que o abrigasse aí, por uns dez minutos, ele não encontrava.

E seria tão bom descansar assim fazendo o seu minguado almoço, para continuar até à tarde a sua faina, vendo se ganhava pelo menos uns dez ou cinco tostões de comissão com a venda daquelas cousas sagradas.

E continuou o seu caminho, tendo sempre exposta diante do peito a imagem de Cristo, coroado de espinhos, a mostrar o coração muito rubro, com os seus misericordiosos olhos a procurar o Céu, naquela manhã muito linda, de um profundo azul-cobalto…

Afinal, achou uma mangueira, maltratada, cheia de ervas parasitas, a crescer na borda do cominho, num terreno desocupado. Sentou-se, tirou da algibeira um naco de pão dormido, uma cebola e pôs-se a comer, olhando as montanhas pedroucentas que assomavam ao longe e lhe faziam lembrar a terra natal. Ele não tinha nenhum nítido pensamento sobre a vida, a natureza e a sociedade…

Não tardou que se lhe viesse juntar um companheiro. Era também um “volante” como ele; mas a sua mercancia era outra, menos espiritual. Vendia sardinhas, de que trazia um cesto cheio. Era um português, cheio de saúde, de força, de audácia. Vinha suado, mais do que o armênio; entretanto, não dava mostras de ter ressentimentos nem do sol nem da dureza do seu ofício. O armênio olhou-o com inveja e pensou de si para si:

— Como é que esse homem pode ser alegre, pode ter esperanças?

O português, sem auxílio, arriou o grande cesto na sombra e sentou-se também cheio de confiança e desembaraço.

Foi logo dizendo:

— Bons dias, patrício.

Miguel José fez uma voz sumida:

— Bom dia, sinhor.

O português, sem mais aquela, observou:

— Qual senhor! Qual nada! Cá entre nós, é você pra baixo. Isto de senhor é lá pros doutores, não é para nós que andamos aqui aos tombos.

E emendou comunicativo:

— Que diabo — ó patrício! — que tu comes pra aí?

O “turco” disse-lhe e o Manuel da Silva considerou:

— Lá na minha terra, há quem goste disto; mas eu nunca me acostumei. Cebola pra mim, só na comida. Numa bacalhoada, ah!…

Miguel José continuava a mastigar sua cebola com pão, enquanto Manuel da Silva contava a féria. Contada que ela foi, disse bem alto:

— Pela hora que é, as cousas não vão mal. Até o meio-dia vendo tudo…

Guardou o dinheiro na bolsa que tinha a tiracolo e perguntou subitamente ao companheiro de acaso:

— Você já vendeu muito hoje, patrício?

— Nada, sinhor.

— Está você a dar com o tal de senhor! Pergunto se você já vendeu alguma cousa hoje, homem!

— Nada.

— O que é que você vende?

— Santo, sinhor.

— Santo?

— Sim; santo.

— Deixa ver isto, como é? fez o português curioso.

O armênio passou-lhe os registros coloridos e o vendedor de sardinhas pôs-se a olhá-los com espanto e deslumbramento artístico de aldeão simplório. Achou tudo aquilo bonito: aquele Jesus, mostrando o coração; são João, com o carneirinho; o Menino Jesus — tudo muito lindo aos seus olhos maravilhados de camponês cândido e enfeitiçado pelas cousas do senhor vigário.

Refletiu de si para si: “Cousas tão bonitas, se não as vendeu, é porque este ‘turco’ é mesmo burro. Comigo, já as tinha vendido, ganhado dinheiro e ficado com algumas, pra pôr lá no quarto”.

Veio-lhe uma idéia.

— Patrício! Você quer fazer um negócio?

Os olhos de carneiro do armênio luziram mais forte e com mais esperança.

— Qual é? perguntou ele.

— Tenho ali na cesta cerca de vinte mil-réis de sardinhas, vendidas a duas por um vintém. Se você vendê-las a vinte, ganha o dobro. Quer você trocar estes santos pelo cesto de sardinhas?

Miguel José rapidamente pesou os prós e contras da operação comercial. Sabia bem, por experiência própria, que a população, até as crianças, se mostrava refratária à mercadoria espiritual de que ele era portador; e, pelo que lhe vira ainda agora nas mãos, a do seu companheiro não se portava da mesma forma.

Em se tratando de sardinhas, as cousas não corriam da mesma maneira como no tocante a santos. Considerou bem e logo respondeu:

— Tá feita, sinhor.

Os dous se despediram e trocaram de carga. Miguel José voltou a passar pelos mesmos lugares em que oferecera os registros, sem nenhum resultado; mas, quando apregoou as sardinhas, não teve mãos a medir. Vendeu-as a vintém, então fez escambos de compensação e, de tal forma correram-lhe as cousas que, dentro de três horas, tinha vendido tudo, podia pagar os registros à loja e lucrava cinco mil e tanto.

Manuel da Silva, o alegre português das sardinhas, saiu muito ancho com os seus registros; mas não foi logo vendê-los.

A frugalidade do “turco” tinha-lhe dado uma fome extraordinária. Procurou uma casa de pasto e comeu a fartar, acompanhado de um bom martelo de verdasco.

Bem alimentado, satisfeito, dispôs-se a “trocar” o são João Batista, Menino Jesus, correndo a sua freguesia de peixes e crustáceos.

Batia as portas:

— Mamãe, dizia uma criança, está aí o seu Manuel.

A mãe perguntava lá de dentro:

— Ele traz camarão?

— Não, mamãe; quer vender santos.

— Para que deu agora, seu Manuel! Ora, vejam só! Vender santos. Diga a ele que não quero.

Dessa e de outra maneira, ele foi percorrendo em vão sua freguesia das sardinhas, sem mercar uma única estampa religiosa.

A sua alegria matinal se ia e todo o seu desgosto se voltava terrível contra ele mesmo. Não fora o “turco” que o embrulhara; fora ele mesmo que propusera aquele negócio. Era castigo. Ia tão bem com as sardinhas, para que fizera aquela barganha?

Andou até quase a noitinha e nada vendeu. Ao recolher-se, ainda quis ver as oleogravuras que o haviam deslumbrado.

Mirou uma, mirou outra e, olhando-as firmemente, refletiu:

— Se não fosse por faltar o respeito devido a Nosso Senhor Jesus Cristo, que ai está, eu havia de dizer que tudo isso são cousas do diabo que aquele “turco” me impingiu. Nunca mais! Tarrenego!

 

                                                                                            Lima Barreto  

 

                      

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